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Luís QUINTAIS S 'gllndo pcrb r, tal fa uldade permite duvidar, ou seja, representar uma Il'pl' 'S .nta ã c mo improvável ou falsa. Uma faculdade exclusivamente humana, I 11111() sabem s. Acresce ainda que tal faculdade nos permite a nós - humanos - I"(), 'S' r informação que não é entendida integralmente. Através de tal faculdade nu-tu-rcpr entacional, possuímos uma disposição para aumentar o nosso conheci- 1I1('nt e repertório perceptual. ' , nvérn aqui fazer uma distinção. Refiro-me àquela que faz opor «represen- 1.1' cs serni-proposicionais» (incompletas) de «representações proposicionais» (com- pl 'I' ) (ver, v.g., Sperber, 1992 [1982]). As primeiras serão parte constitutiva do processo de entendimento por etapas que poderá conduzir às segundas. Ou seja, as I cpresentações serni-proposicionais poderão (ou não) conduzir às representações proposicionais. As representações incompletas estão um pouco por todo lado e são, , . iundo Sperber, uma das marcas distintivas daquilo a que se chama de criatividade. lima das suas propriedades ou qualidades mais extravagantes é a de se instalarem na 111 .nte sob a forma de «mistérios conceptuais» (Sperber, 1996: 72). Num sentido cognitivo forte, poder-se-á dizer que a arte é, por excelência, o domínio - ou melhor, a dramatização - do irracional. Lidando com ideias só par- .ialmente entendidas ou representações serni-proposicionais, os constrangimentos rn ionais não são aí pedra-de-toque. Poderá dizer-se, aliás, que é a sua flagrante inconsistência que torna tais representações memoráveis (tudo o que é cultural- 111 nte eficaz ou canónico pode ser pensado através disto). A única forma de atribuir .onsistência a tais representações é tomá-Ias, justamente, como misteriosas. Enquanto mistérios, tais representações adquirem «relevância» (uma palavra que é decisiva para compreender o projecto de Sperber [ver, v.g., Sperber e Wilson, 2001]). A atingirem relevância, tais mistérios ocupam a atenção de uma população e dis- tribuem-se eficazmente, definindo padrões ecológicos de fenómenos psicológicos. O que importa aqui reter será tão-só o seguinte: a ekphrasis é uma representação de outra representação, logo ela radica numa faculdade meta-representacional que se .ncontra largamente distribuída entre os humanos. Não é, pois, exclusivo da arte. Ela , seguramente uma propriedade que podemos detectar em tudo aquilo a que chamamos de criações humanas. Sendo uma representação verbal de uma representação visual, dir- -I) -ia que a ekphrasis trabalha esse hiato entre formas de representação diferenciadas. , lebra a impossibilidade de transporte, mas ironicamente procura uma consistência, afirrnando, afinal, o mistério ou a inquietação ou o desassossego dessa impossibilidade. O tema da poesia é a poesia. Como se a poesia não pudesse fugir a ela própria, ou, '!TI última análise, orno se a poesia não pudesse fugir do cerco da linguagem e do . 'r de Lima Ih/f!.ua. A I ia convive e responde em contínuo à mirífica qualidade qu c S• isas - t't'I'W I ipo I' oi as (as representações) - têm de nos escaparem per- A EKPHRASIS COMO META-REPRESENTAÇÃO Presumimos uma relação entre dois objectos: uma representação (um poema) e outra representação (uma pintura, uma escultura, uma fotografia, etc.). Que relação é esta? A meu ver, trata-se do exercício de uma faculdade meta-representacional. A ekphrasis n~o é um procedimento excepcional. Em grande medida, é algo que apela a uma qualidade humana, demasiadamente humana, e, porventura, sem mistério. Est: sem mistério é, porém, uma ironia, porque a ekphrasis resulta de uma inquie- taçao, uma reiteração de um «mistério» muito particular. Vejamos porquê. A min~a leitura ,deste problema procede de Dan Sperber (1996), um antropólo- go e ciennsta cogrunvo que tem trabalhado incessantemente sobre o problema da representação. Sperber defende (de forma persuasiva) que as representações que podemos ter dependem das faculdades cognitivas que «filtram» tais representações. A co~stância e consistência das representações (a sua «racionalidade») depende de tais filtros. DIferentes tipos de representações acedem à constância e à consistência de maneiras diversas. Segundo Sperber, o «conhecimento empírico quotidiano» é uma mo~alidade de conhecimento que radica em sérios constrangimentos conceptuais, perceptuais, e lógicos. Porém, e isto tem implicações profundas quan- do se trata de pensar o que é a arte (e, em particular, que tipo de relações é que se estabelece entre domínios de representação diferentes, como sejam a poesia, a pin- tura, a escultura, a fotografia, etc.), a rigidez deste tipo de conhecimento cons- trangido n~o ~ passíve,l de ser transportada para outras formas de representação, ~nde a flexibilidade se Impõe como regra (a regra de não haver regra, se quisermos). E .neste contexto que outras faculdades cognitivas se impõem. Avulta aí aquela que cna representações a partir de outras representações (numa explosão massiva de representações sobre representações). A faculdade meta-representacional, pois. Qual a sua importância? II1 11'1 1111" \" 11")1 1(11)(1/111 11,1 1111' '1\11 li" I 101 0011 Ii

Luis Quintais - A ekphrasis como meta-representação

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"Relâmpago" outubro de 2008, número 10. "Aekphrasis (...) é algo que apelaa uma qualidade humana, demasiadamente humana, e, porventura, sem mistério.Este sem mistério é, porém, uma ironia, porque a ekphrasis resulta de uma inquietaçao,uma reiteração de um «mistério» muito particular."

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Page 1: Luis Quintais - A ekphrasis como meta-representação

Luís QUINTAIS

S 'gllndo pcrb r, tal fa uldade permite duvidar, ou seja, representar umaIl'pl' 'S .nta ã c mo improvável ou falsa. Uma faculdade exclusivamente humana,I 11111() sabem s. Acresce ainda que tal faculdade nos permite a nós - humanos -I"(), 'S' r informação que não é entendida integralmente. Através de tal faculdadenu-tu-rcpr entacional, possuímos uma disposição para aumentar o nosso conheci-1I1('nt e repertório perceptual. '

, nvérn aqui fazer uma distinção. Refiro-me àquela que faz opor «represen-1.1' cs serni-proposicionais» (incompletas) de «representações proposicionais» (com-pl 'I' ) (ver, v.g., Sperber, 1992 [1982]). As primeiras serão parte constitutiva doprocesso de entendimento por etapas que poderá conduzir às segundas. Ou seja, asIcpresentações serni-proposicionais poderão (ou não) conduzir às representaçõesproposicionais. As representações incompletas estão um pouco por todo lado e são,, . iundo Sperber, uma das marcas distintivas daquilo a que se chama de criatividade.lima das suas propriedades ou qualidades mais extravagantes é a de se instalarem na111 .nte sob a forma de «mistérios conceptuais» (Sperber, 1996: 72).

Num sentido cognitivo forte, poder-se-á dizer que a arte é, por excelência, odomínio - ou melhor, a dramatização - do irracional. Lidando com ideias só par-.ialmente entendidas ou representações serni-proposicionais, os constrangimentosrn ionais não são aí pedra-de-toque. Poderá dizer-se, aliás, que é a sua flagranteinconsistência que torna tais representações memoráveis (tudo o que é cultural-111 nte eficaz ou canónico pode ser pensado através disto). A única forma de atribuir.onsistência a tais representações é tomá-Ias, justamente, como misteriosas.Enquanto mistérios, tais representações adquirem «relevância» (uma palavra que édecisiva para compreender o projecto de Sperber [ver, v.g., Sperber e Wilson, 2001]).A atingirem relevância, tais mistérios ocupam a atenção de uma população e dis-tribuem-se eficazmente, definindo padrões ecológicos de fenómenos psicológicos.

O que importa aqui reter será tão-só o seguinte: a ekphrasis é uma representação deoutra representação, logo ela radica numa faculdade meta-representacional que se.ncontra largamente distribuída entre os humanos. Não é, pois, exclusivo da arte. Ela, seguramente uma propriedade que podemos detectar em tudo aquilo a que chamamosde criações humanas. Sendo uma representação verbal de uma representação visual, dir--I) -ia que a ekphrasis trabalha esse hiato entre formas de representação diferenciadas., lebra a impossibilidade de transporte, mas ironicamente procura uma consistência,

afirrnando, afinal, o mistério ou a inquietação ou o desassossego dessa impossibilidade.O tema da poesia é a poesia. Como se a poesia não pudesse fugir a ela própria, ou,

'!TI última análise, orno se a poesia não pudesse fugir do cerco da linguagem e do. 'r de Lima Ih/f!.ua. A I ia convive e responde em contínuo à mirífica qualidadequ c S • isas - t't'I'W I ipo I' oi as (as representações) - têm de nos escaparem per-

A EKPHRASIS COMO META-REPRESENTAÇÃO

Presumimos uma relação entre dois objectos: uma representação (um poema) eoutra representação (uma pintura, uma escultura, uma fotografia, etc.). Que relaçãoé esta? A meu ver, trata-se do exercício de uma faculdade meta-representacional. Aekphrasis n~o é um procedimento excepcional. Em grande medida, é algo que apelaa uma qualidade humana, demasiadamente humana, e, porventura, sem mistério.Est: sem mistério é, porém, uma ironia, porque a ekphrasis resulta de uma inquie-taçao, uma reiteração de um «mistério» muito particular. Vejamos porquê.

A min~a leitura ,deste problema procede de Dan Sperber (1996), um antropólo-go e ciennsta cogrunvo que tem trabalhado incessantemente sobre o problema darepresentação. Sperber defende (de forma persuasiva) que as representações quepodemos ter dependem das faculdades cognitivas que «filtram» tais representações.A co~stância e consistência das representações (a sua «racionalidade») depende detais filtros. DIferentes tipos de representações acedem à constância e à consistênciade maneiras diversas. Segundo Sperber, o «conhecimento empírico quotidiano» éuma mo~alidade de conhecimento que radica em sérios constrangimentosconceptuais, perceptuais, e lógicos. Porém, e isto tem implicações profundas quan-do se trata de pensar o que é a arte (e, em particular, que tipo de relações é que seestabelece entre domínios de representação diferentes, como sejam a poesia, a pin-tura, a escultura, a fotografia, etc.), a rigidez deste tipo de conhecimento cons-trangido n~o ~ passíve,l de ser transportada para outras formas de representação,~nde a flexibilidade se Impõe como regra (a regra de não haver regra, se quisermos).E .neste contexto que outras faculdades cognitivas se impõem. Avulta aí aquela quecna representações a partir de outras representações (numa explosão massiva derepresentações sobre representações). A faculdade meta-representacional, pois. Quala sua importância?

II1 11'1 1111" \" 11")1 1(11)(1/11111,1 1111' '1\11 li" I 101 0011 Ii

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Rationalists, wearing square hats,

Think, in square rooms,

Looking at the floor,

Looking at the ceiling.

They confine themselves

To right-angled triangles.

lf they tried rhomboids,

Cone, waving lines, ellipses -

As for example, the ellipse of the half moon -

Rationalists would wear sombreros.

manentemente, deslocando-se, sem cessar, para um lugar que tendemos a qualificar dl'misterioso (qualificação que é a única resposta consistente que podemos encontrar).Uma representação instala-se assim sobre outra numa espécie de progressão infinita,sempre inacabada, que, a sermos rigorosos, dispensa também o qualificativo de rnistério, pois não vacila perante a sua «irracionalidade», correndo, antes, para ela.

Só uma grande paixão pela razão nos conduzirá de novo à arte e aos seus avatar '~.Eis um dos contínuos entre arte e ciência, mas também uma das suas diferenças. A ciência, ao contrário da arte, procede como se fosse possível simplificar e controlar o grand .carnaval das representações em que se desdobra a criatividade ou aquilo que nos é u-gerido por este nome. Ironicamente, também, esse sonho de consistência e simetria .uma das paixões mais furiosas que conhecemos e uma das mais perturbadoras formasde irracionalidade (desabrida declinação pela simplicidade, consistência, e controlo).Um sonho que dilacerou os modernos e que nos conduziu à distopia.

Não é sobre outra coisa (uma meta-representação, pois) uma das Six significanllandscapes de Wallace Stevens (1990 [1955]: 75), a sexta precisamente:

REFERÊNCIAS

Sperber, Dan (1992 [1982]), «As Crenças Aparentemente Irracionais", in O Saber dos Antropólogos,

Lisboa, Edições 70, pp. 59-96.Sperber, Dan (1996), Explaining Culture. A Naturalistic Approach, Oxford, Blackwell Publishing.Sperber, Dan e Wilson, Deirdre (2001 [1986, 1995]), Relevância. Comunicação e Cognição, Lisboa,Fundação Calouste Gulbenkian.Stevens, Wallace (1990 [1955]), Collected Poems, Londres e Nova lorque, Faber.