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1 Da “crise urbana” à crise do trabalho? Contribuições a uma abordagem possível da (crise de) reprodução de relações sociais nas metrópoles brasileiras Luiz Antônio Evangelista de Andrade Docente no Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) Campus Guarapari e-mail: [email protected] I Nossa proposta neste texto consiste em realizar uma reflexão que, ao invés de trazer respostas prontas, leve a novas indagações, de modo a podermos sobre elas refletirmos. Uma questão norteia nossa fala inicial, senão vejamos. Embora exista uma dimensão urbana da crise, ela é derivada de uma crise mais profunda e que alcançou as diferentes sociedades, entre elas a brasileira: a crise do trabalho. A nosso ver, a partir da abordagem da crise do trabalho, teríamos uma melhor interpretação da dimensão urbana da crise e das várias dificuldades com as quais os agentes econômicos têm se defrontado para com ela lidar. E o atual aprofundamento dos negócios com a urbanização tanto é parte das estratégias empresariais diante da crise do trabalho, como é a expressão de uma reprodução crítica das relações sociais assentadas no trabalho. De modo a construir nosso raciocínio e responder à questão proposta, torna-se preciso definirmos aquilo que estamos chamando de crise do trabalho. E, dadas as diferentes formas como ela se determina objetivamente, torna-se preciso também demarcarmos qual de seus aspectos deverão ser abordardos. Tendo em conta que a crise do trabalho emerge no interior da reprodução do capital como um todo, centrar-nos- emos nas determinações desta crise na esfera produtiva. Em seguida, iremos abordar tais determinações sobre a forma política estatal e a reprodução social do espaço. Quando falamos de sociedade capitalista, algo a ser levado em consideração é a concorrência empreendida pelos diversos capitais na busca pela acumulação, seja aqueles capitais que atuam dentro de um mesmo setor da economia, seja entre setores diferentes. E a acumulação, basicamente, dá-se através de três fontes de rendimento: 1) o lucro sobre o capital investido no processo produtivo, após comprar e utilizar a força de trabalho para produzir produtos que são vendidos nos mercados como mercadorias;

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Da “crise urbana” à crise do trabalho? Contribuições a uma abordagem possível

da (crise de) reprodução de relações sociais nas metrópoles brasileiras

Luiz Antônio Evangelista de Andrade

Docente no Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) – Campus Guarapari

e-mail: [email protected]

I

Nossa proposta neste texto consiste em realizar uma reflexão que, ao invés de

trazer respostas prontas, leve a novas indagações, de modo a podermos sobre elas

refletirmos. Uma questão norteia nossa fala inicial, senão vejamos. Embora exista uma

dimensão urbana da crise, ela é derivada de uma crise mais profunda e que alcançou as

diferentes sociedades, entre elas a brasileira: a crise do trabalho. A nosso ver, a partir da

abordagem da crise do trabalho, teríamos uma melhor interpretação da dimensão urbana

da crise e das várias dificuldades com as quais os agentes econômicos têm se defrontado

para com ela lidar. E o atual aprofundamento dos negócios com a urbanização tanto é

parte das estratégias empresariais diante da crise do trabalho, como é a expressão de

uma reprodução crítica das relações sociais assentadas no trabalho.

De modo a construir nosso raciocínio e responder à questão proposta, torna-se

preciso definirmos aquilo que estamos chamando de crise do trabalho. E, dadas as

diferentes formas como ela se determina objetivamente, torna-se preciso também

demarcarmos qual de seus aspectos deverão ser abordardos. Tendo em conta que a crise

do trabalho emerge no interior da reprodução do capital como um todo, centrar-nos-

emos nas determinações desta crise na esfera produtiva. Em seguida, iremos abordar

tais determinações sobre a forma política estatal e a reprodução social do espaço.

Quando falamos de sociedade capitalista, algo a ser levado em consideração é a

concorrência empreendida pelos diversos capitais na busca pela acumulação, seja

aqueles capitais que atuam dentro de um mesmo setor da economia, seja entre setores

diferentes. E a acumulação, basicamente, dá-se através de três fontes de rendimento:

1) o lucro sobre o capital investido no processo produtivo, após comprar e

utilizar a força de trabalho para produzir produtos que são vendidos nos mercados como

mercadorias;

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2) a obtenção de uma renda fundiária, por parte do proprietário de terras, sobre

imóveis e terrenos alugados ou construídos e vendidos;

3) os juros cobrados sobre o capital-dinheiro emprestado a uma pessoa física ou

jurídica, ou obtidos através da remuneração de investimentos em títulos e papéis na

bolsa de valores.

Portanto, lucro, renda fundiária e juros são três fontes de rendimento através das

quais, respectivamente, o proprietário de capital, o proprietário de terras e o proprietário

de dinheiro podem acumular ao investirem nos diferentes negócios à sua disposição.

No senso comum cotidiano, costumamos chamar de “lucro” todo e qualquer

retorno sobre um investimento feito, seja na produção de mercadorias, na compra e na

venda de imóveis ou, por exemplo, no empréstimo de dinheiro feito por um banco ao

consumidor ou a uma empresa. Com a intenção de facilitar a exposição, iremos, por ora,

abstrair das formas renda fundiária e juro e focarei na forma lucro. Mais à frente

retornaremos às duas primeiras formas, no desenvolvimento dos meus argumentos.

Havíamos dito que uma das características centrais da sociedade capitalista é a

concorrência entre os diferentes capitais. Essa concorrência se dá porque esses capitais,

ou melhor, os diferentes empresários capitalistas que empregam seus capitais, são

coagidos ou obrigados a “chegar primeiro” que seu concorrente na busca pelo lucro.

Ganhar novos mercados ou fortalecer os antigos, atrair novos consumidores através da

criação de novas necessidades ante um produto novo, novas técnicas de produção, de

gestão, inovação, etc., são algumas entre as diversas estratégias que devem ser seguidas

pelos capitalistas para serem competitivos e chegarem à frente do seu concorrente.

E uma estratégia particularmente importante, a qual historicamente vem sendo

utilizada pelos capitalistas na busca por aumentar a sua produtividade, expandir a sua

produção e baixar o preço dos seus produtos, tem sido o de substituir a força de trabalho

pelo emprego de tecnologias. Não é preciso muita pesquisa para descobrirmos que,

sobretudo nos últimos 40 anos, tem havido um decréscimo relativo da força de trabalho

nas fábricas e nas empresas. E relativo porque, em números absolutos, até mesmo por

causa do aumento da população mundial, a força de trabalho utilizada cresceu.

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Em sua crítica da economia política, Marx, ao avançar em relação a economistas

como Adam Smith e David Ricardo, demonstrou quatro aspectos importantíssimos na

compreensão das relações sociais de produção no capitalismo, senão vejamos.

1) Não é todo e qualquer trabalho ao longo da história da humanidade que

produz valor. O pressuposto para tal compreensão é o duplo caráter do trabalho na

sociedade capitalista, o trabalho concreto e o trabalho abstrato. O único trabalho que

produz valor é o trabalho abstrato, o qual, nessa sociedade, tornou-se “trabalho social”,

uma forma geral que indistingue os diferentes trabalhadores e seus trabalhos concretos;

2) Marx elevou o valor a um artifício teórico dotado de múltiplas determinações

conceituais (diversas formas de aparição nas relações de troca e nas relações sociais

como um todo), permitindo-lhe desvelar como e por que um determinado modo de

existência da atividade humana foi alcançado pela produção mercantil;

3) o valor é uma forma social historicamente determinada e não é exterior às

mercadorias produzidas pela força de trabalho. Naquelas mercadorias está representada

uma respectiva forma de aparição do valor, dada por uma relação de quantidade. Nessa

determinação imediata, o valor da mercadoria é medido pelo tempo de trabalho

socialmente necessário à sua produção;

4) a análise do tempo de trabalho deveria dividi-lo entre “trabalho necessário” à

produção da mercadoria, o qual, por assim dizer, corresponderia à fração que equivale

ao preço do seu trabalho; e “trabalho excedente” – ou mais-valia – que é o trabalho não

pago pelo empresário capitalista ao trabalhador, cuja força de trabalho ele compra.

Como dissemos anteriormente, a introdução de novas tecnologias com vistas a

aumentar a produtividade do trabalho e produzir mais mercadorias, leva à economia

com força de trabalho. E uma consequência da introdução de novas tecnologias é que,

numa fábrica de sapatos, p.e., serão produzidos mais sapatos com menos trabalhadores e

também com um menor tempo necessário e com um menor preço de produção.

Vejamos o exemplo da produção de sapatos: antes da revolução industrial, esta

produção era feita de modo artesanal por um sapateiro. Digamos que ele conseguisse

produzir um sapato após um dia inteiro de trabalho, dado por uma jornada de 10 horas.

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Com a introdução de máquinas de cortar e costurar o couro, passou-se a produzir 10

sapatos em um dia no lugar de apenas um. O empresário, que comprou as matérias-

primas necessárias à produção e também a força de trabalho para operar as máquinas,

consegue colocar no mercado um número muito maior de sapatos com um preço bem

menor do que os do sapateiro. Como a produção do sapateiro é apenas um décimo da

produção do empresário, ele vê o seu trabalho inviabilizado, tendo que sair do mercado.

E onde reside o problema disso tudo? No fato de que, ao agir por conta própria e

conseguir produzir mais mercadorias com preços menores, empregando menos tempo e

menos trabalhadores, um determinado empresário capitalista torna-se mais competitivo

e obtém taxas de lucro maiores que as dos seus concorrentes diretos. Desencadeia-se,

por parte destes concorrentes, tanto uma migração para o setor da economia em que as

taxas de lucro estão acima da média, quanto uma verdadeira corrida para adquirir uma

tecnologia semelhante àquela até então possuída apenas pelo empresário inovador. Tão

logo tal tecnologia esteja disseminada, e as taxas de lucro equalizadas, um novo nível de

produtividade, através de uma nova tecnologia, será exigido, levando o empresário que

a aplicou a obter uma taxa de lucro acima da média. E, assim, sucessivamente.

A cada vez que se aumenta a produtividade, o “valor” contido na mercadoria

produzida, isto é, em sua determinação imediata como tempo de trabalho socialmente

necessário à sua produção, segue baixando na mesma proporção. De tal sorte, o valor

excedente e, assim, o lucro possível também seguem caindo. Em que pesem as diversas

tendências em contrário, verifica-se uma tendência à diminuição da taxa de lucro entre

os diferentes capitais. Não entraremos nessa controvérsia, visto que ela é interminável e

há uma série de autores, pelo menos nos últimos 100 anos, que debateram intensamente

a temática em apreço. Nosso interesse aqui é demonstrar que o capital em geral, na sua

necessidade de se autovalorizar, personificou-se e tornou-se uma lei cega a tal ponto que

impõe a todos os empresários capitalistas aumentarem a produtividade do trabalho,

substituindo a força de trabalho por novas tecnologias.

Durante um bom tempo, o capitalismo lidou relativamente bem com essa

contradição, por meio das tendências em contrário. A cada crise, a cada dificuldade do

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capital em geral para garantir as taxas de lucro adequadas, aumentava-se a produção ou

expandiam-se as relações capitalistas para locais onde elas ainda não haviam chegado

ou haviam chegado de maneira tímida, proporcionando matérias-primas baratas ou

quase sem custos, força de trabalho em condições de superexploração ou intensificação

do seu trabalho, mercados consumidores exclusivos, etc. Essas expansões também

possibilitavam o reinvestimento de capitais ociosos em estradas, portos, ferrovias, etc..

Nos países do centro do capitalismo, as intervenções do Estado (o chamado Estado de

bem-estar social) regulavam as relações entre capital e trabalho, de modo a estabilizar

os conflitos e garantir demanda efetiva para o consumo das mercadorias.

Porém, desde fins dos anos 1960, essas saídas capitalistas das crises foram se

tornando cada vez mais difíceis. E por qual motivo? Com a enorme crise que afetou

diretamente a economia dos Estados Unidos, coordenadora do sistema comercial e

financeiro mundial, gerando estagnação de investimentos e queda nas taxas de lucro,

diversas medidas econômicas, jurídicas e institucionais tiveram de ser tomadas. Uma

dessas medidas econômicas, especificamente ligada aos rearranjos técnicos e

organizacionais tomada pelos grandes grupos empresariais, foi a chamada “revolução

microeletrônica”. Junto a ela, vieram novas formas de organização do trabalho e dos

processos de produção, as quais ficaram conhecidas como toyotismo. A partir do que já

dissemos anteriormente, não é difícil imaginar o que ocorreu: um grande número de

demissões, a enorme expansão do setor de serviços (que, inclusive, acomodou parte

significativa da força de trabalho demitida nas fábricas), um expressivo aumento da

produtividade do trabalho, o surgimento de linhas inteiramente novas de produtos, a

recomposição momentânea das taxas de lucro, etc..

Segundo o filósofo alemão Anselm Jappe (2013), “investimentos cada vez mais

gigantescos eram necessários para se fazer com que os poucos operários restantes

trabalhassem segundo os padrões de produtividade do mercado mundial. O acúmulo de

capital ameaçava parar” (p.49). Uma enorme quantidade de mercadorias tinha de ser

produzida para compensar a ínfima quantidade de tempo de trabalho nelas contida. Se

houve um momento cujo lucro possível com 1 sapato era X, com o revolucionamento

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das tecnologias tornou-se preciso produzir 20, 50 sapatos para se obter a mesma massa

de lucro de outrora.

Foi na década de 1970 que uma parte cada vez maior da riqueza acumulada e

sem uma base de valorização e de lucro adequadas na produção fabril de mercadorias

buscou formas de valorização no chamado setor de serviços e, principalmente, na esfera

financeira. Trata-se de uma enorme expansão da esfera financeira, através daquilo que

Marx chamou de “capital fictício”. Cada vez mais as atividades das grandes empresas se

situam em investimentos nos fundos de pensão, na compra de ações de outras empresas,

de títulos do tesouro, de “derivativos”, nas operações cambiais, etc. Não é à toa que

empresas como Coca Cola ou Perdigão-Sadia, para ficarmos com dois exemplos, há

algum tempo não obtêm seus lucros apenas com a venda de refrigerantes e de sucos ou

com carne processada.

Podemos então explicar dois fatos que são fundamentais para nossa exposição.

O primeiro deles se refere ao avanço do neoliberalismo, também nos anos 1970: não se

tratava – como afirma Jappe (2013) – de um “jogo sujo” de capitalistas gananciosos

apoiados por políticos sem escrúpulos ou complacentes com a situação, como boa parte

da esquerda quis e quer fazer crer. Ao contrário, o neoliberalismo era “... a única

maneira possível de prolongar por um pouco mais de tempo o sistema capitalista”

(p.50). O segundo fato, se refere à migração desses capitais da esfera produtiva para a

esfera financeira e, daí, para a sua aplicação no financiamento da urbanização – ou, de

maneira mais precisa, nos negócios imobiliários. É partir daqui que poderemos ver as

manifestações da crise da urbanização, isto é, a “crise urbana” como expressão e

condicionante de uma crise mais ampla que é a do trabalho como a fonte do valor.

II

Obviamente que o debate sobre a modernização brasileira não pode prescindir da

presença das inúmeras contribuições teóricas que permitiram desvelar os fundamentos

através dos quais esta se deu. E tais contribuições tiveram uma enorme perícia em

demonstrar de que modo um processo de modernização que rompeu parcialmente com

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sua base agrária e se assentou em um padrão de acumulação tipicamente urbano-

industrial, levaram a um expressivo crescimento econômico. E um crescimento que não

se converteu em melhoria das condições de vida de enormes frações da classe

trabalhadora brasileira, sobretudo aquelas que foram diretamente mobilizadas pela

modernização. Ao contrário, esse crescimento econômico a altas taxas foi obtido,

basicamente, à custa daquilo que Lúcio Kowarick chamou de “espoliação urbana”: a

combinação de uma hiperexploração da classe trabalhadora combinada com a quase

ausência de um padrão de distribuição via salário indireto, como aquele verificado nos

países do centro do capitalismo.

A expansão das periferias metropolitanas, as alternativas de morar, as formas de

organização política das classes trabalhadoras para além do chão-de-fábrica, as

conquistas daí advindas e os novos circuitos de relações sociais nos quais as classes

trabalhadoras foram inseridas... Todos esses fenômenos são de grande importância para

compreendermos o estatuto mais recente da nossa formação social. Porém, propomos

aqui, em linhas gerais, apresentar o modo como o padrão de acumulação urbano-

industrial e a urbanização brasileira, notadamente nas três últimas décadas e devido à

crise por que passa o próprio capitalismo, progressivamente vêm se subordinando a

outro padrão, o qual diversos autores vêm chamando de dominância financeira.

Sob quais pressupostos o Brasil – ou melhor, a urbanização brasileira – veio a se

tornar uma plataforma de valorização dos capitais excedentes que circulam na esfera

financeira? Embora não seja possível darmos maiores detalhes, cabe mencionar o marco

regulatório do financiamento imobiliário e as mudanças institucionais que permitiram

que o setor imobiliário (tanto o residencial quanto o comercial) fosse integrado ao

mercado financeiro no Brasil, permitindo assim a expansão dos negócios imobiliários.

Fazemos também menção a uma lei que foi de suma importância nesse marco

regulatório. Trata-se da Lei Federal nº 9.514/1997, que criou o Sistema de

Financiamento Imobiliário (SFI). Seu objetivo principal foi o de transformar o mercado

de capitais, por meio da bolsa de valores, no local de captação de recursos para o

financiamento imobiliário, seja aquele voltado à aquisição de um imóvel ou para a

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construção de um empreendimento. A ideia foi a de retirar do Estado essa estrutura de

financiamento e passá-la para os investidores da esfera financeira. E essa lei permitiu

que as dívidas do financiamento de um imóvel, feitas por uma família, pudessem se

transformadas num título capaz de ser negociado livremente nas bolsas de valores. A

Lei nº 9.514 também trouxe uma mudança importante nos contratos de financiamento: a

alienação fiduciária. Com esse instrumento é possível manter aquele que financia o

imóvel apenas como detentor da sua posse. A propriedade efetiva e o acesso à sua

escritura só ocorrem depois de quitada a dívida. Caso haja falta de pagamento durante

mais de três meses, o imóvel pode ser tomado pelo banco que o financiou.

A referida lei, bem como os diversos instrumentos que ela trouxe consigo,

permitiram transformar o imóvel, que, até 15 ou 20 anos atrás, era uma mercadoria com

certa dificuldade de ser vendida por seu proprietário (baixa liquidez), em uma

mercadoria em geral com grande facilidade de ser negociada (alta liquidez),

principalmente quando transformada em um título negociável nos mercados financeiros.

Obviamente, essa nova característica atraiu muitos investidores (nacionais e

estrangeiros). Diversas empresas ligadas à construção civil e à incorporação imobiliária

se tornaram empresas de capital aberto, ou seja, permitiram que esses investidores

injetassem seu capital nessas empresas e, assim, financiassem a produção de

empreendimentos e a aquisição de terrenos. Aliás, é preciso abordar essa aquisição, pois

ela está diretamente ligada a um aspecto que irei tratar ao final da nossa exposição.

Do que esses investidores estão atrás quando eles injetam seu capital naquelas

empresas e adquirem suas ações? Lembram-se quando dissemos, no início da nossa

exposição, que, para falar do lucro, iríamos abstrair da renda fundiária cobrada pelo

proprietário fundiário e dos juros sobre o dinheiro emprestado pelo seu proprietário? Os

investidores estão atrás dos juros cobrados pelos empréstimos de financiamento à

produção imobiliária e da renda fundiária obtida com as altas especulativas dos preços

dos terrenos e imóveis nas aglomerações urbanas. E, de quebra, ficam com parte do

lucro, que vem sob a forma dos juros e é originado, por exemplo, da exploração da força

de trabalho utilizada pelos empresários da construção civil na produção imobiliária. Por

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isso, esses investidores fazem pressão pelos resultados das empresas, cobrando a

expansão dos negócios e o aumento das vendas de imóveis.

E quais são as consequências desse tipo de negócio surgido com a urbanização –

através da produção e da circulação do ambiente construído urbano – sobre as

populações nas metrópoles e, sobretudo, sobre as populações mais pobres?

Dissemos acima que os terrenos e os imóveis urbanos passaram a ser no Brasil,

principalmente nos últimos 15 anos, duas mercadorias com níveis de preço crescentes.

Esse fenômeno não ocorreu apenas no Brasil: trata-se de uma tendência mundial, com

consequências mundialmente graves. Eis a explicação básica para as altas dos níveis de

preço: os agentes econômicos (empresas dos ramos da construção e da incorporação)

estão sempre buscando dar um determinado uso aos terrenos numa dada área de uma

aglomeração urbana, um tipo de uso que permita a maior rentabilidade possível do

negócio, obtendo-se a máxima renda fundiária. Com isso, os preços desses terrenos e

dos imóveis construídos, que expressam as rendas fundiárias, tendem a um aumento

crescente. Como na construção civil as inovações tecnológicas foram intensas, reduziu-

se o peso do trabalho na composição de valor da mercadoria imóvel. Frente a isso, o que

se tem é um peso cada vez maior do preço dos terrenos no total do preço do imóvel,

com consideráveis repercussões sobre a produção e o acesso à moradia.

Obviamente, para alcançarem a rentabilidade desejada, os agentes econômicos

não atuam sozinhos. O poder público é chamado a intervir, seja através das mudanças

na legislação, seja através de grandes intervenções urbanísticas no espaço (construção

de avenidas, projetos arquitetônicos, grandes equipamentos urbanos, etc.).

Contudo, em 2008, uma forte crise, novamente originada nos EUA, abalou o

mundo e teve importantes repercussões no Brasil. Por aqui, um dos setores econômicos

mais atingidos foi o imobiliário. As empresas de capital aberto e os investidores ficaram

apavorados, pois começaram a ter enormes dificuldades de expandir seus investimentos

e até mesmo de negociar os empreendimentos já existentes. Diante dessas dificuldades,

representantes das entidades de classe da indústria da construção civil e da incorporação

pressionaram o governo federal para que um pacote habitacional fosse criado. Essas

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empresas tinham um enorme estoque de terrenos e sua intenção era chegar à construção

de 200 mil unidades habitacionais voltadas às populações com menores rendimentos.

Na formulação desse pacote habitacional ficaram de fora o Ministério das

Cidades e a equipe que vinha construindo o Plano Nacional de Habitação juntamente

com movimentos sociais e outras entidades de luta pela moradia. Assim, pautas sociais

históricas desses movimentos, que fizeram parte da Reforma Urbana, como o projeto de

lei de iniciativa popular que criara o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social

(SNHIS), foram simplesmente esquecidos.

Em março de 2009, foi lançado com MCMV, cuja meta inicial era construir 1

milhão de moradias, mobilizando recursos de 34 bilhões de reais, na forma de subsídios

para a construção das moradias e o financiamento imobiliário. As empresas construtoras

poderiam não só definir o terreno e o tipo de projeto como se encarregar dos trâmites

legais para vender os empreendimentos para a Caixa Econômica Federal. Não à toa,

essas empresas ampliaram a corrida para adquirirem terrenos em áreas periféricas das

metrópoles e formar um banco de terrenos para construírem grandes empreendimentos,

com centenas de unidades habitacionais, chegando a mais de 9000 mil em alguns casos.

Com o MCMV, o setor imobiliário como um todo e, especialmente, as empresas

construtoras e incorporadoras e seus investidores, puderam recompor suas taxas de lucro

em declínio e retomar o valor de mercado de suas ações em bolsa de valores.

Inúmeras consequências sociais desse modelo crítico de urbanização pode ser

mencionadas. A primeira se refere aos empreendimentos produzidos nas frentes de

expansão das metrópoles. Estes, não contam com a mínima infraestrutura adequada,

sem espaços comerciais e equipamentos coletivos e dispondo de precárias condições de

transporte e mobilidade. Mesmo quando tais empreendimentos se localizam nas porções

das metrópoles que dispõem desses elementos, apesar de contarem com equipamentos

coletivos e disporem de alguma diversidade de comércio e serviços, ainda prevalecem

as mesmas precárias condições de vida.

A segunda consequência social do avanço dos empreendimentos do MCMV são

os conflitos pelo acesso e a permanência nas áreas de expansão daqueles moradores que

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não dispõem dos rendimentos para consumirem os imóveis. Cria-se uma escassez

artificial de terras e imóveis, cujos mecanismos nada mais são do que a enorme

elevação dos seus preços, de modo a garantir a rentabilidade dos agentes econômicos. E

muitos desses moradores são oriundos das “expulsões pelo mercado”, e suas enormes

dificuldades para arcarem com os preços dos aluguéis os levaram a “residir” nas

ocupações residenciais, presentes atualmente em diversas metrópoles brasileiras.

Outra consequência social dessa urbanização refere-se às altas crescentes nos

preços dos imóveis nas metrópoles, altas que têm levado ao endividamento de um

número cada vez maior de brasileiros, incentivados a adquirir a “casa própria” via

financiamento imobiliário. Como disse Flávia Martins (2010), em pesquisa sobre o tema

do endividamento na aquisição da moradia, “...o desencadeamento da dívida em longo

prazo provoca uma subordinação do trabalhador – e da venda da única mercadoria que

historicamente lhe sobrou para vender: seu trabalho – aos ritmos de valorização e de

desvalorização do imóvel frente à produção urbana do espaço” (p.73).

Portanto, a compreensão do modo como atuam as forças sociais que

transformaram as metrópoles e demais centralidades urbanas em negócio é de suma

importância para dar sentido às lutas sociais que estão surgindo e ganhando força. E

esses negócios expressam o problema central, posto ao capital no seu processo

reprodutivo: a sua necessidade de afirmar o trabalho como fonte da sua autovalorização,

ao mesmo tempo em que precisa negá-lo, expelindo a força de trabalho do processo

produtivo. E as lutas por justiça social, as quais também vêm se expressando na luta por

condições minimamente dignas às urgências da reprodução imediata da vida, por mais

duras que seja, ainda não são uma luta pela superação da sociedade do trabalho.

Que o horizonte utópico das lutas por justiça social seja feito de consciências

negadoras do trabalho social e verdadeiramente autônomas.

Referências bibliográficas:

JAPPE, Anselm. Crédito à morte – A decomposição do capitalismo e suas críticas.

São Paulo: Hedra, 2006. 241p.

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KOWARICK. Lúcio. São Paulo 1975: crescimento e pobreza. São Paulo: Loyola,

1981. 160p. MARTINS, Flávia Elaine da Silva. A (re)produção social da escala metropolitana: um estudo

sobre a abertura de capitais nas incorporadoras e sobre o endividamento urbano em São Paulo;

2011. 209 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade de São Paulo, São Paulo.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, L.I V.I e II.[1867] 1998.