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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO - FUNDAMENTOS DE UMA DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA LUÍS ROBERTO BARROSO Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School. Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro. 3ª edição 1999 Editora Saraiva ÍNDICE GERAL Abreviaturas IX Um prefácio afinal desnecessário XI Registros XXI INTRODUÇÃO 1. A interpretação. Generalidades 2. Apresentação do tema 3. Plano de trabalho 6 PARTE 1 A DETERMINAÇÃO DA NORMA APLICÁVEL Introdução CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAÇO E NO TEMPO Capítulo 1 A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAÇO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL 1. O tratado internacional e a Constituição 2. A norma estrangeira e a Constituição a) A norma estrangeira e a Constituição de origem b) A norma estrangeira e a Constituição brasileira Capítulo II A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL 1. A Constituição nova e a ordem constitucional anterior 2. Emenda constitucional e Constituição em vigor 3. Constituição nova e direito infraconstitucional anterior 4. Algumas questões de direito intertemporal suscitadas pelo advento de uma nova Constituição a) Inexistência de inconstitucionalidade formal superveniente b) Aplicação imediata, mas não retroativa, da Constituição nova c) Declaração de inconstitucionalidade e efeito repristinatório d) Situações processuais específicas e) Normas infraconstitucionais não recepcionadas pela Constituição de 1988 PARTE II A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo I OS MÉTODOS E CONCEITOS CLÁSSICOS APLICADOS À INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 1. Introdução 2. Peculiaridades das normas constitucionais 3. Conceitos, classificações e métodos clássicos de interpretação a) Subjetivismo e objetivismo. O originalismo nos Estados Unidos b) Interpretação constitucional legislativa, administrativa, judicial, doutrinária e autêntica c) Interpretação declarativa, restritiva e extensiva d) Os métodos ou elementos clássicos de interpretação I - A interpretação gramatical II - A interpretação histórica III - A interpretação sistemática

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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO - FUNDAMENTOS DE UMA DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA LUÍS ROBERTO BARROSO Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School. Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro. 3ª edição 1999 Editora Saraiva ÍNDICE GERAL Abreviaturas IX Um prefácio afinal desnecessário XI Registros XXI INTRODUÇÃO 1. A interpretação. Generalidades 2. Apresentação do tema 3. Plano de trabalho 6 PARTE 1 A DETERMINAÇÃO DA NORMA APLICÁVEL Introdução CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAÇO E NO TEMPO Capítulo 1 A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAÇO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL 1. O tratado internacional e a Constituição 2. A norma estrangeira e a Constituição a) A norma estrangeira e a Constituição de origem b) A norma estrangeira e a Constituição brasileira Capítulo II A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL 1. A Constituição nova e a ordem constitucional anterior 2. Emenda constitucional e Constituição em vigor 3. Constituição nova e direito infraconstitucional anterior 4. Algumas questões de direito intertemporal suscitadas pelo advento de uma nova Constituição a) Inexistência de inconstitucionalidade formal superveniente b) Aplicação imediata, mas não retroativa, da Constituição nova c) Declaração de inconstitucionalidade e efeito repristinatório d) Situações processuais específicas e) Normas infraconstitucionais não recepcionadas pela Constituição de 1988 PARTE II A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo I OS MÉTODOS E CONCEITOS CLÁSSICOS APLICADOS À INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 1. Introdução 2. Peculiaridades das normas constitucionais 3. Conceitos, classificações e métodos clássicos de interpretação a) Subjetivismo e objetivismo. O originalismo nos Estados Unidos b) Interpretação constitucional legislativa, administrativa, judicial, doutrinária e autêntica c) Interpretação declarativa, restritiva e extensiva d) Os métodos ou elementos clássicos de interpretação I - A interpretação gramatical II - A interpretação histórica III - A interpretação sistemática

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IV - A interpretação teleológica e) Integração da vontade constitucional. Analogia e costume consti- tucional 4. A interpretação constitucional evolutiva Capítulo Ii PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO ESPECIFICAMENTE CONSTITUCIONAL 1. Os princípios constitucionais como condicionantes da interpretação constitucional 2. Princípio da supremacia da Constituição 3. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público 4. Princípio da interpretação conforme a Constituição 5. Princípio da unidade da Constituição 6. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade 7. Princípio da efetividade PARTE FINAL A OBJETIVIDADE DESEJADA EA NEUTRALIDADE IMPOSSÍVEL: O PAPEL DO INTÉRPRETE NA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo I SABER JURÍDICO CONVENCIONAL, TEORIA CRÍTICA DO DIREITO E DIREITO ALTERNATIVO. A SÍNTESE NECESSÁRIA 1. Introdução 2. A teoria crítica 3. O direito alternativo 4. Objetividade e neutralidade. Os limites do possível Capítulo Ii CONCLUSÕES Índice onomástico Índice alfabético-remissivo Bibliografia ABREVIATURAS ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade AgI - Agravo de Instrumento AgRg - Agravo Regimental AJCL - American Journal of Comparative Law AJIL - American Journal of International Law BVerfGE - Entscheidungen des Bundesverfassungsgericht DJU - Diário de Justiça da União Embgs - Embargos ILM - International Legal Materiais MI - Mandado de Injunção ML - Medida Liminar MS - Mandado de Segurança QO - Questão de Ordem RDA - Revista de Direito Administrativo RE - Recurso Extraordinário Rep - Representação de Inconstitucionalidade REsp - Recurso Especial RILSF - Revista de Informação Legislativa do Senado Federal RF - Revista Forense RMS - Recurso em Mandado de Segurança RT - CDC e CP - Revista dos Tribunais - Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política RTDP - Revista Trimestral de Direito Público

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RTJ - Revista Trimestral de Jurisprudência STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça TFR - Tribunal Federal de Recursos UM PREFÁCIO AFINAL DESNECESSÁRIO Estas palavras não pretendem ser um prefácio que mereça o nome. Não é que alimentasse a presunção de oferecer um desses prefácios densos e eruditos, que, às vezes, dissimulam a ambição de competir com a obra que apresentam. Honrado, porém, pelo convite do autor para prefaciar a publicação da tese - que lhe deu as merecidas galas de Professor Titular da Uni- versidade do Estado do Rio de Janeiro - e verdadeiramente impressio- nado com a excelência do trabalho, cheguei a cogitar, à guisa de prefá- cio, de dar um testemunho: aos sete anos de cotidiana interpretação cons- titucional por dever de ofício, pensei aproveitar o tema e dar conta do método e dos motivos de votar de um juiz do Supremo Tribunal Federal. Ao menos, dos motivos conscientes e racionais. Que os outros - supe- rado, embora, o mito ingênuo ou mistificador da interpretação neutra (e não apenas imparcial) - são, de regra, indevassáveis: não que os queira ocultar o intérprete, mas porque, na grande maioria das vezes, é ele próprio o primeiro a ignorá-los. Na Parte Final deste livro, disse-o o autor, de modo irretocável: "Idealmente, o intérprete, o aplicador do direito, o juiz, deve ser neutro. E é mesmo possível conceber que ele seja racionalmente educado para a compreensão, para a tolerân- cia, para a capacidade de entender o diferente, seja o homos- sexual, o criminoso, o miserável ou o mentalmente deficien- te. Pode-se mesmo, um tanto utopicamente, cogitar de libertá- lo de seus preconceitos, de suas opções políticas pessoais e oferecer-lhe como referência um conceito idealizado e asséptico de justiça. Mas não será possível libertá-lo do pró- prio inconsciente, de seus registros mais primitivos. Não há como idealizar um intérprete sem memória e sem desejos. Em sentido pleno, não há neutralidade possível". Frustrou-se o intento do depoimento pessoal, atropelado pelas tur- bulências da presidência do Tribunal e das dimensões inéditas da crise do Judiciário, que venho tentando discutir sem preconceitos. E ainda pela certeza de que nenhuma contribuição justificaria retardar ainda mais a publicação de estudo tão significativo. Este livro, cuja apresentação a amizade de Luís Roberto Barroso me entregou, consolida a inscrição do conjunto da sua obra, fruto da juventude ainda vigente, no rol das melhores produções da teoria cons- titucional brasileira. O trabalho premiado do estudante O problema da federação (Forense, 1982) - que o grande Seabra Fagundes, no prefácio, não he- sitou em saudar como "dos melhores já escritos sobre o regime federal no Brasil" prenunciava os marcos característicos do jurista consagrado de hoje: o domínio seguro dos princípios, da história e da dogmática constitucional, sem asfixia do compromisso com o seu País e o seu povo. Vem dessa época a nossa aproximação pessoal, na militância da OAB, ao tempo em que, "sobre o crepúsculo do autoritarismo, incidem as primeiras frestas de claridade" (O problema da federação, cit., p. XII). 1. Prêmio Cândido de Oliveira Neto, 1980, da OAB-RJ. Já em 1989 - entremeando-se na série de trabalhos menores, no entanto, de valor indiscutível (assim, p. ex., Igualdade perante a lei, de

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1985, Revista de Direito Público, 78:65, e A crise econômica e o direito constitucional, de 1993, Revista Forense, 323:83) - completa o autor a versão original de sua tese de livre-docência -A força normativa da Cons- tituição. Elementos para a efetividade das normas constitucionais - a qual, ampliada e atualizada, foi divulgada em duas edições, como título definitivo - O direito constitucional e a efetividade de suas normas - e o subtítulo que trai o engajamento do teórico - Limites e possibilida- des da Constituição brasileira (Renovar, 1991 e 1993). Na primeira das edições, a veemente divergência com a minha pos- tura restritiva nos leading cases acerca da natureza e das potencialidades dogmáticas do mandado de injunção - tal como instituído e disciplina- do (e muito mal) pela Constituição - valeu-me, na transcrição de uma ementa, o epíteto de ser uma "pena ilustre - outrora progressista" (O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 179), ex- pressões abrandadas, com sutileza, na edição seguinte (O direito consti- tucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 183). A impiedade da crítica do amigo - que assim aparentemente me compelia à retirada do círculo dos "progressistas", onde há anos o rece- bera - nem afetou a amizade, nem alterou o juízo extremamente posi- tivo sobre o trabalho. 2. Juízo positivo, aliás, que já nem poderia dissimular: da leitura dos originais da tese, dela extraíra citação, precedida de referência elogiosa, que erigira em um dos pilares da fundamentação do voto em que tomara posição na polêmica - MI 107 (QO), Moreira Alves, RTJ, 133:11, 50. De qualquer sorte, até por vaidade intelectual, não ousaria retratar- me dos justos encômios ao estudo: a verdade é que - após o clássico de José Afonso da Silva sobre a eficácia jurídica das normas constitucio- nais - a monografia de Barroso, em torno dos caminhos possíveis para a efetividade (ou eficácia social) da Constituição, deu novas dimensões, no Brasil, ao esforço para vencer a paralisia das inovações constitucio- nais contra a resistência à sua realização de parte dos interesses criados. 3. José Afonso da Silva,Aplicabilidade das normas constitucionais, Revista dos Tribunais, 1968. Esta segunda tese, que hoje me orgulha apresentar, responde às mesmas inspirações do jurista comprometido com a descoberta e a ex- ploração das potencialidades transformadoras da Constituição. Sua tônica é a mesma da obra anterior, uma obsessão fértil com a efetividade da norma constitucional, expressa nesta passagem feliz, que traduz a declarada influência de Konrad Hesse: "O malogro do constitucionalismo, no Brasil e alhu- res, vem associado à falta de efetividade da Constituição, de sua incapacidade de moldar e submeter a realidade so- cial. Naturalmente, a Constituição jurídica de um Estado é condicionada historicamente pelas circunstâncias concre- tas de cada época. Mas não se reduz ela à mera expressão das situações de fato existentes. A Constituição tem uma existência própria, autônoma, embora relativa, que advém de sua força normativa, pela qual ordena e conforma o contex- to social e político. Existe, assim, entre a norma e a rea- lidade, uma tensão permanente. É neste espaço que se definem as possibilidades e os limites do direito consti- tucional". Ou nesse parágrafo, irretocável, que trai a segura apreensão do me- lhor da lógica de Kelsen: "No nível lógico, nenhuma lei, qualquer que seja sua

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hierarquia, é editada para não ser cumprida. Sem embargo, ao menos potencialmente, existe sempre um antagonismo entre o dever-ser tipificado na norma e o ser da realidade social. Se assim não fosse, seria desnecessária a regra, pois não haveria sentido algum em impor-se, por via legal, algo que ordinária e invariavelmente já ocorre. É precisamente aqui que reside o impasse científico que invalida a suposi- ção, difundida e equivocada, de que o direito deve limitar- se a expressar a realidade de fato. Isso seria sua negação. De outra parte, é certo que o direito se forma com elemen- tos colhidos na realidade, e seria condenada ao insucesso a legislação que não tivesse ressonância no sentimento so- cial. O equilíbrio entre esses dois extremos é que conduz a um ordenamento jurídico socialmente eficaz". 4. A Hans Kelsen, contudo, a obra reserva, depois (Parte Final, cap. 1, n. 1), um tratamento injusto e incide na assimilação, também difundida mas equivocada, entre o normativismo da Teorhia Pura - que tem um dos seus pontos fortes na revelação do caráter também criador das etapas sucessivas de aplicação do direito, até a sentença, inclusive (cf., p. ex., Teoría general del derecho y del Estado, trad., México, 1949, p. 137 e s.) - e o formalismo dos exegetas, este, sim, que parte da premissa de "que a atividade do intérprete se desenvolve por via de um processo dedutivo, de mera subsunção do fato à norma", de sentido supostamente inequívoco: permita-me o autor a críti- ca ligeira, que, por força do contraste, realçará os muitos elogios. O tema agora eleito - Interpretação e aplicação da Constituição de trato freqüentemente negligenciado, quando não enfadonhamente repetitivo, seguramente não é uma promessa, necessariamente mistificadora. de ensinar caminhos sem desvios nem alternativas para a solução pretensamente unívoca de todo e qualquer problema constitucional. Ao contrário, o subtítulo da tese - Fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora - desvela o engajamento progressista do autor, que o parágrafo final do estudo corajosamente renova: "O constituinte é invariavelmente mais progressista que o legislador ordinário. Tal fato dá relevo às potencialidades do direito constitucional, e suas possibilidades interpretativas. Sem abrir mão de uma perspectiva questionadora e crítica, é possí- vel, com base nos princípios maiores da Constituição e nos valores do processo civilizatório, dar um passo à frente na dogmática constitucional. Cuida-se de produzir um conheci- mento e uma prática asseguradores das grandes conquistas históricas, mas igualmente comprometidos com a transfor- mação das estruturas vigentes. O esboço de uma dogmática autocrítica e progressista, que ajude a ordenar um país capaz de gerar riquezas e distribuí-las adequadamente". Essa audaciosa declaração de compromisso do autor com a "transformação das estruturas vigentes" não seria de celebrar se se tratasse apenas de mais uma dessas tentativas, tão comuns na área do direito público, de vender crenças ideológicas dessa ou daquela co- loração como soluções de dogmática constitucional, de simulada neutralidade científica. Certo, Luís Roberto Barroso denuncia com razão que "a idéia de neutralidade do Estado, das leis e de seus intérpretes, divulgada pela

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doutrina liberal-normativista, toma por base o status quo” e, por isso, só reputa neutra “a decisão ou a atitude que não afeta nem subverte as distribuições de poder e riqueza existentes na sociedade". É verdade também que não receou enfrentar preconceitos e resga- tar, da superficialidade da réplica que sói opor-lhe a crítica reacionária, os aspectos positivos da "teoria crítica do direito" e do movimento do "direito alternativo". Não obstante, a obra repele decididamente a pregação dos que, a partir da "impossibilidade da objetividade plena" - dado o inextirpável coeficiente de subjetividade que toda interpretação contém -, renun- ciam na sua prática à busca da "objetividade possível". Daí, o traço antológico da linha de equilíbrio que propõe: "A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do texto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que, normalmente, não vai além da literalidade, da história, do sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subje- tividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permiti- rá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o apli- cador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoa- vel e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto". A essa orientação o autor consegue manter-se invariavelmente fiel, à custa da rejeição coerente à tentação dos desvios de todas as bandas. Assim, de um lado, na trilha do seu mestre, o notável José Carlos Barbosa Moreira volta a denunciar a lógica predileta dos reacionários, "uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo". Repele, no entanto, com igual vigor, o "charlatanismo constitucio- nal", mercê do qual, com freqüência, intérpretes politicamente compro- metidos - incluídos alguns dos nossos - forcejam por ignorar princí- pios elementares e limites intransponíveis da dogmática do ordenamento positivo, à busca de uma falsa legitimação jurídica para suas posições. Essa fidelidade à dignidade científica da interpretação constitucio- nal, sem prejuízo da criatividade e do compromisso com a transforma- ção, na medida em que dogmaticamente viáveis, responde pelo nível de altiplano, sem depressões, que o livro mantém, do começo ao fim. É impossível, contudo, não assinalar alguns pontos da obra, cuja particular cintilação a singulariza, no panorama de hoje da nossa doutri- na constitucional. Entre eles, toda a Parte I - A determinação da norma aplicável -, que, salvo engano, pela sistemática do trato dos conflitos das normas constitucionais no tempo e no espaço, não encontra paralelo em nossa

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literatura. Nela, ganha realce a precisa análise da questão, quase inexplorada, da legitimidade e dos limites do controle, no foro brasileiro, da validade da norma estrangeira a aplicar, quer perante a Constituição de origem, quer perante a própria Constituição do Brasil, cujas normas, em passa- gem de grande felicidade, o autor insere na "ordem pública internacio- nal". São páginas ímpares. De relevar também é todo o capítulo destinado a enfatizar o decisi- vo papel dogmático dos princípios constitucionais - "normas eleitas pelo constituinte como fundamentos e qualificações essenciais da or- dem jurídica que instituem" -, os quais - assinala o autor, reafirman- do sua postura fundamental -, por sua generalidade, abstração e capa- cidade de expansão, permitem muitas vezes ao intérprete "superar o legalismo estrito e buscar no próprio sistema a solução mais justa", mas, a um só tempo, "funcionam como limites interpretativos máximos, neu- tralizando o subjetivismo voluntarista dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, reduzindo a discricionariedade do legislador e impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento". Exemplar igualmente, dentro da mesma diretiva metodológica, nos tópicos que se ocupam dos princípios específicos da interpretação constitucional, é a exploração das potencialidades do "princípio da razoabilidade" e a definição dos marcos do seu espaço legítimo de incidência. Só duas palavras a mais. Vai a primeira para o cuidado da tese com a pesquisa e a análise da jurisprudência constitucional brasileira, que a obra de nossos especia- listas, a exemplo do que sucede nos demais ramos do direito, tende sim- plesmente a ignorar. O escamoteamento da jurisprudência pela doutrina, entretanto, é de todo indesculpável. Não é que se pretenda impor ao teórico a submis- são ao entendimento dos tribunais - acentuei, ao prefaciar outra obra recente: o que não é leal, sobretudo para o leitor jovem, é não dar conta dele e transmitir, como verdades apodíticas, opiniões diametralmente opostas a quanto se tem decidido - certo ou errado, não importa - na vivência cotidiana, na Justiça, da lei e da Constituição. 5. José Tarcisio de Almeida Melo, Direito constitucional brasileiro, Del Rey, 1996, prefáciu. É auspicioso verificar que essa tendência tradicional está sendo su- perada por alguns dos melhores nomes da nova geração de publicistas brasileiros. 6. Cf., a partir de José Celso de Melo Filho (Constituição Federal anotada, Saraiva, 1986) e de Gilmar F. Mendes (Controle de constitucionalidade, Saraiva, 1990, e Jurisdição constitucional - controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, Saraiva, 1996), v. g., Clémerson M. Clêve. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, Revista dosTribunais, 1995; Nagih Slaibi Filho, Ação declaratória de constitucionalidade, Forense, 1994; Elival S. Ramos. À inconstitucionalidade das leis, Saraiva, 1994; Oscar Vilhena Vieira, Supremo Tribunal Federal - jurisprudência política, Revista dos Tribunais, 1994; Joaquim Barbosa Gomes, La Cour Suprëim’ dans le système politique brésilien, além de valiosos comentários e críticas de decisões determinadas,

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e. g., Flávio Bauer Novelli, sobre o julgamento da ADIn 939, declaratória da inconstitucionalidade do art. 2º, § 2º, da EC 3/93, RT - Cadernos de Direito Constitucional, 13:18. Entre eles, com esta tese, Luís Roberto Barroso se inseriu definiti- vamente com minuciosa atenção à jurisprudência constitucional do País, particularmente a do Supremo Tribunal, que analisa com precisão e cri- tica com agudeza, quando entende ser o caso. A transcrição de alguns trechos já dispensaria, a rigor, a última nota destas palavras, reservada para louvar a clareza e a limpidez do estilo, de elegância ática, infenso a ouropéis e berloques, sem conces- sões à frase arrevesada, às metáforas substitutivas de conceitos técnicos e a tantos outros abomináveis vícios de provinciano pedantismo, dos quais muitos de nossos juristas estão longe de libertar-se. Por tudo quanto foi dito, o melhor é encerrar. Afinal, se o livro é tão bom e tão bem escrito, já é mais que hora de deixar que o leitor desavisado, que haja gasto seu tempo com esta apresen- tação desnecessária, entregue-se afinal ao prazer intelectual da sua leitura. Brasilia, maio de 1996. J. P. Sepúlveda Pertence REGISTROS Inúmeras pessoas participaram deste projeto, com maior ou menor intensidade, em contribuições intelectuais e afetivas. Por evidente, ne- nhuma delas tem culpa no resultado. Ana Paula de Barcellos tem sido um adorável anjo da guarda destes últimos anos, com sua dedicação e talento. Luís Eduardo Barbosa Moreira prestou-me valiosa ajuda na pes- quisa dos materiais em italiano e reviu em minúcia o texto final. Lúcia Maria Lefebvre Fisher, de novo e sempre, foi a bibliotecária que tomou minha vida mais fácil e melhor. Devo, igualmente, ao Professor Osiris Cuadrat de Souza inúmeras correções da primeira versão. Nelson Nascimento Diz, Mauro Fichtner Pereira e Joel Alves Andrade, advogados e pessoas notáveis, foram interlocutores freqüen- tes e gratificantes de minhas angústias e perplexidades. Os Professores José Carlos Barbosa Moreira, Milton Flaks, Joaquim Arruda Falcão e Hélio Assunção honraram-me com a leitura dos originais e com suas críticas lúcidas e proveitosas. O Professor Gustavo Tepedino tem sido companheiro e amigo constante de muitos caminhos, que vêm desde o movimento estudantil e chegarão a um mundo melhor. Os Professores Doutores Caio Tácito, Raul Machado Horta, José Alfredo de Oliveira Baracho, Carlos Alberto Direito e Jacob Dolinger integraram a banca de concurso que me conferiu o grau de titular em Direito Constitucional, com nota máxima. A leitura atenta que fizeram de meu trabalho e as argüições eruditas e instigantes valorizaram imen- samente a conquista. Partilho o título, em profunda comunhão afetiva, com a Professora Carmen Tiburcio, pelo estímulo, carinho e transcen- dente amizade de todos estes anos. Este trabalho é dedicado à Tê, que o acompanhou a cada passo, e à Luna, que nasceu junto com ele. Nas madrugadas e fins de semana em que o escrevi, e por isto não pude estar com elas, reconheci-me no verso encantado de Jorge Luis Borges, uma linda declaração de amor: "Estar com você ou não estar com você é a medida do meu tempo". Dezembro de 1995 LRB INTRODUÇÃO "Um texto, depois de ter sido separado do seu emissor e das circunstâncias concretas da sua emissão, flutua no

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vácuo de um espaço infinito de interpretações possíveis. Por conseqüência, nenhum texto pode ser interpretado de acordo com a utopia de um sentido autorizado definido, original e final. A linguagem diz sempre algo mais do que o seu inacessível sentido literal, que já se perdeu desde o início da emissão textual." Umberto Eco 1. Umberto Eco, Les limites de l´interprétation, 1992, p. 8. 1. A interpretação. Generalidades A Terra é plana, e todos os dias o sol nasce, percorre o céu de ponta a ponta e se põe do lado oposto. Por muito tempo isto foi tido como uma obviedade, e toda a compreensão do mundo era tributária dessas pre- missas, Que, todavia, eram falsas. Desde logo, uma primeira constatação: as verdades, em ciência, não são absolutas nem perenes. Toda interpre- tação é produto de uma época, de uma conjuntura que abrange os fatos, as circunstâncias do intérprete e, evidentemente, o imaginário de cada um. Ao longo dos séculos, o homem tem recorrido à mitologia, ao so- brenatural, ao panteísmo, à fé monoteísta de diversos credos e à obses- são do racionalismo. Não necessariamente nessa ordem. Em instigante trabalho no qual procurou traçar um paralelo entre a Física e o direito constitucional, Laurence Tribe dissertou sobre os três grandes estágios da Física moderna, e como cada um deles influenciou a percepção do universo em geral. Newton trabalhou sobre a idéia de que os objetos eram isolados e interagiam a distância e utilizou-se de conceitos metafísicos como espaço e tempo absolutos. A Física pós- newtoniana, marcada pela teoria da relatividade de Einstein, superou a fase do absoluto, divulgou a idéia da curvatura do espaço e de que todos os corpos interagem entre si. Por fim, com a Física quântica percebeu- se que a própria atividade de observação e investigação interfere com os fatos pesquisados. Vale dizer: nem mesmo a mera observação é neutra. 2. Laurence Tribe, The curvature of constitutional space: what lawyers can learn from modern physics, Harvard Law Review, 103:1, 1989. Ao longo do tempo, varia a percepção que o homem tem, não ape- nas do mundo à sua volta, como também de si mesmo. Em passagen clássica, Sigmund Freud identificou três momentos em que, pela mão da ciência, o homem se viu abalado em suas convicções e mesmo en sua auto-estima. O primeiro golpe deveu-se a Copérnico, com a revela- ção de que a Terra não era o centro do universo, mas apenas um minús- culo fragmento de um sistema cósmico cuja vastidão é inimaginável. O segundo golpe veio com Darwin, que através da pesquisa biológica des- truiu o suposto lugar privilegiado que o homem ocuparia no âmbito da criação e provou sua incontestável natureza animal. O terceiro abalo, possivelmente o mais contundente, veio com o próprio Freud, criador da Psicanálise: a descoberta de que o homem não é senhor absoluo sequer da própria vontade, de seus desejos, de seus instintos. Seu psiquis- mo não é dominado pela razão, mas pelo inconsciente. 3. Sigmund Freud, O pensamento vivo de Freud, 1985, p. 59. É certamente possível incluir neste elenco um outro golpe mais re- cente: o fiasco dos países que se organizaram sob inspiração do marxis- mo e puseram em prática o chamado socialismo real. A ideologia, que chegou a envolver quase metade da humanidade e cativou corações e mentes por todo o mundo, representava um exercício supremo do racionalismo e um esforço de criação de um novo homem. Um homem

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que não seria predestinado pela fatalidade, pela providência ou por seus próprios instintos, mas pela história. Uma história que poderia ser to- mada nas mãos para promover uma sociedade igualitária, solidária e pretensamente universal, sem Estados, nacionalismos ou fronteiras. Não faltam os que possam alegar que, desde a primeira hora, denuncia- ram a inviabilidade ou os desvios do modelo, não deixa de ser desolador para o espírito humano que tudo tenha acabado em secessão, desordem e fratricídio. O trabalho que a seguir se desenvolve parte da premissa consolida- da de que a interpretação não é um fenômeno absoluto ou atemporal. Ela espelha o nível de conhecimento e a realidade de cada época, bem como as crenças e valores do intérprete, sejam os do contexto social em que esteja inserido, sejam os de sua própria individualidade. 2. Apresentação do tema A interpretação constitucional no Brasil era um tema à espera de um autor. Possivelmente continuará a ser. Este estudo, todavia, tem a ambição de identificar e sistematizar os elementos essenciais da teoria da interpretação aplicáveis ao direito constitucional. No seu desenvolvi- mento, sem embargo da ênfase dada à realidade brasileira, procurou-se importar, seletivamente, com moderação e sentido crítico, o que de me- lhor havia no direito comparado sobre a matéria. 4. Posteriormente à publicação da 1ª edição deste livro, em 1996, foram lançados outros trabalhos monográficos acerca da interpretação constitucional, dentre os quais se destacam: Inocêncio Mártires Coelho, Interpretação constitucional, 1997; Uadi Lammêgo Bulos, Manual de interpre- tação constitucional, 1997; Celso Ribeiro Bastos, Hermenêutica e interpretação constitucional, 1997; Lenio Luiz Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, 1999. Neste esforço, deu-se especial atenção à bicentenária produção jurisprudencial da Suprema Corte norte-americana, bem como à fecun- da atuação do Tribunal Constitucional Federal alemão em pouco mais de um quarto de século. Contudo, e naturalmente, reservou-se maior destaque para as decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro, refe- ridas e reproduzidas com freqüência ao longo do texto, contrariando um velho hábito da doutrina de tratar a jurisprudência, sobretudo a nacio- nal, com certo desdém. Não se correu o risco, aqui, de ficar de frente para o mar, de costas para o Brasil. O trabalho que se segue não tem por objeto a filosofia da interpreta- ção constitucional, nem tampouco pretende ser uma teoria geral sobre o tema. Ele se volta, predominantemente, para a atividade de realização da vontade constitucional, e procura fundamentar, desenvolver e sistemati- zar o conhecimento necessário a tal desiderato. Concentra-se, assim, no itinerário intelectivo a ser percorrido no processo de interpretação da Cons- tituição, desde a determinação da norma aplicável até o ato final de sua incidência sobre o caso concreto, sem descurar do questionamento acerca do papel desempenhado pela subjetividade do próprio intérprete. A interpretação constitucional, como a interpretação em geral, não é um fenômeno monolítico, singular. Ela é essencialmente plural e com- porta ênfase em aspectos diferentes. Em uma análise científica, assim, é possível voltar a atenção, em primeiro lugar, para o sistema, isto é, para o conjunto de normas, princípios e conceitos inerentes ao processo interpretativo. Pode-se, de outra parte, dar um papel destacado ao obje-

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to, vale dizer, aos casos concretos, às situações da vida, aos problemas que devem ser solucionados pela interpretação da norma. Por fim, é possível cogitar, ainda, de investigar o papel do sujeito da interpretação, voltando os olhos para os valores e a ideologia do intérprete e sua reper- cussão no produto de seu trabalho. Metodologicamente, portanto, é possível encarar a interpretação constitucional a partir do sistema, do primado da norma e da dogmática jurídica tradicional, à qual se adicionam particularidades exigidas pelo caráter singular da Constituição. A interpretação constitucional, por via de conseqüência, é uma espécie de interpretação jurídica, enriquecida por princípios e regras próprias. Este método, que se pode identificar como método hermenêutico clássico, trata a Constituição como lei, e procura desenvolver sua força normativa, sem embargo de dificuldades que a peculiar estrutura das normas constitucionais muitas vezes suscita. 5. Ernst-Wolfgang Böckenförde (Escritos sobre derechos fundamentales, 1993) faz refe- rência ao método hermenêutico clássico, que associa a Forsthoff (Rechtsstaat im Wandel, 1976), e dele distingue variações de menor ou maior sutileza, como o método hermenêutico-concretizador, de Konrad Hesse (Grundzüge des VerfassungsR der Bundesrepublik Deutschland. 1976) e F. Müller (Enzvklopãdie der geisteswissenschaftíichen Arbeitsmethoden, 1972), e o que denomina interpretação constitucional orientada às ciências da realidade, de Smend (Staatsrechtliche Abhandlungen, 1968). É possível, igualmente, optar por uma metodologia que valorize antes o objeto que motiva a interpretação, isto é, o caso concreto ou o problema a ser resolvido. Nos países onde vigora a tradição do common law, como nos Estados Unidos, a ênfase da argumentação jurídica recai, precisamente, na discussão dos aspectos de fato da causa e na busca do precedente mais adequado, sem que exista, normalmente, a rigidez de uma norma taxativa emanada do sistema. Paralelamente ao case system norte-americano, desenvolveu-se entre os alemães a tópica, o chamado método tópico aplicado aos problemas, pelo qual se sustenta o primado do problema sobre a norma jurídica e sobre o sistema, onde a interpreta- ção se apresenta como um método aberto de argumentação, indutivo e não dedutivo. Nele, a ordem jurídica é apenas uma referência, um dos argumentos, um dos topoi a serem levados em conta na solução das situações concretas. 6. Veja-se, por todos, em meio a vastíssima bibliografia, o texto clássico de Karl Llewellyn, The case law system in America, Columbia Law Review, 88:989, 1988. 7. A obra fundamental sobre a tópica é de Theodor Viehweg, Topik und Jurisprudenz, 1953. Vejam-se, também, H. Ehmke, Prinzipien der Verfassungsinterpretation, 1963; Ernst-Wolfgang Böckenförde, Escritos sobre derechos fundamentales, cit., p. 19 e s.; José Antonio Estévez Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia civil, 1994; Eduardo García de Enterría, Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derecho, 1984. Em língua portuguesa, v. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1993, p. 404 e s. Por fim, é possível, na interpretação constitucional, voltar os olhos para

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o papel do intérprete, as possibilidades de sua atuação e os limites de sua discricionariedade. Aqui é de grande relevo o aporte trazido pela teoria crí- tica do direito e seus desdobramentos, notadamente no seu questionamento da onipotência da dogmática jurídica convencional e da função ideológica do direito e do intérprete. Abre-se, assim, um espaço para a discussão da objetividade da norma e da neutralidade de seu aplicador, e do papel do direito como instrumento de conservação e de transformação. 8. V Michel Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989; Carlos Maria Cárcova e outros, Materiales para una teoría crítica del derecho, s. d.; Luis Alberto Warat e Eduardo A. Russo, Interpretación de la ley, 1988, v. 1. O presente estudo procurou, na medida do possível, produzir a sín- tese necessária dessas perspectivas distintas. Sem deixar de reconhecer, contudo, que tanto a tópica quanto a crítica - bem como outras varia- ções, que vão do sociologismo ao economicismo - são questionamentos do sistema legal, do saber jurídico tradicional, e não propostas que pos- sam erradicá-lo ou desdenhá-lo. Rejeitou-se, assim, o ceticismo teórico de que o direito, tanto na sua dimensão científica quanto na normativa, não seja mais do que um instrumento assegurador do status quo e perpetuador de certas relações de poder. Sem embargo da crítica históri- ca severa que se lhe possa fazer, é inegável a existência de um amplo espaço onde o direito pode ser não mero reflexo da realidade, mas uma força capaz de conformá-la e transformá-la. Investiu-se, também, grande esforço na divulgação do conhecimen- to tradicional, na exibição dos métodos clássicos de interpretação e na exploração dos princípios específicos de interpretação constitucional. É preciso conhecer o direito posto. Tal preocupação poderia decorrer da advertência de Umberto Eco de que, para violar regras ou opor-se a elas, importa, antes de tudo, conhecê-las e, eventualmente, saber mostrar sua inconsistência ou função meramente repressiva. Mas a verdade é que a ignorância do que existe conduz antes ao preconceito do que à atuação transformadora. 9. Umberto Eco, Como se faz uma tese, 1993, p. 48. O exame do caso brasileiro revela existirem amplas e generosas possibilidades exegéticas no texto constitucional em vigor. O texto que se segue procura fornecer elementos, dentro do sistema jurídico, que permitam ao intérprete neutralizar certas perversões ideológicas - suas ou do ordenamento -, realizando a justiça do caso concreto. É um es- forço em busca de uma dogmática jurídica autocrítica e progressista. Mas, de qualquer modo, de uma dogmática jurídica. 3. Plano de trabalho O estudo que aqui se empreende foi concebido em três grandes par- tes, cada uma delas dividida em dois capítulos. A Parte I cuida da deter- minação da norma aplicável. Trata-se de investigação em tema normal- mente negligenciado pelos constitucionalistas. O primeiro momento de qualquer atividade interpretativa há de ser a determinação da norma ju- rídica a ser aplicada à hipótese. Na interpretação constitucional, essa determinação poderá ficar sujeita à prévia solução de conflitos entre normas provindas de fontes ou ordenamentos jurídicos distintos. Será necessário, por vezes, dirimir colisões entre um tratado internacional e a Constituição nacional. Em outras situações, sendo hipótese de aplica- ção de direito estrangeiro por um juiz brasileiro, precisará ele confron- tar tal norma com o direito constitucional vigente, para aferir-lhe a vali- dade. Diversas possibilidades se abrem nesta matéria, com caráter emi- nentemente prático e não apenas teórico, como demonstra a farta juris-

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prudência levantada sobre o assunto. O capítulo I, portanto, é dedicado ao direito constitucional internacional. A determinação da norma aplicável a uma dada hipótese concreta dependerá também, muitas vezes, da solução de conflitos de natureza temporal. Quando da entrada em vigor de uma Constituição nova, fruto da atuação do poder constituinte originário, ou de uma emenda consti- tucional, criada pelo constituinte derivado, é indispensável definir as relações que se estabelecem entre esses novos textos e as normas constitucionais e infraconstitucionais anteriormente existentes. O capí- tulo II volta-se para o direito constitucional intertemporal, cuidando da vigência de normas à luz de novas disposições constitucionais, abran- gendo aspectos relacionados com a aplicação imediata e eventualmente retroativa da Constituição, com a inconstitucionalidade material e for- mal supervenientes, com existência ou não de efeito repristinatório quan- do da declaração de inconstitucionalidade da norma revogadora, dentre outros temas complexos. A Parte II do estudo tem por objeto a interpretação constitucional propriamente dita. No capítulo I faz-se a apreciação dos conceitos e métodos clássicos de interpretação jurídica aplicados à interpretação constitucional. Analisam-se, assim, as singularidades das normas cons- titucionais que as distinguem das normas infraconstitucionais, bem como aspectos relativos à determinação da vontade do constituinte e da au- tonomia assumida pelo texto constitucional uma vez posto em vigor. Percorrem-se, em seguida, as categorias em que se classifica a interpre- tação, inclusive constitucional, quanto à origem (legislativa, adminis- trativa ou judicial), à extensão (declarativa, extensiva ou restritiva) e quanto aos elementos tradicionais (gramatical, histórica, sistemática e teleológica). Em desfecho, estudam-se o costume e a analogia como métodos integrativos das lacunas constitucionais, abrindo-se, ainda, um tópico especial para a interpretação evolutiva. O capítulo II constitui o núcleo básico do trabalho e consiste na siste- matização e estudo dos princípios de interpretação especificamente consti- tucional. Nele, enfatiza-se, em primeiro lugar, a relevância dos princípios constitucionais materiais como vetores de toda a atividade interpretativa da Constituição. Passa-se, logo após, ao exame detalhado e individual de cada um dos princípios arrolados: supremacia da Constituição, presunção de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público, interpretação confor- me à Constituição, unidade da Constituição, razoabilidade-proporcio- nalidade, concluindo com o princípio da efetividade. A Parte Final do trabalho cuida da objetividade desejada e a neu- tralidade impossível: o papel do intérprete na interpretação constitucio- nal. Analisa-se, ali, no capítulo I, a teoria jurídica clássica ou tradicional e algumas formulações que a questionaram, como a teoria crítica do direito e o movimento impropriamente designado de direito alternativo. Faz-se, nessa parte, ampla especulação sobre a norma como parâmetro para a objetividade do direito e da atividade interpretativa, bem como sobre questões afetas à neutralidade do intérprete. Encerrando o capítu- lo, procura-se enfatizar a importância de uma boa dogmática constitucio- nal, que liberte o estudo do direito constitucional da retórica vazia e do discurso puramente político, sem densidade jurídica. A concretização da Constituição, sua valorização como documento jurídico, aproxima-a antes do processo do que da ciência política. Por derradeiro, no capítulo II procura-se apresentar, esquematicamente, uma síntese das idéias de- senvolvidas ao longo do estudo. Ao longo de todo o texto, nenhuma preocupação foi mais constante do que a que inspirou a bela passagem de Manuel Bandeira, em Itinerá-

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rio de Pasárgada, lembrada por Plauto Faraco de Azevedo, em sua Crí- tica à dogmática e hermenêutica jurídica: "Aproveito a ocasião para jurar que jamais fiz um poe- ma ou verso ininteligível para me fingir de profundo sob a especiosa capa de hermetismo. Só não fui claro quando não pude". PARTE I - A DETERMINAÇÃO DA NORMA APLICÁVEL Introdução - CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAÇO E NO TEMPO A ordem jurídica de cada Estàdo constitui um sistema lógico, com- posto de elementos que se articulam harmoniosamente. Não se amolda à idéia de sistema a possibilidade de uma mesma situação jurídica estar sujeita à incidência de normas distintas, contrastantes entre si. Justa- mente ao revés, no ordenamento jurídico não podem coexistir normas incompatíveis. O direito não tolera antinomias. 1. Sobre antinomias e critérios para solucioná-las, v. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, 1990, p. 81 e s. Um dos critérios comumente utilizados para evitar as antinomias, solucionando o conflito entre normas, é o critério hierárquico: a norma superior prevalece sobre a inferior. Assim, pois, se a Constituição e uma lei ordinária divergirem, é a Constituição que prevalece. Se um decreto regulamentar desvirtuar o sentido da lei, será inválido nesta parte. Se a resolução deixar de observar o teor do regulamento, não poderá prevale- cer. E assim por diante. Um segundo critério de que se vale o sistema normativo para selecio- nar a regra aplicável, em meio a preceitos incompatíveis, é o da especia- lização. Havendo, em relação a dada matéria, uma regra geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex specialis derogat generalis. 2. V. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 81 e s. Existem, no entanto, duas espécies de conflitos de normas cuja solu- ção, ao menos em princípio, não se socorre dos critérios hierárquico ou de especialização, mas, sim, de outro instrumental teórico. São os conflitos de leis no espaço e no tempo, cujo equacionamento percorre caminhos com- plexos e acidentados, que passam por diversos ramos do direito. As normas jurídicas positivas existentes no mundo não são univer- sais nem perpétuas. Ao contrário, cada Estado tem suas próprias leis, que emanam de sua soberania; e cada época tem os seus próprios valo- res, que se consubstanciam em regras vigentes. Porque assim é, as nor- mas variam infinitamente, no tempo e no espaço, e são suscetíveis de gerar conflitos diversos. 3. Haroldo Valladão, Direito internacional privado, 1974. v. 1, p. 4. Ordinariamente, determinada relação jurídica constituir-se-á, pro- duzirá seus efeitos e extinguir-se-á sob a vigência da mesma lei. E, nes- se caso, inexistirá qualquer conflito de natureza temporal. Por igual, será mais comum que uma relação jurídica tenha o seu nascimento e todo o seu ciclo de existência no âmbito do mesmo Estado, sendo regida, pois, por um único sistema de normas. Inexistirá, em tal hipótese, qual- quer conflito de natureza espacial. Todavia, ocasiões existem em que essa relação sofre a incidência de lei nova ou entra em contato com o ordenamento jurídico de outro Esta- do. Tais hipóteses, aliás, tornam-se mais corriqueiras por força da mu- dança acelerada da técnica e dos costumes - provocando a modifica- ção das leis - aliada à internacionalização das atividades humanas, gerando obrigações em que alguns de seus elementos (sujeitos, objeto,

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fato jurídico) estão em conexão com Estàdos diferentes. Pois bem: os conflitos de leis no tempo, que geralmente se observam no âmbito de um mesmo sistema jurídico, são equacionados e resolvidos dentro de um domínio científico denominado direito intertemporal. Os conflitos de leis no espaço, isto é, os que exigem a definição de qual ordenamento jurídico regerá a espécie, constituem objêto do direito inter- nacional privado. Cada um deles tem princípios e regras peculiares, que, singularmente, não se aglutinam em um texto normativo único, mas se espalham difusamente pelos diferentes documentos legais. 4. Nada obstante, existe uma especial concentração dessas normas na Lei de Introdução ao Código Civil. São de direito intertemporal os arts. 1º, 2º e 6º. São de direito internacional privado maior parte das normas remanescentes, notadamente do art. 7º em diante. O direito intertemporal e o direito internacional privado, cujas re- gras integram o chamado "sobredireito", desempenham papel de des- taque na missão do direito de assegurar a continuidade e a estabilidade das relações jurídicas. Com efeito, funda-se o primeiro no princípio da não-retroatividade da lei e no respeito às situações jurídicas preexistentes. De forma análoga, o direito internacional privado repousa sobre o prin- cípio da territorialidade, bem como no reconhecimento das situações jurídicas constituídas no âmbito de eficácia de uma lei estrangeira. 5. V.. Pontes de Miranda, Direito supra-estatal, direito interestatal, direito intra-estatal e sobredireito, in Estudos jurídicos em homenagem ao Professor Oscar Tenório, 1977, p. 458. V. também Jacob Dolinger, Direito internacional privado; parte geral, 1994, p. 25: "Acima das nor- mas jurídicas materiais destinadas à solução dos conflitos de interesses, sobrepõem-se as regras sobre o campo da aplicação destas normas. São as regras que compõem o chamado sobredireito, que determinam qual a norma competente na hipótese de serem potencialmente aplicáveis duas normas diferentes à mesma situação jurídica". 6. João Baptista Machado, Lições de direito internacional privado, 1982, p. 9-10. Sem embargo do que foi dito acima, hipóteses há de aplicação re- troativa e de aplicação extraterritorial do direito. A seguir se estudam os princípios, as regras e as exceções que regem a aplicação das normas constitucionais no tempo e no espaço. Capítulo I - A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAÇO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL Como ficou assentado, o direito internacional privado visa a solucio- nar o conflito de leis no espaço, vale dizer, o entrechoque de normas que emanam de soberanias diferentes. Ele regula os fatos em conexão com leis autônomas e divergentes. A despeito da denominação imprecisa, sua atuação não se restringe ao campo do direito privado, estendendo-se a diferentes domínios do direito público, haja vista existirem conflitos potenciais entre normas constitucionais, penais, fiscais e financeiras dos diferentes Estados. 1. Sobre o tema, na literatura nacional mais recente, vejam-se, além do livro de Haroldo Valladão, já citado, Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit.; Oscar Tenório, Direito internacional

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privado, 1976; Amilcar de Castro, Direito internacional privado, 1987; Irineu Strenger, Curso de direito internacional privado, 1978; Wilson de Souza Campos Batalha, Tratado de direito internacio- nal privado, 1977; e Agustinho Fernandes Dias da Silva, Introdução ao direito internacional privado, 1975. Na literatura internacional, são fontes de referência clássicas as obras seguintes: Savigny, Traité de droit romain, 1855-1860; Story, Comentários sobre el conflicto de las leyes, 1834; Pillet, Principes de droit international privé, 1903; Nyboyet, Traité de droit international privé français, 1944; Ferrer Correia, Lições de direito internacional privado, 1963; Battifol e Lagarde, Droit international privé, 1981-1983. 2. Haroldo Valladão, Direito internacional privado, cit., p. 4, e Oscar Tenório, Direito inter- nacional privado, cit., p. 13. Existe vasta controvérsia acerca do objeto do direito internacional privado, não sendo esta a sede própria para reeditá-la. Conforme o país ou o autor, tem sido incluído no domínio do direito internacional privado o estudo da nacionalidade, da condição jurídica do estrangeiro, da teoria dos direitos adquiridos, do conflito de jurisdição e do reconhecimento de sentenças estrangeiras. Há consenso, todavia, em que a solução do conflito de leis é sua principal razão de existir. V. amplo levantamento sobre o tema em Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 1 e s. 3. A denominação direito internacional privado foi utilizada pela primeira vez por Joseph Story (Comentários sobre el conflicto de las leyes, cit., p. 12) e adotada na França por M. Foelix (Traité du droit International privé ou du conflit des lois de diférentes nations, en matière de droit privé, 1843). Embora se mantenha fiel à denominação tradicional, a doutrina é unânime em condenar o termo internacional o direito internacional privado é predominantemente interno e não disciplina relações entre nações - e o termo privado, já que abrange conflitos regidos pelo direito público, sendo o seu próprio papel de solução de conflitos de leis de natureza eminentemen- te pública. O direito internacional privado abrange os conflitos de leis, sem qual- quer cogitação a respeito da natureza das normas da divisão clássica. Seu papel não é o de formular a regra que vai reger o caso concreto, mas, sim, indicar, dentre as normas que dispõem diferentemente sobre uma mesma matéria, qual deverá prevalecer em uma dada situação. Por tal razão, diz-se que as normas de direito internacional privado são indiretas. 4. Oscar Tenório, Direito internacional privado, cit., p. 13. 5. V. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 48: "Estas normas do Direito Internacional Privado apenas indicam qual, dentre os sistemas jurídicos de alguma forma ligados à

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hipótese, deve ser aplicado". O autor refere, também, alguns casos em que, excepcionalmente, a regra de direito internaçional privado terá caráter direto, substancial. As regras de direito internacional privado são, normalmente, dispo- sições de direito interno, de vez que cada ordenamento jurídico estabe- lece suas próprias regras de solução de conflitos. Tais preceitos, que se denominam regras de conexão, indicam qual dos ordenamentos jurídi- cos em contato com uma dada relação deverá prevalecer e discipliná-la. Paralelamente a isso, e ingressando em faixa de intensa conexão com o direito internacional público, existem normas que não são cria- das pelo órgão legislativo interno, mas, sim, resultam de acordos entre Estados: são os tratados e convenções internacionais. Surge, aí, nova possibilidade de conflito: o que venha a contrapor a norma internacio- nal e os princípios e regras de direito interno. É o chamado conflito entre fontes. Para os fins do estudo aqui desenvolvido, interessa especial- mente a incompatibilidade entre o tratado e a Constituição. Há, ainda, outro ponto relevante na determinação de qual lei vai reger a hipótese. É que, ao solucionar um conflito de leis, a regra de direito internacional privado pode indicar como aplicável uma lei de seu próprio ordenamento - a lex fori - ou pode apontar para a aplica- ção de norma de outro ordenamento jurídico. Disso resulta que aos juízes e tribunais de um Estado caberá, por vezes, aplicar direito estrangeiro. Ao fazê-lo, terão de apreciar alguns aspectos importantes dessa inte- ração de duas ordens legais. Dentre eles se inclui a verificação da com- patibilidade entre a norma estrangeira e a Constituição, seja a do Esta- do de origem, seja a do foro. A expressão "direito constitucional internacional", que abre este tópico, é aqui empregada em associação com a idéia de direito interna- cional privado acima exposta. Por tal designação se identifica o conjun- to de princípios e de regras que envolvem a solução dos conflitos exis- tentes entre as normas internacionais e estrangeiras, de um lado, e as normas constitucionais, de outro. Na acepção adotada, o conceito de direito constitucional internacio- nal não se confunde com o estudo dos preceitos constitucionais que, genérica e difusamente, tenham algum reflexo internacional, como os que versam a nacionalidade, a condição jurídica do estrangeiro ou as relações externas do País. O objeto de que aqui se cuida é mais restri- to: trata-se tão-somente de encontrar a solução para os conflitos do tipo acima descritos. 6. É nesta acepção mais ampla que a expressão foi empregada por Celso Albuquerque Mello, em seu Direito constitucional internacional, 1994. 1. O tratado internacional e a Constituição O tema do conflito entre as normas internacionais e a ordem interna evoca duas grandes correntes doutrinárias que disputam o melhor equacionamento da questão: o dualismo, pregado no âmbito internacio- nal por Triepel e Anzilotti e seguido no Brasil por Amilcar de Castro, e o monismo, concepção desenvolvida por Hans Kelsen e seguida no Bra- sil pela maior parte da doutrina, inclusive Valladão, Tenório, Celso Albuquerque Mello e Marotta Rangel. 7. Vejam-se Heinrich Triepel, Völkerrecht und Landesrecht, 1899, p. 169 e s., e Dionisio Anzilotti, Cours de droit international, 1929, p. 49 e s. Vejam-se, também, Triepel, Recueil des Cours (Cursos proferidos na Academia de DIP da Haia), 1:79 e s., apud Haroldo Valladão, Direito

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internacional pri vado, cit., p. 51, e Anzilotti, Curso de derecho internacional, p. 48, apud Amilcar de Castro, Direito internacional privado, cit., p. 123. 8. Direito internacional privado, cit., p. 53 e 94. 9. Direito internacional privado, cit., p. 93 e s. 10. Direito constitucional internacional, cit., p. 344. 11. V. Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais, Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, 44/45, p. 29. Para os dualistas, inexiste conflito possível entre a ordem internacio- nal e a ordem interna simplesmente porque não há qualquer interseção entre ambas. São esferas distintas, que não se tocam. Assim, as normas de direito internacional disciplinam as relações entre Estados, e entre estes e os demais protagonistas da sociedade internacional. De sua par- te, o direito interno rege as relações intra-estatais, sem qualquer cone- xão com elementos externos. Nesta ordem de idéias, um ato internacio- nal qualquer, como um tratado normativo, somente operará efeitos em âmbito interno de um Estado se uma lei vier incorporá-lo ao ordenamento jurídico positivo. Os autores se referem a esta lei com "ordem de execução". 12. Amílcar de Castro, Direito internacional privado, cit., p. 123, citando Morelli, Nozioni di diritto internazionale, p. 91 e s. O monismo jurídico afirma, com melhor razão, que o direito cons- titui uma unidade, um sistema, e que tanto o direito internacional quan- to o direito interno integram esse sistema. Por assim ser, torna-se impe- rativa a existência de normas que coordenem esses dois domínios e que estabeleçam qual deles deve prevalecer em caso de conflito. Kelsen ad- mite, em tese, o monismo com prevalência da ordem interna e o monismo com prevalência da ordem internacional, embora seja partidário desse último. A superioridade do direito internacional sobre o direito interno de cada Estado foi afirmada, desde 1930, pela Corte Permanente de Jus- tiça Internacional. 13. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 437 e s., especialmente p. 442-7. 14. Em parecer consultivo proferido em 31-7-1930, assim pronunciou-se a Corte: "É princí- pio geral reconhecido, do direito internacional, que, nas relações entre potências contratantes de um tratado, as disposições de uma lei não podem prevalecer sobre as do tratado" (apud Hildebrando Accioly, Manual de direito internacional público, 1978, p. 6). A Constituição da maior parte dos países europeus contém regras sobre as relações entre o direito interno e o direito internacional, nor- malmente no sentido de considerar este último como parte integrante do primeiro. Não, assim, a Constituição da França, de 1958, que é expres- sa no sentido da superioridade do direito internacional, bem como a da Holanda, de 1983. A verdade, no entanto, é que a jurisprudência restritiva dos tribunais tende a neutralizar essa supremacia formal, sal- vo quanto ao direito comunitário europeu, que tem desfrutado de prima- zia sobre o direito interno. 15. V. Constituição da Áustria, de 1929, art. 9º Constituição da Alemanha, de 1949, art. 25; Constituição da Itália, de 1947, art. 10. 16. Constituição da França, art. 55: "Os tratados ou acordos regularmente ratificados ou apro-

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vados têm, a partir de sua publicação, uma autoridade superior à das leis, desde que respeitadas pela outra parte signatária". Constituição da Holanda, art. 94: "As disposições legais em vigor no Reino deixarão de se aplicar quando colidirem com disposições de tratados obrigatórios para todas as pessoas ou com decisões de organizações internacionais". No mesmo sentido é o art. 15, n. 4, da nova Constituição russa, aprovada por referendo popular em 12 de dezembro de 1993 (v. Gennady M. Danilenko, The new Russian Constitution and international law, American Journal of International Law, 88:451, 1994, p. 464 e s.). 17. Jacob Dolinger, Direito internacional pri vado, cit., p. 83. 18. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 83. V. também Celso Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 325: "Quanto ao D. Comunitário ele tem sido visto como um ramo do DIP com características próprias, por exemplo, a supranacionalidade, a cessão de competências soberanas à comunidade. Ele é considerado uma categoria especial dentro da ordem jurídica dos Estados-membros. Esta é a posição da Corte de Justiça das Comunidades Européias". Sobre o tema, v., infra, acórdão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, nota 46. J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional, 1991, p. 915-6) assinala que os tratados institutivos das comunidades européias e as disposições comunitárias dotadas de aplicabilidade direta impõem- se sobre a legislação interna, quer com base no princípio da especialidade ou no da competência prevalente. Note-se que, nesta segunda hipótese, a prevalência não implica ab-rogação das normas internas precedentes ou a invalidade das subseqüentes (Anwendungsvorrang). Nos Estados Unidos, a jurisprudência, de longa data, considerou os tratados e convenções internacionais incorporados ao direito inter- no, na interpretação dada ao art. 6º, 2ª seção, da Constituição. Aos atos internacionais adequadamente aprovados pelo Congresso reconhece- se o mesmo nível das leis federais, de forma tal que o posterior preva- lece sobre o anterior. Paradoxalmente, na prática, o direito internacio- nal é freqüentemente privilegiado, por força de uma atitude de defe- rência dos tribunais americanos, que somente consideram derrogados os atos internacionais quando seja evidente a intenção do Legislativo nesse sentido. 19. V. Cherokee Tobacco, 78 U. S. (11 Wall)616(1871); The Paquete Habana, 175 U. S.677 (1900); Cook vs. United States, 288 U. S. 102 (1933); Diggs vs. Schultz, 470 F. 2d 461 (D. C. Circuit) (1972), cert. den., 411 U. S. 931. 20. V. Reestatement (Third) of Foreign Relations Law of the United States, 1988, § 14. No Brasil não existe disposição constitucional a respeito do tema, o que tem suscitado críticas diversas. Não obstante, no que diz respeito ao conflito entre tratado internacional e norma interna infraconstitu- cional, a doutrina, como assinalamos pouco atrás, é amplamente majo- ritária no sentido do monismo jurídico, com primazia para o direito in-

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ternacional. Por tal postulado, o tratado prevalece sobre o direito inter- no, de forma a alterar a lei anterior, mas não pode ser alterado por lei superveniente. Esse entendimento é positivado no art. 98 do Código Tri- butário Nacional. 21. Celso Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 343, e Luís Roberto Barroso, A brief guide to Brazil l´s new Constitution and some international issues arising under it, mimeografado, 1989, p. 22. 22. CTN, art. 98: "Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legis- lação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha". Curiosamente, os autores, à unanimidade, vislumbravam essa mes- ma orientação na jurisprudência constante e reiterada do Supremo Tri- bunal Federal. Por tal razão, causou imensa reação a decisão proferida pela Corte no Recurso Extraordinário n. 80.004, que teria quebrado lon- ga tradição ao decidir: "Embora a Convenção de Genebra que previu uma lei uniforme sobre letras de câmbio e notas promissórias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe ela às leis do País, disso decorrendo a constitucionalidade e conseqüente validade do Decreto-lei n. 427/69 que instituiu o registro obrigatório da Nota Promissória em Repartição Fazendária, sob pena de nulidade do título". 23. RTJ, 83:809, 1978. A decisão foi criticada por José Carlos de Magalhães, que lavrou: "O que fica dessa decisão, contudo, é a impressão de recuo do Supremo à aceitação da prevalência do direito internacional. (...) Afastando-se da orientação anterior, não atentaram aqueles Ministros para a problemática da responsabilidade do Estado na ordem internacional" (O Supremo Tribunal Federal e as relações entre direito interno e direito internacional, Boletim Brasileiro de Direito Internacional, 61-69:53, 1975-79, p. 56). Celso Albuquerque Mello também condenou o julgado: "Entretanto, houve no Brasil um grande retrocesso no RE n. 80.004, decidido em 1978, em que o STF decidiu que uma lei revoga tratado anterior. Esta decisão viola também a Convenção de Viena sobre direito dos tratados (1969) que não admite o término do tratado por mudança de direito superveniente" (Direito constitucional internacional, cit., p. 344). Decisões posteriores da Suprema Corte mantiveram a mesma linha de entendimento, consoante fundamentação do Ministro e internaciona- lista José Francisco Rezek: "O STF deve garantir prevalência à última palavra do Congresso Nacional, expressa no texto doméstico, não obstante isto importasse o reconhecimento da afronta pelo país de um compromisso internacional. Tal seria um fato resultante da culpa dos poderes políticos, a que o Judiciá- rio não teria como dar remédio". 24. RTJ, 115:969, 1986, p. 973, e 119:22, 1987, p. 30. Também a legislação ordinária desprezou a preferência dos doutrinadores pelo primado das normas internacionais. Assim é que a Lei n. 7.357,

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de 9-2-1985, passou a reger os cheques sem atenção à Lei Uniforme de Genebra, fruto de convenção que fora firmada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 57.595, de 7-1-1966. A verdade é que, em exame detido da jurisprudência, Jacob Dolinger constatou que a leitura que a maioria dos autores fazia das decisões do Supremo Tribunal Federal era antes reflexo de sua própria crença no pri- mado do direito internacional do que expressão da realidade dos julgados. Ao contrário do sugerido, a orientação da mais alta Corte é a do monismo moderado, em que o tratado se incorpora ao direito interno no mesmo nível hierárquico da lei ordinária, sujeitando-se ao princípio consolidado: em caso de conflito, não se colocando a questão em termos de regra geral e regra particular, prevalece a norma posterior sobre a anterior. Existem, porém, algumas exceções a essa equiparação entre tratado e lei ordinária para efeito de resolução de conflitos. A primeira dá-se em matéria relativa à tributação, onde o art. 98 do Código Tributário Nacio- nal (Lei n. 5.172, de 25-10-1966), como visto, é expresso quanto à preva- lência da norma internacional. A segunda exceção refere-se aos casos de extradição, onde se considera que a lei interna (Lei n. 6.815, de 19-8-1980), que é geral, cede vez ao tratado, que é regra especial. Con- fira-se o afirmado em palavras do próprio Dolinger, Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: "Nossa conclusão é que, excetuadas as hipóteses de tratado-contrato, nada havia na jurisprudência brasileira quanto à prevalência de tratados sobre lei promulgada pos- teriormente, e, portanto, equivocados todos os ilustres au- tores acima citados que lamentaram a alegada mudança na posição da Suprema Corte. Aposição do STF através dos tempos é de coerência e resume-se em dar o mesmo trata- mento a lei e a tratado, sempre prevalecendo o diploma posterior, excepcionados os tratados fiscais e de extradi- ção, que, por sua natureza contratual, exigem denúncia for- mal para deixarem de ser cumpridos. 25. E assim já decidiu o Supremo Tribunal Federal: No sistema brasileiro, ratificado e pro- mulgado, o tratado bilateral de extradição se incorpora, com força de lei especial, ao ordenamento jurídico interno, de tal modo que a cláusula que limita a prisão do extraditando ou determina a sua libertação, ao termo de certo prazo (quarenta e cinco dias contados do pedido de prisão preventiva), cria direito individual em seu favor, contra o qual não é oponível disposição mais rigorosa da lei geral (noventa dias, contados da data em que efetivada a prisão - art. 82, §§ 2º e 3º da Lei 6.815/ 80) (RTJ, 162:822, 1997, Extr. 194-República Argentina, rel. Min. Sepúlveda Pertence). 26. Sobre a distinção entre tratado-contrato e tratado normativo, v. infra. 27. Direito internacional privado, cit., p. 102. Já com a redação dada ao art. 178 da Constituição pela Emenda Constitucional n. 7, de 15 de agosto de 1995, instituiu-se nova regra específica nas relações entre o tratado e os atos internacionais. De fato, passou o preceptivo constitucional a ter a seguinte dicção: "Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade". Posta a questão das relações entre o direito internacional e as dispo-

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sições internas infraconstitucionais, cumpre agora investigar o tópico mais relevante para os fins aqui propostos: como se situa o direito em face do conflito entre o direito internacional e a Constituição. O tema é envolto em controvérsias. Seria possível cogitar, em um primeiro lance de vista, da invalidade de norma constitucional que se encontrasse em confronto com determi- nadas normas internacionais fundamentais, emanadas dos princípios gerais do direito e dos costumes dos povos civilizados. Tal seria o caso de preceitos que estabelecessem a submissão jurídica de um país vizi- nho, prescrevessem sua anexação ou por qualquer outra via ofendessem a soberania de um outro Estado. Igual juízo recairia sobre uma disposição que pregasse o genocídio. Os exemplos poderiam multiplicar-se, embo- ra sempre tangenciando o absurdo. Nas hipóteses aventadas, afirmar-se-ia a supremacia do direito internacional sobre o direito constitucional. 28. O Estatuto da Corte Internacional de Justiça prevê como fontes do direito internacional público - isto é, normas internacionais - os tratados (convenções internacionais), o costume internacional e os princípios gerais do direito. Faz referência, ainda, à jurisprudência e à doutrina como fontes auxiliares, e faculta o emprego da eqüidade (art. 38). 29. Agustinho Fernandes Dias da Silva (Introdução ao direito internacional privado, cit., p. 33) sugere alguns outros exemplos, como o de norma constitucional que estabelecesse o domínio universal como objetivo nacional, que afirmasse a hegemonia nacional sobre um continente ou elegesse a guerra como meio de solução de conflitos. E averbou: "As normas internacionais básicas são indenunciáveis e irrevogáveis, por isso prevalecerão sempre". De fato, a idéia da soberania ilimitada do poder constituinte não merece abrigo. Não é possível emprestar à Constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. A questão acima delineada - confronto da ordem constitucional com cer- tos valores universais -, embora suscite a interessantíssima discussão acerca dos limites materiais do poder constituinte originário, é mais teó- rica do que real, pelo que se situa fora do objeto de um estudo mais preocupado com a aplicação concreta do direito constitucional. 30. V. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 86. A análise a seguir desenvolvida concentra-se no confronto entre o ordenamento interno superior e o direito internacional convencional. E muito embora haja quem sustente que todo direito verdadeiramente in- ternacional repousa sobre o consentimento, interessa-nos aqui, parti- cularmente, o específico ato de vontade, convencional por excelência, que é o tratado internacional, e como ele se coloca diante da Constitui- ção do Estado que o celebrou. 31. José Francisco Rezek, Direito internacional público, 1989, p. 3. 32. Os tratados são atualmente a fonte mais importante do direito internacional (v. Celso O. de Albuquerque Mello, Direito internacional público, 1992, v. 1, p. 157). A Convenção sobre Direito dos Tratados (Viena, 1969) fornece a seguinte definição (art. 1º a): "Tratado significa um acordo internacional celebrado entre Estados em forma escrita e regido pelo direito internacional,

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que conste, ou de um instrumento único ou de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica". Assim como no direito interno uma norma sujeita-se ao contraste constitucional tanto do ponto de vista formal quanto do material, tam- bém os tratados internacionais submetem-se a essa dupla apreciação. Por via de conseqüência, é possível avaliá-los sob dois aspectos: o de sua constitucionalidade extrínseca e o de sua constitucionalidade in- trínseca. A inconstitucionalidade, na primeira hipótese, também denominada ratificação imperfeita, ocorre quando o tratado aprovado viola as regras constitucionais de competência e de procedimento para sua celebração, apro- vação parlamentar, ratificação e entrada em vigor. A doutrina oscilou en- tre admitir-lhe a validade, a despeito do vício formal, ou proclamar-lhe a nulidade. A Convenção sobre Direito dos Tratados (Viena, 1969) tomou partido na controvérsia, afirmando a validade do tratado em tal hipótese, salvo manifesta violação de norma fundamental sobre competência. 33. Na Constituição brasileira, a celebração de tratados, convenções e atos internacionais é competência privativa do Presidente da República, sujeita a referendo do Congresso Nacional (art. 84, VIII), ao qual incumbe resolver definitivamente sobre quaisquer acordos e atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, I). Sobre o tema, embora referente ao regime constitucional anterior, v. José Francisco Rezek, Direito dos tratados, 1984, p. 185 e s. Já sob a Constituição atual, v. Celso O. de Albuquerque Mello, Direito internacional público, cit., p. 156 e s. 34. V. Celso D. de Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 321. 35. Convenção, art. 46: "Um Estado não poderá invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se por um tratado foi expresso em violação de uma disposição de seu direito interno sobre competência para concluir tratados, a não ser que essa violação seja manifesta e diga respeito a uma regra de seu direito interno de importância fundamental". A doutrina monista do primado do direito internacional só admite essa hipótese de inconstitucionalidade do tratado, rejeitando qualquer possibilidade de seu exame intrínseco para verificação da compatibili- dade com a Lei Maior. Diversos são os autores de reputação que susten- tam a primazia do tratado sobre a própria Constituição. Hildebrando Accioly é taxativo ao afirmar que a lei constitucional nao pode isentar o Estado de responsabilidade por violação de seus de- veres internacionais. Invoca, em favor de seu ponto de vista, decisão da Corte Permanente de Arbitragem, de Haia, onde se deliberou que "as disposições constitucionais de um Estado não poderiam ser opostas aos direitos internacionais de estrangeiros". E cita, também, julgado da Corte Permanente de Justiça Internacional, de 4 de fevereiro de 1932, onde se declarou: "Um Estado não pode invocar contra outro Estado sua própria Constituição para se esquivar a obrigações que lhe incumbem em virtude do direito internacional ou de trata- dos vigentes".

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36. Hildebrando Accioly, Manual de direito internacional público, cit., p. 56. 37. Manual de direito internacional público, cit., p. 56. Haroldo Valladão, nessa mesma linha de entendimento, sustenta que a disposição interna, mesmo de natureza constitucional, não poderá ser observada se contrariar preceito em vigor de direito internacional bá- sico, geral ou de direito internacional convencional, isto é, de tratado válido e vigente. Acompanha-o, nesse passo, Agustinho Fernandes da Silva, para quem o tratado deve ser observado até extinguir-se ou ser denunciado. Enfatiza que a forma própria de revogação de um tra- tado por vontade de uma das partes é a denúncia, e não a previsão constitucional em contrário. 38. Haroldo Valladão, Direito internacional pri vado, cit., p. 94. 39. Agustinho Fernandes Dias da Silva, Introdução ao direito internacional privado, cit., p. 33. Os dois autores, todavia, fazem uma distinção clara e relevante, de natureza temporal: as proposições enunciadas acima somente se aplicam quando o tratado já seencontre em vigor no momento de promulgação da Constituição. Na hipótese inversa, em que o tratado é celebrado na vigên- cia de uma dada Carta, sendo com ela incompatível, aí não prevalecerá, por não se haver constituído legitimamente. Em palavras de Valladão: "Assim, prevalecem as regras dos tratados anteriores ao texto constitucional; só não prevalece a norma interna- cional que vier a ser aprovada e ratificada após vigência do texto constitucional que a ela se opõe, pois nesse caso de- correria dum ato internacional inválido, não vigorante, pois não podia ter sido aprovado nem ratificado. É distinção ne- çessária para os atos convencionais internacionais". 40. Haroldo Valladão, Direito internacional pri vado, cit., p. 94. Em sentido diverso, e com melhor razão, parte substancial da dou- trina brasileira. Aurelino Leal, já em 1925, averbava: "A mim me parece que se os assuntos regulados nos tratados forem compatíveis com as alterações introduzidas no regime constitucional, nada há que se oponha a que as mesmas continuem em vigor. Se, porém, as modificações feitas na lei suprema colidirem com a matéria regulada nos acordos internacionais, não se me afigura que os mesmos prevaleçam contra a nova orientação constitucionaL a me- nos que o poder constituinte consigne na reforma uma dis- posição garantindo a sua vigência". 41. Aurelino Leal, Teoria e prática da Constituição Federal brasileira, 1925, p. 628. Na mesma linha é o magistério de Carlos Maximiliano: "A Constituição é a lei suprema do país; contra a sua letra, ou espírito, não prevalecem resoluções dos poderes federais, constituições, decretos ou sentenças federais, nem tratados, ou quaisquer outros atos diplomáticos". 42. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 1981, p. 314. Também internacionalistas da melhor linhagem endossam a idéia de prevalência da Constituição, quando não por opção doutrinária, ao menos por constatação da realidade e do princípio da supremacia cons- titucional. Veja-se, em seqüência, a opinião de Oscar Tenório e José Francisco Rezek, respectivamente: "A decretação da inconstitucionalidade dos tratados pelo Supremo Tribunal Federal não se limita aos elemen- tos de validade, como a ratificação e a promulgação, mas

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se estende ao confronto entre a letra do tratado e a letra da Constituição. Uma nova Constituição cria uma nova or- dem jurídica. Subsistem apenas as normas pretéritas não incompatíveis com ela. Assim, os tratados anteriores a ela perdem sua eficácia desde que contrários à Constituição". 43. Oscar Tenório, Direito internacional privado, cit., p. 94. "A constituição nacional, vértice do ordenamento jurí- dico,é a sede de determinação da estatura da norma jurídi- ca convencional. Dificilmente uma dessas leis fundamen- tais desprezaria, neste momento histórico, o ideal de segu- rança e estabilidade da ordem jurídica a ponto de subpor- se, a si mesmo, ao produto normativo dos compromissos exteriores do Estado. Assim, posto o primado da Constitui- ção em confronto com a norma pacta sunt servanda, é cor- rente que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prática de um ilícito pelo que noplano externo, deve aquele responder". 44. José Francisco Rezek, Direito internacional público, cit., p. 103-4. No direito comparado europeu, à exceção de Portugal, que adota um regime híbrido, e da Holanda, onde a aprovação do tratado por três quartos dos Estados Gerais modifica a Constituição, a regra é que trata- dos que conflitem com a Lei Fundamental não possam ser aprovados sem prévia revisão constitucional. É o que dispõem, expressamente, v. g., as Constituições da França (art. 54), da Espanha (art. 95, I) e da Alemanha (art. 79, I). 45. Dispõe o art. 277, 2, da Constituição portuguesa: "A inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental". 46. Com relação especificamente ao direito comunitário, v. nota 18. A esse propósito, aliás, o Tribunal Constitucional Federal da Ale- manha (Bundesverfassungsgericht) apreciou, recentemente, recurso constitucional contra a participação da Alemanha na União Européia, apresentado por um grupo de políticos e professores, incluindo um ex- dirigente da Comunidade Econômica Européia, e por membros do Partido Verde alemão que integram o Parlamento Europeu. 47. Neue Juristische Wochenschrift, v. 47, 1993, p. 3047 e s. A íntegra do acórdão, vertido para o inglês, está publicada no International Legal Materials, v. XXXIII, 1994, p. 388 e s. Os requerentes alegaram, dentre outras coisas, que o Ato de Adesão ao Tratado e o Ato que emendara a Constituição violavam seus direitos políticos de representação, seus direitos individuais (pela transferência de atribuições para sua proteção à União Européia), bem como ofen- diam o princípio democrático, a soberania nacional e o direito de serem pagos em Deutsche Mark (e não em uma futura moeda comum), além de deverem ser submetidos a referendo popular. Em decisão longamente fundamentada, datada de 12 de outubro de 1993, a Corte rejeitou a impugnação e permitiu a entrada em vigor do Tratado da União Européia (também conhecido como Tratado de Maastricht), em novembro de 1993. Não obstante isso, o Tribunal Cons- titucional Federal cuidou de qualificar diversas questões e assentou re-

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levantes premissas a propósito de sua interpretação das relações entre o direito constitucionàl e o direito comunitário. Os diferentes aspectos da decisão podem ser sintetizados nas proposições seguintes: 1) O direito alemão proíbe a diminuição do poder do Estado através da transferência de deveres e responsabilidades do Parlamento Federal, na extensão em que isso importar em violação do princípio democrático. 2) O princípio democrático não impede que a República Federal da Alemanha se torne membro de uma comunidade intergovernamental organizada em base supranacional. 3) Se uma comunidade de Estados assume poderes e responsabili- dades de soberania, os povos dos Estados-membros precisam legitimar esse processo através dos seus parlamentos nacionais. 4) O princípio democrático impõe limites à extensão de funções e poderes a serem transferidos para a comunidade européia. O Parlamen- to Federal deverá reter funções e poderes de importância substancial. 5) O programa de integração e os direitos transferidos à comunida- de européia supranacional devem ser especificados com precisão. Cabe ao Tribunal Constitucional Federal determinar se os direitos de sobera- nia exercidos pelas instituições e entidades dirigentes européias estão dentro dos limites ou se extrapolam os que lhes foram conferidos. 6) A interpretação das regras de competência do Tratado de Maastricht não deverá importar em extensão do Tratado. Se tal ocorrer, a Alemanha não ficará vinculada. 7) O Tribunal Constitucional Federal e a Corte Européia de Justiça exercem jurisdição em uma "relação cooperativa". 8) O Tratado de Maastricht estabelece uma comunidade intergo- vernamental para criação de uma unidade mais estreita entre os povos da Europa. Cada um desses povos é organizado em um Estado próprio, inexistindo, pois, um Estado da Europa, com seu próprio povo. 9) a) O Tratado de Maastricht não confere à União Européia auto- determinação na obtenção de recursos, financeiros ou de qualquer outra natureza, destinados a atender seus objetivos. É necessário o consenti- mento dos Estados. b) A ratificação do Tratado não sujeita a República Federativa da Ale- manha a um processo incontrolável e imprevisível que conduza inexoravelmente à unificação monetária. O Tratado de Maastricht simples- mente prepara o caminho para a integração gradual da Comunidade Euro- péia em uma comunidade de leis. Qualquer passo adiante depende do con- sentimento do Governo Federal, sujeito à deliberação do Parlamento. 48. International Legal Materiais, cit., p. 393-7. Resumo e tradução para o português de responsabilidade do autor. Nos Estados Unidos, muito embora seja indiscutível a superiorida- de da Constituição sobre os atos internacionais, a Suprema Corte ja- mais declarou um tratado inconstitucional. Tal fato pode ser creditado, em parte, a uma associação exagerada, quando não equivocada, que os tribunais fazem entre questões internacionais e "questões políticas", o que excluiria aquelas do controle judicial. 49. V. Restatement (Third) of Foreign Relations Law of the United States, 1988, § 111 (p. 43): "In their character as law of the United States, rules of international law and provisions of international agreements of the United States are subject to the Bill of Rights and other prohibitions, restrictions, and requirements of the Constitution, and cannot be given effect in violation of them. However,

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failure of the United States to carry out an obligation on the ground of its unconstitutionality will not relieve the United States of responsability under international law". 50. Sobre o tema, V. Louis Henkin, Foreign affairs and the Constitution, 1975. Para um painel amplo e atualizado das relações entre direito interno e direito internacional na perspectiva norte- americana, v. JohnH. Jackson, Status of treaties in domestic legal systems: a policy analysis, American Journal of International Law, v. 86, 1992, p. 310 e s. 51. E assim se passa a despeito da advertência do Justice Brennan, ao relatar e julgar Baker vs. Carr (369 U. S. 186) (1962), um dos principais precedentes que delineou a "political question doctrine": "It is error to suppose that every case ar controversy which touches foreign relations lies beyond judicial cognizance" (É equívoco supor que qualquer litígio que tangencie as relações inter- nacionais situa-se fora do conhecimento judicial). Desse modo, a despeito do imenso prestígio e independência do Poder Judiciário nos Estados Unidos, há uma persistente tradição de os juízes e tribunais cederem o passo à avaliação dos Poderes Políticos, notadamente ao Presidente da República, sempre que a matéria envolva relações internacionais de qualquer natureza. Há toda uma linha de ca- sos ratificando essa atitude de deferência ao Executivo. Essa orienta- ção, aliás, chegou ao extremo de chancelar, em mais de um caso, as decisões do Poder Executivo de seqüestrar, em Estado estrangeiro, pes- soas contra as quais se houvesse instaurado processo criminal nos Esta- dos Unidos, para sujeitá-las a julgamento naquele país. A questão, por sua gravidade e relevância, merece breve digressão. 52. Vejam-se, por exemplo, United States vs. Curtiss - Wright Corp (299 U. S. 304) (1936), Banco Nacional de Cuba vs. Sabbatino (376 U. S. 398) (1964), First National Citibank vs. Banco Nacional de Cuba (406 U. S.759) (1972), Alfred Dunhill of London, inc. vs. Republic of Cuba (425 U. S.682) (1976), Goldwater vs. Carter (444 U. S.996) (1979), Dames & Moore vs. Reagan (453 U. S. 654) (1981). Veja-se, também, o interessantíssimo caso United States vs. Palestine Liberation Organization (U. S. District Court, Southern District of New York, 1988). O caso mais recente julgado pela Suprema Corte foi Barquero vs. United States (International Legal Materials, 33:904,1994), onde se afirmou a constitucionalidade do tratado celebrado entre Estados UnidOs e México sobre troca de informações tributárias. O tratado permite que, mediante requerimento do outro país, a autoridade governamental requisite a qualquer banco comercial informações sobre determinado correntista. Em United States vs. Verdugo Urquidez, a Suprema Corte, refor- mando decisão do Tribunal Federal do 9º Circuito, decidiu que a Cons- tituição americana, ou ao menos a 4ª emenda (que assegura a inviolabilidade das pessoas, suas casas, documentos e bens contra bus- cas e apreensões ilegais), não se aplicava fora dos Estados Unidos. Como conseqüência, não poderia ser invocada por cidadão mexicano levado à

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força para julgamento nos Estados Unidos (com a concordância do Go- verno mexicano), cuja casa, no México, havia sido objeto de busca ile- gal por agentes norte-americanos. 53. 110 S. Ct. 1056 (1990). Sobre este caso especificamente, v. Andreas F. Lowenfeld, U. S. law enforcement abroad: the Constitution and international law, continued, AJIL, 84/444, 1990, especial- mente p. 491-3. Pouco mais adiante, em decisão que estarreceu a comunidade jurí- dica internacional, a Suprema Corte, por maioria, e reformando decisão de duas instâncias inferiores, admitiu ser possível submeter a julgamen- to nos Estados Unidos cidadão mexicano que fora seqüestrado no Méxi- co, sem anuência do Governo daquele país, que formulou protesto di- plomático veemente. Servindo-se de um argumento primário - o de que o tratado de extradição entre Estados Unidos e México não proibia expressamente o seqüestro -, a Suprema Corte afastou a incidência do tratado (que teria força de lei) como já vimos e aplicou uma antiqüíssima jurisprudência pela qual admitia que, uma vez apresentado à Justiça, um acusado pudesse ser submetido a julgamento, independentemente de haver sido conduzido por meio lícito ou ilícito. Em desfecho, a Corte admitiu que o seqüestro violava princípios de direito internacional, mas entendeu que a decisão sobre a restituição ou não do acusado ao seu país, de onde fora retirado à força, era uma questão da competência discricionária do Executivo. Já que ele estava nos Estados Unidos, cabia à Justiça norte-americana julgá-lo. 54. United States vs. Alvarez Machain, 31 I. L. M. 900(1992). Na conclusão de seu veemente voto dissidente, consignou Justice Stevens: "Eu suspeito que a maior parte dos tribunais do mundo civilizado ficará perplexa pela decisão "monstruosa" que esta Corte anuncia hoje. Toda nação que tem interesse em preservar o estado de direito (the Rule of the Law) é afetada, direta ou indireta- mente, por uma decisão deste caráter". Para uma crítica igualmente contundente de tal acórdão, V. Michael J. Glennon, State sponsored abduction: a comment on United States vs. Alvarez-Machain, AJIL, 86:756, 1992. Precedente mais edificante foi, estabelecido, recentemente, pela Supre- ma Corte do Canadá. Em R. vs. Cook, julgado em outubro de 1998, decidiu a Corte que o interrogatório de um cidadão canadense, por agentes policiais canadenses, ainda que realizado nos Estados Unidos, sujeitava-se aos pro- cedimentos e garantias da Carta de Direitos e Liberdades do Canadá. No caso específico, o acusado de um homicídio não fora informado do seu direito de ser assistido por um advogado durante o interrogatório. 55. International Legal Materials, v. XXXVIII, 1999, p. 271 e s. Retomando a linha de raciocínio, e passando ao caso brasileiro, vai- se constatar que, entre nós, desde a primeira Constituição republicana se admite a verificação da constitucionalidade intrínseca de um tratado. Em acórdão de 15 de setembro de 1977, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade, em parte, de alguns artigos da Con- venção da OIT n. 110, referentes às condições de trabalhadores em fa- zenda. A Constituição de 1967-69 ensejava tal tipo de pronunciamen- to, em regra que foi reproduzida na Carta atual. De fato, no art. 102, III, a, da Constituição de 1988, prevê-se o cabimento de recurso extraordi- nário quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tra- tado ou lei federal.

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56. Constituição Federal de 24-2-1891, art. 59, § 1º, a. 57. RTJ, 84:724, 1978, Rep. n. 803-DF, rel. Min. Djaci Falcão. Veja-se, também, Celso D. de Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 324. 58. "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal... III - julgar, mediante recurso extra- ordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:... b) decla- rar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal." É bem de ver que a dicção pura e simples da cláusula constitucio- nal, tal como vem sendo reproduzida nos diferentes Diplomas, não infirma, prima facie, a tese defendida por Haroldo Valladão e acima exposta. É que, em verdade, ao prever declaração de inconstitucionalidade de tratado, o texto constitucional só pode estar-se referindo àquele que seja posterior à Constituição. Isso porque, consoante regra consolidada do direito constitucional intertemporal brasileiro, não se declara a inconstitucionalidade de preceito anterior à Constituição (v., infra, capí- tulo II). Portanto, a letra expressa da Lei Maior não dirime a dúvida sobre a possibilidade de o tratado anterior prevalecer, mesmo que con- traste com a nova norma constitucional. Todavia, o Supremo Tribunal Federal, no apagar das luzes do regi- me constitucional anterior, afastou, de forma taxativa, quaisquer incer- tezas que pudessem existir. A questão se impôs relativamente à cobran- ça do imposto sobre circulação de mercadorias (ICM) na importação de bens de capital de países membros do GATT. À vista do entendimento consolidado, a Corte editou o verbete n. 575 da Súmula, com o seguinte teor: "À mercadoria importada de país signatário do GATT ou membro da ALALC, estende-se a isenção do Imposto de Circulação de Merca- dorias concedida a similar nacional". Sobreveio, todavia, a Emenda Constitucional n. 23, de 1º de dezem- bro de 1983, que acrescentou um § 11 ao art. 23 do Texto, determinando a incidência do tributo sobre as mercadorias importadas, sem qualquer distinção quanto ao país de origem. O Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão mantendo a isenção, nos casos de importação de bem de capital de países signatários do GATT. A Fazenda do Estado de São Paulo interpôs recurso extraordinário, sob o fundamento de que oTribu- nal a quo prestigiara o acordo internacional em detrimento do texto cons- titucional emendado. 59. Ficou assim a redação do texto constitucional: "Art. 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:... § 11. O imposto a que se refere o item II (ICM) incidirá, tam- bém, sobre a entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, de mercadoria impor- tada do exterior por seu titular, inclusive quando se tratar de bens destinados a consumo ou ativo fixo do estabelecimento". Ao apreciar o caso, o Supremo Tribunal Federal firmou posição estreme de dúvida ao decidir: "Inadmissível a prevalência de tratados e convenções internacionais contra o texto expresso da Lei Magna (...) Os acordos internacionais, como é o caso do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), protegem os produtos originários dos países contratantes. Todavia, não há como admitir, como deixou entender a decisão recorri- da, que na nova tributação autorizada pela Emenda Consti- tucional n. 23, deva ser atendido o que prescreve um trata-

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do internacional (...) Hierarquicamente, tratado e lei situam-se abaixo da Constituição Federal. Consagrar-se que um tratado deve ser respeitado, mesmo que colida com o texto constitucional, é imprimir-lhe situação superior à própria Carta Política". 60. RTJ, 121:270, 1987, RE 109.173-SP, rel. Min. Carlos Madeira. Em decisões posteriores, o Supremo Tribunal Federal atenuou o re- sultado prático de tal decisão, passando a entender inexistir incompati- bilidade entre o acordo do GATT e o texto constitucional resultante da Emenda Constitucional n. 23/83. Assentou-se, no Recurso Extraordi- nário n. 1114.784, que "a Emenda Constitucional não visou a retirar fun- damento a essa avença internacional". Mas o princípio da supremacia da Constituição sobre os atos internacionais convencionais restou intangido. 61. RTJ, 124:358, 1987. 62. RTJ, 126:804, 1987, p. 806. Não se está, no particular, de acordo com a leitura que faz deste acórdão o Professor Jacob Dolinger, ao extrair dele o sentido de que os tratados contratuais, como o do GATT, em contraposição aos tratados normativos, não são afetados por normas de direito interno, inclusive constitucionais (Direito internacional privado, cit., p. 101). Mais recentemente, foi o Plenário do Supremo Tribunal Federal ins- tado a pronunciar-se acerca da controvertida questão envolvendo a sub- sistência ou não da prisão civil na hipótese de alienação fiduciária em garantia (onde se equipara o devedor-fiduciante ao depositário), tendo em vista o que dispõem o art. 7º, n. 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica - e a cláusula genérica inserta no art. 5º, LXVII, da Constituição de 1988. Como o referido artigo da Convenção somente excepciona a hipótese de inadimplemento da obrigação alimentícia, questionou-se a subsistência ou não da prisão civil por infidelidade do depositário, haja vista a incorpo- ração ao ordenamento jurídico brasileiro da referida Convenção (Decreto n. 678, de 6-11-1992), nos termos do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988. E o Supremo, invocando a supremacia da Constituição em rela- ção à convenção, declarou a possibilidade da prisão civil em qualquer dos casos onde o depositário venha a ser considerado infiel, inclusive na alie- nação fiduciária em garantia, em acórdão no qual se lavrou: "1. A Constituição proíbe a prisão civil por dívida, mas não a do depositário que se furta à entrega de bem sobre o qual tem a posse imediata, seja o depósito voluntário ou legal (art. 5º, LXVII). 2. Os arts. 1º (art. 66 da Lei n. 4.728/65) e 4º do Decre- to-lei n. 911/69, definem o devedor alienante fiduciário como depositário, porque o domínio e a posse direta do bem continuam em poder do proprietário fiduciário ou cre- dor, em face da natureza do contrato. 3. A prisão de quem foi declarado, por decisão judicial, como depositário infiel é constitucional, seja quanto ao depósito regulamentado no Código Civil como no caso de alienação protegida pela cláusula fiduciária. 4. Os compromissos assumidos pela República Fede- rativa do Brasil em tratado internacional de que seja parte (CF, art. 5º, § 2º) não minimizam o conceito de soberania do Estado-povo na elaboração da sua Constituição; por esta razão, o art. 7º, n. 7, do Pacto de San José da Costa Rica

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("ninguém deve ser detido por dívida": "este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação ali- mentar"), deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art. 5º, LXVII, da Constituição". 63. RTJ, 164:213, 1998, HC 73.044-SP, rel. Min. Maurício Corrêa. A posição do Superior Tribunal de Justiça é de aberta divergência em relação à do Supremo Tribunal Federal: cf. DJU, 11 mar. 1996, RHC 4.849-PR, p. 6664, rel. Min. Adhemar Maciel; e DJU, 19 mar. 1997, RHC 5507-PR, rel. Min. Anselmo Santiago. Sobre o tema, v. infra, cap. II, n. 4, e. Em síntese apertada de tudo que se vem de expor, é possível assentar que, no conflito de fontes interna e internacional, o estágio atual do direito brasileiro, consoante a jurisprudência constitucional e a melhor doutrina, é no sentido de que: A) Os tratados internacionais são incorporados ao direito interno em nível de igualdade com a legislação ordinária. Inexistindo entre o tratado e a lei relação de hierarquia, sujeitam-se eles à regra geral de que a norma posterior prevalece sobre a anterior. A derrogação do tratado pela lei não exclui eventual responsabilidade internacional do Estado, se este não se valer do meio institucional próprio de extinção de um tratado, que é a denúncia. B) O tratado celebrado na vigência de uma Constituição e que seja com ela incompatível, do ponto de vista formal (extrínseco) ou material (intrínseco), é inválido e sujeita-se à declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum , por qualquer órgão judicial competente, sendo tal decisão passível de revisão pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário. O tratado que se encontrar em vigor quando do advento de um novo texto constitucional, seja este fruto do poder cons- tituinte originário ou derivado, será tido como ineficaz, se for com ele incompatível. 64. Embora não haja precedente, é possível cogitar-se do cabimento de ação direta de inconstitucionalidade contra o decreto que o promulga, haja vista seu status equiparado ao de ato normativo federal. 65. Não parece própria a referência a revogação, porque, a rigor técnico, o tratado não deixa de viger até o momento da denúncia. 2. A norma estrangeira e a Constituição Como já assinalado anteriormente, o direito internacional privado tem por objeto principal a indicação da lei aplicável sempre que uma dada relação jurídica esteja em contato com mais de um ordenamento. Por vezes, a norma indicada será a do próprio Estado do juiz ou tribunal que esteja apreciando a questão. Nesse caso, diz-se que a lei aplicável é a lei do foro, a lex fori. 66. Atente-se, aqui, para a distinção óbvia que existe entre lei aplicável e tribunal competente para aplicá-la. Não obstante, o mais comum é que a regra de direito internacional privado indique a lex fori. Outras vezes, todavia, a regra de conexão do direito internacional privado apontará para a aplicação de uma lei estrangeira. Vale dizer: conforme seja a questão submetida a juízo, os sistemas jurídicos civili- zados admitem a aplicação, no território do Estado, de lei estrangeira

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para a solução de uma controvérsia. Por evidente, inexiste qualquer violação da soberania do Estado em tal hipótese, de vez que a aplicação do direito estrangeiro é consentida, voluntariamente, pela norma interna. 67. Dois exemplos corriqueiros de aplicação da lei estrangeira por Tribunal brasileiro: a) de acordo com o art. 9º da LICC, as obrigações se regem pela lei do país em que se constituírem. Portanto, se duas empresas litigarem no Brasil acerca de um contrato firmado em Londres, aplica-se à questão a lei inglesa (aliás, em matéria contratual, onde vigora a autonomia da vontade, as partes podem simplesmente eleger a lei a ser aplicada, independentemente do local de celebração do ajuste); b) um indivíduo domiciliado na Itália morre deixando bens no Brasil. Aberto o inventário perante o foro brasileiro, o juiz aplicará a lei italiana para disciplinar a ordem de vocação hereditária, porque o art. 10 da LICC estabelece que a sucessão por morte se rege pela lei do domicílio. A aplicação do direito estrangeiro pelos tribunais é capítulo obriga- tório de todos os livros de direito internacional privado. Não cabe, aqui, aprofundar essa questão em nível teórico. Faz-se, todavia, a se- guir, uma breve síntese do conhecimento convencional e cristalizado sobre o tema, cujas implicações práticas são mais relevantes do que aparentam a um primeiro lance de vista. 68. A propósito, vejam-se, por todos: Haroldo Valladão, Direito internacional privado, cit., p. 450 e s., Oscar Tenório, Direito internacional privado, cit., p. 145 e s., e Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 223 e s. A primeira indagação de relevo que surgiu acerca da aplicação do direito estrangeiro foi a de saber se ele deveria ser encarado como um fato ou como direito. Os efeitos de tal distinção são evidentes: fatos dependem de alegação pela parte e de prova; o direito, ao contrário, presume-se de conhecimento do juiz (jura novit curia) e pode ser aplicado de oficio, independentemente de alegação ou prova. Diversos Estados tratam o di- reito estrangeiro como fato. Não assim, porém, o ordenamento brasilei- ro, onde o direito estrangeiro tem status de lei, embora o juiz possa trans- ferir para a parte o ônus de provar-lhe o teor e a vigência. 69. Tal é o caso da França e do Reino Unido. Na Itália há decisões em ambos os sentidos. V. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 224-6. 70. V. CPC, art. 337: "A parte, que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consue- tudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz". A segunda questão que mobilizou os estudiosos foi a da interpreta- ção e aplicação do direito estrangeiro. É que, diante da lei de outro país, ao juiz se impõe determinar: a) se deve equipará-la a qualquer outra norma interna, integrando-a ao sistema jurídico do foro; b) ou se deve tratá-la com o sentido que lhe é dado pelo sistema jurídico estrangeiro. Normalmente, a segunda proposição é a que prevalece. Por vezes, no entanto, o direito estrangeiro há de curvar-se aos princípios e valores do foro. Logo à frente se voltará ao ponto. a) A norma estrangeira e a Constituição de origem A maior parte da doutrina e mesmo alguns precedentes internacio- nais convergem no sentido de que, ao aplicar o direito estrangeiro, o ma-

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gistrado deverá fazê-lo em sua integralidade, acolhendo-lhe os preceitos e as remissões. Nessa ordem de idéias, caber-lhe-á levar em conta a legisla- ção estrangeira em seus diferentes níveis, o que inclui a Constituição. É nesse sentido a jurisprudência da Corte Permanente de Justiça. Em decisões proferidas em 1929, a propósito de casos conhecidos como Serbian Loans e Brazilian Loans, a Corte firmou os princípios que a orien- tam. Estabeleceu, assim que uma vez determinada a aplicação da lei de um dado Estado, deve ela ser aplicada como o seria naquele Estado. Apli- car uma norma diferentemente de como procederiam os tribunais do país cuja lei foi indicada entraria em colisão com toda a teoria de adequada aplicação da lei estrangeira. A Corte, portanto, deve empenhar-se em fa- zer uma justa apreciação da jurisprudência dos tribunais locais. 71. P. C. I. J., Ser. A, n. 20/21, 1929, p. 5,40-7,93 e 120-5, apud Henkin, Pugh, Schachter e Smit, International law, 1987, p. 139: "Once the Court has arrived at the conclusion that it is necessary to apply the municipal law of a particular country, there seems to be no doubt that it must seek to apply it as it would be applied in that country. (...) Of course, the Court will endeavour to make ajust appreciation of the jurisprudence of municipal courts". No mesmo sentido dispõe o art. 2º da Convenção aprovada pela con- ferência Internacional Especializada sobre direito Internacional Privado (Montevidéu, 1979), que determina que o direito extrangeiro será aplica- do da mesma forma que o seria pelos juízes do país do qual emana a regra aplicada. Bem assim, igualmente, o art. 409 do Código de Bustamante, que é norma positiva no Brasil, e que determina que na aplicação do direito estrangeiro deve-se atentar para o sentido que se lhe dá no país de sua origem. Ou seja: deve-se respeitar a interpretação doutrinária e jurisprudencial que lá se produz. 72. V. a íntegra da Convenção em Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio, Vade-mécum de direito internacional privado, 1994, p. 627-30. O art. 2º dispõe: "Os juízes e as autoridades dos Estados Partes ficarão obrigados a aplicar o direito estrangeiro tal como o fariam os juízes do Estado cujo direito seja aplicável, sem prejuízo de que as partes possam alegar e provar a existência e o conteú- do da lei estrangeira invocada". 73. Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio, Vade-mécum de direito internacional privado, cit., p. 568. Embora em diferente cenário, a questão se põe com grande signifi- cação nos Estados Unidos. É que lá a parte mais expressiva do direito substantivo é estadual, pelo que as regras de direito de família, suces- sões, contratos, comerciais, penais etc. variam de Estado para Estado. Como conseqüência, a disciplina dos conflicts of laws, que corresponde ao direito internacional privado dos países de tradição romano-germânica, concentra-se na indicação da lei aplicável às relações que mantêm cone- xões com os ordenamentos jurídicos de mais de um Estado da Federação. Além disso, de acordo com as regras próprias sobre jurisdição e competência lá vigentes, cabe muitas vezes à Justiça Federal solucio- nar litígios que envolvem a aplicação de direito estadual. Pois bem: a SupremaCorte firmou, de longa data, orientação no sentido de que, ao aplicar lei estadual, deve o juiz ou tribunal federal dar-lhe o sentido que lhe confere o mais alto tribunal do Estado cuja lei está sendo aplicada.

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74. Nos termos do art. 3º da Constituição, as duas grandes categorias de casos que recaem na competência das cortes federais são: a) os que envolvem a aplicação da Constituição, das leis federais e dos tratados internacionais (federal question jurisdiction) e b) os que têm como partes cidadãos de Estados diferentes da federação (diversity jurisdiction). Nesta segunda hipótese, as cortes federais se vêem rotineiramente na contingência de aplicar direito estadual. V. Charles Alan Wright, Law of Federal Courts, 1983, caps. 3 e 4, e Louisell, Hazard Jr. e Tait, Pleading and procedure, 1983, p. 16-7. 75. V. Eric R. Co. vs. Tompkins, 304 U. S.64(1938). Ficou assinalado, linhas atrás, que ao aplicar o direito estrangeiro o intérprete deve fazê-lo integralmente, observando, inclusive, as regras próprias de hierarquia das leis e de direito intertemporal vigentes no país de origem. Dentro dessa lógica, deverá prestigiar, em primeiro lu- gar, as normas constitucionais, cuja supremacia é princípio generalizadamente aceito. E, se constatar que uma dada norma inferior é incompatível com a Constituição, deverá cogitar de pronunciar-lhe a inconstitucionalidade, nos limites e com os efeitos que o juiz estrangei- ro poderia fazê-lo. Se no direito estrangeiro, por exemplo, se considerar que a norma anterior à Constituição é com ela incompatível, fica revogada, igual tra- tamento à questão deverá dar-lhe o juiz brasileiro que eventualmente de- vesse aplicá-la a um caso concreto. Mas, se a lei editada já na vigência de uma dada Constituição for com ela incompatível, é de indagar-se: pode o juiz ou tribunal do foro declarar-lhe a inconstitucionalidade perante a Constituição estrangeira e,por via de conseqüênÇia deixar de aplicá-la? Haroldo Valladão responde afirmativamente, sem opor qualquer res- trição. A questão, todavia, exige uma certa qualificação. É que, como já ficou assentado, o juiz que aplica direito estrangeiro há de interpretá- lo de acordo com as práticas do país de origem, atentando para a legis- lação, doutrina e jurisprudência. Ora bem: nem todos os Estados admi- tem o controle de constitucionalidade das leis pelo Judiciário. Na Fran- ça e na Suíça, para citar dois exemplos, essa possibilidade não existe. Ao contrário, nos Estados Unidos e na Alemanha tal exame é corriqueiro. 76. Direito internacional privado, cit.,p.460-1. 77. Note-se, todavia, que na França o Comitê Consultivo para a revisão constitucional, cons- tituído pelo Presidente da República por Decreto de 2-12-1992 e presidido pelo Professor Georges Vedel, propôs a instituição do controle repressivo de constitucionalidade em tema de direitos funda- mentais. Pela proposta, a alínea 12 do art. 62 passaria a ter a seguinte redação: "Une disposition déclarée inconstitutionelle sur le fondement de l’article 61-1 est abrogée. Elle ne peut être appliquée aux procédures en cours". Veja-se Propositions pour une révision de la Constitution, 1993. Na Suíça, inexiste o controle de constitucionalidade das leis federais, mas faz-se o controle das normas cantonais. Sobre o tema, vejam-se Philippe Maystadt, Le contrôle de constitutionnalité en Suisse, in Actualité du contrôle juridicitionnel des lois, 1973, p. 161 e s., e Pedro Cruz Villalón, La formación

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del sistema europeo de control de constitucionalidad, 1987, p. 53 e s. Assim, então, o controle da constitucionalidade de lei estrangeira em face de ser exercido, pelo órgão jurisdicional do foro, nos mesmos moldes e limites em que o faria o juiz ou tribunal do ordenamento de origem. Quando se tratar da aplicação de lei estrangeira de país onde não seja legítimo ao Poder Judiciário pro- nunciar, in concreto ou in abstracto, a inconstitucionalidade de uma lei, não poderá o juiz ou tribunal do foro fazê-lo. 78. No mesmo sentido, v. João Baptista Machado, Lições de direito internacional privado, cit., p. 244. Em sentido diverso, v. Luiz Antonio Severo da Costa, Da aplicação do direito estran- geiro pelo juiz nacional, 1968, p. 40: "Se tem dúvidas sobre a constitucionalidade do diploma legal, mas se aquela Corte (N. A.: refere-se ele à Suprema Corte do país estrangeiro) ainda não se mani- festou a respeito, deve considerar válida tal lei, pois não pode chamar a si atribuição específica daquele órgão". Desnecessário remarcar a evidência de que o órgão judicial brasi- leiro, ao pronunciar a inconstituçionalidade de uma lei, fá-lo-á sempre em caráter incidental, para o fim exclusivo de negar-lhe aplicação ao caso concreto. Jamais se cuidará de uma decisão em tese, mesmo que isso seja possível à luz do ordenamento de origem, porque não se pode reconhecer tal competência a qualquer tribunal que não seja do país do qual promana a lei. No Brasil, tudo que se pode pretender é negar eficá- cia à norma estrangeira, sem que isso afete sua validade e sua vigência. A questão do reconhecimento da inconstitucionalidade de norma estrangeira perante o ordenamento de origem já foi apreciada pelo Su- premo Tribunal Federal. Na vigência da Carta de 1988, pelo menos dois acórdãos abordaram o tema, embora sem maior aprofundamento. O primeiro deles diz respeito ao controvertido caso de extradição requerida pela República Argentina do ex-líder dos Montoneros, Mario Eduardo Firmenich. O Governo requerente imputava ao extraditando um longo elenco de práticas delituosas, em relação às quais havia decre- tos de custódia cautelar expedidos pela Justiça argentina, e que incluíam: associação ilícita, diversos homicídios, atentado com lesões corporais, posse de explosivos e armas e uso de documento público falsificado. 79. RTJ, 111:16, 1984, Extradição n. 417, rel. Min. Oscar Dias Corrêa. Toda a discussão gravitou em torno de duas questões básicas: a) a interpretação, vigência e validade da Lei de Anistia editada pelo Con- gresso argentino, e posteriormente revogada pelo próprio Legislativo, com efeitos retroativos, sob o fundamento de que era inconstitucional; b) a natureza dos delitos imputados ao extraditando - comum ou políti- ca -, tendo em vista o disposto no inciso LII do art. 5º da Constituição brasileira, que veda a extradição por crime político ou de opinião. 80. Era importante ter em linha de conta, na apreciação do tema, que, por força do tratado de extradição entre Brasil e Argentina, não seria concedida a extradição quando, pelo mesmo fato, o delinquente tivesse sido anistiado no Estado requerente ou requerido (art. III). Em meio a outros argumentos, a defesa do extraditando, além de procurar remarcar o caráter político das infrações, fundou-se: a) na inconstitucionalidade da lei que revogou retroativamente a anistia; b) na inconstitucionalidade do art. 2º da própria Lei da Anistia, que, discriminatoriamente, excluía do beneficio pessoas na situação do extra-

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ditando. As duas inconstitucionalidades argüidas eram em face da Consti- tuição argentina. O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, em votação dividi- da, concedeu a extradição, com ressalvas, concluindo que: a) a Lei de Anistia do país requerente era inaplicável à hipótese, não atingindo o extraditando, consoante previsão expressa no seu próprio texto; b) havia prevalência dos crimes comuns sobre os políticos; c) era improcedente a alegação de que o extraditando seria julgado em seu país por tribunal de exceção. 81. Foram excluídas as imputações de caráter político puramente (liderança de movimento políti- co, porte de armas e explosivos e uso de documentos falsos), bem como ressalvou-se que não poderiam ser impostas ao extraditando penas superiores a trinta anos de prisão em relação a cada crime. Os três votos vencidos, contrários à extradição, foram da lavra do próprio Relator, Ministro Alfredo Buzaid, e dos Ministros José Francis- co Rezek e Aldir Passarinho. Os dois primeiros enfrentaram diretamen- te a questão da inconstitucionalidade da lei que cassara a anistia. Em seu voto, o Ministro Buzaid rechaçou o argumento do Estado requerente de que a Corte não teria competência para apreciar a valida- de da lei argentina, e concluiu: "A declaração de inconstitucionalidade é atribuição pri- vativa do Poder Judiciário no Brasil ou das Cortes Consti- tucionais nos países que as adotaram (...). Não a pode exer- cer o Legislativo, porque a sua função consiste em elaborar ou revogar leis, não em apreciar a sua validade. (...) A conclusão a que se chega é que o legislador não tem competência constitucional para declarar a inconstitucionalidade de uma lei". 82. RTJ, 111:16, 1985, p. 28. Acompanhou-o, no particular, o Ministro Rezek, pronunciando igual- mente a invalidade da lei argentina, nos termos seguintes: "Os tribunais derrubam, ex tunc, leis que padecem do vício de inconstitucionalidade. O parlamento, em toda par- te, tem o poder de revogar normas com efeito ex nunc; ja- mais o de declará-las nulas, com efeito retroativo, sob o argumento de inconstitucionalidade". 83. RTJ, 111:16, p. 30-1. O Ministro Aldir Passarinho negou a extradição por considerar os crimes de natureza política. É bem de ver que ele e todos os demais Ministros - Oscar Corrêa, Néri da Silveira, Rafael Mayer, Decio Miranda, Soares Mufioz, Moreira Alves e Djaci Falcão - deixaram de discutir, especificamente, a questão da validade ou não da lei que anula- ra a anistia. Curiosamente, todos, sem exceção, fundamentaram seus votos no art. 2º da sobredita Lei de Anistia, que excluía o extraditando de seus beneficios. Veja-se que nenhum dos Ministros deixou de aplicar a lei por reputá-la revogada ou anulada pela lei superveniente. Justa- mente ao contrário, interpretaram-na para concluir que não aproveitava ao extraditando. Disso resulta que, embora não de forma expressa - mas com implícita evidência -, negaram validade e eficácia à lei pos- terior que cassava retroativamente a anistia. Por lapso do Relator originário, que a ele não fez menção, nenhum dos Ministros apreciou um outro fundamento da defesa: o da inconstitucionalidade do próprio art. 2º da Lei de Anistia, que, ao preve- la parcial e excludente, violava preceito expresso da Carta argentina. Tal

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omissão ensejou a interposição, pelo extraditando, de embargos de de- claração, apreciados, igualmente, pelo Tribunal Pleno. 84. RTJ, 113:1, 1985. Sem atentar para a imensa contradição em que incorriam, diversos Ministros, ao julgar os embargos, negaram a possibilidade de aprecia- ção da constitucionalidade ou não de lei argentina perante sua própria Constituição. Confiram-se tais pronunciamentos. "Ministro Oscar Corrêa: "Não lhe cabia (ao STF), substituindo-se ao juízo do País requerente, examinar a inconstitucionalidade da Lei revocatória, que, aliás, não interferiu no julgamento, saliente-se. Seria indébita e inadmissível invasão de esfera de competência". 85. RTJ, 113:1,p.4. Ministro Néri da Silveira: "Penso que não cabe ao STF enfrentar a alegação de inconstitucionalidade da lei argentina. Certo está que o Po- der Judiciário argentino não declarou inconstitucional o art. 2º da discu- tida Lei de Anistia". 86. RTJ. 113:1, p. 5-6. Ministro Rafael Mayer: "Entendo... que é impossível ao Supremo Tribunal exercer um controle de constitucionalidade sobre uma lei ar- gentina, pois é o exercício de jurisdição que não temos, mas tão-somen- te aquele País, pelo seu Supremo Tribunal, com relação às suas leis". 87. RTJ, 113:1,p.6. Ministro Djaci Falcão: "O texto de lei estrangeira não é passível de exame interpretativo no plano constitucional, para que seja declarada a sua inconstitucionalidade. Entendimento em sentido contrário poderia conduzir-nos a uma divergência interpretativa com a própria Corte Su- prema do País requerente da extradição". 88. RTJ, 113:1, p. 7-8. Ministro Cordeiro Guerra: "Não há que considerar a interpretação do Direito Constitucional Argentino porque não temos jurisdição na Ar- gentina, nem somos um Tribunal supranacional, para dizer como os ou- tros devem julgar. (...) O que poderíamos examinar, em matéria consti- tucional, é se a Lei de Anistia, tal como foi concebida e vige na Argen- tina, violaria a ordem jurídica ou constitucional brasileira". 89. RTJ, 113:1, p.8. Ministro Moreira Alves: "A meu ver, em proçesso de extradição, não cabe ao Supremo Tribunal Federal examinar a compatibilidade, ou não, da legislação do país requerente com a Constituição ali vigente". 90. RTJ, 113:1, p. 7. É de interesse observar que o voto do Ministro Moreira Alves sugere que, a contrario sensu, fora do processo de extradição, é possível examinar a constitucionalidade da lei estrangeira perante o ordenamento de origem. Melhor intuindo a evidência, o Ministro Soares Muñoz, reformulando seu voto anterior, que concedia a extradição, assim decidiu: "No que diz respeito à lei posterior, que havia revoga- do a anistia, entendi que era ela ineficaz, visto que, uma vez concedida a anistia, não era mais possível revogá-la. Ora, se assim entendi com relação à lei revocatória, não vejo razão para me omitir no que diz respeito à argüida inconstitucionalidade da lei, enquanto restringe aquilo que a Constituição Federal estabelece de maneira imperativa, que deve ser geral. A Constituição Argentina determina que a anistia deve ser geral, isto é, não pode ser concedida anis- tia restrita. Se a lei desrespeitou a Lei Maior, é ineficaz. Não estou declarando a inconstitucionalidade da lei. Estou apenas afastando-a do caso concreto. Não preciso fazer ne- nhuma comunicação à Corte Argentina, como não faz o

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juiz singular, quando afasta uma lei inconstitucional. A lei continua em vigor; ela é apenas arredada no caso concreto. Eu a afasto. Afasto-a, como já afastei a lei revocatória". 91. RTJ, 113:1, p. 7. Em idêntico sentido foi o voto do Min. José Francisco Rezek, p. 5. Do estudo de caso que se vem de empreender, chega-se a uma con- clusão paradoxal. De fato, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu, como premissa, que não lhe cabia apreciar a constitucionalidade de norma es- trangeira em face do ordenamento de origem. Em seguida, e, contradito- riamente, fugindo ao silogismo natural, julgou a questão deixando de apli- car, por inconstitucional, lei que revogara a Lei de Anistia argentina. Na verdade, a premissa é que era equivocada. O Supremo Tribunal Federal, bem como qualquer juiz ou tribunal, pode pronunciar, in con- creto, a inconstitucionalidade de lei estrangeira em face da Constituição sob a qual foi editada, desde que o possam fazer as autoridades judiciá- rias do Estado de origem da lei perante sua própria Constituição. Alguns anos depois, já na vigência da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal examinou um pedido de extradição de um brasileiro naturalizado, fundado no permissivo constitucional do art. 5º, LI, que admite tal medida em caso de "comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes, na forma da lei". O requerimento foi formulado pelo Governo da Itália, Estado com o qual o Brasil não mantém tratado de extradição. Para legitimar o pedido, o Estado re- querente apresentou promessa de reciprocidade. 92. RDA, 190:94, 1992, Extradição n. 541, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 93. Lei n. 6.815/80, art. 76: a extradição exige tratado ou promessa de reciprocidade. Curiosamente, o relator para acórdão nesse caso foi o Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, que havia sido, exatamente, o advogado de defesa de Mario Firmenich na Extradição n. 417, acima apreciada. O Relator observou que o art. 26 da Constituição da Itália impedia que o Estado requerente oferecesse reciprocidade naquela hipótese, por isso que só admite a extradição de nacionais se houver previsão expressa em convenção internacional. O acórdão, quanto à parte aqui relevante, veio assim ementado: "Extradição de brasileiro e promessa de reciprocidade do Estado requerente: invalidade desta, à luz da Constitui- ção italiana, que o STF pode declarar. A validade e a conseqüente eficácia da promessa de reciprocidade ao Estado requerido, em que fundado o pe- dido de extradição, pressupõem que, invertidos os papéis, o ordenamento do Estado requerente lhe permita honrá-la: não é o caso da Itália, quando se cuida de extraditando bra- sileiro, pois o art. 26 da Constituição italiana só admite a extradição do nacional italiano quando expressamente pre- vista pelas convenções internacionais, o que não ocorre na espécie. (...) Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Fe- deral, juiz da extradição passiva, no Brasil, julgar da invalidade, perante a ordem jurídica do Estado requerente, da promessa de reciprocidade em que baseado o pedido, a fim de negar-lhe a eficácia extradicional pretendida". 94. Constituição italiana, art. 26. L’estradizione del cittadino puô essere consentita soltanto ove sia espressamente prevista dalle conveniioni internazionali. Non puõ in alcun caso essere

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ammessa per reati politici" (A extradição do cidadão somente pode ser consentida quando seja expressamente prevista pelas convenções internacionais. Em hipótese alguma pode ser admitida por crimes políticos). 95. RDA, 190:94, Extradição n. 541, rel. Min. Sepúlveda Pertence. É interessante observar que a questão da inconstitucionalidade da promessa de reciprocidade, que constou de breve passagem do voto do Relator e mereceu especial destaque na ementa do acórdão, não foi ob- jeto de maior discussão ou aprofundamento. Aliás, o Ministro Carlos Mário Velloso, ao proferir seu voto, assinalou que, precisamente quanto à questão da reciprocidade, guardava "dúvidas a respeito". De todo modo, a posição mais recente do Supremo Tribunal Fede- ral é no sentido de que pode a Corte apreciar a constitucionalidade dos atos estrangeiros à luz do ordenamento de origem, negando-lhes aplica- ção quando seja o caso. Tal entendimento tem nossa adesão. 96. V., sobre o tema, José Carlos Barbosa Moreira. Le juge brésilien et le droit étranger, in Temas de direito processual, 4ª série. 1989, p. 299 e s., especialmente p. 309. b) A norma estrangeira e a Constituição brasileira A norma que soluciona um conflito de leis no espaço indica a regra que vai reger uma relação que se encontrava sob a incidência potencial de mais de um ordenamento. Ao fazê-lo, apontará como aplicável (a) ora a lei do foro, (b) ora a lei estrangeira. Quando a indicação recai sobre a lei do foro, não se apresentam maiores difi- culdades, haja vista que ela integra o sistema e com ele se harmoni- za. Quando a lei indicada é estrangeira, a regra é que o juiz acate a indicação e a aplique. Não é difícil intuir, no entanto, que podem surgir dificuldades na aplicação, no foro, de lei emanada de outro sistema jurídico. Para neu- tralizar certos contrastes mais contundentes, praticamente todos os Es- tados estabelecem uma grande categoria de "limit" à aplicação do direito estrangeiro. Essa restrição se consubstancia em um instituto am- plo, fluido e de difícil apreensão conceitual que é a ordem pública. 97. Sobre o tema, v. a tese clássica de Jacob Dolinger, A evolução da ordem pública no direito internacional privado, 1979, bem como seu Direito internacional privado, cit., p. 323 e s. Vejam-se, também: Clóvis Beviláqua, Direito internacional privado, p. 77 e s.; Haroldo Valladão, Direito internacional privado, cit., p. 472 e s.; Oscar Tenório, Direito internacional privado, cit., p. 315 e s.; Amilcar de Castro, Direito internacional pri vado, cit., p. 273 e s.; Irineu Strenger, Curso de direito internacional privado, cit., p. 510 e s.; Agostinho Fernandes Dias da Silva, Introdução ao direito internacional privado, cit., p. 131 e s.; João Batista Machado, Lições de direito internacio- nal privado, cit., p. 253 e s. O princípio recebe abrigo expresso no art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil em vigor, com a dicção seguinte: "Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a or- dem pública e os bons costumes". Sem embargo da tríplice referência do dispositivo, é certo que a

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soberania nacional e os bons costumes expressam variações da ordem pública. O conceito é antigo e de trânsito universal. Trata-se de uma cláusula geral, de conteúdo elástico e variável, que tem levado os auto- res a se referirem a ela como um conceito indeterminado a priori, e mesmo indefinível. Não obstante, é possível identificar a ordem pú- blica como um princípio geral de preservação de valores jurídicos, mo- rais e econômicos de determinada sociedade política. 98. Embora diversos autores atribuam a primazia do tratamento do tema a Savigny, que sobre ele escreveu em 1849 (ano da 1ª edição de sua obra), é certo que dele cuidou anteriormente Joseph Story (Comentarios sobre el conflito de las Leyes, 1834, v. 1, p. 32-3, apud Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 325): "Nación alguna puede ser justamente requerida a ceder sus conveniencias políticas e instituciones fundamentales en favor de las de otra nación. Mucho menos puede nación alguna ser requerida a sacrificar sus intereses a favor de otra, ó a practicar doctrinas que, en un concepto moral ó político sean incompatibles con su seguridad ó felicidad, ó con su conciencia de la justicia y del deber". 99. O princípio é adotado nos diferentes sistemas jurídicos, quer de formação romano-germânica, quer de base costumeira (common law). O Restatement on Conflict of laws Second, na regra 90, dispõe: "Nenhuma ação será aceita com base em lei estrangeira cuja execução seja contrária à strong public policy do foro". A Corte de Cassação francesa, por sua vez, deixou assentado que "a definição de ordem pública nacional depende, em larga medida, da opinião que prevaleça em cada momento na França" (apud Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 327). 100. João Batista Machado, Lições de direito internacional privado, cit., p. 259. Fundados em distinção formulada por Brocher, os autores costu- mam fazer referência à ordem pública interna e à ordem pública inter- nacional. No fundo, a ordem pública constitui princípio único, que irra- dia seus efeitos em planos diversos. Internamente, ele opera no sentido de limitar a autonomia de vontade das partes em domínios nos quais devem prevalecer, cogentemente, os comandos estatais. 101. Charles Brocher, Cours de droit international privé, 1882, t. 1, n. 44. apud Haroldo Valladão, Direito internacional privado, cit., p. 323. 102. V. Victor Nunes Leal, Classificação das normas jurídicas, in Problemas de direito públi- co, 1960, p. 39 e s. V., também, Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de SUAS normas, 1993, p. 71. No plano internacional, que é o que interessa aqui, o princípio se manifesta de forma dúplice: (a) ora envolve a aplicação direta da lei estrangeira indicada pela regra de conexão; (b) ora envolve a aplicação indireta da lei estrangeira, pelo reconhecimento de direitos adquiridos e de situações constituídas no exterior. Nas duas hipóteses, a ordem pú- blica opera no sentido de impedir a eficácia dos atos jurídicos contrastantes com os valores do foro embora sua aplicação seja mais rígida no primeiro caso.

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Não é difícil ilustrar o afirmado. A ordem pública brasileira ja- mais admitiria que um indivíduo domiciliado na Arábia Saudita, onde a poligamia é legítima, pudesse contrair no Brasil um segundo ou ter- ceiro casamento simultâneo. Essa é uma situação. Por outro lado, di- ante de um fato já consumado no exterior, será possível, sem afronta à ordem pública, reconhecer efeitos ao segundo ou terceiro casamentos para os fins, por exemplo, do recebimento de pensão alimentícia ou de atribuição da condição de herdeiros à prole do casal. Como se vê, O conceito atua com intensidade diferente quando se trate de Constitui- ção de situação jurídica nova (aplicação direta da norma estrangeira) ou reconhecimento de situação já constituída (aplicação indireta da lei estrangeira). Veja-se que diante da impossibilidade de se reconhecer eficácia à lei estrangeira, por afronta à ordem pública, há consenso doutrinário de que se deva aplicar, à espécie, a lex fori. A exclusão da lei estrangeira deverá ser tão estrita quanto possível, aproveitando-se a parte remanes- cente que possa ser aceita no foro. 103. V. Jacob Dolinger, A evolução da ordem pública, cit., p. 258: "Apurado pelo Tribunal que a lei, a sentença ou o contrato estrangeiros contém disposição inaceitável no foro, deverá compor uma solução em que se aproveite o que for admissível da convenção, da norma ou decisão estran- geiras, substituindo a parte rejeitada por norma da lex fori". Cabe, agora, fazer as aproximações cabíveis entre ordem pública e Constituição. O efeito da ordem pública, no plano internacional, é o de impedir a aplicação de direito estrangeiro, seja direta ou indiretamente. Trata-se de um princípio de amplo espectro, difuso e cambiante, que é externo à norma positiva, à letra expressa do texto legal. Como é co- mum dizer-se, é um princípio "exógeno às leis". Conseqüência natu- ral de tal premissa é que se encontrem aspectos inerentes à ordem públi- ca fora do texto constitucional. Será possível, assim, negar aplicação à norma estrangeira por afronta à ordem pública brasileira, mesmo que ela não se confronte, direta ou imediatamente, com a Constituição. 104. Jacob Dolinger,A evolução da ordem pública, cit., p. 255. Tem-se como assente, então, que nem tudo que viola a ordem públi- ca viola a Constituição. A recíproca, todavia, segundo ampla linha de entendimento, não é verdadeira. De fato, tem predominado o entendi- mento de que sempre que a norma estrangeira estiver em contraste com a Constituição estará, ipso jure, violando a ordem pública. O tema é interessante e complexo. 105. V. ampla discussão da matéria em Rui Manuel Gens de Moura Ramos, Direito interna- cional privado e Constituição, 1980, p. 210 e s. A submissão de lei estrangeira ao controle de constitucionalidade perante a Lei Fundamental do foro foi afirmada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, em decisão datada de 4-5-1971 (B VerfGE, 31,58). V. Jan Kropholler, Internationales Privatrecht, 1990, p. 31-2. Entre os internacionalistas - que, por formação, tentam minimizar as restrições à aplicação do direito estrangeiro - desenvolveu-se a crença que procurava negar a identidade necessária entre o conteúdo da ordem pública internacional e os princípios constitucionais. Sustentou-se, assim, que ha- veria normas da Constituição que teriam relevância e outras que seriam indiferentes à caracterização da exceção de ordem pública. Reproduzindo posição corrente na doutrina italiana, escreveu Rui Moura Ramos:

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"É assim que alguns não vão além de recomendar a atuação da ordem pública apenas quando a contradição aber- ta com a Constituição se traduz na negação da essência de um direito fundamental, afirmando ao mesmo tempo de forma clara que, longe de se referir a todas as normas cons- titucionais, a ordem pública apenas contende com aqueles poucos princípios fundamentais que possam fazer-se deri- var imediatamente da Constituição, que vivem directamente na consciência jurídica da comunidade do foro e que por isso devem ser respeitados por todos os sistemas jurídicos que pretendem aplicar nesse Estado". 106. Direito internacional privado e Constituição, cit., p. 218, invocando a lição de Barile, Ordine publico internazionale e Costituzione, Rivista di Diritto Internazionale, v. 56, 1973, p. 729. No Brasil todavia jamais se cogitou de exceção dessa ordem ao princípio da supremacia constitucional. Ademais, o Código de Bustamante tem disposição expressa a respeito, retirando a matéria da turbulência doutrinária e dando-lhe solução de direito positivo. Confira- se, a propósito, o teor do art. 4º do referido Código de Direito Internacio- nal Privado, resultante de convenção internacional ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 18.871, de 13 de agosto de 1929: "Art. 4º. Os preceitos constitucionais são de ordem pú- blica internacional". À luz de tal previsão, todas as disposições formalmente integradas à Constituição brasileira são tidas como de ordem pública internacional e impedem a aplicação de direito estrangeiro com elas contrastante. Em seu resultado prático, a exceção da ordem pública consubstanciada na norma constitucional ora terá efeito negativo - por vedar algo que o ordenamento externo permite -, ora terá efeito positivo, por permitir algo que a lex causae vedava. Há, ainda, uma previsão expressa na Constituição brasileira, cunha- da em norma unilateral, que derroga expressamente o direito estran- geiro em princípio aplicável. É a que consta do inciso XXXI do art. 5º: "a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus". 107. Unilateral é a norma de solução de conflito de leis que prevê somente a aplicação da própria lei, da lei nacional - "aplica-se a lei brasileira" - em contraposição às normas bilaterais, que se servem de critério geral e universal - "aplica-se a lei do domicílio da pessoa", "aplica-se a lei do local do contrato". Ainda neste domínio, das relações entre a Constituição e o direito inter- nacional e estrangeiro, haveria espaço para ampla discussão acerca da apli- cação extraterritorial das normas constitucionais. A delimitação de nosso objeto de estudo, todavia, remete esse tema para outra oportunidade. 108. Nesta área encontram-se questões como a proteção dos nacionais no exterior; a de dever o Estado, em sua atuação no exterior, respeitar suas próprias normas constitucionais etc. A questão da aplicação extraterritorial das normas constitucionais tem gerado inúmeras ações judiciais nos

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Estados Unidos, nos mais diversos temas, envolvendo a tortura e morte de um cidadão nicaragüen- se por agentes da CIA atuando na América Central (Sanchez-Espinosa vs. Reagan, 770 F. 2d 202- D. C. Cire. 1985); a invasão do domicílio de um cidadão mexicano, sem mandado, por agentes do Drug Enforcement Agency (U. S. vs. Verdugo-Urquidez, já referido) etc. Sobre o tema, na doutrina americana, v. Jules Lobel, The Constitution abroad, e Andreas Lowenfeld, U. S. law enforcement abroad: The Constitution and international law, ambos publicados no American Journal of International Law, v. 83, n. 4, 1989, p. 871 e 880, respectivamente. Compendiando tudo que se vem de afirmar neste tópico, é possí- vel afirmar, com base na melhor doutrina e na jurisprudência dos tri- bunais, que: A) Quando da aplicação de lei estrangeira, cabe ao juiz ou tribunal brasileiro aplicá-la como o fariam os órgãos judiciários do país do qual promana a norma. Se em tal jurisdição se admitir a pronúncia de inconstitucionalidade de uma lei, poderá o juiz ou tribunal proceder da mesma forma deixandodç aplicar, ao caso concreto, preceito estran- geiro incompatível com o ordenamento de origem. b) Com muito mais razão, deverão os juízes e tribunais brasileiros negar aplicação à norma estrangeira que esteja em confronto com a Cons- tituição brasileira. Com efeito, as normas constitucionais são tidas como de ordem pública internacional, impedindo a eficácia de leis, decisões judiciais e atos jurídicos estrangeiros com elas incompatíveis. Capítulo II - A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL O conflito de leis no tempo resulta não da coexistência de leis, como no direito internacional privado, mas de sua sucessão. Trata-se da contraposição entre lei nova e lei velha. Cabe ao direito intertemporal solucionar esse conflito, fixando o alcance de normas que se sucedem. Seu objeto é a determinação dos limites do domínio de cada uma dentre duas disposições jurídicas consecutivas sobre o mesmo assunto. 1. Paul Roubier, Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960, p. 3-4. 2. Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, 1946, p. 7. O postulado básico na matéria, que comporta exceções mas tem "aceitação universal, é o de que a lei nova não atinge os fatos anteriores ao início de sua vigência, nem as conseqüências dos mesmos, ainda que se produzam sob o império do direito atual. Esse princípio, conhecido como prinçípio da não retroatividade das leis tem por fundamento filo- sófico a necessidade da segurança jurídica, da estabilidade do direito. 3. Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, cit., p. 10. 4. Paul Roubier, Le droit transitoire, cit., p. 223. Sobre o tema, no direito brasileiro, v. R. Limongi França, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982. Nos Estados Unidos, a Constituição de 1787 veda a edição de leis retroativas de uma maneira geral (art. 1º, seção 9, 1: "ex post facto law") e proibe aos Estados que elaborem leis que prejudiquem a obrigatoriedade dos contratos (art. 1º, seção 10, 1: "law impairing the obligation of contracts"). Na América Latina, à exceção do México, e na Europa, a regra da não-retroatividade é de nível infraconstitucional, podendo, mes- mo, ser derrogada por legislação superveniente.

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No Brasil, o tema constou de todas as Constituições, desde a Impe- rial, de 1824, à exceção da Carta do Estado Novo, de 1937. No texto presentemente em vigor, dispõe o inciso XXXVI do art. 5º: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídi- co perfeito e a coisa julgada". Foge ao escopo deste estudo o aprofundamento dos conceitos de direito adquirido e ato jurídico perfeito, que são verdadeiros tormentos para os intérpretes. Sobre o tema escreveram autores clássicos, como Savigny e Gabba, e, entre nós, Carlos Maximiliano e Pontes de Miranda, sem, contudo, desvendarem todas as complexidades e perplexidades de sua aplicação aos casos concretos. Léon Duguit chegou mesmo a afir- mar que há mais de meio século ensinava direito e, até então, ainda não sabia o que era direito adquirido. Recentemente, o tema mereceu a den- sa reflexão de Raul Machado Horta. 5. Léon Duguit, Leçons de droit public général, 1926, p. 308. 6. Raul Machado Horta, Constituição e direito adquirido, Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, 112:69, 1991. Vejam-se, também, R. Limongi França, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, cit., e Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal, 1980. É ainda a antiga opinião de Gabba que baliza o tema, ao apontar, como característica do direito adquirido: 1) ter sido conseqüência de um fato idôneo para a sua produção; 2) ter-se incorporado definitivamente ao patrimônio do titular. Longe das hipóteses extremas, não é difícil traçar o perfil doutrinário da não-retroatividade e do direito adquirido. As leis, de regra são feitas para virarpara o futuro, sem colher fatos passados, ocorridos sob a égide de outra lei. Uma lei nova não pode pretender desconstituir um direito subjetivo cujo ciclo aquisitivo já se consumou e cujo desfrute se integra ao patrimônio do indivíduo ou da pessoa jurídica. 7. V. Gabba, Teoria della retroatività delle leggi, 1868, p. 191: "É adquirido todo direito que: a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato se realizou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo, e que b) nos termos da lei sob o império da qual se verificou o fato de onde se origina, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu". V., tam- bém, Carlyle Popp, A retroatividade das normas constitucionais e os efeitos da Constituição sobre os direitos adquiridos, Paraná Judiciário, 36:13. Apreciando um dos aspectos dessa complexa temática, no campo referente aos contratos e o direito superveniente, assim pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal: "Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emer- gem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos - que se qualificam como atos jurídicos perfeitos - acham-se pro- tegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos fu- turos, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República. A incidência imediata da lei

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nova sobre os efeitos futuros de um contrato pré-existente, pre- cisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade in- justa de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláu- sula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas". 8. RTJ, 164:1145, 1998, RE 209.519-SC, rel. Min. Celso de Mello. Calha observar que, embora a não-retroatividade seja a regra, trata- se de princípio que somente condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressamente previstas na Constituição. São elas: a) a proteção da segurança jurídica no domínio das relações sociais, veicula- da no art. 5º, XXXVI, já citado; b) a proteção da liberdade do indivíduo como a aplicação retroativa da lei penal, contida no art. 5º, XL ("a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"); c) a proteção do contri- buinte contra a voracidade retroativa do Fisco, constante do art. 150, III, a (é vedada a cobrança de tributos "em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumenta- do"). Fora dessas hipóteses, a retroatividade da norma é tolerável. 9. A este propósito, decidiu o Supremo Tribunal Federal, recentemente, refutando equívoco longamente divulgado, que "o disposto no art. 5º, XXXVI, da CF, se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva" (RT, 690:176, 1993, ADIn 493-0 (ML)-DF, rel. Min. Moreira Alves). Ou ainda: "Razões de Estado - que muitas vezes configuram fundamentos políti- cos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo - não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Cons- tituição. As normas de ordem pública - que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política - não podem frustrar a plena eficácia da norma constitucional, compro- metendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade" (STF, RTJ, 164:1145, 1998, RE 209.519-SC, rel. Min. Celso de Mello). A doutrina, tanto civilista quanto publicista, chancela essa linha de entendimento. Nesse sentido é a lição de Silvio Rodrigues: "Assim o atual sistema brasileiro, pois, quer a Consti- tuição, quer a lei ordinária, não falam em proibição de leis retroativas. Apenas excluem da incidência da lei nova o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (...) Entre nós a lei é retroativa, e a supressão do pre- ceito constitucional que, de maneira ampla, proibia leis re- troativas, constituiu um progresso técnico. A lei retroage, apenas não se permite que ela recaia sobre o ato jurídico perfeito, sobre o direito adquirido e sobre a coisa julgada". 10. Silvio Rodrigues, Direito civil, 4. ed., v. 1, p. 51 e 53. Por igual, escreveu o emérito mestre de Recife, Pinto Ferreira: "O Estado pode determinar leis retroativas, pois as cir- cunstâncias sociais e históricas se modificam. Os entes es- tatais podem editar normas com eficácia retroativa ou com efeito retrooperante, mas desde que não firam o direito ad- quirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito protegidos

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constitucionalmente pela lex legum". 11. Pinto Ferreira, Comentários à Constituição brasileira, 1989, v. 1, p. 143. Essa é a doutrina abrigada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O Projeto de Lei de Aplicação das Normas Jurídicas, recente- mente elaborado por comissão ministerial, foge do entendimento crista- lizado, dispondo de forma taxativa, em criticável proposta de inovação, "que a lei não terá efeito retroativo". 12. V. RTJ, 145:463, 1993, ADIn 605-DF, Medida Cautelar, rel. Min. Celso de Mello: "O princípio da irretroatividade somente condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses ex- pressamente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do Poder Público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao status libertatis da pessoa (CF, art. 5º, XL), (b) ao status subjectionis do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150,III, a) e (c) à segurança jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5º, XXXVI)". 13. V. Projeto de Lei n. 4.905, de 1995, resultante da Mensagem n. 1.293/94. Sem embargo da crítica que ora se faz quanto a este aspecto específico, o Projeto, em suas linhas gerais, e especial- mente no capítulo dedicado ao direito internacional privado, dá um salto de qualidade no direito brasileiro em relação à matéria. É bem de ver que a regra do art. 5º, XXXVI, dirige-se, primaria- mente, ao legislador e, reflexamente, aos órgãos judiciários e admi- nistrativos. Seu alcance atinge, também, o constituinte derivado, haja vista que a não-retroação, nas hipóteses constitucionais, configura di- reito individual, que, como tal, é protegido pelas limitações materiais do art. 60, § 4º, IV. Disso resulta que as emendas à Constituição, tanto quanto as leis infraconstitucionais, não podem malferir o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. 14. CF, art. 60, § 4º, IV: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:... IV - os direitos e garantias individuais". No regime constitucional anterior, decisão do Supremo Tribunal Federal afirmou que "não há direito adquirido contra texto constitucional, resulte ele do Poder Constituinte originário, ou do Poder Constituinte derivado" (RTJ, 114:237, 1985, RE 94.414-SP, rel. Min. Moreira Alves). O acórdão foi proferido em 13-2-1985, quando ainda em vigor a Carta de 1969, que não incluía dentre as cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais, mas tão-somente a Federação e a República (art. 47, § 1º). O princípio da não-retroatividade, todavia, não condiciona o exercí- cio do poder constituinte originário. A Constituição é o ato inaugural do Estado, primeira expressão do direito na ordem cronológica, pelo que não deve reverência à ordem jurídica anterior, que não lhe pode impor regras ou limites. Doutrina e jUrisprudência convergem no sentido de que "não há direito contra a Constituição". 15. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1979, p. 3.

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16. Na doutrina, vejam-se, por todos, Caio Mário da Silva Pereira, Direito constitucional intertemporal, RF, 304:29, 1988, e Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 438. Na jurisprudência, v. RTJ, 67:327, Rep. n. 895, rel. Min. Djaci Falcão, RTJ, 71 :461, RE 75.418, rel. Min. Thompson Flores, e RTJ, 40:1008, AI 134.271, rel. Min. Moreira Alves, RDA, 196:107, 1994, ADIn 248-1-RJ, rel. Min. Celso de Mello, onde se lavrou: "A supremacia jurídica das normas inscritas na Carta Federal não permite, ressalvadas as eventuais exceções proclamadas. A no próprio texto constituçional, que contra elas seja invocado o direito adquirido". Também no Superior Tribunal de Justiça se decidiu: "A nova Carta Política proibiu, no art. 7º, IV, a vinculação de valores ao salário mínimo, "para qualquer efeito". Dada a vedação, insubsiste qualquer direito adquirido à percepção de vencimentos ou proventos expressos em número desses salários" (RT, 692:162, 1993, RMS 762-0-GO, rel. Min. Demócrito Reinaldo). Não obstante isso mesmo na interpretação da vontade constitucio- nal originária, a irretroatividade há de ser a regra, e a retroatividade a exceção. Sempre que for possível, incumbe ao exegeta aplicar o direito positivo de qualquer nível, sem afetar situações jurídicas já definitiva- mente constituídas. E mais: não há retroatividade tácita. Um preceito constitucional pode retroagir, mas deverá haver texto expresso nesse sen- tido. Na Constituição brasileira de 1988 há exemplos de retroatividade expressa, como o art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transi- tórias. Com base nele, aliás, chegou-se a entender não ser oponível se- quer a preexistência de coisa julgada, impondo-se a redução dos venci- mentos do servidor aos limites constitucionais. Tal linha de entendimen- to, todavia, foi desautorizada pelo Supremo Tribunal Federal. 17. Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, cit., p. 52. 18. Igual orientação é seguida por Wilson Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 438. V., também, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira, 1990, v. 1, p. 9: "Só se deve por isso aceitar como retroativa uma norma constitucional se isto resultar inapelavelmente do texto". 19. Art. 17: "Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título". 20. RT, 685:73, Ap. 158.745-1/1, TJESP, 2ª Câm., rel. Des. Cézar Peluso. 21. "A cláusula temporária e extravagante do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988 não alcança situações jurídicas cobertas pela preclusão maior, ou seja, pelo manto da coisa julgada" (STF, RTJ, 167:656, 1999, RE 146.331-SP, rel. Min. Marco Aurélio). E, nos termos do voto do relator, ficou didaticamente consignado: "A norma diz da impos-

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sibilidade de evocar-se o direito adquirido, silenciando quanto à coisajulgada, isto é, aquelas situa- ções jurídicas submetidas ao crivo do Estado-juiz e já cobertas pelo manto da preclusão maior, no que voltada à segurança da vida em sociedade. É certo que, ao término do preceito, há referência à percepção de excesso a qualquer título. Todavia, a menção há de ter alcance perquirido considerada a referência a direito adquirido e ao silêncio, já consignado, quanto à coisa julgada. É induvidoso que o instituto da coisa julgada, agasalhado sistematicamente pelas Cartas brasileiras, revela-se possuidor de contornos inerentes às cláusulas pétreas...". O direito constitucional intertemporal cuida da disciplina dos con- flitos que decorrem do advento de uma nova ordem constitucional. Essa modificação do direito constitucional positivo pode, eventual- mente, ser obra do constituinte derivado, limitando-se a alterações tó- picas no texto em vigor. De outras vezes, no entanto, tratar-se-á de uma reformulação integral da ordem constitucional, fruto da elabora- ção soberana do poder constituinte originário. O tema suscita questões de certa complexidade e comporta inúmeras variações. Confira-se. 1. A Constituição nova e a ordem constitucional anterior A Constituição, como é corrente, é a lei suprema do Estado. Na formulação teórica de Kelsen, até aqui amplamente aceita, a Constitui- ção é o fundamento de validade de toda a ordem jurídica. É ela que confere unidade ao sistema, é o ponto comum ao qual se reconduzem todas as normas vigentes no âmbito do Estado. De tal supremacia de- corre o fato de que nenhuma norma pode subsistir validamente no âmbi- to de um Estado se não for compatível com a Constituição. Classica- mente, como se verá adiante, a ordem constitucional tende a tolerar, por diferentes fundamentos, as normas anteriores à sua vigência que sejam com ela compatíveis. 22. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 310: "A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma constru- ção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do facto de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental - pressuposta. A norma fundamental - hipotética, nestes termos - é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. Se começarmos por tomar em conta apenas a ordem jurídica estadual (estatal), a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado". Sobre o mesmo tema, na mesma linha, em versão mais didática, v. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, 1990, p. 48 e s. 23. Veja-se o tema em palavras de J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional, 1991, p.

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142): "A superioridade normativa do direito constitucional implica, como se disse, o princípio da conformidade de todos os actos do poder político com as normas e princípios constitucionais (...). Em termos aproximados e tendenciais, o referido princípio pode formular-se da seguinte maneira: nenhuma norma de hierarquia inferior pode estar em contradição com outra de dignidade superior (princípio da hierarquia), e nenhuma norma infraconstitucional pode estar em desconformidade com as normas e princípios constitucionais, sob pena de inexistência, nulidade, anulabilidade ou ineficácia (princípio da constitucionalidade)". Merecem tratamento específico, no entanto, as relações que se esta- belecem entre a Constituição nova e as normas que integravam o ordenamento constitucional que está sendo substituído. Naturalmente, no que sejam incompatíveis, inexiste qualquer dúvida de que a norma anterior fica revogada, pela singela aplicação da regra geral de que as normas posteriores revogam as anteriores quando incompatíveis. A ques- tão se adensa em complexidade, todavia, quando se investiga a situação das normas do regime constitucional anterior que não se contraponham à nova ordem. A Constituição escrita ordena sistematicamente os princípios fun- damentais da organização política do Estado e das relações entre esse Estado e o povo que o compõe. É documento único e supremo. Não se pode cogitar, salvo casos de patologia institucional grave, da existência simultânea de mais de uma Constituição no âmbito territorial de um Estado. Posta em vigor uma nova Constituição, nenhum ato jurídico anterior pode ter a pretensão de subsistir com caráter de norma supre- ma. Merece registro, no particular, a lição de Jorge Miranda: "Antes de mais, uma Constituição nova revoga a Cons- tituição anterior. Por definição, não pode haver senão uma Constituição - em sentido material e em sentido formal. (...) Esta revogação é uma revogação global ou de sis- tema, e não uma revogação stricto sensu ou uma recepção individualizada, norma a norma. Não cabe indagar da com- patibilidade ou não de qualquer norma constitucional ante- rior com a correspondente norma constitucional nova ou com a nova Constituição no seu conjunto; basta a sua in- serção na anterior Constituição para que automaticamente - expressa ou tacitamente - fique ou se entenda revogada pela Constituição posterior". 24. No Brasil, desde o início do regime militar, em abril de 1964, até a Emenda Constitucional n. 11, de 13-10-1978, vigoraram os chamados "atos institucionais". Tais atos prevaleciam sobre a Constituição formal, e, embora travestidos de figura de direito, eram mera expressão da supre- macia do poder de fato que controlava o País e se punha acima das instituições jurídicas. Regis- tre-se que, nos Estados Federais, a existência de Constituições estaduais não colide com o que se vem de afirmar, de vez que tais diplomas são elaborados no exercício de competência derivada da própria Constituição Federal, a cujos princípios estão subordinados. 25. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 239. A regra geral de que a nova Constituição revoga inteiramente a

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ordem constitucional anterior não é incompatível com certas situa- ções peculiares de subsistência de regras constitucionais precedentes. É possível cogitar-se, por exemplo, de que a nova Carta expressamen- te mantenha em vigor, e com o mesmo caráter constitucional, precei- tos do ordenamento que está sendo substituído. Por evidente, o poder constituinte que tem força para revogar tem também para conservar. Apenas nesse caso, que se denomina recepção material, o título jurí- dico da superioridade da norma mantida não é a ordem constitucional anterior, mas a atual. 26. V. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 240. Além da recepção material, a doutrina admite ainda uma outra pos- sibilidade de aproveitamento legítimo das normas constitucionais do regime anterior, desde que compatíveis com o novo sistema. Trata-se do fenômeno da desconstitucionalização das normas constitucionais, pelo qual os preceitos do regramento constitucional precedente, embora per- dendo o caráter hierarquicamente superior, continuam a vigorar como leis ordinárias. A tese encontra lastro em Carl Schmitt e foi explorada por Esmein. De fato, constatou o autor francês, na linha teórica do pró- prio Schmitt, que as Constituições escritas contêm, freqüentemente, dis- posições que não são constitucionais, senão pela forma, tendo conteú- do, todavia, de normas administrativas, penais etc. Fundado em tal pre- missa, desenvolveu o raciocínio da sobrevida das normas apenas for- malmente constitucionais, quando compatíveis com a nova ordem. Em suas próprias palavras: "Pois bem: admite-se que disposições dessa nature- za, que só pertenciam à Constituição revogada por um liame fático, sobrevivam a ela e absolutamente não caiam com ela. Dá-se-lhes tratamento de leis ordinárias - no fundo é o que são - mas, ao mesmo tempo, são reconduzidas à qualidade destas. Desgarram-se da Cons- tituição, em que estavam encaixadas, e é por isso que per- manecem em vigor; mas, ao mesmo tempo, perdem a efi- cácia de normas constitucionais, e, daí por diante, podem, como outra lei qualquer, ser modificadas pelo legislador ordinário". 27. Carl Schmitt, Teoría de la Constitución, s. d., p. 32-3. 28. A. Esmein, Éléments de droit constitutionnel français et comparé, 1914, p. 582. Entre nós, Pontes de Miranda, José Afonso da Silva e Manoel Gonçalves Ferreira Filho admitem a tese. Em sede de direito positivo, a antiga Constituição do Estado de São Paulo, de 13 de maio de 1967, abrigava expressamente o princípio da desconstitucionalização, assim como o faz a Constituição portuguesa em vigor, in verbis: "Art. 290º (Direito anterior) 1. As leis constitucionais posteriores a 25 de abril de 1974 não ressalvadas neste ca- pítulo são consideradas leis ordinárias, sem prejuízo do dis- posto no número seguinte. 2. O direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados". 29. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, t. 2, p. 560-1: "As leis que continuam em vigor são todas as que existiam e não são incompatíveis com a Constituição nova. Inclusive as regras contidas na Constituição anterior;

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posto que como simples leis". No mesmo sentido escreveu em seus Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. I de 1969, 1970, t. 1, p. 249-50. 30. José Afonso da Silva,Aplicabilidade das normas constitucionais, 1982, p. 207: "Parece- nos perfeitamente aceitável essa doutrina, pois que ela satisfaz o princípio da compatibilidade entre as normas da ordem jurídica, desde que, no caso, não se verifica conflito. Mas a regra constitucio- nal anterior compatível não continua constitucional, porque isso contraria o conceito de constitui- ção formal, que há de ser aquele documento solene e escrito criado pelo poder constituinte. Fica, então, a regra valendo e vigendo, de acordo com o princípio da continuidade das normas compati- veis, mas como norma de caráter ordinário. É o que se chama princípio da desconstitucionalização das normas jurídicas". 31. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direito constitucional comparado; o poder constituin- te, 1974,v. 1,p. 113. 32. Assim dispunha aquele diploma: "Art. 147. Consideram-se vigentes, com o caráter de lei ordinária, os artigos da Constituição promulgada em 9 de julho de 1947 que não contrariem esta Constituição". Sem embargo, salvo os casos em que haja previsão constitucional nesse sentido, não merece acolhida a tese de permanência da norma constitucional anterior com caráter ordinário. E que, como visto, uma nova Constituição, ao entrar em vigor, revoga ipso jure todo o ordenamento constitucional anterior. Trata-se de uma revogação de sis- tema, que, em princípio, não resguarda nenhuma norma constitucional precedente. Tenha-se em conta que, classicamente, entre normas de igual hierarquia, considera-se que a posterior revoga a anterior quando (a) expressamente o declare, (b) seja com ela incompatível (c) ou regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. 33. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 241: "A desconstitu- cionalização... tem de ser prevista por uma norma. Não pode estribar-se em mera concepção teórica ou doutrinal. (...) Mas não tem de ser norma expressa ou norma constitucional formal: poderá tratar-se de norma de origem consuetudinária". 34. Esta é a doutrina acolhida no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, que tem efeito de uma lei geral de aplicação das normas jurídicas. Pois bem: na hipótese aqui cogitada, incide o fundamento da letra c, supra: uma nova Constituição regula inteiramente a matéria de que tra- tava a Constituição precedente. A não-reprodução, na nova Carta, de uma regra constante do ordenamento constitucional anterior, sem a res- salva de sua continuidade, é um ato de vontade do constituinte, que manifestamente desejou abster-se do tratamento da matéria. Ao legisla- dor infraconstitucional, se assim desejar, caberá reeditar o preceito. Esse modo de encarar o problema tem a adesão de Wilson de Souza Campos Batalha, que averbou, com propriedade: "A Constituição suprimida e substituída deixou de ser norma vigente e não pode continuar a viger em plano infe-

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rior e sub conditione. Sua vida cessou, substituída por ou- tra Constituição. Se as leis anteriores à nova Constituição sobrevivem, quando nesta podem encontrar renovado fun- damento de validade, o mesmo não ocorre com os velhos preceitos constitucionais. Pura e simplesmente deixam de ter validade no plano do ordenamento jurídico; sua invoca- ção poderia ocorrer, não como norma vigente, mas como princípio tradicional do direito do País". 35. Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 436. De modo que, no sistema brasileiro, uma vez promulgada uma nova Constituição, fica inteiramente revogada a anterior, sendo indiferente o fato de suas normas guardarem ou não compatibilidade entre si. Até porque, diante da fartura de Constituições que tem marcado a história brasileira, correr-se-ia o risco de se ter em vigor, ainda hoje, com força de lei ordinária, normas das Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969. Ninguém precisa disso. 2. Emenda constitucional e Constituição em vigor A Constituição é um documento que aspira à permanência, mas não à perenidade. Por tal razão, todas as Constituições modernas, desde a norte- americana, de 1787, prevêem a possibilidade de sua própria reforma e estabelecem as regras que vão reger a matéria. A reforma da Constituição, como se sabe, é obra do poder constituinte derivado, e, como tal, repre- senta o exercício de um poder que é juridicamente limitado. É o próprio constituinte originário quem regula o processo de criação de novas nor- mas constitucionais, bem como determina o conteúdo que possam ter. 36. Veja-se sobre o tema, genericamente, a tese de Paulo Braga Galvão, Limitações ao poder de emendar a Constituição, mimeografado, 1988. A produção jurídica nesta matéria foi potencializada pela previsão do art. 3º do ADCT, promulgado juntamente com a atual Constituição, que previu a realização de uma revisão constitucional após cinco anos de vigência da Carta de 1988. Realizada em meio a acirrada polêmica sobre seus limites materiais, a revisão não produziu senão alterações de menor expressão. Vejam-se, dentre muitos trabalhos elaborados a este propósito, Raul Machado Horta, Permanência e mudança na Constituição, separata da Revista Brasileira de Estudos Políti- cos, n. 74/75, 1992; GeraldoAtaliba, Limites à revisão constitucional de 1993, separata da Revista Trimestral de Direito Público, n. 3, 1993; Carmen Lúcia Antunes Rocha, Revisão constitucional e plebiscito, mimeografado, 1993; Diogo de Figueiredo Moreira Neto,A revisão constitucional bra- sileira, 1993; Jair Eduardo Santana, Revisão constitucional, 1993; Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Poder constituinte reformador, 1993. Veja-se, mais recentemente, José Alfredo de Oliveira Baracho, Teoria geral da revisão constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFMG, 34:47, 1994. Quando a sucessão da ordem constitucional se dá com observância das regras vigentes, afirma-se que, apesar da alteração normativa, hou- ve continuidade formal do direito constitucional, porque as novas nor- mas se reconduzem, jurídica e politicamente, à ordem precedente. Ao revés fala-se em descontinuidade formal quando uma nova ordem cons-

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titucional implica ruptura, revolucionária ou não, com a ordem consti- tucional anterior. Já o conceito de descontinuidade material identifi- ca-se com a situação em que, além da ocorrência de uma ruptura formal (ou eventualmente sem ela), verifica-se também uma "destruição" do antigo poder constituinte por um novo poder constituinte, "alicerçado num título de legitimidade substancialmente diferente do anterior". 37. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 147-8. Em livro interessantíssimo (Discovering the Constitution, 1992), Bruce Ackerman, professor da Universidade de Yale, identi- fica três momentos de descontinuidade formal na experiência constitucional americana, pela inobservância do processo adequado de reforma constitucional: a elaboração, em si, da Constitui- ção, em 1787, em desconformidade com os Artigos da Confederação então vigentes, havendo os delegados das colônias extrapolado os mandatos que lhes haviam sido conferidos; a aprovação da 14ª emenda, pouco após a guerra civil; e a drástica mudança da jurisprudência da Suprema Corte relativamente às políticas públicas do New Deal, na década de 30. 38. A referência à "destrucción de la Constitución" se colhe em Carl Schmitt (Teoría dela Constitución, cit., p. 115), entendida como a "supresión de la Constitución existente (y no sólo de una o varias leyes constitucionales), acompañada de la supresión del Poder constituyente en que se basaba". 39. J. J. Gomes Canotiiho, Direito constitucional, cit., p. 149. No Brasil houve, sem dúvida, descontinuidade formal e material na substituição da Carta Imperial de 1824 pela Constituição de 1891, fruto do golpe que proclamou a República; na edição da Constituição de 1934, que institucionalizou, tardiamente, o movimento revolucionário de 30, que rompera com o regime constitucional da República Velha; quando da outorga da Carta de 1937, que instaurou o Estado Novo sobre as ruínas do regime de 1934. Por outro lado, a elaboração da Constituição de 1946 foi precedida de convocação de Assembléia Constituinte, den- trodos quadros da legalidade anterior. Aí, talvez, não se possa falar em descontinuidade formal, embora certamente tenha havido descontinuidade material, pela mudança do título de exercício do poder constituinte: transferiu-se do poder ditatorial e unipessoal de Vargas para a soberania popular. Hipótese inversa ocorreu com o golpe de 1964: não houve descontinuidade formal, porque mantida a Constituição de 1946, mas houve mudança do título de exercício do poder, que passou a ser investido no movimento militar vitorioso. 40. É o que deflui, sem margem a dúvida, do Preâmbulo do Ato Institucional n. 1, de 9-4- 1964, onde se lia: "A Revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. (...) Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas, sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. (...) Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la,

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apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República (...). Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação". A Carta de 1967 não importou, quer em descontinuidade formal, quer em material, por isso que convocada pelo poder que se instalara em 1964, que tutelou o processo onde apenas nominalmente agiu o Con- gresso Nacional. Soberania popular nem pensar... A Carta de 1969 - formalmente emenda constitucional à Carta de 1967 - curiosamente, importou em descontinuidade formal, por inobservância do processo de reforma previsto no texto de 1967, sem que tivesse havido, contudo, descontinuidade material, por isso que foi obra do poder militar, que, ainda quando ilegitimamente,já exercia o poder constituinte desde 1964. Porfim, a Constituição de 1988, sem qualquer dúvida, terá impor- tado em descontinuidade material, haja vista que coroou um movimen- to popular reivindicatório pelo qual a soberania popular retomou para si o poder constituinte que lhe fora usurpado desde 1964. Poder-se-á cogi- tar da inexistência de descontinuidade formal, pelo fato de a Assem- bléia Constituinte que a elaborou haver sido convocada por emenda cons- titucional à Carta então vigente. Em nenhuma hipótese, contudo, será correto o argumento de que o Texto em vigor não terá sido fruto de um poder constituinte originário, porque convocado pelos órgãos do poder constituído anterior. Mais do que em qualquer outro momento na his- tória brasileira, a Constituição de 1988 é produto legítimo do exercício da soberania popular, com as virtudes e vícios que daí advêm, sobretudo quanto às imperfeições do sistema representativo. 41. A Emenda Constitucional n. 26, de 27-11-1985, previu: "Art. 1º. Os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Cons- tituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Art. 2º. O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente. Art. 3º. A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assem- bléia Nacional Constituinte". 42. Este ponto de vista foi manifestado diversas vezes, quando das discussões da Assem- bléia Constituinte, pelo então Consultor-Geral da República, Saulo Ramos. Também se pronun- ciou no mesmo sentido Ives Gandra da Silva Martins, em palestra sobre os limites da revisão constitucional proferida na Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Rio de Janeiro. Feita a digressão doutrinária, é bem de ver que a generalidade das Constituições dita regras específicas acerca do procedimento a ser se- guido para modificação de seu texto em via institucional. No Brasil, a Carta em vigor aponta as pessoas e órgãos que têm legitimidade para propor emenda constitucional, prevendo, ainda, na tradição nacional de rigidez constitucional, as seguintes regras: a) discussão e votação em cada Casa do Congresso, em dois turnos; b) aprovação mediante voto de três quintos dos membros de cada Casa (art 60, I, II, III e § 2º).

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Além dos requisitos formais acima identificados, o poder de emenda sofre limitações que foram impostas pelo constituinte originário. Com efeito, no direito constitucional positivo brasileiro, há condicionantes de caráter circunstancial à reforma da Lei Fundamental, lançadas no § 1º, do art. 60: "A Constituição não poderá ser emendada na vigência de inter- venção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio". 43. Além das limitações circunstanciais e materiais, vistas a seguir, a doutrina reconhece também a existência de limitações ditas temporais, que consistem na estipulação de um prazo mínimo após o início de vigência da Constituição para que ela possa ser objeto de reforma. Norma desse teor vinha prevista na Constituição do Império, mas não existe na Carta atual. Existem, também, as chamadas limitações materiais ao poder de reforma constitucional, conhecidas como cláusulas pétreas, que vêm previstas no § 4º do art. 60, onde se veda a apreciação de emenda ten- dente a abolir: "I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais". 44. Além das limitações materiais expressas, alguns doutrinadores fazem referência, tam- bém, a limitações materiais implícitas (v. Nelson de Souza Sampaio, O poder de reforma constitu- cional, 1954, p. 93 e s.; Paulo Bonavides, Direito constitucional, 1980, p. 175 e s.; Manoel Gonçal- ves Ferreira Filho, Direito constitucional comparado, cit., v. 1, p. 155-6). A ampliação das limita- ções materiais expressas feita pela Constituição de 1988 reduziu a valia da teoria das limitações implícitas. Mas há uma que ainda subsiste como limitação implícita: o poder cOnstituinte derivado não pode alterar as regras relativas ao processo de edição da própria emenda. Ora bem: sobrevindo uma emenda constitucional, os dispositivos anteriores da Lei Fundamental que sejam com ela incompatÍveis ficam revogados. É bem de ver, no entanto, que as emendas constitucionais devem reverência absoluta aos preceitos do Texto Constitucional acima noticiados. Se os violar, sujeitam-se ao controle de constitucionalidade e podem ter pronunciada sua invalidade. Há precedentes sobre o tema na prática constitucional brasileira. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal considerou inválido dispositivo da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, que excluía do princípio da anterioridade tribu- tária (art. 150, III, b) o IPMF (Imposto sobre Movimentação ou Trans- missão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira), e vedou sua cobrança no mesmo exercício em que instituído. Relembre- se que as emendas constitucionais deverão sempre respeitar os direitos adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada, que são direitos individuais igualmente preservados da ação do constituinte reformador. 45. Vejam-se sobre o tema, em meio a outros: Otto Bachoff, Normas constitucionais incons- titucionais?, 1994, p. 52-4; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1988, t. 2, p. 287- 94; Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, 1989, p. 97; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 756-8, e José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional posi-

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tivo, 1989, p. 58-60. E, de forma nítida, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: "Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Cons- tituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja fun- ção precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, a, da CF)" (RDA, 198:123, 1994, ADIn 939- 7-DF, rel. Min. Sydney Sanches). 46. A Emenda Constitucional n. 3/93 que, em seu art. 2º, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, 111, b e VI da Constituição", porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis: 1º) o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (arts. 5º, § 2º, 60, § 4º, IV, e 150, III, b, da CF); 2º) o princípio da imunidade tributária recíproca, que é garantia da Federação (arts. 60, § 4º, I, e 150, VI, a, da CF); 3º) a norma que, estabelecendo outras imunidades, impede a criação de impostos nas hipóteses que especifica (art. 150, III, da CF) (RDA, 198:123,1994, ADin 939-7-DF, rel. Min. Sydney Sanches). Para uma visão crítica desta decisão, v. o denso artigo do eminente Professor Flavio Bauer Novelli, Norma constitucional inconstitucional?, RDA, 199:21, 1995. Veja-se, também, a referência feita no julgamen- to da ADIn 981-8-PR: "Após 5 de outubro de 1993, cabia ao Congresso Nacional deliberar no sentido da oportunidade ou necessidade de proceder à aludida revisão constitucional, a ser feita uma só vez". As mudanças na Constituição, decorrentes da "revisão" do art. 3º do ADCT, estão sujeitas ao controle judicial, diante das "cláusulas pétreas" consignadas no art. 60, § 4º e seus incisos, da Lei Magna de 1988" (RDA, 198:231,1994, rel. Min. Néri da Silveira). Ainda nessa temática, o Supremo Tribunal Federal, assim no regime constitucional anterior como no atual, tem entendido cabível mandado de segurança contra o simples processamento de emenda constitucional que viole alguma das cláusulas pétreas do art. 60, § 4º. De fato, em mais de um precedente, a Corte reconheceu, em sede de controle incidental, a possibilidade de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade de pro- postas de emenda à Constituição que veicularem matéria vedada ao poder reformador do Congresso Nacional. 47. V. RTJ, 99:1031, 1982. MS 20.257, rel. Min. Moreira Alves; RDA 193:266, 1993, MS 21.747, rel. Min. Celso de Melo, e RDA, 191:200, 1993, MS 21.642, rel. Min. Celso de Melo. Mais recentemente, no MS 21 .648-DF, de que foi relator o Min. Ilmar Galvão, decidiu o Supremo Tribunal Federal: É legítima a pretensão de Deputado Federal, pela via do mandado de segurança, a que lhe seja reconhecido o direito de não ter de manifestar-se sobre Projeto de Emenda Constitu-

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cional, que considera violador do princípio da anterioridade tributária. No entanto, perde o Deputa- do tal legitimidade em virtude da modificação da situação jurídica no curso do processo, decorrente da superveniente aprovação do projeto, que já se acha em vigor. Na hipótese, o mandado de segu- rança, que tinha caráter preventivo, não se pode voltar contra a emenda já promulgada, o que equivaleria a emprestar-lhe efeito, de todo descabido, de ação direta de inconstitucionalidade, para a qual, ademais, não está o impetrante legitimado (RTJ. 165:540, 1998). De todo modo, sendo a emenda constitucional formal e material- mente válida, tem vigência imediata e revoga as normas constitucionais precedentes que sejam com ela incompatíveis. Aqui, ao contrário do que normalmente se passa com o advento de uma nova Constituição, não há descontinuidade de qualquer natureza, seja formal ou material. Tampouco há que se falar em revogação de sistema. A revogação aqui operada é limitada ao dispositivo substituído e às eventuais implicações sistêmicas que disso resultem. 3. Constituição nova e direito infraconstitucional anterior A interpretação constitucional, como se desenvolverá mais adiante, conduz-se sob a inspiração de determinados princípios cardeais, que a singularizam, dando-lhe um toque de especificidade. Dentre esses prin- cípios destacam-se, para os fins do tópico aqui versado, o da supremacia da Constituição e o da continuidade da ordem jurídica. O princípio da supremacia da Constituição, que tem como premis- sa a rigidez constitucional, é a idéia central subjacente a todos os siste- mas jurídicos modernos. Sua compreensão é singela. Na celebrada ima- gem de Kelsen, para ilustrar a hierarquia das normas jurídicas, a Cons- tituição situa-se no vértice de todo o sistema legal, servindo como fun- damento de validade das demais disposições normativas. Toda Consti- tuição escrita e rígida, como é o caso da brasileira, goza de superiorida- de jurídica em relação às outras leis, que não poderão ter existência legítima se com ela contrastarem. Merece relevo, por igual, o princípio da continuidade da ordem jurídica. Ao entrar em vigor, a nova Constituição depara-se com todo um sistema legal preexistente. Dificilmente a ordem constitucional re- cém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com o passado. Por isso, toda a legislação ordinária federal, estadual e mu- nicipal que não seja incompatível com a nova Constituição conserva sua eficácia. Se assim não fosse, haveria um enorme vácuo legal até que o legislador infraconstitucional pudesse recompor inteiramente todo o domínio coberto pelas normas jurídicas anteriores. 48. Sobre o tema, v. Caio Mário da Silva Pereira, Direito constitucional intertemporal, RF, 304:29, p. 30 e s.; Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 434 e 5.; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 242 e 5.; J. J. Gomes Canotilho, Manual de direito constitucional, cit., p. 1114 e s. As relações entre uma nova Constituição e uma lei a ela anterior situam-se na confluência desses dois princípios. O primeiro condena à invalidade e à ineficácia toda e qualquer norma incompatível com a Carta Constitucional. O segundo, de superlativo valor pragmático, procura preservar a vigência e eficácia da legislação que vigorava anteriormente ao advento da nova Constituição. As Constituições de 1891 e 1934

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positivaram a regra da continuidade da ordem jurídica, embora o princí- pio pudesse prescindir de texto expresso. As demais Cartas brasileiras não o reproduziram, mas jamais se questionou a sua permanência em nosso sistema. 49. Constituição Federal de 1891, art. 83: "Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regímen no que explícita ou implicitamente não for contrário ao sistema de governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados"; Constituição Federal de 1934: "Con- tinuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente não contrariarem as disposições desta Constituição". 50. Escreveu Rui Barbosa (Comentários à Constituição Federal brasileira, 1934, v. 6, p. 406): "Não se havia mister de que a Constituição formalmente o declarasse, para se ver ou saber que não repudiava as leis e instituições anteriores, com ela compatíveis, ou dela complementares. Em todas as constituições, está subentendida essa disposição". A continuidade da ordem jurídica se dá através de um processo ao qual a doutrina costuma referir-se como recepção, sob inspiração, ainda aqui, da lição de Hans Kelsen, a seguir reproduzida: "Uma grande parte das leis promulgadas sob a antiga Constituição permanece, como costuma dizer-se, em vi- gor. No entanto, esta expressão não é acertada. Se estas leis devem ser consideradas como estando em vigor sob a nova Constituição, isto somente é possível porque foram postas em vigor sob a nova Constituição, expressa ou implicita- mente (...). O que existe, não é uma criação de Direito in- teiramente nova, mas recepção de normas de uma ordem jurídica por uma outra". 51. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 290-1. E conclui o mestre de Viena, retomando sua idéia básica da Consti- tuição como fundamento de validade da ordem jurídica: "Mas também essa recepção é produção de Direito. Com efeito, o imediato fundamento de validade das nor- mas jurídicas recebidas sob a nova Constituição, revolucionariamente estabelecida, já não pode ser a antiga Constituição, que foi anulada, mas apenas o pode ser a nova. O conteúdo destas normas permanece na verdade o mes- mo, mas o seu fundamento de validade, e não apenas este mas também o fundamento de validade de toda a ordem jurídica, mudou. Com o tomar-se eficaz da nova Constitui- ção, modificou-se a norma fundamental, quer dizer, o pres- suposto sob o qual o facto constituinte e os factos postos em harmonia com a Constituição podem ser pensados como factos de produção e de aplicação de normas jurídicas". 52. Teoria pura do direito, cit., p. 290-1. É preciso atentar, aqui, que, embora o texto da norma recepcionada permaneça o mesmo, poderá ela merecer leitura e interpretação diver- sas, quando o novo ordenamento esteja pautado por princípios e fins distintos do anterior. Retomando a lição de Kelsen, também Norberto Bobbio doutrinou a respeito: "O fato de o novo ordenamento ser constituído em parte por normas do velho não ofende em nada o seu caráter de novidade: as normas comuns ao velho e ao novo ordena-

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mento pertencem apenas materialmente ao primeiro; for- malmente, são todas normas do novo, no sentido de que elas são válidas não mais com base na norma fundamental do velho ordenamento, mas com base na norma fundamental do novo. Nesse sentido falamos de recepção, e não pura e simplesmente de permanência do velho no novo. A recep- ção é um ato jurídico com o qual o ordenamento acolhe e torna suas as normas de outro ordenamento,onde tais nor- mas permanecem materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com respeito à forma". 53. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 177. Justamente por não se tratar de mero recebimento das normas anterio- res, mas de verdadeira recriação de seu sentido, é feliz o emprego da palavra "novação", em lugar de "recepção", como faz Jorge Miranda, que sintetizou com maestria as conseqüências jurídicas do fenômeno em três corolários: "a) Os princípios gerais de todos os ramos de Direito passam a ser os que constem da Constituição ou os que dela se infiram directa ou indirectamente, enquanto revela- ções dos valores fundamentais da ordem jurídica acolhi- dos pela Constituição; b) As normas legais e regulamentares vigentes à data da entrada em vigor da nova Constituição têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas subsistem se con- formes com as suas normas e os seus princípios; c) As normas anteriores contrárias à Constituição, mes- mo que contrárias a normas programáticas, não podem sub- sistir - seja qual for o modo de interpretar o fenómeno da contradição". 54. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 243-4. Atente-se para a lição mais relevante: as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando, automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime ante- rior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo. Com argúcia e espírito, José Carlos Barbosa Moreira estigmatiza a equivocidade dessa postura: "Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu so- bre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a des- peito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mu- dou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de inter- pretação... em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantas- magórica". 55. Para um valioso estudo de caso, veja-se Humberto Ribeiro Soares, Convênio tributário e a Constituição de 1988, 1992. 56. José Carlos Barbosa Moreira, O Poder Judiciário e a efetividade da nova Constituição, RF,304:151, 1988,p. 152. No fenômeno da recepção, o que é verdadeiramente imperativo é a compatibilidade entre o velho e o novo, como enfatizado pela pena ilustre dos principais comentadores nacionais. João Barbalho

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advertiu: "O que unicamente existe em vigor da anterior legisla- ção é o que nela não se acha em antinomia com o novo regi- me e com seus princípios fundamentais. E é de notar que não se torna necessário, para haver-se por derrogada essa legislação, que ela enfrente algum artigo ou expressa dispo- sição constitucional, basta que tenha ficado em oposição ao sistema fundado pela Constituição e aos princípios nela con- sagrados (art. 83). Sábia disposição, zeladora da pureza e exação do sistema e da sua genuína e sincera execução". 57. João Barbalho, Constituição Federal brasileira - comentários, 1924, p. 487-8. Carlos Maximiliano, após enfatizar a revogação automática dos tex- tos incompatíveis com o estatuto supremo, acrescentou: "Basta a antinomia implícita para desaparecer o texto ordinário e prevalecer o fundamental". 58. Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição brasileira (de 1891), 1918, p. 786. Para que não se torne enfadonha a repetição, veja-se, por fim, Pon- tes de Miranda, remarcando igualmente a evidência: "As leis que continuam em vigor são todas as que exis- tiam e não são incompatíveis com a Constituição nova". 59. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, cit., v. II, p. 560. As manifestações transcritas acima, embora cuidassem de destacar a necessária compatibilidade entre a velha ordem e a nova Constituição, passam ao largo de uma discussão que seduz os teóricos, mas que tem, igualmente, significativas conseqüências práticas. E que a doutrina tem assumido posições que se contrapÕem com certo radicalismo no que toca às relações entre a Constituição e a lei anterior. De um lado, há os que sustentam que a nova Constituição, ao entrar em vigor, simplesmente revoga toda a legislação precedente com ela in- compatível. Portanto cuidar-se-ia de um conflito de natureza temporal, a ser resolvido no plano da vigência da norma. De outro lado, há os que sustentam a inadequação de se tratar tal questão à luz do direito intertemporal, sob o argumento de que a regra lex posterior derogat priori somente se aplica a normas de igual hierarquia. Por via de conseqüência, consideram que o conflito entre a Constituição e a lei anterior é de nature- za hierárquica, a ser resolvido no plano da validade da norma. Logo, se a Constituição e a norma anterior são incompatíveis, é caso de pronunciar- se a inconstitucionalidade da norma, e não sua revogação. A questão, portanto, põe-se em termos de saber se a lei anterior incompatível com a Constituição deve ser tida como revogada ou se é necessário declarar-lhe a inconstitucionalidade. A tese da revogação, aparentemente, tem a preferência da doutrina nacional. Confira-se a li- ção de Victor Nunes Leal: "Parece-nos mais acertada a corrente que vê na incom- patibilidade entre a lei anterior e a Constituição nova um simples caso de revogação e não de inconstitucionalidade. Em primeiro lugar porque o conflito que aí se abre é tipica- mente um conflito de normas no tempo: a norma anterior considera-se revogada pela promulgação da norma poste- rior com ela incompatível". 60. Victor Nunes Leal, Leis complementares da Constituição, RDA, VII:379, p. 390. Assim, também, Francisco Campos:

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"Todas as leis anteriores incompatíveis com a Consti- tuição encontram-se tacitamente revogadas". 61. Francisco Campos, Direito constitucional, 1956, t. 2, p. 103. Na mesma linha foi a manifestação do eminente Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, que, em trabalho doutrinário, averbou: "A superveniência de norma constitucional revoga le- gislação ordinária com ela incompatível, ou a questão se- ria de ser resolvida no controle de constitucionalidade? A doutrina e a jurisprudência brasileira concebem a questão no âmbito do Direito Intertemporal: a legislação anterior à Constituição e com esta incompatível considera- se revogada". 62. Carlos Mário da Silva Velloso, Controle da constitucionalidade na Constituição brasileira de 1988, in Temas de direito público, 1994, p. 138. Veja-se igual orientação em Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 1990, p. 116; em Marcelo Neves, Teoria da inconstitucionalidade das leis, 1988, p. 96, e em Ronaldo Poletti, Controle de constitucionalidade das leis, 1985, p. 165. Não têm faltado, por outro lado, doutrinadores da melhor linhagem sustentando a tese oposta. Castro Nunes, já em 1943, defendia: "Tem-se dito e é essa a opinião generalizada, quer na exposição do nosso Direito Constitucional, quer na ju- risprudência que as leis preexistentes e havidas como incompatíveis com a Constituição são leis revogadas, que escapam ao tratamento da declaração da inconstitucio- nalidade. Tenho divergido desse entendimento assentado de longa data pelo Supremo Tribunal. (...) A teoria da ab-rogação das leis supÕe normas da mesma autoridade. Quando se diz que a lei posterior revo- ga, ainda que tacitamente, a anterior, supõem-se no cotejo leis do mesmo nível. Mas se a questão está em saber se uma norma pode continuar a viger em face das regras ou princípios de uma Constituição, a solução negativa só é revogação por efeito daquela anterioridade; mas tem uma designação peculiar a esse desnível das normas, chama-se declaração de inconstitucionalidade". 63. Castro Nunes, Teoria e pratica do Poder Judiciário, 1943, p. 600-1. Aparentemente no mesmo sentido, Themístocles Brandão Cavalcanti, Do controle de constitucionalidade. 1966. p. 171, embora em texto ambíguo e pouco claro. Em igual sentido é a compreensão de Wilson de Souza Campos Batalha, que escreveu: "Se, ao contrário, essas normas jurídicas elaboradas na vigência da Constituição anterior vierem a atritar-se com os novos textos constitucionais, cessarão de vigorar, a partir da data do início da vigência da Constituição recente, porque não poderão encontrar nesta fundamento para sua validade: serão normas inconstitucionais. A rigor, não se poderá dizer que a Constituição revogou as normas anteriores que lhe eram contrárias. A revogação opera-se apenas entre normas de igual hierarquia: a lei revoga-se por outra lei. (...) A Constituição não revogou as leis anteriores que lhe eram contrárias; apenas estas deixaram de existir no

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plano do ordenamento jurídico estatal, por haverem perdi- do seu fundamento de validade". 64. Direito intertemporal. cit., p. 434. A polêmica se põe, também, no plano do direito comparado. Na Itália, depois de alguma controvérsia doutrinária, prevaleceu a tese de que a hipótese se resolve em termos de ilegitimidade constitucional, e não de revogação. Foi nesse sentido a sentença n. 1, de 1956, que bem distinguiu as diferentes figuras envolvidas, assentando que "os dois ins- titutos jurídicos da ab-rogação e da ilegitimidade constitucional das leis não são idênticos entre si, movem-se em planos diversos, com efeitos diversos e competências diversas". Tal decisão foi respaldada pelos principais publicistas italianos. 65. Os comentários que se seguem beneficiam-se do valioso levantamento feito pelo Min. Sepúlveda Pertence, em voto vencido publicado na RDA 187:152, 1992, a que adiante far-se-á menção. 66. V. Biscaretti di Ruffia, Derecho constitucional, 1984, p. 268: "... todo contraste entre uma lei anterior e a Constituição produz, antes de uma ab-rogação, uma ilegitimidade constitucional". 67. Giurisprudenza della Corte Costituzionale italiana, 1985, p. 3: "I due istituti giuridici dell’abrogazione e della illegitimità costituzionale delle leggi non sono identici fra loro, si muovono su piani diversi, con effetti diversi e con competenze diverse". V. voto do Min. Sepúlveda Pertence referido acima. 68. Vejam-se, entre outros, Calamandrei (Corte Constitucional y autoridad judicial, in Estudios sobre el proceso civil, trad. Bs. As., 1973, v. III, p. 149 e s.), C. Mortati (Abrogazione legislativa e instaurazione di un nuovo ordinamento costituzionale, 1958, Raccolta di Scritti, 2:43, p. 68), Mauro Cappelletti (La pregiudizialità costituzionale nel processo civile, 1972, p. 88) e Balladore-Palieri (Diritto costituzionale, 1955, p. 281, apud Sepülveda Pertence, RDA, 187:152, 1992, p. 156). Na Alemanha o tratamento é distinto, quer se trate de controle in concreto ou in abstracto. De fato, o Tribunal Constitucional Federal entendeu não ser de sua competência, mas, sim, do juiz da causa, a solu- ção da argüição incidente de incompatibilidade de lei anterior com a Constituição. Vale dizer: não considerou ser o caso de se suscitar ques- tão constitucional a ser encaminhada para o Tribunal. Todavia, no con- trole abstrato, entendeu "caber-lhe a aferição da compatibilidade entre o direito pré-constitucional e a Lei fundamental". De modo que o di- reito alemão trata a questão ora como de nível infraconstitucional - i. e., como revogação -, ora como de nível constitucional. 69. BVerfGE, 2, 124, apud Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990, p. 75. 70. Odim Brandão Ferreira, apud Sepúlveda Pertence, RDA, 187:152, p. 156. 71. Dispõe a propósito a Constituição alemã: "Art. 126. (Divergências sobre a continuidade da vigência de direito antigo) As divergências sobre a continuidade da vigência de qualquer disposição jurídica, sob a forma de direito federal, serão decididas pelo Tribunal Federal Constitucional".

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Na Espanha, a letra expressa da Constituição sugere uma adesão à teoria ab-rogatória e não à da inconstitucionalidade. De fato, na parte final de seu texto, contém a Carta espanhola uma "disposición dero- gatoria", cujo item 3 prescreve que "quedan derogadas cuantas dispo- siciones se opongam al estabelecido en esta Constitución". Sem embar- go, o Tribunal Constitucional temperou a leitura mais óbvia do disposi- tivo com a adoção de uma tese híbrida. Se o juiz se convencer, à luz do caso concreto, da existência de incompatibilidade entre a Constituição e a lei a ela anterior, poderá prosseguir e decidir a lide, sem precisar sus- pender o processo e levantar a questão constitucional. Se, porém, estiver em dúvida, poderá levantar, perante o Tribunal Constitucional, a ques- tão de inconstitucionalidade superveniente. 72. V. Francisco Fernandez Segado, El sistema constitucional español, 1992, p. 75-9, e Eduardü García de Enterría, La Constitución como norma jurídica y el Tribunal Constitucional, 1981, p. 85. A sentença n. 4, de 2-2-1981, estabeleceu: "Así como frente a las Leyes postconstitucionales el Tribunal ostenta un monopolio para enjuiciar su conformidad con la Constitución, en relación a las preconstitucionales los Jueces y Tribunales deben inaplicarlas si entienden que han quedado derogadas por la Constitución, al oponerse a la misma; o pueden, en caso de duda, someter este tema al Tribunal Constitucional por la via de la cuestión de inconstitucionalidad" (apud Francisco Segado, El sistema constitucional español, cit., p. 78). Em Portugal existe, atualmente, norma constitucional expressa en- dossando a orientação da inconstitucionalidade superveniente, tese que desde antes já contava com a adesão dos principais doutrinadores. Veja- se, por todos, a posição de Gomes Canotilho: "Os juízes podem e devem conhecer da incons- titucionalidade do direito pré-constitucional e o TC pode julgar inconstitucionais normas cuja entrada em vigor retrotrai a um momento anterior ao da entrada em vigor da Constituição. (...) A inconstitucionalidade (plano de validade) con- duz, num caso concreto, à revogação (plano de vigência). Daí que, na inconstitucionalidade superveniente, haja um concurso de revogação (leis que se sucedem no tempo) e nulidade (leis de hierarquia diferente em relação de con- trariedade). (...) O fato de as leis ordinárias anteriores incons- titucionais terem deixado de vigorar com a entrada em vi- gor da Constituição não significa a inutilidade de uma de- claração expressa de inconstitucionalidade a efectuar pelo órgão com competência para esse efeito". 73. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 1115. No mesmo sentido, Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 248 e s. Algumas peculiaridades da realidade brasileira e do sistema de con- trole de constitucionalidade aqui adotado realçam a polêmica doutriná- ria existente. De fato, a sucessão de cartas constitucionais e de emendas ao longo de nossa acidentada história institucional faz com que se colo- que rotineiramente perante os tribunais a questão da vigência ou valida- de de normas anteriores à mudança constitucional. Quando a decisão é pronunciada no caso concreto, não há qualquer implicação prática na

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opção pela tese da revogação ou da inconstitucionalidade superveniente. É que, em qualquer caso, ter-se-ia como ineficaz a norma a partir do momento da promulgação da Constituição. De fato, tanto a revogação retirada de vigência da lei - como a declaração incidental de inconstitucionalidade - i. e., reconhecimento de sua invalidade - pro- duziriam o mesmo resultado: não-aplicação, pelo juiz, da norma im- pugnada, que terá deixado de existir ou de valer na mesma data. No plano processual, todavia, surge uma importante conseqüência prática da qualificação doutrinária da matéria. É que, no Brasil, além do controle de constitucionalidade incidental e difuso, existe o controle por via principal, em tese ou por ação direta, previsto expressamente no art. 102, I, a, da Constituição Federal. Veja-se, então: se a questão se põe em termos de inconstitucionalidade superveniente, caberá ação direta de inconstitucionalidade contra a norma anterior à Constituição e que seja com ela incompatível. De outra parte, se se encara a matéria em termos de revogação, a ação direta será descabida, porque não se pode cogitar de declarar inconstitucional o que já não existe no mundo jurídico. O tema esteve pacificado por muitos anos em sede jurisprudencial, havendo sido reagitado em amplo debate perante o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2, em 6 de fevereiro de 1992. Em longo e erudito voto, reproduzido no julgamento de diversas outras ações, o Ministro Sepúlveda Pertence sustentou a tese da inconstitucionalidade superveniente, em contraposição à idéia até então dominante de que todas as leis anteriores à Constituição e com ela incompatíveis ficavam revogadas. Foi acom- panhado pelos Ministros Néri da Silveira e Marco Aurélio. Na vigorosa sustentação de seu voto, escreveu: "Não nego a paridade de efeitos substanciais entre a concepção da inconstitucionalidade superveniente e a da ab-rogação pela Constituição nova do direito pré-constitu- cional ordinário, com ela incompatível. (...) Prefiro-a (a tese da inconstitucionalidade super- veniente) àquela da simples revogação, porque entendo que a conseqüência básica da sua adoção - o cabimento da ação direta -, é a que serve melhor às inspirações do sis- tema brasileiro de controle de constitucionalidade. Reduzir o problema às dimensões da simples revogação da norma infraconstitucional pela norma constitucional pos- terior - se é alvitre que tem por si a sedução da aparente simplicidade -, redunda em fechar-lhe a via da ação direta. É deixar, em conseqüência, que o deslinde das controvérsias suscitadas flutue, durante anos, ao sabor dos dissídios entre juízes e tribunais de todo o país, até chegar, se chegar, à de- cisão da Alta Corte, ao fim de longa caminhada pelas vias freqüentemente tortuosas do sistema de recursos". 74. ADIn 438, julgada em 7-2-1992, onde se transcreve na íntegra o voto da ADIn 2, julgada na véspera. Ressalvando sua opinião pessoal, curvou-se o Min. Pertence à deliberação da maioria, que não conhecia do pedido por impossibilidade jurídica, averbando: "Guardando, embora, meu inabalável convencimento derrotado, rendo-me à força numérica e à vontade da maioria e acompa- nho o eminente Relator" (RDA, 187:152, 1992). Prevaleceu, todavia, a posição do Ministro Paulo Brossard, na linha da tradicional jurisprudência da Suprema Corte. Com a adesão de oito ministros, o acórdão proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade

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n. 2 inscreveu em sua ementa a síntese da posição vitoriosa: "O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tem- po de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitu- cional em relação à Constituição superveniente; nem o le- gislador poderia infringir Constituição futura. A Constitui- ção sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária. Ação direta que não se conhece por impossibilidade jurídica do pedido". 75. V. Paulo Brossard, A Constituição e as leis a ela anteriores, Separata da Revista Arquivos do Ministério da Justiça, v. 45, n. 180, p. II. O trabalho apresenta um amplo levantamento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Vejam-se, exemplificativamente: RTJ, 131:1070, 1988 e 130:1002, 1989;RDA, 188:288, 1992;RTJ, 145:347, 1993. Há um vasto elenco de bons argumentos em favor de uma e outra posições. Existem, mesmo, autores que procuram conciliar as correntes opostas, cunhando uma solução híbrida para o problema. É o que faz Lúcio Bittencourt, em passagem constantemente lembrada: "A revogação se verifica quando a lei, tachada de in- compatível com a Constituição, já se achava em vigor por ocasião do advento desta. Não se trata, porém, de revoga- ção pura e simples, como a que decorre em virtude do con- flito intertemporal entre duas leis da mesma hierarquia. Não, uma lei incompatível com a Constituição é, sempre, uma lei inconstitucional, pouco importando que tenha precedi- do o Estatuto Político ou lhe seja posterior. A revogação é conseqüência da inconstitucionalidade". 76. Lúcio Bittencourt, O controle da constitucionalidade das leis, 1968, p. 131. Esse ponto de vista intermediário ou conciliador tem a adesão de José Afonso da Silva, que, concordando com Lúcio Bittencourt, afirma que na hipótese "se dá uma revogação por inconstitucionalidade, numa por assim dizer revogação por invalidação... ". É o que também transparece da lição de J. J. Gomes Canotilho, já referida, que entende haver "um concurso de revogação (leis que se sucedem no tempo) e nulidade (leis de hierarquia diferente em relação de contrariedade)". Ainda quando essa postura híbrida possa ser sedutora ao espírito - in medio virtus -, o fato é que ela não soluciona o problema prático. Con- vém aprofundar a análise do tema e emitir nossa opinião. 77. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 202. 78. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 1115. Uma norma incompatível com a Constituição poderá sempre ensejar um juízo de inconstitucionalidade. A rigor doutrinário, tal juízo não so- fre condicionamento de natureza temporal, podendo recair sobre lei an- terior ou sobre lei posterior. Isso porque o que induz à inconstitucio- nalidade é a incompatibilidade, independentemente do momento em que se verifica. Esta poderá ser contemporânea ao nascimento da lei ou

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superveniente, na hipótese de alteração do preceito constitucional. De outra parte, uma lei posterior, sendo incompatível com a anterior, deve revogá-la, desde que seja de hierarquia igual ou superior. Não seduz, com todas as vênias, a tese de que lei posterior de hierarquia mais elevada não possa suceder a norma inferior, com eficácia ab-rogatória. Parece pouco lógico que a norma superveniente, sendo de igual hierarquia, possa retirar de vigência a anterior, mas sendo superior não possa. A conclusão a que se chega, de cada um dos parágrafos antecedentes, é que uma e outra correntes têm bom substrato doutrinário. Tanto é razo- ável a idéia de revogação quanto a da inconstitucionalidade superveniente. Está-se diante de duas proposições lógicas e bem fundadas. Em sendo assim, a opção por uma ou outra envolve matéria de política legislativa, cabendo, em princípio, ao próprio constituinte fazer a escolha, formulan- do seu juízo de conveniência e oportunidade. Não o fazendo, a decisão transfere-se para a Corte Constitucional ou para o Supremo Tribunal. No caso brasileiro, como se assinalou, a opção por uma ou por outra solução tem importante conseqüência prática: posta a matéria em ter- mos de revogação, não caberá ação direta, pois não se pronuncia a inconstitucionalidade de lei que já não esteja em vigor. Se, ao revés, se conceber o tema no campo da inconstitucionalidade superveniente, ca- berá, naturalmente, a ação direta. A ratio que conduz à posição defendida por José Paulo Sepúlveda Pertence é por ele explicitada: ensejar o estabelecimento de certeza jurí- dica erga omnes sobre a eficácia ou não de uma lei, ainda que anterior à Constituição, sem deixar que o "deslinde das controvérsias suscitadas flutue, durante anos, ao sabor dos dissídios entre juízes e tribunais de todo o país". Para isso, nada mais adequado que a ação direta de inconstitucionalidade. 79. ADIn438, RDA, 187:152, 1992,p. 154. Inversamente, uma das principais motivações da corrente majoritá- ria da Suprema Corte, e que inspira, aliás, outras de suas linhas juris- prudenciais, é a necessidade de limitar o número de feitos que chegam àquele tribunal. Confrontado com a impossibilidade material de apre- ciar milhares de processos que lhe tocam por competência originária ou por via recursal, o Supremo Tribunal Federal tende a prestigiar os en- tendimentos doutrinários que restrinjam, e não que ampliem, o acesso de novas ações. 80. Como, v. g., a que estabelece critérios rígidos na verificação da legitimação para a ação direta prevista no inciso IX do art. 103 da Constituição. V. RTJ, 144:434, 1993, 144:702, 1993, 144:747, 1993, 145:669, 1993, 146:421, 1993; RDA, 188:144, 1992, e 188:150, 1992. Paradoxalmente, o voto do Ministro Pertence, cuja tese importa em aumento dos casos a serem submetidos à Corte, abre-se com a seguinte e reveladora passagem: "Assinalo, de início, para deixar documentado o con- gestionamento temporal com que se debatem os trabalhos do plenário da Corte, que este voto vista aguarda chamada desde começos de 1990. Desde então não me cabe respon- sabilidade pelo retardamento que agora impõe a renovação integral do julgado". 81. ADIn 438, RDA, 187:152,p. 153. A posição minoritária, à qual se filiaram, também, os Ministros Néri da Silveira e Marco Aurélio, tem a simpatia das concepções que ensejam o juízo de mérito e a solução possível para o problema, em lugar de postergá- la ou descartá-la por embaraços processuais. Mas enfrenta duas restrições de cunho doutrinário. A primeira é a de que o exercício do poderjurisdicional

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em tese, in abstracto, caracteriza exceção e deve ser evitado quando não resulte da letra clara da lei ou de necessidade que se possa reputar impe- riosa. O argumento tem consistência, mas não é decisivo. 82. Na lição sempre precisa do saudoso M. Seabra Fagundes (O controle dos atos adminis- trativos pelo Poder Judiciário, cit., p. 4-5 e 11), legislar é editar o direito positivo; administrar é aplicar a lei de ofício; e julgar é aplicar a lei contenciosamente. Em suas palavras: "O seu exercício (da função jurisdicional) pressupõe, assim, um conflito, uma controvérsia, ou um obstáculo em torno da realização do Direito e visa a removê-lo pela definitiva e obrigatória interpretação da lei. Para uma discussão sobre a natureza do papel desempenhado porjuízes e tribunais na jurisdição constitucional em Hans Kelsen, Carl Schmitt e Rudolf Smend, v. José Antonio Estévez Araujo. La Constitución como proceso y la desobediencia civil, 1994, p. 51 e s. O outro argumento deita raízes em regra de interpretação constitu- cional que será apreciada mais adiante. Veja-se que a jurisprudência que trata a lei anterior incompatível com a Constituição sob o prisma da revogação, e, conseqüentemente, do descabimento da ação direta de inconstitucionalidade, é vetusta, bem anterior à Constituição de 1988. Não colide ela com qualquer princípio ou com o sistema da Carta em vigor. Ora bem: se o constituinte desejasse que a matéria fosse tratada de forma diversa da que se cristalizou na jurisprudência, deveria ter cui- dado de assim prever expressamente. A omissão, no caso, deve ser inter- pretada como concordância com a prática jurisprudencial anterior. 83. A tese da revogação tem a chancela de jurisprudência antiga, que se formou ainda na Cons- tituição de 1946, antes mesmo da introdução da ação genérica de controle de constitucionalidade (v. RE 19.656, rel. Min. Luiz Gallotti,julgado em 1952, RT, 231:665). Foi confirmada no regime consti- tucional subseqüente em julgados sucessivos. V. RTJ, 71 :291, 1974,76:538, 1975, 82:44, 1977,95:980, 1979,99:544, 1981,116:652, 1981,109:1220, 1983,e 124:415,1987. Assim, no direito constitucional positivo brasileiro, tal como inter- pretado pelo Supremo Tribunal Federal, a incompatibilidade entre norma infraconstitucional e Constituição superveniente deverá ser pronunciada incidentalmente, na apreciação do caso concreto, e não em tese, mediante controle abstrato. Da decisão proferida caberá recurso extraordinário. 84. REsp 68.410, RDA, 202:224, 1995, rel. Min. Humberto Gomes de Barros. 4. Algumas questões de direito intertemporal suscitadas pelo advento de uma nova Constituição a) Inexistência de inconstitucionalidade formal superveniente A Constituição, como já se assinalou, dita o modo de produção de normas dentro do ordenamento jurídico, prevendo um processo próprio onde se deverão observar regras de competência, procedimento e de quorum para sua aprovação e ingresso válido no mundo jurídico. Além disso, o texto constitucional condiciona, igualmente, o objeto das nor- mas jurídicas que serão produzidas, vedando ou ordenando determina- dos conteúdos. Quando a norma elaborada pelo órgão legislativo - seja emenda ou lei infraconstitucional - está em desconformidade com o

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processo estabelecido na Constiluição, diz-se haver ocorrido inconstitu- cionalidade formal. Quando, de outra parte, a norma editada contravém o conteúdo de um preceito constitucional, está-se diante de uma inconstitucionalidade material. Ordinariamente, inexiste, do ponto de vista prático, diferença mais significativa entre as duas espécies de inconstitucionalidade acima identificadas. Quando o órgão jurisdicional pronuncia a inconstitucio- nalidade de uma norma, seja por nela vislumbrar um vício de iniciativa (inconstitucionalidade formal) ou uma afronta ao princípio da isonomia (inconstitucionalidade material), a conseqüência é rigorosamente a mes- ma, e os efeitos de tal declaração produzir-se-ão indistintamente. Diferentemente se passa quando a incompatibilidade se dá entre a Constituição vigente e norma a ela anterior. Aí, sendo a incompatibili- dade de natureza material, não poderá a norma subsistir. Conforme já estudamos, de acordo com a corrente doutrinária que se escolha, a nor- ma será tida como revogada ou como inconstitucional, mas em qualquer caso não deverá ser aplicada. Não assim, porém, quando a incompatibi- lidade superveniente tenha natureza formal. Nessa última hipótese, tem- se admitido, sem maior controvérsia, a subsistência válida da norma que haja sido produzida em adequação com o processo vigente no mo- mento de sua elaboração. Incidirá, assim, a regra tempus regit actum. Se a questão da inconstitucionalidade material superveniente é imersa em controvérsias e disputas doutrinárias, o mesmo não se passa quando se cuida de seu aspecto formal. O consenso doutrinário é amplo. Na Itália, por exemplo, averbou Pierandrei: "A ilegitimidade formal somente pode ser "originária", porque um ato, devendo ser elaborado e formado através do procedimento previsto pelas regras vigentes no momento de sua criação, não pode ser julgado, quanto à sua valida- de, senão com referência a estas mesmas regras". 85. Franco Pierandrei, Corte Costituzionale, in Enciclopedia dei diritto, 1962, v. 10, p. 874- 1036: "L’illegittimità formale può essere che "originaria", perchê un atto, dovendo essere elaborato e formato attraverso il procedimento previsto dalle regole vigenti al momento della sua creazione, non può essere giudicato, quanto alla sua validità, se non, con riferimento alle stesse regole". Na Espanha, e em igual sentido, averbou Eduardo García de Enterría que "esa inconstitucionalidad sobrevenida ha de referirse precisamente a la contradicción con los principios materiales de la Constitución, no a las reglas formales de elaboración de las leyes que ésta establece hoy". 86. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 257. Em Portugal colhe-se, na matéria, a lição cristalina de J. J. Gomes Canotilho: "A inconstitucionalidade superveniente refere-se, em princípio, à contradição dos actos normativos com as nor- mas e princípios materiais da Constituição e não à sua con- tradição com as regras formais ou processuais do tempo da sua elaboração. O princípio tempus regit actum leva a dis- tinguir dois efeitos no tempo: a aprovação da norma rege- se pela lei constitucional vigente nesse momento; a aplica- ção da mesma norma tem de respeitar os princípios e nor- mas constitucionais vigentes no momento em que se efectiva essa mesma aplicação".

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87. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 1115. A doutrina brasileira não deu maior atenção ao tema, embora se leia em Manoel Gonçalves Ferreira Filho que a "compatibilidade é de con- teúdo, não de forma. A forma é regida pela regra tempus regit actum, de modo que é irrelevante para a recepção". Há registros na jurisprudên- cia recente do Supremo Tribunal Federal endossando a tese. Um prece- dente cuida, precisamente, da competência para edição de normas pro- cessuais pela própria Corte, quando da elaboração ou emenda de seu Regimento, o que era admitido no regime de 1967-69 e não foi contem- plado no texto atual. Ficou decidido: "Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal - Normas processuais. As normas processuais contidas no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal foram recepcionadas pela atual Carta, no que com ela se revelam compatíveis. O fato de não se ter mais a outorga constitucio- nal para edição das citadas normas mediante ato regimen- tal apenas obstaculiza novas inserções no Regimento, fi- cando aquém da derrogação quanto às existentes à época da promulgação da Carta". 88. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira de 1988, cit., v. 1, p. 8. 89. RTJ, 133:33, 1990, Ação Originária n. 32 (AgRg)-DF, rel. Min. Marco Aurélio. V., tam- bém, em igual sentido, RTJ, 133:955, 1990, Embgs. na ADIn 29-RS, rel. Min. Marco Aurélio. Veja-se que é necessário distinguir aqui duas possibilidades diver- sas: a) argüição de inconstitucionalidade formal em face da Constitui- ção em vigor; b) argüição de inconstitucionalidade formal em face da Constituição que presidiu a formação do ato. No primeiro caso, jamais poderá ser pronunciada a inconstitucionalidade, simplesmente porque a questão não pode ser colocada em face do novo ordenamento. Na se- gunda hipótese, decerto não caberá a apreciação da matéria em ação direta, por descaber esta via de controle quando se trate de argüição em face de Constituição já revogada. Essa tem sido a firme posição da juris- prudência do Supremo Tribunal Federal. Nada impede, contudo, que qualquer órgão jurisdicional pronuncie, em concreto, incidentalmente, a invalidade formal de ato que, havendo inobservado os requisitos para sua formação, é inválido ab initio. 90. RTJ, 142:363, 1992, ADIn 3-DF, rel. Min. Moreira Alves: "Há, porém, no caso, impossibi- lidade jurídica do pedido, porquanto esta Corte já firmou jurisprudência no sentido de que a ação direta de inconstitucionalidade não é cabível quando a argüição se faz em face de Constituição já revogada, nem quando o ato normativo impugnado foi revogado antes da propositura dela". Há, por fim, um aspecto de cunho mais especulativo do que prático, mas que pode surgir no âmbito de um Estado Federal e, pois, merece um comentário. É o que diz respeito à superveniência de norma constitucio- nal alterando a regra de competência para produção legislativa. Vale dizer: transferindo para os Estados ou Municípios o que antes era fede- ral, ou vice-versa. A questão a definir é se se está diante de uma incom- patibilidade formal ou material. Pontes de Miranda foi dos únicos a cogitar da matéria, averbando: "Sempre que a Constituição dá à União a competência sobre certa matéria e havia legislação anterior, federal e local, em contradição, a Constituição ab-rogou ou derrogou

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a legislação federal ou local, em choque com a regra jurídi- ca de competência. (...) Se a legislação, que existia, era só estadual, ou municipal, e a Constituição tornou de compe- tência legislativa federal a matéria, a superveniência da Constituição faz contrário à Constituição qualquer ato de aplicação dessa legislação, no que ela, com a nova regra jurídica, seria sem sentido. (...) Se havia legislação federal e estadual e a compe- tência passou a ser, tão-só, do Estado-membro, ou do Mu- nicípio, a legislação federal persiste, estadualizada, ou municipalizada, respectivamente, até que o Estado-mem- bro ou o Município a ab-rogue, ou derrogue". 91. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 1975, v. 6, p. 66-7. Esta posição é seguida por Gilmar Ferreira Mendes, em seu exce- lente Controle de constitucionalidade, onde escreveu: "Evidentemente, não há cogitar de uma federalização de normas estaduais ou municipais, por força de alteração na regra de competência. Nesse caso, há de se reconhecer eficácia derrogatória à norma constitucional que tornou de competência legislativa federal matéria anteriormente afe- ta ao âmbito estadual ou municipal. Todavia, se havia le- gislação federal, e a matéria passou à esfera de competên- cia estadual ou municipal, o complexo normativo promul- gado pela União subsiste estadualizado ou municipalizado, até que se proceda à derrogação por lei estadual ou munici- pal. É o que parece autorizar o próprio princípio da conti- nuidade do ordenamento jurídico". 92. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 88. Um ponto parece ter escapado às duas apreciações acima. É que, mesmo se transferindo para a União a competência legislativa em dada matéria, até que esta seja exercida, subsistirá a norma estadual ou muni- cipal, no âmbito territorial do Estado ou do Município onde já vigia. Vale dizer: embora não se vá cogitar de federalização da norma esta- dual ou local, de modo a estender sua aplicação a outros Estados e Municí- pios, o fato é que, no espaço territorial em que ela já valia, continuará valendo, até ser ab-rogada pela norma federal superveniente. b) Aplicação imediata, mas não retroativa, da Constituição nova Já se deixou assentado, anteriormente, inexistir direito adquirido em face da nova Constituição. Todas as situações jurídicas incompatÍ- veis com o novo texto devem curvar-se à sua supremacia. Não obstante, ficou igualmente assinalado que, embora a nova Constituição possa, validamente, operar efeitos retroativos, terá de fazê-lo expressamente. O que é fora de dúvida é que a Constituição, uma vez promulgada, deve ter efeitos imediatos. 93. Sobre o tema, escreveu o Min. Moreira Alves que "a Constituição se aplica de imediato, alcançando, sem limitações, os efeitos futuros de fatos passados" (RE 117.870-1-RS, Di, 5 maio 1989). Todavia, só haverá retroação por mandamento expresso, como decidiu o Supremo Tribunal Federal no RE 168.618-PR, também relatado pelo Min. Moreira Alves (RTJ, 159:1017,1997): "A Constituição tem eficácia imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade

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mínima). Para alcançar, porém, hipótese em que, no passado, não havia foro especial, que só foi outorgado quando o réu não era mais Prefeito - hipótese que configura retroatividade média, por estar tramitando o processo penal -, seria mister que a Constituição o determinasse expressamen- te, o que não ocorre no caso". Algumas situações de maior complexidade podem advir de tal re- gra, quando, então, impõe-se distinguir a produção de efeitos imediatos da produção de efeitos retroativos. A esse propósito, já decidiu o Supre- mo Tribunal Federal: "Impossível é confundir-se a aplicação imediata com a retroativa, a ponto de comprometer a almejada segurança ju- rídica, o que aconteceria caso viesse a ser admitido verdadei- ro "ressuscitamento" de demanda fulminada pela prescrição". 94. RTJ, 143:1009, 1993 (AI 140.751 [AgRg]-RJ, rel. Min. Marco Aurélio). Veja-se, também, RTJ, 138:371 (ADIn 189-RJ, rel. Min. Celso de Mello), em cuja ementa se lê: "A inoponibilidade de situações jurídicas consolidadas a quanto prescrevem normas constitucionais supervenientes deriva da supremacia, formal e material, de que se revestem os preceitos de uma Constituição". A matéria dizia respeito à introdução, no Texto Constitucional, de regra específica dilargando o prazo de prescrição das ações trabalhistas para cinco anos (art. 5º, XXIX), em contraposição à regra ordinária até então vigente (CLT, art. 11), que previa o prazo de dois anos. O efeito da tal modificação sobre os processos já ajuizados foi amplamente debati- do perante a mais alta Corte, que produziu farta jurisprudência, a seguir compendiada: "Se a questão da prescrição há de ser decidida segundo o direito vigente ao tempo da propositura da ação, quando dela só cuidava a legislação ordinária, a sua natureza infraconstitucional não se altera com o fato de a Constitui- ção posterior haver constitucionalizado a norma legal pre- cedente, salvo se a essa promoção da matéria na hierarquia da ordem jurídica se emprestasse efeito retroativo". 95. RTJ, 141:311, 1992, AI 135.521 (AgRg-EDcl)-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence. "Prescrição trabalhista. Mesmo estando em curso o processo quando da promulgação da Constituição de 1988, não se sujeita a seu art. 7º, XXIX, o prazo anteriormente consumado". 96. RTJ, 141:314, 1992, AI 136.489 (AgRg)-DF, rel. Min. Octávio Gallotti. "A norma do art. 7º, XXIX, a, da CF/88 teve o efeito de alargar, para 5 anos, o prazo prescricional das ações do trabalhador urbano, decorrentes do contrato de trabalho, propostas no curso do contrato, não se aplicando, obvia- mente, a ações já em curso quando de seu advento". 97. RTJ, 140:1013, 1992, AI 139.155 (AgRg)-RJ, rel. Min. Ilmar Galvão. Outra questão interessante, afeta ao tema da aplicação imediata de normas da nova Constituição, foi apreciada pela Suprema Corte. Previu a Carta de 1988, no art. 102, I, n, ser da competência originária do Su- premo Tribunal Federal "a ação em que todos os membros da magistra- tura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados".

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Em ação proposta perante a Justiça Estadual de São Paulo, em que havia interesse de toda a magistratura estadual, inclusive dos membros do Tribunal, a decisão de primeiro grau foi favorável aos autores. Inter- posto recurso de apelação pelo Estado, que era réu, sobreveio a Consti- tuição de 1988, que continha a prescrição do art. 102, I, n, acima trans- crita. Diante disso, a 1ª Câmara cível do Tribunal de Justiça, por maio- ria, não conheceu do recurso, à vista de a Constituição Federal ter trans- ferido a competência na matéria para o Supremo Tribunal Federal. Tal decisão, evidentemente, suprimia o segundo grau de jurisdição, de vez que não poderia ser apreciada a apelação tempestivamente apre- sentada. O voto vencido entendeu no sentido de que a regra constitucio- nal só valia para as ações a serem propostas, mas não para situações como aquela, por isso que haveria para o apelante o direito processual adquirido de ver conhecido o recurso de acordo com a lei do momento de sua interposição. Em decisão singular, o Supremo entendeu ser ele o órgão compe- tente para conhecer e julgar o recurso de apelação, em voto da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, assim fundamentado: "Não tenho dúvida de seguir a consideração lateral do Ministro Moreira Alves (na AOE 8 [QO], MG): válida a sentença - independentemente de cogitar-se de interesse de seu prolator - porque exarada antes da Constituição, ao STF incumbirá julgar a apelação. (...) Uma vez, porém, que se entenda que, agora, a apela- ção deva ser conhecida pelo STF, não terá havido supres- são retroativa de recurso interposto, mas aplicação ime- diata da regra de alteração da competência funcional para julgá-lo. (...) Assim, declaro competente o Supremo para o julga- mento da apelação: é o meu voto". 98. RTJ, 130:471, 1989, Ação Originária n. 12 (QO)-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence. Louvável a decisão da Corte, que, mesmo subvertendo a ortodoxia processual, cuidou de evitar que a aplicação imediata da nova Carta afetasse negativamente a situação processual da parte apelante. Tal de- cisão é coerente com a idéia, que se afigura legítima, de que na aplica- ção imediata das normas constitucionais deve o intérprete cuidar que a incidência do preceito não comprometa situações jurídicas já aperfeiçoa- das sob o domínio do ordenamento anterior. c) Declaração de inconstitucionalidade e efeito repristinatório As leis, desde o momento em que se tornam obrigatórias, põem-se em conflito com as que, anteriormente, regulavam a matéria de que elas se ocupam, regulando-a por outro modo. Instaura-se, assim, o conflito de leis no tempo, já estudado, e que se resolve pelo princípio geral da irretroatividade e pelas regras do direito intertemporal. Uma dessas regras é a de que lex posterior derogat priori. Essa revogação poderá dar-se, nos termos do § 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, por declaração expressa, por incompatibilidade ou por regular a lei nova, inteiramente, a matéria de que tratava a anterior. Operada a revogação, a lei anterior deixa de existir no mundo jurídico, e o máximo de reverência que se lhe presta é o eventual respeito a determinadas conseqüências que haja produzido durante seu ciclo de vigência. 99. Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, 1976, p. 25. Comentando o tema, observou Oscar Tenório que o advento de uma lei resulta às vezes na morte de outra. Mas essa lei revogada não ressusci- ta, mesmo quando a lei que a eliminou do mundo jurídico também vem a

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se extinguir. Somente por disposição expressa do legislador a lei morta ressuscita, volta a ocupar lugar no sistema jurídico do país. A lei que eventualmente determine a restauração da lei que se encontrava revogada recebe a denominação de lei repristinatória, ou lei de efeito repris- tinatório. Essa é a doutrina generalizadamente aceita, que tem a chan- cela dos principais autores. No Brasil, há regra positiva a respeito, ins- crita no § 3º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis: "§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência". 100. Oscar Tenório, Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, 1955, p. 92. 101. Vejam-se, por todos, Hans Kelsen, Teoria geral das normas, 1986, p. 135; Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, 1987, p. 195, e José de Oliveira Ascensão, O direito, Introdução e teoria geral, 1993, p. 290. O tema, até aqui pacífico, enfrenta, todavia, alguns embaraços doutrinários e práticos que precisam ser equacionados. A lei posterior, já se remarcou, revoga a anterior, nas hipóteses previstas. O que acontece, no entanto, quando a lei que operou a revogação da lei anterior vem a ser declarada inconstitucional? Esclareça-se, desde logo, que só é relevante, aqui, a declaração de inconstitucionalidade que produza efeitos erga omnes, pois a que opera efeitos meramente inter partes jamais terá qual- quer repercussão sobre a subsistência ou eficácia da lei. Recoloca-se a questão: declarada a inconstitucionalidade da lei revogadora, a lei revogada permanece assim ou ressurge, por força da repristinação? 102. Produz efeitos erga omnes a pronúncia de inconstitucionalidade em ação direta de inconstitucionalidade (CF, arts. 102, I, a, e 125, § 2º) e em via incidental, quando observados os requisitos constitucionais (CF, arts. 52, X, e 97). Em outro estudo no qual se fez breve incursão na teoria dos atos jurídicos e da inconstitucionalidade, deixamos averbado que as normas jurídicas devem ser analisadas nos planos distintos da existência, vali- dade e eficácia. Já não mais se disputa, na melhor doutrina, que o exame da constitucionalidade de uma lei situa-se no plano de validade, embora a decisão, naturalmente, traga repercussões à existência e eficá- cia da norma. De regra, todos os efeitos produzidos por uma norma inconstitucional devem ser fulminados. Nota típica do sistema brasilei- ro de controle de constitucionalidade é a cominação de nulidade - e não de mera anulabilidade - ao ato normativo incompatível com a Constituição, dando-se à decisão que pronuncia a inconstitucionalidade caráter declaratório e efeitos ex tunc, isto é, retroativos à data de início de vigência da lei. 103. V. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 74 e s. 104. No sistema português, esta também é a regra (art. 282, 1), mas contempla-se uma exceção (art. 282, 4), assim consignada: "Quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos ns. 1 e 2". No Brasil,

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tanto a doutrina como a jurisprudência têm relutado em admitir, formalmente, a introdu- ção de exceção à regra geral da eficácia retroativa, embora haja projeto de lei no Con- gresso nesse sentido. Deve-se consignar, todavia, que o Supremo Tribunal Federal tem pelo menos uma linha jurisprudencial de atenuação do caráter absoluto da eficácia ex tunc das decisões de inconstitucionalidade, referente à não-restituição de remuneração recebida de boa-fé com base em norma posteriormente invalidada. Confira-se, ilustrativamente, a decisão proferida no RE 122.202-6-MG, rel. Min. Francisco Rezek: "A retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei de origem, mas tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade" (RDA, 202:161, 1995). A atitude do intérprete, portanto, deve ser a de ignorar ou desfazer os efeitos dos atos inconstitucionais, repondo a ordem jurídica e fática no status quo ante. Assim também ensina, em Portugal, Marcelo Rebelo de Souza: "Uma conseqüência primária da inconstitucionalidade é, em geral, a desvalorização da conduta inconstitucional, sem a qual a garantia da Constituição não existiria. Para que o princípio da Constitucionalidade, expressão supre- ma e qualitativamente mais exigente do princípio da Lega- lidade em sentido amplo, vigore é essencial que, em regra, uma conduta contrária à Constituição não possa produzir cabalmente os exactos efeitos jurídicos que, em termos normais, lhe corresponderiam". 105. Marcelo Rebelo de Souza, O valor jurídico do acto inconstitucional, 1988. A premissa da não-admissão de efeitos válidos decorrentes do ato inconstitucional conduz, inevitavelmente, à tese da repristinação da norma revogada. É que, a rigor lógico, sequer se verificou a revogação no plano jurídico. De fato, admitir-se que a norma anterior continue a ser tida por revogada importará na admissão de que a lei inconstitucional inovou na ordem jurídica, submetendo o direito objetivo a uma vontade que era vicia- da desde a origem. Não há teoria que possa resistir a essa contradição. 106. Não obstante o afirmado, há autores que se opõem ao efeito repristinatório, invocando razões de conveniência, como a dificuldade de adequação da norma repristinada ao sistema, e mesmo a possível inconstitucionalidade, superveniente ou não, da norma primitiva. Jorge Miranda (Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 254) faz um levantamento dos autores que sustentam esse ponto de vista, a saber: E. Redenti (Legittimità delle leggi e Corte Costituzionale, Milano, 1957, p. 77-8), Temistocle Martines (Contributo ad una teoria giuridica delle forze politiche, Milano, 1957, p.295 e s.), Pietro Virga (Diritto costituzionale, 1967, p. 685, nota), Franco Modugno (Problemi e pseudo-problemi relativi alle C. d. revivescenza di dispositivi abrogate da legge dichiarata incostituzionale, in Studi in memoria di Carlo Esposito, Padova, 1972, p. 647 e s.). A mais expressiva doutrina portuguesa, interpretando norma cons-

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titucional que, expressamente, contempla a repristinação na hipótese aqui versada, é pacífica a respeito. Gomes Canotilho e Vital Moreira escreveram a propósito: "Se o juízo de inconstitucionalidade afecta a validade da norma desde a sua origem, de tal modo que a declaração de inconstitucionalidade possui efeitos ex tunc (desde a ori- gem da norma), então há-de ficar sem efeito o próprio acto de revogação efectuado pela norma afinal inconstitucional, pelo que o juízo de inconstitucionalidade implica a repristinação (ou reposição em vigor) das normas que ti- nham sido revogadas". 107. Dispõe o art. 282, 2: "A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado". 108. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 276. Na mesma linha, Jorge Miranda, notável mestre da Universidade de Lisboa, distinguindo as hipóteses de inconstitucionalidade originária e de inconstitucionalidade superveniente (v. supra): "Existirá, porém, repristinação em caso de incons- titucionalidade originária? Cremos que sim, a menos que o órgão de fiscalização, tendo o poder de determinar os efei- tos da inconstitucionalidade, disponha diferentemente. Já não no caso de inconstitucionalidade superveniente, visto que a revogação coincide com a emanação do acto legislativo que fora válido". 109. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 254-5, onde invoca as lições de Mauro Cappelletti (Effetti preclusivi nel processo civile delle pronuncie costituzionali, in Studi in onore di Emilio Crosa, Milano, 1960, v. 1, p. 363), C. Mortati (Istituzioni di diritto pubblico, p. 996-7) e outros. Mesmo à falta de disposição constitucional expressa, este é o enten- dimento que melhor se harmoniza com o sistema brasileiro. O pró- prio Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao estabelecer os efeitos da suspensão liminar da eficácia de uma lei cuja inconstitucionalidade foi argüida, já decidiu: "A suspensão liminar da eficácia da lei torna aplicável a legislação anterior acaso existente, e não impede que se edite nova lei, na conformidade das regras constitucionais inerentes ao processo legislativo". 110. Sobre o tema, assim opinou Lúcio Bittencourt (O controle da constitucionalidade das leis, cit., p. 147): "Em nosso regime, se a lei deve ser considerada como ineficaz para todos os efeitos, é claro que também há de ser inoperante quanto à revogação dos textos legais cujo lugar, se fosse válida, teria passado a preencher. O assunto, porém, há de ser convenientemente examinado en cada caso concreto, podendo-se, excepcionalmente, chegar a solução diversa". 111. RTJ, 120:64, 1987, Rep. n. 1 .356-AL, rel. Min. Francisco Rezek. E, mais recentemente:

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"A suspensão cautelar da eficácia do ato normativo impugnado em ação direta - não obstante restaure, provisoriamente, a aplicabilidade da legislação anterior por ele revogada - não inibe o Poder Público de editar novo ato estatal, observados os parâmetros instituídos pelo sistema de direito positivo" (RTJ, 146:461, 1993, ADIn 652-MA, rel. Min. Celso de Mello). E, especificamente sobre a questão do juízo de mérito na fiscaliza- ção abstrata, o Supremo Tribunal Federal já deixou consignado: "A declaração de inconstitucionalidade em tese encer- ra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao Supremo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento positivo a manifestação esta- tal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política, com todas as conseqüências daí decorrentes, in- clusive a plena restauração de eficácia das leis e das nor- mas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Esse po- der excepcional - que extrai a sua autoridade da própria Carta Política - converte o Supremo Tribunal Federal em verdadeiro legislador negativo". 112. RTJ, 146:461, 1993, ADIn 652-MA, rel. Min. Celso de Mello. d) Situações processuais específicas (1) Efeitos do advento da nova Constituição sobre as ações diretas de inconstitucionalidade anteriores O controle de constitucionalidade em tese, por via de ação direta, não se destina à tutela de situações jurídicas individuais. Sua finalidade principal é a de assegurar a supremacia da Constituição e a conseqüente conformação de toda a ordem jurídica. Disso resulta que só deve caber o controle de constitucionalidade, em via principal, perante Constituição em vigor. Fugiria ao desiderato de guarda da Constituição a possibilida- de de se pronunciar, em tese, a inconstitucionalidade de uma norma em face de Constituição anterior, já revogada. Disso resulta que, promulgada uma nova Constituição, não é possí- vel prosseguir-se no exame de inconstitucionalidade, in abstracto, de lei ou ato normativo em confronto com o texto constitucional já revoga- do. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacificamente cris- talizada nos termos da ementa a seguir transcrita: "Representação por inconstitucionalidade de lei. O ob- jetivo da representação é resguardar a ordem jurídica inserida na Constituição em vigor ao tempo do seu ajuizamento. Se a Constituição deixou de vigorar no curso da ação, esta fica prejudicada. É o que se deu, no caso, em face do advento da Constituição de 1988. 113. RTJ, 128:606, 1989, Rep. n. 1.533-PA, rel. Min. Djaci Falcão. Vejam-se, no mesmo senti- do, em meio a diversas outras decisões: RTJ, 130:1002, 1989, 130:1010, 1989, e 142:787, 1992. É indiferente, aqui, a circunstância de a ação já se encontrar ajuiza- da quando do advento da nova Carta. De fato, quando entrou em vigor a Constituição de 1988, todas as ações diretas de inconstitucionalidade pendentes de julgamento ficaram prejudicadas. Essa linha de entendi- mento já se firmara desde o advento da Constituição de 1967, quando, na Representação n. 765, do Ceará, decidiu-se: "A particularidade concernente ao tempo da revoga- ção da Constituição Federal, se antes ou depois do ajui-

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zamento de ação declaratória de inconstitucionalidade, não altera a doutrina que informa o precedente deste Plenário: apenas recomenda o não-conhecimento da representação, se ao tempo de sua propositura já não vigorava a Consti- tuição que teria sido ofendida; enquanto que, na outra hi- pótese, em que a Constituição cuja integridade se pretende resguardar, foi revogada no curso da ação direta, a boa téc- nica aconselha que o pedido seja julgado prejudicado". 114. Representações por inconstitucionalidade, t. III, p. 59. O trecho transcrito, extraído do voto do Relator, Min. Soares Muñoz, encontra-se reproduzido na RTJ, 128:606, 1989, p. 607. Mesmo em se tratando de representação ou ação direta em que já houvesse sido concedida liminar, a sobrevinda do novo texto constitucio- nal implicará a cassação da medida, ficando prejudicado o pedido princi- pal. O Supremo ressalva, apenas, a possibilidade de se utilizarem outros meios processuais para impedir a eficácia da norma. Não se cogitou do aproveitamento da ação já proposta, por economia processual, na hipóte- se de a norma impugnada ser também inconstitucional em face da nova Constituição. Tal possibilidade, aliás, enfrentaria o obstáculo da jurispru- dência consolidada de que, sendo a norma anterior à Constituição, não se presta a controle por ação direta, por se encontrar revogada (v. supra). 115. RTJ, 129:61, 1989, Rep. n. 1.528-RJ, rel. Min. Aldir Passarinho. O Superior Tribunal de Justiça, em ação civil pública ajuizada para a defesa de interesses individuais homogêneos dos munícipes em relação à cobrança de taxa de iluminação pública que se reputava ilegítima, admitiu a medida, consignando: "O incabimento de ação direta de declaração de inconstitucionalidade, eis que as leis municipais ns. 25/77 e 272/85 são anteriores à Constituição do Estado, justifica, tam- bém, o uso da ação civil pública, para evitar as inumeráveis demandas judiciais (economia proces- sual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas questões jurídicas. Recurso conhecido e provi- do para afastar a inadequação, no caso, da ação civil pública, para evitar as inumeráveis demandas judiciais (economia processual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas questões jurídicas" (REsp. 49.272-6-RS, rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU, 17 out. 1994, p. 27868). (2) Revogada a lei cuja inconstitucionalidade se argüia, a ação di- reta perde o objeto Como já se assinalou, a finalidade precípua do controle em tese de constitucionalidade é o resguardo da ordem constitucional como um todo, e não a tutela de situações jurídicas individuais. Para tal fim existem as dife- rentes ações judiciais a que se legitimam os titulares de pretensões de direi- to material. Dentro de tal concepção, parece intuitivo que só se possa propor ou continuar processando uma ação direta de inconstitucionalidade se e enquanto se encontrar em vigor a norma contrastante com a Constituição. Curiosamente, prevaleceu na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por longo período, ponto de vista diverso. Entendia-se que, mes- mo revogada a lei objeto de argüição de inconstitucionalidade, subsistia o interesse em prosseguir com a ação, sempre que houvesse a possibili- dade de a lei ter produzido efeitos e afetado situações jurídicas indivi- duais. Reiteradas vezes pronuncIou-se a Corte no sentido de que "a re-

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vogação superveniente da lei acoimada de inconstitucional não tem o condão, só por si, de fazer extinguir o processo de controle concentrado de constitucionalidade". 116. V. RTJ, 54:710, 1970,55:562, 1971,87:758, 1979,89:367, 1979, 100:467, 1982; RDA, 140:141,1980, 145:131, 1970,e152:166, 1983. Todavia, em decisão relativamente recente, proferida na Ação Dire- ta de Inconstitucionalidade n. 709-2-PR, da qual foi Relator o Ministro Paulo Brossard, a Corte reverteu essa orientação, passando a entender ficar prejudicada a ação se ocorresse a revogação da lei argüida de inconstitucionalidade. Esse acórdão vem sendo reiterado. De fato, de- cidiu o Plenário da Corte, por maioria, em julgamento subseqüente: "Revogada a lei argüida de inconstitucional, é de se reconhecer, sempre, a perda de objeto da ação direta, re- velando-se indiferente, para esse efeito, a constatação, ain- da casuística, de efeitos residuais concretos gerados pelo ato normativo impugnado". 117. DJU, 20maio 1994,p. 12247. 118. V. ADIn 93-4-DF, rel. Min. Francisco Rezek, DJU, 28 abr. 1993, p. 7378-9. Em igual sentido, v.RDA, 195:79, 1994, ADIn 221, rel. Min. Moreira Alves, e RTJ, 152:731, 1995, ADIn 539-DF, rel. Min. Moreira Alves. De modo que, presentemente, à luz da jurisprudência da mais alta Corte, sendo revogada a lei contra a qual se ajuizou ação direta de inconstitucionalidade, perde o objeto a ação proposta, ou, mais tecnica- mente, verifica-se a perda superveniente do interesse processual, haja vista que a medida deixa de ser útil e necessária. e) Normas infraconstitucionais não recepcionadas pela Constituição de 1988 Já se examinou acima, exaustivamente, a cristalização da jurisprudên- cia do Supremo Tribunal Federal no sentido de não ser cabível ação direta de inconstitucionalidade na hipótese de lei anterior à Constituição em vigor. Mas, em casos concretos, os tribunais, e, inclusive, a Suprema Corte, têm- se pronunciado sobre a recepção ou não de normas legais relevantes, edita- das antes de 5 de outubro de 1988. Confiram-se algumas delas. Conforme estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, não mais subsistem as leis editadas sob regimes constitucionais anteriores que deferiam a titularidade do poder de agir, mediante ação penal pública, a magistrados, a autoridades policiais ou a outros agentes administrati- vos, como sucedia com relação aos crimes militares no âmbito do Exér- cito e das Polícias Militares. A Constituição deferiu ao Ministério Pú- blico o monopólio da ação penal pública (art. 129, I). Essa cláusula de reserva sofre apenas uma exceção, constitucionalmente autorizada, na hipótese singular de inércia do Parquet (art. 5º, LIX). 119. V. RTJ, 134:369, 1990, RHC 68.314, rel. Min. Celso de Mello; RTJ, 135:1032, 1991, RHC 68.265, rel. Min. Sydney Sanches; RTJ, 136:226, 1991, HC 68.578, rel. Min. Carlos Velloso. É digno de nota, igualmente, que a jurisprudência, na vigência da Carta de 1988, firmou-se no sentido de não estarem recepcionadas, em princípio, as limitações baseadas em idade para inscrição em concurso público. Com isso, insubsistem as normas legais e regulamentares que fixavam o limite máximo de trinta e cinco anos, salvo nas hipóteses em que a imposição se possa legitimar pela natureza do cargo. 120. RDA, 184:130,1991,189:222, 1992,e191:143, 1993.

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O Superior Tribunal de Justiça já decidiu não haver sido recepcionada a norma do § 6º do art. 26 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n. 35/79), prevendo julgamento em sessão secreta do Tribunal ou de seu Órgão Especial. Entendeu o Tribunal não ser com- patível com o art. 93, IX, da Carta Federal, que exige que todos os julga- mentos sejam públicos, a proibição da presença do magistrado e seu advogado no recinto da sessão, no momento da votação de que resultou a pena de indisponibilidade. 121. RT, 697:183, 1993, RMS 1.932, rel. Min. Costa Lima. O mesmo Superior Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sen- tido de não se encontrarem mais em vigor os parágrafos do art. 15 da Lei das Desapropriações (Decreto-Lei n. 3.365/41). Nessa conformida- de, não mais se admite a imissão na posse do bem pelo Poder Público mediante depósito de valor meramente simbólico do montante da inde- nização, por ser isso incompatível com o princípio da prévia e justa indenização. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em repetidas decisões, vem afirmando a recepção dos referidos dispositivos, visto que o princípio constitucional da prévia e justa indenização (CF, art. 5º, XXIV) é de ser observado com o pagamento do valor definitivo da ex- propriação, ou seja, quando ocorre a transferência do domínio. Não, desde logo, na oportunidade do depósito prévio para fins de imissão provisória na posse do imóvel. A posição do Supremo Tribunal Fede- ral, com toda a vênia devida, transige com a irresponsabilidade de governantes que desapropriam sem os recursos necessários e dá ao Po- der Público o bônus decorrente da morosidade da justiça. 122. "Apenas o caput do art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/41 foi recepcionado pela nova Carta. São incompatíveis como princípio constitucional da prévia ejusta indenização os demais parágra- fos do art. 15 referido, bem assim os arts. 3º e 4º do Decreto-Lei n. 1.075/70" (STJ, DJU, 16 nov. 1992, p. 21127, REsp 22604-SP, rel. Min. Peçanha Martins). No mesmo sentido o Tribunal de Justiça de São Paulo (RT, 669:99, 1991,671:104, 1991, e 696:93, 1993). 123. RTJ, 159:1054,1997,164:387,1998; RT, 752:125, 1998. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu que o art. 36, II, da Lei n. 6.515/77, que previa como óbice à conversão da separa- ção em divórcio o não-pagamento de pensão alimentícia devida, não foi recepcionado. Isso porque o art. 226, § 6º, da Constituição não exige outra coisa para o divórcio que não a separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. 124. RT, 697:69, 1993. Há divergência na jurisprudência sobre a subsistência ou não, após a Constituição de 1988, da norma que permite a prisão civil do alienante fiduciário, uma vez que equiparado ao depositário infiel (Decreto-Lei n. 911/69, art. 1º). O Superior Tribunal de Justiça já considerou não ter sido a norma recepcionada, pois o art. 5º, LXVII, da Constituição em vigor, ao omitir a cláusula final "na forma da lei", constante do art. 153, § 17, das Cartas de 1967-69, impediu que se desse ao alienante fiduciário o tratamento de depositário. Veja-se elucidativo acórdão: "Constitucional. Prisão civil. Habeas corpus. Aliena- ção fiduciária em garantia. Interpretação do art. 66 da Lei n. 4.728/65, alterado pelo Decreto-lei n. 911/69, em face do art. 5º, LXVII, da Constituição em vigor. Crítica à juris- prudência firmada ao tempo da ordem constitucional ca- duca (art. 153, § 17).

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O instituto da alienação fiduciária em garantia se tra- duz em uma verdadeira aberratio legis. O credor fiduciário não é proprietário; o devedor fiduciário não é depositário; o desaparecimento involuntário do bem fiduciado não se- gue a milenar regra da res perit domino suo. Talvez pudes- se configurar em penhor sine traditione rei, nunca em "de- pósito". O legislador ordinário tem sempre compromisso com a ordem jurídica estabelecida. Na verdade, o que a lei (Decreto-lei n. 911/69, ao alterar o art. 66 da Lei de Merca- do de Capitais) fez foi reforçar a garantia contratual mediante prisão civil, o que contraria toda nossa tradição jurídica, que tem raízes profundas no sistema jurídico ocidental. A "prisão civil por dívida do depositário infiel", do art. 5º, LXVII, da Constituição, só pode ser aquela tradicional (CC, art. 1265)". 125. RHC 4.849-PR, DJU, 11 mar. 1996, p. 6664, rel. Min. Adhemar Maciel. No mesmo sentido, RT, 743:203, 1997, 751:207, 1998. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, entretanto, o tema já se pacificou no sentido da recepção das normas do Decreto-Lei n. 911/69, e da conseqüente constitucionalidade da prisão civil na alienação fiduciária em garantia: "A prisão de quem foi declarado, por decisão judicial, como depositário infiel é constitucional, seja quanto ao depósito regulamentado no Código Civil como no caso de alienação protegida pela cláusula fiduciária". 126. RTJ, 164:213, 1998, HC 73.044-SP, rel. Min. Maurício Corrêa. Merece destaque, no particular, o voto vencido do Min. Marco Aurélio, no qual averbou: "Cabe frisar que foi suprimida da Carta cláusula, para alguns, viabilizadora da extensão ocorrida. A de 1988, ao contrário das de 1967 e 1969, não reproduziu a referência "na forma da lei". Precisa, visando a evitar dúvidas, veio à balha com preceito categórico proibitivo da espécie de prisão - por dívida civil - exceto quanto aos dois casos suficientemente definidos. Assim, o mecanismo de proteção a alguns credores, como é o caso do fiduciário, por sinal conhecido do Direito Romano, ainda que revestido, formal e legal- mente, da roupagem própria ao depósito, não subsiste, porquanto incompatível com os novos ares democráticos e liberais decorrentes da Carta de 1988". Relativamente ao art. 5º, LXIII, da Constituição de 1988, que assegu- ra ao "preso" o direito de permanecer em silêncio, o Supremo Tribunal Federal considerou não recepcionado pela Constituição a parte final do art. 186 do Código de Processo Penal onde se afirma que o silêncio do réu poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa. Em verdadeira interpretação construtiva do preceito constitucional, dele extraindo o prin- cípio do privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se detegere), o Supremo estendeu-o também a "qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado", apesar de o texto do inciso LXIII se referir somente ao "preso". E, com base no referido princípio, entendeu não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho para fins de perícia criminal (CPP, art. 174, IV), caben- do apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio. Este o registro, exemplificativo e casuístico, de algumas leis de maior

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alcance que têm sido pronunciadas como revogadas, por incompatibili- dade com a nova ordem constitucional. 127. RT, 753:538,1998. 128. RTJ, 141:512, 1992, HC 68.929-SP, rel. Min. Celso de Mello. 129. RT, 760:542,1999, HC 77. 135-8-SP, rel. Min. Ilmar Galvão. PARTE II - A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo 1 MÉTODOS E CONCEITOS CLÁSSICOS APLICADOS A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 1. Introdução A hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do direito. A interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto. A aplicação de uma norma jurídica é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efe- tiva incidência do preceito sobre a realidade de fato. Esses três conceitos são marcos do itinerário intelectivo que leva à realização do direito. Cui- dam eles de apurar o conteúdo da norma, fazer a subsunção dos fatos e produzir a regra final, concreta, que regerá a espécie. 1. Vejam-se, por todos, Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, 1987, p. 127 e s.; Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 1981, p. 1-10; Oswaldo Aranha Ban- deira de Mello, Princípios gerais de direito administrativo, 1969, p. 342; Luís Fernando Coelho, Lógica jurídica e interpretação das leis, 1979, p. 53 e s. V., também, José Alfredo de Oliveira Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, 1981, p. 49 e s., onde se faz amplo levanta- mento da doutrina estrangeira sobre o tema. 2. Na pertinente anotação de Recaséns Siches, o processo de produção do direito continua na obra do intérprete, a quem cabe, não a valoração abstrata, mas a valoração concreta (Nueva filosofía de la interpretación del derecho, 1980, p. 288-9). A interpretação constitucional exige, ainda, a especificação de um outro conceito relevante, que é o de construção. Por sua natureza, uma Constituição contém predominantemente normas de princípio ou es- quema, com grande caráter de abstração. Destina-se a Lei Maior a al- cançar situações que não foram expressamente contempladas ou deta- lhadas no texto. Enquanto a interpretação, ensina Cooley, é a arte de encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção sig- nifica tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São con- clusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma. A interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a constru- ção vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas. 3. V. Thomas Cooley, A treatise on the constitutional limitations, 1890, p. 70. J. H. Meirelles Teixeira, citando a lição de Black, constante de seu Handbook on the construction and interpretation

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of the laws, transcreveu que construção é "a arte ou processo de descobrir e expor o sentido e a intenção dos autores da lei tendo em vista sua aplicação a um caso dado, onde essa intenção se apresente duvidosa, quer por motivo de aparente conflito entre dispositivos ou diretivas, quer em razão de que o caso concreto não se ache explicitamente previsto na lei" (Curso de direito constitu- cional, 1991, p. 269). V., também, Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudan- ça da Constituição, 1986, p. 134 e s. 4. Construction, in Black’s law dictionarv, 1979. V., também, José Alfredo de Oliveira Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, p. 47. A interpretação constitucional serve-se de alguns princípios próprios e apresenta especificidades e complexidades que lhe são inerentes. Mas isso não a retira do âmbito da interpretação geral do direito, de cuja natureza e características partilha. Nem poderia ser diferente, à vista do princípio da unidade da ordem jurídica e do conseqüente caráter único de sua interpretação. Ademais, existe uma conexão inafastável entre a interpretação constitucional e a interpretação das leis, de vez que a ju- risdição constitucional se realiza, em grande parte, pela verificação da compatibilidade entre a lei ordinária e as normas da Constituição. 5. Neste sentido, vejam-se K. Larenz, Metodología de la ciencia del derecho, 1980; Alberto Ramón Real, Los métodos de interpretación constitucional, RDP, 53-54:50, 1980, p. 51; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 227; José Alfredo de Oliveira Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, p. 49. Vejam-se, para uma ampla discussão sobre o tema, com levantamento do grupo minoritário de autores que defende opinião contrária, Pietro Merola Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, 1978, p. 87 e s., e Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, 1988, p. 1-6. 6. V. Carmelo Carbone, L´interpretazione delle norme costituzionali, 1951, p. 11: "La teoria dell’interpretazione non può che essere unica, poichè le norme dell’interpretazione, che pongono le basi del procedimento interpretativo, riguardano l’intero ordinamento giuridico". Vejam-se, também, Alberto Ramón Real, Los métodos de interpretación constitucional, RDP, 53-54:50, p. 51, e Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, 1988, p. 119. 7. V. Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, cit., p. 119-20, e Jerzy Wróblewski, Constitución y teoría general de la interpretación jurídica, 1988, p. 94. As Constituições não costumam trazer regras sobre a sua própria interpretação ou para a do direito dela derivado. No sistema brasileiro, são escassas as regras de interpretação positivadas em texto legal. As existentes concentram-se na Lei de Introdução ao Código Civil, que, ao lado de normas sobre vigência das leis, direito intertemporal e direito internacional privado, consagrou apenas duas proposições afetas ao tema:

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uma sobre integração ("Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito") e outra de cunho teleológico ("Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum"). A doutrina converge no sentido de que as normas sobre inter- pretação, ainda quando constantes do Código Civil ou de um texto que se lhe anteponha, revestem-se de cunho materialmente constitucional. 8. Antonio Pensovecchio Li Bassi, L’interpretazione delle norme costituzionali, 1972, p. 34. Ricardo Lobo Torres (Normas de interpretação e integração do direito tributário, cit., p. 10) lembra uma exceção, representada pela Constituição do México, que, no § 4º do art. 14, estabelece que "la sentencia definitiva deverá ser conforme a la letra o a la interpretación jurídica de la ley". 9. V., também, CPC, art. 126, onde se faz, igualmente, referência à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. Os Códigos Civis espanhol e português contêm detalhadas, por vezes prolixas, normas sobre interpretação jurídica. Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, cit., p. 6 e s., faz um amplo levantamento sobre normas de interpretação constantes dos Códigos Civis de países europeus, como França, Alemanha, Áustria, Itália e Suíça. 10. Nesse sentido, Raul Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 88-9, Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 230-1, e Fran Figueiredo, Introdução à interpretação constitucional, RILSF, 87:175, 1985, p. 194-5. Toda norma jurídica, e, ipso facto, toda norma constitucional, pre- cisa ser interpretada. Interpretam-se todas as leis, sejam claras ou obscu- ras, pois não se deve confundir a interpretação com a dificuldade de interpretação. Não se partilha, aqui, da posição de Konrad Hesse, que nega o caráter de interpretação à atividade de revelar o conteúdo da norma constitucional quando "não se suscitam dúvidas". Embora haja recuperado algum prestígio após décadas de rejeição, a máxima in claris cessat interpretatio há de ter, tão-somente, o sentido de reconhecimento de que a zona de clareza existente na lei enfraquece a atividade do intér- prete, mas não o condena a uma acrítica interpretação literal. 11. Carmelo Carbone, L’interpretazione delle norme costituzionali, cit., p. 13; Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1993, p. 356-7; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 224. 12. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 129. 13. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, 1983, p. 35 e s. Na verdade, o ilustre autor alemão distingue entre mera atuação/realização da Constituição, como ato singelo ou mesmo inconsciente de cumprimento de suas normas; compre- ensão, que é a atividade desenvolvida quando o texto legal é claro e preciso; e interpretação propria-

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mente dita, que é a tarefa mais complexa de revelar o sentido da norma, quando a Constituição não oferece uma resposta concludente. 14. Vejam-se Alípio da Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, 1968, v. 2, p. 30, e Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, cit., p. 45. O objeto da interpretação constitucional é a determinação dos signifi- cados das normas que integram a Constituição formal e material do Esta- do. Essa interpretação pode assumir duas modalidades: a) a da aplicação direta da norma constitucional, para reger uma situação jurídica - por exemplo: a aposentadoria de um funcionário, o reconhecimento de uma imunidade tributária, a realização de um plebiscito sobre a fusão de dois estados etc.; b) ou a de uma operação de controle de constitucionalidade, em que se verifica a compatibilidade de uma norma infraconstitucional com a Constituição. No primeiro caso, a norma constitucional incide como qualquer outra, e, se for instituidora de um direito subjetivo, ensejará a tutela judicial, caso não seja cumprida espontaneamente. No segundo, a norma não vai reger qualquer situação individual, não vai ser aplicada a qualquer caso concreto, funcionando como mero paradigma em face do qual se vai aferir a validade formal ou material de uma lei inferior. 15. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 1991, p. 214: "Interpretar as normas cons- titucionais significa (como toda interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar e mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto constitucional. A interpretação constitucional reconduz-se, pois, à atribuição de um significado a um ou vários sím- bolos linguísticos escritos na constituição". 16. Captando essa dualidade, já assinalada pela doutrina italiana, anotou Frederico Marques: "Quando o tribunal exerce suas atribuições judicantes para compor litígio de natureza constitucional, mas diverso do que existe no controle de constitucionalidade das leis, também se configura exercício de jurisdição constitucional. Há, no caso, questione di costituzionalità, e não, questione di legittimità costituzionale, como observa Franco Pierandrei. O julgamento constitucional, in casu, não é incidental, e sim, principaliter, mas sem os traços do judicial control of legislation. Em tais casos, o exercício da jurisdição constitucional não implica con- trole da constitucionalidade de lei ou ato normativo, e sim, em aplicação pura e simples da norma constitucional, para solucionar a lide" (A reforma do Poder Judiciário, 1979, p. 38-9). V., também, Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constitui- ção, cit., p. 104-5. 2. Peculiaridades das normas constitucionais Embora seja uma lei, e como tal deva ser interpretada, a Constitui- ção merece uma apreciação destacada dentro do sistema, à vista do con- junto de peculiaridades que singularizam suas normas. Quatro delas me- recem referência expressa: a) a superioridade hierárquica; b) a natureza

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da linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter político. 17. Diversos autores procuram assinalar os fatores que conferem especificidade às normas constitucionais e à sua interpretação. A catalogação acima não coincide com a de nenhum deles, embora haja, evidentemente, certas superposiçÕes. Vejam-se, por todos, J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 215 e s.; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 225 e s.; Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 1990, p. 103 e s.; Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 59 e s. A superioridade jurídica, a superlegalidade, a supremacia da Constituição é a nota mais essencial do processo de interpretação constitucional. É ela que confere à Lei Maior o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido. Essa supremacia se afirma mediante os diferentes meca- nismos de controle de constitucionalidade. O tema é objeto de análi- se mais aprofundada logo adiante (v. infra). A natureza da linguagem constitucional, própria à veiculação de nor- mas principiológicas e esquemáticas, faz com que estas apresentem maior abertura, maior grau de abstração e, conseqüentemente, menor densida- de jurídica. Conceitos como os de igualdade, moralidade, função social da propriedade, justiça social, bem comum, dignidade da pessoa huma- na, dentre outros, conferem ao intérprete um significativo espaço de discricionariedade". O problema dessa liberdade de conformação na interpretação judicial é mais agudo nos países de Constituição sintética, onde a plasticidade de certas cláusulas genéricas admite variações entre extremos. Porém, mesmo em Estados que adotam uma Carta analítica - ou casuística, como no caso brasileiro -, a questão se coloca com freqüência. 18. Embora seja um tema mais estudado no campo do direito administrativo, também os juízes exercem competências discricionárias. Haverá discrição judicial sempre que se possa conce- ber que a norma admita mais de uma interpretação razoável. Isso ocorrerá nos chamados hard cases, casos difíceis, em que se abrem para o aplicador da lei possibilidades diversas, todas razoá- veis e dentro do delineamento legal. Sobre o tema, veja-se o instigante trabalho de Ahron Barak, Ministro da Suprema Corte de Israel, publicado nos Estados Unidos sob o título de Judicial discretion, 1991. A rigor técnico, há proximidade, mas não superposição, entre conceitos juridicamente indeterminados e poder discricionário. Não se aprofundará aqui a questão, que poderá ser estudada em José Carlos Barbosa Moreira, Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados, in Temas de direito processual, 4ª série, 1988, p. 65-6. A distinção também é feita por Piero Calamandrei, Opere giuridiche, 1965, v. 1, p. 40, que, após analisar as duas figuras, concluiu: "Se discrezionalità, fenomeno attinente alla volontà e non all´intelligenza, può vedersi quale il giudice

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è in un certo senso arbitro della decisione da darsi al caso concreto, di discrezionalità non si può certo parlare quando l’attività del giudice mira esclusivamente, anzichè a decidere, a integrare e dichiarare la norma giuridica, sotto la guida di regole che non sono scritte nel diritto positivo, ma che sono vive nella coscienza del consociati". 19. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 216, onde se lê: "Situadas no vértice" da "pirâmide normativa", as normas constitucionais apresentam, em geral, uma maior abertura (e, conseqüentemente, uma menor densidade) que torna indispensável uma operação de concretização na qual se reconhece às entidades aplicadoras um "espaço de conformação" ("liber- dade de conformação", "discricionariedade") mais ou menos amplo". 20. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Observações ao Projeto de Constituição da Comis- são de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte, mimeografado, 1987. De parte isto, é bem de ver que o conteúdo de grande parte das dispo- sições materialmente constitucionais refoge à estrutura típica das normas dos demais ramos do direito. A vida jurídica, como se sabe, concretiza-se em um conjunto de ordens e de proibições. O direito, como técnica de disciplina da vida coletiva, destina-se, fundamentalmente, a reger com- portamentos, em função de valores cuja preservação foi tida por convenien- te. As normas que realizam essa finalidade denominam-se normas de con- duta, que representam a maior porção do direito positivo. Essas regras possuem uma composição dúplice, assim fotogrável: prevêem um fato e a ele atribuem uma determinada conseqüência jurídica. 21. Hermes Lima, Introdução à ciência do direito, 1944, p. 111. Existe, por certo, na Constituição certa quantidade de normas dessa natureza, prescrevendo comportamentos e gerando direitos e obrigações. Todavia, o Texto Constitucional também é sede de outra categoria de normas, que são as normas de organização. Não se destinam elas a dis- ciplinar condutas de indivíduos ou grupos; têm um caráter instrumental e precedem, logicamente, a incidência das demais. É que, além de estruturarem organicamente o Estado, as regras dessa natureza discipli- nam a própria criação e aplicação das normas de conduta. As normas de organização não contêm a previsão abstrata de um fato, cuja ocorrên- cia efetiva deflagra efeitos jurídicos. Vale dizer: não se apresentam como juízos hipotéticos. Elas possuem üm efeito constitutivo imediato das situações que enunciam. Não sendo, em princípio, geradoras de direi- tos subjetivos, essas normas não são interpretadas e aplicadas em igual- dade de condições com as normas de conduta. 22. Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, cit., p. 105, após averbar ser uma das singularidades da Constituição a predominância das chamadas "normas de estrutura", tendo por destinatário habitual o próprio legislador ordinário, acrescentou: "Ainda que nos defrontemos com uma Constituição de condutas, não há dúvida que o núcleo das Constituições é formado por um conjunto de normas com caráter eminentemente organizatório, isto é: normas que conferem ou outorgam competências. Não fora assim, a Constituição não cumprida o seu papel fundamental de

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estruturar o Estado". Vejam-se, também, Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Britto, Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, 1982. 23. V. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, 1973, p. 115. Também singulariza o documento constitucional a presença de nor- mas que se dizem programáticas. Contêm elas disposições indicadoras de valores a serem preservados e de fins sociais a serem alcançados. Seu objeto é o de estabelecer determinados princípios e fixar programas de ação. Característica dessas regras é que elas não especificam qualquer conduta a ser seguida pelo Poder Público, apenas apontando linhas dire- toras. Por explicitarem fins, sem indicarem os meios, investem os jurisdicionados em uma posição jurídica menos consistente do que as normas de conduta típicas, de vez que não conferem direito subjetivo em sua versão positiva de exigibilidade de determinada prestação. To- davia, fazem nascer um direito subjetivo negativo de exigir do Poder Público que se abstenha de praticar atos que contravenham os seus dita- mes. Por via de conseqüência, as potencialidades que oferecem são distintas e o intérprete e aplicador da norma tem de ser atento a isso. 24. Sobre este tema, v. nosso O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1993, p. 109 e s. Vejam-se, também: Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, p. 126-7; Celso Antônio Bandeira de Mello, Eficácia das normas constitucionais sobre a justiça social, tese apresentada à IX Conferência Nacional da Or- dem dos Advogados do Brasil, Florianópolis, 1982, p. 18 e 29; Rosah Russomano, Das normas constitucionais programáticas, in As tendências atuais do direito público, 1976, p. 281, e José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1982, p. 19. Por fim, as normas constitucionais são políticas quanto à sua origem, quanto ao seu objeto e quanto aos resultados de sua aplicação. De fato, a Constituição resulta do poder constituinte originário, tido como poder político fundamental. Seabra Fagundes abre sua obra clássica com a afirmação de que o poder constituinte, manifestação mais alta da vontade coletiva, cria ou reconstrói o Estado, através da Constituição. A percep- ção teórica da existência desse poder mais elevado, superior à ordem jurí- dica instituída, remonta à antevéspera da revolução francesa, embora tenha sido posto em prática pela primeira vez na consumação do processo de emancipação dos Estados Unidos da América. Ou, a rigor técnico, com a revolução inglesa e a afirmação do Parlamento em face do monar- ca, em 1689, verdadeiro marco do constitucionalismo moderno. 25. José Alfredo de Oliveira Baracho, Processo constitucional, 1984, p. 355. 26. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1979, p. 3. 27. Emmanuel Joseph Sieyès, Qu´est-ce que le Tiers État?, editado em 1789. Há uma versão portuguesa sob o título de A Constituinte burguesa, 1986. 28. Obra clássica sobre esse período é a de Gordon S. Wood, The creation of the American Republic, 1776-1787, 1972. De fina ironia é a constatação de Hannah Arendt, em seu On revolution. 1987: A triste verdade na matéria é que a Revolução Francesa, que acabou em desastre, ingressou

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na história mundial, enquanto a Revolução Americana, de sucesso tão retumbante, permaneceu como um evento menor". 29. Vejam-se, sobre o tema, Maurice Duverger, Instituciones políticas e derecho constitu- cional, 1984, p. 44 e s.; Marcelo Caetano, Direito constitucional, 1987, v. 1, p. 67 e s.; Luis Sánchez Agesta, Curso de derecho constitucional comparado, 1988, p. 107 e s. De toda sorte, o poder constituinte é revolucionário nas suas raízes históricas e político na sua essência. Ele representa um momento pré- jurídico e, quando exercido em contexto democrático, expressa um mo- mento de especial aglutinação e civismo do povo de um Estado. No caso da Constituição brasileira de 1988, o poder constituinte somente veio a ser exercido, fundado na soberania popular, após longo e penoso período de transição, que sucedeu a fase mais aguda da ditadura militar. Apesar do modelo transacional que ensejou sua convocação, não se deve desmerecer o fato de que a Assembléia Constituinte foi o ponto culminante de um tormentoso processo de resistência democrática, que desaguou em um caudaloso movimento de participação popular na década de 80. A despeito de seu caráter político, a Constituição materializa a ten- tativa de conversão do poder político em poder jurídico. Seu objeto é um esforço de juridicização do fenômeno político. Mas não se pode pretender objetividade plena ou total distanciamento das paixões em um domínio onde se cuida da partilha do poder em nível horizontal e vertical e onde se distribuem competências de governo, administrativas, tributárias, além da complexa delimitação dos direitos dos cidadãos e suas relações entre si e com o Poder Público. Porque assim é, a jurisdi- ção constitucional, por mais técnica e apegada ao direito que possa e deva ser, jamais se libertará de uma dimensão política, como assinalam os autores mais ilustres. Em palavras de Mauro Cappelletti: "O controle judicial de constitucionalidade das leis sempre é destinado, por sua própria natureza, a ter também uma coloração "política" mais ou menos evidente, mais ou menos acentuada, vale dizer, a comportar uma ativa e cria- tiva intervenção das Cortes investidas daquela função de controle, na dialética das forças políticas do Estado". 30. Leve-se em consideração, mas cum grano salis, a advertência de Ferdinand Lassalle, pre- cursor do constitucionalismo sociológico, emA essência da Constituição, 1985, p. 49, onde se repro- duz texto de conferência proferida em 1863: Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis, a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social". 31. Mauro Cappelletti, O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito compa- rado, 1984, p. 114. No mesmo sentido, vejam-se Castro Nunes, Teoria e prática do Poder Judiciário, 1943, p. 597, e M. Seabra Fagundes, A função política do Supremo Tribunal Federal, RDP, 49-50:7, 1979, p. 8. Em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, e não sem certo exagero, pronunciou-se Themístocles Brandão Cavalcanti: "Na interpretação da Constituição

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não se deve levar em conta somente a intenção do legislador, o sentido e a significação das palavras, o raciocínio lógico no processo de interpretação, mas principalmente o sentido político da interpre- tação, considerando-se a Constituição como um diploma político" (Supremo Tribunal Federal, Representações por inconstitucionalidade. dispositivos de Constituições estaduais, 1976, v. 1, p. 153). Se é certo que se deve levar em conta o sentido político na interpretação constitucional, o uso do advérbio principalmente parece ser uma demasia. Como se viu até aqui, não é possível neutralizar inteiramente a in- terferência de fatores políticos na interpretação constitucional. A racionalidade total, como bem percebeu Hesse, não é atingível no direi- to constitucional. Isso não significa que se deva renunciar a ela, mas sim buscar a "racionalidade possível". A interpretação da Constituição, a despeito do caráter político do objeto e dos agentes que a levam a efeito, é uma tarefa jurídica, e não política. Sujeita-se, assim, aos cânones de racionalidade, objetividade e motivação exigíveis das decisões proferi- das pelo Poder Judiciário. Uma Corte Constitucional não deve ser cega ou indiferente às conseqüências políticas de suas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum. Mas somente pode agir dentro dos limites e das possibilidades abertas pelo ordenamento. Contra o direito o juiz não deve decidir jamais. Em caso de conflito entre o direito e a política, o juiz está vinculado ao direito. 32. Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, 1983, p. XVIII-XIX. A referência consta da Introdução escrita por Pedro Cruz Villalón. 33. Raúl Canosa Usera, Ínterpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 121, trans- creve o ponto de vista divergente de Loewenstein e Leibholz na matéria, com o qual não se está de acordo. 34. Otto Bachoff, Der Verfassungsrichter zwischen Recht und Politik, p. 302-3, adaptado da citação feita por García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, 1991,p. 183-4. 3. Conceitos, classificações e métodos clássicos de interpretação a) Subjetivismo e objetivismo. O originalismo nos Estados Unidos Uma das mais vetustas discussões envolvendo a interpretação jurí- dica é a que contrapõe os subjetivistas, que buscam identificar a mens legislatoris, e os objetivistas, que se fiam na revelação da mens legis. Cuida-se de saber se deve prevalecer na interpretação a vontade do le- gislador histórico ou a vontade objetiva e autônoma da lei. O debate, de certa forma, encontra-se superado pela convergência da quase-totali- dade da doutrina para a linha objetiva. Para esse entendimento tam- bém se orientou o Tribunal Constitucional Federal alemão, que em de- cisão reiterada em inúmeros julgados assentou: "Fundamental para interpretar un precepto legal es la voluntad objetiva del legislador manifestada a través de dicho precepto y tal como se deduce del texto y del contex- to de la disposición legal. No es, por el contrario, funda- mental la idea subjetiva de los órganos que participan en el proceso legislativo, o determinados de sus miembros, acerca

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del significado de la disposición". 35. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1993, p. 381. V. também Karl Larenz, Metodología de la ciencia del derecho, 1980, p. 250 e s. 36. Pietro Merola Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, 1978, p. 208, após reproduzir a lição de Coviello, De Ruggiero, Crisafulli, Pierandrei e Grasso, concluiu: "Su questa linea converge la quasi totalità della dottrina degli ultimi decenni". 37. BVerfGE, 1,299(312). V. Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, cit., p. 38. De fato, uma vez posta em vigor, a lei se desprende do complexo de pensamentos e tendências que animaram seus autores. Isso é tanto mais verdade quanto mais se distancie no tempo o início de vigência da lei. O intérprete, ensinou Ferrara, deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris. Não é, propriamente, que a vontade subjetiva do legislador de ocasião seja inteiramente indiferente. O que remarcam os objetivistas é que ela não é determinante e deve concorrer com outros todos fatores relevantes. Com agudeza, e não sem certa ironia, Raúl Canosa Usera observa que a preponderância entre a vontade do legislador ou da lei dependerá, sempre, de uma terceira vontade: a do intérprete atual. 38. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 135. Na feliz síntese de Peter Schneider, "a lei é mais sábia que o legislador" (Prinzipien der Verfassungsinterpretation, 1963, apud Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 371). Vejam-se, ainda, sobre o tema Tércio Sampaio Ferraz Jr., A ciência do direito, 1980, p. 70-1, e Manuel A. Domingues de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, 1978, p. 15. 39. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and anthropology: some remarks from a German point of view, American Journal of Comparative Law, 42:395, 1994, p. 401. 40. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 17. Curiosamente, essa discussão foi reavivada ao longo das últimas décadas, nos Estados Unidos, contrapondo originalistas e não- originalistas. Após dois períodos sucessivos em que a Suprema Corte apresentou um perfil nitidamente progressista, afirmativo de novos di- reitos e de proteção das minorias, articulou-se um amplo movimento de reação conservadora. Cognominado de "originalismo", funda-se ele na tese de que o papel do intérprete da Constituição é buscar a intenção original (the original intent) dos elaboradores da Carta, abstendo-se de impor suas próprias crenças ou preferências. 41. Sob a presidência de Earl Warren (1953-1969) e de Warren Burger (1969-1986). As últi- mas duas décadas, todavia, têm assistido ao esforço para desfazer o legado anterior, sobretudo da Corte Warren. Buscou-se, assim, uma metodologia que substituísse a discrição judicial por um critério mais objetivo ou neutro. Para tanto, não bastava voltar à tradição conservadora de colocar ênfase nos precedentes - as stare decisis -, porque eram precisamente os precedentes que os

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conservadores pretendiam reformar. Nessa busca de uma metodologia que permitisse a revisão dos avanços da Corte, sobretudo em casos como Roe vs. Wade (v. infra), é que se chegou a um revival do originalismo e do textualismo (v. Morton J. Horwitz, Foreword: the Constitution of change: legal fundamentality without fundamentalism, Harvard Law Review, 107:30,1993, p. 34-5). 42. Sobre o tema, v. The great debate: interpreting our written Constitution, coletânea publicada por The Federalist Society, s. d., com textos de Edwin Meese, William Brennan Jr., John Paul Stevens, Robert Bork e Ronald Reagan. O tema, como se disse, foi reavivado na última década, mas é antigo. No julgamento de Home Building and Loan Association vs. Blaisdell, 290 U. S. 398, p. 451 e 453 (1934), já afirmara o Justice Sutherland: "A única finalidade da interpretação, quando se refere a disposições constitucionais, consiste em descobrir seu significado, em identificar e dar efeito à intenção de seus redatores e do povo que as adotou". Veja-se, também, Berger, Government by Judiciary. The transformation of the fourteenth Amendment, 1977. Para os originalistas, o ativismo judicial, as construções jurídicas desenvolvidas pelo Judiciário para acudir a situações não contempladas na letra expressa da Constitüição, são antidemocráticas. Consoante o raciocínio que desenvolvem, em um governo representativo, onde deve prevalecer a vontade da maioria, expressa através da eleição dos agentes públicos do Legislativo e do Executivo, o controle exercido pelo Judi- ciário sobre os atos dos outros dois Poderes apresenta uma dificuldade contramajoritária (a countermajoritarian difficulty) (v. infra). E somente pode legitimar-se nos limites expressos e estreitos do texto constitucional. 43. V. Robert Bork, The great debate, cit., p. 43. V. também William Rehnquist, The notion of a living Constitution, Texas Law Review, 54:693, 1976. Veja-se, mais recentemente, do próprio Bork, The tempting of America, 1990. A crença originalista de que não é possível atingir um mínimo de objetividade na interpretação constitucional - que ficaria, pois, sujeita a meras preferências subjetivas pessoais - tem sido questionada com veemência, tanto no debate acadêmico como na prática política. A ten- tativa de alçar à Suprema Corte Robert Bork, um dos principais ideólogos do originalismo, fracassou após amplo movimento de rejeição à nomea- ção feita pelo Presidente Reagan. É certo, todavia, que a Suprema Cor- te, após a nomeação de diversos Ministros conservadores, e sob a presi- dência de William Rehnquist, um originalista, tornou-se um tribunal sem a importância política e sem o brilho de outras épocas. 44. Vejam-se por todos, em meio a inúmeros escritos, H. Jefferson Powell, Rules for originalists, Virginia Law Review, 73:659, 1987, e Morton J. Horwitz, Foreword: the Constitution of change..., Harvard Law Review, 107:30, p. 41 e s. 45. Sobre o tema, v. Morton J. Horwitz, The bork nomination and American constitutional history, Syracuse Law Review, 39:1029, 1988. 46. Para um debate em língua portuguesa sobre o tema, vejam-se dois pequenos textos publi-

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cados na Revista de Direito Público, 93:5: Robert Bork, O que pretendiam os fundadores, p. 6 e s., e Laurence Tribe, Os limites da originalidade, p. 9 e s. V., também, Enrique Alonso García, La interpretación de la Constitución, 1984, p. 138 e s. b) Interpretação constitucional legislativa, administrativa, judicial, dou- trinária e autêntica Deixou-se remarcado, anteriormente, que a interpretação constitu- cional, sem embargo de suas especificidades, situa-se no âmbito da in- terpretação jurídica em geral. Sujeita-se, assim, às categorias em que tradicionalmente se classifica a interpretação. Não se pretende, aqui, explorar em maior profundidade esse tópico, que tem merecido valiosos estudos, tanto na doutrina nacional quanto na estrangeira. A referência que adiante se faz a cada uma das variações da interpretação tradicional destina-se apenas a dar uma visão de conjunto da matéria e a apontar algumas peculiaridades quando se trate de interpretar a Constituição. No capítulo seguinte é que se cuidará, em percurso detalhado, dos prin- cípios de interpretação especificamente constitucional. 47. Vejam-se, por todos, Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 1981; Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, 1968; Luiz Fernando Coelho, Lógica jurídica e interpretação das leis, 1979; Paulo Batista, Compêndio de hermenêutica jurídica, 1984; Mário Franzen de Lima, Da interpretação jurídica, 1955; Rubens Limongi França, Elementos de hermenêutica e aplicação do direito, 1984; François Gény, Méthode d´interpretation et sources en droit privé positif, 1932; Emilio Betti, Teoria generale della interpretazione, 1955; Max Ascoli, La interpretación de las leyes, 1947; Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, 1987; Genaro Carrió, Notas sobre derecho y lenguage, 1979; Rudolph von Ihering, A finalidade do direi- to, 1979; Luis Recaséns Siches, Nueva filosofía de la interpretación del derecho, 1980; Manuel A. Domingues de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, 1987. A interpretação em geral, e, ipso facto, a interpretação constitucio- nal, poderá ser, quanto à sua origem, legislativa, administrativa e judi- cial. Alguns autores acrescentam a interpretação doutrinária, merecendo ainda referência a possibilidade de uma interpretação constitucional au- têntica. Quanto aos resultados ou à extensão, ela poderá ser declaratória, extensiva ou restritiva. E quanto aos métodos, ou, mais propriamente, quanto aos elementos de interpretação, ela será gramatical, histórica, sistemática e teleológica. 48. V. Hector Fix Zamudio, Algunos aspectos de la interpretación constitucional en el ordenamiento mexicano, Comparative Judicial Review, 2:69-71, 1974, p. 75-83, apud José Alfredo de Oliveira Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, p. 54. 49. Para um maior desenvolvimento do tema da interpretação legislativa, administrativa e judicial, veja-se o valioso trabalho de Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de

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mudança da Constituição, cit., p. 64 e s., bem como o denso artigo de José Alfredo de Oliveira Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, p. 54 e s. A interpretação da Constituição é exercida por órgãos dos três Pode- res estatais. Assim se passa, em primeiro lugar, para delimitação de sua própria esfera de competências. Ademais, cada um deles precisa determi- nar o conteúdo de normas constitucionais no desempenho de suas ativida- des. A interpretação constitucional legislativa impõe-se em diversas situa- ções, dentre as quais é possível destacar a que se realiza (a) para a própria estruturação do Poder Legislativo, de seus órgãos e comissões; (b) na observância do processo legislativo, aí incluídos a adequação de cada es- pécie normativa e os procedimentos para sua edição; (c) na apreciação de vetos do chefe do Executivo fundados em motivo de inconstitucionalidade. A interpretação constitucional pelas Casas do Congresso, por Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais é indispensável para que exercitem sua atividade legislativa nos limites da Lei Maior, e, talvez mais impor- tante, para que legislem de forma a realizar os fins constitucionais. 50. Há um precedente historicamente relevante de interpretação legislativa, ocorrido no Im- pério, sob a vigência da Carta de 1824. Cuida-se da célebre Lei de Interpretação (Lei n. 105, de 12- 5-1840), que reduziu o conteúdo e o alcance das inovações introduzidas pelo Ato Adicional de 1834 (Lei n. 16, de 12-8-1834), que, dentre outras coisas, concedera certo grau de autonomia às provín- cias, e veio a ser interpretado de forma conservadora e centralista. Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Direito constitucional brasileiro: o problema da Federação, 1982, p. 30-1. A interpretação constitucional administrativa é levada a efeito pelo Poder Executivo, notadamente para pautar a própria conduta. Deverá ele reverenciar os princípios constitucionais da Administração Pública (CF, art. 37 e s.) e conter-se dentro dos limites genéricos que lhe são impostos (respeitando, e. g., as hipóteses de reserva legal - CF, art. 5º, II). É igualmente indispensável a interpretação para que os órgãos do Executivo possam dar cumprimento aos atos normativos e aos atos de individualização de situações jurídicas na conformidade da Constitui- ção, além de sua importância na elaboração das políticas governamen- tais, que devem, necessariamente, apontar para os fins constitucionais. Aliás, o Executivo, em certos casos, pode interpretar a Constituição até mesmo para divergir de interpretação que haja sido dada pelo Legislativo. É que a doutrina e a jurisprudência a ele têm reconhecido o poder de deixar de aplicar os atos legislativos que considere inconstitucionais. 51. V. Luís Roberto Barroso, Poder Executivo - lei inconstitucional - descumprimento, parecer publicado em RDA, 181-182:387, 1990, com levantamento da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria. E, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: "Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia - e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de inconstitucionalidade -, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordi- nados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais" (RTJ, 151:331, 1995,ADIn-MC 221-DF, rel. Min. Moreira Alves). E no Supe-

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rior Tribunal de Justiça: "Lei inconstitucional. Poder Executivo. Negativa de eficácia. O Poder Executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional" (DJu, 8 nov. 1993, p. 23521, REsp 23.121, rel. Min. Humberto Gomes de Barros). A interpretação constitucional judicial, no Brasil e nos países que admitem a judicial review, se dá (a) pela aplicação direta de um preceptivo constitucional (questão constitucional) ou (b) pela verificação da com- patibilidade de uma norma em face da Constituição (controle de constitucionalidade). A interpretação pelo Judiciário é final e vinculante para os outros Poderes. Não é incomum que a interpretação judicial venha sobrepor-se à interpretação feita pelo Legislativo - como se pas- sa quando declara uma lei inconstitucional - ou pelo Executivo. 52. Vejam-se dois exemplos em que a interpretação judicial desautorizou a que havia sido dada pelo Executivo: (1) o Parecer CF n. 1/89, da Consultoria-Geral da República, aprovado pelo Presidente da República, sustentou que a exigência de concurso público (CF, art. 37, II) não se impunha na contratação de empregados para sociedades de economia mista exploradoras de ativi- dades econômicas (RDA, 178:99). O Supremo Tribunal Federal, todavia, estabeleceu entendimento diverso: "Sociedade de economia mista destinada a explorar atividade econômica está igualmente sujeita a esse princípio (do art. 37, II), que não colide com o expresso no art. 173, § 1º" (DJu, 23 abr. 1993); (2) o Poder Executivo, pelo Decreto n. 99.300/89, entendeu que os servidores postos em disponibilidade deveriam receber proventos proporcionais ao tempo de serviço, tese que foi desautorizada pelo Supremo Tribunal Federal (RDA, 179-80:233). Hoje, contudo, em face da nova redação dada aos §§ 2º e 3º do art. 41 pela Emenda Constitucional n. 19/98, o servidor será coloca- do em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço. A interpretação doutrinária não se dirige, diretamente, à aplicação das normas constitucionais, mas, sim, a fornecer subsídios para os órgãos en- carregados de realizá-la. Trata-se do produto do trabalho intelectual de jurisconsultos, professores e escritores em geral. Também os advogados, elaborando teses jurídicas e ousando criativamente na defesa dos interesses que patrocinam, prestam importante contribuição de cunho doutrinário. 53. Sobre interpretação doutrinária, vejam-se, em meio a outros, Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 94; Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos infor- mais de mudança da Constituição, cit., p. 171 e s.; e José Alfredo de Oliveira Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, cit., p. 70. É controvertida a possibilidade de interpretação autêntica da Cons- tituição. Aliás, é controvertida a própria existência da categoria inter- pretação autêntica, como tal entendida a que emana do próprio órgão que elaborou o ato cujo sentido e alcance ela declara. Pela interpretação autêntica se edita uma norma interpretativa de outra preexistente. A maior parte da doutrina, tanto brasileira como portuguesa, admite a interpretação constitucional autêntica, desde que se faça pelo órgão competente para a reforma constitucional, com observância do mesmo procedimento desta.

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54. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 134: "Disto resulta que a chamada interpre- tação autêntica não é verdadeira interpretação, mas funda a sua eficácia de modo autônomo na declara- ção de vontade do legislador: é uma lei com efeito retroativo". Savigny entendia que a lei interpretativa resultante da interpretação autêntica constitui uma nova lei, de todo distinta daquela preexistente (Juristische Methodenlehre, 1951, p. 18, apud Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 357). 55. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 87. Sobre o tema, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn 605-DF, rel. Min. Celso de Mello: "É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autêntica. Tais leis não traduzem usurpação das atribui- ções institucionais do Judiciário e, em conseqüência, não ofendem o postulado fundamental da divisão funcional do poder" (RTJ, 145:463, 1993). 56. V. Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 1990, p. 101; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 239; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 231; Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 88 e 315. A rigor, a interpretação constitucional, para ser verdadeiramente autêntica, na conformidade da definição, teria de emanar da mesma fonte instituidora: o poder constituinte originário. Isso, normalmente, não será possível, pois, uma vez concluída a sua obra, o poder consti- tuinte originário se exaure, ou, melhor dizendo, volta ao seu estado latente e difuso. De modo que não se pode falar em interpretação cons- titucional verdadeiramente autêntica. A discussão, todavia, tem pou- ca relevância no Brasil. É que um dos traços que distinguem a inter- pretação autêntica é o seu caráter retroativo, remontando à data de vigência da lei que está sendo interpretada. Ora bem: entre nós isso não é possível. Por força do art. 5º, XXXVI, da Constituição da Repú- blica, combinado com o art. 60, § 4º, nem mesmo as emendas cons- titucionais podem afetar as situações já definitivamente constituídas e incorporadas ao patrimônio de seu titular. Ou seja: em qualquer caso os efeitos se produzirão ex nunc. 57. No mesmo sentido, José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1982,p. 216, e Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, cit., p. 167-8. 58. Em sentido contrário, aparentemente sem levar em conta o fato de que a irretroatividade no Brasil, ao contrário de outros países, é princípio constitucional, v. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 358. Até aqui deu-se atenção à interpretação constitucional realizada pelos Poderes estatais e pela doutrina, com ênfase no papel da interpretação judicial. É bem de ver, no entanto, que, a rigor, a interpretação constitu- cional é levada a efeito pela generalidade das pessoas no âmbito do

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Estado, que dela se servem para determinar a própria conduta e conhe- cer os seus direitos. Inúmeras questões envolvendo a Constituição não chegam aos tribunais e, menos ainda, ao Supremo Tribunal Federal, cujo papel precípuo é a sua guarda. São resolvidas no plano da informalidade, pelo consenso ou pela renúncia. De fato, muitas são as situações de conflito potencial em que os interessados chegam a um acordo, demar- cando os direitos de cada um; em outras, mesmo existindo violação da norma, o titular da pretensão daí resultante não a leva ao Judiciário; ou, ainda, hipóteses há de impossibilidade processual de acesso à Corte para a discussão constitucional. Daí a constatação de Peter Häberle de que o "processo constitucional formal não é a única forma de acesso ao pro- cesso de interpretação constitucional". 59. Peter Häberle, Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constitui- ção: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental"da Constituição, 1997. p. 42. No desenvolvimento de suas idéias, assentou Häberle que a inter- pretação constitucional é um processo aberto, no qual estão envolvidos os Poderes estatais, os órgãos públicos, mas também os cidadãos e os grupos sociais. Não há, assim, um elenco cerrado, numerus clausus, de interpretação da Constituição. Não sendo um evento puramente estatal, todos podem, potencialmente, interpretar a Constituição, ao menos até o pronunciamento final do Judiciário, se e quando ele ocorrer. Nas pala- vras textuais do autor alemão: "Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mes- mo, diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatá- rio da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constitui- ção que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição". 60. Peter Häberle. Hermenêutica constitucional.. cit., p. 15. c) Interpretação declarativa, restritiva e extensiva Em seus clássicos Comentários, escreveu Joseph Story que as pala- vras de uma Constituição devem ser tomadas em sua acepção natural e óbvia, evitando-se o indevido alargamento ou restrição de seu signifi- cado. Porém, nenhuma norma oferece fronteiras tão nítidas que elimi- nem a dificuldade de determinar se, na espécie, deve-se passar além ou ficar aquém do que as palavras parecem indicar. Quando exista congruência plena entre as palavras da norma e o sentido que lhes é atribuído pela razão, quando coincidem o elemento gramatical e o ele- mento lógico, a interpretação será declarativa (cum in verbis nulla ambiguitas est, non debet admitti voluntatis quaestio). 61. Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States, 1905, v. 1, p. 319. 62. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 200. 63. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 147, e Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 362. Todavia, havendo incongruência entre a interpretação lógica e a gra- matical, caberá ao intérprete operar uma retificação do sentido verbal na conformidade e na medida do sentido lógico. A imperfeição lingüís- tica, expõe Ferrara, pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse menos, quando queria dizer

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mais. No primeiro caso, impõe-se uma interpretação restritiva (ou es- trita), onde a expressão literal da norma precisa ser limitada para expri- mir seu verdadeiro sentido (lex plus scripsit, minus voluit). No segundo caso, será necessária uma interpretação extensiva, com o alargamento do sentido da lei, pois este ultrapassa a expressão literal da norma (lex minus scripsit quam voluit). 64. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 149. 65. V. Christiano José deAndrade, O problema dos métodos da interpretação jurídica, 1992, p. 116-23, e José de Oliveira Ascensão, O direito. Introdução e teoria geral, 1993, p. 407-9. A doutrina, de forma um tanto casuística, procura catalogar as hi- póteses de interpretação restritiva e extensiva. Há certo consenso de que se interpretam restritivamente as normas que instituem as regras ge- rais, as que estabelecem benefícios, as punitivas em geral e as de natureza fiscal. Comportam interpretação extensiva as normas que as- seguram direitos, estabelecem garantias e fixam prazos. 66. Vejam-se Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, cit., p. 222; Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 197-205; Linares Quintana, Reglas para la interpretación constitucional, 1987, p. 134-6; e Christiano José de Andrade, O problema dos métodos da interpretação jurídica, cit., p. 117. 67. Linares Quintana, Reglas para la interpretación constitucional, cit., p. 117. 68. V. Ivan Lira de Carvalho, A interpretação da norma jurídica (constitucional e infraconstitucional), RT, 693:55, 1993, p. 55-6, e Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 205. 69. V. Ivan Lira de Carvalho, A interpretação da norma jurídica (constitucional e infraconstitucional), RT, 693:55, p. 55-6, e Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do di- reito, cit., p. 205. A jurisprudência é oscilante e assistemática na matéria. Há casos em que a norma constitucional atributiva de um benefício é interpretada restritivamente. Foi o que se passou no tocante à anistia política conce- dida pelo art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988, que aproveitava aos punidos durante o regime militar, aos quais assegurou as promoções a que teriam direito durante o perío- do em que estiveram afastados por atos de exceção. A norma não escla- recia se se incluíam tanto as promoções por antigüidade como as por merecimento. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal oscilou, até se firmar na exclusão da promoção por merecimento, interpretando restritivamente o comando constitucional. 70. RTJ, 145:942, 1993, RE 140.616-DF, rel. Min. Paulo Brossard, em cuja ementa se lia: "O art. 8º do ADCT assegura, aos que foram atingidos por atos de exceção, em decorrência de motiva- ção exclusivamente política, as promoções "a que teriam direito se estivessem em serviço ativo". Não assegura as promoções possíveis, como as por merecimento". Em belo trecho, criticando a mudança de orientação do Supremo Tribunal Federal, afirmou o Min. Marco Aurélio, citando pas-

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sagem do livro O inverso da nossa desesperança: "Quando uma luz se apaga, é muito mais escuro do que se ela jamais houvesse brilhado". Igualmente restritiva foi a interpretação dada pelo Tribunal de Jus- tiça do Estado do Rio de Janeiro ao examinar benefício conferido pelo art. 230, § 2º, da Constituição Federal, consistente na concessão de gratuidade nos transportes coletivos urbanos para idosos, onde fez dis- tinção entre área urbana e metropolitana. Em outras hipóteses, a inter- pretação tem sido extensiva, como em relação à anistia constitucional concedida pelo art. 47 do Ato das Disposições Constitucionais Transitó- rias. Aliás, a propósito das disposições constitucionais transitórias em geral, deixou entender o Supremo Tribunal Federal, embora de forma implícita, terem elas cunho de regras excepcionais, merecendo interpreta- ção estrita, não servindo como argumento para interpretar a parte perma- nente da Constituição. 71. RT, 665:147, 1991, Ap. 5.465/89, rel. Des. Thiago Ribas Filho: "Transporte coletivo de passageiros - Gratuidade aos maiores de 65 anos - Direito concedido pela CF apenas em relação à área urbana, não à metropolitana - Impossibilidade de interpretação extensiva da norma cons- titucional - (...) O benefício é medida excepcional, à qual não se pode e deve dar interpretação extensiva". 72. O ITACSP decidiu, em diversos casos, que o benefício aproveitava mesmo aos devedores que houvessem obtido financiamentos cuja soma fosse superior a 5.000 OTNs (que era o limite imposto pela norma concessiva do benefício), desde que o valor obtido em cada instituição finan- ceira não excedesse aquele limite. E que o benefício aproveitava, também, ao garantidor da obriga- ção. Confira-se, por todas, a decisão no AI 419.784-8, rel. Juiz Rodrigues de Carvalho, RT, 650:118, 1989: "Art. 47 do ADCT - Débitos inferiores a 5.000 OTN contraídos em instituições financeiras diferentes cuja soma ultrapassa o limite proposto - Irrelevância - Favor que há de sempre ser interpretado de forma benigna, ampla, a favorecer quem o pleiteia - Restrições que somente podem ser impostas pelo próprio texto constitucional - Benefício extensível ao avalista". Essa linha de entendimento foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal: "Os contratos de financia- mento, para observância do teto inscrito no inciso IV, do § 3º, do art. 47, do ADCT à CF/88, devem ser observados de per si, autonomamente (STF, RTJ, 148:275, 1994, RE 134.038-PR, rel. Min. Carlos Velloso). 73. RTJ, 132:1065, 1990, ADIn 281 -MT, rel. Min. Sydney Sanches. A Suprema Corte recorre, com freqüência, a linhas argumentativas que se utilizam da interpretação extensiva ou restritiva. Ao confrontar, por exemplo, a regra geral do art. 129, IX, da Constituição - que proíbe que os membros do Ministério Público atuem como representantes ju- diciais de entidades públicas - com o disposto no art. 29, § 5º, do ADCT, que permitiu aos membros do Ministério Público estadual representar a União em causas de natureza fiscal, decidiu o Supremo:

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"A exceção prevista no § 5º do art. 29 do ADCT ao disposto no inc. IX do art. 129 da parte permanente da CF diz respeito apenas ao exercício da advocacia nos casos ali especificados, e, por ser norma de direito excepcional, só admite interpretação estrita, não sendo aplicável por ana- logia, e, portanto, não indo além dos casos nela expressos, nem se estendendo para abarcar as conseqüências lógicas desses mesmos casos, máxime, nesta última hipótese, quan- do a conseqüência lógica da exceção é objeto de outra nor- ma geral que a proíbe". 74. RT, 678:220, 1990, ADIn 41-1 -DF, rel. Min. Moreira Alves. Ao interpretar o art. 86, § 4º, da Constituição, que estabelece que o Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser res- ponsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções, deu-lhe, igualmente, significação restritiva. De fato, ao apreciar ação ajuizada contra o ex-Presidente Collor de Mello, em meio a outras considera- ções, assim pronunciou-se a mais Alta Corte: "A norma consubstanciada no art. 86, § 4º, da Consti- tuição, reclama e impõe, em função de seu caráter excepcio- nal, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal". 75. RTJ, 143:710, 1993, Ação Penal n. 305 (QO) - DF, rel. Min. Celso de Mello. No julga- mento da medida liminar na ADIn 978, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu que a imunidade a atos estranhos ao exercício das funções, prevista em relação ao Presidente da República, não podia, em princípio, ser estendida aos Governadores de Estado (RTJ, 156:782, 1996, ADIn 1 .025-TO, rel. Min. ILmar Galvão). Em outro caso, envolvendo o tema da inelegibilidade, adotou o Supremo um sentido estrito para a cláusula constitucional do art. 14, § 7º, que veda a eleição de parentes, ao decidir que a norma não alcança a irmã da concubina do Prefeito (RT, 700:244, 1994, RE 157.868-8-PB, rel. Min. Marco Aurélio). d) Os métodos ou elementos clássicos de interpretação A interpretação constitucional é um fenômeno múltiplo sobre o qual exercem influência (a) o contexto cultural, social e institucional, (b) a posição do intérprete, (c) a metodologia jurídica. Em outra parte deste estudo se dá atenção aos dois primeiros fatores. Cabe agora cuidar dos chamados métodos de interpretação, que, mais do que os outros dois aspectos versados, comportam apreciação de ênfase predominantemen- te técnico-jurídica. Os métodos clássicos de interpretação remontam ao magistério de Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, e que, em seu Siste- ma, de 1840, distinguiu, em terminologia moderna, os métodos grama- tical, sistemático e histórico. Posteriormente, uma quarta perspectiva foi acrescentada, que foi a interpretação teleológica. Com pequena varia- ção, este é o catálogo dos métodos ou elementos clássicos da interpreta- ção jurídica: gramatical, histórica, sistemática e teleológica. 76. Friedrich Carl von Savigny, Sistema del diritto romano attuale, 1886, v. 1, cap. 4, p. 225 e s. (no original, Das System des heutigen Römischen Rechts, 1840, v. 1, § 33, p. 213-4). 77. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and anthropology...,

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American Journal of Comparative Law, 42:395, p. 395. V. também Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 138 e s., e Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, cit., p. 38. Há consenso entre a generalidade dos autores de que a interpretação, a despeito da pluralidade de elementos que devem ser tomados em consi- deração, é una. Nenhum método deve ser absolutizado: os diferentes meios empregados ajudam-se uns aos outros, combinando-se e contro- lando-se reciprocamente. A interpretação se faz a partir do texto da nor- ma (interpretação gramatical), de sua conexão (interpretação sistemáti- ca), de sua finalidade (interpretação teleológica) e de seu processo de cri- ação (interpretação histórica). Em palavras de Raúl Canosa Usera, a transcendental missão do intérprete consiste em ordenar a pluralidade de elementos que se acham à sua disposição. 78. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal Alemana, 1987, p. 284. 79. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 131. 80. BVerJGE, 11, 126 (130), e BVerfGE, 35, 263 (278 e s.). V. Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, cit., p. 39. V., também, Pablo Lucas Verdú, Curso de derecho político, 1977, v. 2, p. 553, onde se lê: "Aunque la interpretación constitucional es una, no obstante existen diversos métodos para esclarecer el significado de las normas constitucionales. No hay una interpretación histórica de las normas constitucionales, otra gramatical y otra lógico-sistemática, y teleológica, sino una sola interpretación constitucional que analiza los precedentes históricos, exa- mina los debates parlamentarios, fija el significado exacto de las palabras y realiza las operaciones necesarias para establecer el sentido de la norma constitucional como parte componente de un ordenamiento que apunta a una finalidad concreta". 81. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 135. Da aplicação dos diferentes métodos a uma dada espécie concreta podem ocorrer duas possibilidades: (a) ou todos eles conduzem a um mesmo resultado; (b) ou apontam eles para resultados divergentes. Na primeira hipótese, o caso será facilmente resolvido, pela incidência da solução única resultante da convergência dos diferentes métodos. Tra- tar-se-á de um caso fácil. Na segunda, estar-se-á diante de um caso difí- cil. Para sua solução exige-se do intérprete maior indagação. Não exis- te, a rigor, nenhuma hierarquia predeterminada entre os variados méto- dos interpretativos, nem um critério rígido de desempate. A tradição romano-germânica, todavia, desenvolveu algumas diretrizes que podem ser úteis. Duas delas são destacadas a seguir. 82. V. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and anthropology..., American Journal of Comparative Law, 42:395, cit., p. 400. Em primeiro lugar, a atuação do intérprete deve conter-se sempre dentro dos limites e possibilidades do texto legal. A interpretação gra- matical não pode ser inteiramente desprezada. Assim, por exemplo, entre interpretações possíveis, deve-se optar pela que conduza à compatibilização de uma norma com a Constituição. É a chamada in- terpretação conforme a Constituição (v. infra). Todavia, não é possí-

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vel distorcer ou ignorar o sentido das palavras, para chegar a um resul- tado que delas esteja inteiramente dissociado. Em segundo lugar, os métodos objetivos, como o sistemático e o teleológico, têm preferên- cia sobre o método tido como subjetivo, que é o histórico. A análise histórica desempenha um papel secundário, suplementar na revelação do sentido da norma. 83. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and anthropology..., American Journal of Comparative Law, 42:395, p. 400-1. Analisam-se, a seguir, cada um dos principais elementos da inter- pretação jurídica, com ênfase nas especificidades da interpretação cons- titucional. I - A interpretação gramatical Toda interpretação jurídica deve partir do texto da norma, da revela- ção do conteúdo semântico das palavras. Pela interpretação gramatical - também dita textual, literal, filológica, verbal; semântica - se cuida de atribuir significados aos enunciados lingüísticos do texto constitucio- nal. Na feliz formulação de Karl Larenz, ela consiste na compreensão do sentido possível das palavras, servindo esse sentido como limite da própria interpretação. 84. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 222-3: "independentemente do sen- tido que se der ao elemento literal (...), o processo concretizador da norma da constituição começa com a atribuição de um significado aos enunciados lingüísticos do texto constitucional". 85. Karl Larenz, Metodología de la ciencia del derecho, 1966, p. 256 (no original alemão, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1983, p. 329, apud Ricardo Lobo Torres, Normas de inter- pretação e integração do direito tributário, cit., p. 126). Na Rep. n. 846-RJ, seu Relator, Min. Antônio Neder, deixou assinalado: "Sabe-se que a interpretação gramatical não basta para demons- trar o sentido que se contém na norma, mas ela é necessária para, demonstrando o sentido das palavras com que foi escrita a norma, auxiliar a revelação do direito por meio da interpretação lógica, que a ela sucede, para, com esta, se processar a interpretação sistemática" (Representações por inconstitucionalidade: dispositivos de Constituições estaduais, 1976, t. 2, p. 93 e 107). A interpretação gramatical é o momento inicial do processo inter- pretativo. O texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Na interpretação constitucional, por vezes, não é necessário ir além da letra e do sentido evidente do texto, como se passa, por exemplo, em relação aos dispositivos acerca da composição e funcionamento de órgãos estatais. De regra, todavia, correrá risco o intérprete que estancar sua linha de raciocínio na interpretação literal. Embora o espírito da norma deva ser pesquisado a partir de sua letra, cumpre evitar o excesso de apego ao texto, que pode conduzir à injusti- ça , a fraude e até ao ridículo. 86. Esse entendimento é corrente, sendo reproduzido pela maior parte dos autores. Veja-se, por todos, Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 139.

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87. V. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 94. 88. Com relativa freqüência, o Supremo Tribunal Federal estigmatiza o uso da interpretação literal, por geradora de "iniqüidades". Vejam-se, exemplificativamente, RTJ, 142:404, 1992, 409, Rep. n. 1.108-MG, rel. Min. Francisco Rezek, e RTJ, 129:77, 1989, 87, MS 20.608-DE, rel. Min. Sydney Sanches. 89. Os atos praticados in fraudem legis são precisamente aqueles que observam o sentido literal da norma, mas violam-lhe o espírito. Sobre o tema, v. Regis Fichtner Pereira, Fraude à lei, 1994. 90. Em passagem deliciosamente espirituosa, o ex-Ministro Luiz Gallotti, do Supremo Tribu- nal Federal, ao julgar um recurso extraordinário naquela eg. Corte, assinalou: "De todas, a interpre- tação literal é a pior. Foi por ela que Clélia, na Chartreuse de Parme, de Stendhal, havendo feito um voto a Nossa Senhora de que não mais veria seu amante Fabrício, passou a recebê-lo na mais absoluta escuridão, supondo que assim estaria cumprindo o compromisso" (citado de memória, sem acesso ao texto do acórdão, que, aparentemente, não foi publicado). É corrente, na prática jurisprudencial americana, que as palavras em uma Constituição são empregadas em seu sentido comum. No fun- do, é o desejável, pois, tratando-se de um documento simbolicamente emanado do povo e destinado a traçar as regras fundamentais de convi- vência, seus termos devem ser entendidos em sentido habitual. Essa afirmativa não é universalmente válida, todavia, sobretudo à vista do constitucionalismo mais analítico que sucedeu à Carta americana de 1787. O problema da linguagem constitucional se agravou com a demo- cratização do processo constituinte. De fato, as Constituições mais re- centes, e, especialmente a Constituição brasileira de 1988, são geradas em meio a amplo processo dialético de discussão, participação e com- posição política. Como conseqüência, dificilmente apresentam uma lin- guagem jurídica uniforme e tecnicamente rigorosa. Parece, assim, pru- dente a utilização, no particular, da regra mais flexível lavrada por Linares Quintana, nos termos seguintes: "As palavras empregadas na Constituição devem ser entendidas em seu sentido geral e comum, a menos que resulte claramente de seu texto que o constituinte quis re- ferir-se ao seu sentido técnico-jurídico". 91. Esse entendimento é divulgado pelo menos desde McCullough vs. Maryland, 4 Wheat 316, julgado em 1819. 92. José Antonio Estévez Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia civil, 1994, p. 75. 93. V. Fran Figueiredo, Introdução à interpretação constitucional, RILSF, 87:175, p. 189. 94. Segundo V. Linares Quintana, Reglas para la interpretación constitucional, cit., p. 65. Em linha algo contrastante com as premissas lançadas acima, a de- monstrar claramente essa ambigüidade do texto constitucional - de ser um documento popular e um documento jurídico a um só tempo veja-se ilustrativa passagem de voto proferido pelo Ministro Marco

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Aurélio, no Supremo Tribunal Federal: "Sempre tenho presente a premissa de que o Direito é ciência e, como tal, possui institutos, expressões e vocábu- los com sentido próprio, havendo de se presumir que o le- gislador, especialmente o constituinte, haja atuado com téc- nica, atentando para o fato de que o esmero da linguagem é essencial à revelação do sentido correto da disposição normativa". 95. RDA, 193:228, 1993, p. 232, RMS 21.514, rel. Min. Marco Aurélio. Já se deixou consignado, anteriormente, que uma das singularida- des das normas constitucionais é o seu caráter sintético, esquemático, de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do Texto Constitu- cional é mais vaga, com emprego de termos polissêmicos (tributos, servidores, isonomia) e conceitos indeterminados (assuntos de inte- resse local, dignidade da pessoa humana). É justamente dessa aber- tura de linguagem que resultam construções como: (a) legitimados os fins, também estarão os meios necessários para atingi-los; (b) se a letra da norma assegura o direito a mais, está implícito o direito a menos; (c) o devido processo legal abriga a idéia de procedimento adequado e de razoabilidade substantiva (v. infra). Desnecessário enfatizar que tal característica amplia a discricionariedade do intér- prete, que há de adicionar um componente subjetivo resultante de sua própria valoração para integrar o sentido dos comandos constitucio- nais. Como já se reconheceu anteriormente, na interpretação jurídica, em geral, e na interpretação constitucional, em particular, jamais será possível obter racionalidade e objetividade plenas. 96. V. H. L. A. Hart, The concept of law, 1988, p. 121 e s., para um amplo desenvolvimento da idéia de open texture of the law. 97. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 224-5, que identifica como difi- culdades de investigação do conteúdo semântico das normas constitucionais: a) a polissemia, b) os enunciados vagos, c) os conceitos de valor e d) os conceitos de prognose. 98. Essa idéia é desenvolvida na doutrina americana sob a denominação de doutrina dos poderes implícitos, que teve como marco histórico o julgamento do caso McCullough vs. Maryland, já citado. 99. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 153. Todavia, a mesma linguagem que confere abertura ao intérprete há de figurar como limite máximo de sua atividade criadora. As palavras têm sentidos mínimos que devem ser respeitados, sob risco de se per- verter o seu papel de transmissoras de idéias e significados. É a interpre- tação gramatical ou literal que delimita o espaço dentro do qual o intér- prete vai operar, embora isso possa significar zonas hermenêuticas mui- to extensas. A esse propósito, já decidiu o Tribunal Constitucional Federal alemão: "Através da interpretação não se pode dar a uma lei ine- quívoca em seu texto e em seu sentido, um sentido oposto; não se pode determinar de novo, no fundamental, o conteúdo normativo da norma que há de ser interpretada; não se pode faltar ao objetivo do legislador em um ponto essencial". 100. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 95. 101. BVerfGE, 11, 126 (130). V. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal

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Alemana, cit., p. 283. O intérprete da Constituição deve partir da premissa de que todas as palavras do Texto Constitucional têm uma função e um sentido próprios. Não há palavras supérfluas na Constituição, nem se deve partir do pres- suposto de que o constituinte incorreu em contradição ou obrou com má técnica. Idealmente, ademais, deve o constituinte, na medida do possível, empregar as palavras com o mesmo sentido sempre que tenha de repeti- las em mais de uma passagem. De toda sorte, a eventual equivocidade do Texto deve ser remediada com a busca do espírito da norma e o recurso aos outros métodos de interpretação. Veja-se, no particular, a posição se- vera - talvez exageradamente severa - do Ministro Sydney Sanches, em sua crítica à linguagem da Carta de 1988: "Porém, muito embora a teoria do Direito Constitucio- nal aponte para a presunção de correção dos termos pousa- dos nas constituições, ante o alto grau de elaboração e aná- lise a que foi submetido o texto, não se haverá olvidar que o nosso processo constituinte foi feito de maneira bastante insatisfatória e atravancada, apesar do longo período elaborativo, legando à Norma Suprema o infeliz apelido de "colcha de retalhos". Deve ser visto com a devida cautela o critério interpretativo de conceder muita importância ao uso dos termos, haja vista a freqüência com que usou-se um termo por outro na Constituição Federal". 102. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 140. 103. Nem sempre isso é possível, como lembra Linares Quintana, Reglas para la interpretación constitucional, cit., p. 80, citando lição de John Marshall. 104. RTJ, 143:27, 1993, ADIn 378-DF (Medida Liminar), rel. Min. Sydney Sanches. Por fim, deve o intérprete fiar-se no pressuposto de que, quando a nova Constituição mantém em algum dispositivo a mesma linguagem da antiga, presume-se que não desejou modificar a interpretação que se dava ao preceito no regime anterior. Essa é uma regra generalizadamente acei- ta, que deve, contudo, ser aplicada cum grano salis. É preciso confirmar se permanecem, ainda, o mesmo espírito, os mesmos princípios e sobre- tudo os mesmos valores do Texto anterior. Aplicar uma nova Constituição sem atenção a isso gera uma das patologias do constitucionalismo nacio- nal, que é a interpretação retrospectiva (v. supra). 105. V. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 311. A propósito, veja-se a pertinente observação de Linares Quintana, Reglas para la interpretación constitucional, cit., p. 72: "En las reformas parciales de una Constitución, los constituyentes deben cuidar de mantener la uniformidad del estilo entre los preceptos anteriores y nuevos. De lo contrario, las enmiendas aparecerán a simple vista como verdaderos remiendos, cuya inconveniencia surge no sólo desde el punto de vista de la estilística constitucional, sino también como defecto de fondo susceptible de oscurecer la interpretación del Texto Supremo". II - A interpretação histórica A interpretação histórica consiste na busca do sentido da lei através dos precedentes legislativos, dos trabalhos preparatórios e da occasio legis. Esse esforço retrospectivo para revelar a vontade histórica do

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legislador pode incluir não só a revelação de suas intenções quando da edição da norma como também a especulação sobre qual seria a sua vontade se ele estivesse ciente dos fatos e idéias contemporâneos. So- bre ela escreveu Carlos Maximiliano: "Relativamente ao elemento histórico propriamente dito, há dois extremos perigosos: o excessivo apreço e o completo repúdio. (...) Além do elemento histórico propriamente dito, constituído pelo direito anterior, do qual o vigente é apenas um desdobramento, existe, sob a mesma denominação ge- ral, outro fator de exegese, que os autores designam com as expressões - Materiais Legislativos ou Trabalhos Prepa- ratórios. (...) Os materiais legislativos têm alguma utilidade para a Hermenêutica; embora não devam ser colocados na pri- meira linha". 106. V. José de Oliveira Ascensão, O direito. Introdução e teoria geral, cit., p. 394-5. Para a distinção entre occasio legis e ratio legis, v. infra. 107. V. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and anthropology..., American Journal of Comparative Law, 42:395, p. 403. 108. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 140-3. Apesar de desfrutar de certa reputação nos países que adotam o common law, o elemento histórico tem sido o menos prestigiado na mo- derna interpretação levada a efeito nos sistemas jurídicos da tradição romano-germânica. A maior parte da doutrina minimiza o papel dos projetos de lei, das discussões nas comissões, relatórios, debates em plenário. Alguns autores condenam de forma radical a sua utilização, e a jurisprudência também a tem em baixa conta, como revela, e. g., a seguinte passagem constante de voto do Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal: "Não me parece, por isso mesmo, Sr. Presidente, deva conferir-se um valor subordinante, no processo de inter- pretação da Lei Fundamental, quer aos trabalhos parlamen- tares, quer a vontade e à intenção originárias do legislador constituinte. (...) O originalismo contudo - enquanto de- signação doutrinária desse método de interpretação - pos- sui um peso específico, porém relativo, (...) na exata medi- da em que os seus postulados não condicionam e nem vin- culam o intérprete na definição e na fixação do alcance do sentido normativo das regras constitucionais. (...) Os con- dicionamentos hermenêuticos impostos pela exacerbação da vontade do legislador constituinte, e da intenção que o animava em determinado momento histórico, reduziriam, de modo extremamente inconveniente, a interpretação cons- titucional, a uma "dimensão voluntarista" (J. J. Gomes Canotilho), que se revela de todo incompatível com o ver- dadeiro significado da Constituição...". 109. V. Geraldo Ataliba, Limites à revisão constitucional, Separata da Revista Trimestral de Direito Público, 1:6, 1993: "... o jurista sabe que a eventual intenção do legislador nada vale (ou não vale nada) para a interpretação jurídica. A Constituição não é o que os constituintes quiseram

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fazer; é muito mais que isso: é o que eles fizeram. O jurista trabalha como direito positivo (posto). A lei é mais sábia que o legislador. (...) Os juristas não perdem mais tempo em expor os argumentos tendentes a expressar o postulado hermenêutico elementar segundo o qual o desejo do legislador, sua vontade e seus processos subjetivos motivacionais não têm valor para a exegese jurídica". 110. RTJ, 134:963, 1990, p. 998-9, Embgs. na ADIn 27-DF, rel. Min. Aldir Passarinho. Sem embargo dessa visão crítica, o elemento histórico desempenha na interpretação constitucional um papel mais destacado do que na in- terpretação das leis. Isso se torna especialmente verdadeiro em relação a Constituições ainda recentes". Fórmulas e institutos aparentemente incompreensíveis encontram explicitação na identificação de sua causa histórica. Aliás, o Preâmbulo das Constituições é freqüentemente um esforço de prolongar no tempo o espírito do momento constituinte. Em veemente defesa da interpretação histórica em matéria constitucional, Pietro Merola Chierchia sustenta que o que se interpreta na norma não é apenas o seu conteúdo aparente, mas todo o substrato de valores históri- cos, políticos e ideológicos que estão na origem da Constituição. Não se trata da vontade individual ou somada dos constituintes, mas, sim, da vontade social de que aqueles foram portadores, entendida como sínte- se de valores, sentimentos e aspirações comuns, traduzidos, no plano normativo, nos princípios constitucionais. 111. Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, cit., p. 42. 112. Veja-se, por exemplo, o habeas data, criado pelo art. 5º, LXXII, que só se justifica como uma reação ao abuso à manipulação de informações durante o regime militar. 113. P. M. Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 218 e s. Claro que há limites a serem impostos à interpretação histórica. Nem mesmo o constituinte originário pode ter a pretensão de aprisionar o futuro. A patologia da interpretação histórica é o originalismo, ao qual já se fez referência anteriormente. John Hart Ely, professor america- no autor de um livro clássico, sustenta, com propriedade, que tal movi- mento - de certa forma abrangido no conceito mais amplo de interpretativismo - não é compatível com os princípios democráticos. A defesa da idéia de subordinação de todas as gerações futuras à vonta- de que aprovou a Constituição contrasta com a idéia de Jefferson, generalizadamente aceita, de que a Constituição deve ser reafirmada a cada geração, sendo, conseqüentemente, um patrimônio dos vivos. 114. Sobre o tema, além da bibliografia já mencionada, v. também José Antonio Estévez Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia civil, cit., p. 72 e s. 115. John Hart Ely, Democracy and distrust, 1980, p. 12-4. Um exemplo caricato de interpretação histórica não evolutiva, pelo apego ao originalismo, foi dado pela Suprema Corte americana no jul- gamento de Olmstead vs. United States, onde o Chief Justice Taft consi- derou que a interceptação telefônica não violava a 4ª Emenda (que veda provas ilegais e buscas e apreensões sem ordem judicial) porque, quan- do seu texto foi redigido, em 1791, não existia telefone". 116. 277 U. S.438(1928). III - A interpretação sistemática

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Uma norma constitucional, vista isoladamente, pode fazer pouco sentido ou mesmo estar em contradição com outra. Não é possível com- preender integralmente alguma coisa - seja um texto legal, uma histó- ria ou uma composição - sem entender suas partes, assim como não é possível entender as partes de alguma coisa sem a compreensão do todo". A visão estrutural, a perspectiva de todo o sistema, é vital. 117. Murphy. Fleming e Harris, II, American constitutional interpretation, 1986, p. 292. O método sistemático disputa com o teleológico a primazia no pro- cesso interpretativo. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de pre- ceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as cone- xões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas". Em bela passagem, registrou Capograssi que a interpretação não é senão a afirmação do todo, da unidade diante da particularidade e da fragmen- taridade dos comandos singulares. 118. Sobre o tema, vejam-se Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 143; Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 76; José de Oliveira Ascensão. O direito. Introdução e teoria geral, cit., p. 391-2; Maria da Conceição Ferreira Magalhães, A hermenêutica jurídica, 1989, p. 37. Raül Canosa Usera, em observação interessante, opina que a idéia de sistematicidad se refere, também, ao resto dos elementos. Segundo ele, os resultados parciais obtidos pelo uso de cada um dos métodos de interpretação devem ser postos em relação uns com os outros através do elemento sistemático (Interpretación constitucional y formula política, cit., p. 97). 119. G. Capograssi, II problema della scienza del diritto, 1962, p. 113: "E questo ê in fondo tutto il magistero dell’interpretazione: scoprire nella singola posizione il tutto, cogliere la singola posizione come determinazione del tutto. L’interpretazione non ê che l’affermazione del tutto, della unità di fronte alla particolarità e alla frammentarietà dei singoli comandi" (apud P. M. Chierchia, L´interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 244-5). No centro do sistema, irradiando-se por todo o ordenamento, en- contra-se a Constituição, principal elemento de sua unidade, porque a ela se reconduzem todas as normas no âmbito do Estado. A Constitui- ção, em si, em sua dimensão interna, constitui um sistema. Essa idéia de unidade interna da Lei Fundamental cunha um princípio específico, de- rivado da interpretação sistemática, que é o princípio da unidade da Constituição, para o qual se abre um capítulo específico mais adiante. A Constituição interpreta-se como um todo harmônico, onde nenhum dispo- sitivo deve ser considerado isoladamente. Mesmo as regras que regem situações específicas, particulares, devem ser interpretadas de forma que não se choquem com o plano geral da Carta. Além dessa unidade inter- na, a Constituição é responsável pela unidade externa do sistema. 120. Sobre estes aspectos, vejam-se Linares Quintana, Reglas para la interpretación consti-

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tucional, cit., p. 84-7, e Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Cons- tituição, cit., p. 42-3, onde assinalou: "... se a interpretação sistemática é necessária e até indispen- sável para aclarar o sentido de qualquer norma jurídica, mais necessária ainda se apresenta na interpretação da Constituição, que é, em si mesma, concebida pelo legislador constituinte como um sistema". Uma Constituição, ao menos nos países que experimentaram a instabilidade institucional e viveram processos de reconstitu- cionalização - ou seja, quase todos os países do mundo -, convive, normalmente, com uma ordem jurídica infraconstitucional que prece- de a sua promulgação. Essa convivência, inclusive, é um capítulo es- pecífico do direito constitucional intertemporal (v. supra) e gera um importante princípio, que é o da continuidade da ordem jurídica. Ora bem: a ordem jurídica infraconstitucional é elaborada ao longo do tem- po, no curso de muitas décadas, e espelha períodos históricos diversos, regimes políticos ideologicamente contrastantes e exigências particula- res e contingentes de cada época. Pode parecer implausível a tarefa de encontrar coerência e sistematicidade em normas jurídicas sujeitas a influências tão aleatórias e variadas. Essa tarefa, de fato, não se viabilizaria se todas as normas, mesmo as anteriores à Constituição em vigor, não recebessem dela um novo fundamento de validade, subordi- nando-se aos valores e princípios nela consagrados. Só essa sofisticada operação de racionalidade pode conferir a um conjunto de remendos alinhavados ao longo do tempo um caráter unitário e sistemático. O mais amplo estudo sobre a interpretação sistemática do direito constitucional se deve a Pietro Merola Chierchia. Destaca ele a essencialidade da investigação sistemática na interpretação constitucio- nal, em razão da lógica particular segundo a qual a Constituição é estruturada como complexo orgânico de disposições que se apresentam, em seu conjunto, como uma unidade. Segundo o autor italiano, deve-se reconhecer à interpretação sistemática uma posição de "prioridade lógi- ca com respeito aos outros critérios interpretativos". No Brasil, a in- terpretação sistemática em matéria constitucional é freqüentemente invocada pelo Supremo Tribunal Federal e desfruta, de fato, de grande prestígio na jurisprudência em geral. Sobre ela, escreveu o ex-Minis- tro Antônio Neder: "É o que em seguida será demonstrado pela interpreta- ção sistemática, a mais racional e científica, e a que mais se harmoniza como método do Direito Constitucional, exa- tamente a que aproxima da realidade o intérprete". 121. P. M. Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 243 e s. 122. V. RTJ, 133:6, 1990, p. 7, 140:306, 1992, 143:391, 1992, p. 408, 143:27, 1993, p. 32, e 144:175, 1990, p. 183. 123. Rep. n. 846-RJ, rel. Min. Antônio Neder, Representações por inconstitucionalidade: dispositivos de Constituições estaduais, 93, 1976,1. 2, p. 107. IV - A interpretação teleológica As normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao seu espírito e à sua finalidade. Chama-se teleológico o método interpretativo que procura revelar o fim da norma, o valor ou bem jurídi- co visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito. A formula-

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ção teórica da interpretação teleológica é tributária dos estudos de Heck, Geny e, sobretudo, Ihering. Nada obstante, a jurisprudên- cia norte-americana, menos fecunda em formulações abstratas, mas de grande visão pragmática, já captara a relevância superior da finalidade da norma, sobretudo na interpretação constitucional. De fato, em 1819, no julgamento do caso McCullough vs. Maryland, a Suprema Corte, ao definir a esfera de competência legislativa do Congresso, estabeleceu: "Desde que os fins sejam legítimos; desde que se si- tuem no âmbito e nos objetivos da Constituição, todos os meios que sejam apropriados e se ajustem plenamente a tais fins, que não sejam proibidos e sejam coerentes com a letra e o espírito da Constituição, são constitucionais". 124. É o que dispõe o art. 3.1 do Título Preliminar do Código Civil espanhol. 125. V., em português, Philipp Heck, Interpretação da lei e jurisprudência dos interesses, 1947. 126. V. François Geny, Méthode d’interprétation en droit privé positif, 1954. 127. V., em português, Rudolf von Ihering,A finalidade do direito, 1979. 128. 4 Wheat 316 (1819). A interpretação histórica cuida, como se assinalou, da occasio legis, isto é, da circunstância histórica que gerou o nascimento da lei e que cons- titui sua finalidade imediata. É certo, todavia, que a modificação de tais circunstâncias ou mesmo a sua cessação não exercem qualquer influência sobre o valor jurídico da norma. Daí a necessidade de se trabalhar um outro conceito - o de ratio legis -, que constitui o fundamento racional da norma e redefine ao longo do tempo a finalidade nela contida. A ratio legis é uma "força vivente móvel" que anima a disposição e a acompanha em toda a sua vida e desenvolvimento. A finalidade de uma norma, portanto, não é perene, e pode evoluir sem modificação de seu texto. 129. Sobre o tema, v. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 142. Carlos Maximiliano não hesita em proclamar o método teleológico como o que merece preponderância na interpretação constitucional. Também Story sustenta que provavelmente a mais segura regra de inter- pretação é a que se volta para a natureza e objetivos dos direitos, deveres e competências específicas, "dando às palavras que os exprimem uma força e função compatíveis com seu legítimo significado, de modo que se possa justamente assegurar e lograr os fins propostos". Em passa- gem freqüentemente lembrada, averbou o Ministro Espínola, quando no Supremo Tribunal Federal: "O uso do método teleológico - busca do fim - pode ensejar transformação do sentido e conteúdo que parece emer- gem da fórmula do texto, e também pode acarretar a inevitá- vel conseqüência de, convencendo que tal fórmula traiu, real- mente, a finalidade da lei, impor uma modificação do texto, que se terá de admitir com o máximo de circunspecção e de moderação, para dar estrita satisfação à imperiosa necessi- dade de atender ao fim social próprio da lei". 130. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 314. 131. Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States, 1905, v. 1, p. 307-8. 132. V. Anna Cândida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, cit., p. 43.

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133. Para uma ampla análise desse dispositivo, v. Alipio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, cit., v. 1, p. 44 e s. A Constituição e as leis, portanto, visam a acudir certas necessida- des e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada. O legislador brasileiro, em uma das raras exce- ções em que editou uma lei de cunho interpretativo, agiu, precisamente, para consagrar o método teleológico, ao dispor, no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Nem sempre é fácil, todavia, desentranhar com clareza a finalidade da nor- ma. À falta de melhor orientação, deverá o intérprete voltar-se para as finalidades mais elevadas do Estado, que são, na boa passagem de Mar- celo Caetano, a segurança, a justiça e o bem-estar social. 134. Marcelo Caetano, Direito constitucional, 1987, p. 181-6. A Constituição brasileira de 1988, em seu Título I, dedicado aos princípios fundamentais, abriu um artigo específico para as finalidades do Estado brasileiro, cuja consecução deve figurar como vetor inter- pretativo de toda a atuação dos órgãos públicos. É o que decorre do art. 3º e seus incisos, in verbis: "Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da Repú- blica Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". e) Integração da vontade constitucional. Analogia e costume constitu- cional Divulga o conhecimento convencional que não existem lacunas no direito, mas apenas na lei. A omissão, lacuna ou silêncio da lei consiste na falta de regra jurídica positiva para regular determinado caso. A ordem jurídica, todavia, tem uma pretensão de completude, e não se concebe a existência de nenhuma situação juridicamente relevante que não encontre uma solução dentro do sistema. O processo de preenchi- mento de eventuais vazios normativos recebe o nome de integração. Nela não se cuida, como na interpretação, de revelar o sentido de uma norma existente e aplicável a dada espécie, mas de pesquisar no ordenamento uma norma capaz de reger adequadamente uma hipótese que não foi expressamente cogitada pelo legislador. A Constituição de 1934 impunha ao intérprete e aplicador do direito o dever de integrar a ordem jurídica, ao dispor no art. 113, inciso 37: "Nenhum juiz deixará de sentenciar por motivo de omissão na lei". As Constituições subse- qüentes não reeditaram a regra, que, todavia, ganhou assento na Lei de Introdução ao Código Civil e no Código de Processo Civil. 135. Oscar Tenório, Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, 1955, p. 106. 136. Art. 4º: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá ocaso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". 137. Art. 126: "O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscurida- de da lei. No julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à

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analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito". 138. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 157. As lacunas na legislação podem ser de várias espécies, inclusive intencionais - frutos da omissão deliberada do legislador - e involuntárias, quando ocorrem por deficiência do legislador ou pela superveniência de situações inexistentes à época da edição da norma Há alguma controvérsia acerca da existência de lacunas constitucionais. De fato, há plausibilidade na suposição de que, onde o constituinte foi omisso ou silente, é porque não quis cuidar da matéria, relegando-a à legislação infraconstitucional. Sem dúvida alguma, a lacuna pode ex- pressar uma opção política. Mas nem sempre é assim. Captando a evi- dência, Karl Loewenstein distingue, com propriedade, entre lacuna cons- titucional descoberta e oculta. 139. V. Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, cit., p. 192. 140. Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, 1986, p. 170-2. Admitida a possibilidade da existência de lacuna constitucional, tor- na-se necessário recorrer aos dois principais meios de integração da or- dem jurídica: a analogia e o costume. A analogia consiste na aplicação de uma regra jurídica concebida para uma dada situação de fato a uma outra situação semelhante, mas que não fora prevista pelo legislador. Diz-se tratar-se de analogia legis quando é possível recorrer a uma regra específica apta a incidir sobre a hipótese, e de analogia iuris quando a solução precisa ser buscada no sistema como um todo, por não haver nenhuma regra diretamente pertinente. Naturalmente, não será possí- vel, em matéria constitucional, buscar a integração analógica na legisla- ção infraconstitucional. Ou o constituinte atribuiu o tratamento da ma- téria à lei ordinária - e não se estará diante de uma lacuna -, ou a solução do vazio normativo terá de ser buscada nos princípios da pró- pria Constituição. A rigor, o caráter vago e abrangente da norma consti- tucional torna mais corriqueiro o uso de construções constitucionais do que o emprego da analogia. A analogia constitucional, como intuitivo, não cria direito nem co- loca o intérprete na posição de legislador constituinte. Através dela se vai buscar no sistema constitucional um direito que já existe, em estado latente. Há domínios em que o recurso à analogia não é legítimo, como no direito penal e tributário, onde, por força de princípios constitucio- nais, exige-se legalidade estrita. De outra parte, a despeito da similitude, não se confundem a analogia e a interpretação extensiva, haja vista que nesta segunda hipótese não há lacuna, mas apenas uma situação em que o legislador disse menos do que queria. Não se confundem, por igual, as lacunas - que são situações constitucionalmente relevantes não pre- vistas - e as omissões legislativas - que são situações previstas no texto constitucional, mas dependentes da intermediação do legislador ordinário para produção da plenitude de seus efeitos. Por fim, é preciso distinguir, como faz com proveito a doutrina alemã, entre lacuna e si- lêncio eloqüente. Em palavras do Ministro Moreira Alves: "Sucede, porém, que só se aplica a analogia quando, na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam de "silêncio eloqüente" (beredtes Schweigen), que é o silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia". 141. V. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 361, e Raul Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 105.

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142. V. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, 1990, p. 294; Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 105. 143. V. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 162: "De facto, uma (a analogia) se aplica quando um caso não é contemplado por uma disposição de lei, enquanto a outra pressupõe que o caso já está compreendido na regulamentação jurídica, entrando no sentido duma disposição, se bem que fuja à sua letra". 144. RTJ, 739:965, 1992, p. 967, RE 130.555-SP, rel. Min. Moreira Alves. Outras tantas decisões do STF fazem menção à analogia, como se vê, ilustrativamente, em RTJ, 128:956, 1989, e 140:457, 1992. Cabe, em seguida, tratar do costume constitucional, cuja menção evoca, desde logo, o constitucionalismo consuetudinário mais famoso, que é o britânico. O direito constitucional inglês se consubstancia em alguns documentos históricos - como a Magna Charta, de 1215, a Petition of Right, de 1628, e o Bill of Rights, de 1689 -, em algumas leis escritas - como o Parliament Act, de 1911 e de 1949, o Statute of Westminster, de 1931, e o Administration of Justice Act, de 1968 - e, sobretudo, no costume constitucional, representado por certas práticas tradicionais e pelo reconhecimento de faculdades e de poderes a órgãos e cidadãos. Merece registro a pertinente observação de Afonso Arinos de Mello Franco de que a Constituição inglesa, embora costumeira e teoricamente flexível, varia menos na aplicação do que grande número de Constituições escritas e supostamente rígidas. 145. Para um proveitoso resumo da experiência constitucional britânica, v. Marcelo Caetano, Direito constitucional, cit., v. 1, p. 67 e s. 146. Afonso Arinos de Mello Franco, Curso de direito constitucional brasileiro, 1968, p. 52. O costume, ensina a doutrina clássica, é a primeira fonte subsidiária do direito. O costume jurídico ou direito consuetudinário é a observação constante de uma norma jurídica não baseada em lei escrita. Nele se des- tacam dois elementos: o externo ou objetivo, que é o uso, a repetição habitual de um dado comportamento, e o interno ou subjetivo, que é a opinio necessitatis, que se traduz na convicção de que aquele comporta- mento é necessário e obrigatório. 147. V., por todos, Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, 1976, p. 30; Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, cit., p. 317-21; José de Oliveira Ascensão, O direito. Introdu- ção e teoria geral, cit., p. 241-2. Nos sistemas constitucionais escritos e rígidos, como o brasileiro, o costume não é fonte originária de qualquer norma constitucional. As Constituições, em geral, a ele não fazem menção, e há quem sustente, com certo radicalismo, que somente os órgãos de representação popular podem legitimamente produzir normas jurídicas obrigatórias". A ver- dade, todavia, é que o costume constitucional tem duplo e relevante papel, quer para a integração da ordem constitucional em caso de lacu- na, quer como fonte auxiliar da interpretação constitucional. O costu- me, a prática constitucional, é um importante ponto de referencia na passagem do campo normativo para o terreno da realidade. Versando o tema, Carlos Maximiliano, inspirado em lição de Story, advertiu: "A prática constitucional longa e uniformemente acei-

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ta pelo Poder Legislativo, ou pelo Executivo, tem mais va- lor para o intérprete do que as especulações engenhosas dos espíritos concentrados. São estes, quase sempre, aman- tes de teorias e idéias gerais, não habituados a encontrar dificuldades e resolvê-las a cada passo, na vida real, como sucede aos homens de Estado, coagidos continuamente a adaptar a letra da lei aos fatos inevitáveis". 148. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 947, e Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, cit., p. 183, que apenas registram a existência do ponto de vista, sem endossá-lo. Em sentido diverso, v. Alberto Ramón Real, Los métodos de interpretación constitucional, RDP, 53-54:50, p. 57: "las costumbres, prácticas, usos, convenciones y normas de corrección constitucional en que se expresa la vida política real integran la Constitución material y su conocimiento es necesario para determinar el régimen político exis- tente, el grado de eficacia y el contenido verdadero de la Constitución formal". 149. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 313. Embora se deva distinguir o costume, que é um conceito jurídico, da mera prática, que é uma situação de fato, é pertinente observar que muitas vezes a Constituição formal desempenha um papel puramente simbólico, quando não escamoteador. Assim se passou com a Constitui- ção brasileira de 1937 e, em significativa medida, com as de 1967-69. Há casos em que o Texto Constitucional é uma pura hipótese, sendo a realidade da Constituição muito mais representada pelas praxes e costu- mes que cercam a sua aplicação. A Constituição material, efetiva, de um Estado pode mais facilmente ser identificada nos costumes e praxes constitucionais do que no texto propriamente dito. 150. V. Afonso Arinos de Mello Franco, Curso de direito constitucional brasileiro, cit., p. 52. A doutrina aceita, sem maiores reservas, o costume secundum constitutionem e praeter constitutionem, mas rejeita, por inadmissível, o costume constitucional contra constitutionem. E é natural que seja assim. A realidade, contudo, oferece situações renitentes ou rotineiras em que a norma constitucional é inobservada, sem que se mobilizem os mecanismos de sanção. São exemplos desse fato a persistência de omis- sões legislativas, o desrespeito reiterado das normas orçamentárias, inclu- sive as que estabelecem limites de despesas com pessoal e tetos remuneratórios, e a discutível legitimidade da figura do voto de lideranças". Exemplo de costume praeter constitutionem é o descumprimento, pelo Poder Executivo, de leis que repute inconstitucionais, comportamento que não tem base constitucional expressa, mas é consagrado pelo uso (v. infra). 151. Sobre o tema, tendo tal prática por inconstitucional, já no regime anterior, v. José Paulo Sepúlveda Pertence, Voto de liderança, parecer publicado em RDP, 76:57,1985. 4. A interpretação constitucional evolutiva Já se expôs, um pouco mais atrás, a prevalência, na moderna doutri- na, da concepção objetiva da interpretação, pela qual se deve buscar, não a vontade do legislador histórico (a mens legislatoris), mas a vonta- de autônoma que emana da lei. O que é mais relevante não é a occasio legis, a conjuntura em que editada a norma, mas a ratio legis, o funda- mento racional que a acompanha ao longo de toda a sua vigência. Este é

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o fundamento da chamada interpretação evolutiva. As normas, ensina Miguel Reale, valem em razão da realidade de que participam, adqui- rindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidas inalteradas as suas estruturas formais. 152. Miguel Reale, Filosofia do direito, 1982, p. 594. Sem que se opere algum tipo de ruptura na ordem constituída - como um movimento revolucionário ou a convocação do poder cons- tituinte originário -, duas são as possibilidades legítimas de muta- ção ou transição constitucional: (a) através de uma reforma do tex- to, pelo exercício do poder constituinte derivado, ou (b) através do recurso aos meios interpretativos. A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modi- ficação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes. 153. V. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 376; Raul Machado Horta, Permanência e mudança na Constituição, Separata da Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 74, 1992, p. 243 e s.; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 235-6; e Manuel Garcia- Pelayo, Derecho constitucional comparado, 1984, p. 137. 154. Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, cit., p. 45. V., também, Alberto Ramón Real, Los métodos de interpretación constitucional, cit., p. 57: "La interpretación evolutiva facilita la dinâmica vital de la Constitución, al renovar y enriquecer, con nuevos contenidos, reclamados por la historia, los antiguos textos, evitando su fosilización". Woodrow Wilson, em seu clássico Constitutional government in the United States, 1908, remarcando a evolutividade dos governos constitucionais, afirmou: "O Governo não é uma máquina, mas uma coisa viva... Ele deve contas a Darwin, e não a Newton". Essa interpretação evolutiva se concretiza, muitas vezes, através de normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou indeterminados, como os de autonomia, função social da propriedade, redução das desigualdades etc., que podem assumir significados variados ao longo do tempo. Por vezes, uma emenda constitucional, introduzindo modificação em algum subsistema constitucional, pode alterar a com- preensão de conceitos e institutos já existentes. 155. V. P. M. Chierchia, L´interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 65. Tenha-se como exemplo a Reforma Administrativa introduzida pela Emenda Constitucional n. 19/98, que substancialmente alterou a compreensão de institutos como o limite máximo de remuneração e a estabilidade dos servidores públicos (na redação dada aos arts. 37, XI, e 41, respectivamente). Na prática do direito constitucional norte-americano, a interpretação evolutiva desempenha papel da maior significação, tanto no campo do devido processo legal (v. infra) como no da criação de novos direitos não previstos expressamente (e. g., o direito à privacidade) e no da igualdade perante a lei, notadamente a de cunho racial. A esse propósito, é ilustrativo assinalar que a versão original da Carta de 1787 permitia, na seção 2 do

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art. 1º, o regime da escravidão. Em 1857, ao julgar o caso Dred Scott vs. Sandford, a Suprema Corte chegou a negar a condição de cidadão a um til escravo. Após 76 anos e uma guerra civil, a 13ª emenda, de 1865, aboliu a escravatura. Investidos de cidadania, ainda assim os negros eram larga- mente discriminados, com a chancela dos poderes estatais. 156. 60U. S. (19 How.) 393 (1857). Em 1896, ao decidir o caso Plessy vs. Ferguson, a Suprema Corte endossou a doutrina do equal but separate - iguais, mas separados -, forma dissimulada de discriminação praticada em diversos Estados. So- mente em 1954, ao julgar Brown vs. Board of Education, a Corte conside- rou inconstitucional a segregação de estudantes negros nas escolas públi- cas, em decisão que se tornou um marco na política de integração racial. Constata-se, assim, que, na vigência de uma mesma Constituição, o trata- mento dado aos negros evoluiu da discriminação total para a discrimina- ção atenuada, e, depois, para a não-discriminação. 157. Para um amplo e interessante painel da interpretação evolutiva na experiência constitucional norte-americana, v. Morton J. Horwitz, Foreword: the Constitution of change..., Harvard law Review, 107:27, 1993. Para Horwitz, os dois momentos culminantes do constitucionalismo americano foram, precisamente, duas mudanças de orientação jurisprudencial decididas pela Suprema Corte: o primeiro deles foi a superação da doutrina Lochner. Conforme se verá em maior detalhe adiante, desde a decisão em Lochner vs. New York, de 1905, a Suprema Corte passou a considerar inconstitucional toda e qual- quer legislação social e intervencionista. Essa orientação só veio a ser superada na década de 30, após o New Deal, sob o impacto de um confronto direto entre a Corte e o Presidente Roosevelt (v. infra); o segundo foi a superação do precedente firmado em Plessy vs. Ferguson, em 1896, que coonestara a hipocrisia discriminatória do iguais, mas separados, pela corajosa decisão integracionista de Brown, em 1954 (Foreword: the Constitution of change...,Harvard Law Review, 107:27, cit., p. 71). Na América Latina, como lembra Anna Candida da Cunha Ferraz, e inclusive no Brasil, uma longa tradição autoritária mantém a interpreta- ção constitucional evolutiva, através do Poder Judiciário, em limites ex- tremamente contidos. De fato, a história do continente é estigmatizada pela hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratu- ra, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade consti- tucional constante. Aliás, em lugar de evolução, freqüentemente o que se verifica é uma deformação, onde a interpretação constitucional judi- cial convalida os abusos autoritários. 158. Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, cit., p. 133-4. Não obstante isto, existem alguns precedentes interessantes de apli- cação evolutiva da Lei Fundamental, pela intervenção criativa dos tribu- nais, isto é, através de construções constitucionais. Dentre elas se destaca sempre a chamada doutrina brasileira do "habeas corpus", consubstan- ciada na extensão do instituto a outras situações de ilegalidade e abuso de poder que não aquelas relativas à liberdade de locomoção. Foi igual- mente por construção pretoriana que se criaram regras de proteção à mu- lher, notadamente a que vivia, maritalmente com um homem, sem ser ca-

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sada. A Constituição de 1988 bem espelhou esta longa evolução, con- signando em seu texto, no art. 226, § 3º: "Para efeito da proteção do Esta- do, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entida- de familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". 159. Sobre o tema, v. M. Seabra Fagundes, Meios institucionais de proteção dos direitos individuais, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 10:115, 1977, p. 120-2. 160. Veja-se a evolução da matéria no Supremo Tribunal Federal, nos termos em que materiali- zada na Súmula da jurisprudência predominante: 35: "Em caso de acidente do trabalho ou de transpor- te, a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedi- mento para o matrimônio"; 380: "Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum"; e 447: "É válida a disposição testamentária em favor de filho adulterino do testador com sua concubina". Naturalmente, a interpretação evolutiva, sem reforma da Constitui- ção, há de encontrar limites. O primeiro deles é representado pelo pró- prio texto, pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de seus termos não são absolutas, devendo estancar diante de significados mínimos. Além disso, também os princípios fundamentais do sistema são intangíveis, assim como as alterações informais introduzidas pela interpretação não poderão contravir os programas constitucionais. Capítulo II - PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO ESPECIFICAMENTE CONSTITUCIONAL 1. Os princípios constitucionais como condicionantes da interpretação constitucional O ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma su- mária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo consti- tuinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. É importante assinalar, logo de início, que já se encontra superada a distinção que outrora se fazia entre norma e princípio. A dogmática mo- derna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema. 1. Vejam-se Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 198; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 1986, p. 172: "As regras e princípios são duas espécies de nor- mas"; e Eros Roberto Grau, A ordem económica na Constituição - interpretação e crítica, 1990, p. 122 e s.

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Não há, é certo, entre umas e outras, hierarquia em sentido normativo, por isso que, pelo princípio da unidade da Constituição (v. infra), todas as normas constitucionais encontram-se no mesmo plano. Isso não im- pede, todavia, que normas de mesma hierarquia tenham funções distin- tas dentro do ordenamento. De fato, aos princípios cabe, além de uma ação imediata, quando diretamente aplicáveis a determinada relação ju- rídica, uma outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como crité- rio de interpretação e integração do Texto Constitucional. Veja-se, a seguir, a elaboração doutrinária dos princípios constitucionais, com ên- fase na sua sistematização no ordenamento positivo brasileiro. 2. Sem embargo, é possível admitir a existência de uma hierarquia axiológica, como bem observa Diogo de Figueiredo Moreira Neto (A ordem econômica na Constituição de 1988, Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, 42:57, 1990, p. 59). 3. V. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 199. Ao prefaciar seu admirável Tratado de direito privado, averbou Pon- tes de Miranda que "os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, compos- tos de proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos inte- resses mais diversos". A função social do direito é dar valores a essas situações, interesses e bens, e regular-lhes a distribuição entre os homens. 4. Pontes de Miranda, Tratado de direito pri vado, 1954, t. 1, p. IX. Na fecunda formulação de sua teoria tridimensional do direito, de- monstrou Miguel Reale que a norma jurídica é a síntese resultante de fatos ordenados segundo distintos valores. Com efeito, leciona ele, onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem téc- nica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato; e, finalmente, uma norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor. 5. Miguel Reale, Teoria tridimensional do direito, 1968, e Lições preliminares de direito, 1973, especialmente p. 85 e s. Pois os princípios constitucionais são, precisamente, a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica. A Constituição, como já vi- mos, é um sistema de normas jurídicas. Ela não é um simples agrupa- mento de regras que se justapõem ou que se superpõem. A idéia de sis- tema funda-se na de harmonia, de partes que convivem sem atritos. Em toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamen- tais que "costuram" suas diferentes partes. Os princípios constitucio- nais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos. 6. Atente-se para a referência limitativa ordem jurídica, diante da evidência de que nem todos os valores podem ou devem ser realizados através do direito, como os de natureza puramente ética ou religiosa, dentre outros. V. Recaséns Siches, Nueva filosofía de la interpretación del derecho, 1980, p. 284. Em passagem que já se tornou clássica, escreveu Celso Antônio Bandeira de Mello: "Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o

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espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionali- dade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico...". "Violar um princípio é muito mais grave do que trans- gredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofen- sa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o es- calão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores funda- mentais". 7. Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrativo, 1986, p. 230. Os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente enun- ciados em algum texto de direito positivo. Não obstante, e sem pretender enveredar por discussão filosófica acerca de positivismo e jusnaturalismo, tem-se, aqui, como fora de dúvida que esses bens sociais supremos exis- tem fora e acima da letra expressa das normas legais, e nelas não se esgo- tam, até porque não têm caráter absoluto e se encontram em permanente mutação. No comentário de Jorge Miranda, "o Direito nunca poderia es- gotar-se nos diplomas e preceitos constantemente publicados e revogados pelos órgãos do poder". Deixando-se de lado os chamados princípios gerais do direito, que constituem uma discussão à parte, é bem de ver que os próprios princípios de interpretação constitucional tratados neste capítulo, que integram, sem sombra de dúvida, o sistema constitucional positivo, não são, na sua generalidade, objetos de disposição expressa. 8. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 197. V. também Eros Grau, A ordem econômica na Constituição, cit., p. 92. Aparentemente em sentido diverso é o comentário de J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 119: "... Quer as normas, quer os princípios têm recepção positivo-constitucional (não há princípios transcendentes)". Essa afirmação é atenua- da por sua admissão de que o princípio não precisa estar consagrado expressamente em qualquer preceito particular, podendo ser deduzido do sistema. 9. V. Eduardo García de Enterría, Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derecho, 1986. É possível enquadrar os princípios constitucionais, quanto ao seu conteúdo, na tipologia que adotamos para as normas constitucionais em geral. Com efeito, existem princípios constitucionais de organização, como os que definem a forma de Estado, a forma, o regime e o sistema de governo. Existem, também, princípios constitucionais cuja finalida- de precípua é estabelecer direitos, isto é, resguardar situações jurídicas individuais, como os que asseguram o acesso à Justiça, o devido proces- so legal, a irretroatividade das leis etc. Por igual, existem princípios de caráter programático, que estabelecem certos valores a serem observa- dos - livre iniciativa, função social da propriedade ou fins a serem perseguidos, como a justiça social. 10. V. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1993, p. 87 e s. É de maior proveito, contudo, para os fins aqui visados, sistemati- zar os princípios constitucionais de acordo com o seu grau de desta-

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que no âmbito do sistema e sua conseqüente abrangência. Aos princí- pios calha a peculiaridade de se irradiarem pelo sistema normativo, repercutindo sobre outras normas constitucionais e daí se difundindo para os escalões normativos infraconstitucionais. Nem todos os prin- cípios, no entanto, possuem o mesmo raio de atuação. Eles variam na amplitude de sua aplicação e mesmo na sua influência. Dividem-se, assim, em princípios fundamentais, princípios gerais e princípios setoriais ou especiais. Princípios fundamentais são aqueles que contêm as decisões políti- cas estruturais do Estado, no sentido que a elas empresta Carl Schmitt. Constituem, como afirmam Canotilho e Vital Moreira, "síntese ou ma- triz de todas as restantes normas constitucionais, que àquelas podem ser direta ou indiretamente reconduzidas". São tipicamente os fundamen- tos da organização política do Estado, correspondendo ao que referimos anteriormente como princípios constitucionais de organização. Neles se substancia a opção política entre Estado unitário e federação, república ou monarquia, presidencialismo ou parlamentarismo, regime democrá- tico etc. 11. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1991,v. 1,p.66. Esses princípios constitucionais fundamentais, exprimindo, como já se disse, a ideologia política que permeia o ordenamento jurídico, constituem, também, o núcleo imodificável do sistema, servindo como limite às mutações constitucionais. Sua superação exige um novo mo- mento constituinte originário. Nada obstante, esses princípios são dota- dos de natural força de expansão, comportando desdobramentos em ou- tros princípios e em ampla integração infraconstitucional. 12. V. P. M. Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, 1978, p. 145 e s.; Raul Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, 1988, p. 168. Os princípios constitucionais gerais, embora não integrem o núcleo da decisão política formadora do Estado, são, normalmente, importan- tes especificações dos princípios fundamentais. Têm eles menor grau de abstração e ensejam, em muitos casos, a tutela imediata das situações jurídicas que contemplam. São princípios que se irradiam por toda a ordem jurídica, como desdobramentos dos princípios fundamentais, e se aproximam daqueles que identificamos como princípios definidores de direitos. São exemplos o princípio da legalidade, da isonomia, do juiz natural. Canotilho se refere a eles como princípios-garantia. E, por fim, os princípios setoriais ou especiais, que são aqueles que presidem um específico conjunto de normas afetas a determinado tema, capítulo ou título da Constituição. Eles se irradiam limitadamente, mas no seu âmbito de atuação são supremos. Por vezes são mero detalhamento dos princípios gerais, como os princípios da legalidade tributária ou da legalidade penal. Outras vezes são autônomos, como o princípio da an- terioridade em matéria tributária ou o do concurso público em matéria de administração pública. 13. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 122. Feita essa sistematização preliminar, é preciso destacar o papel prá- tico dos princípios dentro do ordenamento jurídico constitucional, enfatizando sua finalidade ou destinação. Cabe-lhes, em primeiro lugar, embasar as decisões políticas fundamentais tomadas pelo constituinte e expressar os valores superiores que inspiraram a criação ou reorganiza- ção de um dado Estado. Eles fincam os alicerces e traçam as linhas mestras das instituições, dando-lhes o impulso vital inicial.

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Em segundo lugar, aos princípios se reserva a função de ser o fio condutor dos diferentes segmentos do Texto Constitucional, dando uni- dade ao sistema normativo. Um documento marcantemente político como a Constituição, fundado em compromissos entre correntes opostas de opinião, abriga normas à primeira vista contraditórias. Compete aos prin- cípios compatibilizá-las, integrando-as à harmonia do sistema. E, por fim, na sua principal dimensão operativa, dirigem-se os princí- pios ao Executivo, Legislativo e Judiciário, condicionando a atuação dos poderes públicos e pautando a interpretação e aplicação de todas as nor- mas jurídicas vigentes. Exemplo dessa utilidade prática do uso dos princí- pios vem de ser dado por Sergio Ferraz, em pioneiro estudo que dedicou a temas só recentemente aportados ao mundo jurídico, como doação de órgãos, inseminação artificial, "bebê de proveta" e "útero de aluguel". Di- ante de aspectos que difusamente se distribuíam por diferentes domínios jurídicos - como os do direito civil, penal, administrativo -, declarou- se ele na contingência de fazer uma opção metodológica por enfocar as perplexidades que a matéria provocava: "A vista do exclusivo farol capaz de solvê-las univoca- mente, para todos os ramos da árvore jurídica: o contraste entre as indagações e os princípios constitucionais da or- dem jurídica brasileira. Com isso, a questão por certo não ganha em facilidade e simplificação, quem sabe até mais intrincada se torne. Mas ganha em certeza e segurança, pois somente princípios constitucionais podem ostentar a mar- ca da irredutibilidade a outros, num pensamento jurídico coerentemente concatenado". 14. Sérgio Ferraz, Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução, 1991, p. 16. Sobre esse tema, veja-se, também, Heloísa Helena Barboza, "A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização in vitro", 1993. À luz dos conceitos gerais expostos acima, e com o objetivo de auxiliar o intérprete colocando à sua disposição um catálogo tópico, procura-se, a seguir, esboçar um quadro geral dos princípios constitucio- nais brasileiros, tendo como moldura o Texto Constitucional em vigor. A enunciação está longe de ser exaustiva, mas pretende haver captado os mais destacados princípios enquadrados na tipologia aqui delíneada: fundamentais, gerais e setoriais. À vista do direito posto, são princípios fundamentais do Estado bra- sileiro os seguintes: - princípio republicano (art. 1º, caput); - princípio federativo (art. 1º, caput); - princípio do Estado democrático de direito (art. 1º, caput); - princípio da separação de Poderes (art. 2º); - princípio presidencialista (art. 76); - princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV). São essas as decisões políticas fundamentais do constituinte. Já no caput do art. 1º, ele explicitou que preferia a forma de governo republi- cana em lugar da monárquica, a forma federativa de Estado e não a unitária, e que o regime de governo seria o democrático, com todo o poder emanando do povo. Remarcou a idéia de separação de Poderes - tradicio- nal decorrência do princípio democrático no constitucionalismo ociden- tal -, optou pelo presidencialismo sobre o parlamentarismo e deixou expressa sua profissão de fé capitalista ao consagrar a livre iniciativa. Se o constituinte de 1988 não tivesse dito mais nada; se a Carta se cifrasse a um único artigo que abrigasse os princípios acima, ainda as- sim ter-se-iam os contornos essenciais do Estado que se pretendeu criar.

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Se se deixasse tudo o mais para o legislador ordinário, não poderia ele desfigurar o modelo básico que a ele se impôs. De outra parte, figuram dentre os princípios gerais os que se seguem: - princípio da legalidade (art. 5º, II); - princípio da liberdade (art. 5º, II, e diversos incisos do art. 5º como IV, VI, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII etc.); - princípio da isonomia (art. 5º, caput e inciso I); - princípio da autonomia estadual e municipal (art. 18); - princípio do acesso ao Judiciário (art. 5º, XXXV); - princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI); - princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII); - princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV). O elenco acima comportaria significativa ampliação, de acordo com o gosto de cada um. Há características peculiares a esses princípios, em contraste com os que se dizem fundamentais. Em primeiro lugar, eles não têm caráter organizatório do Estado, mas sim limitativo de seu po- der, resguardando desde logo situações individuais. Seu conteúdo tem menos de decisão política e mais de valoração ética, embora, de certa forma, não deixem de ser meros desdobramentos daquelas opções polí- ticas fundamentais. Os princípios gerais, embora se possam encontrar em diferentes passagens da Constituição, concentram-se no capítulo dedicado aos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º). Os princípios setoriais ou especiais distribuem-se por diferentes tí- tulos da Constituição e irradiam-se sobre um número limitado de nor- mas. Sem ser exaustivo, é possível destacar os que vão adiante mencio- nados, dentro das respectivas áreas de atuação: I - Administração Pública: - princípio da legalidade administrativa (art. 37, caput); - princípio da impessoalidade (art. 37, caput); - princípio da moralidade (art. 37, caput); - princípio da publicidade (art. 37, caput); - princípio do concurso público (art. 37, II); - princípio da prestação de contas (arts. 70, parágrafo único, 34, VII, d, e 35, II). II - Organização dos Poderes: - princípio majoritário (arts. 46 e 77, § 2º); - princípio proporcional (arts. 45 e 58, § 1º); - princípio da publicidade e da motivação das decisões judiciais e administrativas (art. 93, IX e X); - princípio da independência e da imparcialidade dos juízes (arts. 95 e 96); - princípio da subordinação das Forças Armadas ao poder civil (art. 142). III - Tributação e Orçamento: - princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º); - princípio da legalidade tributária (art. 150, I); - princípio da isonomia tributária (art. 150, II); - princípio da anterioridade da lei tributária (art. 150, III); - princípio da imunidade recíproca das pessoas jurídicas de direito público (art. 150, VI, a); - princípio da anualidade orçamentária (art. 165, III); - princípio da universalidade do orçamento (art. 165, § 5º); - princípio da exclusividade da matéria orçamentária (art. 165, § 8º). IV - Ordem Economica: - princípio da garantia da propriedade privada (art. 170, II); - princípio da função social da propriedade (art. 170, III);

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- princípio da livre concorrência (art. 170, IV); - princípio da defesa do consumidor (art. 170, V); - princípio da defesa do meio ambiente (art. 170, VI). V - Ordem Social: - princípio da gratuidade do ensino público (art. 206, IV); - princípio da autonomia universitária (art. 207); - princípio da autonomia desportiva (art. 217, I). É bem de ver que muitas vezes a Constituição se refere a "princí- pio", quando na verdade está significando uma verdadeira finalidade, como ocorre com a "redução das desigualdades regionais e sociais" ou a "busca de pleno emprego", indicadas como "princípios" da ordem eco- nômica no art. 170. Outras vezes, embora empregue o termo princípios, a Constituição quer referir-se às regras constitucionais em geral, como se passa nos arts. 25, caput, e 29, caput, que, ao tratarem do poder de auto- organização de Estados-membros e Municípios, impõem o respeito aos princípios da Constituição. Entre esses "princípios" inclui-se todo o lon- go elenco de direitos e deveres dos servidores públicos, típicas normas de preceitos, sem qualquer traço de especial abstração ou generalidade. Sem embargo dos particularismos inevitáveis, procurou-se deli- near acima um painel abrangente dos princípios constitucionais do Estado brasileiro colhidos no direito posto. Ao intérprete constitucio- nal caberá visualizá-los em cada caso e seguir-lhes as prescrições. A generalidade, abstração e capacidade de expansão dos princípios per- mite ao intérprete, muitas vezes, superar o legalismo estrito e buscar no próprio sistema a solução mais justa, superadora do summum jus, summa injuria. Mas são esses mesmos princípios que funcionam como limites interpretativos máximos, neutralizando o subjetivismo volun- tarista dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, redu- zindo a discricionariedade do aplicador da norma e impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento. 2. Princípio da supremacia da Constituição Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da supe- rioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental. Na prática brasileira, já de- monstramos em outra parte, no momento da entrada em vigor de uma nova Carta, todas as normas anteriores com ela contrastantes ficam revogadas. E as normas editadas posteriormente à sua vigência, se contravierem os seus termos, devem ser declaradas nulas. A supremacia da Constituição manifesta-se, igualmente, em relação aos atos internacio- nais que devam produzir efeitos em território nacional (v. supra). O constitucionalismo moderno, como é sabido, surgiu no século XVIII, contemporâneo ao advento do Estado liberal. Foi ele um dos principais trunfos da burguesia no acerto de contas com a monarquia absoluta. De fato, naquela fase do desenvolvimento capitalista, o velho regime se tornara um empecilho ao casamento final - e, até aqui, indissolúvel - entre o poder econômico e o poder político, vale dizer, à conquista do Estado pela burguesia. Ora bem: a idéia de supremacia constitucional tem seu fundamento associado a dois relevantes conceitos elaborados naqueles primórdios da ciência constitucional: a distinção entre poder constituin- te e poder constituído, e entre Constituições rígidas e flexíveis. 15. Carlos Roberto de Siqueira Castro, Por um ensino crítico do direito constitucional, in Crítica do direito e do Estado, 1984, p. 138.

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16. V. Segundo V. Linares Quintana, Derecho constitucional y instituciones políticas, 1981, v. 1, p. 481: "... el principio de la supremacía de la Constitución, que descansa en el presupuesto de la distinción entre el poder constituyente y el poder constituido, inherente al sistema de las constituciones rígidas". 17. V. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 1992, p. 47: "Da rigidez emana, como primordial conseqüência, o princípio da supremacia da constituição. (...) Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos". Coube ao padre Emmanuel Joseph Sieyès, autor do célebre opúsculo Qu’est-ce que le Tiers État?, formula pela primeira vez a distinção entre poder constituinte e poder constituído, bem como afirmar a superi- oridade da Constituição. Remonta a essa obra a idéia da ausência de limitação jurídica ao poder constituinte, que não sofre restrição alguma do direito positivo anterior. "Acima dele só existe o direito natural". A afirmação não encontra, modernamente, resistência de maior peso, sendo endossada pela doutrina mais autorizada. A percepção de Sieyès quan- to à dualidade poder constituinte e poder constituído, embora hoje se afigure óbvia, representou um enfoque inteiramente novo do direito cons- titucional. Ao constatar que uma Constituição supõe um poder constituin- te, revelou-se que ela não é um dado mas uma criação. 18. Essa obra tem tradução para o português, publicada sob o título A Constituinte burguesa. O que é o Terceiro Estado, Rio de Janeiro, Liber Juris, 1986. Manoel Gonçalves Ferreira Filho sugere que "esse livro foi o manifesto da Revolução Francesa; está como manifesto para ela assim como está o de Marx para a Revolução Russa" (Direito constitucional comparado - o poder constituinte, 1974, p. 12). 19. Sieyès, A Constituinte burguesa, cit., p. 117. 20. Vejam-se, por todos: Georges Burdeau, Traité de science politique, 1969, v. IV, p. 206; Jorge Reinaldo Vanossi, Uma visão atualizada do poder constituinte, Revista de Direito Constituci- onal e Ciência Política, 1:10, 1983, p. II; e José Alfredo de Oliveira Baracho, Teoria geral do poder constituinte, Revista Brasileira de Estudos Políticos, 52:7, 1981. Não conflita com essa idéiaatese de Otto Bachoff, veiculada em seu Normas constitucionais inconstitucionais?, 1994, que adiante se examinará em minúcia (v. infra). 21. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 98. A dicotomia entre Constituição rígida e Constituição flexível, por sua vez, não se confunde, mas se superpõe, em larga medida, com a distinção entre Constituição escrita e não escrita. Diz-se flexível a Cons- tituição cujo processo de reforma coincide com o modo de produção da legislação ordinária, inexistindo diferença formal entre norma cons- titucional e norma infraconstitucional. A identificação dessa categoria tem hoje valor praticamente "arqueológico", haja vista que a quase-

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totalidade dos regimes constitucionais adota o modelo de Carta escri- ta e rígida. 22. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 151. Já a rigidez constitucional traduz a necessidade de um processo especial para reforma da Constituição, distinto e mais complexo do que o necessário para a edição das leis infraconstitucionais, e que no caso brasileiro incluem quorum eprocedimento diversos, além de limitações materiais e circunstanciais (v. supra). Note-se que a distinção aqui feita entre Constituição rígida e flexível funda-se no aspecto jurídico formal. Sociologicamente, culturalmente, a Constituição inglesa, que tenderia a ser flexível, dado o seu caráter não escrito, é, na prática, muito mais rígida do que têm sido as Constituições brasileiras. Confirmando a tese, veja-se que a Carta de 1988 já havia sofrido, em meados de 1999, mais de vinte emendas, além de uma revisão constitucional que lhe introduziu seis modificações. 23. Sobre o tema, vejam-se: o clássico de James Bryce, Flexible and rigid Constitutions, in Studies in history and jurisprudence, 1901; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 151-2; Konrad Hesse, Concepto e cualidad de la Constitución, in Escritos de derecho constitucio- nal, 1983, p. 24-6. Entre nós, v. a celebrada obra de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das Constituições rígidas, 1980. 24. A este propósito, v. Afonso Arinos de Mello Franco, Curso de direito constitucional brasileiro, 1968, v. 1, p. 52. Sistematizando, então, as idéias pertinentes, vai-se ver que a suprema- cia da Constituição é tributária da idéia de superioridade do poder consti- tuinte sobre as instituições jurídicas vigentes. Isso faz com que o produto do seu exercício, a Constituição, esteja situado no topo do ordenamento jurídico, servindo de fundamento de validade de todas as demais normas, conforme a teoria clássica já exposta (v. supra). Essa supremacia somente se verifica onde exista Constituição rígida. Aliás, a rigidez interage. em uma relação recíproca de causa e efeito, com outro fenômeno que contri- bui para a primazia da ordem constitucional: a vocação maior de perma- nência e estabilidade que acompanha a Lei Fundamental, em contraste com a mutabilidade da legislação ordinária. 25. V. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitu- cional, 1991, p. 50: "... en la medida en que la Constitución es la expresión de una intención fundacional, configuradora de un sistema entero que en ella se basa, tiene una pretensión de permanencia... o duración..., lo que parece asegurarle una superioridad sobre las normas ordinarias carentes de una intención total tan relevante y limitada a objetivos mucho más concretos..". Saindo do plano da teoria geral e das considerações metajurídicas, a supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se em uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal iden- tifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, di- tando competências e procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteú- do de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princí- pios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições for-

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mais e materiais deflagra um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e bati- zado entre nós de "controle de constitucionalidade". 26. V. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 310, e J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 141-2 e 972-3. Tanto a afirmação da supremacia constitucional quanto a possibili- dade de controle de constitucionalidade dos atos estatais encontram-se historicamente ligadas ao direito constitucional norte-americano. Em verdade, na afirmação de García de Enterría, a idéia de supremacia da Constituição foi a mais importante criação do constitucionalismo nor- te-americano, ao lado do sistema federativo, e foi sua grande inovação em face da tradição inglesa. Com ela se afastou a doutrina da "sobera- nia do Parlamento", exposta com autoridade por Blackstone pouco antes da revolução americana, e que de certa forma perdura até hoje no Reino Unido. 27. Mauro Cappelletti (O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito compa- rado, 1984, p. 46e s.), reconhecendo, embora, o caráter pioneiro e original da judicial review como contribuição do direito norte-americano, aponta a existência de precedentes de "supremacia consti- tucional" em outros e mais antigos sistemas jurídicos, como o ateniense e o medieval. Con- clui, assim, o mestre de Florença que a meritória decisão do Chief Justice John Marshall, que iniciou, na América e no mundo, algo de novo e de importante, foi um "ato amadurecido através de séculos de história: história não apenas americana, mas universal". No mesmo sentido, Linares Quintana, Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., v. 1, p. 489 e s. 28. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 50-3. Veja-se que o controle judicial de constitucionalidade, que é a téc- nica de atuação da supremacia da Constituição, não se encontrava explí- cito na Constituição de 1787. De fato, o art. 6º, 2, do Texto, conhecido como supremacy clause, dispunha tão-somente: "Esta Constituição e as leis dos Estados Unidos elabo- radas de acordo com ela, bem como os tratados celebrados ou por celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos, cons- tituirão a suprema lei do País; os juízes de todos os Estados ficam sujeitos a ela, não devendo prevalecer qualquer dis- posição em contrário na Constituição de qualquer dos Es- tados ou nas suas leis". 29. Stone, Seidman, Sunstein, Tushnet, Constitutional law, 1986, p. 28: "It is clear, however, that the supremacy clause itself cannot be the clear textual basis for a claim by the judiciary that this prerogative to determine the repugnancy (of an act to the Constitution) belongs to it" (É claro, no entanto, que a cláusula de supremacia por si só não pode ser a clara base textual para a reivindica- ção pelo Judiciário de que a ele compete a prerrogativa de determinar a incompatibilidade de um ato com a Constituição).

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30. Art. VI, (2): "This Constitution, and the Laws of the United States which shall be made in Pursuance thereof; and all Treaties made, or which shall be made, under the authority of the United States, shall be the supreme Law of the Land; and the Judges in every State shall be bound thereby, any Thing in the Constitution or Laws of any State to the Conlrary notwithstanding". Mas Alexander Hamilton, no Federalista n. 78, havia antecipado a idéia de controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, em texto que se tornou clássico: "Alguma perplexidade quanto ao poder dos tribunais de pronunciar a nulidade de atos legislativos contrários à constituição tem surgido, fundada na suposição de que tal doutrina implicaria na superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Afirma-se que a autoridade que pode declara os atos da outra nulos deve ser necessariamente superior àquela cujos atos podem ser declarados nulos. (...) Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. (...) A presunção natural, à falta de norma expressa, não pode ser a de que o próprio órgão legislativo seja o juiz de seus poderes e que sua interpretação sobre eles vincula os outros Poderes. (...) É muito mais racional supor que os tribunais é que têm a missão de figura como corpo inter- mediário entre o povo e o Legislativo, dentre outras razões, para assegurar que este último se contenha dentro dos po- deres que lhe foram deferidos. A interpretação das leis é o campo próprio e peculiar dos tribunais. Aos juízes cabe determinar o sentido da Constituição e das leis emanadas do órgão legislativo. Esta conclusão não importa, em nenhuma hipótese, em superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Significa, tão-somente, que o poder do povo é superior a ambos; e que onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que edi- ta, situa-se em oposição à vontade do povo, declarada na Constituição, os juízes devem curvar-se à última, e não à primeira". 31. O Federalista (no original, The Federalist) reúne um conjunto de ensaios numerados, escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, publicados na imprensa de Nova York durante os debates sobre a ratificação da Constituição aprovada em 1787, pela Convenção de Fila- délfia. Tais textos explicavam o conteúdo da Constituição e defendiam sua ratificação. A adesão do Estado de Nova York era decisiva, e a ela se opunha o Governador do Estado, George Clinton. V. Gerald Gunther, Constitutional law, 1985 (com suplemento de 1988), p. 15. 32. Hamilton, Madison e Jay, The Federalist Papers, selecionados e editados do original por Roy Fairfield, 1981, p. 226 e s. O texto transcrito foi traduzido livremente pelo autor. Sem qualquer menção expressa ao escrito de Hamilton, esta foi a linha de entendimento seguida por John Marshall, Presidente (Chief Justice) da Suprema Corte, ao relatar e decidir o caso Marbury vs.

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Madison, em 1803, ao fundamentar aquela que é, provavelmente, a mais célebre decisão judicial de todos os tempos, fundou-se ele nas razões que a seguir se sintetizam: "É evidentemente atribuição e dever do Poder Judiciá- rio dizer o direito. E aqueles a quem compete aplicar uma regra a casos concretos devem, necessariamente, interpre- tar esta regra. Se duas leis conflitarem entre si, os tribunais devem decidir sobre a incidência de cada uma. Então, se uma lei estiver em oposição à constituição; se ambas se aplicarem a um determinado caso, exigindo que o tribunal decida ou de acordo com a lei, sem atenção à cons- tituição, ou na conformidade da constituição, sem atenção à lei, cabe ao tribunal determinar qual destas regras conflitantes se aplica ao caso. Esta é a essência da função judicial. Se, então, os tribunais devem observar a constituição e a constituição é superior a qualquer lei ordinária emanada do Legislativo, a constituição, e não a lei ordinária, é que deve reger o caso ao qual ambas se aplicam. (...) Assim, a particular fraseologia da constituição dos Es- tados Unidos confirma e fortalece o princípio, que se su- põe essencial a todas as constituições escritas, de que toda lei contrastante com a constituição é nula". 33. 5 U. S. (1 Cranch) 137 (1803). A supremacia da Constituição e a missão atribuída ao Judiciário na sua defesa têm um papel de destaque no sistema geral de freios e contra- pesos concebido pelo constitucionalismo moderno como forma de con- ter o poder. É que, através da conjugação desses dois mecanismos, reti- ra-se do jogo político do dia-a-dia e, pois, das eventuais maiorias eleito- rais, valores e direitos que ficam protegidos pela rigidez constitucional e pelas limitações materiais ao poder de reforma da Constituição. Não obstante o reconhecimento generalizado da valia de tal concepção, de tempos em tempos ela precisa reafirmar suas virtudes. Nos Estados Unidos tem-se travado, nos últimos anos, uma ampla discussão sobre o controle de constitucionalidade pelo Judiciário e seus limites. Sustenta-se que os agentes do Executivo e do Legislativo, além de ungidos pela vontade popular, sujeitam-se a um tipo de controle e responsabilização política de que os juízes estão isentos. Daí afirma-se que o controle judicial da atuação dos outros Poderes dá lugar ao que se denominou "countermajoritarian difficulty". Notadamente os segmentos conservadores têm questionado o avanço dos tribunais sobre espaços que, segundo crêem, deveriam ficar reservados ao processo político. Em livro clássico, Alexander Bickel abordou o tema, procurando definir o espaço de atuação do Judiciário, em passagem que ficou célebre: "Os tribunais têm certa capacitação para lidar com ques- tões de princípio que o Legislativo e o Executivo não pos- suem. Juízes têm, ou devem ter, a disponibilidade, o trei- namento e o distanciamento para seguir os caminhos da sabedoria e isenção ao buscar os fins públicos. Isto é crucial quando se trata de determinar os valores permanentes de uma sociedade. Este distanciamento e o mistério maravi- lhoso do tempo dão aos tribunais a capacidade de recorrer aos melhores sentimentos humanos, captar as melhores as- pirações, que podem ser esquecidos nos momentos de gran- de clamor". 34. Alexander M. Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 25-6. A recepção, na Europa, do sistema de jurisdição constitucional cria- do nos Estados Unidos não se deu senão após o primeiro pós-guerra,

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já neste século. Obra pessoal de Hans Kelsen, ele foi introduzido na Constituição austríaca de 1920 e aperfeiçoado em sua reforma de 1929. O mecanismo adotado na Austria e, posteriormente, na maior parte dos países da Europa continental foi o do controle concentrado, atri- buído a um único órgão (o Tribunal Constitucional), em oposição ao método difuso norte-americano, em que qualquer juiz pode recusar aplicação de lei inconstitucional. No Brasil, como é notório, adota-se um sistema eclético, onde coexistem o controle incidental pelo siste- ma difuso e o controle direto, pelo sistema concentrado. A competência para pronúncia de invalidade é privativa do Judiciário, não sendo legíti- ma a invalidação de uma lei por outra superveniente. Este entendimento é pacífico, materializando-se na proposição abaixo, extraída de decisão do Supremo Tribunal Federal: "Em nosso sistema jurídico, não se admite declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo com força de lei por lei ou por ato normativo com força de lei posteriores. O controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder". 35. Para uma análise concisa, mas proficiente, dos modelos austríaco, alemão, italiano, francês e espanhol, v. Louis Favoreu, Les cours constitutionnelles, 1986. Em língua portuguesa, veja-se José Alfredo de Oliveira Baracho, Processo constitucional, 1984, p. 191-344, contendo a análise dos mo- delos europeu, norte-americano e latino-americano. O livro clássico de Mauro Cappelletti, Il controllo giudiziario di costituzionalità della leggi nel diritto comparato, 1968, tem uma versão para a língua portuguesa (O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado, 1984). 36. José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, 1993, v. 5, p. 28. Vejam-se, por todos, no direito brasileiro: C. A. Lúcio Bittencourt, O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, 1968; Alfredo Buzaid, Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, 1958; e Ronaldo Poletti, Controle da constitucionalidade das leis, 1985. Dentre os trabalhos posteriores à promulgação da Constituição de 1988, vejam-se, especialmente, Carlos Mário da Silva Velloso, O controle da constitucionalidade das leis, in Temas de direito público, 1994, e Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990. Mais recente ainda é a impecável tese de Clèmerson Merlin Clêve, A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro, 1995. 36-A. RTJ, 151:331, 1995, ADIn 221-DF, rel. Min. Moreira Alves. Embora a idéia de supremacia da Constituição esteja ínsita em todos os casos de controle de constitucionalidade, vez por outra a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reserva-lhe menção expressa. Confira-se acórdão da lavra do Ministro Célio Borja, remarcando os conceitos dou- trinários básicos: "O princípio da supremacia da ordem constitucional - consectário da rigidez normativa que ostentam os preceitos de nossa Constituição - impõe ao Poder Judiciário, qual- quer que seja a sede processual, que se recuse a aplicar leis

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ou atos estatais reputados em conflito com a Carta Federal. A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamen- tal, de uma fundamental law, cujo incontrastável valor ju- rídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado". 37. RTJ, 140:954, 1992, p. 964, RE 107.869, rel. Min. Célio Borja. Veja-se, também, RTJ, 146:461, 1993, ADIn 652-MA, rel. Min. Celso de Mello: "O repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de pre- sentar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos re- vestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e de conseqüente inaplicabilidade". Mais adiante, o Supremo Tribunal, ao negar a possibilidade de reedição de medida provisória rejeitada pelo Congresso, reafirmou, em acórdão unânime: "Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica - dos Tribunais especial- mente - porque são írritos, nulos e desvestidos de qual- quer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos po- deres constituídos e nem ao império dos fatos e das circuns- tâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos. Ao Su- premo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminen- te, de velar por que essa realidade não seja desfigurada". 38. RT, 700:221, 1994, ADIn 293-7/600, rel. Min. Celso Mello. Ainda no âmbito da supremacia da Lei Maior, o Superior Tribunal de Justiça apreciou a questão envolvendo o art. 37, VII, da Constituição Federal, que, ao cuidar da administração pública, previu que o direito de greve dos servidores civis seria exercido nos termos e nos limites defini- dos em lei complementar - hoje lei específica, nos termos da redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/98. Passados quatro anos de vi- gência da Constituição, a norma infraconstitucional não havia ainda sido editada. Admitir-se que o direito de greve não poderia ser exercido, ante a inércia indefinida do legislador, violaria o princípio da supremacia da Constituição, uma vez que o direito por ela outorgado ficaria paralisado por omissão de órgão do poder instituído. Daí haver concluído, com acedo, o Tribunal que: "A Constituição da República garante o direito de gre- ve aos funcionários públicos, "nos limites definidos em lei complementar" (art. 37, VII). Essa legislação não poderá recusar a paralisação da atividade, essência da greve, uni- versalmente reconhecida. Além disso, são passados quatro anos de vigência da Carta Política. O legislador mantém- se inerte. Esses dois dados conferem legalidade ao exercí- cio do direito, observando-se, analogicamente, princípios e leis existentes. Caso contrário, chegar-se-ia a um absur- do: a eficácia da Constituição depende de norma hierarqui-

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camente inferior". 39. RT, 700:185, 1993, RMS 2.865-3-SC, rel. Min. Vicente Cernicchiaro. Em sentido diverso pronunciou-se o Tribunal de Justiça da Paraíba: "O direito de greve dos servidores públicos, insculpido no art. 37, VII, da CF/88, é meramente potencializado, norma programática, de eficácia contida e aplicabilidade invalidante, que, por depender de lei complementar para regulá-la, não pode ser exercido por seus destinatários" (RT, 701:142, 1994). Não sem causar certa decepção, o Supremo Tribunal Federal perfilhou linha diversa, no julgamento de mandado de injunção impetrado pela Confederação dos Servidores Públicos do Brasil a propósito da omis- são legislativa do Congresso em editar a norma reclamada pelo art. 37, VII. Embora acolhendo o mandado de injunção para o fim de reconhe- cer a mora do Congresso Nacional e determinar a ciência formal do Poder Legislativo para que sanasse a inércia até então verificada, lavrou o acórdão, da relatoria do Ministro Celso de Mello: "Direito de greve do servidor público civil - (...) Prer- rogativa jurídica assegurada pela Constituição (art. 37, VII) - Impossibilidade de seu exercício antes da edição de Lei Complementar". 40. LTr, 58:647, 1994, MI 20-4-DF, rel. Min. Celso de Mello. Na nova redação dada ao art. 37, VII, pela Emenda Constitucional n. 19/98, a previsão passou a ser de edição de "lei específica" e não mais de lei complementar, fato que não interfere com o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que é necessária a interpositio legislatoris para que o direito possa ser exercido. Retratou-se, assim, a doutrina e algumas aplicações práticas do prin- cípio da supremacia da Constituição, que, do ponto de vista lógico e cronológico, é o primeiro princípio a ser levado em conta no processo intelectivo da interpretação constitucional. 3. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público A interpretação constitucional é atividade desenvolvida pelos três poderes no âmbito do Estado. Idealmente, todos os órgãos públicos pau- tam sua conduta na conformidade da Constituição e agem na realização do bem comum. Embora se haja reservado ao Judiciário o papel de in- térprete qualificado das leis, os Poderes se situam em plano de recíproca igualdade, e os atos de cada um deles nascem com presunção de validade. Mais que isso: nenhum Poder, nem mesmo o Judiciário, pode intervir em esfera reservada ao outro para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade. Vejam-se, a seguir, o fundamento, o conteúdo e as impli- cações práticas do princípio da presunção de constitucionalidade das leis. Um dos fundamentos sobre os quais se assenta o Estado constitucional de direito é a divisão ou separação dos Poderes. Seu antecedente mais remoto, na modernidade, foi o processo revolucionário que conduziu à afir- mação do Parlamento em face do monarca, na Inglaterra, com a edição do Bill of Rights, em 1689. Sua sacramentalização, por outro lado, se deu com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, em meio ao turbulento processo revolucionário francês. Mas foi a Constitui- ção americana, de 1787, que pela primeira vez formalizou o modelo empiricamente colhido na experiência inglesa e teoricamente elaborado por autor francês, dando-lhe o temperamento dos checks and balances

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(freios e contrapesos), pelo qual se estabeleceram áreas de interseção e de controle recíproco entre Legislativo, Executivo e Judiciário. 41. Sem embargo da terminologia consagrada, a doutrina é unânime em apontar a impropri- edade da referência à separação ou divisão de Poderes. O poder, estatal e soberano, é uno, manifes- tando-se, no entanto, por intermédio de órgãos diversos, que desempenham cada uma das funções públicas. V., por todos, Michel Temer, Elementos de direito constitucional, 1990, p. 116. 42. O princípio da separação de Poderes, já sugerido em Aristóteles, deve sua primeira for- mulação nos tempos modernos a John Locke, em sua obra célebre Two treatises of government 1690). Não obstante, seu principal sistematizador foi, sem dúvida, Montesquieu, no capítulo 6º do livro XI de seu notório tratado De l’esprit des lois (1748) (há uma edição brasileira dessa obra, publicada em 1987). Vejam-se, sobre o tema, por todos, Marcelo Caetano, Direito constitucional, 1987, v. 1, p. 232-5, e Nowak, Rotunda e Young, Constitutional law, 1986, p. 121. 43. Assim dispunha o art. 16 da Declaração francesa: "Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a pas de constitution" (Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação de Poderes determina- da, não tem constituição). 44. As quatro pedras fundamentais do constitucionalismo americano, escreveu Cass R. Sunstein, são o sistema de checks and balances, o federalismo, os direitos individuais e o controle de constitucionalidade (The partial Constitution, 1993, p. V). Embora viva, nesta virada de século, um momento crucial, entre a decadência e a necessidade de reformulação, o princípio da separação de Poderes subsiste como uma valiosa referência para a interpretação constitucional, definindo papéis e estabelecendo limites. Caracteri- zam-no a especialização funcional e a independência orgânica, que não se contrapõem, no entanto, à circunstância de que cada Poder não exer- ce, de modo exclusivo, a função que nominalmente lhe corresponde, e sim tem nela a sua competência principal e predominante. A função legislativa, escreveu Seabra Fagundes, liga-se ao fenômeno de criação do direito, ao passo que as funções administrativa e judicial se prendem à sua realização. Legislar é editar o direito positivo; administrar é apli- car a lei de oficio; e julgar é aplicar a lei contenciosamente. 45. Para uma visão crítica do princípio, veja-se, na literatura nacional: Victor Nunes Leal, A divisão dos Poderes no quadro da burguesia, in Cinco estudos, 1955; José Alfredo de Oliveira Baracho, Processo constitucional, 1984, p. 26 e s.; Paulo Bonavides, Do Estado liberal ao Estado social, 1961, p. 36; e Carlos Roberto de SiqueiraCastro, O Congresso e as delegações legislativas, 1986,p. 193. 46. V. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1979, p.

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7-8, e Celso Ribeiro Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, 1986, p. 79. 47. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, cit., p. 4-5. Ao Poder Judiciário cabe prestar jurisdição, que é a atividade estatal destinada a fazer atuar o direito objetivo, promovendo a tutela dos interes- ses violados ou ameaçados. A função jurisdicional é, tipicamente, de res- tauração da ordem jurídica quando vulnerada, e destina-se à formulação e à atuação prática da norma concreta que deve disciplinar determinada situa- ção. O seu exercício pressupõe, assim, um conflito, uma controvérsia em torno da realização do direito, e visa a removê-lo pela definitiva e obrigatória interpretação da lei. 48. V. Paolo Biscaretti di Ruffia, Direito constitucional, 1984, p. 420, e José Alfredo de Oli- veira Baracho, Processo constitucional, cit., p. 139. 49. José Carlos Barbosa Moreira, O novo processo civil brasileiro, 1993, p. 3. Por vezes a atividade jurisdicional antecipa-se à violação da regra legal, como ocorre na tutela preventiva e na tutela cautelar. A Lei n. 8.951, de 13-12-1994, alterou o art. 273 do Código de Processo Civil, criando o mecanismo que ficou conhecido como tutela antecipada ou antecipatória. 50. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, cit., p. 11. Na esteira do ensinamento de Georges Burdeau (Traité de science politique, 1970, t. 5, p. 379) e Hans Kelsen (Teoría general del Estado, 1965, p. 301), é de se reconhecer não existir diferença ontológica entre a função jurisdicional e a função administrativa, por isso que ambas se voltam para a realização do direito, ao passo que a função legislativa se liga à sua criação. Distinguem-se, no entanto, as duas primeiras, pela forma com que são acionadas e pelo momento e finalidade de seu exercício. O esquema delineado acima é amplo o suficiente para abrigar a atua- ção desenvolvida pelo Judiciário quando realiza o controle de constitu- cionalidade em via incidental. Isso porque, nessa forma de controle, que se faz de modo difuso, o juiz atua para solucionar um caso concreto que lhe é submetido, consistindo a apreciação da constitucionalidade ou não da norma em mera questão prejudicial, que vai subordinar logicamente a decisão a ser proferida. Mas o objeto da ação não é a pronúncia de inconstitucionalidade da norma, e sim a solução do conflito de interes- ses. A decisão opera efeito somente entre as partes do processo, e a questão da constitucionalidade não faz coisa julgada. 51. Suponha-se, por exemplo, que um contribuinte embargue uma execução fiscal, sob o fundamento de que a cobrança de dado tributo é inconstitucional. O objeto da ação de embargos, a ser decidido pelo juiz, é determinar se o tributo é ou não devido. Só que, para chegar a tal resultado, o juiz precisará, previamente,prejudicialmente, apurar da constitucionalidade ou não da norma que instituiu o tributo. Sobre o tema da argüição incidental de inconstitucionalidade, v. José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, 1993, p. 27 e s.

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52. Isto porque, como se disse, a manifestação do órgão judicial sobre a constitucionalidade da norma é "questão prejudicial", e a apreciação de questão dessa natureza, decidida incidentemente no processo, não faz coisa julgada, a teor do art. 469, III, do Código de Processo Civil. Se o controle incidental e difuso pode enquadrar-se na função típica do Judiciário, o fato é que o controle de constitucionalidade em via princi- pal certamente refoge ao exercício típico da jurisdição. Nessa hipótese, referida na Constituição como ação direta (art. 102, I, a), o controle se exerce de modo concentrado e em tese, in abstracto, tendo por objeto a apreciação da compatibilidade da norma com a Constituição. Não se cuida, como no normal da atuação do Judiciário, de solucionar um caso concreto, um conflito de interesses entre partes. Aqui, constatada a in- compatibilidade da norma com a Lei Maior, a conseqüência é a parali- sação de sua eficácia e eventual retirada do mundo jurídico. A doutrina costuma referir-se a tal papel como o desempenho de uma atividade legislativa negativa. 53. Para uma ampla discussão da matéria no pensamento de Kelsen, Carl Schmitt e Rudolph Smend, v. José Antonio Estévez Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia civil, 1994, p. 51 e s. Na jurisprudência brasileira existe acórdão da Suprema Corte, da lavra do Min. Moreira Alves, na Rep. n. 1.417, no qual invocou o magistério de Ritterspach (Legge sul Tribunale Costituzionale della Repubblica Federale di Germania, p. 94): "Ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o Tribunal - em sua função de Corte Constitucional - atua como um legisla- dor negativo" (DJU, 4 set. 1987, p. 18302-6). A declaração de inconstitucionalidade de uma norma, em qualquer caso, é atividade a ser exercida com autolimitação pelo Judiciário, devi- do à deferência e ao respeito que deve ter em relação aos demais Pode- res. A atribuição institucional de dizer a última palavra sobre a interpre- tação de uma norma não o dispensa de considerar as possibilidades legí- timas de interpretação pelos outros Poderes. No tocante ao controle de constitucionalidade por ação direta, a atuação do Judiciário deverá ser ainda mais contida. É que, nesse caso, além da excepcionalidade de rever atos de outros Poderes, o Judiciário desempenha função atípica, sem cunho jurisdicional, pelo que deve atuar parcimoniosamente. A presunção de constitucionalidade das leis encerra, naturalmente, uma presunção iuris tantum, que pode ser infirmada pela declaração em sentido contrário do órgão jurisdicional competente. O princípio de- sempenha uma função pragmática indispensável na manutenção da imperatividade das normas jurídicas e, por via de conseqüência, na har- monia do sistema. O descumprimento ou a não-aplicação da lei, sob o fundamento de inconstitucionalidade, antes que o vício haja sido pro- clamado pelo órgão competente, sujeita a vontade insubmissa às san- ções prescritas pelo ordenamento. Antes da decisão judicial, quem sub- trair-se à lei o fará por sua conta e risco. 54. O princípio é tradicionalmente reconhecido no direito brasileiro. Vejam-se, a propósito: Castro Nunes, Teoria e prática do Poder Judiciário, 1943, p. 589-92; Carlos Maximiliano, Comen- tários à Constituição brasileira, 1948, v. 1, p. 157; Themístocles Brandão Cavalcanti, Do controle

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de constitucionalidade, 1966, p. 85; Lúcio Bittencourt, O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, 1968, p. 91-2 e 113-4; e Ronaldo Poletti, Controle de constitucionalidade das leis, 1985, p. 101 e s. Marcelo Neves (Teoria da inconstitucionalidade das leis, 1988, p. 145) constatou que Mauro Cappelletti se manifesta contrariamente à existência dessa presunção no ordenamento italiano (La pregiudizialità costituzionale nel processo civile, 1972, p. 85-6) e, prin- cipalmente, nos sistemas de controle difuso (O controle judicial de constitucionalidade no direito comparado, 1984, p. 85). Entre nós, Lúcio Bittencourt critica o princípio, afirmando que com ele se quer significar, desnecessariamente, "que as leis não têm eficácia dependente de prévia apreciação pelo Poder Judiciário" (O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, cit., p. 114). A crítica não procede, constatando-se, da leitura do texto, que o ilustre jurista confundiu o princípio da presunção de constitucionalidade com o da auto-executoriedade. 55. V. Marcelo Neves, Teoria da inconstitucionalidade das leis, cit., p. 146-7, e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, A teoria das Constituições rígidas, cit., p. 140. Em sua dimensão prática, o princípio se traduz em duas regras de observância necessária pelo intérprete e aplicador do direito: a) não sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a possibilidade de razoavelmente se considerar a norma como válida, deve o órgão competente abster-se da declaração de inconstitucionalidade; b) havendo alguma interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constituição, em meio a outras que carreavam para ela um juízo de invalidade, deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor. 56. Sobre o tema, escreveu Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito, 1981, p. 307): "Todas as presunções militam a favor da validade de um ato, legislativo ou executivo; portanto, se a incompetência, a falta de jurisdição ou a inconstitucionalidade, em geral, não estão acima de toda dúvida razoável, interpreta-se e resolve-se pela manutenção do deliberado por qual- quer dos três ramos em que se divide o Poder Público. Entre duas exegeses possíveis, prefere-se a que não infirma o ato de autoridade". A primeira regra será aprofundada, com o aporte da doutrina e ju- risprudência comparada e nacional. A segunda, que a doutrina denomi- na interpretação conforme a Constituição, será desenvolvida autonoma- mente, em tópico subseqüente. Foi visto, anteriormente, que a possibilidade de controle judicial dos atos dos Poderes Legislativo e Executivo deita raízes no constitucionalis- mo norte-americano. De fato, foi em Marbury vs. Madison, uma deci- são de 1803, que, pela primeira vez, um tribunal pronunciou a inconstitucionalidade de uma lei, dando início à primazia que até hoje se reconhece ao Judiciário de intérprete qualificado e definitivo da Cons- tituição. É bem de ver, no entanto, que o constitucionalismo americano, que criou o precedente do controle judicial, cuidou igualmente de traçar uma série de limitações rigorosas ao seu exercício. Daí a razão de,

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após a decisão em Marbury, haverem-se passado mais de 50 anos até que a Suprema Corte voltasse a declarar a inconstitucionalidade de uma lei editada pelo Congresso. 57. Houve, todavia, um precedente de declaração de inconstitucionalidade de lei estadual, em Fletcher vs. Peck, 6 Cranch 87 (1810), embora a doutrina do controle de constitucionalidade das decisões estaduais só houvesse sido desenvolvida em Martin vs. Hunter’s Lessee, 1 Wheat 304 (1816). Curiosamente, só voltou a fazê-lo em Dred Scott vs. Sandford, jul- gado em 1857, onde tinha argumentos para deixar de conhecer o caso, mas preferiu pronunciar a mais condenada de todas as decisões do constitucionalismo americano. Nela, a Suprema Corte considerou se- rem inconstitucionais tanto as leis estaduais quanto as federais que pre- tendessem conferir cidadania aos negros, que eram vistos como seres inferiores e não tinham proteção constitucional. Com isso, a Suprema Corte tomou partido no amplo debate jurídico e econômico que pouco à frente deflagraria violenta guerra civil, e alinhou-se com a defesa da escravidão. Muitos anos se passaram até que o Tribunal recuperasse sua autoridade moral e política. 58.60 U. S. (19 How.) 393 (1857). A Suprema Corte tinha argumentos para dar-se por incom- petente ou para discutir a questão apenas em termos da aplicação da lei do Estado do Missouri, sem precisar ingressar no mérito do tema constitucional (v. Nowak, Rotunda e Young, Constitutional law, cit., p. 559). 59. Nowak, Rotunda e Young, Constitutional law, cit., p. 559. Consoante se averbou acima, a prática constitucional americana im- pôs uma série de limitações ao exercício da judicial review. Algumas dessas restrições têm base direta e imediata no próprio texto da Consti- tuição, ao passo que outras são frutos de elaboração doutrinária e jurisprudencial, algumas delas fundadas em juízos relativamente discri- cionários de conveniência e oportunidade. Dentre as limitações expres- samente contempladas na Constituição está a que exige, para o exercí- cio da jurisdição constitucional, que se trate de situação litigiosa mani- festada em caso concreto (case or controversy), vedado o pronuncia- mento em tese (no advisory opinion). 60. A caracterização do que seja "caso" ou "controvérsia" foi feita em inúmeros casos pela Corte, encontrando-se esquematicamente delineada, e. g., em Muskrat vs. United States, 219 U. S. 346(1911). O dispositivo relevante na matéria é o art. 3º, seção 2, n. 1, da Constituição, onde se lê: "a competência do Poder Judiciário se estenderá a todos os casos de aplicação da Lei e da Eqüidade ocorridos sob a presente Constituição, as leis dos Estados Unidos e os tratados concluídos ou que se concluírem sob sua autoridade; a todos os casos que envolvam embaixadores, outros ministros e côn- sules; a todas as questões de direito e jurisdição marítimos; às controvérsias em que os Estados Unidos sejam parte; às controvérsias entre dois ou mais Estados, entre um Estado e cidadãos do outro Estado, entre cidadãos de diferentes Estados, entre cidadãos do mesmo Estado reivindicando terras em virtude

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de concessões feitas por outros Estados, entre um Estado, ou seus cidadãos, e Estados estrangeiros, seus cidadãos e súditos". Como desdobramento da exigência do "caso" ou "controvérsia" do art. 3º, a jurisprudência da Suprema Corte desenvolveu uma série de limitações quanto a quem pode suscitar a jurisdição constitucional, quando ela deve ser exercida e quais casos podem ser apreciados. No tocante a quem pode demandar invocando uma questão constitucional, a Corte es- tabeleceu rigorosa aferição da legitimação ativa (standing), onde se in- clui a verificação da existência de dano efetivo (injury in fact) e nexo causal (causation). Relativamente à oportunidade, a Suprema Corte desenvolveu as teses da prejudicialidade (mootness) - o Tribunal não se pronuncia quando alguma circunstância superveniente, de fato ou de direito, torna desnecessária sua manifestação sobre a questão constitucio- nal - e da prematuridade (ripeness) - o Tribunal não se pronuncia quando entende que a questão constitucional ainda não se encontra sufi- cientemente amadurecida, por estarem os fatos em andamento ou por haver a possibilidade de que eventos futuros modifiquem sua configura- ção jurídica. Por fim, quanto às matérias que podem ser objeto de litígio de índole constitucional, a Suprema Corte cuidou de excluir as questões políticas66 e as questões emanadas de cortes estaduais onde a decisão, sem embargo de haver-se manifestado sobre questão constitucional, assentou-se, também, em fundamento adequado e autônomo de cará- ter ordinário. 61. V. Jerome A. Barron e C. Thomas Dienes, Constitutional law, 1991, p. 72. 62. V. Warth vs. Seldin, 422 U. S. 490(1975). 63. V.Allen vs. Wright, 468 U. S.737(1984). 64. V. DeFunis vs. Odegaard, 416 U. S.312(1974). 65. V. Abbot Laboratories vs. Gardner, 387 U. S. 136 (1967). Nowak, Rotunda e Young (Constitutional law, cit., p. 66-7), ao comentarem a doutrina do ripeness, nela identificam o funda- mento invocado pela Suprema Corte para um conjunto de decisões que nãu apresentam uma nítida linha de coerência, nas quais se revela apenas o desejo do Tribunal de abster-se de julgar. Sobre o tema, v. também Laurence Tribe, American constitutional law, 1988, p. 77-82. 66. V. Baker vs. Carr, 369 U. S. 186 (1962). Veja-se, mais recentemente, Nixon vs. United States, 113S. Ct. 732 (1993). 67. V. Herb vs. Pitcarin, 324 U. S. 117 (1945), Michigan vs. Long, 463 U. S. 1032 (1983), Pennzoil Co. vs. Texaco, 107 S. Ct. 1519 (1987). Demais disso, a Suprema Corte também estabeleceu uma série de regras pelas quais se impõe o dever de evitar decisões de cunho consti- tucional, sempre que isso seja possível, mesmo quando presentes os requisitos para a apreciação da matéria. Assim é que, em Ashwander vs. TVA, em voto célebre do Justice Brandeis, ficou assentado que o Tri- bunal deverá abster-se de exercer a jurisdição constitucional: (1) se não for indispensável adentrar a questão constitucional; (2) se houver funda- mentos alternativos para decidir; (3) se for razoavelmente possível inter- pretar uma lei evitando a questão constitucional; (4) em termos mais am- plos do que exigido pelos fatos que estão sendo objeto de julgamento. 68. 297 U. S. 288 (1936). O princípio geral foi assentado no voto condutor nos termos se-

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guintes: "When the validity of an act of Congress is drawn in question, and even if a serious doubt of constitutionality is raised, it is a cardinal principle that this Court will first ascertain whether a construction of the statute is fairly possible by which the question may be avoided" (Quando a validade de um ato do Congresso é trazida à baila, e mesmo que se suscite uma séria dúvida quanto à sua constitucionalidade, é um princípio cardeal que esta Corte irá primeiramente certificar-se se existe alguma interpretação razoavelmente possível que possa evitar a questão constitucional). V. também Rescue Army vs. Municipal Court, 331 U. S. 549(1947). 69. Vejam-se Paul Brest e Sanford Levinson, Processes of constitutional decisionmaking, 1983, p. 1025-8; Nowak, Rotunda e Young, constitutional law, cit., p. 86-7; e Gerald Gunther, Constitutional law, cit., p. 1597-8. É interessante a observação de que o princípio da presunção de constitucionalidade é mais referido e homenageado quando não vai ser seguido do que quando vai ser observado e aplicado. Na prática juris- prudencial americana há uma hipótese em que ele não prevalece: quando, contrastado com o princípio constitucional da igualdade perante a lei, um ato normativo se utilizou de classificações que a jurisprudência considera suspeitas. São consideradas suspeitas, por exemplo, as que se fundam em critério racial ou de origem nacional. Nesse caso, a norma sujeita-se a uma avaliação severa (strict scrutiny), onde a presunção de validade se transforma em presunção de invalidade, cabendo ao Governo (seja o Legislativo ou o Executivo) o ônus de demonstrar que a classificação é necessária e inevitável para realização de um relevante fim público. 70. Barron e Dienes, Constitutional law, 1991, p. 71. 71. Barron e Dienes, Constitutional law, cit., p. 20-1. A idéia de strict scrutiny é a de uma advertência a legisladores e administradores para que sejam especialmente atentos às classificações que afetam direitos fundamentais ou sugiram discriminação racial ou contra outras minorias. Em apenas um caso a Suprema Corte considerou constitucional uma classifi- ação ostensivamente suspeita: foi a que discriminava contra japoneses, impondo-lhes restri- ções de locomoção, durante a 2ª Guerra Mundial. V. Korematsu vs. United States, 323 U. S. 14(1944). V. também, a este propósito, Laurence Tribe, American constitutional law, cit., p. 1451-2. Na Alemanha, o princípio da presunção de constitucionalidade tem- se diluído no da interpretação conforme a Constituição. Na França, à luz da Carta em vigor, não há sentido em invocá-lo, tendo em vista que o Conselho Constitucional, quando lhe cabe manifestar-se, atua previa- mente à vigência da lei, inexistindo controle de constitucionalidade a posteriori. Na Espanha, embora a ênfase recaia na versão da interpre- tação conforme a Constituição, há referência expressa ao princípio da presunção de constitucionalidade, que é irmanado ao princípio da con- servação da norma. De acordo com a doutrina espanhola, o princípio implica (a) uma manifestação de confiança no legislador e em sua cor- reta interpretação dos princípios constitucionais; (b) a impossibilidade

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de declarar-se a inconstitucionalidade de uma norma, salvo quando não existir "dúvida razoável" sobre sua contrariedade à Constituição; (c) a presunção, sempre que seja "razoavelmente possível", de que, dentre várias interpretações admissíveis, o legislador quis inclinar-se pela que possibilita a manutenção da norma dentro dos limites constitucionais. 72. Friesenhahn, La giurisdizione costituzionale nella Repubblica Federale tedesca, 1973, p. 92: "Na Alemanha se deve presumir que uma lei seja compatível com a Lei Fundamental e o princípio expresso nessa presunção requer, na dúvida, uma interpretação conforme à Constituição" (apud Rep. n. 1 .417-7-DF, rel. Min. Moreira Alves, RT- CDC e CP, 1:314, 1992). V., infra, ampla referência à doutrina e jurisprudência alemãs na matéria. 73. Sobre a composição e atribuições do Conseil Constitutionnel, v. Constituição france- sa, arts. 56 e s., especialmente o art. 61, que prevê: "Art. 61. As leis orgânicas, antes da promulgação, e os regimentos das duas Câmaras do Parlamento, antes de começarem a ser aplicados, devem ser submetidos ao Conselho Constitucional a fim de este se pronunciar so- bre a sua conformidade com a Constituição. Para o mesmo efeito, as leis podem, antes da promulgação, ser submetidas ao Conselho Constitucional...". Sobre o tema, no direito francês mais recente, v. Bernard Chantebout, Droit constitutionnel et science politique, 1991, p. 574 e S., Debbasch, Bourdon, Pontier e Ricci, Droit constitutionnel et institutions politiques, 1990, p. 573 e s. Sobre a atuação concreta do Conselho, v. Louis Favoreu e Loïc Philip, Les grandes décisions du Conseil Constitutionnel, 1991. Mais adiante far-se-á referência à proposta de introdução do controle constitucional a posteriori no direito francês, constante de trabalho elaborado por comissão designada pelo Presidente da República, sob a presidência de Georges Vedel (v. Propositions pour une révision de la Constitution - 15février 1993, Rapport au président de la République). 74. V. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Consti- tucional, cit., p. 96, e Francisco Fernandez Segado, El sistema constitucional español, 1992, p.80. No Brasil, e de longa data, o princípio tem sido afirmado, assim pela doutrina como pela jurisprudência, que já assentou que a dúvida milita em favor da lei, que a violação da Constituição há de ser mani- festa e que a inconstitucionalidade nunca se presume. É igualmente vetusta a convicção de que, entre exegeses possíveis, prefere-se a que não infirme o ato de autoridade. A propósito, a doutrina e a jurispru- dência brasileiras têm explorado alguns aspectos conexos ao princípio da presunção de validade dos atos emanados do Poder Público. Uma questão recorrente é a que diz respeito à possibilidade de o Poder Exe- cutivo - a rigor, de qualquer Poder - deixar de aplicar lei que seus órgãos de decisão reputem inconstitucional. Na vigência da Constitui-

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ção anterior, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se inclinara pela afirmativa, como se vê na decisão proferida na Representação n. 980-SP, de que foi relator o Ministro Moreira Alves: "Não tenho dúvida em filiar-me à corrente que sustenta que pode o Chefe do Poder Executivo deixar de cumprir - assumindo os riscos daí decorrentes - lei que se lhe afigure inconstitucional. A opção entre cumprir a Constituição ou desrespeitá-la para dar cumprimento à lei inconstitucional é concedida ao particular para a defesa do seu interesse privado. Não o será ao Chefe de um dos Poderes para a defesa, não do seu interesse particular, mas da supremacia da Constituição que estrutura o próprio Estado?". 75. Rui Barbosa, O direito do Amazonas ao Acre Setentrional, 1910, p. 28. V. também Ronaldo Poletti, Controle de constitucionalidade das leis, cit., p. 103. 76. RTJ, 101:924, 1982, Rep. n. 1 .052-MS, rel. Min. Rafael Mayer. 77. RTJ, 66:631, 1973, Rep. n. 881-MG, rel. Min. Djaci Falcão. 78. RTJ, 66:631, Rep. n. 881-MG, rel. Min. Djaci Falcão. 79. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 307. 80. Para um amplo levantamento doutrinário e jurisprudencial, v. Luís Roberto Barroso, Po- der Executivo - lei inconstitucional - descumprimento, RDA, 181-182:387, 1990. 81. RTJ, 96:496, 1981, p. 508, Rep. n. 980-SP, rel. Min. Moreira Alves. Após o advento da Constituição de 1988, houve quem questionasse a subsistência de tal faculdade, à vista do fato de que, por força das inovações introduzidas na titularidade da ação direta de inconstituciona- lidade, o Presidente da República e o Governador do Estado passaram a ter legitimação ativa para ajuizá-la (CF, art. 103, I e V). A jurisprudên- cia, todavia, ratificou a linha de entendimento anterior, em julgado do Superior Tribunal de Justiça: "Lei inconstitucional - Poder Executivo - Negativa de eficácia. O Poder Executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional". 82. Veja-se que os Prefeitos Municipais não foram incluídos no elenco constitucional, de modo que, pelo menos no que diz respeito a eles, não haveria qualquer fundamento para modifica- ção da orientação anterior. 83. REsp 23.121/92-GO, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU, 8 nov. 1993, p. 23521. No Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIn. 221-DF, rel. Min. Moreira Alves, embora outro o objeto da decisão, reiterou-se incidentalmente o ponto de vista tradici- onal, em passagem assim gravada: "Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia - e isso tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de inconstitucionalidade -, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais" (RTJ 151:331, 1995). O princípio da presunção de constitucionalidade das leis, conquanto implícito em todo sistema constitucional, ganhou um reforço no ordenamento brasileiro atual, por força do disposto no art. 103, § 3º, que

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determina que, sempre que o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade em tese de norma legal ou ato normativo, será cita- do o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. Instituiu-se, assim, um curador especial com o dever jurídico de susten- tar a constitucionalidade das leis impugnadas em ação direta. Note-se que, como o sistema brasileiro admite a declaração de inconstitucionalidade em sede de jurisdição concentrada, tanto de norma estadual quanto fede- ral, caberá ao Advogado-Geral da União defender a uma ou a outra, desde que ajuizada ação perante o Supremo Tribunal. Foi esta a exegese que a Corte deu ao § 3º do art. 103: "Compete ao advogado-geral da União, em ação dire- ta de inconstitucionalidade, a defesa da norma legal ou ato normativo impugnado, independentemente de sua nature- za federal ou estadual. Não existe contradição entre o exercício da função nor- mal do advogado-geral da União, fixada no caput do art. 131 da Carta Magna, e o da defesa de norma ou ato inquinado, em tese, como inconstitucional, quando fun- ciona como curador especial, por causa do princípio da pre- sunção de sua constitucionalidade". 84. RT, 670:200, 1991, ADIn 97-7 (QO)-RO, rel. Min. Moreira Alves. Também reverencia o princípio da presunção de constitucionalidade das leis o art. 97 da Constituição, que prevê que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. Em sentido antagônico ao princípio, todavia, é a admissibilidade de concessão de medida cautelar suspensiva da eficácia da norma argüida de inconstitucional, consagrada na alínea p do inciso I do art. 103 da Constituição Federal. Embora a medida seja rotineiramente concedida pelo Plenário da Corte, é do costume do Tribunal remarcar-lhe a excepcionalidade. 85. A inovação remonta à Emenda Constitucional n. 7, de 1977, embora houvesse pelo menos um precedente do Supremo Tribunal Federal admitindo a possibilidade jurídica de, ele próprio, conceder medida cautelar visando a garantir a eficácia de ulterior decisão sua, nas representações de inconstitucionalidade (Rep. n. 933-RJ, rel. Min. Thompson Flores, RTJ, 76:342). 86. V., e. g., RTJ, 66:631, 1973, Rep. n. 881-MG, rel. Min. Djaci Falcão; 102:480, 1982, Rep. n. 1.094-SP, rel. Min. Soares Muñoz; 101 :499, 1982, Rep. n. 1.077-RJ, rel. Min. Moreira Alves. Ao julgar o pedido de medida liminar na Ação Direta de Inconstitu- cionalidade n. 96-RO, o Relator, Ministro Celso de Mello, voltou a enfatizar que o princípio da presunção iuris tantum de constitucionalidade dos atos estatais devia ser considerado como um expressivo fator limitativo da con- cessão de medidas cautelares incidentes em ações diretas de inconstitucionalidade. Em seguida, cuidou de elencar os requisitos neces- sários e cumulativos para a concessão do provimento cautelar, a saber: a) plausibilidade jurídica da tese exposta (fumus boni iuris); b) possibilidade de prejuízo decorrente do retardamento da decisão postulada (periculum in mora); c) irreparabilidade ou insuportabilidade dos danos emergentes dos próprios atos impugnados; e

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d) necessidade de garantir a ulterior eficácia da decisão. 87. RTJ, 130:5, 1989, ADIn 96-RO, rel. Min. Celso de Mello. Como regra geral, a concessão da medida cautelar suspensiva da lei tem eficácia meramente ex nunc, colhendo apenas as situações vin- douras. A decisão final, todavia, como é da tradição brasileira, caso seja pela declaração de inconstitucionalidade, opera efeitos retroativos, ex tunc, alcançando todas as situações desde o início de vigência da lei. 88. RTJ, 124:80, 1988, Rep. n. 1 .391-CE, rel. Min. Moreira Alves; e 152:788, 1995, ADIn 851-RJ, rel. Min. Marco Aurélio: "Os efeitos da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade, ao contrário do que acontece no tocante ao provimento final no sentido da inconstitucionalidade, não têm cunho retroativo". Recentemente, no entanto, tem o Supremo admi- tido, em caráter excepcional, a suspensão com eficácia retroativa (ex tunc): "A medida cautelar, em ação direta de inconstitucionalidade, reveste-se, ordinariamente, de eficácia ex nunc, operando, portanto, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere. Excepcionalmente, no entanto, a medida cautelar poderá projetar-se com eficácia ex tunc, com repercussão sobre situa- ções pretéritas. A excepcionalidade da eficácia ex tunc impõe que o Supremo Tribunal Federal expressamente a determine no acórdão concessivo da medida cautelar. A ausência de determinação expressa importa em outorga de eficácia ex nunc à suspensão cautelar de aplicabilidade da norma estatal impugnada em ação direta. Concedida a medida cautelar (que se reveste de caráter temporá- rio), a eficácia ex nunc (regra geral) tem seu início marcado pela publicação da ata da sessão de julgamento no Diário de Justiça da União, exceto em casos excepcionais a serem examinados pelo Presidente do Tribunal, de maneira a garantir a eficácia da decisão" (RTJ, 164:506, 1998, ADIn- MC 1.434-SP, rel. Min. Celso de Mello). A Emenda Constitucional n. 3, de 1993, introduziu a ação declarató- ria de constitucionalidade. Apesar de o nome não ser especialmente feliz, sugerindo a quebra da presunção de que toda lei é constitucional, independentemente de pronunciamento judicial, a finalidade da proposi- ção é muito nítida: criar no direito brasileiro o precedente vinculativo. O texto da emenda é incompleto e defeituoso, mas a doutrina, de manei- ra geral, tratou-a com má vontade, enfatizando os aspectos negativos da medida. Negligenciou-se a necessidade de homogeneidade jurisprudencial em determinadas hipóteses, bem como a urgência de se encontrarem mecanismos que possibilitem solução célere para litígios de grande escala, que paralisam o funcionamento de inúmeros juízos e tribunais, sobretudo os federais. 89. É o que decorre, aliás, da letra expressa do § 2º do art. 102 da Constituição Federal, acres- centado pela Emenda n. 3, in verbis: "§ 2º - As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, pro-

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duzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo". No julgamento do pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade 4-DF,julgada em 11-2-1998, relator o Min. Sydney Sanches, o Supremo Tribunal Federal, contrariando a letra do art. 102, § 2º, da Constituição Federal - que se refere tão-somente a decisões definitivas de mérito- , estendeu a eficácia vinculante na hipótese de provimento de nature- za cautelar, nestes termos: "Em ação dessa natureza, pode a Corte conceder medida cautelar que assegure, temporariamente, tal força e eficácia à futura decisão de mérito. E assim é, mesmo sem expressa previsão constitucional de medida cautelar na ADC, pois o poder de acautelar é imanente ao de julgar. (...) Medida cautelar deferida, em parte, por maioria de votos, para se suspender, ex nunc, e com efeito vinculante, até o julgamento final da ação, a concessão de tutela antecipada contra a Fazen- da Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 1º da Lei n. 9.494, de 10.09.97, sustando-se, igualmente ex nunc, os efeitos futuros das decisões já proferidas, nesse sentido" (Inf. STF, 99:1, 1998, ADC-MC 4, rel. Min. Sydney Sanches). 90. V., sobre o tema, Ação declaratória de constitucionalidade, 1995, coletânea coordenada por Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. 91. Ao apreciar Questão de Ordem na ADIn 1-1-DF, o Supremo Tribunal Federal, por ampla maioria, vencido o Min. Marco Aurélio, entendeu ser constitucional a nova ação. Sobre alguns aspectos da conveniência de implantação da medida, veja-se o voto do Min. Carlos Mário Velloso, transcrito na obra citada no item precedente, p. 231 e s. O princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, notadamente das leis, é uma decorrência do princípio geral da separação dos Poderes e funciona como fator de autolimitação da ativida- de do Judiciário, que, em reverência à atuação dos demais Poderes, so- mente deve invalidar-lhes os atos diante de casos de inconstitucionalidade flagrante e incontestável. 4. Princípio da interpretação conforme a Constituição Ficou registrado acima, no estudo da presunção de constitucionalidade das normas jurídicas e dos atos do Poder Público em geral, que uma norma não deve ser declarada inconstitucional: (a) quando a invalidade não seja manifesta e inequívoca, militando a dúvida em favor de sua pre- servação; (b) quando, entre interpretações plausíveis e alternativas, exista alguma que permita compatibilizá-la com a Constituição. A segunda hipótese considerada acima abriga a chamada interpreta- ção conforme a Constituição. Se a primeira possibilidade - que encarna a presunção de constitucionalidade propriamente dita - tem sua matriz e seu desenvolvimento ligados ao direito norte-americano, já o princípio da interpretação conforme a Constituição tem sua trajetória e especialmente o seu desenvolvimento recente ligados à jurisprudência do Tribunal Cons- titucional Federal alemão, onde sua importância é crescente.

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92. V. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, 1983, p. 53. Para um amplo levantamento da doutrina alemã sobre o tema, com remissão a trabalhos de Weinscheimer, Leibholz, Hãberle, Müller e Henkel, dentre outros, v. Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, 1988, p. 43, nota 35. A interpretação conforme a Constituição compreende sutilezas que se escondem por trás da designação truística do princípio. Cuida-se, por certo, da escolha de uma linha de interpretação de uma norma legal, em meio a outras que o Texto comportaria. Mas, se fosse somente isso, ela não se distinguiria da mera presunção de constitucionalidade dos atos legislativos, que também impõe o aproveitamento da norma sempre que possível. O conceito sugere mais: a necessidade de buscar uma interpretação que não seja a que decorre da leitura mais óbvia do dispositivo. E, ainda, da sua natureza excluir a interpretação ou as interpretações que contravenham a Constituição. À vista das dimensões diversas que sua formulação compor- ta, é possível e conveniente decompor didaticamente o processo de inter- pretação conforme a Constituição nos elementos seguintes: 1) Trata-se da escolha de uma interpretação da norma legal que a mantenha em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admita. 2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a nor- ma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto. 3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à ex- clusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que condu- ziriam a resultado contrastante com a Constituição. 4) Por via de conseqüência, a interpretação conforme a Constitui- ção não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal. Na interpretação conforme a Constituição, o órgão jurisdicional de- clara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatível com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sem- pre que um determinado preceito infraconstitucional comportar diver- sas possibilidades de interpretação, sendo qualquer delas incompatível com a Constituição. Note-se que o texto legal permanece íntegro, mas sua aplicação fica restrita ao sentido declarado pelo tribunal. 93. V. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990, p. 284 e s., e Controle de constitucionalidade na Alemanha, RDA, 193:13,1993. Veja-se, também, J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 236: "A interpretação conforme a Constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) em que são admissíveis várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela". Sobre o tema, ainda, além do estudo de Hesse, já citado, vejam-se Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 95 e s.; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 232 e s.; Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, 1987, p. 297 e s.; Francisco Fernandez Segado, El siste-

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ma constitucional español, 1992, p. 79-81; Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentá- rios à Constituição do Brasil, v. 1, p. 351-2; C. A. Lúcio Bittencourt, O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, 1968, p. 93-4 e 118-9. Se o sentido mais evidente que resulta do texto interpretado for com- patível com a Constituição, dificilmente haverá necessidade de se recor- rer a um princípio cuja finalidade última é a de salvar uma norma ameaçada. O papel da interpretação conforme a Constituição é, precisa- mente, o de ensejar, por via de interpretação extensiva ou restritiva, con- forme o caso, uma alternativa legítima para o conteúdo de uma norma que se apresenta como suspeita. Na síntese perfeita de Jorge Miranda: "A interpretação conforme à Constituição não consiste tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, o que seja mais conforme com a Cons- tituição, quanto em discernir no limite - na fronteira da inconstitucionalidade - um sentido que, conquanto não aparente ou não decorrente de outros elementos de inter- pretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental". 94. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 233. V. também Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Ação declaratória de constitucionalidade, cit., p. 351. Freqüentemente, o princípio enseja que se afirme a compatibilidade de uma lei com a Constituição, com exclusão expressa de outras possi- bilidades interpretativas, reputadas inconstitucionais. Visto pelo lado po- sitivo, a conseqüência que engendra é, sem dúvida, a preservação da norma. Mas, pelo lado negativo, tem um caráter invalidatório, sendo acertada sua equiparação a uma declaração de nulidade sem redução de texto, como fazem autores alemães, a despeito da crítica de cunho teorizante de Bryde. 95. V. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade na Alemanha, cit., p. 13, com referência a Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht der Bundesrepublick Deutschland, p. 411. Porque assim é, a interpretação conforme a Constituição funciona também como um mecanismo de controle de constitucionalidade. Como bem perceberam os publicistas alemães e, especialmente, o Tribunal Constitucional Federal, quando o Judiciário condiciona a validade da lei a uma determinada interpretação ou declara que certas aplicações não são compatíveis com a Constituição está, em verdade, declarando a inconstitucionalidade de outras possibilidades de interpretação (Auslegungsmöglichkeiten) ou de outras possíveis aplicações (Anwendungsfälle). 96. Klaus Schlaich, DassV Bundesverfassungsgericht, 1985, p. 164-5, e Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, 1980, p. 100, apud Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 285-6. Em acórdão unânime e longamente fundamentado, de que foi Relator o Ministro Moreira Alves, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal sobre a específica questão de ser a interpretação conforme a Constitui- ção não apenas um critério hermenêutico, mas também um mecanismo de controle de constitucionalidade: "O mesmo ocorre quando Corte dessa natureza (cons-

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titucional), aplicando a interpretação conforme à Consti- tuição, declara constitucional uma lei com a interpretação que a compatibiliza com a Carta Magna, pois, nessa hipóte- se, há uma modalidade de inconstitucionalidade parcial (a inconstitucionalidade parcial sem redução do texto - Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), o que im- plica dizer que o tribunal constitucional elimina - e atua, portanto, como legislador negativo - as interpretações por ela admitidas, mas inconciliáveis com a Constituição". 97. RT-CDC e CP, 1:314, 1992, p. 330, Rep. n. 1.417-7, rel. Min. Moreira Alves,j. 9-12- 1987. Os autores especulam sobre o fundamento da interpretação confor- me a Constituição. A doutrina alemã sustenta que ela deita suas raízes no princípio da unidade do ordenamento jurídico. Em Portugal, Jorge Miranda justifica-a em nome de um princípio de economia do ordenamento ou de máximo aproveitamento dos atos jurídicos - e não de uma presunção de constitucionalidade. Sem desprezo a tais consi- derações, o princípio se reconduz, mais primitivamente, à independên- cia e harmonia entre os Poderes. 98. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, cit., p. 54-5. 99. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 233. De fato, embora nasça e flua, inicialmente, ao lado do princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, um e outro atuam como mecanismos de autolimitação do Poder Judiciário (judicial self-restraint) no processo de revisão dos atos dos outros Poderes. De- veras, foi ao Poder Legislativo, que tem o batismo da representação popular, e não ao Judiciário, que a Constituição conferiu a função de criar o direito positivo e reger as relações sociais. Só por exceção - e em resguardo de inequívoca vontade constitucional - é que deverão juízes e tribunais superpor sua interpretação às decisões e avaliações dos legisladores. Sem embargo desse fundamento remoto, o princípio guarda suas conexões com a unidade do ordenamento jurídico e, dentro desta, com a supremacia da Constituição. Disso resulta que as leis editadas na vigên- cia da Constituição, assim como as que procedam de momento anterior, devem curvar-se aos comandos da Lei Fundamental e ser interpretadas em conformidade com ela. É bem de ver, todavia, que esse esforço inter- pretativo para preservar a lei em face da Constituição encontra limites. Foi objeto de menção anterior a constatação de Canotilho de que a interpretação conforme a Constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão onde são admissíveis várias possibilidades interpretativas. Aí, embora mantida a primazia do legislador, sua mani- festação é limitada, quando não adaptada pela interpretação do tribunal. Mas, naturalmente, não é possível ao intérprete torcer o sentido das pa- lavras nem adulterar a clara intenção do legislador. Para salvar a lei, não é admissível fazer uma interpretação contra legem. Tampouco será legí- tima uma linha de entendimento que prive o preceito legal de qualquer função útil. Atente-se, por relevante, que o excesso na utilização do prin- cípio pode deturpar sua razão de existir. Isso porque, ao declarar uma lei inconstitucional, o Judiciário devolve ao Legislativo a competência para reger a matéria. Mas, ao interpretar a lei estendendo-a ou restringindo-a além do razoável, estará mais intensamente interferindo nas competen- cias do Legislativo, desempenhando função legislativa positiva.

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100. Vejam-se: J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 236-7; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 233-4; Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, cit., p. 55-6. A matéria não escapou à percepção do Supremo Tribunal brasileiro. De fato, no julgamento da Representação de Inconstitucionalidade n. 1.417-7-DF, ficou consignado, já na ementa da decisão: "A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que (...) o STF (...) não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da ins- tituída pelo Poder Legislativo. Por isso, se a única interpre- tação possível para compatibilizar a norma com a Consti- tuição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legis- lativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo. No caso, não se pode aplicar a interpretação conforme à Constituição, por não se coadunar essa com a finalidade inequivocamente colimada pelo legislador, expressa lite- ralmente no dispositivo em causa, e que dele ressalta pelos elementos da interpretação lógica". 101. RT - CDC e CP, 1:314, 1992, Rep. n. 1.417-7, rel. Min. Moreira Alves. No mérito, o Supremo declarou inconstitucional a concessão de uma série de vantagens pecuniárias aos magistrados pela Lei Comple- mentar n. 54/86, em alteração à Lei Orgânica da Magistratura Nacio- nal (Lei Complementar n. 35/79). Também se rejeitou a possibilidade de interpretação conforme a Constituição na argüição incidental de inconstitucionalidade referente à devolução do empréstimo compul- sório em quotas do Fundo Nacional de Desenvolvimento e não em espécie, sob o fundamento de tratar-se de imposto restituível, e não de empréstimo compulsório. O voto condutor foi do Ministro Sepúlveda Pertence: "Sendo, portanto, inequívoco que o que o Decreto-lei 2.288/86 pretendeu foi instituir um empréstimo compulsó- rio, que, por sua natureza mesma de empréstimo, implica a devolução em dinheiro ou em título que o represente, não é possível pretender-se, para conformar esse Diploma legal com a Constituição, dar-lhe sentido que inequivocamente o altera em ponto essencial: o de que onde se lê "emprésti- mo compulsório" se entenda "imposto restituível em espé- cie diversa da entregue pelo contribuinte" que seria, na ver- dade, um "investimento compulsório"". O princípio, todavia, prestou-se à sua utilidade própria no julga- mento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 581-DF, tendo por objeto a Lei n. 8.215/91. O Supremo Tribunal Federal admitiu a consti- tucionalidade da lei, desde que se lhe emprestasse interpretação harmo- nica com uma série de premissas que enunciou expressamente. Do voto do Ministro Celso de Mello extrai-se a seguinte e expressiva passagem: "A incidência desse postulado permite, desse modo, que, reconhecendo-se legitimidade constitucional a uma de- terminada proposta interpretativa, excluam-se as demais construções exegéticas propiciadas pelo conteúdo normativo do ato questionado. Em suma: o princípio da interpretação conforme a

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Constituição, ao reduzir a expressão semiológica do ato impugnado a um único sentido interpretativo, garante, a partir de sua concreta incidência, a integridade do ato do Poder Público no sistema de direito positivo. Essa função conservadora da norma permite que se realize, sem redu- ção do texto, o controle de sua constitucionalidade". 102. RTJ, 139:624, 1992, p. 636, RE 121.336-CE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 11- 10- 1990. 103. RTJ, 144:146, 1993, p. 154, ADIn 581 -DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 12-8-1992. Foi a partir dessa decisão que o Supremo, seguindo proposta do Ministro Moreira Alves, e na linha adotada pelo Tribunal Constitucio- nal Federal alemão, passou, nos casos de interpretação conforme a Cons- tituição, a julgar a ação direta procedente em parte, em lugar de julgá-la improcedente . 104. RTJ, 144:146, p. 154, ADIn 581-DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 12-8-1992. Há um último ponto digno de registro. Toda atividade legislativa ordinária nada mais é, em última análise, do que um instrumento de atuação da Constituição, de desenvolvimento de suas normas e realiza- ção de seus fins. Portanto, e como já assentado, o legislador também interpreta rotineiramente a Constituição. Simétrica à interpretação da lei conforme a Constituição situa-se a interpretação da Constituição con- forme a lei. Quando o Judiciário, desprezando outras possibilidades interpretativas, prestigia a que fora escolhida pelo legislador, está, em verdade, endossando a interpretação da Constituição conforme a lei. Mas tal deferência há de cessar onde não seja possível transigir com a vontade cristalina emanada do Texto Constitucional. 105. Vejam-se, a respeito, J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 242; Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, cit., p. 57; e Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 299-300. 5. Princípio da unidade da Constituição A despeito da pluralidade de domínios que abrange, a ordem jurídi- ca constitui uma unidade. De fato, é decorrência natural da soberania do Estado a impossibilidade de coexistência de mais de uma ordem jurídi- ca válida e vinculante no âmbito de seu território. Para que possa sub- sistir como unidade, o ordenamento estatal, considerado na sua globalidade, constitui um sistema cujos diversos elementos são entre si coordenados, apoiando-se um ao outro e pressupondo-se reciprocamen- te. O elo de ligação entre esses elementos é a Constituição, origem co- mum de todas as normas. E ela, como norma fundamental, que confere unidade e caráter sistemático ao ordenamento jurídico. 106. V. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do Estado, 1990, p. 116; Santi Romano, Prin- cípios de direito constitucional geral, 1977, p. 126; e Miguel Reale, Teoria do direito e do Estado, 1984, p. 202. A idéia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constitui- ção e sobre ela também se projeta. Aliás, o princípio da unidade da Cons- tituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima natureza do documento inaugural e instituidor da ordem jurídica. É que a Carta fundamental do Estado, sobretudo quando pro- mulgada em via democrática, é o produto dialético do confronto de cren-

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ças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga "o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador". 107. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 196. É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna imprescindível a unidade na interpretação. Afinal, a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre nor- mas. Deverá fazê-lo guiado pela grande bússola da interpretação consti- tucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou de- correntes da Lei Maior. O princípio da unidade da Constituição tem amplo curso na doutri- na e na jurisprudência alemãs. Em julgado que Klaus Stern refere como primeira grande decisão do Tribunal Constitucional Federal, lavrou aque- la Corte que "uma disposição constitucional não pode ser considerada de forma isolada nem pode ser interpretada exclusivamente a partir de si mesma. Ela está em uma conexão de sentido com os demais preceitos da Constituição, a qual representa uma unidade interna". Invocando tal acórdão, Konrad Hesse assinalou que a relação e interdependência existentes entre os distintos elementos da Constituição exigem que se tenha sempre em conta o conjunto em que se situa a norma. E acrescen- ta: "Todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal ma- neira que se evitem contradições com outras normas constitucionais. A única solução do problema coerente com este princípio é a que se en- contre em consonância com as decisões básicas da Constituição e evite sua limitação unilateral a aspectos parciais". 108. BVerfGE, 1, 14(32). V. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 291. 109. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, cit., p. 48. Em decisão posterior, o Tribunal Constitucional Federal alemão vol- tou a remarcar o princípio, conferindo-lhe, inclusive, distinção especial e primazia: "O princípio mais importante de interpretação é o da unida- de da Constituição enquanto unidade de um conjunto com sentido teleológico-lógico, já que a essência da Constituição consiste em ser uma ordem unitária da vida política e social da comunidade estatal". O fim primário do princípio da unidade é procurar determinar o ponto de equilíbrio diante das discrepâncias que possam surgir na aplicação das normas constitucionais, cuidando de administrar eventuais superposições. A tarefa, todavia, pode revelar-se mais complexa do que parece à primeira vista. 110. BVerfGE, 19, 206 (220). V. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 292. Já se disse, anteriormente, que a ordem jurídica de cada Estado cons- titui um sistema lógico, que não admite a possibilidade de uma mesma situação jurídica estar sujeita à incidência de normas contrastantes entre si. O direito não tolera antinomias. Para impedir que tal ocorra, a ciên- cia jurídica socorre-se de variados critérios, como o hierárquico e o da especialização, além de regras específicas que solucionam os conflitos de leis no tempo e no espaço. Contudo, à exceção eventual do critério da

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especialização, esse instrumental não é capaz de solucionar conflitos que venham a existir no âmbito de um documento único e superior, como é a Constituição. Mais que isso: do ponto de vista lógico, as nor- mas constitucionais, frutos de uma vontade unitária e geradas simulta- neamente, não podem jamais estar em conflito. Portanto, ao intérprete da Constituição só resta buscar a conciliação possível entre proposições aparentemente antagônicas, cuidando, todavia, de jamais anular inte- gralmente uma em favor da outra. 111. Veja-se, sobre o tema, a lição de Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 232: "Como ponto de orientação, "guia de discussão" e "factor hermenêutico de decisão", o princípio da unida- de obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar". Um lance de olhos sobre a Constituição brasileira de 1988 revela diversos pontos de tensão normativa, isto é, de proposições que consa- gram valores e bens jurídicos que se contrapõem e que devem ser harmo- nizados pelo intérprete. No campo dos direitos individuais, a Lei básica consigna a liberdade de manifestação do pensamento e de expressão em geral (art. 5º, IV e X). Tais liberdades públicas, todavia, hão de encontrar justos limites, por exemplo, no direito à honra e à intimidade, que a Cons- tituição também assegura (art. 5º, XI). No domínio econômico, a Carta de 1988 elegeu como princípio fundamental a livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput), mas prevê restrições ao capital estrangeiro (e. g. arts. 172 e 176, § 1º), contempla a possibilidade de exploração da atividade econô- mica pelo Estado (art. 173) e mesmo alguns casos de monopólio estatal (e. g., art. 177). O direito de propriedade (art. 5º, XXII) requer conciliação com o princípio da função social da propriedade, enfaticamente inscrito na Constituição (arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186). É de se assinalar que o princípio da unidade da Constituição, usual- mente, operará através da utilização de outros princípios e regras de interpretação. Um estudo de caso ilustrará a idéia. Veja-se o que se pas- sava antes da Reforma Administrativa levada a efeito pela Emenda Cons- titucional n. 19/98: o art. 37 da Carta em vigor, que traz o elenco de princípios e regras que regerão a administração pública direta e indireta (que inclui as sociedades de economia mista e as empresas públicas), previa no inciso XI que o teto de remuneração dos servidores públicos do Poder Executivo era, em âmbito federal, a remuneração dos Minis- tros de Estado (hoje a dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, na nova redação dada pela Emenda n. 19/98). Já o § 1º do art. 173 dispunha (e ainda dispõe, só que em maior extensão, no inciso II do mesmo para- grafo) que as empresas públicas e as sociedades de economia mista que explorem atividades econômicas terão o mesmo regime jurídico das em- presas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas. A aparente contradição era muito nítida: o art. 37 afirmava que as sociedades de eco- nomia mista e as empresas públicas, por integrarem a administração indi- reta, teriam de observar um teto na remuneração de seus servidores, e o § 1º do art. 173 previa, e ainda prevê, que elas devem ter o mesmo regime das empresas privadas, onde inexiste limite máximo de remuneração. Ora bem: como deveria proceder o intérprete, que tem sempre o dever de harmonizar os dois preceptivos, sem que tornasse qualquer deles letra morta? No caso específico, a interpretação teleológica serviu como linha auxiliar para assegurar a unidade da Constituição. Qual era, e continua sendo, a finalidade da norma do inciso XI do art. 37? Limitar a remuneração no serviço público, inclusive na administração indireta. Qual a finalidade da norma do § 1º do art. 173? Impedir a concorrência

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desleal da administração pública com a iniciativa privada. Por este ca- minho, chegava-se à constatação singela de que o limite máximo de remuneração se aplicava às sociedades de economia mista e às empre- sas públicas. Isso porque ele decorria da letra expressa do art. 37, XI, e não encontrava obstáculo no art. 173, § 1º, que visa a impedir que as empresas estatais tenham tratamento mais favorável, e não mais rigoro- so, quando seja o caso. A incompatibilidade entre os dispositivos, como se vê, era meramente aparente. Hoje, no entanto, a questão se encontra superada, pois apesar de a nova redação do inciso XI do art. 37 só fazer referência aos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos nas administrações direta, autárquica e fundacional, excluindo aparentemente os empregados das sociedades de economia mista e empresas públicas, o art. 37, § 9º, intro- duzido pela Emenda Constitucional n. 19/98, foi expresso: "§ 9º - O disposto no inciso XI aplica-se às empresas públicas e às sociedades de economia mista, e suas subsi- diárias, que receberem recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios para pagamento de des- pesas de pessoal ou de custeio em geral". Nesta, como em outras hipóteses, o intérprete, sob a inspiração do princípio da unidade da Constituição, há de encontrar o espaço adequa- do de incidência de cada uma das normas que potencialmente podem incidir sobre o caso concreto. 112. Sobre o tema, anteriormente à Reforma Constitucional Administrativa introduzida pela Emenda Constitucional n. 19/98, v. Luís Roberto Barroso, parecer publicado na RPGERJ, 46:245, 1993, assim ementado: "O limite máximo de remuneração previsto no inciso XI do art. 37 da Constituição Federal aplica-se aos empregados das sociedades de economia mista". O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões - reais ou imaginárias - que existam entre normas constitucio- nais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe- lhe, portanto, o papel de harmonização ou "otimização" das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas. Também aqui, a simplicidade da teoria não reduz as dificuldades práticas surgidas na busca do equilí- brio desejado e na eleição de critérios que possam promovê-lo. 113. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 294. O termo "otimização" foi colhido em Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho cons- titucional, cit., p. 49. A doutrina mais tradicional divulga como mecanismo adequado à solução de tensões entre normas a chamada ponderação de bens ou va- lores. Trata-se de uma linha de raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas, associá-lo a um determinado va- lor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como refe- rência máxima as decisões fundamentais do constituinte. A doutrina tem rejeitado, todavia, a predeterminação rígida da ascendência de determi- nados valores e bens jurídicos, como a que resultaria, por exemplo, da absolutização da proposição in dubio pro libertate. Se é certo, por exem- plo, que a liberdade deve, de regra, prevalecer sobre meras conveniên- cias do Estado, poderá ela ter de ceder, em determinadas circunstâncias, diante da necessidade de segurança e de proteção da coletividade.

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114. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 295. Um bom exemplo dessa possibilidade, aliás, foi o caso Korematsu vs. United States, já mencionado. Ao julgá-lo, a Suprema Corte ame- ricana, em sacrifício de uma longa tradição de preservação da liberdade e de não-discriminação em função da origem nacional, considerou váli- da a imposição aos americanos descendentes de japoneses, durante a 2ª Guerra, de uma série de limitações à liberdade de ir e vir, com o objetivo de prevenir possíveis atos de espionagem e sabotagem. Naquele mo- mento, o valor segurança esteve acima do valor liberdade. Segundo a Corte, "necessidades públicas prementes podem, às vezes, justificar res- trições raciais. 115.323 U. S.214(1944). 116.323 U. S.214 (1944): "Pressing public necessity may sometimes justify racial restrictions". KLaus Stern, defendendo a idéia de que em nenhum lugar o orde- namento pode prescindir da ponderação de bens jurídicos, invoca a au- toridade do Tribunal Constitucional Federal alemão, quando diz: "To- das as disposições constitucionais têm que ser interpretadas de tal ma- neira que sejam compatíveis com as normas fundamentais elementares da Lei Fundamental e com sua ordem de valor". De forma análoga, em decisão anterior, pronunciara-se a Corte: "... os conflitos somente se podem resolver na medida em que se chega à conclusão de que disposi- ção constitucional é a que tem maior peso para a questão que se vai decidir em concreto". 117. BVerfGE, 30, 1(19). 17. K. Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 294. 118. BVerFGE, 28,243(261). V. K. Stern,Derecho del Estado de la República Federal alemana. Na linha que se vem desenvolvendo, resulta certo que os bens jurí- dicos constitucionalmente protegidos devem ser coordenados de forma a que todos eles possam conservar sua identidade. Por isso, adverte Hesse, é preciso ter cuidado na utilização de fórmulas como a ponderação de bens e a ponderação de valores. Cabe ao intérprete, por força do princí- pio da unidade, um esforço de otimização: é necessário estabelecer os limites de ambos os bens a fim de que cada um deles alcance uma efetividade ótima. Na busca dessa concordância prática, passa-se por um outro princípio, que se apreciará adiante: o da proporcionalidade. 119. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, cit., p. 48-9. Tudo o que se viu até aqui em nome da unidade constitucional re- força o papel dos princípios constitucionais como condicionantes da interpretação das normas da Lei Maior. São eles que conferem unidade e coerência ao sistema e é a eles que se recorre na solução das tensões normativas. A grande premissa sobre a qual se alicerça o raciocínio de- senvolvido é a de que inexiste hierarquia normativa entre as normas constitucionais, sem qualquer distinção entre normas materiais ou for- mais ou entre normas-princípio e normas-regra. Isso porque, em direito, hierarquia traduz a idéia de que uma norma colhe o seu fundamento de validade em outra, que lhe é superior. Não é isso que se passa entre normas promulgadas originariamente com a Constituição. Não obstante isso, é inegável o destaque de algumas normas, quer por expressa eleição do constituinte, quer pela lógica do sistema. No direito constitucional positivo brasileiro, foram expressamente presti- giadas as normas que cuidam das matérias integrantes do núcleo imo-

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dificável da Constituição, que reúne as chamadas cláusulas pétreas. Consoante o elenco do § 4º do art. 60, não podem ser afetadas por emendas que tendam a abolir os valores que abrigam as normas que cuidam: a) da forma federativa do Estado; b) do voto direto, secreto, universal e periódi- co; c) da separação dos Poderes; d) dos direitos e garantias individuais. Todos os itens acima, não é difícil constatar, estão ligados a algum dos princípios fundamentais do ordenamento, a saber: o princípio fede- rativo, o princípio democrático e o princípio republicano (periodicidade de voto). Aliás, ao menos idealmente, a Democracia, a República e a Federação constituem, de longa data, o trinômio essencial do Estado brasileiro. É natural que esses princípios fundamentais, notadamente os que foram objeto de distinção especial no § 4º do art. 60, sejam os gran- des vetores interpretativos do Texto Constitucional. Em seguida, vêm os princípios gerais e setoriais. Porque assim é, deve-se reconhecer a exis- tência, no Texto Constitucional, de uma hierarquia axiológica, resulta- do da ordenação dos valores constitucionais, a ser utilizada sempre que se constatarem tensões que envolvam duas regras entre si, uma regra e um princípio ou dois princípios. Tratando especificamente dessa questão da hierarquia axiológica, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em trabalho dedicado ao estudo da ordem econômica - campo onde a pluralidade de enfoques políticos incidiu especialmente -, cuidou da hipótese em que uma instituição é informada por mais de um princípio constitucional. Aventou, assim, as seguintes possibilidades: a) que esses princípios se harmonizem plenamente, inocorrendo qualquer problema, já que um e outro poderão ser aplicados com igual eficácia; b) que esses princípios não se harmonizem integralmente, o que fará com que onde haja colisão se aplique o de maior hierarquia axio- lógica; c) que esses princípios sejam incompatíveis, caso em que prevale- cerá o de maior hierarquia axiológica, salvo onde o constituinte houver optado pelo de menor hierarquia, excepcionando expressamente a inci- dência do princípio superior. 120. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, A ordem econômica na Constituição de 1988, RPGERJ, 42:57, 1990, p. 59-60. Na mesma linha é o entendimento de Raúl Canosa Usera, que, após classificar os princípios em materiais e instrumentais, aponta o princí- pio da unidade da Constituição como o mais importante desta segunda categoria. Doutrina o autor espanhol que uma correta interpretação do Texto Fundamental exige a colocação de certas de suas disposições num patamar superior. Essas disposições valorizadas serão as normas de princípio. Tais normas, no entanto, não estão em um plano superior, no sentido de tornar ilegítimas as outras normas constitucionais, naqui- lo em que se confrontem. Trata-se, afirma ele, de uma hierarquia estru- tural. Na verdade, usando outra denominação, a idéia subjacente é a da hierarquia axiológica, já exposta. 121. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, 1988,p. 163 e 175. A classificação em princípios materiais e instrumentais, que o autor não desenvolve com nitidez, parece corresponder à divisão entre a parte orgânica e a parte dogmática da Constituição (p. 63 e s.). O princípio da unidade da Constituição, também referido como prin- cípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição, na visão de

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alguns autores, encontraria importante exceção na admissibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais. Seu principal formulador foi o alemão Otto Bachoff, que desenvolveu a tese em aula inaugural proferida em Heidelberg, em 1951, e a materializou em um opúsculo intitulado, no original, Verfassungswidrige Verfassungs- normen?. Pouco lido e citado por vezes com equivocidade, o trabalho de Bachoff não tem as implicações que a ele se tem atribuído. É oportu- no analisar algumas de suas considerações. 122. Rejeitam tal possibilidade, em meio a outros, Klaus Stern, Derecho del Estado de la Repú- blica Federal alemana, cit., p. 292-3, e Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política,cit.,p. 167-8. 123. Há uma tradução portuguesa dessa obra - Normas constitucionais inconstitucionais? -, que teve uma reimpressão em 1994. Reconhece ele, de plano, que o legislador constituinte, e, especifi- camente, o alemão, ao instituir o controle de constitucionalidade, pen- sou "em primeira linha, se não mesmo com exclusividade", no controle de normas jurídicas sob a Constituição. Sua cogitação recaiu sobre a compatibilidade das leis estaduais e das leis federais com a Constitui- ção. Porém, prossegue, também é cabível conceber-se uma inconstitucionalidade de normas constitucionais (um só e mesmo pla- no), e tal eventualidade não deve ser excluída do controle judicial. Passa, em seguida, a enunciar as diferentes possibilidades de normas constitucionais inconstitucionais (inválidas). 124. Otto Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, 1994, p. 12. A primeira hipótese figurada por Bachoff é a que denomina inconstitucionalidade de normas constitucionais ilegais. De fora parte a denominação, que não parece feliz, não traz ela qualquer componente que seja repugnante à doutrina convencional ou que infirme o princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição. Disserta ele, sob essa rubrica, acerca de três variações. A primeira delas consistiria em uma Constituição não obedecer ao rito por ela mesma especificado para sua entrada em vigor, como, por exemplo, sua ratificação por um determi- nado número de Estados federados. A segunda seria tipificada por uma dada disposição constitucional depender, para sua vigência, de um re- quisito específico, como, por exemplo, a submissão a um plebiscito (melhor diria, pelo caráter posterior da consulta, referendo). E a terceira diria respeito à inobservância, pelo processo constituinte, do que hou- vesse sido estabelecido em leis pré-constitucionais, que condicionassem a validade da Constituição. Os dois primeiros exemplos - o da ratificação e o do plebiscito/ referendo - cuidam do estabelecimento de ato-condição para o início de vigência da norma e contemplam possibilidades que têm inúmeros antecedentes históricos, a começar pela Constituição norte-americana, que em seu art. 7º previa a ratificação por nove Estados para que fosse adotada. São casos perfeitamente enquadráveis na teoria constitucio- nal ordinária. O terceiro exemplo poderia trazer alguma perplexidade, por importar em um condicionamento da ordem jurídica precedente ao desempenho do poder constituinte. Mas, em seguida, esclarecendo a idéia, Bachoff reproduz o conhecimento convencional: "Todavia, as leis pré-constitucionais podem obrigar apenas o poder constituído, não o titular do poder constituinte, o qual a todo tempo pode contorná-las, através de um acto constituinte originário". Nada de novo, portanto. 125. A Constituição brasileira de 1937, que implantou o Estado Novo, previa, no seu art. 187,

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a realização de um plebiscito que nunca ocorreu. Por isso mesmo, houve quem afirmasse que, juridicamente, tal Carta não existiu (v. Fernando Whitaker da Cunha, Comentários à Constituição, obra coletiva, 1990, v. 1, p. 32). 126. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 51. A segunda hipótese aventada é a da inconstitucionalidade de leis de alteração da Constituição. Suscita-se, aqui, a possibilidade de uma lei de alteração da Constituição, isto é, de uma emenda constitucional, in- fringir formal ou materialmente disposições da Carta em vigor. A inconstitucionalidade formal, noticia ele, ocorre quando não são obser- vadas as disposições processuais prescritas para a alteração da Consti- tuição, ao passo que a inconstitucionalidade material se verifica quando a emenda afeta disposições que o constituinte determinou fossem imodificáveis, isto é, aquilo que se denomina "cláusulas pétreas". Ora bem: a possibilidade de uma emenda à Constituição ser tida como inconstitucional é absolutamente trivial, encontrando, inclusive, prece- dentes na história recente brasileira. Também aqui, nada de novo. 127. V. ADIn 939-7-DF, DJU, 21 jan. 1994, p. 193, onde se declarou inválida a previsão, constante da Emenda Constitucional n. 3/93, de inobservância do princípio da anterioridade na cobrança do IPMF. A terceira hipótese aventada por Otto Bachoff em seu clássico estu- do é a da inconstitucionalidade de normas constitucionais em virtude de contradição com normas constitucionais de grau superior. Nesse tópi- co, especula ele sobre a admissibilidade de se considerar inconstitucional uma norma criada, não pelo constituinte revisor, mas pelo constituinte originário. Menciona ele a posição dos doutrinadores Krüger e Giese ao tratar da possibilidade de uma norma constitucional violar a si mesma. Segundo os dois autores, poderia suceder que uma norma constitucional de significado secundário, nomeadamente uma norma só formalmente constitucional, fosse de encontro a um preceito material fundamental da Constituição: no caso de semelhante contradição, a norma constitucio- nal de grau inferior seria inconstitucional e inválida. Pois aqui, contrariando a posição que se divulga como sendo sua, Otto Bachoff, discordando dos autores citados, nega categoricamente a possibilidade de se admitir a inconstitucionalidade de uma norma cons- titucional em face de outra. Enfatizando a autonomia do legislador cons- tituinte e sua liberdade para estabelecer exceções ao direito que ele pró- prio dita, consignou: "A meu ver, nenhuma diferença faz aqui que essas nor- mas constitucionais sejam importantes ou menos impor- tantes, não me parecendo possível considerar incons- titucional uma norma da Constituição de grau inferior, em virtude da sua pretensa incompatibilidade com o "conteú- do de princípio da Constituição" (Giese)". 128. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 57. E arrematando em termos definitivos: "No facto de o legislador constituinte se decidir por uma determinada regulamentação tem de ver-se a declara- ção autêntica, ou de que ele considera essa regulamentação como estando em concordância com os princípios basilares da Constituição, ou de que, em desvio a estes princípios, a admitiu conscientemente como excepção aos mesmos". 129. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 57. Para uma leitura de Bachoff

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que não corresponde à que se explicita acima, veja-se Eduardo García de Enterría (La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 99), onde o notável autor espanhol, aparentemen- te, confunde princípios básicos e fundamentais com direito supralegal positivado, categoria empre- gada por Bachoff. A quarta hipótese suscitada por Bachoff compreende, em pala- vras suas, a inconstitucionalidade por infração de direito supralegal positivado na lei constitucional. Aqui, sim, encontra-se a grande especificidade da construção do eminente autor: a relação entre Consti- tuição e direito supralegal, isto é, um direito pré-estatal, supra-estatal, suprapositivo, natural, apesar das ambigüidades que este último termo suscita. O conceito de direito supralegal é difuso e de difícil apreensão objetiva. Por ele, exige-se que o legislador tome em conta os "princípios constitutivos de toda e qualquer ordem jurídica e, nomeadamente, dei- xe-se guiar pela aspiração à justiça e evite regulamentações arbitrárias". Dentro desse contexto, evoca-se a referência de Jellinek ao direito como um "mínimo ético". 130. Omitem-se, por brevidade, algumas outras hipóteses cogitadas, por mais específicas à ordem constitucional alemã e menos relevantes do ponto de vista doutrinário. 131. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 42-3. O trabalho de Jellinek invocado é Die sozialethische Bedeutung von Recht, Unrecht und Strafe, 1908, p. 45. Esse direito supralegal, que existe fora e acima da Constituição, é freqüentemente positivado através de sua incorporação ao Texto Cons- titucional. Tal incorporação, todavia, tem significado declaratório e não constitutivo, de vez que ela não cria, mas antes reconhece o direito. "Partem manifestamente daqui os arts. 1, n. I, e 2 da Lei Fundamental", que consagram, respectivamente, a dignidade da pessoa humana e os direitos de liberdade. O direito supralegal, repita-se, limita a autono- mia do legislador constituinte, impondo-lhe limites. Daí a conclusão de Otto Bachoff: "O direito constitucional supralegal positivado prece- de, em virtude do seu caráter incondicional, o direito consti- tucional que é apenas direito positivo, razão por que aqui - mas também só aqui - a ponderação da importância de normas constitucionais diferentes, em confronto umas com as outras, preconizada por Krüger e Giese, se mostra justificada. Falta a autonomia da criação de direito, que permite ao poder constituinte abrir brechas, através de excepções à regra, nas normas autonomamente estabelecidas, onde a positivação significa, não a criação de normas jurí- dicas novas, mas apenas um reconhecimento de direito pré- constitucional". 132. Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 45. 133. Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 63. Cuidou-se, até agora, do direito supralegal positivado. É susceptível de dúvida, acrescenta Bachoff, saber se também pode incluir-se na "Cons- tituição" (isto é, na ordem constitucional material não escrita) direito supralegal que não foi positivado através de sua transformação em direito constitucional escrito. Alguns argumentos, segundo ele, apresentam-se a favor da tese, como a circunstância de o direito supralegal ser imanente a toda a ordem jurídica. E ainda: no direito alemão, a própria Lei Funda- mental o reconhece - art. 20, 3: "O Poder Legislativo está vinculado à

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ordem constitucional; os Poderes Executivo e Judiciário obedecem à lei e ao direito" - e o considera imodificável por via de alteração constitu- cional (art. 79, 3). De toda sorte, afirma Bachoff, no plano prático essa questão não tem maior significado para o direito alemão atual, em virtude da extensa incorporação de direito supralegal à Lei Fundamen- tal. O mesmo raciocínio, aliás, aplicar-se-ia ao caso brasileiro, onde a Carta Constitucional é, mais do que analítica, prolixa e casuística. Veja-se, então, que a única possibilidade admitida por Bachoff de uma norma constitucional ser inconstitucional é a de ela violar uma transcendente Constituição material, que abrigaria os grandes princí- pios de direito natural, estivessem ou não positivados no documento escrito que consubstancia a Constituição formal. Isso constitui, sem dúvida, uma forma de estabelecer uma hierarquia entre normas cons- titucionais, e, pois, é uma exceção ao princípio da unidade hierárqui- co-normativa da Constituição, tal como aqui formulado. Admitida, pois, a existência de um direito supralegal ou suprapositivo, é perfeitamen- te possível conceber-se, do ponto de vista teórico, a ocorrência de con- tradições entre o direito constitucional positivo e os valores, diretrizes ou critérios que servem para a modelação do direito positivo (direito natural, direito justo etc.). 134. Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 68. Art. 79, 3: "Não é permitida qualquer modificação desta Lei Fundamental que afete a divisão da Federação em Estados, ou o princípio da cooperação dos Estados na legislação, ou os princípios consignados nos artigos 1 e 20". 135. Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 67. 136. V. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Observações ao Projeto de Constituição da Comis- são de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte, mimeografado, 1987, p. 1. 137. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 240. A esse propósito, o Tribunal Constitucional Federal alemão, consi- derando-se competente para aferir essa constitucionalidade da Consti- tuição, reconheceu a existência de um direito suprapositivo, vinculativo para o próprio constituinte, ao declarar que "também uma norma cons- titucional pode ser nula, se desrespeitar em medida insuportável os pos- tulados fundamentais da justiça". É certo que o Tribunal afirmou, tam- bém, que a ocorrência de normas originariamente inconstitucionais é quase impossível em Estados de legalidade democrática. Mas o pro- blema pode ganhar dimensão em momentos de mudança política. 138. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 240. 139. BVerFGE, 1, 18; 3,225. V. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p.3-4. A tradição brasileira é a da afirmação da unidade hierárquico- normativa da Constituição, sem atenção à possibilidade de reconheci- mento de normas constitucionais transcendentes. Sintetizando a doutri- na corrente, veja-se a posição de Celso Ribeiro Bastos: "Ele (o intérprete) terá de evitar as contradições, anta- gonismos e antinomias. As Constituições compromissórias sobretudo, apresentam princípios que expressam ideologi- as diferentes. Se, portanto, do ponto de vista estritamente lógico, elas podem encerrar verdadeiras contradições, do ponto de vista jurídico são sem dúvida passíveis de harmonização desde que se utilizem as técnicas próprias

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de direito. A simples letra da lei é superada mediante um processo de cedência recíproca. Dois princípios aparentemente con- traditórios podem harmonizar-se desde que abdiquem da pretensão de serem interpretados de forma absoluta. Preva- lecerão, afinal, apenas até o ponto em que deverão renunciar à sua pretensão normativa em favor de um princípio que lhe é antagônico ou divergente". 140. Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição brasileira, 1988, v. 1, p. 348. Também a jurisprudência tem recorrido ao princípio da unidade e à ponderação de valores para solucionar eventuais tensões entre normas constitucionais. Em caso que contrapôs a Igreja Universal do Reino de Deus e a Prefeitura de Diadema, decidiu a 1ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo: "A liberdade de exercício de culto religioso assegura- da pelo art. 5º, VI, da Constituição Federal, não autoriza o abuso na utilização de instrumentos sonoros a desrespeitar o repouso da coletividade e normas municipais. (...) Os vi- zinhos têm também o direito à intimidade (art. 5º, X, da CF) e, também, à liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI, da CF), prejudicados estes direitos fundamen- tais pelo som da apelante". 141. RT, 676:98, 1992, Ap. 146.692-1/6, rel. Des. Andrade Marques. Ainda no regime constitucional anterior, o Supremo Tribunal Fede- ral teve oportunidade de enfrentar delicada questão envolvendo o prin- cípio da unidade constitucional, relativamente à dualidade de previsões de empréstimo compulsório constante do Texto. De fato, o art. 18, § 3º, referia-se à instituição de empréstimo compulsório pela União, em "ca- sos excepcionais", e o art. 21, § 2º, II, referia-se à sua instituição em "casos especiais" e sujeitos às "disposições constitucionais relativas aos tributos". A péssima técnica constitucional gerou imensa divergência doutrinária, sendo que muitos sustentavam que existiriam duas espécies de empréstimos compulsórios, e que somente à segunda se aplicariam as limitações constitucionais ao poder de tributar. Em grande esforço de interpretação, que teve de superar a leitura mais óbvia dos dispositivos, a mais alta Corte afirmou existir uma única modalidade de empréstimo compulsório, consignando: "Em síntese, o art. 21, § 2º, n. II, refere-se à mesma hipótese do art. 18, § 3º, da Constituição Federal, senão pela possibilidade real de divisar-se um sentido comum nas expressões "casos especiais e casos excepcionais", pelo menos em razão da necessária prevalência de outros méto- dos de interpretação, quando em antinomia com o sentido gramatical". 142. RTJ, 129:77, p. 88, MS 20.608-DF, rel. Min. Sydney Sanches. V. também Ricardo Lobo Torres, Sistemas constitucionais tributários, 1986, t. 2, p. 425 e s., especialmente p. 440-1. O fundamento subjacente a toda a idéia de unidade hierárquico- normativa da Constituição é o de que as antinomias eventualmente de- tectadas serão sempre aparentes e, ipso facto, solucionáveis pela busca de um equilíbrio entre as normas, ou pela legítima exclusão da incidên- cia de alguma delas sobre dada hipótese, por haver o constituinte dis- posto nesse sentido. Não se reconhece, assim, a existência de antinomias jurídicas reais, qualificadas por Tércio Sampaio Ferraz como sendo "a

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oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcial- mente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que coloca o sujeito numa posição insustentável pela ausên- cia ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado". 143. Tércio Sampaio Ferraz, Antinomia, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 7. Diferente linha de entendimento é seguida por Maria Helena Diniz, que não só admite a possibilidade de existência de antinomias reais como supõe haver um exemplo disso na atual Carta Constitucional. Vislumbra a ilustre autora que tal se passa em relação ao art. 33 do Ato das Dispo- sições Constitucionais Transitórias e os arts. 5º e 100 do corpo perma- nente da Constituição. O art. 33 referido prevê que os precatórios judici- ais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição poderão ser pagos no prazo de até oito anos, com inclusão de juros e correção monetária. O art. 100 do corpo permanente é o que contém a regra geral sobre precatórios, determinando o seu pagamento em uma só vez no exercício seguinte, pela inclusão no orçamento da entidade estatal, desde que apresentados até 12 de julho. E o art. 5º abriga o prin- cípio geral da isonomia. Escreveu a ilustre professora paulista: "Temos entre os arts. 5º e 100 da Carta Magna e o art. 33 das Disposições Transitórias uma antinomia real e não aparente, pois não se poderá solucioná-la pelos critérios: a) norma superior revoga a inferior, já que as três são da mesma hierarquia; b) norma posterior revoga a anterior, porque todas entraram em vigor na mesma data; e c) nor- ma especial prevalece sobre a regra geral, porque aquelas normas estão tratando desigualmente os iguais (credores da Fazenda Pública) e esse critério requer que se trate desi- gualmente o que é desigual. Assim, por meio de uma inter- pretação conetiva far-se-á com que os arts. 5º e 100 preva- leçam sobre o art. 33, sob pena de ofender todo o sistema, pois, ocorrendo a antinomia real, o aplicador, utilizando-se dos mecanismos supletivos de lacuna, resolvendo o pro- blema no caso concreto, já que não poderá eliminar o con- flito, deverá ater-se ao princípio da isonomia". 144. Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, 1989, p. 111 e s. 145. Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, cit., p. 115. Com as homenagens devidas e merecidas, a tese não se sustenta. É que existe clara antinomia real entre as proposições a e c acima. De fato, na primeira se afirma que não há hierarquia entre as três normas e, na outra, que uma das normas é inconstitucional. Ora, para admitir-se que uma norma possa ser inconstitucional em face de outra, é evidente que se admite que uma delas é superior. E mais: o fato de a Constituição desigualar pessoas e discriminar situações - isto é, de abrir exceções à regra geral da igualdade - não constitui, em si, qualquer anomalia. Há dezenas de disposições que discriminam em função do sexo (arts. 40, III, todas as alíneas), da idade (art. 101), da nacionalidade (art. 12, § 3º), da raça (art. 231) etc. E até em função do momento de apresentação do precatório, porque quem vier a apresentá-lo após 12 de julho só irá rece- ber pelo menos um ano depois (art. 100, § 1º). Portanto, o único fundamento apto a legitimar, doutrinariamente, o ponto de vista ali sustentado é a tese de Otto Bachoff de que existem normas que abrigam princípios de direito supralegal, que estão acima das meras normas da Constituição formal, e que condicionam a atuação

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do constituinte, mesmo que originário. E aí poder-se-ia cogitar de que o tratamento desigual entre credores do erário - uns recebendo em um ano e outros em oito - viola esse sentido superior de justiça que deve presidir a ordem jurídica e ao qual mesmo o constituinte está subordina- do. É possível concordar ou discordar dessa tese, mas ela se assenta em fundamentos logicamente dedutíveis e sustentáveis. A tese da professora Maria Helena Diniz foi reproduzida acriticamen- te em decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, sem menção à ques- tão do direito supralegal. Fora exceções raras como essas, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores consagram o princípio da uni- dade da Constituição, sem referência à possibilidade de existirem nor- mas constitucionais inconstitucionais. 146. AI 475.819-8, 8ª Câm. Civ., j. 17-4-1991, RT, 680:125. É bem de ver que o Supremo Tribunal Federal, a propósito dessa específica discussão sobre o art. 33 do ADCT, já se pronunciou no julgamento do RE 160.486-7-SP, rel. Min. Celso de Mello: "Inexiste qualquer relação de antinomia real ou insuperável entre a norma inscrita no art. 33 do ADCT e os postulados da isonomia, da justa indenização, do direito adquirido e do pagamento mediante precatórios, consagrados pelas disposições permanentes da Constituição da República, eis que todas essas cláusulas normativas, inclusive aquelas de índole transitória, ostentam grau idêntico de eficácia e de autoridade jurídicas" (RDA, 201:157, 1995). Ainda recentemente, o Supremo Tribunal Federal, de maneira cate- górica, endossou a tese da impossibilidade da verificação do desrespei- to aos princípios de direito suprapositivo inseridos pelo poder constituinte originário no texto da Constituição: "Na atual Carta Magna "compete ao Supremo Tribu- nal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição" (art. 102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do poder constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de di- reito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição". 147. RTJ, 163:872, 1998, ADIn 815-DF, rel. Min. Moreira Alves. Nos últimos tempos, o princípio da unidade esteve subjacente ao debate doutrinário e jurisprudencial envolvendo questões afetas à persecução penal, ao direito de privacidade (art. 5º, X), à inviolabilidade das comunicações telefônicas (art. 5º, XII) e à inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI). Vejam-se a exposição e a reflexão que se seguem. No julgamento do Habeas Corpus 69.912, o Supremo Tribunal Fe- deral afirmou a tese de que, antes da edição da lei prevista no inciso XII do art. 5º da Constituição - incumbida de estabelecer as hipóteses e a forma de quebra do sigilo das comunicações telefônicas -, a escuta telefônica, mesmo com autorização judicial, tipificava prova ilícita e, conseqüentemente, inadmissível. O entendimento foi reiterado emjul- gados posteriores, como no HC 73.351-SP, no qual ficou decidido: "O STF, por maioria de votos, assentou entendimento no sentido de que sem a edição de lei definidora das hipó- teses e da forma indicada no art. 5º, inc. XII, da Constitui- ção não pode o juiz autorizar a interceptação de comunica-

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ção telefônica para fins de investigação criminal. Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação tele- fônica - à falta de lei que, nos termos do referido disposi- tivo, venha a discipliná-la e viabilizá-la - contamina ou- tros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriun- dos, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta. Habeas corpus concedido". 148. HC 69.912-RS, STF, DJU, 25 mar. 1994, rel. Min. Sepúlveda Pertence. Excertos da ementa: "Prova ilícita: escuta telefônica mediante autorização judicial: afirmação pela maioria da exigência de lei, até agora não editada, para que, "nas hipóteses e na forma" por ela estabelecidas, possa o juiz, nos termos do art. 5º, XII, da Constituição, autorizar a interceptação de comunicação telefônica para fins de investigação criminal. (...) A ilicitude da interceptação telefônica.., contami- nou, no caso, as demais provas, todas oriundas, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (fruits of the poisonous tree), nas quais se fundou a condenação do paciente". Em 24 de junho de 1996 foi promulgada a Lei n. 9.296, que regulamentou o inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição. 149. HC 73.351 -SP, DJU, 19 mar. 1999, rel. Min. Ilmar Galvão. O Supremo Tribunal Federal, em orientação que tem nossa adesão, não optou pela atenuação do caráter peremptório da norma constitucio- nal restritiva da prova ilícita. Refutou, assim, a proposição de autores de grande reconhecimento que sustentavam a tese da ponderação de valo- res e da proporcionalidade para aferir se a prova, mesmo ilícita, não se destinava a preservar valores que, in concreto, deveriam ter primazia sobre a restrição constitucional. 150. Neste sentido, o eminente professor José Carlos Barbosa Moreira, A Constituição e as provas ilicitamente adquiridas, RDA, 205:11. É bem de ver, no entanto, que a jurisprudência da Corte tem tempe- rado a doutrina da contaminação, também referida como fruits of the poisonous tree, transitando por uma linha tênue. Assim é que passou a rejeitar a invalidação de processos ou de atos processuais nos casos em que a prova ilícita não fosse a única prova. De parte o fato de que a prova ilícita, normalmente, gera outras provas, e de que não é possível, em relação a estas, obter atestado de origem ou assepsia, parece difícil crer que o julgador não se deixe influenciar pela prova ilícita, mesmo que não possa nela fundar sua convicção. 151. Veja-se, e. g., HC 74.599-SP, DJU, 7 fev. 1997, rel. Min. ILmar Galvão, onde se assen- tou: Não cabe anular-se a decisão condenatória com base na alegação de haver a prisão em fla- grante resultado de informação obtida por meio de censura telefônica deferida judicialmente. E que a interceptação telefônica.., não foi a prova exclusiva que desencadeou o procedimento penal, mas somente veio a corroborar as outras licitamente obtidas pela equipe de investigação policial. Habeas corpus indeferido". Relativamente ao que se denomina gravação ambiental, hipótese em que um dos interlocutores em uma conversa grava-a sem avisar ao

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outro, o Supremo Tribunal Federal também afirmou a sua admissibili- dade, ao menos nas hipóteses de a gravação ter sido feita por vítima de um comportamento ilícito. Confira-se a posição do Tribunal: "Captação, por meio de fita magnética, de conversa entre presentes, ou seja, a chamada gravação ambiental, autorizada por um dos interlocutores, vítima de concussão, sem o conhecimento dos demais. (A) ilicitude da prova (fica) excluída por caracterizar-se o exercício de legítima defesa de quem a produziu". 152. RECR 212.081, DJU, 27 mar. 1998, p. 23, rel. Min. Octavio Gallotti. O mesmo entendimento prevaleceu relativamente à gravação de conversa telefônica por uma das partes envolvidas. Veja-se, a propósito, o pronunciamento a seguir: "Habeas corpus. Prova. Licitude. Gravação de telefo- nema por interlocutor. É lícita a gravação de conversa tele- fônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autori- zação, sem ciência do outro, quando há investida crimino- sa deste último. É inconsistente e fere o senso comum fa- lar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com seqüestradores, esteliona- tários ou qualquer tipo de chantagista. Ordem indeferida". 153. HC 75.338-RJ, DJU, 25 set. 1998, p. 11, rel. Min. Nelson Jobim. Parece-me oportuno, neste ponto, suscitar uma reflexão. Quando a gravação, seja ambiental ou de conversa telefônica, é feita por vítima de um comportamento delituoso, a admissibilidade da prova afigura-se in- discutível. A Constituição protege a privacidade e não o crime. Como não se trata de violação da comunicação (hipótese que a Constituição interdita, salvo as exceções legais e mediante autorização judicial), a ponderação de valores entre a incolumidade do patrimônio jurídico da vítima e a privacidade do ofensor deve resolver-se em favor do primeiro. Considerem-se, porém, variações desta hipótese em temas não cri- minais. Será legítimo ao marido gravar conversa íntima com sua mulher e utilizá-la no processo de separação? Será legítimo ao advogado de uma das partes juntar aos autos transcrição de conversa telefônica com o advogado da outra parte, na qual este último admitiu algum fato gravoso a seu cliente? Será legítimo ao representante do Ministério Público, sem a ciência dos demais presentes, gravar a audiência e depois utilizar a fita magnética como prova, no recurso, procurando infirmar algum dado constante da ata? A gravação clandestina é um mal e não deve ser estimulada. A pri- vacidade, a confiabilidade no próximo, a ética das relações sociais são valores que merecem preservação. A aceitabilidade da gravação clan- destina, ao menos em primeira reflexão, parece-me deva ficar confinada às hipóteses de utilização por vítima de crime. 6. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade O princípio da razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento li- gados à garantia do devido processo legal, instituto ancestral do direito anglo-saxão. De fato, sua matriz remonta à cláusula law of the land, inscrita na Magna Charta, de 1215, documento que é reconhecido como um dos grandes antecedentes do constitucionalismo. Modernamente, sua consagração em texto positivo se deu através das emendas 5ª e 14ª à Constituição norte-americana. A cláusula do due process of law tor- nou-se uma das principais fontes da expressiva jurisprudência da Supre- ma Corte dos Estados Unidos ao longo dos últimos dois séculos. 154. As dez primeiras emendas, conhecidas como Bill of Rights, foram aprovadas em 15-12-

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1791. A 5ª emenda estabeleceu que "ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal". O preceito vinculava apenas o Governo Federal. Somente a 14ª emenda, aprovada em 21-7-1868, já após a guerra civil, estendeu a regra aos Estados-membros, ao dispor: "Ne- nhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal". 155. O tema é versado em todos os tratados e livros de textos de direito constitucional ameri- cano. Vejam-se, por todos, Corwin, The Constitution and what it means today, 1978; Tribe, American constitutional law, cit.; Nowak, Rotunda e Young, Constitutional law, cit.; Gunther, Constitutional law, cit.; Stone, Seidman, Sunstein e Tushnet, Constitutional law, 1986; Brest e Levinson, Processes of constitutional decision making, cit. De autores americanos, em tradução portuguesa, vejam-se Thomas Cooley, Princípios gerais de direito constitucional dos Estados Uni- dos da América do Norte, 1982; Bernard Schwartz. Direito constitucional americano, 1966. Entre os autores nacionais, vejam-se: San Tiago Dantas, Igualdade perante a lei e "due process of law" (contribuição ao estudo da limitação constitucional do Poder Legislativo), RF, 116:357,1948; José Alfredo de Oliveira Baracho, Processo e Constituição: o devido processo legal, s. d.; Carlos Roberto de Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, 1989, e Ada Pellegrini Grinover, As garantias constitucionais do direito de ação, 1973. Antes de procurar delimitar com precisão os contornos do princípio da razoabilidade e suas potencialidades no direito brasileiro, é de pro- veito percorrer brevemente sua trajetória no direito norte-americano. O princípio do devido processo legal, nos Estados Unidos, é marcado por duas grandes fases: a primeira, onde se revestiu de caráter estritamente processual (procedural due process), e uma segunda, de cunho substan- tivo (substantive due process), que se tomou fundamento de um criativo exercício de jurisdição constitucional. De fato, ao lado do princípio da igualdade perante a lei, essa versão substantiva do devido processo legal tornou-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais, ensejando o controle do arbítrio do Legislativo e da discricionariedade governamental. É por seu intermédio que se procede ao exame de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality) das nor- mas jurídicas e dos atos do Poder Público em geral. 156. V. Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constitui- ção do Brasil, cit., p. 3. Embora se tenha feito referência a duas fases, na verdade elas não se excluem, mas, ao contrário, convivem até hoje. A primeira versão do due process, como se disse, teve ênfase processual, com expressa rejei- ção de qualquer conotação substantiva que permitisse ao Judiciário exa- minar o caráter injusto ou arbitrário do ato legislativo. Tratava-se, inicialmente, de uma garantia voltada para a regularidade do processo penal, depois estendida ao processo civil e ao processo administrativo. Seu campo de incidência recaía notadamente no direito ao contraditório

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e à ampla defesa, incluindo questões como o direito a advogado e ao acesso à justiça para os que não tinham recursos. 157. Representativo dessa fase é o conjunto de casos conhecidos como Slaughterhouse ca- ses, 83 U. S. (16 Wall.) 36(1873), onde a Suprema Corte recusou-se a considerar inconstitucional uma lei da Louisiana que conferia monopólio de uma atividade a determinada companhia, impe- dindo todas as demais pessoas e empresas de explorarem a atividade. A decisão fundou-se em que a garantia do devido processo legal destinava-se a proteger as pessoas contra as injustiças de cunho processual, o que não era o caso. 158. V. Vitek vs. Jones, 445 U. S.480(1980): "Due process requires written notice, a hearing et which evidence is heard, including a right of presentation, confrontation and cross-examination, an independent decisionmaker, a written statement by the fact-finder, effective and timely notice of rights, and qualified and independent assistance of legal counsel". V. Barron e Dienes, Constitutional law,cit.,p. 175. 159. Vejam-se, e. g., Boddie vs. Connecticut, 401 U. S.371 (1971)e Little vs. Streater, 452 U.S. 1(1981). O desenvolvimento e a afirmação do substantive due process mar- cam um impulso de ascensão do Judiciário, provavelmente só compará- vel ao que se verificara quando da introdução do controle judicial da constitucionalidade das leis, em 1803, com Marbury vs. Madison. É que através desse fundamento - o do devido processo legal - abriu-se um amplo espaço de exame de mérito dos atos do Poder Público, com a redefinição da noção de discricionariedade. Embora se traduza na idéia de justiça, de razoabilidade, expressando o sentimento comum de uma dada época, não se trata de cláusula de fácil apreensão conceptual, como bem captou o Justice Harlan, da Suprema Corte: ""Devido processo" não foi ainda reduzido a nenhuma fórmula: seu conteúdo não pode ser determinado pela refe- rência a qualquer código. O melhor que pode ser dito é que através do curso das decisões desta Corte ele representou o equilíbrio que nossa Nação, construída sobre postulados de respeito pela liberdade do indivíduo, oscilou entre esta liberdade e as demandas da sociedade organizada". 160. Voto proferido em Griswold vs. Connecticut, 381 U. S.479(1965). De toda sorte, a cláusula enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins. Somente presentes essas condições poder-se-á admi- tir a limitação a algum direito individual. Aliás, tais direitos não se limitam aos que se encontram expressamente previstos no Texto, mas também in- cluem outros, fundados nos princípios gerais de justiça e liberdade. O reconhecimento dessa dimensão substantiva do devido processo legal passou por três fases distintas e de certa forma cíclicas, que incluem (a) sua ascensão e consolidação, do final do século XIX até a década de 30; (b) seu desprestígio e quase abandono no final da década de 30; (c) seu renascimento triunfal na década de 50, no fluxo da revolução pro- gressista promovida pela Suprema Corte sob a presidência de Earl Warren. Presentemente, a Suprema Corte reassumiu um perfil conser- vador e o ativismo judicial - isto é, a intervenção dos tribunais no

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mérito de certas valorações legislativas e administrativas -, que se manifestava destacadamente pelo uso substantivo da cláusula do devido processo legal, vive um momento de refluxo. A doutrina do devido processo legal substantivo começou a se deline- ar no final do século passado, como reação ao intervencionismo estatal na ordem econômica. A Suprema Corte fez-se intérprete do pensamento li- beral, fundado na idéia do laissez faire, pelo qual o desenvolvimento é melhor fomentado com a menor interferência possível do Poder Público nos negócios privados. Após alguns ensaios de aplicação do substantive due process, a Corte finalmente invalidou, por inconstitucional, uma lei estadual que impedia que os residentes de Louisiana contratassem segu- ros de seus bens com empresas de fora do Estado. A decisão que melhor simbolizou esse período, todavia, foi proferida em Lochner vs. New York, onde, em nome da liberdade de contrato, considerou-se inconstitucional uma lei de Nova York que limitava a jornada de trabalho dos padeiros. Sob o mesmo fundamento, a Suprema Corte invalidou inúmeras outras leis, inclusive a que estabelecia salário mínimo para mulheres. Esse período ficou conhecido como a era Lochner. 161. Allgeyer vs. Louisiana, 165 U. S. 578 (1897). 162. 198U.S.45(1905). 163. Adkins vs. Children´s Hospital, 261 U. S. 525 (1923). 164. 295 U. S. 495 (1935). Sua superação se deu pelo advento do New Deal, após a crise de 1929. Eleito Presidente em 1932, Franklin Roosevelt deu início à edição de ampla legislação social e de intervenção no domínio econômico. Em 1935, os casos em que essa legislação era contestada começaram a chegar à Suprema Corte, que, fiel à doutrina Lochner e hostil ao intervencionismo estatal, passou a invalidar diversas leis importantes para o plano de recu- peração econômica. Nesse ano, ao julgar o caso Schechter Poultry Corp. vs. United States, a Corte declarou a inconstitucionalidade da Lei Nacio- nal de Recuperação Industrial, de 1933, reputada essencial para a conti- nuidade da ação governamental, e que continha normas sobre concorrên- cia desleal, preços e salários, jornada de trabalho e negociações coletivas. Estabeleceu-se um confronto entre o Executivo e o Judiciário. Reeleito em 1936, no início do ano seguinte Franklin Roosevelt envia uma mensa- gem legislativa ao Congresso modificando a composição da Suprema Corte, com vistas a obter maioria naquele colegiado. Conhecida como court-packing plan, a lei não foi aprovada pelo Congresso. Mas, pressio- nada, a Suprema Corte mudou sua orientação e abdicou do exame de mérito das normas de cunho econômico, encerrando o controle substanti- vo de tais leis. Foi o declínio do devido processo legal substantivo. 165. A lei proposta consistia no seguinte: para cada juiz da Suprema Corte com idade superior a 70 anos e que estivesse exercendo a judicatura há mais de 10, poderia o Presidente nomear um novo, desde que o número total de ministros não excedesse de 15. Sobre esse tema, v. Gerald Gunther, Constitutional law, cit., p. 121 e s. V. também William H. Rehnquist, The Supreme Court: how it was, how it is, cit., p. 215 e s. 166. Um dos marcos da superação da era Lochner foi o julgamento de West Coast vs. Parrish, 300 U. S. 379(1937), onde a Corte, revertendo decisão anterior em Adkins vs. Children´s Hospital (v. supra), considerou constitucional lei estadual que estabelecia salário mínimo para mulheres. A terceira fase do devido processo legal substantivo teve como ante-

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cedente importante a distinção entre liberdades econômicas e não econô- micas, cujo marco mais célebre foi a nota de rodapé n. 4, integrante do voto do Justice Stone ao julgar o caso United States vs. Carolene Products. No primeiro domínio, a atitude dos tribunais deveria ser de deferência aos outros Poderes. Mas no tocante às liberdades pessoais, inclusive e especialmente quanto à proteção das minorias, o interven- cionismo judicial continuava a ser indispensável. Esses direitos e liberda- des não econômicos, que incluem a liberdade de expressão, de religião, bem como direitos de participação política e de privacidade, muitos deles não decorrentes expressamente do Texto, foram a tônica do constitucionalismo americano das últimas décadas. Decisões polêmicas na área da igualdade racial, como Brown vs. Board of Education, dos direitos políticos, como Reynolds vs. Sims e de processo penal, como Miranda vs. Arizona, fizeram desse período um dos mais "portentosos e tumultuados" da história da Corte. 167. 304 U. S. 144 (1938). 168. 347 U. S.873(1954). 169. 377 U. S.533(1964). 170. 384 U. S.436(1966). 171. Stone, Seidman, Sustein e Tushnet, Constitutional law, cit., p. XX. No âmbito da aplicação substantiva do devido processo legal, os casos que mais destacadamente marcaram época, pela ousadia, foram Griswold vs. Connecticut e Roe vs. Wade, onde a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de leis estaduais e consagrou um novo direito, não expressamente inscrito na Constituição, que foi o direito de privacidade. Em Griswold, invalidou-se uma lei do Estado de Connecticut que incriminava o uso de pílula anticoncepcional ou qualquer outro artigo ou instrumento contraceptivo, punindo tanto quem consumisse como quem prescrevesse. Em Roe, a Corte considerou inconstitucional uma lei do Texas que criminalizava o aborto, e não o admitia nem mesmo antes do terceiro mês de gravidez. Em seu voto, consignou o Juiz Blackmun: "Este direito de privacidade..., decorra ele do conceito de liberdade pessoal da 14ª emenda, como me parece, ou dos direitos reservados previstos na 9ª emenda, é abrangente o suficiente para incluir a decisão de uma mulher sobre pôr fim ou não à sua gravidez. (...) A lei do Texas é excessivamente abrangente. Ela não distingue entre abortos praticados no início da gravidez e os que são praticados mais adiante e o limita a uma única hipótese, que é a de "salvar" a vida da mãe. Conseqüente- mente, a lei não pode sobreviver ao presente ataque...". 172. 381 U. S. 479 (1965). 173. 410 U. S. 113(1973). 174.410 U.S. 113(1973). Todas as nomeações para a Suprema Corte nas últimas décadas de governos republicanos nos Estados Unidos foram marcadas pelo esfor- ço de escolher ministros que rejeitassem o ativismo judicial deflagrado pela Corte Warren e estivessem dispostos a rever a decisão proferida em Roe. Ao longo dos anos, essa decisão foi abertamente questionada, mas jamais foi claramente reformada (overruled). 175. Um dos últimos julgamentos sobre o tema ocorreu em Parenthood vs. Casey, 112 S. Ct. 2791 (1992), onde o voto majoritário, conquanto externando divergência quanto à decisão em Roe, questionou a própria legitimidade da Corte para reverter tal decisão. V. Morton J. Horwitz, Foreword: the Constitution

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of change: legal fundamentality without fundamentalism, Harvard Law Review, 107:30, 1993. Conclui-se, assim, a trajetória histórica da cláusula do devido pro- cesso legal e do princípio da razoabilidade no direito constitucional nor- te-americano. É bem de ver que tais conceitos correram mundo e reper- cutiram sobre os ordenamentos jurídicos atentos à constante busca de equilíbrio entre o exercício do poder e a preservação dos direitos dos cidadãos. Convém, por isso mesmo, aprofundar o exame do tema à luz dos métodos de argumentação e exposição sistemática que caracteri- zam o modo de entender e praticar o direito nos países de tradição jurí- dica romano-germânica. De logo é conveniente ressaltar que a doutrina e a jurisprudência, assim na Europa continental como no Brasil, costu- mam fazer referência, igualmente, ao princípio da proporcionalidade, conceito que em linhas gerais mantém uma relação de fungibilidade com o princípio da razoabilidade. Salvo onde assinalado, um e outro serão aqui empregados indistintamente. 176. Embora não faça essa assemelhação e refira-se sempre ao princípio da proporcionalidade, Willis Santiago Guerra Filho lembra a sinonimia e origem comum, na matemática, dos termos "razão" (lat. ratio) e "proporção" (lat. proportio)" (Sobre o princípio da proporcionalidade, mimeografado, p. 13-4). O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de pro- posições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso, o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. Há autores, mesmo, que recorrem ao direito natural como fundamento para a aplicação da regra da razoabilidade, embora possa ela radicar-se perfeitamente nos princípios gerais da hermenêutica. Sobre este ponto em particular, veja-se a passagem inspirada de San Tiago Dantas: "Não é apenas a doutrina do Direito Natural que vê no Direito uma ordem normativa superior e independente da Lei. Mesmo os que concebem a realidade jurídica como algo mutável e os princípios do Direito como uma síntese das nor- mas dentro de certos limites históricos reconhecem que pode haver leis inconciliáveis com esses princípios, cuja presença no sistema positivo fere a coerência deste, e produz a sensação íntima do arbitrário, traduzida na idéia de "lei injusta"". 177. Rafael Bielsa, Estudios de derecho público: derecho administrativo, 1950, t. 1, p. 485. 178. Nebbia vs. New York, 291 U. S.502(1934). 179. Linares Quintana, Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., v. 1, p. 122. 180. Pound, citado por José Alfredo de Oliveira Baracho, Processo e Constituição: o devido processo legal, p. 90. 181. V. Bidart Campos, Interpretación y el control constitucionales en la jurisdición constituci- onal, 1987, p. 92. Aliás, na sua origem norte-americana a cláusula do devido processo legal foi influ- enciada por concepções jusnaturalistas, sendo interpretada como uma garantia do direito a um proces-

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so que se inspirasse em princípios universais e superiores de justiça, conforme noticia Ada Pellegrini Grinover (As garantias constitucionais do direito de ação, cit., p. 33-4), onde esclarece: "Mas, sob a influência de magistrados como Holmes, Cardozo, Frankfurter, percebe-se que os princípios de igual- dade e de justiça processual não são a expressão de uma norma abstrata e superior, absoluta e transcendental com relação à normatividade positiva: trata-se, pelo contrário, da enunciação de valo- res históricos e relativos, que podem impor-se à razão, em determinado contexto histórico". V., tam- bém, Grey, Do we have an unwritten Constitution?, 27Stanford Law Review, p. 703,715-6, 1975. 182. Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constitui- ção do Brasil, cit., p. 53. 183. San Tiago Dantas, Igualdade perante a lei..., RF, 116:357, p. 362. Em seguida, após referência ao sistema americano e ao due process of law, arrematou: "A lei que não pode ser considerada "law of the land" é a lei contrária ao direito. Não a um direito fixado em regras e comandos precisos, que se tornariam, nesse caso, imutá- veis; mas ao direito como síntese, como corpo de princípios, como método de criação normativa". 184. San Tiago Dantas, Igualdade perante a lei..., RF, 116:357, p. 362. Seja como for, é necessário seguir em busca de terreno mais sólido e de elementos mais objetivos na caracterização da razoabilidade dos atos do Poder Público, especialmente, para os fins aqui considerados, os de cunho normativo. Somente essa delimitação de objeto poderá impe- dir que o princípio se esvazie de sentido, por excessivamente abstrato, ou que se perverta num critério para julgamentos ad hoc. A atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente far-se-á diante de certas circunstâncias concretas; será destinada à reali- zação de determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de deter- minados meios. Desse modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os meios. Além disso, há de se tomar em conta, tam- bém, os valores fundamentais da organização estatal, explícitos ou im- plícitos, como a ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça. A razoabilidade é, precisamente, a adequação de sen- tido que deve haver entre esses elementos. 185. Veja-se, a propósito, Humberto Quiroga Lavié, Derecho constitucional, 1984, p. 461. Essa razoabilidade deve ser aferida, em primeiro lugar, dentro da lei. É a chamada razoabilidade interna, que diz com a existência de uma relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins. Aí está incluída a razoabilidade técnica da medida. Por exemplo: se, diante de um surto inflacionário (motivo), o Poder Público congela o preço dos medicamentos vitais para certos doentes crônicos (meio) para assegurar que pessoas de baixa renda tenham acesso a eles (fim), há uma relação racional e razoável entre os elementos em questão, e a norma, em prin- cípio, afigura-se válida. Ao revés, se, diante do crescimento estatístico da AIDS (motivo), o Poder Público proíbe o consumo de bebidas alcoó- licas durante o carnaval (meio), para impedir a contaminação de cida- dãos nacionais (fim), a medida será irrazoável. Isso porque estará rom- pida a conexão entre os motivos, os meios e os fins, já que inexiste

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qualquer relação direta entre o consumo de álcool e a contaminação. De outra parte, havendo a razoabilidade interna da norma, é preciso verificar sua razoabilidade externa, isto é: sua adequação aos meios e fins admitidos e preconizados pelo Texto Constitucional. Se a lei contravier valores expressos ou implícitos no Texto Constitucional, não será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que o seja inter- namente. Suponha-se, por exemplo, que, diante da impossibilidade de conter a degradação acelerada da qualidade da vida urbana (motivo), a autoridade municipal impedisse o ingresso nos limites da cidade de qual- quer não-residente que não fosse capaz de provar estar apenas em trân- sito (meio), com o que reduziria significativamente a demanda por habi- tações e equipamentos urbanos (fim). Norma desse teor poderia até ser internamente razoável, mas não passaria no teste de razoabilidade dian- te da Constituição, por contrariar princípios como o federativo, o da igualdade entre brasileiros etc. 186. Essa interessante distinção entre razoabilidade interna e externa encontra-se em Quiroga Lavié, Derecho constitucional, cit., p. 462 e s. Essa exigência de conformação ou adequação dos meios aos fins, que já era presente na construção norte-americana do princípio da razoabilidade, é ponto de consenso entre autores distanciados geografi- camente. A esse propósito, averbou Linares Quintana: "(La razonabilidad) consiste en la adecuación de los medios utilizados por el legislador a la obtención de los fines que determina la medida, a efectos de que tales medios no aparezcan como infundados o arbitrarmos, es decir, no proporcionados a las circunstancias que los motiva y a los fines que se procura alcanzar con ellos. ... Tratase, pues, de una correspondencia entre los medios propuestos y los fi- nes que a través de ellos deben alcanzarse". 187. Linares Quintana, Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., v. 1, p. 128. Na mesma linha, J. J. Gomes Canotilho: "Entre o fim da autorização constitucional para uma emanação de leis restritivas e o exercício do poder discricio- nário por parte do legislador ao realizar esse fim deve exis- tir uma inequívoca conexão material de meios e fins". 188. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 488. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal, em decisão de 1971, pronunciou-se em igual sentido: "O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado quando, com o seu auxilio, se pode promover o resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que se- ria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental". 189. BVerfGE, 30,292(316). V. Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de teoria constitucio- nal, 1989, p. 87. Verifica-se na decisão do Tribunal alemão a presença de um outro requisito qualificador da razoabilidade-proporcionalidade, que é o da exigibilidade ou necessidade (Erforderlichkeit) da medida. Conhecido, também, como "princípio da menor ingerência possível", consiste ele no imperativo de que os meios utilizados para atingimento dos fins visa- dos sejam os menos onerosos para o cidadão. É a chamada proibição do excesso. Uma lei será inconstitucional, por infringência ao princípio da

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proporcionalidade, "se se puder constatar, inequivocamente, a existên- cia de outras medidas menos lesivas". 190. BVerfGE, 39,210(230-1). V. GilmarFerreira Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 44. Há, ainda, um terceiro requisito, igualmente desenvolvido na dou- trina alemã, identificado como proporcionalidade em sentido estrito. Cuida-se, aqui, de uma verificação da relação custo-benefício da medi- da, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a se- rem obtidos. Em palavras de Canotilho, trata-se "de uma questão de "medida" ou "desmedida" para se alcançar um fim: pesar as desvanta- gens dos meios em relação às vantagens do fim". 191. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 387-8. A doutrina tanto lusitana quanto brasileira - que se abebera no conhecimento jurídico produzido na Alemanha reproduz e endossa essa tríplice caracterização do princípio da proporcionalidade, como é mais comumente referido pelos autores alemães. Assim é que dele se extraem os requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verifica- ção da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a pondera- ção entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justi- ficável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. Na feliz sín- tese de Willis Santiago Guerra Filho: "Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens". 192. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 386-8; Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1993, p. 318-9; Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 38 e 43; e WiIlis Santiago Guerra Filho, Ensaios de teoria constitucional, cit., p. 75. 193. Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de teoria constitucional, cit., p. 75. O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade sempre teve seu campo de incidência mais tradicional no âmbito da atuação do Po- der Executivo. Estudado precipuamente na área do direito administrati- vo, ele funcionava como medida da legitimidade do exercício do poder de polícia e da interferência dos entes públicos na vida privada. Ver- sando o tema, assinalou o ilustre professor argentino Agustin Gordillo: "A decisão "discricionária" do funcionário será ilegíti- ma, apesar de não transgredir nenhuma norma concreta e expressa, se é "irrazoável", o que pode ocorrer, principal- mente, quando: a) não dê os fundamentos de fato ou de direito que a sustentam ou; b) não leve em conta os fatos constantes do expediente ou públicos e notórios; ou se fun- de em fatos ou provas inexistentes; ou c) não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que se trate de uma medi- da desproporcionada, excessiva em relação ao que se quer alcançar". 194. V. Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrativo, 1991, p. 66-7:

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"Este princípio enuncia a idéia singela, aliás, conquanto freqüentemente desconsiderada, de que as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporci- onais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atrelados". V. também Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito administrativo, 1991, p. 93. 195. Agustin Gordillo, Princípios gerais de direito público, 1977, p. 183-4. Também no domínio do Poder Judiciário o princípio teve aplicabilidade, notadamente no tratamento das medidas cautelares. Sua aplicação como critério aferidor dos atos do Poder Legislativo, to- davia, a despeito de constituir prática relativamente antiga na tradição norte-americana, e de ser admitida com reservas em países como Ale- manha e Itália, e que suscita alguma controvérsia, por confrontar- se com certas noções tradicionais de separação de Poderes. 196. V. Egas Moniz de Aragão, Poder cautelar do juiz. Medidas provisórias, RPGERJ, 42:37, 1990, e Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz, A concessão de medida liminar em processo cautelar e o princípio cautelar da proporcionalidade, Rf 318:101, 1992. 197. O Bundesverfassungsgericht assentou, em decisão de 1951, que sua competência se limitava à apreciação da legitimidade da norma, e não de sua conveniência. Mas acrescentou, signi- ficativamente: "a questão sobre a liberdade discricionária outorgada ao legislador, bem como sobre os limites dessa liberdade, é uma questão jurídica suscetível de aferição judicial" (BVerFGE, 1, 15). V. Gilmar Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 41. 198. Na Itália, o art. 28 da Lei n. 87, que organiza a Corte Constitucional, exclui expressa- mente do controle de constitucionalidade valorações de natureza política e verificações sobre o uso do poder discricionário. Todavia, como assinala Pierandrei, será sempre possível examinar a norma à luz dos fins consagrados constitucionalmente (Enciclopedia del diritto, 1962, v. 10, p. 907). De fato, a aferição da razoabilidade importa em um juízo de mérito sobre os atos editados pelo Legislativo, o que interfere com o delineamen- to mais comumente aceito da discricionariedade do legislador. Ao exa- minar a compatibilidade entre meio e fim, e as nuances de necessidade- proporcionalidade da medida adotada, a atuação do Judiciário transcende à do mero controle objetivo da legalidade. E o conhecimento convencio- nal, como se sabe, rejeita que o juiz se substitua ao administrador ou ao legislador para fazer sobrepor a sua própria valoração subjetiva de dada matéria. A verdade, contudo, é que, ao apreciar uma lei para verificar se ela é ou não arbitrária, o juiz ou o tribunal estará, inevitavelmente, de- clinando o seu próprio ponto de vista do que seja racional ou razoável. 199. Traduzindo essa crença, que subsistiu inquestionada por longo tempo, escreveu Canotilho (Direito constitucional, cit., p. 739): "A discricionariedade do legislador ou, como hoje se diz, o âmbito de liberdade de conformação legislativa, não era uma discricionariedade sujeita a pressu-

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postos vinculados, as opções políticas do legislador não eram susceptíveis de controle e os fins da lei eram soberanamente estabelecidos pela própria lei". 200. V. Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constitui- ção do Brasil, cit., p. 216, fundado em texto de Edward Corwin (Court over Constitution - a study of judicial review as an instrument of popular government, 1938, p. 108): "What the Court says is that legislation must not be unreasonable, but what this means inevitably, and all that it means is that legislation must not be unreasonable to the Court’s way of thinking". A evolução dos conceitos tem atenuado o rigor das formulações clássicas e permitido a contenção da chamada liberdade de conforma- ção legislativa. O controle finalístico da atuação do legislador se exerce sobre dois momentos "teleologicamente relevantes" do ato legislativo, que Gomes Canotilho assim identifica e comenta: "(i) Em primeiro lugar, a lei é tendencialmente uma função de execução, desenvolvimento ou prossecução dos fins estabelecidos na Constituição, pelo que sempre se po- derá dizer que, em última análise, a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado; (ii) por outro lado, a lei, em- bora tendencialmente livre no fim, não pode ser contradi- tória, irrazoável, incongruente consigo mesma. Nas duas hipóteses assinaladas, toparíamos com a vinculação do fim da lei: no primeiro caso, a vinculação do fim da lei decorre da Constituição; no segundo caso, o fim imanente à legislação imporia os limites materiais da não contraditoriedade, razoabilidade e congruência". 201. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 740. Por ser uma competência excepcional, que se exerce em domínio delicado, deve o Judiciário agir com prudência e parcimônia. É preciso ter em linha de conta que, em um Estado democrático, a definição das políticas públicas deve recair sobre os órgãos que têm o batismo da representação popular, o que não é o caso de juízes e tribunais. Mas, quando se trate de preservar a vontade do povo, isto é, do constituinte originário, contra os excessos de maiorias legislativas eventuais, não deve o juiz hesitar. O controle de constitucionalidade se exerce, pre- cisamente, para assegurar a preservação dos valores permanentes sobre os ímpetos circunstanciais. Remarque-se, porque relevante, que a últi- ma palavra poderá ser sempre do Legislativo. É que, não concordando com a inteligência dada pelo Judiciário a um dispositivo constitucional, poderá ele, no exercício do poder constituinte derivado, emendar a nor- ma constitucional e dar-lhe o sentido que desejar. 202. Escrevendo sobre o tema no direito alemão, admitiu Krebs a possibilidade de superposição de competências, concluindo, no entanto, que isso não afetava a imprescindibilidade do princípio. É que, afirma ele, eventual "escorregão" (Gratwanderung) entre o direito e a política constitui risco inafastável da profissão do constitucionalista (v. Freiheitsschutz durch Grundrechte, JURA, 1988, p. 617 (623), apud Gilmar Ferreira Mendes, A doutrina constitucional e o controle de constitu- cionalidade como garantia da cidadania. Declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade no direito brasileiro, RDA, 191:40, 1993, p. 49).

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203. Nos Estados Unidos, por quatro vezes, o Congresso editou emendas à Constituição por discordar do entendimento jurisprudencial: a) a 11ª emenda, dando imunidade de jurisdição aos Estados, veio após a decisão em Chisholm vs. Georgia, 2 Dall 419 (1793); b) a criação de uma cidadania nacional pela 14ª emenda foi uma reação à decisão em Dred Scott vs. Sandford, 19 How. 393(1857); c) a admissão de um imposto federal sobre a renda, advinda com a 16ª emenda, deveu- se ao julgamento de Pollock vs. Farmer’s Loan & Trust Co., 157 U. S. 429 (1895); d) a extensão do direito de voto em eleições estaduais e nacionais a todos que contassem dezoito anos, introduzida pela 26ª emenda, foi motivada pelo caso Oregon vs. Mitchell, 400 U. S. 112 (1970). V. Edward Conrad Smith, The Constitution of the United States, 1979, p. 16 e s. Como se demonstrou até aqui, a razoabilidade dos atos do Poder Públi- co - inclusive dos atos legislativos -, como parâmetro aferidor de sua constitucionalidade, tem sido aceita em inúmeros sistemas jurídicos. Nos Estados Unidos, como visto, o princípio se assenta na cláusula do devido processo legal, constante das emendas de n. 5 e 14 à Constituição. Na Ar- gentina, como assinala com orgulho a doutrina, o princípio remonta ao tex- to original da Carta, que, no art. 28, estabelecia que os princípios, garantias e direitos reconhecidos na Constituição não poderiam ser alterados por leis que regulamentassem seu exercício. No direito constitucional alemão, atribui-se ao princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit) quali- dade de norma constitucional não escrita, derivada do Estado de direito. Em Portugal, ele vem materializado em regras expressas da Constituição, notadamente a da proibição do excesso. 204. A este propósito, assim manifestou-se Linares Quintana (Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., v. 1, p. 123): "Este precepto básico es propio de nuestra Constitución, no teniendo equivalente ni en términos siquiera aproximados, en la Ley Suprema de los Estados Unidos". 205. V. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 43. 206. Dispõe o art. 18, 2, da Constituição portuguesa: "A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente prote- gidos". Além dele, o art. 266,2, impõe aos órgãos e agentes administrativos que atuem com justiça e imparcialidade no exercício de suas funções, e o art. 272, 2, que estabelece que as medidas de polícia não devem ser utilizadas para além do estritamente necessario. No Brasil, o apego excessivo a certos dogmas da separação de Po- deres impôs ao princípio da razoabilidade uma trajetória relativamente acanhada. Há uma renitente resistência ao controle judicial do mérito dos atos do Poder Público, aos quais se reserva um amplo espaço de atuação autônoma, discricionária, onde as decisões do órgão ou do agente público são insindicáveis quanto à sua conveniência e oportunidade. Exem- plo da visão clássica do tema foi dado pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 13 de novembro de 1970, na qual assentou:

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"Harmonia dos Poderes. Art. 6º da Emenda Constitu- cional n. 1. A decisão recorrida invadiu área de estrita com- petência da Administração Pública ao mandar reabrir e equi- par uma enfermaria de hospital fechada por conveniência do serviço público. Inadmissibilidade da apreciação do mé- rito de tal providência pelo Poder Judiciário. Recurso co- nhecido e provido". 207. RTJ, 56:811, 1971, RE 70.278-GB, rel. Min. Adaucto Cardoso. É certo, porém, que, ao longo da vigência da Constituição de 1967- 69, ainda que de modo implícito e até mesmo inconsciente, e sem men- ção expressa ao princípio, diversas decisões dos tribunais superiores reve- renciaram a razoabilidade como parâmetro de validade de atos emanados do Poder Público. De fato, foi ela o grande vetor de decisões como: a) a que considerou inaceitável que delegado aprovado em concurso pudesse ser reprovado na prova de esforço físico (teste de Cooper), haja vista que são os agentes, e não o delegado, que de regra desempenham as mis- sões; b) a que considerou ensejadora de discriminação a reprovação, em entrevista pessoal, de candidatos à carreira diplomática já aprovados nas provas intelectuais; c) a que também considerou inconciliável com o princípio do concurso público o chamado "julgamento de consciência", em que o candidato à magistratura podia ser excluído do certame com base em julgamento secreto sobre sua vida pública e privada. 208. Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constitui- ção do Brasil, cit., p. 192. 209. Remessa ex officio n. 110.873-DF, TFR, rel. Min. Washington Bolivar, DJU, 26 fev. 1987. 210. MS 101 .898-DF, TFR, rel. Min. Leitão Krieger, DJU, 22 maio 1986. 211. RTJ, 122:1130, 1987, RE 111.411-8-RJ, rel. Min. Carlos Madeira. Todos esses precedentes referem-se a atos administrativos. A possi- bilidade de controle de razoabilidade dos atos do Poder Legislativo tam- bém tem sido discutida no Brasil nas últimas décadas, ainda que incipientemente. A fórmula utilizada para sua aplicação foi a importa- ção de figura tradicional originária do direito administrativo francês, identificada como détournement de pouvoir, isto é, o desvio ou excesso de poder. Convencionalmente aplicada no controle dos atos administra- tivos, o conceito teve seu alcance estendido para abrigar certos casos envolvendo atos legislativos. Há um interessante precedente na matéria, em decisão do Supremo Tribunal Federal, onde o Ministro Orozimbo Nonato firmou a tese de que: "O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade. É um poder, em suma, cujo exercí- cio não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo apli- cável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei Maior pode-se acender não somente consi- derando a letra, o texto, como, também, e principalmente, o espírito e o dispositivo invocado". 212. RF, 145:164, 1953, RE 18.331, rel. Min. Orozimbo Nonato. Já no regime da Carta de 1967-69, outra decisão da Suprema Corte, em linguagem ainda mais explícita, aplicou o princípio da razoabilidade como critério limitador das restrições de direitos. Na apreciação de ques-

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tão relativa à liberdade de exercício profissional, deixou-se assentado: "Ainda no tocante a essas condições de capacidade, não as pode estabelecer o legislador ordinário, em seu po- der de polícia das profissões, sem atender ao critério da razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário apreciar se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse pú- blico, para julgá-las legítimas ou não". 213. Rep. n. 930-DF, rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJU, 2 set. 1977. Em decisões posteriores, embora esporádicas, voltou-se a aplicar, ainda que sem maior desenvolvimento teórico, o princípio da razoabilidade. Foi o que se passou quando a Suprema Corte: a) conside- rou inválida a regra do Estatuto da OAB que estabelecia a incompatibi- lidade dos magistrados, membros do Ministério Público e de outras ca- tegorias de servidores para o exercício da advocacia, pelo prazo de dois anos a contar da aposentadoria ou da disponibilidade; b) considerou inconstitucional lei do Estado do Rio de Janeiro que elevava despropo- sitadamente os valores da taxa judiciária. 214. RTJ, 110:937, 1984, Rep. n. 1.054, rel. Min. Moreira Alves. 215. RTJ, 112:34, 1985, Rep. n. 1.077, rel. Min. Moreira Alves. Um dos poucos autores nacionais a dedicar alguma atenção ao tema do desvio de poder legislativo, Caio Tácito, menciona decisões do Supre- mo Tribunal Federal que mantiveram a anulação de leis que consubs- tanciavam os chamados testamentos políticos. É que, na pior tradição na- cional, não é incomum a edição de leis estaduais, ao término de governos derrotados nas urnas, criando cargos públicos em número excessivo ou concedendo benefícios remuneratórios, comprometendo as finanças pú- blicas e inviabilizando o novo governo. O abuso do poder legislativo, quan- do excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, configura vício especial de inconstitucionalidade. Analisando o caso concreto, afir- mou o ilustre publicista, em passagem lapidar: "A competência legislativa para criar cargos públicos visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade dis- cricionária, está, no entanto, vinculada à finalidade, que lhe é própria, não podendo ser exercida contra a conve- niência geral da coletividade, com o propósito manifesto de favorecer determinado grupo político, ou tornar ingo- vernável o Estado, cuja administração passa, pelo voto po- pular, às mãos adversárias. Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a atri- buição constitucional configura autêntico desvio de poder (détournement de pouvoir), colocando-se a competência legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento do legítimo interesse público". 216. Caio Tácito, O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais, RDA, 188:1, 1992. Sobre o tema, veja-se, também, Gilmar Ferreira Mendes, Contro- le de constitucionalidade, cit., onde se abre um tópico específico para o excesso de poder legislativo (p.38e s.). Como se constata singelamente, a despeito de não haver merecido qualquer referência expressa nos Textos Constitucionais de 1946 e 1967- 69, o princípio da razoabilidade foi utilizado, de forma explícita ou im- plícita, como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade de atos do Poder Público, tanto administrativos quanto legislativos. Duran- te a maior parte dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, de

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que resultou a Constituição de 1988, o princípio da razoabilidade cons- tou de diferentes projetos, inclusive do texto ao final aprovado pela Co- missão de Sistematização. Ali se lia, no caput do art. 44: "A administração pública, direta ou indireta, de qual- quer dos Poderes obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, exigindo-se, como condição de validade dos atos administrativos, a mo- tivação suficiente e, como requisito de sua legitimidade, a razoabilidade". A redação final da Constituição de 1988, todavia, excluiu a menção expressa ao princípio da razoabilidade. É certo, todavia, que se inscre- veu, expressamente, no inciso LIV do art. 5º, a cláusula do due process of law, com a dicção seguinte: "Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Diante disso, abrem-se duas linhas de construção constitucional, uma e outra conducentes ao mesmo resultado: o princípio da razoabilidade integra o direito constitucional brasileiro, devendo o teste de razoabilidade ser aplicado pelo intérprete da Constituição em qualquer caso submetido ao seu conhecimento. A primeira linha, mais inspirada na doutrina alemã, vislumbrará o princípio da razoabilidade como inerente ao Estado de di- reito, integrando de modo implícito o sistema, como um princípio consti- tucional não escrito. De outra parte, os que optarem pela influência norte-americana pretenderão extraí-lo da cláusula do devido processo legal, sus- tentando que a razoabilidade das leis se torna exigível por força do caráter substantivo que se deve dar à cláusula. É bem de ver que o princípio da razoabilidade tem um campo de incidência bem mais vasto nos países de Constituição sintética, onde sua aplicação criativa serve como mecanismo flexível para determinar a Constituição material de cada época. Nos países de Constituição analí- tica, sua aplicação se reduz, sem, contudo, perder em relevância. Mes- mo em um país como o Brasil, em que a Constituição é prolixa e casuística, há um amplo espaço de utilização do princípio da razoabilidade como instrumento de contenção do ímpeto arbitrário que, não infreqüentemente, estigmatiza a prática política brasileira. Nos últimos anos foram produzidos importantes trabalhos monográficos sobre o tema. Da mesma forma, juízes e tribunais, in- clusive e especialmente o Supremo Tribunal Federal, têm encontrado no princípio da razoabilidade, direta ou indiretamente, fundamento cons- tante para suas razões de decidir. Confira-se, abaixo, uma seleção de julgados recentes que confirmam a assertiva. 217. Vejam-se: Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, 1996; Raquel Denize Stumm, Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, 1995; Paulo Armínio Tavares Buechele, O princípio da proporcionalidade e a interpretação da Constituição, 1999. O art. 37, X, da Constituição, que impõe se faça na mesma data "a revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares", é um corolário do princípio fundamental da isonomia; não é, nem razoavelmente poderia ser, um imperativo de estratificação perpétua da escala relativa dos vencimentos existentes no dia da promulgação da Lei Fundamental: não impede, por isso, a nova avaliação, por lei, a qualquer tempo, dos venci-

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mentos reais a atribuir a carreiras ou cargos específicos, com a ressalva expressa de sua irredutibilidade (CF, art. 37, XV). 218. RTJ, 145:101, 1993,ADIn 526-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence. Segundo uma interpretação harmônica dos arts. 7º, XXX, 37, I, e 39, § 2º, da Constituição Federal, pode a lei, desde que o faça de modo razoável, estabelecer limites mínimo e máximo de idade para ingresso em funções, empregos e cargos públicos. 219. RDA, 196:103, 1994, RE 174.548-7-AC, rel. Min. Carlos Velloso. O tema concernente à fixação legal de limite de idade para efeito de inscrição em concurso público e de preenchimento de cargos públicos tem sido analisado pela jurisprudência em função e na perspectiva do critério da razoabilidade. 220. RDA, 199:153, 1995, RO em MS 21 .045-5-DF, rel. Min. Celso de Mello. É de se deferir liminar em ação direta de inconstitucionalidade com relação a lei estadual que determina a pesagem de botijões de gás lique- feito de petróleo entregues ou recebidos para substituição à vista do consumidor. Além de violação ao princípio de proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos, há evidente plausibilidade jurídica da argüição que aconselha a suspensão cautelar da lei impugna- da, a fim de evitar danos irreparáveis à economia do setor, no caso de vir a ser declarada a inconstitucionalidade. 221. RDA, 194:299, 1993, e RTJ, 152:455, 1995, ADIn 855-2-PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence. O princípio da razoabilidade constitucional é conducente a ter-se como válida a regência da proibição da importação de pneus usados via portaria, não sendo de se exigir lei, em sentido formal e material, especificadora, de forma exaustiva, de bens passíveis, ou não, de im- portação. 222. DJU, 12 set. 1997, p. 43471, RE 204.020-7-PE. A norma legal, que concede a servidor inativo vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa (gratifica- ção de férias correspondente a um terço do valor da remuneração men- sal), ofende o princípio da razoabilidade, que atua, enquanto projeção caracterizadora da cláusula do substantive due process of law, como insuperável limitação ao poder normativo do Estado. 223. RDA, 200:242, 1995, ADin 1.158-8-AM, rel. Min. Celso de Mello. A regra contida no § 1º do art. 100 da Constituição há de ter alcance perquirido em face não só do princípio da razoabilidade e do objetivo nela previsto, como também do preceito transitório do art. 33, com o qual se almejou colocar ponto final no esdrúxulo quadro decorrente da jurisprudência pretérita à Carta de 1988, no sentido de que os valores devidos pela Fazenda seriam pagos, até o fim do exercício seguinte, considerados os precatórios apresentados até 12 de julho, oportunidade em que é feita a correção respectiva. 224. RTJ, 152:630, 1995, AI 153.493-SP, rel. Min. Marco Aurélio. A importação e sistematização do princípio da razoabilidade- proporcionalidade no direito brasileiro projetaram novas luzes sobre o tratamento doutrinário do princípio da isonomia. Historicamente e mais rotineiramente utilizado na busca de equipara- ções salariais ou remuneratórias, o grande mandamento da igualdade subaproveitado é tradicionalmente tratado como um tema menor, assim pela doutrina como pela jurisprudência. 225. A Emenda Constitucional n. 19, de 4-6-1998 (Reforma AdministratiVa), suprimiu a cláu- sula de isonomia de vencimentos entre cargos de atribuições iguais ou assemelhados, constante do

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§ 1º do art. 39 do texto original. 226. Exceção que confirma a regra é o precioso trabalho de Celso Antônio Bandeira de Mello, O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 1993 (a 1ª edição desse texto é de 1978). Embora concentrado em aspecto específico do tema, v. também Carlos Roberto de Siqueira Castro, O prin- cípio da isonomia e a igualdade da mulher no direito constitucional, 1983. Reproduzindo o conhecimento convencional, costuma-se afirmar que a isonomia traduz-se em igualdade na lei - ordem dirigida ao le- gislador - e perante a lei - ordem dirigida ao aplicador da lei. Em seguida, é de praxe invocar-se a máxima aristotélica de que o princípio consiste em "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que eles se desigualam". A beleza filosófica de tal asserto não contribui, contudo, para desvendar o cerne da questão: saber quem são os iguais e os desiguais e definir em que circunstâncias é constitu- cionalmente legítimo o tratamento desigual. O princípio genérico da igualdade vem capitulado, no direito cons- titucional positivo brasileiro, como direito individual - "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5º, caput) - e como objetivo fundamental da República - "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV). Nada obstante o tom peremptó- rio dos dois preceptivos, de longa data se reconhece que legislar consis- te, inegavelmente, em discriminar situações e classificar pessoas à luz dos mais diversificados critérios. 227. V. Celso Antônio Bandeira de Mello, O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, cit., p. 11; Carlos Roberto de Siqueira Castro, O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no direito constitucional brasileiro, cit., p. 44. Aliás, a própria Constituição desequipara as pessoas com base em múltiplos fatores, que incluem sexo, renda, situação funcional, nacionali- dade, dentre outros. Assim, ao contrário do que se poderia supor à vista da literalidade da matriz constitucional da isonomia, o princípio, em muitas de suas incidências, não apenas não veda o estabelecimento de desigual- dades jurídicas, como, ao contrário, impõe o tratamento desigual. Estabelecida a premissa de que é possível distinguir pessoas e situa- ções para o fim de dar a elas tratamento jurídico diferenciado, cabe determi- nar os critérios que permitirão identificar as hipóteses em que as desequiparações são juridicamente toleráveis. Em trabalho escrito em 1985 - antes, portanto, da formal entronização do princípio da proporcionalida- de -, mas prenunciando a natural evolução da matéria, averbamos: "Parece-me, contudo, que a compatibilização entre a regra isonômica (na vertente do tratamento desigual) e ou- tros interesses prestigiados constitucionalmente exige que se recorra à idéia de proporcionalidade. Somente assim se poderá obter um equilíbrio entre diferentes valores a serem preservados. Vê-se, assim, que é possível discriminar em prol dos desfavorecidos economicamente, em detrimento dos mais abonados. Mas o tratamento desigual há de encontrar limi- tes de razoabilidade para que seja legítimo. Este limite po- derá vir expresso ou implícito no texto constitucional, e a conciliação que se faz necessária exige a utilização de um conceito flexível, fluido, como o de proporcionalidade".

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228. Luís Roberto Barroso, A igualdade perante a lei. Algumas reflexões, in Temas atuais do direito brasileiro, 1987. Veja-se a demonstração da tese. Além da vedação genérica à discri- minação, a Constituição indicou, pontualmente, alguns fatores de discri- minação que especialmente desaprova, a saber: origem, raça, sexo, cor, idade. Nada obstante, não parece ilegítimo, à luz da Constituição, que: 1. em concurso público para guardas penitenciários de um presídio feminino, somente se admita a inscrição de mulheres; 2. em evento comemorativo do dia da consciência negra, sejam con- tratados somente artistas dessa raça; 3. o Teatro Municipal, desejando admitir uma bailarina para ence- nar o ballet "Romeu e Julieta", recrute entre pessoas do sexo feminino e jovens; 4. se exija do estrangeiro residente no país visto de permanência e documentação específica, distinta da dos nacionais. Tais classificações fundam-se em fatores que o constituinte consi- derou suspeitos e cuja utilização traz uma forte possibilidade de inconstitucionalidade. A menos que se possa demonstrar - como pare- ce ser o caso em cada um dos exemplos - que o tratamento desigual teve um fundamento razoável e destinou-se a realizar um fim legítimo. Vale dizer: o tratamento diferenciado, para ser válido, precisa passar no teste da razoabilidade interna e externa. De plano, portanto, não será legítima a desequiparação arbitrária, caprichosa, aleatória. O elemento de discriminação tem de ser relevante e residente nas pessoas por tal modo diferenciadas. Não pode ser exter- no ou alheio a elas. Não se pode estabelecer que os servidores que têm olhos claros terão prioridade no escalonamento de férias (irrelevância) ou que se dará preferência às mulheres se a seleção feminina de voleibol for campeã (fator externo e alheio). 229. Celso Antônio Bandeira de Mello, O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, cit., p. 29-30: "É inadmissível, perante a isonomia, discriminar pessoas ou situações ou coisas (o que resulta, em última instância, na discriminação de pessoas) mediante traço diferencial que não seja nelas mesmas residentes. Por isso, são incabíveis regimes diferentes determinados em vista de fator alheio a elas, quer-se dizer: que não seja extraído delas mesmas". De parte isto, tem de haver racionalidade na desequiparação, vale dizer: adequação entre meio e fim. É legítimo que se adote o critério compleição física na escolha dos soldados que formarão a tropa de cho- que, mas não para a seleção dos que servirão como digitadores ou auxi- liares administrativos. A desequiparação, ademais, terá de ser necessária para a realização do objetivo visado, vedado o excesso, isto é, o tratamento diferenciado além do que é imprescindível. Em um concurso público, por exemplo, no âmbito da Secretaria de Segurança Pública, é possível excluir da dis- puta por cargos que exigem destreza física os candidatos portadores de deficiência motora. Mas se a restrição estender-se a todos os cargos daquele órgão, inclusive os de natureza burocrática, será nula por ter ido além do estritamente necessário, sendo colhida pelo subprincípio da vedação do excesso. E, por fim, terá de haver proporcionalidade em sentido estrito. É imperativo que o valor promovido com a desequiparação seja mais rele- vante do que o que está sendo sacrificado. Suponha-se, por ilustração, que o Museu Imperial, desejando assegurar mais silêncio e tranqüilida-

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de aos seus visitantes adultos, proíba o ingresso de menores de quatorze anos. O prejuízo que tal medida traz à formação cultural e humanística dos jovens interessados em visitar o museu é, por certo, superior ao desejo dos demais freqüentadores de não conviverem com o burburinho infantil ou adolescente. Superado o teste da razoabilidade interna - adequação meio-fim, necessidade/vedação do excesso e proporcionalidade em sentido estri- to -, será preciso verificar se o tratamento desigual resiste ao exame de sua razoabilidade externa. Vale dizer: se o meio empregado e o fim visa- do são compatíveis com os valores constitucionais. Suponha-se, por exemplo, que uma Escola Militar de formação de oficiais constate, com base em prova estatística, que os alunos originários de determinada região têm, ao longo dos estudos e da carreira, de- sempenho superior aos originários de outras partes do país. Ou, ao contrário, que os alunos originários de uma específica região apresen- tam elevado índice de repetência e desligamento. Pergunta-se: poderia a Escola, em seus critérios de admissão, favorecer o ingresso de uns e dificultar os de outros, em função da região de origem, para assegurar sua maior eficiência? A resposta é naturalmente negativa. O ordenamento constitucional brasileiro veda que se criem distinções entre brasileiros (art. 19, III). Portanto, mesmo que se demonstrasse inequivocamente que os resulta- dos seriam melhores, eles seriam obtidos com o sacrifício de valores dos quais não é possível dispor. Em desfecho, e para mero fim de sistematização final, é possível sintetizar as idéias desenvolvidas neste tópico na forma abaixo. O princípio da razoabilidade é um mecanismo de controle da discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciá- rio invalidar atos legislativos ou atos administrativos quando: (a) não haja relação de adequação entre o fim visado e o meio empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha. Um certo positivismo arraigado na formação jurídica nacional re- tardou o ingresso do princípio da razoabilidade na jurisprudência brasi- leira, por falta de previsão expressa na Constituição. Inequivocamente, contudo, ele é uma decorrência natural do Estado democrático de direi- to e do princípio do devido processo legal. O princípio, naturalmente, não liberta o juiz dos limites e possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata. A razoabilidade, no entanto, oferece uma alternativa de atuação construtiva do Judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando não seja o único possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica da lei. O princípio da razoabilidade faz uma imperativa parceria com o princípio da isonomia. À vista da constatação de que legislar, em última análise, consiste em discriminar situações e pessoas por variados crité- rios, a razoabilidade é o parâmetro pelo qual se vai aferir se o funda- mento da diferenciação é aceitável e se o fim por ela visado é legítimo. 7. Princípio da efetividade A idéia de efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamen- te recente, traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo nos últimos tempos. Ligada ao fenômeno da juridicização da Constitui- ção, e ao reconhecimento e incremento de sua força normativa, a efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação constitucional.

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Os grandes autores da atualidade referem-se à necessidade de dar prefe- rência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista que levem as normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias de cada caso. 230. V. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucio- nal, cit., p. 50-1. Especificamente sobre a força normativa da Constituição, v. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 63 e s. Vejam-se, ainda, Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 229, e J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 233, onde se lê: "Este princípio, também designado por princípio da eficiên- cia ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)". É oportuno aqui, para a operatividade do princípio, um apro- fundamento conceitual da efetividade. Os fatos jurídicos resultantes de uma manifestação de vontade denominam-se atos jurídicos. Quan- do emanados do Poder Público, tais atos serão legislativos, adminis- trativos ou judiciais. Classicamente, os atos jurídicos comportam aná- lise científica em três planos distintos e inconfundíveis: o da existên- cia, o da validade e o da eficácia. Não é possível, nesta instância, aprofundar esses conceitos. Faz-se apenas o registro de que a existên- cia do ato jurídico está ligada à presença de seus elementos constitutivos (normalmente, agente, objeto e forma) e a validade decorre do preen- chimento de determinados requisitos, de atributos ditados pela lei. A ausência de algum dos requisitos conduz à invalidade do ato, à qual o ordenamento, considerando a maior ou menor gravidade, comina as sanções de nulidade ou anulabilidade. 231. Sobre o tema, v. Antônio Junqueira deAzevedo, Negócio jurídico - existência, valida- de e eficácia, 1986, e Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efrtividade de suas nor- mas, 1993,p.74e s. De maior interesse para os fins aqui visados é a eficácia dos atos jurídicos, o terceiro plano de análise, que se traduz na sua aptidão para a produção de efeitos, para a irradiação das conseqüências que lhe são próprias. Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade para a qual foi gerado. Tratando-se de uma norma, a eficácia jurídica designa a quali- dade de produzir, em maior ou menor grau, os seus efeitos típicos, "ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados; neste sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibi- lidade ou executoriedade da norma". Atente-se bem: a eficácia refere- se à aptidão, à idoneidade do ato para a produção de seus efeitos. Não se insere no seu âmbito constatar se tais efeitos realmente se produzem. 232. Flavio Bauer Novelli, A eficácia do ato administrativo, RDA, 60:16, 1960, p. 21.

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233. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1982, p. 56. É nesse plano da realidade, esse quarto plano, situado fora da teoria convencional, que se vai encontrar a efetividade ou eficácia social da norma. Diz ele respeito, como assinala Miguel Reale, ao cumprimento efetivo do direito por parte de uma sociedade, ao "reconhecimento" (Anerkennung) do direito pela comunidade ou, mais particularizada- mente, aos efeitos que uma regra suscita através do seu cumprimento. Cuida-se, aqui, da concretização do comando normativo, sua força imperativa no mundo dos fatos. 234. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, 1973, p. 135. A noção de efetividade, ou seja, dessa específica eficácia, cor- responde ao que Kelsen - distinguindo-a do conceito de vigência da norma - retratou como sendo "o fato real de ela ser efetivamente apli- cada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos". A efetividade significa, por- tanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos precei- tos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. 235. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 29-30. Partindo da premissa da estatalidade do direito, é intuitivo que a efetividade das normas depende, em primeiro lugar, da sua eficácia jurí- dica, isto é, da aptidão formal para incidir e reger as situações da vida, operando os efeitos que lhe são próprios. Não se quer referir, aqui, ape- nas à vigência da regra, mas também, e sobretudo, à "capacidade de o relato de uma norma dar-lhe condições de atuação", isoladamente ou conjugada com outras normas. Se o efeito jurídico pretendido pela nor- ma for irrealizável, não há efetividade possível. Mas essa seria uma si- tuação anômala em que o direito, como criação racional e lógica, usual- mente não incorreria. 236. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Teoria da norma jurídica: um modelo pragmático, in A norma jurídica (coletânea), 1980, p. 29. Como regra, um preceito legal é observado voluntariamente. A efetividade das normas jurídicas resulta, comumente, do seu cumpri- mento espontâneo. Sem embargo, descartados os comportamentos indi- viduais isolados, há casos de insubmissão numericamente expressiva, quando não generalizada, aos preceitos normativos, inclusive os de hie- rarquia constitucional. Assim se passa, por exemplo, quando uma nor- ma se confronta com um sentimento social arraigado, contrariando ten- dências prevalecentes na sociedade. Quando isso ocorre, ou a norma cairá em desuso ou sua efetivação dependerá da freqüente utilização do aparelho estatal. De outras vezes, resultará difícil a concretização de uma norma que contrarie interesses particularmente poderosos, influen- tes sobre os próprios organismos estatais, os quais, por acumpliciamento ou impotência, relutarão em acionar os mecanismos para impor sua ob- servância compulsória. 237. Por exemplo: o Estatuto da Terra - Lei n. 4.504, de 30-11-1964 -, o Ato Institucional n. 9, de 25-4-1969, e o Decreto-Lei n. 554, de 25-4-1969, instrumentalizavam, de certa forma, a realização da reforma agrária, jamais levada a efeito, por contrariar a burguesia rural latifundiária, importante base de apoio político do regime militar de 1964. O malogro do constitucionalismo, no Brasil e alhures, vem associa- do à falta de efetividade da Constituição, de sua incapacidade de moldar

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e submeter a realidade social. Naturalmente, a Constituição jurídica de um Estado é condicionada historicamente pelas circunstâncias concre- tas de cada época. Mas não se reduz ela à mera expressão das situações de fato existentes. A Constituição tem uma existência própria, autôno- ma, embora relativa, que advém de sua força normativa, pela qual orde- na e conforma o contexto social e político. Existe, assim, entre a norma e a realidade, uma tensão permanente. É nesse espaço que se definem as possibilidades e os limites do direito constitucional. 238. V. Konrad Hesse, La fuerza normativa de la Constitución, in Escritos de derecho consti- tucional, cit., p. 75. Veja-se, também, Flavio Bauer Novelli, A relatividade do conceito de Consti- tuição e a Constituição de 1967, RDA, 88:1,1968, p. 3e6. Embora resulte de um impulso político, que deflagra o poder cons- tituinte originário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é um documento jurídico. E as normas jurídicas, tenham caráter imediato ou prospectivo, não são opiniões, meras aspirações ou plataforma política. As regras de direito, consigna Recaséns Siches, "son instrumentos prácticos, elaborados y construidos por los hombres, para que, median- te su manejo, produzcan en la realidad social unos ciertos efectos, preci- samente el cumplimiento de los propósitos concebidos". 239. Luís Recaséns Siches, Nueva filosofía de la interpretación del derecho, 1980, p. 277. No Brasil, autores da melhor linhagem elaboraram cortes parciais que iluminaram aspectos específicos do tema. O estudo sistemático pi- oneiro na matéria deve-se a José Afonso da Silva, em notável monografia escrita em 1968 e reeditada em 1982, cuja ênfase recaía na eficácia das normas constitucionais. Lastreando-se na lição de Rui Barbosa, assen- tou o eminente Professor da Universidade de São Paulo que não há, em uma Constituição, cláusula a que se deva atribuir meramente o valor mo- ral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular a seus órgãos. Em seguida, elaborou, sob inspiração da doutrina italiana, sua célebre classificação tricotômica das normas constitucionais, dividindo-as em: a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade ime- diata, mas passíveis de restrição; c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida (que com- preendem as normas definidoras de princípio institutivo e as definidoras de princípio programático), em geral dependentes de integração infraconstitucional para operarem a plenitude de seus efeitos. 240. Anotem-se, em meio a outros, Celso Antônio Bandeira de Mello, Eficácia das normas constitucionais sobre a justiça social, tese apresentada à IX Conferência Nacional da OAB, Florianópolis, 1982: Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Brito, Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, 1982; Pinto Ferreira, Eficácia, in Enciclopédia Saraiva do Direito, 1979; Geraldo Ataliba, Eficácia das normas constitucionais e leis complementares, RDP, 13:35, 1968; Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, cit. 241. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, cit. 242. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 3,68 e 253. V. Rui Barbosa, Comentários à Constituição Federal brasileira, 1933, v. 2, p. 489.

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De acordo com essa formulação, normas de eficácia plena são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidên- cia imediata e independem de providência normativa ulterior para sua aplicação. Normas de eficácia contida são as que receberam, igual- mente, normatividade suficiente para reger os interesses de que cogi- tam, mas prevêem meios normativos (leis integradoras, conceitos gené- ricos etc.) que lhes podem reduzir a eficácia e aplicabilidade. Por últi- mo, normas de eficácia limitada são as que não receberam do constitu- inte normatividade suficiente para sua aplicação, o qual deixou ao legis- lador ordinário a tarefa de completar a regulamentação das matérias nelas traçadas em princípio ou esquema. 243. É pertinente a anotação de Michel Temer de que tais normas melhor denominar-se- iam eficácia redutível ou restringível (Elementos de direito constitucional, 1990, p. 27). 244. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 254. Retomando de onde José Afonso da Silva parara, e mudando o foco da eficácia para a efetividade, escrevemos nossa tese de livre-docência sob o título A força normativa da Constituição. Elementos para a efetividade das normas constitucionais (1989). As idéias veiculadas neste tópico são a síntese daquele estudo, atualizadas pela produção ju- rídica mais recente e pela jurisprudência dos tribunais. 245. Com algumas alterações e acréscimos, esse trabalho foi publicado em versão comercial sob o título O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1991 e 1993. No nível lógico, nenhuma lei, qualquer que seja sua hierarquia, é editada para não ser cumprida. Sem embargo, ao menos potencialmen- te, existe sempre um antagonismo entre o dever-ser tipificado na norma e o ser da realidade social. Se assim não fosse, seria desnecessária a regra, pois não haveria sentido algum em impor-se, por via legal, algo que ordinária e invariavelmente já ocorre. É precisamente aqui que resi- de o impasse científico que invalida a suposição, difundida e equivoca- da, de que o direito deve limitar-se a expressar a realidade de fato. Isso seria sua negação. De outra parte, é certo que o direito se forma com elementos colhidos na realidade, e seria condenada ao insucesso a legis- lação que não tivesse ressonância no sentimento social. O equilíbrio entre esses dois extremos é que conduz a um ordenamento jurídico soci- almente eficaz. 246. Sobre normatividade e efetividade, veja-se Hans Kelsen, Teoría general del Estado (ed. mexicana), 1965, p. 23-4. De regra, como já referido, um preceito legal é observado voluntaria- mente. As normas jurídicas têm, por si mesmas, uma eficácia "racional ou intelectual", por tutelarem, usualmente, valores que têm ascendência no espírito dos homens. Quando, todavia, deixa de ocorrer a submis- são da vontade individual ao comando normativo, a ordem jurídica aciona um mecanismo de sanção, promovendo, por via coercitiva, a obediência a seus postulados. Mas essa é a exceção. Como bem intuiu André Hauriou, se não houvesse, em grande parte, uma obediência espontânea, se fosse necessário um policial atrás de cada indivíduo e, quem sabe, um segun- do policial atrás do primeiro, a vida social seria impossível. 247. André Hauriou, Derecho constitucional y instituciones políticas (ed. espanhola), 1971, p. 30. 248. André Hauriou, Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., p. 30.

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A despeito da sedimentada formulação doutrinária dessas questões, o direito constitucional, por peculiaridades que lhe são próprias, não as assimilou ainda inteiramente. A dificuldade de isolar seu objeto da com- plexa interferência de componentes metajurídicos retarda, quando não o seu desenvolvimento científico, ao menos a sua dimensão normativa, comprometendo-lhe a eficácia, assim no que diz respeito ao cumpri- mento espontâneo de seus princípios e normas como à existência de meios de sanção eficientes. Em nenhuma esfera jurídica, observa Linares Quintana, é tão grande o abismo entre a validade e a vigência do direito. Foi precisamente ao estudar a sintonia entre as normas constitucio- nais e a realidade do poder - e a efetividade dessa regulação - que Karl Loewenstein elaborou a sua celebrada classificação ontológica das Constituições, diferenciando-as segundo seu caráter normativo, nomi- nal ou semântico. A Constituição normativa é aquela não apenas juri- dicamente válida, mas que está, além disso, vivamente integrada na so- ciedade. Suas normas dominam o processo político ou, inversamente, o processo de poder se amolda às normas da Lei Maior, submetendo-se a elas. "Para usar uma expressão de todos os dias: a Constituição é a rou- pa que assenta bem e que realmente veste." 249. Segundo V. Linares Quintana, Tratado de la ciencia del derecho constitucional argenti- no y comparado, 1953, v. 1, p. 346. O autor utiliza a palavra vigência para significar o que na terminologia por nós utilizada corresponde à efetividade. 250. Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, 1986, p. 217 e s. No outro extremo está a Constituição semântica, subalterna formalização da situação de poder político existente, para o exclusivo benefício dos detentores do poder de fato, que dispõem do aparato coativo do Estado. Se não houvesse nenhuma Constituição formal ou escrita, a vida institucional não seria perceptivelmente diferente. "A roupa não veste, como no caso da Constituição normativa, mas esconde, dissimula ou disfarça." 251. Raymundo Faoro,Assembléia Constituinte: a legitimidade recuperada, 1981,p. 10, onde se contém uma refletida síntese do pensamento de Loewenstein. Entre a Constituição normativa e a Constituição semântica, situa-se a Constituição nominal. Aqui, a dinâmica do processo político não se adapta às suas normas, mas conserva um caráter educativo e prospectivo. Existe, nesse caso, uma desarmonia entre os pressupostos sociais e econômicos existentes e a aspiração constitucional, a ser sanada com o passar do tempo, pelo amadurecimento esperado. "A roupa fica por certo tempo guardada no armário e será vestida quando o corpo nacional haja crescido." Conforta- velmente, sem pressa, os detentores do poder esperam pelo futuro, "seja do país grande potência, do país rico ou do país educado". 252. Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, cit., p. 218. 253. Raymundo Faoro, Assembléia Constituinte: a legitimidade recuperada, cit., p. 11. Na República, as Constituições de 1891, 1934 e 1946 foram nomi- nais. As Cartas de 1937, 1967 e 1969 foram semânticas. Já percorremos os ciclos do atraso. A Constituição de 1988, em meio a incontáveis vi- cissitudes, tem mobilizado um esforço, tanto de parte da doutrina como de diversos tribunais, de realização de um constitucionalismo normativo. As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídi- cas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a impe- ratividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um manda- mento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio

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de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperativida- de, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências da insubmissão ao seu comando. As disposições constitucionais são não apenas normas jurídi- cas como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a parado- xal equivocidade que longamente campeou nessa matéria, ao considerá-las prescrições desprovidas de sanção, mero ideário não jurídico. A crítica, antiga e autorizada a tal ponto de vista, não impediu que até hoje a Constituição se visse destituída, em tantos de seus preceitos, de efetivo teor normativo, ficando eles limitados a meras proposições abstratas, mais próximas de comandos morais que jurídicos. Tal de- formação é anteS tributária de imprecisão técnica e de conveniências dissimuladas do que de uma construção científica apta a justificá-la. O próprio constituinte, entregando-se, muitas vezes, a devaneios irrealizáveis, contribui para a desvalorização da Constituição como do- cumento jurídico. 254. V. Rui Barbosa, Comentários à Constituição Federal brasileira, cit., v. 2, p. 482 e s. V., também, Francisco Campos, Direito constitucional, 1956, p. 395, onde se lê: "Uma provisão cons- titucional, exatamente porque se contém no instrumento da Constituição, é uma provisão essencial, indispensável e imperativa, por envolver de fato ou por pressuposto do legislador constituinte - pressuposição irremovível por argumentos em contrário - matéria de interesse público ou relativa a direitos individuais, de ordem substancial, portanto". Ao jurista cabe formular estruturas lógicas e prover mecanismos técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas. Mas isso é, em verdade, o mínimo e o máximo de sua atuação. Subjacentemente, terá de haver uma determinação política do Poder Público em sobrepor-se à resistência. Num Estado democrático de direito, o poder, com o batismo da legitimidade, impõe-se por via da autoridade, que, geralmente, carreia à obediência, independentemente da coação; sem dispensá-la, contudo, quando necessária. Essa fórmula, tecnicamente singela, é, na prática, intrincadíssima e exige um grau de amadurecimento que somente se atinge, como inevitável, pelo passar do tempo e pela prática contínua. As idéias até aqui desenvolvidas em nome do princípio da efetividade apontam para uma evidência: o direito existe para realizar-se. O direito constitucional não foge a esse desígnio. Como adverte Biscaretti di Ruffia, sendo a Constituição a própria ordenação suprema do Estado, não pode existir uma norma ulterior, de grau superior, que a proteja. Por conseguinte, ela deve encontrar em si mesma a própria tutela e garan- tia. Convém, neste passo, enfatizar, ainda uma vez, a idéia da força normativa da Constituição. 255. Na precisa colocação de Dalmo deAbreu Dallari, "será totalmente inútil todo o cuidado para elaborar uma Constituição se ela não for efetivamente aplicada e respeitada... Por esse motivo, entre outros, a Constituição não deve conter preceitos de aplicação impossível ou que contrariem a realidade social" (Constituição e Constituinte, 1982, p. 53). 256. Paolo Biscaretti di Ruffia, Direito constitucional, 1984, p. 3. O desenvolvimento do princípio da efetividade, notadamente no Bra- sil, é fruto de uma transformação da própria percepção do papel do di- reito constitucional. Na América Latina, de uma maneira geral, um tan- to sob a inspiração do modelo francês, a ênfase sempre recaiu no estudo de sua parte orgânica e da discussão sobre as instituições políticas. Con-

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seqüentemente, negligenciava-se sua parte dogmática, a visualização da Constituição como carta de direitos e de instrumentação de sua tute- la. No Brasil dos últimos anos, com grande proveito prático, parte do debate constitucional afastou-se dos domínios da ciência política e apro- ximou-se do direito processual. Nesta nova perspectiva, torna-se relevante a determinação do con- teúdo das normas constitucionais, para delas extrair a posição jurídica em que investem os jurisdicionados. Por igual, devem-se pesquisar no ordenamento os mecanismos de tutela e garantia dos direitos constituci- onais. Esse é o caminho que conduz à sua efetividade. Ao instituir o Estado, a Constituição (a) organiza o exercício do poder político, (b) define os direitos fundamentais do povo e (c) estabe- lece princípios e traça fins públicos a serem alcançados. Por via de con- seqüência, as normas constitucionais, materialmente consideradas, po- dem ser agrupadas nas seguintes categorias: a) normas constitucionais de organização; b) normas constitucionais definidoras de direitos; c) normas constitucionais programáticas. As normas constitucionais de organização traçam a estrutura do Estado, cuidando, essencialmente, da repartição do poder político e da definição da competência dos órgãos públicos. Na Carta em vigor, são exemplos de normas dessa natureza as que instituem as competências do Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como da União, Estados e Municípios. Embora não seja sua finalidade precípua, tais normas po- dem eventualmente gerar situações jurídicas individuais, sob a forma de direito subjetivo. 257. Por exemplo, qualquer indivíduo pode opor-se judicialmente a uma restrição de direito imposta pelo Estado em matéria que a Constituição haja deferido à competência dos Municípios ou da União, ou à cobrança de um tributo por quem não tenha competência impositiva. As normas constitucionais definidoras de direitos são as que tipica- mente geram direitos subjetivos, investindo os jurisdicionados no poder de exigir do Estado - ou de outro eventual destinatário da norma - prestações positivas ou negativas, que proporcionem o desfrute dos bens jurídicos nelas consagrados. Nessa categoria se incluem todas as nor- mas concernentes aos direitos políticos, individuais, coletivos, sociais e difusos previstos na Constituição. As normas constitucionais programáticas veiculam princípios, des- de logo observáveis, ou traçam fins sociais a serem alcançados pela atua- ção futura dos poderes públicos. Por sua natureza, não geram para os jurisdicionados a possibilidade de exigirem comportamentos comissivos, mas investem-nos na faculdade de demandar dos órgãos estatais que se abstenham de quaisquer atos que contravenham as diretrizes traçadas. Vale dizer: não geram direitos subjetivos na sua versão positiva, mas geram- nos em sua feição negativa. São dessa categoria as regras que preconizam a função social da propriedade (art. 170, III), a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII), o apoio à cultura (art. 215), o fomento às práticas desportivas (art. 217), o incentivo à pesquisa (art. 218) etc. A ênfase que acima se deu à existência ou não de direito subjetivo não é casual. É que essa é a situação jurídica individual mais consisten- te, e que enseja a tutela jurisdicional para sua proteção. Por direito sub- jetivo entende-se o poder de ação, assente no direito objetivo, e destina- do à satisfação de certo interesse. Singularizam o direito subjetivo, distinguindo-o de outras posições, a presença, cumulada, das seguintes características: a) a ele corresponde sempre um dever jurídico; b) ele é violável, ou seja, existe a possibilidade de que a parte contrária deixe de

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cumprir o seu dever; c) a ordem jurídica coloca à disposição de seu titular um meio jurídico - que é a ação judicial - para exigir-lhe o cumprimento, deflagrando os mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado. 258. V. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, cit., p. 169. Nessa conformidade, das normas constitucionais que geram direi- tos subjetivos resultam para seus beneficiários - os titulares dos direi- tos - situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, efetivadas por prestações positivas ou negativas, exigíveis do Estado ou de outro even- tual destinatário da norma. Quando a prestação a que faz jus o titular do direito não é entregue voluntariamente, nasce para ele uma pretensão, a ser veiculada através do exercício do direito de ação, pela qual se requer a órgão do Poder Judiciário que faça atuar o direito objetivo e promova a tutela dos interesses violados ou ameaçados. O direito genérico de ação tem sede constitucional (art. 5º, XXXV), mas as ações judiciais, em geral, são disciplinadas pela legislação infraconstitucional. Há, no entanto, um conjunto de ações elevadas à categoria de ações constitucionais, por se encontrarem previstas na pró- pria Lei Maior. Tradicionalmente, no direito brasileiro, essas ações cons- titucionais eram três: o habeas corpus, o mandado de segurança e a ação popular. A Constituição de 1988 introduziu novas ações: o mandado de segurança coletivo, a ação civil pública, o habeas data e o manda- do de injunção. As chamadas ações diretas, pelas quais se suscita o exer- cício da jurisdição constitucional concentrada e abstrata, não são objeto de referência neste passo por não se destinarem à tutela de situações jurídicas subjetivas. 259. O habeas corpus remonta à Constituição de 1891. O mandado de segurança e a ação popular foram instituidos como Texto de 1934. 260. A ação civil pública, a rigor, fora criada um pouco antes, em sede infraconstitu- cional, pela Lei n. 7.347, de 24-7-1985. Um dos pontos capitais relativamente ao princípio da efetividade é a necessidade de o Poder Judiciário se libertar de certas noções arraiga- das e assumir, dentro dos limites do que seja legítimo e razoável, um papel mais ativo em relação à concretização das normas constitucionais. Para tanto, precisa superar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional no Brasil: a interpretação retrospectiva, pela qual se pro- cura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo. Esse aspecto já foi versado anteriormente e não há sentido em voltar a ele (v., supra, Parte 1, cap. II). Resta, por fim, o tratamento da questão da inconstitucionalidade por omissão. A Constituição, como já se teve oportunidade de assinalar, é um corpo de normas jurídicas, ou seja, compõe-se de preceitos obriga- tórios que organizam o poder político e regram a conduta, tanto dos órgãos estatais quanto dos cidadãos. Vulnera-se a imperatividade de uma norma de direito quer quando se faz aquilo que ela proíbe, quer quando se deixa de fazer o que ela determina. Vale dizer: a Constituição é susce- tível de descumprimento tanto por ação como por omissão. Não é o caso aqui de se aprofundar o exame teórico do fenômeno da omissão, o que já fizemos em outro estudo, com remissão à doutrina nacional estrangeira, bem como a decisões de tribunais europeus, espe- cialmente da Itália e Alemanha. Procede-se, no entanto, a uma análise das duas figuras introduzidas pela Constituição brasileira para lidar com

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o tema: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção, e sua prática pelos tribunais nos anos de vigência da Car- ta de 1988. 261. V. nosso O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 156 e s. Reco- menda-se, todavia, na literatura mais recente, Clêmerson Merlin Clêve, A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro, 1995, p. 209 e s. 262. Especificamente sobre o mandado de injunção, v. nosso Mandado de injunção. Perfil doutrinário e evolução jurisprudencial, RDA, 191:1, 1993. O perfil constitucional da ação direta de inconstitucionalidade por omissão vem delineado no art. 103, § 2º: "Declarada a incons- titucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma consti- tucional, será dada ciência ao poder competente para a adoção das pro- vidências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias". O instituto teve carreira modesta. A inocuidade da mera "ciência" a ser dada ao órgão omisso não mobilizou os legiti- mados do art. 103 a ingressarem com a ação, salvo exceções. Em uma das ações propostas, o Supremo Tribunal Federal assentou não ser ne- cessária a audiência do Advogado-Geral da União nos casos de ação direta por omissão. Em outra, ajuizada pelo então Governador de Ala- goas Fernando Collor de Mello, a propósito da remuneração de servido- res estaduais estigmatizados como "marajás", decidiu a Corte que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão "não é de ser proposta para que seja praticado determinado ato administrativo em caso concreto". 263. ADIn 23-3-SP, rel. Min. Sydney Sanches, DJU, 1º set. 1989. 264. ADIn 19-5-AL, rel. Min. Aldir Passarinho, DJU, 14 abr. 1989. Houve, todavia, uma ação direta de inconstitucionalidade por omis- são onde se suscitaram interessantes e intrincadas questões, envolvendo os conceitos de (a) inconstitucionalidade por ação, isto é, pela edição de ato normativo em desconformidade com a Constituição; (b) incons- titucionalidade por omissão absoluta, que se verifica quando o órgão competente queda inteiramente inerte diante de um dever de legislar; (c) inconstitucionalidade relativa, que ocorre quando o legislador, em- bora atuando, deixa de fora da incidência da norma alguma categoria que nela deveria estar incluída. Tais discussões tiveram sede na ação proposta pelo Partido dos Tra- balhadores, tendo por objeto a Medida Provisória n. 296, de 29 de maio de 1991, editada pelo Presidente da República. O ato normativo, ao que se alegava, concedia, embora disfarçadamente, revisão geral de remu- neração aos servidores militares, sem contemplar os civis (em violação do art. 37, X), e concedia reajustes a determinadas categorias de servi- dores civis, com exclusão arbitrária de outras (em violação do art. 39, § 1º). O pedido, que incluía requerimento de liminar, era no sentido de que se declarasse a inconstitucionalidade por omissão e se fixasse prazo ao Presidente da República para saná-la, editando nova medida provisó- ria ou remetendo ao Congresso Nacional projeto de lei de sua iniciativa, atendendo ao disposto nos arts. 37, X, e 39, § 1º. Em relação à mesmíssima medida provisória, o Partido Socialista Brasileiro requerera a declaração de inconstitucionalidade positiva, isto é, pura e simplesmente a sua invalidação. Seu pedido liminar foi no sentido da suspensão da vigência da medida do Presidente da Repúbli- ca. A ação do Partido dos Trabalhadores, ao revés, buscava viabilizar um meio, não de invalidar os benefícios concedidos, mas de estendê-los aos que haviam sido excluídos. A singularidade da questão era que a mera declaração de

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inconstitucionalidade da medida provisória, em lugar de resolver o pro- blema dos que ficaram de fora, simplesmente estenderia a injustiça a todos, já que ninguém receberia aumento algum. A alternativa que se cogitou, inspirada por precedentes do Tribunal Constitucional Federal alemão, era a de declarar-se a inconstitucionalidade da norma, por omis- são parcial, com fixação de prazo para que fosse sanada a omissão. Se esta persistisse, o próprio Tribunal estenderia o reajuste a todos. O Su- premo, contudo, em voto do Ministro Sepúlveda Pertence, após questio- nar a adaptabilidade da solução alemã ao sistema de controle vigente no Brasil, rejeitou a possibilidade, averbando: "A essa extensão da lei, contudo, faltam poderes ao Tribunal, que, à luz do art. 103, § 2º, CF, declarando a in- constitucionalidade por omissão da lei - seja ela absoluta ou relativa -, há de cingir-se a comunicá-la ao órgão legislativo competente, para que a supra". 265. RTJ, 146:424, 1993, p. 431, ADIn 529-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence. Em sua longa ementa, dispôs o acórdão: "1. Ação direta contra a Med. Prov. 296/91 que - diversamente de outra, proposta contra o mesmo ato normativo (ADIn 525) -, não postula a invalidade dos bene- fícios concedidos aos servidores federais nela contemplados, mas se funda, ao contrário, na alegada omissão do Presidente da República, na medida em que não os estendeu à totalidade do pessoal civil da União, como imposta pelas normas constitucionais invocadas (CF, arts. 37, X, e 39, § 1º): plausibilidade jurídica da alegação de mérito. 2. Considerações sobre o dilema - na hipótese de ofensa à isonomia pela norma legal que, concedendo vantagens a uns, não as estende a outros, em situação idêntica -, entre a declaração da inconstitucionalidade positiva da lei discriminatória ou da inconstitucionalidade da omissão relativa. 3. Inadmissibilidade, em princípio, da antecipação cautelar provisória da declaração de inconstitucionalidade por omissão (ADIn 361, 5.10.90), agra- vada, na espécie, em que o ato normativo que traduziria a discriminação alegada é uma medida provisória, ainda pendente de apreciação pelo Congresso Nacional e, portanto, ela mesma, com vigência provisória e resolúvel". O outro remédio jurídico concebido para neutralizar as omissões inconstitucionais foi o mandado de injunção, instituído no art. 5º, LXXI, da Constituição Federal, com a dicção seguinte: "Conceder-se-á man- dado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prer- rogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania". Não é oportuno reeditar aqui o amplo debate doutrinário acerca do objeto do mandado de injunção, em cuja discussão já correram rios de tinta. Formaram-se, a propósito, como bem se sabe, três correntes, cada uma delas sustentando destinar-se a medida: a) apenas a ensejar fosse dada ciência ao órgão responsável pela omissão de que esta se verifica- va; b) a formular a regra faltante, com caráter genérico, erga omnes; c) a formular a regra faltante, com caráter concreto, somente para a solu- ção do caso submetido ao tribunal. Na linha do entendimento majoritário da doutrina, assentamos em

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outro estudo: "Em conseqüência, afigura-se fora de dúvida que a me- lhor inteligência do dispositivo constitucional (art. 5º, LXXI) e de seu real alcance está em ver no mandado de injunção um instrumento de tutela efetiva de direitos que, por não terem sido suficiente ou adequadamente regulamentados, careçam de um tratamento excepcional, qual seja: que o Ju- diciário supra a falta de regulamentação, criando a norma para o caso concreto, com efeitos limitados às partes do pro- cesso. O objeto da decisão não é uma ordem ou uma reco- mendação para edição de uma norma. Ao contrário, o órgão jurisdicional substitui o órgão legislativo ou administrativo competentes para criar a regra, criando ele próprio, para os fins estritos e específicos do litígio que lhe cabe julgar, a norma necessária. A função do mandado de injunção é fazer com que a disposição constitucional seja aplicada em favor do impetrante, "independentemente de regulamentação, e exatamente porque não foi regulamentada"". 266. V. Luís Roberto Barroso, Mandado de injunção..., RDA, 191:1, p. 4. Sobre o tema, em igual sentido, vejam-se: José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 1992, p. 391 e s.; Carlos Mário da Silva Velloso, As novas garantias constitucionais, RT, 644:7, p. 13-4; Celso Agrícola Barbi, Mandado de injunção, in Mandado de segurança e de injunção (estudos em memória de Ronaldo Cunha Campos), 1990, p. 387 e s.; Hélio Tornaghi, O mandado de injunção, RF 306:85-6; Célio Borja, O mandado de injunção e o habeas data, RF 306:43; Ivo Dantas, Man- dado de injunção, 1989, p. 97; Adhemar Ferreira Maciel, Mandado de injunção e inconstitu- cionalidade por omissão, in Mandado de segurança e de injunção, cit., p. 377-8; Sérgio Bermudes, O mandado de injunção, RT, 642:24. Coerente com esse ponto de vista, deve-se entender que a legitimi- dade passiva no mandado de injunção há de recair sobre o sujeito passi- vo do direito constitucional, isto é, a pessoa pública ou privada à qual incumbe prestar o dever correspondente ao direito subjetivo do autor. Será, pois, o INSS se a prestação em questão tiver natureza previdenciária; o empregador, se se tratar de indenização por despedida arbitrária; ou o banco, se o pedido versar limitação à taxa de juros. Ademais, parece adequado notificar, também, os órgãos responsáveis pela omissão para que prestem informações. É bem de ver, todavia, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal contra os votos dos Ministros Carlos Mário Velloso, Marco Aurélio e Ilmar Galvão -, rejeitando a tese que mereceu o quase con- senso doutrinário, ofereceu clara resistência ao instituto, minimizando seu alcance como remédio constitucional. Logo no primeiro momento, resistindo ao ônus político de uma competência normativa que não de- sejava, pronunciou-se a Corte, pelo Ministro Celso de Mello: "Com efeito, esse novo writ não se destina a constituir direito novo, nem a ensejar ao Poder Judiciário o anômalo desempenho de funções normativas que lhe são institucio- nalmente estranhas. O mandado de injunção não é o sucedâneo constituci- onal das funções político-jurídicas atribuidas aos órgãos

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estatais inadimplentes. Não legitima, por isso mesmo, a veiculação de provimentos normativos que se destinem a substituir a faltante norma regulamentadora sujeita a com- petência, não exercida, dos órgãos públicos. O STF não se substitui ao legislador ou ao administrador que se hajam abstido de exercer a sua competência normatizadora. A pró- pria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico im- põe ao Judiciário o dever de estrita observância do princí- pio constitucional da divisão funcional do Poder". 267. MI 191-0-RJ, rel. Min. Celso de Mello, DJU, 12fev. 1990, p. 280. Mas o leading case na matéria foi o Mandado de Injunção n. 107-3- DF, onde a Suprema Corte, esvaziando a significação do novo remédio constitucional, equiparou-o à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, em decisão que lavrou: "É ele (o MI)... ação que se propõe contra o Poder, órgão, entidade ou autoridade omissos quanto à norma regulamentadora necessária à viabilização do exercício dos direitos, garantias e prerrogativas a que alude o art. 5º, LXXI, da Constituição, e que se destina a obter sentença que declare a ocorrência da omissão constitucional, com a finalidade de que se dê ciência ao omisso dessa declara- ção, para que adote as providências necessárias, à seme- lhança do que ocorre com a ação direta de inconstitucio- nalidade por omissão (art. 103, § 2º, da Carta Magna), com a determinação, se for o caso, da suspensão de processos judiciais ou administrativos, se se tratar de direito consti- tucional oponível ao Estado, mas cujo exercício está inviabilizado por omissão deste". 268. RDA, 184:226, 1991, MI 107-3-DF, rel. Min. Moreira Alves. Assim, de acordo com a interpretação da mais alta Corte, existem dois remédios constitucionais para que seja dada ciência ao órgão omis- so do poder público, e nenhum para que se componha, em via judicial, a violação do direito constitucional da parte. Essa linha de entendimento foi reiterada no julgamento do Mandado de Injunção n. 168-5-RS, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, onde se decidiu: "O mandado de injunção nem autoriza o Judiciário a suprir a omissão legislativa ou regulamentar, editando o ato normativo omitido, nem, menos ainda, lhe permite or- denar, de imediato, ato concreto de satisfação do direito reclamado". 269. DJU, 20 abr. 1990, p. 3047. Em comentário agudo e procedente, José Carlos Barbosa Moreira, em artigo jornalístico, condenou a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal: "Conceber o mandado de injunção como simples meio de apurar a inexistência da "norma reguladora" e comunicá- la ao órgão competente para a edição (o qual, diga-se entre parênteses, presumivelmente conhece mais do que ninguém suas próprias omissões...) é reduzir a inovação a um sino sem badalo. Afinal, para dar ciência de algo a quem quer que seja, servia - e bastava - a boa e velha notificação". 270. S. O. S. para o mandado de injunção, IOrflaldOBrasi/, 11 set. 1990, J~c~derno,p. ii. O fato é que o Supremo Tribunal Federal, após o ímpeto inicial de rejeição às potencialidades do novo remédio constitucional, parece ha- ver-se sensibilizado com a crítica dos doutrinadores e com a discordância dos Tribunais inferiores. Deveras, sem acolher plenamente as idéias aqui

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sustentadas, a mais alta Corte evoluiu em relação à sua postura original, que, praticamente - e com grande inocuidade -, equiparava o manda- do de injunção à ação direta de inconstitucionalidade por omissão. A nova visão do Supremo Tribunal Federal começou a se delinear no julgamento de mandado de injunção impetrado com fundamento no art. 8º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988. Tal dispositivo prevê que cidadãos afetados por atos discricio- nários do Ministério da Aeronáutica, editados logo após o movimento militar de 1964, fazem jus a uma "reparação de natureza econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição". A lei não foi editada no prazo previsto. Foi impetrado, assim, o mandado de Injunção n. 283-5, sob o fundamento de que o exercício de um direito subjetivo constitucional era obstado por tal omissão legislativa. No acórdão, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, decidiu a Su- prema Corte: "Mandado de injunção: mora legislativa na edição da lei necessária ao gozo do direito à reparação econômica contra a União, outorgado pelo art. 8º, § 3º, ADCT: deferi- mento parcial, com estabelecimento de prazo para a purga- ção da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sen- tença líquida de indenização por perdas e danos". 271. DJU, 14nov. 1991,p. 16355-6. O mesmo acórdão cuidou de deixar remarcado que, além de decla- rar a mora do legislador, o mandado de injunção era deferido para: a) assinar o prazo de sessenta dias para que se ultimasse o processo legislativo, inclusive a sanção presidencial; b) se ultrapassado esse prazo, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, a reparação devida; c) declarar que, prolatada a sentença condenatória, a superveniência de lei não prejudica a coisa julgada, que, entretanto, não impede o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, no que lhe for mais favorável. Pouco adiante, em mandado de injunção impetrado com base na mesma disposição constitucional (art. 8º, § 3º do ADCT), o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista o escoamento do prazo que concedera no writ anterior, considerou desnecessária nova comunicação ao Con- gresso Nacional e facultou aos impetrantes ingressarem imediatamente em juízo para obter a reparação a que faziam jus. A decisão, proferida no Mandado de Injunção n. 284-3, assim lavrou: "Reconhecido o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional - único destinatário do comando para satisfazer, no caso, a prestação legislativa reclamada - e considerando que, embora previamente cientificado no Mandado de Injunção n. 283, absteve-se de adimplir a obri- gação que lhe foi constitucionalmente imposta, torna-se prescindível nova comunicação à instituição parlamentar, assegurando-se aos impetrantes, desde logo, a possibilida- de de ajuizarem, imediatamente, nos termos do direito co- mum ou ordinário, a ação de reparação de natureza econô- mica instituída em seu favor pelo preceito transitório". 272. DJU, 26jun. 1992, p. 10103, rel. Min. Marco Aurélio. Como bem observou o eminente Milton Flaks, o Supremo Tribunal Federal, ao firmar tal posição: a) admitiu converter uma norma constitu- cional de eficácia limitada (porque dependente de norma infra- constitucional integradora) em norma de eficácia plena; b) considerou o

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mandado de injunção hábil para obter a regulamentação de qualquer direito previsto na Constituição, e não apenas dos direitos e garantias fundamentais constantes do seu Título II. 273. Milton Flaks, Instrumentos processuais de defesa coletiva, RDA, 190:61, 1992. Essa mudança na orientação do Supremo Tribunal Federal se con- solidou no julgamento do Mandado de Injunção n. 232-1, onde se discu- tiu o alcance do § 7º do art. 195 da Constituição Federal, que estabelece serem "isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei". Decorridos mais de dois anos da promulgação da Carta, tal lei não havia ainda sido editada, apesar de o art. 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias haver fixado um prazo máxi- mo de seis meses para sua apresentação e outros seis para que fosse apreciada pelo Congresso Nacional. Na parte em que nos interessa, a decisão foi assim ementada: "Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar de- corrente do art. 195, § 7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, pas- sar o requerente a gozar da imunidade requerida". 274. MI 232-1-RJ, rel. Min. Moreira Alves, DJU, 27 mar. 1992, p. 3800. Votaram vencidos, por esposarem a tese que aqui se afirma ser a melhor, os Mins. Carlos Mário Velloso, Célio Borja e Marco Aurélio. Note-se, no entanto, que, na hipótese aqui versada, o Tribunal não precisará suprir qualquer lacuna normativa. Limitar-se-á a considerar auto-aplicável norma que conferia um direito, mas condicionava-o ao preenchimento de requisitos que a lei ditaria. Não há, pois, maior difi- culdade, nem se exige do Judiciário uma atuação de integração da or- dem jurídica. Hipótese mais típica foi julgada pelo 4º Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Cuidava-se, ali, de mandado de injunção requerido por dois policiais que haviam sido eleitos para cargos de direção da Federação Nacional da Polícia Civil e que pediam afastamento dos seus cargos, invocando o art. 84, parágrafo único, da Constituição do Estado, que previa: "A lei disporá sobre a licença sindical para os dirigentes de Federações e sindicatos de servi- dores públicos, durante o exercício do mandato, resguardados os direi- tos e vantagens de cada um". A lei referida, que disciplinaria as condi- ções da licença, ainda não fora editada. 275. MI 6/90, rel. Barbosa Moreira,j. 22-2-1991. O acórdão se encontra transcrito na íntegra em nosso O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 192 e s. O acórdão, da lavra de Barbosa Moreira, enriquecido por substan- ciosa pesquisa, estabeleceu, com acuidade, três premissas: a) a legitimação passiva recai sobre o Secretário de Estado de Polí- cia Civil, a quem compete conceder a licença (a rigor técnico, como se sabe, a autoridade apenas presta informações, sendo o Estado o sujeito passivo); b) ao órgão ao qual se imputa a omissão é dada ciência da impetração; c) diante da lacuna, cabe ao órgão judicial formular a regra concreta

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e aplicá-la, limitada, subjetivamente, às partes do processo. No mérito, acolheu-se o pedido e reconheceu-se aos impetrantes o direito ao gozo de licença não remunerada durante o exercício dos res- pectivos mandatos. A decisão fundou-se nos critérios adotados pela Con- solidação das Leis do Trabalho, que, embora inaplicável à espécie, ins- pirou a regra concreta formulada pelo órgão julgador. Neste particular - legitimação passiva - a matéria carece, ainda, de melhor elaboração. O Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Injunção n. 335, por maioria de votos, firmou o entendimento de que parte passiva é somente a autoridade ou órgão omisso, e não a parte privada devedora da prestação. Essa posição vem explicitada na decisão do Mandado de Injunção n. 323-8-DF, assim ementada: "Em face da natureza mandamental do mandado de injunção (...), ele se dirige às autoridades ou órgãos públicos que se pretendem omissos quanto à regulamentação que viabilize o exercício dos direitos e liberdades constitucio- nais (...), não se configurando, assim, hipótese de cabimento de litisconsórcio passivo entre essas autoridades e órgãos públicos que deverão, se for o caso, elaborar a regulamenta- ção necessária, e particulares que, em favor do impetrante do mandado de injunção, vierem a ser obrigados ao cumpri- mento da norma regulamentadora, quando vier esta, em de- corrência de sua elaboração, a entrar em vigor". 276. DJU, 14 fev. 1992, p. 1164, rel. Min. Moreira Alves. Na linha desse entendimento, havia sido decidido, no MI 300-9/400-DF (DJU, 18 abr. 1991, p. 4512), que o mandado de injunção destinado à implementação do art. 192, § 3º, da Constituição, referente aos 12% de juros reais, deveria ser impetrado em face do Congresso Nacional e não em face da instituição financeira que praticava os juros abusivos. Este entendimento, naturalmente, não é compatível com aquele que aqui se está afirmando, no sentido de que o objeto do mandado de injunção é o suprimento da norma faltante na solução do caso concreto, vinculando tão-somente as partes do processo. Por tal ponto de vista, a parte privada (ou não) devedora da obrigação prevista na norma consti- tucional deverá figurar no pólo passivo e, quanto a ela, a decisão não terá caráter mandamental. No fundo - data maxima venia - o erro de concepção na posição majoritária da Suprema Corte é, precisamente, a atribuição de natureza mandamental ao mandado de injunção. Em linha antagônica com a posição da maioria - e identificando- se com o entendimento que aqui se afirma ser o melhor -, o Ministro Marco Aurélio, relator do Mandado de Injunção n. 305-0-DF, determi- nou a inclusão, no pólo passivo, tanto do Congresso Nacional quanto dos Bancos aos quais se imputava cobrança extorsiva de juros, ainda na hipótese do art. 192 da Constituição. Este, também, o ponto de vista do Ministro Ilmar Galvão, que em voto vencido proferido no Mandado de Injunção n. 369-DF averbou: "A relação jurídico-processual, no presente caso, com a devida vênia, não está completa. A ação se dirige exclusi- vamente contra o Congresso Nacional quando, na verdade, a pretensão do impetrante está mais voltada para a conse- cução de seu direito, in concreto, do que para a elaboração de norma geral, reguladora do aviso prévio proporcional. O que objetiva ele é receber a prestação com que a Consti- tuição lhe acena e que não foi satisfeita pelo empregador,

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por ausência da norma regulamentadora. O mandado de injunção, a meu ver, destina-se a suprir essa omissão, o que somente pode ser cumprido mediante a elaboração, pelo STF, de norma para o caso concreto que se expõe". 277. MI 305-0-DF, DJU, 30 abr. 1991, p. 5335. 278. RTJ, 144:393, 1993, p. 403, rel. Min. Francisco Rezek. A questão da legitimação ativa, passiva e do objeto do mandado de injunção voltou a ser discutida no Mandado de Injunção n. 361, onde a Corte admitiu, por aplicação analógica do art. 5º, LXX, da Constituição, o cabimento de mandado de injunção coletivo, e a legitimidade ativa de entidade sindical de pequenas e médias empresas. Em seguida, apreci- ando novamente a questão dos juros de 12% ao ano, a Corte se dividiu em três correntes, bem demonstrando a intensidade da dissensão dos Ministros em relação ao mandado de injunção. Confira-se a votação: Ministros Ilmar Galvão, Marco Aurélio e Carlos Mário Velloso: jul- gavam procedente o pedido e desde logo fixavam a taxa de juros em 12%, nos termos explicitados em seus votos; Ministro Néri da Silveira (Relator): julgava procedente em parte o pedido, declarando o estado de mora do Congresso e fixando um prazo de cento e vinte dias ao Poder Legislativo para regulamentação da norma; Ministros Sepúlveda Pertence, Moreira Alves, Francisco Rezek e Octávio Gallotti: julgavam procedente em parte e declaravam a mora do Congresso Nacional, sem, contudo, fixar prazo para suprimento da omissão. A maioria, acompanhando o voto do Ministro Pertence, relator para acórdão, entendeu que a fixação de prazo só é adequada quando seja possível cominar conseqüências à sua superação in albis, como, por exemplo, quando se trate de obrigação imputável à União, sendo ela a pessoa jurídica responsável pela mora legislativa. Na parte aqui rele- vante, o acórdão ficou assim ementado: "Juros reais (CF, art. 192, § 3º): passados quase cinco anos da Constituição e dada a inequívoca relevância da de- cisão constituinte paralisada pela falta da lei complemen- tar necessária à sua eficácia - conforme já assentado pelo STF (ADIn 4, DJ, 25.06.93, Sanches) -, declara-se incons- titucional a persistente omissão legislativa a respeito, para que a supra o Congresso Nacional". "Mandado de injunção: natureza mandamental (MI 107-QO, M. Alves, RTJ 133/11): descabimento de fixação de prazo para o suprimento da omissão constitucional, quan- do - por não ser o Estado o sujeito passivo do direito cons- titucional de exercício obstado pela ausência da norma regulamentadora (v. g., MI 283, Pertence, RTJ 135/882)-, não seja possível cominar conseqüências à sua continuida- de após o termo final da dilação assinada." 279. RDA, 197:198, 1994, MI 361, rel. Min. Sepúlveda Pertence. A polêmica em relação à matéria do limite constitucional aos juros somente se verificou porque o Supremo Tribunal Federal, em decisão dividida, de cunho muito mais político do que técnico, considerou não ser auto-aplicável a regra inscrita no § 3º do art. 192 da Constituição. De fato, ao apreciar ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Par- tido Democrático Trabalhista, tendo por objeto parecer de cunho normativo da Consultoria Geral da República, aprovado pelo Presidente da República, entendeu a Corte, por maioria apertada, que: "Tendo a Constituição Federal, no único artigo em que trata do Sistema Financeiro Nacional (art. 192) estabeleci- do que este será regulado por lei complementar, com ob-

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servância do que determinou no caput, nos seus incisos e parágrafos, não é de se admitir a eficácia imediata e isola- da do disposto em seu § 3º, sobre taxa de juros reais (12% ao ano), até porque estes não foram conceituados. Só o tra- tamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com a observância de todas as normas do caput, dos incisos e parágrafos do art. 192, é que permi- tirá a incidência da referida norma sobre juros reais e des- de que estes também sejam conceituados em tal diploma". 280. RDA, 195:85, 1994, ADIn 4, rel. Min. Sydney Sanches. Votaram vencidos os Mins. Carlos Mário Velloso, Paulo Brossard, Néri da Silveira e Marco Aurélio. Sepúlveda Pertence não votou, porque impedido, mas manifestou posteriormente restrição à corrente vencedora (RDA, 197:206). Ainda uma vez, endossa-se a crítica veemente de José Carlos Barbo- sa Moreira, que, após notar que a todo momento, em literatura especia- lizada e leiga, emprega-se o conceito de juros reais, assinalou: "Só na hora de interpretar a Constituição é que não se sabe o que é: não se sabe porque não se quer saber. É claro que a taxa de juros reais é tudo aquilo que se cobra, menos a correção monetária. Se sabemos o que é boa-fé, conceito muito mais vago; se sabemos o que são bons costumes, o que é vaguíssimo, se sabemos o que é mulher honesta, para aplicarmos o dispositivo legal que define o crime de estu- pro por que é que não podemos saber o que são taxas de juros reais? Isso faz parte da tarefa quotidiana do juiz: in- terpretar textos legais e definir conceitos jurídicos indeterminados; e este aqui não é tão indeterminado. Acho até que é bastante determinado". 281. José Carlos Barbosa Moreira, Ações coletivas na Constituição de 1988, Boletim Jurídico da Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, 1991, v. 2, p. 17. Em diversas outras decisões, contudo, onde menos complexo o jogo de interesses, a jurisprudência tem promovido a aplicação direta das normas constitucionais, em um salto de qualidade em relação ao passa- do que tem contribuído, significativamente, para o aumento da efetividade das normas constitucionais. O mandado de injunção foi um valioso esforço do constituinte de 1988 de remediar a crônica falta de efetividade do constitucionalismo brasileiro. Ao longo dos pouco mais de dez anos de sua criação, enfren- tou a forte resistência do próprio Supremo Tribunal Federal, tendo sido mais discutido do que utilizado. Mas teve a virtude insuperável de di- fundir a consciência da necessidade de uma Constituição efetiva. E já cumpriu o seu papel. 282. Sobre o tema, e para a demonstração mais analítica do argumento, v. Luís Roberto Barroso, Mandado de injunção: o que foi sem nunca ter sido. Uma proposta de reformulação, in Estudos em homenagem ao Professor Caio Tácito. 1997, p. 429, e também em RTDP, 17:34, 1997. Em lugar do mandado de injunção, sujeito à jurisdição concentrada dos tribunais superiores, parece-me hoje de muito melhor valia atribuir- se ao juiz natural da causa o poder-dever de integrar a ordem jurídica, produzindo para o caso concreto sujeito à sua jurisdição a regra faltante. Embora tal competência, a meu ver, exista de longa data, penso que ela

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possa ter assento constitucional, para tornar-se inequívoca. Basta para tanto singela mudança de redação do § 1º do art. 5º do Texto, que passa- ria a viger com a seguinte redação: "§ 1º - As normas definidoras de direitos subjetivos cons- titucionais têm aplicação direta e imediata. Na falta de nor- ma regulamentadora necessária ao seu pleno exercício, for- mulará o juiz competente a regra que regerá o caso concre- to submetido à sua apreciação, com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito". Em realidade, a proposta funda-se na premissa de que a efetividade das normas constitucionais definidoras de direitos subjetivos pode e deve prescindir do mandado de injunção como instrumento de sua realiza- ção. De fato, surgido como uma idéia importante na busca da efetividade, a verdade é que hoje o mandado de injunção, em qualquer de suas ver- sões, tornou-se, quando não um óbice, ao menos um complicador des- necessário à realização dos direitos. E o fundamento é o seguinte: toda norma constitucional é dotada de eficácia jurídica e deve ser interpretada e aplicada em busca de sua máxima efetividade. Todos os juízes e tribunais devem pautar sua ativi- dade por tais pressupostos. Basta, portanto, a explicitação de que toda norma definidora de direito subjetivo constitucional tem aplicação dire- ta e imediata, cabendo ao juiz competente para a causa integrar a ordem jurídica, quando isto seja indispensável ao exercício do direito. A rigor técnico é o que já vem expresso no art. 4º da Lei de Introdução ao Códi- go Civil: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá ocaso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". Não se justifica, a propósito, o temor, freqüentemente verbalizado, de que a adoção de uma posição como a da presente proposta - ou mesmo a versão mais efetiva do mandado de injunção, defendida pela maior parte da doutrina - importaria no exercício excessivo de compe- tências normativas pelo Poder Judiciário. Não há hipótese de isso acon- tecer. Confirme-se. Somente as regras definidoras de direitos subjetivos constitucio- nais, cuja eficácia e efetividade estejam condicionadas à edição de uma norma infraconstitucional, ensejam a impetração de mandado de injunção ou a necessidade de decisões integrativas. Essas hipóteses são limita- das, e sua invocação revela que a solução aqui proposta é mais simples, prática e eficiente que a do mandado de injunção. Tome-se como exemplo o inciso XXVI do art. 5º da Constituição, cuja dicção é a que se segue: "XXVI - a pequena propriedade rural, assim defini- da em lei, desde que trabalhada pela família, não será obje- to de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento". Pois bem: supondo-se inexistir essa lei definindo "pequena propri- edade rural", que medida poderia tomar o pequeno proprietário que qui- sesse impedir a penhora de sua propriedade? Pela orientação do Supre- mo Tribunal Federal, poderia requerer um mandado de injunção, peran- te a mais Alta Corte, para que fosse dada ciência ao Congresso da omis- são. Pelo entendimento da maior parte da doutrina, caberia mandado de injunção também ao Supremo Tribunal Federal, no qual se pediria à Corte que definisse, para o caso concreto, o sentido de "pequena proprie- dade rural". Pela presente proposta, caberia ao juiz da causa essa defini- ção, "com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito". De tal decisão caberiam os recursos próprios. O mandado de injunção, na atual quadra, tomou-se uma complexi-

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dade desnecessária. Mais simples, célere e prática se afigura a atribui- ção, ao juiz natural do caso, da competência para a integração da ordem jurídica, quando necessária para a efetivação de um direito subjetivo constitucional submetido à sua apreciação. No fundo, do ponto de vista material, não se trata de supressão do instituto, mas de sua ampliação e difusão. Não haveria, assim, qualquer óbice decorrente do art. 60, § 4º, IV, da Constituição, pois não se está abolindo a garantia individual, mas, ao contrário, dando-lhe maior aplicação. Em síntese de tudo que se vem de expor neste tópico, é possível deixar consignado que: 1) A Constituição, sem prejuízo de sua vocação prospectiva e transformadora, deve conter-se em limites de razoabilidade no regramen- to das relações de que cuida, para não comprometer o seu caráter de instrumento normativo da realidade social. 2) As normas constitucionais têm sempre eficácia jurídica, são im- perativas e sua inobservância espontânea enseja aplicação coativa. 3) As normas constitucionais devem estruturar-se e ordenar-se de forma tal que possibilitem a pronta identificação da posição jurídica em que investem os jurisdicionados. 4) Tais posições devem ser resguardadas por instrumentos de tutela adequados, aptos à sua realização prática, representados pelos meios processuais de proteção dos direitos, ou seja, as diversas ações dedutíveis perante o Poder Judiciário. 5) Para procurar dar efetividade às normas constitucionais em ca- sos de inconstitucionalidade por omissão, o ordenamento brasileiro prevê o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. 6) No mandado de injunção, a despeito de posição divergente do Supremo Tribunal Federal, a maior parte da doutrina converge para o entendimento de que compete ao Judiciário suprir a omissão normativa, formulando para o caso concreto, e com efeito apenas inter partes, a regra integrativa do comando constitucional. 7) Na ação direta de inconstitucionalidade por omissão o controle é exercido em abstrato, tendo por objeto dar-se ciência formal da omissão normativa ao Poder competente, para adoção das providências necessárias, ou, em se tratando de órgão administrativo, para que tome tais providên- cias em trinta dias. 8) O mandado de injunção, a despeito das resistências poderosas que enfrentou, já cumpriu o seu papel histórico de difundir a ideologia da efetividade da Constituição. Presentemente, melhor do que um re- médio sujeito à jurisdição concentrada dos tribunais superiores é o reco- nhecimento da competência do juiz natural da causa para integrar a ordem jurídica, formulando a regra faltante no âmbito do caso concreto que lhe cabe decidir, fundado na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito. PARTE FINAL - A OBJETIVIDADE DESEJADA E A NEUTRALIDADE IMPOSSÍVEL: O PAPEL DO INTÉRPRETE NA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo 1 - SABER JURÍDICO CONVENCIONAL, TEORIA CRÍTICA DO DIREITO E DIREITO ALTERNATIVO. A SINTESE NECESSÁRIA 1. Introdução O conhecimento jurídico tradicional, que se abebera nas fontes ro- manas e tem como pontos culminantes a produção científica de Savigny, no século passado, e de Hans Kelsen, neste século, exibe como traços marcantes o formalismo e o dogmatismo. O elemento básico na idéia de

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formalismo é a premissa de que a atividade do intérprete se desenvolve por via de um processo dedutivo, onde se colhe a norma no ordenamento e faz-se a subsunção dos fatos relevantes. Esse processo lógico-formal se concretiza através de um raciocínio silogístico, onde a lei é a premis- sa maior, a relação de fato é a premissa menor e a conclusão é a regra concreta que vai reger o caso. O dogmatismo, ou conceptualismo, tra- duz-se na existência e observância de determinados princípios e concei- tos rígidos, axiomáticos, ou, pelo menos, de longa data inquestionados. 1. V. Friedrich Carl von Savigny, Sistema di diritto romano attuale, 1886, 8 v.; Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979; Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, 1987; Robert Haymnan Jr. e Nancy Levit, Jurisprudence: contemporary readings, problems, and narratives, 1994, p. 11. O direito é concebido como uma ciência, com objeto específico e acen- tuado grau de auto-suficiência. Rigorosamente separado da política, não se inclui na sua esfera própria de atuação qualquer questionamento acerca da legitimidade e da justiça das leis. É a sua pureza científica. Ademais, o ordenamento jurídico é uma emanação estatal e tem a pretensão de completude, colhendo todas as situações verificáveis na vida social. O Es- tado é o árbitro imparcial dos conflitos que ocorrem na sociedade, e o juiz, como aplicador do direito, se pauta pela objetividade e neutralidade. Correndo o risco das simplificações, mas com proveito didático, é possí- vel afirmar que, na concepção clássica, amadurecida desde o final do sé- culo passado, incluem-se entre as principais características do direito: a) o caráter científico; b) o emprego da lógica formal; c) a pretensão de completude; d) a pureza científica; e) a neutralidade da lei e do intérprete. 2. A teoria crítica Diga-se, desde logo, que, embora fustigada ao longo das décadas pelas críticas mais contundentes, a concepção clássica do direito subsis- te e prevalece em todo o mundo ocidental, apesar de algumas nuances e temperamentos. Não se pretende com isso, todavia, endossar a crença de que a durabilidade legitima a perspectiva convencional ou encobre- lhe os defeitos. A constatação inevitável, todavia, é a de que até hoje não se edificou uma teoria alternativa e substitutiva da dogmática conven- cional. O que significa que ela ainda não concluiu o seu ciclo histórico. Alinham-se, a seguir, as principais idéias do amplo movimento de contestação do saber jurídico tradicional conhecido como teoria crítica do direito. Embora difuso e compreendendo diferentes linhas de pensa- mento, esse movimento desprende-se dos discursos típicos do direito, que incluem o normativismo, o jusnaturalismo e mesmo o sociologismo, pro- curando demonstrar sua insatisfatoriedade na compreensão e na prática do fenômeno jurídico. É a crítica da teoria. De parte isto, paralelamente ao processo puramente descritivo do objeto, preconiza a atuação concre- ta, a militância do operador jurídico, à vista do princípio de que o papel do conhecimento não é somente a interpretação do mundo, mas também sua transformação. É dizer: uma teoria crítica. 2. Vejam-se Carlos Maria Cárcova, Prólogo à coletânea Materiales para una teoría crítica del derecho, s. d., p. 7, e Michel Miaille, Reflexão critica sobre o conhecimento jurídico. Possibilidades e limites, in Crítica do direito e do Estado, 1984, p. 38.A idéia de uma atitude conclamando à ação, em contraposição à postura filosófica predominantemente descritiva, que se colhia em Hegel, tem forte

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inspiração marxista. Veja-se Leandro Konder, A derrota da dialética, 1988, p. 6: "Até para poder conhecer certos aspectos da realidade histórica dos homens, é preciso mergulhar ativamente no movi- mento que lhe dá vida. A décima primeira das Teses sobre Feuerbach mostra um Marx plenamente cônscio da originalidade do seu ponto de vista: "os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo de maneiras diversas; trata-se de transformá-lo" (Marx-Engels-Werke, vol. 3, p. 7)". As doutrinas jurídicas dominantes normalmente deixam de lado o papel desempenhado pela ideologia, tanto a do legislador quanto a do intérprete da lei. Esse silêncio nada mais é do que um compromisso com o status quo. Pois a teoria crítica do direito, ao revés, denuncia a função ideológica do direito e o fato de que, em nome de uma pretensa razão científica, encobrem-se relações de poder. O direito é ideológico na medida em que oculta o sentido das relações estruturais estabelecidas entre os sujeitos, com a finalidade de reproduzir os mecanismos de hegemonia social. 3. A propósito desse tópico, escreveu Edmundo Lima de Arruda Jr., Introdução à sociologia jurídica alternativa, 1993, p. 15: "Nosso objetivo não é entrar na crítica a Kelsen. (...) Muitos outros já se encarregaram de levantar a questão mais importante quando se refere ao autor da Teoria Pura do Direito: o não dito, o silêncio, o vazio, a grande lacuna kelseniana". 4. Luís Alberto Warat, A produção crítica do saber jurídico, in Crítica do direito e do Estado, 1984, p. 17-8, e Carlos Maria Cárcova, Acerca de las funciones del derecho, in Materiales para una teoría crítica del derecho, cit., p. 214. Para um amplo estudo sobre o tema em geral, v. L. Fernando Coelho, Teoria crítica do direito, 1991, que tem uma versão resumida publicada em 1993. Conseqüentemente, é falsa a crença de que o direito seja um domí- nio politicamente neutro e cientificamente puro. O normativismo jurídi- co, escreveu Warat, com sua ilusória sistematização, abstração e gene- ralização, situa a lei como expressão política que garante e organiza um jogo igualitário entre os homens, isolando-os do sistema de decisões e interesses. Os juristas conseguem elaborar um discurso de ocultamento das funções e do funcionamento do direito na sociedade. A produção de um saber jurídico crítico procura "rever o conceito tradicional da ciência do direito, demonstrando como a partir de um discurso organi- zado em nome da verdade e da objetividade desvirtuam-se os confli- tos sócio-políticos, que se apresentam como relações individuais har- monizáveis pelo direito". 5. Luís Alberto Warat, A produção crítica do saber jurídico, in Crítica do direito e do Estado, cit., p. 20. A teoria crítica do direito reveste-se de cunho eminentemente interdisciplinar. Ela se realiza através de um discurso de interseção, para o qual concorrem múltiplos saberes: os que o pensamento jurídico acumulou ao longo dos séculos como próprios e os que vêm de outras procedências, como a lingüística, a sociologia, a economia política, a psicologia social, a antropologia, a história e a psicanálise. Numa pers- pectiva ainda mais filosófica e aprofundada, exibe a influência de filó- sofos da chamada escola neomarxista de Frankfurt, que inclui Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Também refletiram

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sobre o movimento os trabalhos sobre hermenêutica desenvolvidos por Jürgen Habermas, Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur, cuidando do papel do intérprete e da indeterminação dos textos. 6. Carlos Maria Cárcova, Prólogo, in Materiales para una teoría crítica del derecho, cit., p. 8. 7. Max Horkheimer, Critical theory, 1972. 8. Herbert Marcuse, One-dimensional man: studies in the ideology of advanced industrial society, 1964. 9. Theodor Adorno, Negative dialectics, 1973. 10. Jürgen Habermas, Theory and practice, 1973. 11. Hans-Georg Gadamer, Trust and method, 1975. 12. Paul Ricoeur, Hermeneutics and the human sciences, 1981. Além de não ser neutro, o direito não tem a objetividade proclama- da pelo raciocínio lógico-formal de subsunção dos fatos à norma. Ao revés, é a indeterminação dos conteúdos normativos uma marca do di- reito. Mesmo o emprego dos mecanismos do direito posto conduz a resultados conflitantes, diante das possibilidades abertas pelo texto, cir- cunstância que se torna ainda mais ostensiva quando se trate de normas constitucionais. Em palavras de Joseph William Singer, escrevendo so- bre a versão norte-americana do movimento - os Critical Legal Studies -, a teoria crítica "acredita que o Direito não é apolítico e objetivo: advogados, juízes e juristas, em geral, fazem opções altamente discutí- veis, mas se utilizam do discurso jurídico para fazer com que as institui- ções pareçam naturais e as regras neutras". 13. Joseph William Singer, The player and the cards: nihilism and legal theory, Yale Law Journal, 94:1, 1984, p. 5. A teoria crítica sofre evidente influência do pensamento marxista, embora não se tivesse em Marx uma teoria acabada do direito. Sua ênfase economicista, tão didaticamente enunciada no Prefácio à Con- tribuição à crítica da economia política, remarca a tese de que o direi- to é uma superestrutura que corresponde, no mundo das idéias, a uma base material, resultante das relações de produção. É a infra-estrutura econômica - e tão-somente ela - que condiciona as instituições ju- rídicas. Sem embargo, pensadores marxistas e militantes da teoria crítica sustentam que os elementos da superestrutura não devem ser abandonados a si mesmos, ao seu desenvolvimento espontâneo, a uma germinação casual e esporádica. De fato, Michel Miaille, condenan- do a interpretação simplista que desautorizadamente se atribui ao ma- terialismo histórico, doutrina que não somente o direito não é um mero reflexo da economia como é um elemento constitutivo que participa ativamente de sua construção. 14. V., sobre o tema, Michel Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989. 15. Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, in Obras escolhidas de Marx e Engels, 1961, p. 301: "Na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma deter- minada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais, O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a supe-

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restrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social, O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral". 16. Antonio Gramsci, Maquiavel, apolítica e o Estado moderno, 1980, p. 152. 17. Michel Miaille, Reflexão crítica..., in Crítica, cit., p. 44 e 46. Em síntese apertada, é possível deixar registrado que a teoria crítica do direito questiona: o caráter científico do direito, por faltar-lhe a pre- tendida objetividade que decorreria de uma irreal aplicação mecânica da norma ao fato, com base em princípios e conceitos generalizadamente válidos; a alegada neutralidade política, ao denunciar sua função ideo- lógica de reforçador e reprodutor das relações sociais estabelecidas; a pureza científica, ao preconizar a interdisciplinariedade como instrumen- tal indispensável à formação do saber jurídico. Trata-se, no entanto, de uma teoria crítica, e não de uma dogmática substitutiva ou alternativa. 3. O direito alternativo Na seqüência histórica da teoria crítica, fundado nos mesmos pres- supostos ideológicos, articulou-se em diversos países do mundo, inclu- sive no Brasil, um movimento conhecido como direito alternativo. A denominação imprópria, o discurso inicial mais radical, que se confron- tava asperamente com o ideário dominante, e até mesmo uma caricaturização feita em órgãos de imprensa, atraíram para o movimen- to a antipatia ostensiva dos segmentos conservadores e dos militantes menos tolerantes da ideologia jurídica tradicional. A crítica, em grande medida, tirou proveito do ceticismo generalizado que recaiu sobre o pensamento de esquerda em geral. 18. Sobre as perplexidades que colheram os setores do pensamento identificados como de esquerda, veja-se a Nota Prévia ao nosso Princípios constitucionais brasileiros ou de como o papel aceita tudo, Revista Trimestral de Direito Público, 1:169. Vejam-se, também, J. J. Gomes Canotilho, Rever ou romper com a Constituição dirigente, mimeografado, Conferência realizada no Instituto Pimenta Bueno, em 22-9-1993, onde averbou: "A "má utopia do sujeito do progresso histórico" alojou-se em "constituições plano e balanço" onde a propriedade estatal dos meios de produção se misturava em ditadura partidária e coacção moral e psicológica. Alguns - entre os quais me incluo - só vieram a reconhecer isto tarde e lentamente demais"; e Mark Tushnet, Critical legal studies: a political history, Yale Law Journal, 100:1515, 1991: "The intellectual program of critical legal studies may well have tu be refocused, which may drain it of some vitality. In particular, the developments of 1989 rather strongly suggest that a leftist political movement may find it difficult tu take comfort in the continuing effort tu discredit classical social theory". Por trás do preconceito e das visões estereotipadas, é preciso deli- near o conteúdo das idéias do movimento alternativo e o espaço que ele possa merecer no cenario acadêmico e jurisprudencial. A teoria crítica do direito, nascida e divulgada no seio das Universidades, preocupou- se, acima de tudo, em desmistificar o fenômeno jurídico e introduzir

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novos elementos valorativos na sua discussão. Trata-se de um movi- mento de desconstrução. A proposta do direito alternativo, embora ser- vindo-se da experiência crítica, procura contribuir para a emergência de um novo direito. 19. V. Clêmerson Merlin Clêve, A teoria constitucional e o direito alternativo, in Direito alter- nativo. Seminário Nacional sobre o Uso Alternativo do Direito, 1993, p. 46. A exemplo da teoria crítica, o movimento do direito alternativo tam- bém condena o fetiche da lei e a mistificação liberal-positivista que estabelece uma identificação entre direito e lei. Mais que isso, rompe com a idéia clássica da estatalidade do direito, passando-se a admitir direitos "que se vão constituindo pelos conflitos e avanços dos excluí- dos da nossa sociedade". Há, mesmo, direitos alternativos que se for- mam como fruto da deterioração social e da ausência do poder público trazendo o direito oficial. É o que se passa, por exemplo, "nos presídios, em porões de algumas delegacias de polícia, em determinadas zonas comandadas por traficantes". 20. V., por todos, Roberto Lyra Filho, Direito e lei, in O direito achado na rua, 1990, p. 32. 21. Roberto Ramos de Aguiar,A crise da advocacia no Brasil, 1991, p. 78. 22. Em passagem inspiradíssima, em que reconhece a possibilidade de existência, não de um único direito alternativo, politicamente correto, mas de vários, nem todos conducentes ao avanço social, escreveu Amilton Bueno de Carvalho, Direito alternativo na jurisprudência, 1993, p. 15: "O que se quer apontar é que não se pode cair no erro de reconhecer por democrático qualquer direito "alternativo", posto que alguns efetivam a barbárie e são mais cruéis do que certos direitos que emergem de estados ditatoriais". Sem embargo, possivelmente procurando conter os exageros da negativa de legitimidade do direito estatal, e no esforço de preservar uma dimensão jurídica para o movimento, que ameaçou perder tal referência, Amilton Bueno de Carvalho, juiz no Rio Grande do Sul e um dos principais formuladores do pensamento jurídico alternativo no Brasil, escreveu: "Alguns dizem que o Direito Alternativo caracteriza- se pela negativa da lei. E tal não corresponde à realidade. A lei escrita é conquista da humanidade e não se vislumbra possibilidade de vida em sociedade sem normas (sejam elas escritas ou não). (...) A alternatividade luta para que surjam leis efetivamente justas, comprometidas com os interesses da maioria da po- pulação, ou seja, realmente democráticas. E busca instru- mental interpretativo que siga a mesma diretiva. O que a alternatividade não reconhece é a identificação do direito tão-só com a lei, nem que apenas o Estado produz direito, o que é diverso da negativa à lei. (...) O que a alternatividade busca é o novo paradigma, com a superação do legalismo estreito, mas tendo como limites (ou conteúdo racional) os princípios gerais do direito, que são conquistas da humanidade e serão desenvolvidos com mais vagar (...). O compromisso do juiz deve ser a busca in- cessante da justiça..., tendo como limites, de um lado, o caso concreto e, de outro, os princípios universais do direito". E em desfecho, submetendo o eventual direito não estatal às limita-

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ções impostas pelo senso comum, concluiu: "Então, o "alternativo sentido estrito" (isto é, o direito de origem não estatal) que merece efetivação deve ter tam- bém como limite os princípios gerais do direito, mesmo quando ambiciona criar/destruir novos princípios, desde que tenha como pano de fundo, ou norte, a real democratização da vida em sociedade". 23. Amilton Bueno de Carvalho, Direito alternativo na jurisprudência, cit., p. 10, 11 e 15. Sobre o movimento do direito alternativo em geral, vejam-se, além dos trabalhos já citados, as obras coletivas Lições de direito alternativo, v. 1 e 2, Jurisprudência de direito alternativo, Magis- tratura e direito alternativo, Ministério Público e direito alternativo, bem como a Revista de Direito Alternativo, n. 1, 1992, e n. 2, 1993. 4. Objetividade e neutralidade. Os limites do possível A busca de um método jurídico de objetividade tão plena quanto possível, e bem assim da neutralidade do intérprete, foi objeto de um dos mais célebres escritos do direito constitucional norte-americano: Em busca de princípios neutros de direito constitucional, do Professor da Universidade de Columbia Herbert Wechsler, publicado em 1959. 24. Herbert Wechsler, Towards neutral principles of Constitutional law, Harvard Law Review, 73:1,1959. O trabalho se inseriu no contexto de uma ampla crítica conservadora às decisões proferidas pela Suprema Corte sob a presidência de Earl Warren (1953-1969), dentre as quais se destacou a revolucionária decisão de integração racial proferida em Brown vs. Board of Education. Em sua condenação do ativismo judicial, o autor procura traçar uma linha dis- tintiva entre a atuação do Judiciário e a dos outros dois Poderes. Em uma das mais inspiradas páginas do credo liberal-conservador, escreveu Wechsler: "O que caracteriza as decisões judiciais, em contraste com os atos dos outros Poderes, é a necessidade de que sejam fundadas em princípios coerentes e constantes, e não em atos de mera vontade ou sentimento pessoal. Discordo, assim, com veemência, daqueles que, aberta ou encoberta- mente, sujeitam a interpretação da Constituição e das leis a um "teste de virtude", para verificar se o resultado imediato limita ou promove seus próprios valores e crenças. Quem julga com os olhos no resultado imediato, e em função das próprias simpatias ou preconceitos, regride ao governo dos homens, não das leis. Se alguém toma deci- sões levando em conta o fato de que a parte envolvida é um sindicalista ou um contribuinte, um negro ou um separatis- ta, uma empresa ou um comunista, terá de admitir que pes- soas de outras crenças ou simpatias possam, diante dos mesmos fatos, julgar diferentemente. Nenhum problema é mais profundo em nosso constitucionalismo do que este tipo de avaliação e de julgamento ad hoc". 25. 347 U. S.483(1954). 26. Herbert Wechsler, Towards neutral principles..., Harvard Law Review, 73:1, 1959, p. 10-6. O texto acima, embora fiel ao pensamento do autor, foi significativamente editado e traduzido

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livremente. Diminui, por certo, o impacto dessas palavras a informação, relevan- tíssima, de que o método de raciocínio jurídico preconizado pelo autor do texto levou-o à condenação, por ser não neutra, da decisão dessegre- gacionista em Brown. De acordo com o raciocínio do Professor Wechsler, a questão envolvia um conflito entre duas preferências: o desejo dos negros de freqüentarem a escola com os brancos, e o desejo dos brancos de freqüentarem a escola sem os negros. Segundo ele, a Suprema Corte não fundamentou sua escolha em qualquer princípio neutro. Não é acei- tável que tivesse pura e simplesmente escolhido a opção dos negros. A tese é arrepiante e emblemática: revela como a neutralidade pode ser perversa quando estão em jogo os interesses de partes política, social e economicamente desiguais. 27. Cass R. Sunstein, The partial Constitution, 1993, p. 76. O primeiro fundamento da teoria de Wechsler é o de que as deci- sões constitucionais devem ser motivadas. Cabe aos tribunais expor os autênticos fundamentos de seus julgados e desenvolver claramente cada fase do raciocínio que conduziu ao resultado produzido. Essas deci- sões, e sua fundamentação, devem obedecer a princípios, isto é, a cri- térios que podem ser formulados e postos a prova em um exercício de dialética, e que não obedecem somente a um desígnio da vontade. Por fim, esses princípios devem ser neutros, de modo que as decisões te- nham lastro em análises e razões que desde logo transcendam ao re- sultado imediato que se alcança. Pode-se dizer que alguém se utiliza de princípios neutros se estiver disposto a segui-los em outras situa- ções em que eles sejam aplicáveis, desde que com isso não se chegue a um resultado absurdo. 28. V., também, o trabalho subseqüente de Herbert Wechsler, The Courts and the Constitution, Colorado Law Review, 65:1001, 1965, onde a idéia de princípios neutros foi reiterada. As idéias de Wechsler têm razoável apelo ao espírito e é possível afirmar que elas são desejavelmente aplicáveis em boa parte da ativida- de de interpretação judicial, inclusive constitucional. Elas não deixam de ser um tempero necessário a uma perspectiva diametralmente opos- ta, que é a das decisões fundadas exclusivamente nos resultados. Ne- nhum juiz, lembra Enrique Alonso García, orgulha-se de não ser capaz de reconduzir suas decisões a determinados princípios gerais. Embora possam ocorrer hipóteses em que o juiz primeiro escolhe o resultado e somente após procura fundamentá-lo, a necessidade de decisões lastreadas em princípios reduz os excessos das decisões puramente result oriented. 29. Enrique Alonso García, La interpretación de la Constitución, 1984, p. 37: "Pero al menos podemos afirmar que la teoría de los principios neutrales produjo en el ámbito judicial un resultado: ningún juez está orgulloso de afirmar que es el autor de una decisión que no obedece a principios. La jurisprudencia result-oriented ha devenido algo parecido a un insulto". Singularmente, o Min. Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, reproduz com freqüência, em seus votos, o seguinte trecho: "Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio, formalizá-la" (e. g., RDA, 188:288, RE 111.787).

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O grande problema da pretensão de objetividade e neutralidade ple- nas das decisões judiciais é, precisamente, que ela não passa de uma pretensão, incapaz de submeter a totalidade dos casos. Pior: ela fraqueja exatamente nas situações em que, pelo teor político ou pela multiplicidade de alternativas, não há um único resultado possível. Ao menos nos casos difíceis (v. supra), a idéia de princípios neutros será inócua, pela neces- sidade de se pesarem valores contrapostos e avaliá-los relativamente aos diferentes fatores presentes no caso concreto. A idéia de princípios neutros não contém em si qualquer sinalização útil acerca de qual seja o conteúdo que esses princípios devem ter. Trata-se de mera forma, sem substância. 30. V. Deutsch, Neutrality, legitimacy and the Supreme Court: some intersections between law and political science, Stanford Law Review, 20:169, 1968. 31. Vejam-se, a propósito, John Hart Ely, Foreword: on discovering fundamental values, Harvard Law Review, 92:5, 1978, p. 32-3, e Richards, Rules, policies and neutral principles: the search for legitimacy in common law and constitutional adjudication, Harvard Law Review, 111:1069, 1977, p. 1103. Em comentário de penetrante sarcasmo, transcrito por Alonso García (La interpretación de la Constitución, cit., p. 59), observou o Professor Moore, da Universidade de Virginia: "O exemplo típico de princípio geral e neutro seria o de decidir os casos lançando uma moeda para o ar. Nenhum outro princípio é mais imparcial, nem mais geral ou neutro e, naturalmente, transcende ao resultado buscado, desde que se aplique sempre a mesma regra. E, sem embargo, todo mundo está de acordo que este princípio, neutro por excelência, não tem sentido algum". Desde que o Iluminismo consagrou o primado da razão, com o aban- dono de dogmas e de preconceitos, o mundo construído pela ciência aspira à objetividade. As conclusões divulgadas por um membro da co- munidade científica devem poder ser verificadas e comprovadas pelos demais. A racionalidade do conhecimento procura despojá-lo das cren- ças e emoções subjetivas, puramente voluntaristas, para torná-lo impes- soal, na medida do possível. A medida do possível variará imensamen- te, e em poucas áreas enfrentará dificuldades como no direito. É que a ciência jurídica, ao contrário das ciências exatas, não lida com fenômenos que se ordenem independentemente da atividade do cientista. E assim, tanto no momento de elaboração quanto no de interpretação da norma, hão de se projetar a visão subjetiva, as crenças e os valores do intérprete. 32. V. Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, Filosofando: introdução à filosofia, 1986, p. 120. 33. V. Sergio Ferraz, Justiça social e algumas vertentes autocráticas de nosso direito admi- nistrativo, tese apresentada à IX Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Florianópolis, 1982, p. 5. A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final

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conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do texto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que, normalmente, não vai além da literalidade, da história, do sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permi- tirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua cna- tividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto. 34. Sobre o caráter a um tempo objetivo e subjetivo da interpretação, v. Owen Fiss, Objectivity and interpretation, Stanford Law Review, 34:739, 1982. 35. Ninguém menos do que Hans Kelsen reconheceu, com todas as letras, que o direito obje- tivo não fornece senão que uma moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação, afirmando mais: "A interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solu- ção como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no acto do órgão aplicador do Direito" (Teoria pura do direito, 1979, p. 465-6). Neutralidade é um conceito possivelmente mais complexo de se de- linear do que o de objetividade. A objetividade busca uma razão científica de validade geral. A neutralidade se dilui em muitos aspectos diferentes. Alguns deles não são de difícil implementação, como a imparcialidade - ausência de interesse imediato na questão - e a impessoalidade - atuação pelo bem comum, e não para o favorecimento de alguém. Basta seriedade e vontade de fazer bem feito para atender a tais imperativos. Mas a neutralidade pressupõe algo impossível: que o intérprete seja in- diferente ao produto do seu trabalho. É claro que há uma infindável quantidade de casos decididos pelo Judiciário que não mobilizam o juiz em nenhum sentido que não o de burocraticamente cumprir seu dever. Outros tantos casos, porém, envolvem a escolha de valores e alternati- vas possíveis. E aí, mesmo quando não atue em nome dos interesses de classe ou estamentais, ainda quando não milite em favor do próprio in- teresse, o intérprete estará sempre promovendo as suas próprias cren- ças, a sua visão de mundo, o seu senso de justiça. A idéia de neutralidade do Estado, das leis e de seus intérpretes, divulgada pela doutrina liberal-normativista, toma por base o status quo. Neutra é a decisão ou a atitude que não afeta nem subverte as distribui- ções de poder e riqueza existentes na sociedade, relativamente à proprie- dade, renda, acesso às informações, à educação, às oportunidades etc. Ora bem: tais distribuições - isto é, o status quo - não são fruto do acaso ou de uma ordem natural. Elas são produto do direito posto. E, freqüentemente, nada têm de justas. A ordem social vigente é fruto de fatalidades, disfunções e mesmo perversidades históricas. Usá-la como referência do que seja neutro é evidentemente indesejável, porque ins- trumento de perenização da injustiça.

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36. Para uma ampla e profícua discussão acerca do status quo como parâmetro da neutralida- de, v. Cass R. Sunstein, The partial Constitution, cit., p. 4-7 e 68 e s. Em países onde a questão social tem tinturas menos dramáticas que no Brasil, a questão do status quo também se coloca. Mesmo que não seja na alocação de poder entre ricos e pobres, será entre negros e brancos, mulhe- res e homens, estrangeiros e nacionais, judeus e muçulmanos etc. Veja-se que o problema não está só na neutralidade em si, mas em qual o ponto de referência do que seja neutro. O status quo vigente nas sociedades desiguais - e poucas não o são - certamente não é um bom parâmetro. Sunstein averbou que dizer que a neutralidade não pode fundar-se no status quo não significa que não haja lugar para ela. E, de fato, trata-se de uma aspiração altamente desejável. Idealmente, o intér- prete, o aplicador do direito, o juiz, deve ser neutro. E é mesmo possível conceber que ele seja racionalmente educado para a compreensão, para a tolerância, para a capacidade de entender o diferente, seja o homossexual, o criminoso, o miserável ou o mentalmente deficiente. Pode-se mesmo, um tanto utopicamente, cogitar de libertá-lo de seus preconceitos, de suas opções políticas pessoais e oferecer-lhe como referência um con- ceito idealizado e asséptico de justiça. Mas não será possível libertá-lo do próprio inconsciente, de seus registros mais primitivos. Não há como idealizar um intérprete sem memória e sem desejos. Em sentido pleno, não há neutralidade possível. 37. Cass R. Sunstein, The partial Constitution, cit., p. 10: "To say that neutrality should not be founded in the status quo is hardly to say that there is no room for neutrality at all. Interpretation may rest on interpretative principles, but this does not mean that judges should feel free to choose whatever principles they prefer". 38. Tudo isso sem mencionar o conjunto de fatores aparentemente prosaicos - mas freqüentemente decisivos - que José Carlos Barbosa Moreira elencou em suas Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado, RF 327:61, 1994, que incluem desde o recinto em que se realizam as sessões até as relações pessoais entre os julgadores de um órgão colegiado. É hora de concluir. O direito é certamente uma ciência, ao menos no sentido de ser um conjunto organizado de conhecimentos, regidos por princípios e conceitos próprios. Como tal, tem um objeto específico, que não se confunde com o de outras ciências. O mínimo que se pode esperar do operador do direito, antes que possa entregar-se a quaisquer outras especulações epistemológicas, políticas ou sociológicas, é que seja capaz de dominar o seu ofício, conhecer-lhe o instrumental teórico e prático. Sem isso, tudo o mais é mero discurso. 39. Exemplifica-se. Diante da prisão arbitrária de um líder sindical, é possível publicar um contundente artigo na imprensa, convocar uma manifestação na porta da delegacia ou impetrar um habeas corpus. Nada impede que um advogado protagonize as duas primeiras formas de atuação. Mas sua função social enquanto profissional do direito se realiza pela terceira. Para isso, ele preci-

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sa dominar o instrumental mínimo do direito, tanto teórico como prático. Mas só isso é pouco. Não se entende plenamente o mundo jurídico, expõe Elías Días, se o sistema normativo (ciência do direito) se insula e afasta da realidade em que nasce e à qual se aplica (sociologia do direito) e do sistema de legitimidade que o inspira e que deve sempre possibili- tar e favorecer sua própria crítica racional (filosofia do direito). Não é possível, assim, uma visão cindida do direito, especialmente no momento de sua interpretação e aplicação. Aí será necessário ter em conta sua dimensão social e ética. Remarque-se bem a idéia: uma coisa é o conhe- cimento jurídico. Outra é a sua contextualização, o que se faz inclusive através da sociologia e da filosofia. São realmente coisas distintas, que, todavia, devem ser conjugadas para a boa aplicação do direito posto. 40. Elías Días, Sociología y filosofía del derecho, 1976, p. 54 (apud Plauto Faraco de Azeve- do, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, 1989, p. 36). Portanto, a interdisciplinariedade, não só com a sociologia e a filoso- fia, mas com outros ramos do conhecimento científico, é parte importante de uma análise globalizadora do direito. Releva reiterar a necessária conscientização do intérprete quanto ao caráter ideológico de sua atua- ção e de seu questionável papel de assegurador do status quo. Essa perspectiva crítica - talvez autocrítica - poderá permitir ao juiz que ate- nue alguns dos efeitos de sua posição no setor hegemônico da sociedade, permitindo que ele se aproxime da neutralidade. Não a neutralidade da manutenção da ordem de valores, mas a que tenha como referencial o ideal de justiça para todos, fundada em pressupostos de igualdade real. 41. V. Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, cit., p. 12: "O processo interpretativo pressupõe uma posição previamente assumida em relação ao direito e à vida, que nele vai refletir-se inelutavelmente". O juiz não pode ignorar o ordenamento jurídico. Mas, com base em princípios constitucionais superiores, poderá paralisar a incidência da norma no caso concreto, ou buscar-lhe novo sentido, sempre que possa motivadamente demonstrar sua incompatibilidade com as exigências de razoabilidade e justiça que estão sempre subjacentes ao ordenamento. Jamais deverá o magistrado se conformar com a aplicação mecânica da norma, eximindo-se de sua responsabilidade em nome da lei - não do direito! -, supondo estar no estrito e estreito cumprimento do dever. Sem essa percepção mais aguda, estará sujeito à crítica devastadora de Plauto Faraco de Azevedo: "Preso a uma camisa de força teorética que o impede de descer à singularidade dos casos concretos e de sentir o pulsar da vida que neles se exprime, esse juiz, servo da legalidade e ignorante da vida, o mais que poderá fazer é semear a perplexidade social e a descrença na função que deveria encarnar e que, por essa forma, nega. Negan- do-a, abre caminho para o desassossego social e a inse- gurança jurídica". 42. Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, cit., p. 25. Cabe, por fim, destacar uma peculiaridade que envolve a Constitui- ção. O legislador constitucional é invariavelmente mais progressista que o legislador ordinário. Daí que, em uma perspectiva de avanço social, devem-se esgotar todas as potencialidades interpretativas do Texto Cons- titucional, o que inclui a aplicação direta das normas constitucionais no limite máximo do possível, sem condicioná-las ao legislador infraconsti- tucional.

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Essa tarefa exige boa dogmática constitucional e capacidade de tra- balhar o direito positivo. Para fugir do discurso vazio, é necessário ir à norma, interpretá-la, dissecá-la e aplicá-la. Em matéria constitucional, é fundamental que se diga, o apego ao texto positivado não importa em reduzir o direito à norma, mas, ao contrário, em elevá-lo à condição de norma, pois ele tem sido menos que isso (v. supra). O resgate da imperatividade do Texto Constitucional e sua interpretação à luz de boa dogmática jurídica, por óbvio que possa parecer, é uma instigante novi- dade neste país acostumado a maltratar suas instituições. 43. Em passagem especialmente feliz, Clèmerson Merlin Clêve, A teoria constitucional e o direito alternativo, cit., p. 46, assinala que não é possível confundir-se dogmática com dogmatismo. "O dogmatismo é o apego preconceituoso e irrefletido a dogmas. (...) A dogmática constitui o saber jurídico instrumental e auxiliar da solução de conflitos, individuais ou coletivos, de interesses. (...) Não há direito sem doutrina, e, portanto, sem dogmática." Também é de bom alvitre distinguir a capacidade de conhecer e operar o direito positivo do positivismo, que é uma postura filosófica de confinamento do direito à norma. Em busca deste desiderato, é importante difundir uma concepção do direito constitucional dotada de rigor científico, com a apropriada utiliza- ção de princípios, conceitos e elementos interpretativos. Essa é a única forma de isolá-lo do que se poderia chamar charlatanismo constitucional, que é o discurso constitucional inteiramente dissociado do direito, desen- volvido em nível puramente teórico, com vulgaridade e insciência. Esse discurso normativista e científico não constitui uma preferência academi- ca ou uma opção estética. Ele resulta de uma necessidade histórica. Sem ele, o direito constitucional continuará a ser uma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que não se traduz em nenhum proveito para os cidadãos. Sobretudo os que, já desamparados da fortuna, ficam também desprovidos da proteção das normas jurídicas. A necessidade de produzir um direito constitucional dotado de tais atributos, com ênfase dogmática e normativa, adiou para algum lugar do futuro um projeto mais sedutor do autor de conduzi-lo por uma viagem interdisciplinar. Não apenas pelos domínios mais evidentes - a políti- ca, a sociologia, a economia - mas outros de interesse mais recente, e por isso mais fascinantes, como a psicanálise, a metafísica, a lingüísti- ca. Tudo tem seu tempo. Nesta hora os compromissos e as necessidades são outros. E, como no verso inspirado de Drummond, o tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Capítulo II - CONCLUSÕES O presente trabalho espelha, ao longo de suas diferentes partes, a preocupação de explorar as potencialidades da interpretação constitu- cional para colocá-la à disposição de uma perspectiva jurídica trans- formadora da realidade. Seu pressuposto maior foi o da necessidade de se conhecerem adequadamente as técnicas e o instrumental da dogmática convencional. Supera-se, assim, uma fase em que o pensamento jurídi- co mais engajado desprezava o saber tradicional, enfatizando sua alian- ça com um projeto classista e excludente de sociedade. Este estudo não se preocupou em inventariar as vitórias e derrotas das diferentes correntes político-jurídicas do último século, nem cuida de distribuir culpas ou exaltações. Há nele, por certo, algumas pré-com- preensões importantes. Não se nega, por exemplo, em momento algum,

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o caráter ideológico do direito. Tampouco se milita na crença de que o mundo jurídico possa apresentar os padrões rígidos de objetividade as- pirados pela razão científica. Mais ainda: trata-se de uma análise desa- pegada de mistificações como a da neutralidade do intérprete. Sem em- bargo, procurou-se demonstrar que o conhecimento jurídico, mesmo o tradicional, representa um importante espaço de resistência e oferece opções variadas de avanço social. Em desfecho desta exposição, que visitou diferentes cenários do uni- verso constitucional, sempre tendo em conta o processo de interpretação e realização da Constituição, é possível compendiar algumas de suas idéi- as em proposições objetivas, relativamente a cada uma de suas partes. 1) A interpretação, em qualquer domínio científico, não é um fenô- meno de caráter absoluto ou atemporal. Ao revés, ela espelha o nível de conhecimento e a realidade de cada época e sofre a influência das cren- ças e valores da sociedade em geral e do intérprete em particular. 2) A interpretação constitucional não foi objeto, ainda, no direito brasileiro, de um estudo abrangente e sistemático. A despeito da existên- cia de controvérsias, melhor é o entendimento de que ela integra a inter- pretação jurídica geral, apresentando, todavia, especificidades que lhe são próprias, materializadas em conceitos e princípios que atendem às singularidades das normas constitucionais. 3) A ordem jurídica constitucional de um Estado deve ser um siste- ma harmonioso, e, como tal, não pode tolerar antinomias, o conflito entre normas incidentes sobre uma mesma hipótese. Quando tal ocorre, deve o intérprete, antes de mais nada, solucionar a colisão de normas, pela indicação de qual deverá prevalecer. Normalmente, tal determina- ção far-se-á à luz dos princípios da hierarquia e da especialização. 4) Há, todavia, duas grandes categorias de conflitos de normas que repercutem na interpretação e aplicação da Constituição, e que exigem instrumental teórico próprio para seu equacionamento e solução: o con- flito de normas no espaço e o conflito de normas no tempo. Para discipliná-los e resolvê-los é preciso recorrer a dois domínios freqüentemente negligenciados pelos constitucionalistas: o direito cons- titucional internacional e o direito constitucional intertemporal. 5) Com base nos princípios e regras do direito constitucional inter- nacional, é possível assentar algumas posições que se reputam de me- lhor substrato jurídico. Em nenhuma hipótese um tratado internacional deverá prevalecer sobre as normas constitucionais, sendo indiferente o fato de o tratado ser anterior ou posterior à Constituição vigente. 6) Ao aplicar norma jurídica estrangeira, o intérprete brasileiro de- verá agir como agiria o intérprete do país de onde a lei é originária. Se tal ordenamento admitir que o juiz se abstenha de aplicar uma lei inconstitucional, o juiz brasileiro deverá fazê-lo, se considerar a lei in- compatível com o ordenamento do país de origem, à luz dos princípios e critérios lá vigorantes. 7) Com muito mais razão, se a norma estrangeira estiver em con- fronto com o ordenamento constitucional brasileiro, juízes e tribunais deverão negar-lhe aplicação. As normas constitucionais são tidas como de ordem pública internacional, impedindo a eficácia de leis, decisões judiciais e atos jurídicos estrangeiros com elas incompatíveis. 8) Também em matéria de direito constitucional intertemporal, sem embargo de inúmeras controvérsias, é possível alinhavar algumas idéias aqui tidas como expressão da melhor doutrina. Ao contrário do que se afirma correntialmente, uma lei poderá ser aplicada retroativamente, sal- vo se for para colher direito adquirido, negócio jurídico perfeito ou coi- sa julgada. 9) Uma vez promulgada uma nova Constituição, ficam inteiramen-

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te revogadas as normas constitucionais anteriores. Não vigora no direito brasileiro, à falta de norma expressa, a chamada desconstitucionalização das normas constitucionais, que preservaria, com caráter de lei ordiná- ria, as normas constitucionais anteriores compatíveis com o novo ordenamento. 10) Uma vez postas em vigor, as emendas constitucionais têm vi- gência imediata e com o mesmo grau hierárquico das demais normas integrantes da Constituição originária. Sujeitam-se tais emendas, toda- via, ao controle de constitucionalidade, tanto formal quanto material, podendo ser pronunciada sua inconstitucionalidade. 11) Quando da promulgação de uma nova Constituição, a legisla- ção infraconstitucional anterior que seja com ela compatível continua em vigor, através dos fenômenos da recepção ou da novação, que reve- renciam o imperativo prático da continuidade da ordem jurídica. As nor- mas anteriores incompatÍveis com a Constituição, por sua vez, ficam revogadas. Como conseqüência, não se sujeitam ao controle de constitucionalidade, que somente se exerce sobre legislação em vigor. Essa é a posição cristalizada do Supremo Tribunal Federal, recentemen- te reiterada após amplo debate. 12) Algumas outras regras relevantes de direito constitucional intertemporal: a) inexiste inconstitucionalidade formal superveniente. Se uma lei foi editada com observância do processo vigente na época de sua criação, o fato de uma nova Constituição alterar tal processo não a invali- da, desde que seu conteúdo seja compatível com a nova Carta; b) uma Constituição tem vigência imediata, mas, em princípio, não retroativa, a menos que o declare expressamente; c) declarada a inconstitucionalidade de uma norma, ficam restabelecidas aquelas que ela revogara. 13) Relativamente à interpretação constitucional propriamente dita, é de se remarcar que as normas constitucionais apresentam peculiaridades que exigem tratamento diverso, dentre as quais se incluem: a) a superiori- dade hierárquica; b) a natureza da linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter político. 14) Aplicam-se à interpretação constitucional as categorias tradicio- nais da interpretação em geral, pelo que também é possível classificá- la: a) quanto à sua origem, em legislativa, administrativa e judicial, na trilogia clássica, havendo espaço, também, para discussão acerca da in- terpretação doutrinária e autêntica; b) quanto aos seus resultados ou à sua extensão, em declarativa, extensiva ou restritiva; c) e quanto aos métodos, ou, mais propriamente, quanto aos elementos, em gramatical, histórica, sistemática e teleológica. 15) O processo de interpretação constitucional deve ser informado, antes e acima de tudo, pelos princípios constitucionais, que contêm a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica. São os princípios que contêm as decisões políticas fundamentais e que dão unidade ao sistema constitucional, costurando suas diferentes partes e condicionando a atuação dos Poderes Públicos. Eles se irradiam por todo o sistema, indicando o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos pelo intérprete. 16) A interpretação constitucional é conduzida por um conjunto de princípios que lhe são próprios, dentre os quais se destacam: o da supre- macia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da uni- dade da Constituição, os da razoabilidade-proporcionalidade e o da efetividade. 17) O princípio da supremacia da Constituição, fruto da legitimida- de superior do poder constituinte, é nota distintiva de toda a interpreta- ção constitucional e pressuposto do controle de constitucionalidade dos

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atos normativos. Por força de tal superioridade jurídica, nenhuma lei, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente no âmbito do Estado se for incompatível com a Lei Fundamental. 18) O princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público em geral tem raízes na independência e harmonia entre os Poderes. Embora seja o Judiciário o intérprete final e definitivo da Constituição, tal competência deve ser exercida com autolimitação e deferência à interpretação dada pelos outros dois Poderes. Em linha de princípio, uma lei só deve ser declarada inconstitucional quando a invalidade seja manifesta e inequívoca, militando a dúvida em favor de sua preservação. 19) A interpretação conforme a Constituição induz à interpretação de uma norma legal em harmonia com a Lei Maior, em meio a outras possibilidades interpretativas que o preceito admita. Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto. Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outras inter- pretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição. 20) O princípio da unidade, também referido como princípio da uni- dade hierárquico-normativa da Constituição, é uma especificação, no ambito do direito constitucional, do elemento sistemático de interpreta- ção jurídica. As normas constitucionais consagram valores que guardam tensões entre si. O princípio da unidade remarca a ausência de hierarquia entre normas integrantes de um mesmo documento constitucional e im- põe ao intérprete o dever de atuar ponderando bens e valores em jogo, de modo a harmonizar preceitos aparentemente conflitantes e a evitar confli- tos e contradições entre as normas constitucionais. 21) O princípio da razoabilidade tem sua origem ligada à cláusula do devido processo legal, do direito anglo-saxão, havendo assumido uma dimensão substantiva que permite ao Judiciário adentrar o mérito de certos atos legislativos e administrativos para aferir-lhes a justiça, a ade- quação dos meios aos fins. Substancialmente idêntica é a idéia do prin- cípio da proporcionalidade, desenvolvida na doutrina e jurisprudência alemãs, e que também se traduz na adequação meio-fim, na avaliação da necessidade da prática do ato e na aferição de seu custo-benefício. 22) O princípio da efetividade, embora de desenvolvimento relati- vamente recente no direito constitucional, traduz a mais notável preocu- pação do constitucionalismo dos últimos anos. Ele está ligado ao fenô- meno da juridicização da Constituição e ao reconhecimento de sua for- ça normativa. As normas constitucionais são dotadas de imperatividade e sua inobservância deve deflagrar os mecanismos próprios de cumpri- mento forçado. A efetividade é a realização concreta, no mundo dos fatos, dos comandos abstratos contidos na norma. 23) O conhecimento jurídico tradicional, que teve seus pontos culmi- nantes na produção científica de Savigny, no século passado, e de Hans Kelsen, neste século, inclui na sua prática ou no seu discurso: a) o caráter científico; b) o emprego da lógica formal; c) a pretensão de completude; d) a pureza científica; e) a neutralidade da lei e do intérprete. Seus tra- ços marcantes são o formalismo e o dogmatismo. 24) Esse saber jurídico convencional sofreu a contestação contun- dente da teoria crítica do direito, que denunciou a função ideológica das concepções clássicas contidas no discurso liberal-positivista e o fato de que, em nome de uma pretensa razão científica, encobrem-se relações de poder. O direito é ideológico na medida em que oculta o sentido das relações estruturais estabelecidas entre os sujeitos, com a finalidade de

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reproduzir os mecanismos de hegemonia social. A teoria crítica prega a interdisciplinariedade e uma perspectiva globalizadora do direito, em- bora seu discurso seja desconstrutivista, sem oferecimento de uma dogmática alternativa. 25) Na seqüência histórica da teoria crítica, fundado nos mesmos pressupostos ideológicos, articulou-se, no Brasil e em outras partes do mundo, um movimento imprôpriamente denominado de direito alterna- tivo. Depurado das incompreensões preconceituosas e de uma perspec- tiva mais radical que se desprendia inteiramente do direito posto, o mo- vimento traz uma importante colaboração interdisciplinar, questiona a perpetuação das estruturas injustas acobertadas no direito positivo e admite a produção de um direito não estatal. 26) A objetividade é um valor altamente desejável na razão científi- ca. Nas ciências sociais e, especialmente, no direito, ela enfrenta difi- culdades de ordens diversas. Nada obstante, a impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetivi- dade possível. O texto da lei e as possibilidades exegéticas que ela oferece traçam os parâmetros dentro dos quais poderá mover-se o intérprete. A lei e o princípio da legalidade são valiosas conquistas da humanidade. 27) A pretensão de neutralidade do intérprete, embora seja passível de atendimento no que toca à sua imparcialidade e impessoalidade, é ina- tingível na sua plenitude. Interpretar envolve, freqüentemente, a escolha de valores e de alternativas possíveis. Ainda quando não atue movido por interesses de classe ou estamentais, ainda quando não milite em favor do próprio interesse, o juiz estará sempre promovendo as suas crenças, a sua visão do mundo, o seu senso de justiça. A doutrina liberal-normativista procura identificar como neutras as atitudes que não afetam o status quo, ou seja, que não subvertem as distribuições de poder e riqueza existentes na sociedade. Ainda quando fosse utopicamente possível libertar o juiz de suas injunções ideológicas, não seria possível libertá-lo do seu próprio inconsciente, de sua memória e de seus desejos. 28) Nenhum conhecimento pode prescindir de princípios, conceitos e elementos que se articulem em torno de um objeto, ainda que seja para utilizá-los como instrumentos de transformação. Por tal razão, não existe direito sem doutrina, sem institutos próprios, sem um discurso que o sin- gularize dos outros ramos do conhecimento. Não é possível, assim, des- prezar sumariamente a dogmática jurídica nem o conjunto de experiên- cias e conhecimentos acumulados ao longo de séculos de vida social. 29) O constituinte é invariavelmente mais progressista que o legis- lador ordinário. Tal fato dá relevo às potencialidades do direito constitu- cional, e suas possibilidades interpretativas. Sem abrir mão de uma perspectiva questionadora e crítica, é possível, com base nos princípios maiores da Constituição e nos valores do processo civilizatório, dar um passo à frente na dogmática constitucional. Cuida-se de produzir um conhecimento e uma prática asseguradores das grandes conquistas his- tóricas, mas igualmente comprometidos com a transformação das estru- turas vigentes. O esboço de uma dogmática autocrítica e progressista, que ajude a ordenar um país capaz de gerar riquezas e distribuí-las ade- quadamente. ÍNDICE ONOMÁSTICO Accioly, Hildebrando, 16, 22 Ackerman, Bruce, 62 Adorno, Theodor, 268 Agesta, Luis Sánchez, 110 Aguiar, Roberto Ramos de, 271 Andrade, Christiano José de, 121

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Andrade, Manuel A. Domingues de, 113, 116 Anzilotti, Dionisio, 15 Aragão, Egas Moniz de, 221 Aranha, Maria Lúcia de Arruda, 275 Araujo, José Antonio Estévez, 83, 128, 133, 170 Arendt, Hannah, 110 Arruda Jr., Edmundo Lima de, 267 Ascensão, José de Oliveira, 91, 121, 131, 134, 142 Ascoli, Max, 116 Ataliba, Geraldo, 62, 132, 238 Azevedo, Antonio Junqueira de, 235 Azevedo, Plauto Faraco de, 278, 279 Bachoff, Otto, 66, 112, 157, 196, 197, 198, 199, 200, 201 Balladore-Palieri, 75 Baracho, José Alfredo de Oliveira, 62, 103, 104, 110, 116, 118, 157, 164, 168, 209, 215 Barak, Ahron, 108 Barbalho, João, 71 Barbi, Celso Agrícola, 249 Barbosa, Rui, 68, 176, 238, 242 Barboza, Heloisa Helena, 153 Barile, 48 Barron, Jerome A., 173, 174, 175, 210 Barros, Suzana de Toledo, 228 Barroso, Luís Roberto, 18, 46, 91, 110, 117, 150, 176, 192, 232, 246, 249, 270 Bassi, Antonio Pensovecchio Li, 105 Bastos, Celso Ribeiro, 3, 73, 107, 109, 119, 168, 182, 202, 238 Batalha, Wilson de Souza Campos, 13, 52, 55, 56, 61, 68 Batista, Paulo, 116 Battifol e Lagarde, 13 Berger, 114 Bermudes, Sergio, 250 Betti, Emilio, 116 Beviláqua, Clóvis, 45, 90, 142 Bickel, Alexander M., 163 Bielsa, Rafael, 215 Bittencourt, Lúcio, 79, 94, 164, 170, 182 Black, 104 Bobbio, Norberto, 9, 57,70, 134 Bóckenfórde, Ernst- Wolfgang, 4, 5 Bonavides, Paulo, 5,65,105, 113, 118, 119, 121, 140, 144, 168 Borja, Célio, 250 Bork, Robert, 114, 115 Bourdon, 175 Brennan Jr., William, 114 Brest, Paul, 174, 209 Britto, Carlos Ayres de, 109, 238 Brocher, Charles, 46 Brossard, Paulo, 79 Brugger, Winfried, 113, 125, 126, 131 Bryce, James, 158 Bulos, Uadi Lammêgo, 3 Burdeau, Georges, 157, 169 Buzaid, Alfredo, 164 Caetano, Marcelo, 110, 138, 142, 167 Calamandrei, 75, 108 Campos, Bidart, 215

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Campos, Francisco, 73, 242 Canotilho, J. J. Gomes, 17, 57, 62, 63, 66, 68, 77, 80, 84, 93, 106, 107, 108, 119, 126, 129, 142, 144, 147, 150, 151, 158, 182, 185, 187, 188, 189, 201, 218, 219, 221, 222, 235, 270 Capograssi, G., 135 Cappelletti, Mauro, 75, 94, 111, 159, 164, 170 Carbone, Carmelo, 104, 105 Cárcova, Carlos María, 5, 266, 267, 268 Carrió, Genaro, 116 Carvalho, Amilton Bueno de, 271, 272 Carvalho, Ivan Lira de, 122 Castro, Amilcar de, 13, 15, 16, 45 Castro, Carlos Roberto de Siqueira, 157, 168, 209, 216, 221, 224 Cavalcanti, Themístocles Brandão, 74, 112, 170 Chantebout, Bernard, 175 Chierchia, Pietro Merola, 104, 113, 133, 135, 136, 145, 151 Clève, Clèmerson Merlin, 164, 246, 270, 280 Coelho, Inocêncio Mártires, 3 Coelho, Luís Fernando, 103, 115, 267 Cooley, Thomas, 104, 209 Correia, Ferrer, 13 Corwin, 209, 221 Costa, Luiz Antonio Severo da, 38 Coviello, 113 Crisafulli, 113 Cunha, Fernando Whitaker da, 197 Dallari, Dalmo de Abreu, 243 Danilenko, Gennady M., 17 Dantas, Ivo, 250 Dantas, San Tiago, 209, 216 Deutsch, 275 Días, Elías, 278 Dienes, C. Thomas, 173, 174, 175, 210 Diniz, Marcio Augusto de Vasconcelos, 221 Diniz, Maria Helena, 66, 203, 204, 238 Dolinger, Jacob, 11, 13, 14, 17, 31, 34, 35, 36, 47 Duguit, Léon, 52 Duverger, Maurice, 110 Eco, Umberto, 1, 6 Ehmke, H., 5 Ely, John Hart, 134, 275 Engels, 267 Enterría, Eduardo García de, 5, 76, 84, 112, 150, 159, 160, 176, 182, 198, 235 Esmein, A., 59 Fagundes, M. Seabra, 55, 82, 110, 112, 146, 168, 244 Faoro, Raymundo, 241 Favoreu, Louis, 164, 175 Ferrara, Francesco, 91, 106, 113, 116, 118, 121, 125, 127, 129, 130, 134, 137, 140, 141, 265 Ferraz Jr., Tércio Sampaio, 113, 203, 237 Ferraz, Anna Candida da Cunha, 104, 107, 116, 118, 119, 135, 138, 140, 142, 144, 146 Ferraz, Sergio, 153 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, 56, 60, 65, 84, 157 Ferreira, Odim Brandão, 75 Ferreira, Pinto, 54, 238 Figueiredo, Fran, 105, 128

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Fiss, Owen, 276 Flaks, Milton, 254 Fleming, 134 Foelix, M., 14 França, Rubens Limongi, 51, 52, 116 Franco, Afonso Arinos de Mello, 142, 143, 158 Freud, Sigmund, 2 Friesenhahn, 175 Gabba, 52 Gadamer, Hans-Georg, 268 Galvão, Paulo Braga, 62 García, Enrique Alonso, 115, 274, 275 Garcia-Pelayo, Manuel, 144 Gény,François, 116, 137 Glennon, Michael J., 29 Gordillo, Agustin, 220 Gramsci, Antonio, 269 Grau, Eros Roberto, 147, 150 Grey, 216 Grinover, Ada Pellegrini, 209, 215 Guerra Filho, WilIis Santiago, 215, 219, 220 Gunther, Gerald, 213 Häberle, Peter, 120 Habermas, Jürgen, 268 Hamilton, Alexander, 161, 162 Harris, 134 Hart, H. L. A., 129 Hauriou, André, 240 Haymnan Jr., Robert, 265 Hazard Jr., 36 Heck, Philipp, 137 Henkin, Louis, 27, 35 Hesse,Konrad,4, 106, 112, 113, 125, 181, 182, 184, 185, 187, 189, 192, 193, 235, 238 Horkheimer, Max, 268 Horta, Raul Machado, 52, 62, 144 Horwitz,Morton J., 114,115,145,214 Ihering, Rudolph von, 116, 137 Ipsen, 183 Jackson, John H., 27 Jay,John, 161,16 Jellinek, 199 Kelsen, Hans, 16, 57, 69, 82, 91, 159, 169, 170, 188, 236, 240, 265, 276 Konder, Leandro, 267 Krebs, 222 Kropholler, Jan, 47 Larenz, Karl, 104, 113, 127 Lassalle, Ferdinand, 111 Lavié, Quiroga, 217, 218 Leal, Aurelino, 24 Leal, Victor Nunes, 46, 73, 162 Levinson, Sanford, 174, 209 Levit, Nancy, 265 Lima, Hermes, 108 Lima, Mário Franzen de, 116 Llewellyn, Karl, 4 Lobel, Jules, 49

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Locke, John, 167 Loewenstein, Karl, 140, 241 Lopes, Maurício Antonio Ribeiro, 62 Louisell, 36 Lowenfeld, Andreas F., 28 Lyra Filho, Roberto, 271 Machado, João Batista, 11, 38, 45 Maciel, Adhemar Ferreira, 250 Madison, James, 161, 162 Magalhães, Maria da Conceição Ferreira, 134 Marcuse, Herbert, 268 Marques, Frederico, 106 Martines, Temistocle, 93 Martins, Ives Gandra da Silva, 182, 183, 202 Martins, Maria Helena Pires, 275 Marx, Karl, 267, 269 Maximiliano, Carlos, 24, 51, 56, 72, 103, 115, 118, 121, 122, 131, 132, 137, 143, 170, 171, 176 Maystadt, Philippe, 37 Meese, Edwin, 114 Mello, Celso Albuquerque, 15, 17, 18 Mello, Celso Antônio Bandeira de, 110, 149, 220, 230, 231, 232, 238 Mello, Celso D. de Albuquerque, 21, 22, 29 Mello, Oswaldo Aranha Bandeira de, 103, 158, 171 Mendes, GilmarFerreira, 87, 164, 180, 182, 183, 219, 221, 222, 223, 227 Miaille, Michel, 5, 266, 269 Miranda, Jorge, 21, 58, 59, 60, 66, 68, 70, 77, 93, 94, 104, 105, 107, 119, 147, 148, 150, 183, 184, 185, 235 Modugno, Franco, 93 Montesquieu, 167 Moreira Neto, Diogo de Figueiredo, 62, 108, 148, 195, 200 Moreira, José Carlos Barbosa, 44, 71, 108, 164, 169, 207, 255, 259, 278 Moreira, Vital, 151 Morelli, 16 Mortati, C., 75, 94 Müller, F., 4 Murphy, 134 Neves, Marcelo, 73, 170, 171 Novelli, Flávio Bauer, 236, 238 Nowak, 167, 172, 173, 174, 209 Nunes, Castro, 74, 111, 170 Nyboyet, 13 Pereira, Caio Mário da Silva, 55, 68 Pereira, Regis Fichtner, 127 Pertence, José Paulo Sepúlveda, 143 Phillip, Loïc, 175 Pierandrei, Franco, 84, 221 Pietro, Maria Sylvia Zanella di, 220 Pillet, 13 Poletti, Ronaldo, 73, 164, 170, 176 Pontes de Miranda, 11, 60, 72, 86, 110, 148 Pontier, 175 Popp, Carlyle, 52 Pound, 215 Powell, H. Jefferson, 115 Pugh, 35 Quintana, Linares, 121, 128, 130, 131, 135, 157, 160, 215, 218, 223, 240

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Ramos, Rui Manuel Gens de Moura, 47 Reagan, Ronald, 114 Real, Alberto Ramón, 104, 142, 144 Reale, Miguel, 109, 141, 144, 148, 188, 236 Redenti, E., 93 Rehnquist, William H., 115, 213 Rezek, José Francisco, 21, 22, 25 Ricci, 175 Richards, 275 Ricoeur, Paul, 268 Ritterspach, 170 Rocha, Carmen Lúcia Antunes, 62 Rodrigues, Silvio, 54 Rotunda, 167, 172, 173, 174, 209 Roubier, Paul, 51 Ruffia, Biscaretti di, 75, 168, 243 Ruggiero, De, 113 Russo, Eduardo A., 5 Russomano, Rosah, 110 Sampaio, Nelson de Souza, 65 Santana, Jair Eduardo, 62 Santi Romano, 188 Savigny, 13, 118, 125, 265 Schachter, 35 Schlaich, Klaus, 183 Schmitt, Carl, 59, 63, 82, 170 Schneider, Peter, 113 Schwartz, Bernard, 209 Segado, Francisco Fernandez, 76, 176, 182 Seidman, 160, 209, 213 Siches, Luís Recaséns, 103, 116, 148, 238 Sieyès, Emmanuel Joseph, 110, 157 Silva, José Afonso da, 60, 66, 80, 110, 119, 157, 236, 238, 239, 249 Silva, Agustinho Fernandes Dias da, 13, 20, 23, 45 Silveira, Alípio da, 106, 115, 138, 142 Singer, Joseph William, 268 Smend, 4, 82, 170 Smit, 35 Smith, Edward Conrad, 223 Soares, Humberto Ribeiro, 71 Souza, Marcelo Rebelo de, 92 Stern, Klaus, 125, 130, 182, 187, 189, 192, 193, 195 Stevens, John Paul, 114 Stone, 160, 209, 213 Story, 13, 45, 121, 138 Strenger, Irineu, 13, 45 Sunstein, 160, 168, 209, 213, 273, 277 Tácito, Caio, 227 Tait, 36 Teixeira, J. H. Meirelles, 104 Temer, Michel, 167, 239 Tenório, Oscar, 13, 14, 24, 34, 45, 90, 139 Tiburcio, Carmen, 36 Tornaghi, Hélio, 249 Torres, Ricardo Lobo, 104, 105, 106, 127, 181, 203 Tribe, Laurence, 2, 115, 173, 175 Triepel, Heinrich, 15

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Tushnet, 160, 209, 213, 270 Usera,Raúl Canosa, 104,105,107,112,114,125,127,130,135,151,195 Valladão, Haroldo, 10, 13, 15, 23, 34, 45, 46 Vanossi, Jorge Reinaldo, 157 Vedel, Georges, 175 Velloso, Carlos Mário da Silva, 73, 164, 249 Verdú, Pablo Lucas, 125 Viehweg, Theodor, 5 Villalón, Pedro Cruz, 37 Virga, Pietro, 93 Warat, Luís Alberto, 5, 267 Wechsler, Herbert, 272, 273, 274 Werke, 267 Wilson, Woodrow, 144 Wood, Gordon S., 110 Wright, Charles Alan, 36 Wróblewski, Jerzy, 105 Young, 167, 172, 173, 174, 209 Zamudio, Hector Fix, 116 ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO Abuso de poder legislativo, 226 Ação declaratória de constitucionalidade, 179 Ação direta de inconstitucionalidade descabimento em face de Constituição revogada, 83 descabimento quando a lei é anterior à Constituição, 73 e s. descabimento quando a lei foi revogada, 97 finalidade, 95 medida cautelar, 178, 179 Analogia constitucional, 139, 140, 141 Antinomias jurídicas, 9 Conflito de normas, 9 e s. no espaço, 13 e s. no tempo, 51 e s. Conflito entre direito internacional e Constituição, 20 e s. Constituição aplicação imediata e aplicação retroativa, 87, 88, 89, 90 classificação ontológica, 240 e norma estrangeira, 33 e s. e tratado internacional, 15 e s. normativa, 240 nova e ordem constitucional anterior, 57 e s. nova e ordem infraconstitucional anterior, 67 e s. novação, 70 princípio da continuidade da ordem jurídica, 68 recepção, 68, 69 revogação ou invalidação, 72 e s. objeto, 243, 244 rigidez constitucional, 158 semântica, 241 supremacia da, 57, 58, 156 Controle de constitucionalidade de lei estrangeira em face da Constituição brasileira, 44 e s. de lei estrangeira em face da Constituição de origem, 35 e s. descumprimento, pelo Executivo, de lei inconstitucional, 176, 177 efeito repristinatório da decisão, 90, 91, 92, 93, 94 incidental, 169

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origem, 159, 160, 161, 162, 163, 171, 172 principal, 170 Costume constitucional, 141, 142, 143 constitucionalismo inglês, 141 Desconstitucionalização das normas constitucionais, 59, 60, 61, 62 Desvio de poder, 225 Desvio de poder legislativo, 226, 227 Devido processo legal, 209 e s. Direito adquirido, 52 Direito alternativo, 270, 271, 272 Direito constitucional internacional, 13 e s. Direito constitucional intertemporal, 51 e s. novação, 70 recepção, 68, 69 recepção material, 58, 59, 60 Direito de ação, 245 Direito e ideologia, 266 Direito estrangeiro aplicação por tribunais nacionais, 34, 35, 38, 39, 40 Direito internacional privado, 13, 14, 15 Direito subjetivo, 244, 245 Dualismo, 15 Emenda constitucional limitações materiais, 65, 66, 67 inconstitucionalidade de seu processamento, 65, 66 procedimento, 65 Inconstitucionalidade de normas constitucionais, 20, 21, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 205 de tratado internacional, 21 a 33 e efeito repristinatório, 90, 91, 92, 93, 94 formal, 83, 84 em face da Constituição anterior, 83, 84, 85 em face da Constituição em vigor, 83, 84, 85 formal superveniente, 83 e s. material, 83 por omissão, 246, 247, 248 Interpretação, 103 e s. hermenêutica jurídica, 103 Lei de Introdução ao Código Civil, 105 métodos ou elementos clássicos, 4, 124 e s. originalismo, 112, 113, 114, 115 papel do intérprete, 265 e s. subjetivismo e objetivismo, 112, 113, 114, 115 Interpretação constitucional, 3, 4, 5, 103 e s. administrativa, 117 analogia, 139, 140, 141 aplicação direta da norma constitucional, 106 aplicação indireta, pelo controle de constitucionalidade, 106 autêntica, 118, 119 construção, 103, 104 costume constitucional, 141, 142, 143 declarativa, restritiva e extensiva, 120 e s. doutrinária, 118 evolutiva, 143, 144, 145, 146 gramatical, literal ou semântica, 126 e s. histórica, 131 e s.

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judicial, 117, 118 autolimitação do Judiciário, 170 função jurisdicional, 168, 169 legislativa, 116, 117 método hermenêutico clássico, 4 objeto, 106 objetividade e neutralidade, 114, 115, 272 e s. sistemática, 134, 135, 136 teleológica, 136, 137, 138, 139 Mandado de injunção, 248 e s. objeto, 249, 250, 251 legitimação passiva, 250 Método hermenêutico clássico, 4 Método tópico aplicado ao direito, 4, 5 Monismo, 15, 16, 23, 24 Normas constitucionais de eficácia contida, 238, 239 de eficácia limitada, 238, 239 de eficácia plena, 238, 239 definidoras de direitos, 243, 244 de organização, 109, 243, 244 desconstitucionalização das normas constitucionais, 59, 60, 61, 62 peculiaridades, 107 e s. caráter político, 111, 112 conteúdo específico, 108, 109, 110 natureza da linguagem, 107, 108 superioridade hierárquica, 107 programáticas, 109, 243, 244 Norma estrangeira e Constituição, 33 e s. Norma estrangeira e Constituição brasileira, 44 e s. Norma estrangeira e Constituição de origem, 35 e s. Ordem pública interna, 45, 46 internacional, 46, 47, 48, 49 Poder constituinte, 110, 111 derivado, 55 originário, 55 Princípios, 147 e s. finalidades dos, 152, 153 princípio da continuidade da ordem jurídica, 68 Princípios constitucionais, 147 a 156 fundamentais, 151, 153 gerais, 151, 154 setoriais ou especiais, 151, 152, 154, 155, 156 Princípios de interpretação especificamente constitucional, 147 e s. princípio da efetividade, 235 e s. princípio da interpretação conforme a Constituição, 180 e s. princípio da presunção de constitucionalidade, 167 e s. princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, 209 e s. princípio da supremacia da Constituição, 67, 156 e s. princípio da unidade da Constituição, 188 e s. Retroatividade da lei, 51 a 56 Separação dos Poderes, 167, 168, 169 Sobredireito, 11 Teoria crítica do direito, 5, 266, 267, 268, 269 Tópica, 4, 5 Tratado internacional e Constituição, 15 e s.

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