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psicanálise e universidade - revista do núcleo de pesquisa da pós-graduação em psicanálise da PUC/SP. 1° Encontro de pesquisa acadêmica em psicanálise, 1991, p 9-32.
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PESQUISA DO TIPO TEÓRICO
Luiz Alfredo Garcia-Roza
Para quem não me conhece, sou Luís Cláudio Figueiredo. Queria, para
compor a mesa, solicitar a presença do professor Luiz Alfredo Garcia-Roza, que
será o nosso primeiro conferencista, e do professor Renato Mezan.
Gostaria de descrever brevemente o funcionamento do nosso programa.
Estamos organizados em quatro núcleos de pesquisa, que contam com professo-
res, alunos e membros associados em variadas atividades de aula, seminários, de-
bates, elaborações coletivas de textos etc. Há um núcleo de estudas da família e
da comunidade, um núcleo de estudos e pesquisas das práticas da psicologia clí-
nica, um núcleo de estudos e pesquisa da subjetividade, e um núcleo de estudos e
pesquisas em psicanálise.
De fato, a psicanálise está presente em todos os quatro núcleos; em particu-
lar, o núcleo de estudos e pesquisas da subjetividade, voltado para a investigação
dos processos de subjetivação, conta com uma forte presença de psicanalistas,
numa saudável convivência com outros referenciais teóricos e com outras disci-
plinas como a Filosofia, a História, os Estudos Literários etc. Foi inclusive para
este núcleo que se dirigiu até aqui a colaboração de alguns psicanalistas, como
Joel Birman, Jurandir Freire Costa, Benilton Bezerra, Carlos Augusto Nicéas,
que têm oferecido, na forma de seminários e ciclos de palestras, a sua contri-
buição. Digo isso apenas para reafirmar o óbvio: a incidência inevitável e indis-
pensável do pensamento psicanalítico em qualquer questão referente ao psi-
quismo, e ainda mais amplamente em qualquer questão referente às formas de
vida e da Cultura Contemporânea.
Daí a necessidade de, além dos núcleos que se organizaram em torno a de-
terminadas problemáticas, termos um núcleo que se defina a partir da própria
psicanálise enquanto campo do saber, com seus métodos e sua história própria,
enquanto método e técnicas de investigação terapêutica, e enquanto referencial
para a compreensão da vida social em suas múltiplas manifestações. O núcleo de
estudo em psicanálise é coordenado pela Maria Emília Lino da Silva, e conta com
a participação dos professores efetivos, os doutores Renato Mezan, Gilberto Sa-
fra e Fabio Herrmann. Neste semestre colaborou, na condição de membro asso-
ciado ao núcleo, o Prof. Sr. Luís Roberto Monzani, e já podemos anunciar a pró-
xima integração ao nosso corpo docente do Dr. Manoel Tosta Berlinck.
Coube a este núcleo a iniciativa de convocar e organizar este encontro.
Nossos objetivos são modestos: não pensamos na realização de um congres-
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so, não temos ainda a organização e o dinheiro suficientes. Aliás, cabe assinalar
que este encontro não teve apoio financeiro de nenhuma agência. Temos de
fato um projeto aprovado na FINEP, mas os recursos não foram liberados por
falta de verbas. O nosso objetivo é, enfim, propiciar encontros entre instituições
e pesquisadores. Inclusive para iniciar o mapeamento da área, para termos
uma idéia de como ela está se desenvolvendo, que problemas de pesquisa estão
emergindo, e que problemas institucionais estão sendo enfrentados. Trata-se de
saber como ela poderia adquirir uma certa organicidade que a ajude a ocupar,
no mundo legal das agências normatizadoras e de fomento à pesquisa, um lugar
compatível com o que já ocupa no mundo real, das práticas, dos discursos, das
publicações etc. É neste sentido que elaboramos uma espécie de cadastramento
dos pesquisadores em psicanálise, que nos facilitará a realização de outros encon-
tros. Este material será distribuído no período da tarde.
Dito isto, cabe-me agora a agradável incumbência de passar a palavra ao
Dr. Luiz Alfredo Garcia-Roza. Para mim, que vinte e cinco anos atrás tive o pri-
vilégio de ser seu aluno, e que desde então acompanho sua produção teórica, o
prazer de voltar a ouvi-lo é muito grande. Eu, na verdade não pertenço ao Nú-
cleo de Estudos em Psicanálise, mas aos Estudos da Subjetividade. Nessa medida,
não deveria me intrometer na programação alheia; no entanto, confesso, agora,
que estava disposto a fazer valer meu cargo de coordenador para conseguir que
o 1° Encontro Nacional de Pesquisa em Psicanálise fosse aberto pela palavra de Luiz
Alfredo. É claro que não foi necessário o peso da autoridade, já que foi consenso
do núcleo organizador, que cabia a ele esta tarefa. Isso por duas razões: a sua
própria trajetória intelectual e a sua obra atestam uma profunda vinculação com
a vida universitária e com o campo psicanalítico. Em acréscimo, a função que
exerce, na coordenação do mestrado em teoria psicanalítica da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, reforça essa identidade. Na verdade, o curso dirigido
por Luiz Alfredo vive de maneira particularmente aguda as dificuldades institu-
cionais que emergem da complexa união do psicanalítico com o acadêmico. Esta
união é frequentemente contestada tanto pelos pretensos representantes do sa-
ber acadêmico, e principalmente, pelos responsáveis pela avaliação e libera-
ção de recursos como, de outro lado, pelos supostos donos do exercício da
formação e da transmissão da psicanálise. Ora, é disso que de uma forma ou de
outra este nosso encontro trata; por isso o convite ao Luiz Alfredo é para nós
uma boa oportunidade de intervenção política e de solidariedade. Com ele a palavra.
Luiz Alfredo Garcia-Roza: Inicialmente, gostaria de cumprimentar os
promotores e os organizadores deste Encontro pela aguda sintonia que tiveram
com o meio acadêmico, com a comunidade universitária em geral, tanto no que
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se refere ao tema proposto quanto na escolha do momento adequado para a sua
realização. Não posso deixar de manifestar minha satisfação de poder dividir
com o professor Renato Mezan a abertura deste Encontro. O tema proposto é o
tema geral: Problemas teóricos da psicanálise: questões práticas. Vejo isto como fazen-
do parte de um tema mais amplo: a pesquisa acadêmica em psicanálise. Pelas pa-
lavras do Luís Cláudio, vejo que as dificuldades a que ele se referiu, que atingem
em particular o mestrado em teoria psicanalítica da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, são dificuldades que atingem a todo trabalho de pesquisa acadêmica
no Brasil, e de forma talvez mais aguda, a pesquisa em psicanálise. Certos pro-
blemas práticos relativos à pesquisa acadêmica em psicanálise são comuns a to-
dos nós, que vivemos num país de terceiro mundo e que nos propomos a fazer
pesquisa. Esses problemas são a eterna falta de verba, falta de suporte material,
uma universidade voltada quase exclusivamente para o ensino. Isso, parece-me,
não é exclusivo de quem faz pesquisa em psicanálise, mas se aplica a quem faz
pesquisa em geral.
Outros problemas dizem respeito à própria inserção da psicanálise na uni-
versidade, e aí é um problema que nos fala mais de perto. A pesquisa e o ensino
são feitos em institutos de psicologia, escolas de comunicação, faculdades de filo-
sofia, faculdades de letras, nos cursos de filosofia em geral, e a questão que se co-
loca é se a psicanálise não correria o risco de perder a sua identidade, de perder
a sua especificidade, pelo apossamento ou pela apropriação por parte desses ou-
tros saberes. E vejam, isso é uma situação sem saída. Porque nós não temos um
local próprio na universidade, de certo modo somos acolhidos por outros cam-
pos, por outros saberes, e dentre eles, vários se dizendo proprietários da psi-
canálise. É muito comum, por exemplo, nos institutos de psicologia, ouvirmos
uma pergunta do tipo: mas qual é o problema? Se a psicanálise é uma psicologia,
se a psicanálise é uma teoria psicológica, não há porque se pretender nada de di-
ferente para ela. E isso que acontece com a psicologia pode acontecer com outros
saberes também.
O terceiro problema é o da existência de uma rubrica específica para a
psicanálise. As agências de fomento, as associações de pesquisa, enfim, as classifi-
cações das instituições governamentais não têm uma rubrica na qual um pesqui-
sador de psicanálise possa se inserir. Todos vocês já se depararam com o impas-
se: sob que rubrica inserir a pesquisa? Em psicologia o quê? Em psicologia clíni-
ca? Em fundamentos epistemológicos sabe-se lá de quê? Enfim, qual é a rubrica
que vai determinar a natureza do nosso trabalho, e evidentemente, do nosso pe-
dido? No caminho para cá, soube que apenas um representante de agência de
fomento estaria presente; não sei se isso permanece. Mas um encontro destes
deveria contar com a presença de um representante do CNPq, da CAPES etc.
A não-presença já é sintomática de que a ausência de rubrica justifica a ausência
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do representante. É como mandar um representante para um Encontro que não
tem rubrica em lugar nenhum.
Finalmente, temos o próprio estatuto do pesquisador acadêmico em psi-
canálise: por exemplo, no caso de pertencer ao Instituto de Psicologia, ele é criti-
cado pelos psicólogos por defender a irredutibilidade do discurso psicanalítico, a
especificidade do discurso psicanalítico. Isto é, a psicanálise não é psicologia. E é
criticada pelos psicanalistas por pretender submeter o discurso psicanalítico às
regras do discurso universitário. De modo que a nossa situação de maneira ne-
nhuma é uma situação cômoda. Do ponto de vista institucional, do ponto de vista
da inserção acadêmica, do ponto de vista do reconhecimento por parte das agên-
cias de incentivo à pesquisa; em suma, faz-se pesquisa em psicanálise “apesar
de”. Eu gostaria, antes de começar propriamente a minha exposição, de cum-
primentar os presentes por essa coragem.
Apesar de todas essas questões práticas, de todos esses problemas que dizem
respeito à prática da pesquisa, acredito que a questão de maior intensidade diga
respeito a um problema teórico: o de se é possível uma pesquisa acadêmica em
psicanálise. Para muitos, essa proposta incorre numa petição de princípio. Sendo
assim, talvez seja melhor iniciarmos nossa discussão, não como afirmação, mas
como pergunta. É possível a pesquisa acadêmica em psicanálise? A pergunta po-
deria ser considerada no mínimo impertinente, pelo simples fato de que se faz
pesquisa acadêmica em psicanálise, e este encontro aqui é bastante expressivo
disso. E poderiam mesmo dizer que ela é feita em quantidade muito maior do
que nas instituições psicanalíticas; e, na opinião de alguns, não só em maior
quantidade como em melhor qualidade. Mas com isso não estamos respondendo
à pergunta e muito menos respondendo academicamente. A pergunta é perti-
nente, apesar do fato.
Com relação à pesquisa acadêmica em psicanálise, poderemos arguir que,
se ela é acadêmica, não é psicanalítica; poderia ser uma pesquisa sobre psicaná-
lise mas não uma pesquisa em psicanálise. O verdadeiro laboratório de pesquisa é
a prática clínica fundada na transferência, e esta se passa no consultório e não
nos campi universitários. O argumento ganharia mais força no caso de pesquisa-
dores não-psicanalistas, já que não se exige do professor universitário que seja
psicanalista ou que tenha passado pela experiência clínica. E, nesse caso, o seu
discurso universitário não poderia passar pelas exigências éticas desta experiên-
cia fundadora que é a experiência clínica.
O pesquisador universitário poderia retorquir que esse ponto de vista é ex-
pressivo de um argumento ad hominem, cujo objetivo seria manter o discurso psi-
canalítico ao abrigo de qualquer crítica externa. Pois, enquanto discurso psica-
nalítico, ele se insere na ordem do discurso, e portanto é, passível de crítica como
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qualquer outro discurso, não havendo nenhuma razão para colocá-lo ao abrigo
dos demais.
É possível que essa querela resulte em parte do fato de que pesquisadores
universitários e psicanalistas não estejam se referindo à mesma coisa ao falarem
em discurso psicanalítico. Então, podemos aplicar o termo discurso psicanalítico
tanto ao que se passa na prática clínica quanto ao conjunto dos textos produzidos
por Freud? A teoria psicanalítica compreendida pelo conjunto dos textos metap-
sicológicos de Freud pode ser considerada um discurso psicanalítico? Ou esse
termo só pode ser aplicado de forma adequada ao conjunto dos enunciados e
enunciações presentes na experiência clínica?
Submeter a teoria psicanalítica a uma análise crítica é o mesmo que subme-
ter o discurso psicanalítico a uma análise crítica? Na minha opinião, e isto está
colocado para discussão, apenas o conjunto dos enunciados e suas enunciações
presentes na experiência clínica pode legitimamente ser chamada de discurso
psicanalítico. Nesse caso, qual o estatuto da teoria psicanalítica? Seria ela, como
muitos pensam, uma mera nomeação dessa prática clínica? Seria uma formali-
zação da experiência clínica, ou teremos que admitir, ao contrário, que a teoria é
constituinte dessa prática, que somente nela e por ela a prática pode ser
dita psicanalítica?
Parece evidente que o fato clínico, por si só, não é suficiente para conferir
ao discurso que o atravessa o estatuto de discurso psicanalítico. Uma prática clí-
nica psicológica, por exemplo, não é psicanalítica. Na verdade, a própria nature-
za de prática clínica é derivada de uma teoria que a constitui e a orienta. Essa
teoria pode ser mais ou menos consistente, pode ser mais ou menos formalizada,
mas ela não pode ser inexistente. É a teoria enquanto formação discursiva, pos-
suindo regras de constituição de seu objeto, possuindo modalidade de enunciação
etc., que faz da prática clínica uma prática específica e irredutível.
Então, voltemos à nossa questão. Qual a natureza da pesquisa acadêmica
em psicanálise? A universidade costuma distinguir, na pesquisa, a variedade ex-
perimental e a variedade teórica. Poderíamos conceber a pesquisa em psicanálise
sob ambos os aspectos? É possível uma pesquisa acadêmica em psicanálise que
seja experimental, empírica? Ou toda pesquisa acadêmica em psicanálise tem
que ser teórica? Uma possibilidade seria conceber a pesquisa acadêmica em psi-
canálise como sendo empírica. Neste caso seria uma pesquisa experimental cujo
laboratório seria a clínica. Se a verdadeira pesquisa em psicanálise é a que nos
permite constituir um saber sobre o inconsciente, e se isso só é possível na expe-
riência clínica, então a pesquisa acadêmica em psicanálise consistiria na repro-
dução dessa experiência clínica. Este seria inclusive a possibilidade de se manter
o discurso psicanalítico como objeto dessa pesquisa. Mas, nesse caso, a pesquisa
consistiria numa simples transposição da clínica privada para a universidade;
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como se isso fosse possível! E ainda que fosse, restaria a questão de se essa pes-
quisa seria uma pesquisa acadêmica em psicanálise.
Parece-me, portanto, que a pesquisa acadêmica em psicanálise não pode
consistir numa pesquisa empírica (esta seria específica da prática clínica; quer di-
zer, pesquisa empírica aí é entendida como pesquisa experimental: esta seria a
característica da prática clínica), mas ela teria que ser uma pesquisa teórica. A
proposta dessa pesquisa teórica seria submeter a teoria psicanalítica a uma análi-
se crítica, com a finalidade de verificar sua lógica interna, a coesão estrutural dos
seus conceitos, e as condições de sua possibilidade. Fazer pesquisa acadêmica em
psicanálise seria, neste caso, tomar a teoria psicanalítica da mesma forma que se
tomaria uma teoria filosófica ou uma teoria científica. Freud, por exemplo, esta-
ria sendo pensado ou considerado como um pensador cujo discurso teria que se
submeter às exigências platônicas do discurso auto-legitimado, exigências que
são as mesmas feitas ao filósofo e ao cientista. Creio que isso é o que comumente
se faz na universidade.
Mas se a pesquisa acadêmica em psicanálise deve ser uma pesquisa acadê-
mica teórica, descartando-se aqui o fato ou a possibilidade de se repetir na uni-
versidade a experiência clínica, permanece ainda a questão: seria esse o único
objetivo da pesquisa teórica? Quer dizer, toda pesquisa teórica consistiria numa
análise crítica dos conceitos, das leis, dos princípios, dos fundamentos, das com-
dições de possibilidade, dos aspectos formais dessa teoria? E ainda que admita-
mos que isso seja absolutamente necessário, seria esse o aspecto mais importante
da pesquisa em psicanálise?
Queria enfatizar aqui o termo pesquisa. Faço questão de repetir: trata-se de
discutir pesquisa em psicanálise. Não me parece adequado identificar o trabalho
do pesquisador com o trabalho do epistemólogo, embora existam alguns pontos
em comum. Não é da mesma maneira que o pesquisador e o epistemólogo se
voltam para a teoria. Enquanto o epistemólogo executa um trabalho purificador
e mantém para com a teoria uma atitude de reverência, o pesquisador se preten-
de criador. Ele deve se permitir uma certa irreverência que possibilite o surgi-
mento do novo. Vejam que os epistemólogos não se sintam ofendidos com isso.
Não se trata aqui nem de se estabelecer uma hierarquia, nem um juízo de valor,
mas de procurar caracterizar qual é a postura do epistemólogo e qual é a postura
do pesquisador.
O epistemólogo, indiscutivelmente, tem uma função sacerdotal, uma
função purificadora, uma função de eliminar da teoria as aderências que a de-
gradam. Enquanto o pesquisador não; ele está à procura do novo, está à procura
de um problema que é fundamental. A diferença fundamental entre o epistemó-
logo e o pesquisador, a meu ver, está em que enquanto o epistemólogo procede a
uma assepsia da teoria, o pesquisador mantém um pacto com a bruxa, pacto esse
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que lhe permite ultrapassar os limites do estabelecido. E estou pensando aqui em
Freud e sua bruxa metapsicologia, de modo que não se pode exigir assepsia da
pesquisa. Enquanto o pesquisador habita a cozinha, o epistemólogo frequenta a
sala de visitas. Dizer que o pesquisador habita a cozinha da bruxa e o epistemó-
logo frequenta a sala de visitas pode não ser conveniente para o epistemólogo.
Mas é nesse sentido. O pesquisador é aquele que vai mobilizar todos os recursos
do imaginário, vai mobilizar a bruxa contra a pureza dos santos, e é exatamente
essa possibilidade de mobilizar a bruxa, de frequentar a bruxa, de fazer esse pac-
to com a bruxa, que faz como que o pesquisador possa ser um criador e não um
mero repetidor monótono.
Não estou querendo dizer com isso que se deva desprezar o rigor formal da
teoria. Mas sim que, se fizermos dele nosso único objetivo enquanto pesquisa-
dores, correremos o risco da esterilidade, da transformação do trabalho teóri-
co, do trabalho de pesquisa, em algo abstrato e vazio. Sabemos que a justifica-
ção lógica de uma teoria implica o retorno a seus conceitos e leis fundamentais;
e esse retorno não pode ser concebido como mero suplemento histórico que,
acrescentado ao discurso original, venha funcionar como ornamento, duplican-
do este discurso original. No caso particular da psicanálise, por exemplo, o re-
torno a Freud, através da releitura dos seus textos, modifica efetivamente es-
sa teoria, ao invés de ser uma mera reduplicação, um mero suplemento histórico
à teoria.
Seria então a universidade o lugar dessa releitura da teoria? Seria esse o
lugar que nos cabe: relermos, procedermos a uma releitura da teoria? E antes de
tentarmos uma resposta, gostaria de fazer uma distinção entre o comentário e a re-
leitura. Boa parte do que fazemos é trabalho de comentarista. Sobre o comentá-
rio, Michel Foucault, em sua aula inaugural no Collège de France, nos disse que
se trata de um dos procedimentos de controle do discurso, procedimento interno
ao discurso, já que é posto em prática pelo próprio discurso, e cujo objetivo seria
dominar uma dimensão não teórica do discurso, que é a dimensão do acaso e do
acontecimento. Quer dizer, nada mais temível para o teórico do que o acaso e o
acontecimento. Então, uma das soluções do comentário seria conjurar esse acaso
e esse acontecimento, proteger a teoria da ameaça do acaso e do acontecimento.
O comentário pretende dizer outra coisa além do próprio texto, com a condição
de que este “além” seja a expressão do próprio texto. Na verdade, o que o co-
mentário pretende é passar do abstrato do texto ao concreto do discurso do co-
mentário. O que o discurso do comentário pretende é realizar o texto. Seu propó-
sito de comentário não é dizer o novo, mas provocar o retorno do texto sob a
forma de discurso-comentário.
Claro que nesse retorno não se trata de uma simples reprodução. Quer di-
zer, o comentarista não pretende pura e simplesmente reproduzir xerografica-
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mente um texto; ele pretende dizer algo diferente do que o texto original diz,
mas com a condição de que o que vai dizer seja expressão do próprio texto.
Na verdade, o discurso-comentário se pretende como um discurso epifâni-
co; pretende produzir a revelação de algo oculto no texto, algo que o mestre não
disse, e que o comentador vai dizer, com a condição de que diga aquilo que o
mestre diria e não algo novo em relação ao que o mestre disse.
Embora esse tipo de discurso esteja presente de forma marcante na univer-
sidade, não creio que possa ser considerado como expressivo daquilo que se pre-
tende sob o nome de “pesquisa acadêmica em psicanálise”. Volto a dizer: não se trata aqui
de repudiar o discurso-comentário, de desmerecer o trabalho do co-
mentarista, mas simplesmente de caracterizar o que seria o trabalho de um pes-
quisador, à diferença do trabalho do comentarista, embora eu reconheça que a
grande maioria dos trabalhos produzidos na universidade sob rubrica de “pes-
quisa em psicanálise” seja de comentário.
E a releitura? A releitura, embora guarda alguma semelhança com o co-
mentário, apresenta uma característica distintiva fundamental: é o fato de que
ela não teme o novo. Uma releitura não é um recitativo textual do original. Uma
releitura, ou um trabalho de releitura, não implica em se proceder ao redobra-
mento especular do texto. Reler um texto não é produzir monotonamente o
seu conteúdo original, o seu conteúdo literal, mas produzir a partir dele um ou-
tro discurso. A releitura, contrariamente ao comentário, se propõe não como re-
veladora, mas como transformadora. E eu diria que joga sobretudo com a textuali-
dade do texto, e não com a mesmidade do texto.
O termo textualidade está sendo empregado aqui para designar essa potên-
cia do significante enquanto gerador de múltiplos sentidos. E se falo potência do
significante como gerador de múltiplos sentidos, estão falando na própria potên-
cia do discurso enquanto gerador de múltiplos sentidos. Trata-se de algo que está
presente em diferentes autores, sem que isso implique em qualquer parentesco
entre eles. O que pretendo com isso é assinalar o fato de que a idéia de textuali-
dade diz respeito ao apelo que o texto faz a novas tentativas de escritura, um
apelo a um pluralismo irredutível.
Ocorre, porém, que se formos jogar com essa idéia de textualidade, com es-
se apelo ao pluralismo do texto, se formos explorar essa textualidade até o limite
possível, corremos o risco de destruir a especificidade do texto, e com isso, a pró-
pria especificidade da nossa pesquisa. Porque, se levarmos a textualidade ao seu
limite, vamos inevitavelmente cair na opinião, que é exatamente aquilo que o
discurso universitário pretende superar. O discurso universitário é um discurso
acadêmico no seu próprio nascimento, eu diria; até no seu nascimento platônico.
ele pretende ser uma superação da opinião, da doxa. E, portanto, levar à textua-
lidade a potência desse significante, às suas múltiplas possibilidades de sentido,
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seria exatamente o retorno à doxa, o que descaracterizaria a própria pesquisa
enquanto pesquisa acadêmica, e talvez até enquanto pesquisa acadêmica em psi-
canálise. Portanto, levada ao extremo, a idéia de textualidade nos conduz àquilo
que Derrida chamou de “desconstrução do texto”. Enquanto arma crítica, é posi-
tiva; levada ao extremo, seria negativa. Ficamos então numa situação difícil.
Como nos beneficiarmos, numa releitura, dessa textualidade do texto, dessa
potência significante do discurso, dessa possibilidade de emergência do novo,
dessa potência criadora implicada no texto, sem cairmos na doxa, sem sermos
conduzidos a esse limite do opinativo a que eu me referia? Em suma, como nos
beneficiarmos da potência criativa do significante, sem diluirmos o discurso na
multiplicidade da doxa ou sem eliminarmos essa potência numa ortodoxia? A
questão que se está colocando então é a de se é possível conciliar a exploração da
textualidade do texto, dessa potência significante, com o discurso teórico concei-
tual. Quer dizer, não haveria uma contradição nessa proposta? De um lado um
discurso conceitual que se pretende unívoco, e de outro lado uma proposta de
exploração da potência do significante do texto que se pretende multívoca?
Essa questão é particularmente importante no que diz respeito à psicanáli-
se. Porque, enquanto prática clínica, o que a psicanálise explora é exatamente
essa potência significante. Quer dizer, o que a psicanálise explora na prática clí-
nica é essa possibilidade do significante dar lugar a múltiplos sentidos, e é essa
potência significante de gerar múltiplos sentidos que constitui, a meu ver, a pró-
pria potência da clínica psicanalítica. Então, enquanto prática clínica, enquanto
algo que se passa na horizontalidade do acontecimento, a teoria psicanalítica se
coloca exatamente nesse lugar da textualidade e na exploração dessa textualida-
de.
Mas a psicanálise se constitui também como uma teoria, teoria essa que in-
forma essa prática. E dizer que a teoria informa a prática significa dizer que ela
não é um mero enfeite complementar dessa prática, mas que ela constitui essa
prática enquanto prática. Sem a teoria, a psicanálise fica reduzida a um empiris-
mo cego. E esta teoria é uma teoria conceitual. Como resolver esse impasse, se é
que realmente se trata de um impasse? A pergunta que faço, então é se a noção
de releitura atenderia a essa exigência de rigor teórico, sem sacrificar a potência
significante do texto.
Algumas décadas atrás, Jacques Lacan propôs o retorno a Freud através de
uma releitura de seus textos. A proposta guardava de início alguma semelhança
com a dos epistemólogos. Tratava-se, naquele momento, em parte de uma leitu-
ra purificadora, cujo objetivo era retirar a psicanálise dos desvios impostos pelo
culturalismo, pela fenomenologia etc., que na opinião de Lacan deturpavam o
projeto freudiano. Havia, portanto, uma intenção ortopédica em Lacan, mas esse
era o objetivo inicial da proposta lacaniana e não o objetivo final. Nesse retorno
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a Freud, não se tratava de estabelecer uma ortodoxia religiosa, que libertasse o
texto freudiano das impurezas decorrentes desses outros saberes ou dessas outras
leituras, e que, a partir de então, passasse a repetir monotonamente o texto
freudiano. Tratava-se, antes de tudo, de ler o texto de Freud como quem escuta a
fala do paciente, não colocando para ele os nossos problemas, mas procurando
identificar o seu problema. Repito: qual era a proposta da releitura que Lacan faz
no texto de Freud? Não era, através dessa releitura, desse retorno ao texto de
Freud, impor a Freud as suas próprias perguntas, mas identificar as perguntas
fundamentais de Freud. De certa maneira, ler era, nesse caso, “escutar” o que
Freud estava nos dizendo. Quer dizer algo que no registro da análise de texto,
no registro teórico, teria uma correspondência com a prática clínica, uma seme-
lhança com a prática clínica. E se o retorno a Freud anunciado por Lacan teve
como objetivo inicial recuperar o rigor conceitual e a coesão interna dos concei-
tos elaborados pelo fundador da psicanálise, isso não quer dizer que temos que
ser lacanianos para efetuarmos uma releitura de Freud tal como Lacan empre-
endeu. Esse mesmo objetivo é perseguido, por exemplo, por um discípulo de La-
can, Jacques-Alain Miller, na Universidade de Paris VIII, e por um autor decla-
radamente não-lacaniano, Jean Laplanche, na Universidade de Paris VII.
Portanto, não se trata de ser ou não ser lacaniano para que um trabalho de
releitura possa ser feito, mas apenas de aceitarmos essa proposta de releitura
dos textos freudianos, a fim de atendermos à exigência de rigor teórico. Esse ri-
gor não deve ser confundido com a correção formal dos conceitos. Se essa cor-
reção formal é necessária, ela não é contudo suficiente para caracterizar a natu-
reza do conceito e da teoria. Se por um lado, o conceito é o que impede o pensamento de
ser uma simples opinião, é fundamental, por outro lado, que ele seja
investido de uma necessidade, que ele não seja identificado com a idéia geral e
abstrata, mas sim que seja considerado como uma singularidade, como algo data-
do e capaz de transformação numa criação continuada. O que confere necessida-
de ao conceito é o fato dele responder a um verdadeiro problema. E aqui o agra-
decimento a Deleuze. Este é um ponto que, apesar de sua simplicidade, pode nos
orientar quanto ao sentido de uma pesquisa acadêmica em psicanálise. Um con-
ceito, e portanto uma teoria, deve responder a um verdadeiro problema.
Aqui, retorno a idéia de releitura. Trata-se de um procedimento que apre-
senta uma característica própria, no caso da teoria psicanalítica. A releitura toma
para com o texto uma atitude semelhante ao terapeuta em relação ao analisan-
do: a de não impor ao texto nossas próprias questões, mas tentar identificar as
questões colocadas pelo texto. No caso, por exemplo, da releitura lacaniana dos
textos de Freud, podemos constatar que ela se caracterizou sobretudo por u
respeito às questões fundamentais de Freud. Lacan não impôs a Freud suas pró-
prias questões, mas tratou de escutar atentamente a questão colocada por ele
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num determinado momento, e qual a resposta apresentada. A releitura não pode
deixar de lado o fato de que o conceito tem uma história, e até mesmo uma geo
grafia, que ele foi elaborado levando-se em conta o outro, o opositor, o amigo, e
que esse outro não é uma entidade externa ao texto, acidental, mas intrínseca e
necessária. Enfim, a releitura de um texto teórico tem que considerar o conceito
como uma singularidade e não como uma abstração lógica.
E basta pensarmos, por exemplo, no conceito de substância em Aristóteles.
Deleuze, no artigo que deu lugar ao livro O que é a filosofia?, diz que os conceitos,
os verdadeiros conceitos, os conceitos que marcam os momentos de criação, são
tão singulares que levam a assinatura do criador: é a substância de Aristóteles, o
cogito de Descartes, a mônada de Leibniz, a duração de Bergson, e, porque não,
a pulsão de Freud. Tomemos o conceito de substância, de Aristóteles, que é um
conceito bem distante de nós. Ele serve particularmente bem para isso. Trata-se,
neste caso, evidentemente de uma singularidade. Não podemos pensar o concei-
to de substância de Aristóteles como uma entidade abstrata, destacável do mo-
mento histórico, destacável de um problema a que esse conceito responde, des-
tacável do fato de que o próprio discurso aristotélico contém em si o seu oposi-
tor, opositor amigo, no caso Platão. Em suma, não se pode retirar desse conceito
a sua singularidade e transformá-lo numa entidade abstrata, que possa ser deslo-
cada de tempo, de lugar, que possa ter um valor de troca ou um valor de moeda,
como se ele não tivesse a sua especificidade, a sua irredutibilidade, a sua singula-
ridade, portanto a sua história.
Mas além de ser uma singularidade, o conceito não é uma entidade simples,
no sentido de que é único; não pode ser pensado isoladamente. Quer dizer, todo
conceito implica outros conceitos, todo conceito implica elementos conceituais,
todo conceito implica um campo conceitual no interior do qual ele surge, faz sua
emergência, e dentro do qual ele mantém suas articulações, que definem um
universo próprio de questões. Então, quem sabe se esse conceito, que é uma sin-
gularidade, que tem uma história, que tem um devir próprio, que responde a um
verdadeiro problema, quem sabe se uma das finalidades da pesquisa acadêmica
em psicanálise não seria a de retraçar a gênese deste conceito, e portanto a gêne-
se da teoria, e identificar os problemas a que ele pretende responder? Ler o tex-
to freudiano seria, nesse caso, saber escutar esses problemas que eram os de
Freud e não os nossos.
Isto não quer dizer que o pesquisador deva se colocar numa atitude passiva,
à espera de uma graça. Tal como na prática clínica, a releitura implicaria em um
processo de transformação do texto em discurso. O primeiro momento desse
processo é aquele no qual, pela leitura, o texto deixa de ser uma entidade abstra-
ta, em que pese a materialidade da letra, para ser realizado enquanto discurso
concreto. A releitura é um trabalho de transformação, de produção. Daí ela im-
20
plicar o novo, a criação, e não a mera formação de conceitos derivados num pro-
cesso lógico abstrato. Uma pesquisa não deve ser um reencontro com o mesmo,
assim como a verdade não resulta da aplicação de um método. A verdade à qual
chegamos pela aplicação rigorosa do método é uma verdade puramente lógica. E
o rigor aqui é sinônimo de reverência religiosa, rigor acrítico, puramente for-
mal. Não chegamos à verdade através de doces encadeamentos lógicos, mas
premidos pela necessidade. Toda verdade implica uma boa dose de irreverência,
e porque não, de violência. Foi dito acima que todo conceito responde a um pro-
blema, e os verdadeiros porlbmeas não se oferecem a nós docilmente. Os psica-
nalistas que o digam.
O que se poderia argumentar é que isto é verdadeiro em se tratando da
prática clínica ou dos encontros amorosos, mas que não pode ser aplicado ao dis-
curso conceitual. O ideal da ciência presente na teoria psicanalítica, cujo modelo
é a ciência ideal do tipo platônico, não permitiria essa irreverência para com o
texto. Mas isto não pode ser colocado desta maneira. A questão maior não é essa
que opõe discurso conceitual e discurso psicanalítico, mas a que opõe duas con-
cepções de conceito: o conceito entendido como entidade abstrata, como univer-
sal formal, e o conceito entendido como singularidade, como respondendo a ver-
dadeiros problemas. No primeiro caso, o pesquisador seria um mero aplicador
de métodos, métodos científicos, e suas conclusões seriam meras confirmações
vazias de sentido. No segundo caso, no caso em que o conceito fosse entendido
como singularidade, o pesquisador mais do um amigo da Sofia é um amante da
Sofia e, como todo amante, ávido por decifrar os segredos da amada.
Luís Cláudio Figueiredo: Eu queria agora passar a palavra ao professor
Renato Mezan, que talvez queira fazer algum comentário ou levantar alguma
questão para dar início ao debate. Enquanto isso, as pessoas que desejarem en-
caminhar perguntas ao prof Luiz Alfredo poderiam fazê-lo por escrito, para que
eu possa fazer daqui a leitura, porque estamos gravando esta sessão. Se vocês fa-
larem daí, diretamente, isso não vai ser gravado. Bom, queria também avisá-los
que estamos tendo a sorte de oferecer para vocês alguma coisa que não estava
prevista, que é o lançamento, hoje, do novo livro do prof. Luiz Alfredo Garcia-
Roza, chamado Introdução à metapsicologia freudiana. É o volume I de uma série
que ele está produzindo, e que está sendo editado pela Jorge Zahar Editores. Às
15 horas, na banca da Livraria Pulsional, no 4° andar, será esse lançamento com
autógrafo do prof. Luiz Alfredo.
Renato Mezan: Estou vendo que programamos coisas demais para uma
manhã, já que, como disse Luís Cláudio, uma conferência dessas nos proporciona
amplo material para a discussão. Gostaria também de incluir no que vou dizer,
21
que é muito rápido, um cumprimento e um agradecimento ao prof. Gilberto Sa-
fra, que foi o coordenador e organizador, por trás dos bastidores, de toda a car-
pintaria deste encontro, e sem cuja dedicação não poderíamos estar aqui reuni-
dos hoje.
Bom, para introduzir a questão, gostaria de dizer duas ou três palavras a
partir do que expôs o Luiz Alfredo, e imediatamente passar para a discussão co-
letiva, que é o nosso propósito fundamental. Luiz Alfredo nos propõe uma con-
cepção do que seria a pesquisa em psicanálise na universidade, que eu chamaria
de concepção restritiva. Você foi fazendo toda uma série de distinções para cir-
cunscrever o campo no qual considera que a pesquisa poderia ser digna desse
nome. Acredito não trair seu pensamento dizendo que você trabalha com um
método de eliminações sucessivas, seja de falsos objetos, seja de falsos caminhos,
falsos no sentido de inúteis, repetitivos ou supérfluos.
O que acaba se configurando como o objeto legítimo dessa pesquisa é o que
você definiu muito claramente como a textualidade do texto, e especificamente,
dentro dessa textualidade, de uma área inda mais restrita, que seria o conceito
como singularidade. É um processo de afunilamento, digamos assim, que você
propõe, e que sem dúvida nos compete discutir, pensar e aprofundar. Penso que
essa é uma polêmica, e que, acredito, vai despertar um certo frisson na dis-
cussão. E para pôr nesta um pouco de pimenta, posso dizer que, quanto a mim
pessoalmente, não estaria inteiramente de acordo com a idéia rigorosa, restriti-
va, que você propõe. Creio que a discussão vai permitir esclarecer isso de manei-
ra mais adequada. Gostaria de levantar, de abrir o tema de se o trabalho de pes-
quisa precisa necessariamente se restringir a essa textualidade do texto, seja em
relação aos textos em geral, seja em relação, no texto, a essa dimensão de textua-
lidade específica. Quer dizer, talvez provocar um pouco você a precisar isso, na
medida em que, inclusive do ponto de vista empírico, acredito que um grande
número das pesquisa que estão atualmente em andamento ou bem pesquisam
coisas um pouco diferentes (e nesse caso estariam fora da sua definição exigente
de pesquisa), ou então buscam um outro tipo de articulação de teoria e prática,
que por enquanto parece escapar à forma como você delimitou o campo. Penso
que esse é um problema que vai retornar nas perguntas e no debate. Queria
apenas indicar que ele está presente, que obviamente é instigante nos defron-
tarmos com essa proposta amarrada e desafiadora. Então, essa é uma primeira
coisa.
A segunda coisa é um comentário talvez à margem, mas que também vou
lançar como uma pista para nós pensarmos. Algo me chamou atenção desde o
início: algo para o que, no fim, você confluiu na sua exposição, e que era a pre-
sença latente da sexualização no discurso. Estou sugerindo isso como uma possível
pista para que pensemos dimensões propriamente inconscientes, não do autor da
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exposição, mas do próprio discurso. Por exemplo, no fim da sua exposição, você
formulou uma ideía que estava implícita no seu trabalho. A distribuição das figu-
ras da sua exposição é muito interessante: o pesquisador, a textualidade, o concei-
to, a singularidade, e no fim a coisa fica apresentada como sendo “amigo da So-
fia”, ou o “amante da Sofia”. Então, na distribuição sexuada dos conceitos por
exemplo... Não estou falando isso como gozação: penso que essa é, por exemplo,
uma das dimensões da textualidade do texto que escapa um pouco, se eu entendi
bem a sua proposta, escapa um pouco à forma como você articulou a exposição.
Talvez não escape, talvez ela esteja incluída, mas, pelo menos do ponto de vista
mais imediato, não é tão evidente.
Por outro lado, devo dizer que gostei imensamente, e me esclareceu entre
outras coisa que você disse, quando você lembra o trabalho feito por Lacan de
releitura do texto de Freud: a distinção que você faz de releitura e do comentário.
Você diz que Lacan se punha à escuta das perguntas de Freud, e não impondo ao
texto as suas perguntas, dele Lacan. Também acho que este é um ponto a ser
discutido. Não tenho certeza que isso possa ser feito de forma tão depurada
quanto parece se depreender, a uma primeira escuta pelo menos, da sua expo-
sição. Mas penso que podemos aprender com o que você disse, situar de maneira
um pouco diferente essa questão da releitura e disso que se faz com os textos.
Lembro de um comentário feito pelo Fábio Herrmann na crítica que ele
fez, tempos atrás, na primeira edição de Freud, pensador da cultura, em que dizia:
“Os filósofos chegam à psicanálise aéreos e subterrâneos”. Uma das coisas que
ele dizia nesse artigo, que me deixou muito impressionado, era dizer que, do
ponto de vista dos filósofos, a cujo time eu pertencia quando escrevi esse livro,
psicanálise era igual a Freud. Os filósofos vão direto ao grande nome, obviamen-
te esse grande nome é Freud. E o Fábio faria uma espécie de reclamação: Bom, e
o murmúrio dos consultórios? E o que acontece nas instituições? E os outros que
não são Freud, o que acontece com seu trabalho, já que o texto fundador é o tex-
to de Freud; mas se nós estamos reunidos aqui, e muitos de nós somos psicanalis-
tas, esse texto ganha dimensão de fundação de uma prática que não se limita
mais a ele. Então, um dos pontos que eu gostaria de introduzir nessa discussão
do seu trabalho, que vai voltar durante o nosso colóquio, é a relativa limitação do
objeto de pesquisa à textualidade do texto, e do texto ao texto de Freud. Como
se os outros discípulos, os psicanalistas, os teóricos que contribuíram para a psi-
canálise contemporânea, de alguma forma fossem excluídos, ou então incluídos
com certas reservas, tendo que passar pelo critério angular do desvio.
E com essa observação vou encerrar por enquanto a minha intervenção,
para poder abrir o debate a todos. Quando você cita o trabalho de Lacan nos
anos 50, você reproduz, talvez de forma um pouco acrítica para o meu gosto pes-
soal, a visão que o próprio Lacan tem do seu trabalho, com uma espécie de orto-
23
pedia ou de retificação do sentido primordial de Freud. Tenho a im-
pressão de que essa é uma afirmação mais polêmica do que propriamente fun-
damentada, na medida em que eu não colocaria a elaboração que se fazia da psi-
canálise fora do pensamento lacaniano, até os anos 50, inteiramente na coluna
“desvio”. A noção de desvio é uma noção que implica numa ortogonia ou numa
ortodoxia, e ela talvez tenha tido a sua utilidade polêmica para impor um modo
de pensar. Mas carrega riscos de estalinismo teórico e prático, ou de totalitaris-
mo, que a meu ver combinam pouco com a ênfase que você dá à singularidade, à
importância do acontecimento e do novo.
No entanto, com a sua exposição o que eu aprendi é a sutileza com que
você distingue entre o comentário e a releitura, que eu vou formular nos meus
próprios termos, dizendo que talvez o comentário permaneça no nível manifes-
to, ou no nível imediatamente submanifesto. Este eu compararia ao nível pré-
consciente do texto, se é que podemos estender as coisas a esse ponto.
Há comentários muito sutis, muito refinados, que obviamente não repro-
duzem apenas o manifesto. Eqnuanto o que você propõe como “releitura” des-
vendaria, ou tratia à tona para funcionar, aquilo que poderia ser qualificado,
grosso modo, de um latente. Esta é uma proposta que eu faço; vamos ver se ela
tem sentido ou não. Seria o equivalente, ou o análogo, ao de um latente incons-
ciente.
Ora, se for assim, talvez possamos reorganizar essa história da psicanálise
recusando a noção de desvio. Diremos que a grande novidade trazida por Lacan,
que depois foi retornada por outros, que não concordavam com a forma como ele
fez esse trabalho e com os resultados aos quais ele chegou, é que mudou a ma-
neira de se relacionar como os textos psicanalíticos em geral. Até o cataclisma la-
caniano, ela teria permanecido essencialmente ao nível do manifesto, o implíci-
to. E uma tentativa, como a tentativa kleiniana, de ir além disso, provocou as
tempestades que conhecemos. Enquanto a contribuição fundamental trazida por
Lacan teria sido, nessa perspectiva, de dar legitimidade a uma forma de escuta
do texto que poderíamos chamar quase de clínica do texto, a uma forma prática
textual que se abriu espaço para isso que seria uma dimensão mais inconsciente.
Então, isto serve um pouco para estimular o debate, mas vejo que há uma
enorme quantidade de questões. Vou passar par o prof. Luís Cláudio para fazer
uma primeira leitura ou triagem do que nos chegou aqui.
Luís Cláudio Figueiredo: Você podia ir respondendo alternado; só sugiro o
seguinte: temos uma outra conferência pela manhã, que deveria estar começan-
do agora, mas vamos atrasar naturalmente, porque a primeira também começou
atrasada. Mas acho que não haveria como ultrapassarmos para os debates desta
primeira conferência, o horário de 11:30 h. Então o que eu vou fazer agora é
24
passar a palavra para o prof. Luiz Alfredo. Ele vai responder ao prof. Renato, e
em seguida vou organizar e tentar reunir as questões que foram trazidas, lem-
brando também qe os que não tiverem uma resposta cabal ou plena nessa pri-
meira parte da nossa atividade não devem ficar muito preocupados, porque à
tarde, na reunião dos grupos temáticos, há um grupo que trata exatamente des-
sas questões que estão sendo aqui colocadas. Então todas as questões poderão ser
retomadas lá, com a presença do prof. Renato Mezan, que será o coordenador
desse grupo, e também, acredito, com a presença do prof. Luiz Alfredo. Então,
vou agora interromper esse fluxo de questões.
Luiz Alfredo Garcia-Roza: É evidente que não teremos, nessa meia hora,
tempo para desenvolver todos os pontos que foram abordados pelo Renato Me-
zan. E agradeço as perguntas que foram feitas, eu deveria ter escrito as suas
questões, porque não sei se consegui guardar todas elas. Mas me parece que al-
gumas são absolutamente centrais. Uma delas é do caráter restritivo da proposta
de releitura. Vejam bem. O que eu coloquei para vocês, não coloquei como sen-
do uma proposta exclusiva de pesquisa, mas como uma proposta de pesquisa. A per-
gunta que eu faço é se essa não seria uma das possiblidades de se fazer pesquisa
em psicanálise. A minha preocupação aqui é a seguinte: nem tudo o que se faz na
universidade, e que tem como tema psicanálise, é pesquisa. Há uma quantidade
de trabalhos enormes que são desenvolvidos dentro da universidade, e que não
cairiam sob a rubrica específica de pesquisa. Entendo que um pesquisador é al-
quem que, como o próprio nome está dizendo, está procurando alguma coisa, e
ele não está necessariamente procurando uma coisa que já está aí, que ele vai
descobrir tal qual ela é, na sua pureza original. Entendo que um pesquisador
tem, no âmbito universitário, um tipo de atividade que seria a que mais se apro-
ximaria da atividade de um criador.
Quer dizer, um pesquisador é alguém que está criando alguma coisa, oi
que está procurando criar alguma coisa. Portanto, faço uma diferença muito cla-
ra entre o que seria o trabalho de um pesquisador, e o que seriam outros traba-
lhos desenvolvidos dentre da universidade, que contêm uma dimensão criativa
evidente, a não ser que sejam trabalhos meramente repetidores. A presença da
criação estaria em qualquer atividade intelectual, mas a pesquisa se proporia es-
pecificamente a isso. Então, essa proposta não seria uma proposta restritiva?
Penso que sim, ela é uma proposta restritiva; é uma proposta que coloca uma di-
reção possível de trabalho de pesquisa. Há outras direções possíveis, ela não seria
a única. Então, ela é restritiva na medida em que define o seu percurso. Que tipo
de percurso será feito? Quer dizer: dificilmente um pesquisador acadêmico em
psicanálise, ou quem faz pesquisa em psicanálise na universidade, poderia ser um
pesquisador como um pesquisador clássico de certas áreas, que meramente apli-
25
ca o método, e espera como resultado da aplicação desse método obter resultados
que já são esperados. Boa parte das chamadas pesquisas feitas dessa maneira são
pesquisas em que o resultado é perfeitamente antecipável; não há criação ne-
nhuma, há uma antecipabilidade, há uma previsibilidade do sentido, do resulta-
do, do efeito dessa pesquisa. O que se faz é confirmar aquilo que já era previsí-
vel, é confirmar aquilo que era antecipado ou antecipável na pergunta do pes-
quisador.
Eu diria que essa pesquisa é uma pesquisa meramente confirmadora; ela
confirma uma verdade já estabelecida, algo já dado. Ela não se coloca, ou ela
pouco se coloca, na dimensão do sentido que implica uma dimensão do novo. E o
termo que o Renato usou é mais feliz que o termo que eu usei: o termo de uma
leitura clínica. Aqui, ele serve para marcar essa diferença, tal como na clínica:
quer dizer, o que se espera numa prática clínica não é a mera confirmação de al-
go antecipável. As formações do inconsciente, aquilo com o qual a clínica vai se
defrontar, não é antecipável, não é previsível. Aquilo com o qual ela vai se de-
frontar é a emergência do novo. E é isso que confere à prática clínica essa di-
mensão não-formal, essa dimensão do real do acontecimento, a presença do real
e do acontecimento que não está presente nas pesquisas clássicas, nas pesquisas
que são meramente confirmadoras.
Quando proponho a releitura como um procedimento de pesquisa acadê-
mica em psicanáse, como pesquisa, acadêmica e em psicanálise: cada um desses
termos tem a sua especificidade, porque se trata de uma pesquisa e não de um
comentário, e não de uma informação, não da transmissão de um saber já esta-
belecido. Trata-se de uma pesquisa acadêmica, ou seja, algo que fazemos na uni-
versidade, e que, portanto, possui a sua especificidade: em psicanálise e não ape-
nas sobre a psicanálise. Portanto, pesquisa acadêmica em psicanálise é algo muito
amarrado nesse sentido. Ela é pesquisa, ela é acadêmica e ela é em psicanálise. Co-
mo conciliar essas três coisas? Conciliar a pesquisa com acadêmico não é muito
difícil, mas conciliar o acadêmico e a pesquisa com a psicanálise já fica um pouco
difícil, sobretudo se essa pesquisa é em psicanálise. Portanto, espera-se que nessa
pesquisa algo se constitua, ou que essa pesquisa tenha uma peculiaridade, até pa-
ra ela ser pesquisa em psicanálise, e que a distinga das outras pesquisas acadêmi-
cas. Parece-me que essa especificidade, essa característica própria da pesquisa em
psicanálise, residiria exatamente nessa possibilidade.
Estou pensando especificamente na pesquisa em psicanálise, que é essa pos-
sibilidade de emergência do novo. Ou seja, que a pesquisa contenha uma caracterís-
tica semelhante que a aproxime, que a faça ser, que articule isso que eu chamaria
de pesquisa clínica, desse trabalho clínico, do experimental, do registro clínico.
Porque das duas uma: ou admitimos que a única pesquisa possível em psicanálise
é da clínica, e portanto só o consultório, só a prática clínica tornaria possível uma
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pesquisa em psicanálise, ou então admitimos a possibilidade dessa pesquisa ser
feita na universidade, e que isso não consista na mera transposição da clínica pa-
ra a universidade, o que seria um absurdo: a universidade se substituir à prática
clínica, e procedermos ao trabalho clínico dentro da universidade. Não é essa a
questão, não é essa a proposta. Portanto, aquilo que estou procurando é tentar
identificar uma especificidade do que seria uma pesquisa acadêmica em psicaná-
lise.
Compreendam bem. Apesar de que isso que está acontecendo aqui seja
uma conferência de abertura, o que eu trago para vocês, trago como um pro-
blema. Quer dizer, o que eu trago, trago como uma grande interrogação, como
uma interrogação que me faço quando oriento meus mestrandos, uma interro-
gação que me faço quando eu mesmo constituo o meu projeto de pesquisa na
universidade: em que consiste fazer isso? Sobre o que vou trabalhar? Vou traba-
lhar sobre textos. A pesquisa universitária trabalha em cima de textos, é uma
pesquisa basicamente livresca. Trabalhamos com textos escritos. O que é fazer
uma pesquisa em cima de textos? O que eu espero do texto? Que tipo de pergun-
ta está presente aí? Evidentemente, há uma pergunta que é a minha; evidente-
mente há as minhas interrogações. Mas se aquilo que se coloca como objeto da
minha pesquisa é um texto de psicanálise, é fundamental que eu não violente es-
se texto, impondo previamente as minhas questões a ele, mas que eu possa escu-
tar quais são as questões, quais são os problemas a que esse texto pretende res-
ponder. Portanto, o caráter restritivo deste tipo de proposta é um caráter restri-
tivo que eu diria inclusive defensivo, no sentido de que eu possa minimamente me
orientar quanto ao que seria uma possível proposta de pesquisa. De forma algu-
ma eu pretendo que essa seja a única forma de pesquisa acadêmica em psicanáli-
se, mas que essa seja uma das formas possíveis de pesquisa acadêmica em psi-
canálise; uma forma de pesquisa que manteria uma proximidade com a clínica,
sem o risco de se colocar no lugar dessa clínica. Isto é diferene do que seria uma
proposta teórica, e do que seria uma proposta teórica, e do que seria uma pro-
posta claramente clínica.
A outra questão que foi levantada é que eu me refiro quase sempre a
Freud, como se os outros autores fossem desviantes. Evidentemente eu me refiro
a Freud por uma questão de referência privilegiada, não no sentido de referên-
cia única. Quer dizer, a mesma questão que eu levanto em relação aos textos
freudianos, eu levantaria em relação aos textos lacanianos, aos textos kleinianos.
Enfim, não há aqui nenhuma exclusividade quanto a Freud ser o grande mestre,
autor único e único ao qual nós possamos atribuir interesse. Indiscutivelmente, é
um discurso fundador, e, como todo discurso fundador, ele é privilegiado, mas is-
so não significa que tenha que ser Freud. Acho que Freud é ainda um campo ex-
traordinariamente rico, e que se oferece à exploração de uma forma talvez in-
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Comparável. Mas o que eu disse poderia ser dito também de qualquer outro au-
tor em psicanálise.
A proposta que estou colocando é exatamente a proposta na qual a própria
categoria de desvio seria uma categoria pouco aplicável. Admite-se que todo des-
vio seja um desvio de uma ordem estabelecida, todo desvio implicaria, ou teria
como correlato uma ortodoxia. Não se trata de fazer u estabelecer uma ortodo-
xia freudiana e de apontar os desviantes. Pelo contrário, o que essa proposta traz
implícita nela, aliás, eu diria implícita e explícita, é o fato de que muito mais do
que denunciar desvios ou desviantes, o interessante seria produzir diferenças. É a
possibilidade de, a partir do texto freudiano, volto a dizer, porque o texto é fun-
dante, mas a partir dele a possibilidade de produzir diferenças. E o risco que vejo
e aponto é exatamente de quais seriam os limites dessas diferenças: até que ponto
essa produção de diferenças romperia o próprio espaço, os próprios limites da
teoria psicanalítica? Mas esse é um risco absolutamente necessário, é o risco que
corremos; de fato não há como fugir dele. Se não admitimos a produção de dife-
rença, ficamos, sempre, realmente, entre uma ortodoxia cega e a denúncia de
desviantes, a ruptura total do discurso. A possibilidade ou a presença desse risco
é uma presença necessária.
Outra coisa que o Renato Mezan apontou é a sexualização do discurso;
aliás, a sexualização da minha fala aqui no caso. Eu não diria para vocês que
prometo cenas de sexo explícito, mas essa sexualização existe. Há um investi-
mento no trabalho de pesquisa, há um investimento num discurso que difícil-
mente poderíamos deslibidinizar. Quer dizer, como se pudéssemos neutralizar
esse discurso, retirar desse discurso, a presença do amante e da amada, essa pre-
sença amorosa, e torná-lo um discurso neutro. Essa é a proposta de um discurso
formalizado, e é exatamente essa deslibidinização do discurso formalizado, do
discurso puramente lógico, formal. É exatamente essa ausência dessa dimensão
pulsional no discurso que o esvazia, que faz dele uma mera derivação formal,
que faz dele um mero procedimento lógico-dedutivo, frequentemente vazio. O
que não quer dizer que seja sempre vazio, mas frequentemente vazio. É inevitá-
vel essa presença, essa sexualização do discurso, esse investimento do discurso;
não há como não ser assim. Talvez seja o caso de o Renato Mezan me permitir
tentar algumas respostas aqui às perguntas de vocês, porque inclusive ele levan-
tou muitas questões. Eu até proporia que várias dessas questões pudessem ser
rediscutidas ou discutidas nos nossos encontros futuros.
Luís Cláudio Figueiredo: Como estamos agora com pouco tempo, vou fa-
zer aqui a leitura das questões que me chegaram, e vou deixar a critério do prof.
Luiz Alfredo para que ele decida se vai respondê-las agora, ou se elas vão ficar
para serem retomadas no grupo da tarde, no qual ele vai estar presente. Primei-
28
ro: Algumas questões têm a ver exatamente com essa questão de como lidar com
os textos. Laplanche nos convida a fazer trabalhar o texto freudiano até que ele
entregue sua alma. Segundo: Maltratar assim a nossa amante não a obrigaria a
confessar coisas apenas para se livrar desse sadismo teórico? Responde agora ou
pode deixar para depois.
Luiz Alfredo Garcia-Roza: Mas é exatamente isso, não se trata de sadismo
teórico. Revelar a alma seria exatamente tentar decifrar, é o que eu chamei de
decifrar os signos da amada: decifrar essa problemática, esses problemas funda-
mentais que ele nos pretende colocar. Não há sadismo nenhum aí; pelo contrá-
rio, há até um reconhecimento de o quanto essa amada é amada. Quer dizer, o
quanto é fundamental que esses problemas possam ser identificados, para que se
possa realmente dimensionar ou redimensionar a estrutura conceitual que pre-
tende responder a isso. Se eu não for capaz de identificar esses problemas, fico
num deslizamento conceitual ou terminológico sem fim, e não sou capaz de
realmente responder essas questões, ou de reestruturar, produzir algo de real-
mente novo. Portanto, não se trata de petrificar a amada através de um exercício
sádico de suas questões originais, mas, ao contrário, de renovar a cada instante
essa relação. Não há nenhum sadismo nisso.
Luís Cláudio Figueiredo: Outra questão do público. Quando se fala em
potência significante, fica-se ao nível das inúmeras transformações ou represen-
tações de um significante ou mesmo saltos de significantes a significantes. Fica-se
ao nível da transformação. Falta ao epistemólogo o real conhecimento da ampli-
tude do pensar enquanto intelectual, imaginativo, inspirativo e intuitivo. O que
abre a possibilidade de integrar o lúdico, o seriamente brincar sem cair no non-
sense enquanto elaboração psicótica. Como você vê essa questão? Dá pra res-
ponder em poucas e resumidas palavras?
Luiz Alfredo Garcia-Roza: Veja. A questão diz respeito ao epistemólogo. E
esse trabalho de exploração de potência do significante me parece que corre
numa direção, se não contrária, pelo menos diferente do epistemólogo. Propus
aqui que a tarefa do epistemólogo seja distinta da tarefa do pesquisador. Sem
dúvida alguma há o risco de cair no nonsense e, em nome da riqueza da criação,
da produção do novo, romper os próprios limites da pesquisa em psicanálise;
mas é exatamente este limite que é difícil determinar. Não tenho nenhuma res-
posta e nenhuma receita de como proceder criativamente e ao mesmo tempo
não romper com os limites da problemática em questão. Eu só diria que proce-
dermos pura e exclusivamente como epistemólogos dificilmente resolveria o
problema.
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Luís Cláudio Figueiredo: Gostaria de entender como você coloca a relação
de J.-A. Miller com o conceito, em termos de problematização de uma necessida-
de, no sentido deleuziano que você parece compartilhar.
Luiz Alfredo Garcia-Roza: Eu não entendi a pergunta.
Luís Cláudio Figueiredo: O apelo à metáfora da “cozinha da bruxa”, para
situar a posição do pesquisador, colocaria este buscando o segredo da invenção, o
segredo do novo, do lado feminino? Segundo o Prof. Luiz Alfredo, o conceito de
Freud que levaria a sua assinatura, pelo menos o que ele destaca em sua fala, foi
o conceito de pulsão. Por que o prof. Luiz Alfredo elege esse conceito como tem-
do a marca fundamental de Freud, e não elege o conceito de inconsciente como
trazendo essa marca?
Luiz Alfredo Garcia-Roza: Porque eu considero o conceito de pulsão como
o conceito absolutamente original de Freud. Do meu ponto de vista, se há um
conceito que caracteriza a absoluta originalidade da produção teórica de Freud, é
o conceito de pulsão, sem desmerecer em nada o conceito de inconsciente. Evi-
dentemente a teoria psicanalítica não se reduz ao conceito de pulsão. O conceito
de pulsão, o conceito de inconsciente, o conceito de transferência, enfim, há uma
série de conceitos que já foram inclusive apontados como conceitos fundamen-
tais. Alguns apontam quatro, outros apontam sete, mas enfim não importa o
número. Há um número razoável de conceitos fundamentais. Mas, do meu pon-
to de vista, aquele conceito que mais marca a originalidade da produção de
Fred é o conceito de pulsão. É um conceito que eu privilegiaria nesse sentido. O
que não quer dizer que o conceito de inconsciente em Freud possa se confundir
com outras noções de inconsciente, usadas por outros autores. Mas apenas que o
conceito de pulsão é um conceito irrecusavelmente original em Freud.
Luís Cláudio Figueiredo: Você diferenciou a correção do conceito de um
trabalho da natureza do conceito. Gostaria de ter esclarecimentos acerca do que
você denomina a “correção” de um conceito, e também do que você chama “na-
tureza” de um conceito, para poder entender o que você está apontando para
nós.
Luiz Alfredo Garcia-Roza: O que eu estou chamando aqui de correção de
um conceito seria o mero aspecto formal desses conceitos. E o que estou cha-
mando de natureza dos conceitos é o que é um conceito. É um conceito, algo pu-
ramente abstrato, é um conceito uma mera construção lógica formal, ou um
conceito responde por algo mais, ou um conceito me envia um problema e a
30
uma problemática? Perguntar qual é a natureza do conceito é isso. Perguntar o
que é um conceito. É um conceito uma entidade formal, ou é um conceito uma
singularidade? O que estou colocando para vocês é exatamente essa natureza de
singularidade do conceito, e não a natureza puramente formal. Quando fiz a re-
ferência a Hegel, creio que Hegel responderia isso. Quando Hegel diz que um
conceito é algo absolutamente concreto, não existe o conceito no lugar formal,
não é absolutamente distante do real. O conceito não é uma entidade abstrata. É
nesse sentido que estou pensando.
Luís Cláudio Figueiredo: Um dos aspectos fundamentais da pesquisa
acadêmica é que ela se desenvolve dentro de uma multiplicidade de outros sabe-
res. Qual o papel da produção teórica de outros saberes, como filosofia, história
etc., dentro de sua concepção de pesquisa acadêmica em psicanálise como relei-
tura?
Luiz Alfredo Garcia-Roza: Já que joguei com conceito de textualidade, is-
to diria respeito à inter-textualidade. Só tem uma coisa: isso não significa que se
possa, em nome de uma inter-textualidade, pescar conceitos, categorias, princí-
pios, leis, noções etc., de outras teorias e trazer para a teoria psicanalítica, no
sentido de resolver problemas que são problemas específicos da teoria psicanalí-
tica. Quer dizer, na verdade a articulação da teoria psicanalítica, do saber psica-
nalítico, com esses outros saberes é a de um encontro, que pode provocar certas
questões no interior da problemática psicanalítica, mas não o sentido de se im-
portar conceitos e princípios de outras teorias para a psicanálise. Aí realmente
nós romperíamos os limites do trabalho teórico. Aí o epistemólogo reclamaria,
seria hora dele dizer: “não, isso não pode ser feito”.
Luís Cláudio Figueiredo: Bom. Infelizmente vamos ter que encerrar ago-
ra. Existem várias questões. Agora o prof. Roosevelt Cassorla vai fazer uma ob-
servação oral e vamos encerrar esta parte do Encontro.
Roosevelt Cassorla: Vou tentar ser bem rápido, por causa do tempo e
grande parte do que eu ia dizer o Renato já disse. Independente de tudo que
aprendi com o prof. Garcia-Roza, com o conteúdo da palestra dele, penso que a
proposta dele é válida, mas empobrecedora. Penso que ele deixou de lado o que
é básico para a psicanálise, que é a presença do homem. E o homem somente
pode ser visto através da pesquisa clínica. Então, eu gostaria de levantar uns pon-
tos para serem discutidos também. Não tenho intenção nenhuma de ser dono da
verdade; apenas estou querendo levantar problemas, e na medida em que há dis-
cordâncias, me parece que isso pode enriquecer mais.
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A pesquisa clínica me parece a básica, porque é ela que vai trazer os pro-
blemas. Discordo da posição do prof. Garcia-Roza, que isso é uma mera repe-
tição do que se passa nos consultórios. A clínica tem que estar presente na uni-
versidade, se não nós estamos com uma universidade fora da nossa realidade. A
psicanálise do nosso meio não é psicanálise dos textos, dos autores, da textuali-
zação. Podemos fazer isso, evidentemente, mas temos problemas extremamente
graves e urgentes, que a universidade, a nossa sociedade exige que nós, psicana-
listas, pensemos neles. E parte da clínica é feita na universidade, nas instituições,
e não somente nos consultórios. Isso é feito na sociedade de psicanálise. Sinto
que ficou, no texto do prof. Garcia-Roza, o que ele mesmo critica, aquela dificul-
dade do nosso conceito psicanalítico ser discriminado de outros referenciais, co-
mo a filosofia. Então, a filosofia não só interfere mas é o amigo da filosofia, é o
amanda da filosofia. O que eu tenho receio é que muitos pesquisadores nossos,
nós mesmos, que trabalhamos com textos, usando referenciais filosóficos, epis-
temológicos, a despeito de toda a criatividade de diferenciar o que é pesquisador
do que é epistemólogo, não acabamos formando uma relação nem de amante,
nem de amigo da filosofia, mas uma relação perversa com a filosofia. Então, são
pontos para discutir.
Luís Cláudio Figueiredo: Muito agradecido. Acho que suas contribuições
são realmente muito importantes e precisariam ser retomadas.
Luiz Alfredo Garcia-Roza: Rapidamente: eu em nenhum momento falei
em amigo ou amante da filosofia, mas da Sofia. A Sofia não é propriedade da fi-
losofia. E a questão é exatamente essa: Se a psicanálise persegue alguma Sofia ou
não, se há uma verdade implicada aí ou não. Parece-me fundamental que sim.
Distinto de um discurso empirista puro e simples, o que a psicanálise afirma é a
possibilidade da verdade. Esse é um ponto. O outro ponto é que eu não disse que
a pesquisa clínica seria uma repetição vazia. Pelo contrário, eu vejo nela uma ri-
queza tal, que a minha pergunta é se ela poderia ser transposta, enquanto clínica
psicanalítica, para a universidade. Porque, se for transposta especificamente co-
mo clínica psicanalítica para a universidade, ela seria clínica psicanalítica; o que
mudaria seria apenas o lugar geográfico. Se o consultório é na rua tal ou é den-
tro da PUC, seria a mesma coisa. Caso contrário, se não for, então a pergunta
seria se esse trabalho seria um trabalho de clínica psicanalítica, especificamente.
Tenho minhas dúvidas a respeito disso, se é possível se fazer clínica psicanalítica
dentro da universidade. Portanto, não houve nenhum desvalor em relação à clí-
nica; pelo contrário, houve um reconhecimento do valor dela, e um perigo, que
significaria transformar, deslocar a clínica psicanalítica para dentro da universi-
dade e ela permanecer sendo clínica psicanalítica.
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Luís Cláudio Figueiredo: Seguramente essa questão vai voltar, não apenas
nos grupos temáticos, mas acredito que em outras palestras que vamos ouvir, e
haverá oportunidade de ser retomada.
Então, agora encerro essa primeira atividade. Agradeço muitíssimo ao prof.
Luiz Alfredo e ao prof. Renato pela participação, e convido para a mesa a profª
Maria Emília, que vai coordenar a próxima apresentação.
9 de novembro de 1991