Lupércio Antonio Pereira - Anda Sobre o Lugar Da Ideias Liberais

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liberalismo no Brasil

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  • ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    PENSAMENTO MODERNIZADOR NO BRASIL IMPERIAL - AINDA SOBRE O LUGAR DAS IDIAS LIBERAIS

    Luprcio Antonio Pereira

    Resumo: Captar as incoerncias e contradies dos liberais no passado tem sido um dos esportes preferidos de muitos historiadores e cientistas sociais brasileiros. Com isso, desqualifica-se e diminui-se o papel representado pelos liberais e pelo liberalismo na histria do Brasil imperial. Entendemos que essa interpretao de que o liberalismo foi uma idia fora de lugar na histria do Brasil padece de uma fragilidade que compromete a compreenso do fenmeno representado pelas idias liberais no Brasil. A raiz dessa fragilidade est no procedimento desses autores de comparar o Brasil com um modelo de sociedade liberal burguesa que, a rigor, no existia contemporaneamente sequer nos pases mais desenvolvidos do mundo Ocidental. Compara-se, portanto, uma sociedade concreta, a brasileira, com um modelo abstrato e idealizado de sociedade liberal burguesa. Trata-se, portanto, de um procedimento anacrnico: toma as prticas polticas possveis ou necessrias em uma poca histrica para jog-las em outra poca. Mas h um outro problema grave nessa interpretao: limitar a anlise s foras sociais em presena no territrio do Estado-nao, ignorando o potencial transformador de foras sociais extraterritoriais. Palavras-chave: idias liberais; modernizao; Brasil imperial.

    MODERNIZING THOUGHT IN IMPERIAL BRAZIL: YET AGAIN ABOUT THE PLACE OF THE LIBERAL IDEAS

    Abstract: To capture the incoherence and contradictions of the liberal men in the past has been one of the main sports of the Brazilian historian and social scientists. Such fact, disqualify and decrease the role of the liberal men and of the liberalism during the imperial Brazilian history. We understood that the interpretation at which the liberalism in the Brazilian history was an misfit idea endure a fragility which compromises the comprehension of the phenomenon represented by the action of the liberal ideas in Brazil. The root of this fragility is on the procedure of those authors to compare Brazil with a liberal bourgeois society model that, strictly, did not exist contemporary not even in the more developed countries of the Occident. Therefore, it is made a comparison of a concrete society, the Brazilian one, with an abstract and idealized model of a liberal bourgeois society. The main problem of this procedure, consequently, consists on its anachronism: Takes the possible or necessary political practices from a historical period and throw it in another one. The purpose of this communication is to show that there are other possibilities to interpret the role performed by liberalism in the Brazilian history. Key-words: liberal ideas; modernization; Imperial Brazil

    Doutor em Histria Social pela USP Professor da Universidade Estadual de Maring e-mail: [email protected]

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    O objetivo dessa comunicao mostrar que h outras possibilidades de interpretar o

    papel desempenhado pelo liberalismo na histria do Brasil.

    Para romper com os esquemas de anlise que tomam o liberalismo como idia fora do

    lugar na realidade brasileira do sculo XIX, necessrio partir de um questionamento de

    cunho metodolgico.

    Desde muito tempo firmou-se como princpio inquestionvel que a histria brasileira

    est, desde sua origem, intimamente relacionada s vicissitudes da histria dos povos

    ocidentais. Em termos metodolgicos, portanto, toma-se a totalidade (a expanso comercial e

    martima dos povos europeus) como ponto de partida para se entender o particular e o

    especfico (a formao histrica do Brasil). Tomemos, como ilustrao do que estamos dizendo,

    o procedimento metodolgico adotado por Caio Prado Jnior.

    Assim como Aristteles havia estabelecido que o todo deve preceder s partes e que

    no se entenderia a natureza e a funo de uma mo se esta fosse vista como algo separvel do

    corpo (ARISTTELES, 1986: 681), tambm Caio Prado Jnior firmou o princpio de que a

    formao histrica do Brasil, desde suas origens e posterior desenvolvimento, deve ser vista

    como um detalhe do imenso painel histrico formado pela expanso comercial e martima dos

    povos europeus na era moderna. Vejamos, com as prprias palavras do autor, com que clareza

    ele coloca esse procedimento metodolgico:

    precisamos reconstituir o conjunto de nossa formao colocando-a no amplo quadro (...) destes trs sculos de atividade colonizadora que caracterizam a histria dos pases europeus a partir do sculo XV; atividade que integrou um novo continente na sua rbita; paralelamente alis ao que se realizava, embora em moldes diversos, em outros continentes: a frica e a sia. Processo que acabaria por integrar o Universo todo em uma nova ordem, que a do mundo moderno, em que a Europa, ou antes, a sua civilizao, se estenderia dominadora por toda parte. Todos esses acontecimentos so correlatos, e a ocupao e povoamento do territrio que constituiria o Brasil no seno um episdio, um pequeno detalhe daquele quadro imenso. Realmente, a colonizao portuguesa da Amrica no um fato isolado (...) apenas a parte de um todo, incompleto sem a viso deste todo. (PRADO JNIOR, 1972: 17)

    Depois de Caio Prado, esse procedimento de vincular a histria do Brasil histria do

    mundo Ocidental ganhou a fora de um modelo cannico. Em Celso Furtado, por exemplo, a

    formao econmica do Brasil o resultado de um complexo processo em que se entrelaam de

    modo estreito fatores externos (revoluo comercial, revolues poltico-religiosas europias,

    guerras entre as potncias europias, inovaes tecnolgicas, revoluo industrial, demanda

    externa por produtos coloniais, etc.) e internos tais como histria pr-colombiana, meio fsico

    (clima, relevo, vegetao, hidrografia, caractersticas do solo), a estrutura produtiva montada

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    pelo colonizador, a formao de grupos de interesses coloniais e depois nacionais ou regionais,

    decises polticas tomadas pela camada dirigente, etc (FURTADO, 1967).

    O mesmo procedimento seguido tambm por Fernando Novais em seus importantes

    trabalhos sobre a gnese, desenvolvimento e crise do Antigo Sistema Colonial (NOVAIS

    ,1969, 1986, 1985). Tambm para este autor, a evoluo da histria brasileira s ganha

    inteligibilidade se vinculada s vicissitudes da histria do mundo Ocidental. O mtodo e at

    mesmo a linguagem so muito parecidos ao modelo cannico inaugurado por Caio Prado,

    conforme se pode ver no trecho transcrito a seguir:

    A histria do Brasil, nos trs primeiros sculos, est intimamente ligada da expanso comercial e colonial europia na poca moderna. Parte integrante do imprio ultramarino portugus, o Brasil colnia refletiu, em todo o largo perodo da sua formao colonial, os problemas e os mecanismos de conjunto que agitaram a poltica imperial lusitana. Por outro lado, a histria da expanso ultramarina e da explorao colonial portuguesa se desenrola no amplo quadro da competio entre as vrias potncias, em busca do equilbrio europeu; desta forma, na histria do sistema geral de colonizao europia moderna que devemos procurar o esquema de determinaes dentro do qual se processou a organizao da vida econmica e social do Brasil na primeira fase de sua histria, e se encaminharam os problemas polticos de que esta regio foi o teatro. (NOVAIS, 1969: 47)1

    Essa forma de encarar a histria do Brasil teve desdobramentos serviu de paradigma

    para a interpretao da histria brasileira do perodo posterior independncia poltica. No

    sentido da colonizao e nas estruturas herdadas da fase colonial estariam os germes do

    atraso e do subdesenvolvimento, germes que encontraram campo frtil para seu

    desenvolvimento nas relaes do pas com o exterior, vale dizer, com os pases industrializados.

    Deste modo, para a historiografia das dcadas de 60 e 70, fortemente impregnada pela teoria da

    dependncia ento em voga, no se via na vinculao do Brasil ao mercado mundial seno as

    causas do atraso e continuidade da dependncia da economia nacional aos centros hegemnicos

    do capitalismo mundial, alm de constiturem instrumento de reforo do conservadorismo das

    camadas dirigentes.2

    Quando se sai do campo econmico e transita-se para o campo das idias, tambm o

    mundo exterior continua sendo uma referncia explicativa da histria brasileira, mas apenas

    1.Essa idia recorrente, tambm, no livro editado em 1985, citado na nota anterior. Para Novais, se a montagem do

    Antigo Sistema Colonial estava ligada aos sucessos da histria europia da poca moderna, tambm a sua crise e dissoluo estariam indissoluvelmente ligadas a eventos que tinham a Europa Ocidental como epicentro, ou seja, a passagem do capitalismo comercial para o capitalismo industrial e o cortejo de transformaes de toda ordem que este ltimo implica.

    2 Numa de suas variantes mais sofisticadas, como a de CARDOSO E FALETO (1981), a Teoria da Dependncia conseguia vislumbrar, nas relaes do Brasil com o mundo industrializado, alguma possibilidade de desenvolvimento, mas tratar-se-ia de um desenvolvimento dependente ou subordinado.

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    como uma espcie de valor referncia para se medir a distncia entre a sociedade brasileira e as

    sociedades dos pases desenvolvidos no que diz respeito aplicao prtica dos princpios

    liberais. Dessa comparao resulta sempre uma viso extremamente negativa da elite dirigente

    brasileira: conclui-se que ela ou no sincera em sua adeso ao liberalismo (NOGUEIRA,

    1984) ou ridcula e participante de uma farsa (SCHWARZ, 1981, 1988, 1990), ou faz uso

    apenas instrumental de alguns aspectos do liberalismo o laissez faire, por exemplo (FRANCO, 1976; COSTA, 1966, 1969, 1975) ou, ento, admite-se at que pode haver

    sinceridade de parte da camada dirigente em sua adeso ao reformismo liberal, mas essa

    vontade de mudar esbarra nas poderosas estruturas herdadas da fase colonial (HOLLANDA,

    1977, 1990), de maneira que seria impossvel a coerncia entre o discurso e a prtica poltica

    dos liberais brasileiros (JANOTTI).

    Visto dessa maneira, parece que no haveria mesmo sada para o liberalismo: quando h

    sinceridade, ele impotente; quando no totalmente intil serve apenas para perpetuar o atraso

    interno e a dependncia externa; quando no uma coisa nem outra, s serviria para mostrar o

    lado ridculo e cmico de camada dirigente.

    Entendemos que h uma outra possibilidade de leitura do papel representado pelo

    liberalismo na histria do Brasil. Do ponto de vista metodolgico, partimos do conceito

    elaborado por Marx e Engels de que, a partir das modernas relaes de troca advindas da

    Revoluo Industrial, a histria humana adquire uma dimenso mundial.

    quanto mais o isolamento primitivo das diferentes nacionalidades destrudo pelo modo de produo desenvolvido, pelo intercmbio e pela diviso do trabalho que surge de maneira natural entre as diferentes naes, tanto mais a histria se torna uma histria mundial. Assim que se inventa, por exemplo, na Inglaterra uma mquina que, na ndia ou na China, rouba o po a milhares de trabalhadores e subverte toda a forma de existncia desses imprios, tal invento se torna um fato da histria mundial. (MARX E ENGELS, 1979: 71).

    Colocada essa nova perpectiva de anlise, tomemos como exemplo a obra de Tavares

    Bastos, um dos mais conseqentes publicistas liberais brasileiros do perodo imperial. A escolha

    de Tavares bastante pertinente ao caso porque a sua obra considerada por Oliveira Viana

    como a expresso mxima do deslocamento mental de nossas elites (VIANA, 1987: 15),

    interpretao que compartilhada em linhas gerais por SANTOS (1978: 97).

    Entendemos que a obra de Tavares Bastos no pode ser plenamente inteligvel se a

    anlise de sua ao e de sua obra restringir-se aos limites da histria nacional brasileira. Dentro

    desses limites a equao ficaria incompleta, pois faltaria um dos seus elementos essenciais de

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    seu pensamento e de seu projeto de modernizao do Brasil, derivando da a impresso de

    tratar-se de um pensamento descolado da realidade. Esse elemento a imensa fora

    transformadora representada pela imigrao europia.

    Do ponto de vista metodolgico, adotamos o mesmo procedimento seguido por Caio

    Prado Jnior e seguidores de vincular a histria brasileira histria-mundo, com a diferena de

    que, na nossa leitura, na vinculao do Brasil com o mundo exterior estava inscrita a

    possibilidade de desenvolvimento. E Tavares Bastos era a expresso mais lcida e consciente

    dessa possibilidade.

    Se, para a historiografia influenciada pela teoria da dependncia, as relaes do Brasil

    com o mundo exterior na base do livre-cmbio reproduziriam o subdesenvolvimento ou a

    subordinao da economia brasileira s economias centrais, para Tavares Bastos a abertura

    para o exterior era um fator de mudana social e a condio indispensvel para abreviar o

    caminho do pas rumo modernizao. Era a possibilidade de se queimar etapas, de acelerar

    o tempo de maturao das novas sociedades do continente americano.

    Entendemos, pois, que o elemento chave que confere consistncia histrica ao discurso

    de Tavares Bastos exatamente identificar essas foras extraterritoriais como a base de seu

    projeto de transformao da sociedade brasileira. sua viso livre-cambista que lhe permite ver

    essas foras externas (imigrantes, capitais, a cultura tcnica dos povos industriais) no como

    inimigas, mas como aliadas, ou melhor, como instrumentos de transformao da sociedade

    brasileira. Colocada sob esse novo ngulo, a obra de Tavares Bastos no pode mais ser lida

    como um pensamento suspenso no ar, como havia colocado Oliveira Viana.

    Para Tavares Bastos, as relaes do Brasil com o exterior, especialmente com os pases

    ricos do Ocidente industrializado, no se resumiam s transaes comerciais e financeiras como

    emprstimos, venda de produtos primrios (para usar uma linguagem cara referida

    historiografia) e compra de manufaturados.

    Para alm das meras transaes comerciais e financeiras, ele divisava na Europa

    excessos de capitais e de fora de trabalho que poderiam vir a fecundar o desenvolvimento dos

    pases do Novo Mundo.

    Entretanto, se tinha conscincia do valor estratgico da imigrao europia, Tavares

    Bastos sabia tambm que, para provocar uma mudana real e a curto prazo, a chegada de novos

    imigrantes no poderia ocorrer em doses homeopticas. Neste caso, o nmero faria a diferena.

    Tavares Bastos sabia que s a imigrao em massa poderia alterar a paisagem social e mudar os

    costumes do Brasil. Recebidos em pequeno nmero, os imigrantes europeus acabariam

    absorvidos pelo caldo de cultura tupiniquim, cedendo a todos os vcios locais, sobretudo o

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    de utilizar trabalhadores escravos. Em pouco tempo tornar-se-iam to vadios e desleixados

    quanto os nacionais, conforme j alertava Jos Bonifcio em 1823

    ainda quando os estrangeiros pobres venham estabelecer-se no pas, em pouco tempo, como mostra a experincia, deixam de trabalhar a terra com seus prprios braos. E logo que podem ter dois ou trs escravos, entregam-se vadiao e desleixo pelos caprichos de um falso pundonor. As artes no se melhoram, as mquinas que poupam braos e pela abundncia extrema de escravos nas povoaes grandes so desprezadas. Causa raiva ou riso ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de acar que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construdas, com dois bois ou duas bestas muares. (SILVA, 1988: 67)3

    Portanto, abrir o pas e torn-lo atraente aos trabalhadores e aos capitais que as tenses

    sociais e a exacerbao da concorrncia expulsavam da Europa, era o meio vislumbrado por

    Tavares Bastos para abreviar o tempo para o Brasil atingir a maturidade necessria ao

    desenvolvimento da indstria. Assim, ao contrrio do que colocou a historiografia influenciada

    pelo nacionalismo e pela teoria da dependncia (LIMA, 1976), Tavares Bastos era, a seu modo,

    um defensor de uma forma talvez mais eficiente4 para o desenvolvimento industrial do pas do

    que o imediatismo dos chamados industrialista. Neste sentido, o livre-cambismo professado por

    ele no seria nem um elemento adicional e nem o ponto frgil, mas a prpria pice de rsistance

    de seu projeto.

    Na poca vivida por Tavares Bastos (1839-1875), a opo de abrir-se ou fechar-se em

    relao ao exterior era de importncia capital para o futuro do pas. Face s grandes foras em

    movimento na histria daquele momento, o pas poderia escolher basicamente trs caminhos.

    Um fechamento total, uma abertura parcial ou uma abertura corajosamente ampla. Naquele 3 Para prevenir o contgio dos colonos estrangeiros pelos hbitos brasileiros, o governo, tanto na Monarquia quanto

    no perodo republicano, procurou restringir o nmero de naturais do pas que poderiam participar dos ncleos coloniais. O historiador Oberacker Jr. nos informa que, por uma lei promulgada em 1907, o governo republicano limitou em 10% a proporo de lotes dos ncleos coloniais que poderiam ser vendidos a brasileiros. Cf. OBERACKER JR., Carlos H. - A colonizao baseada no regime da pequena propriedade agrcola. In.: Histria Geral da Civilizao Brasileira, Tomo II, 3 volume, p. 225.

    4 Devido ao grande nmero de imigrantes que acorreu para o Brasil a partir do final do sculo XIX, por volta de 1920 j havia pensadores nacionalistas preocupados com os perigos que rondavam a alma nacional, ameaada de se desfigurar ante a multiplicao indiscriminada de quistos estrangeiros no pas. A ecloso da 1 Guerra Mundial e o aumento da imigrao ao seu final produziu no pas temor quanto aos perigos alemo e italiano, conforme se pode ver num ensaio escrito em 1920, cujo autor j alertava tambm contra o perigo amarelo, que vai sorrateiramente ganhando impulso (NIEMEYER, 1920: 49). Hoje j se sabe que, junto com os perigos italiano, alemo e amarelo veio tambm a expanso de novas fronteiras agrcolas, a urbanizao, a formao do proletariado moderno, a ampliao da classe mdia, a formao de capitais excedentes que procuravam investimento fora da agricultura, a ampliao do mercado interno e, por fim, a prpria indstria. A posio deste autor serve novamente de ilustrao nossa tese de que, nas condies brasileiras do sculo XIX, o projeto livre-cambista, por seu destemor de abrir o pas para acolher praticamente tudo que proviesse dos pases industrializados, poderia ter mais eficcia que o projeto nacionalista, que tende a olhar com desconfiana o adventcio, principalmente se este vier em grandes levas.

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    momento era dada, aos pases novos da Amrica, a possibilidade histrica de escolherem

    crescer mais lentamente com suas prprias foras ou abrir-se para as foras sociais

    extraterritoriais para queimarem etapas no seu processo de desenvolvimento.

    Essa opo era to real que, na mesma poca de Tavares Bastos, na Argentina fazia-se

    a mesma discusso e formulavam-se projetos de transformao muito parecidos ao de Tavares

    Bastos, conforme se pode ler nas obras de Alberdi e Sarmiento. Ambos estes pensadores e

    estrategistas polticos argentinos fizeram da abertura total da Argentina para receber

    imigrantes a pedra fundamental de seus projetos de (re) construo nacional.

    Sarmiento, por exemplo, adotou o lema governar povoar e povoar, para ele,

    significava atrair para a Argentina as massas de emigrantes expelidos da

    Europa.(SARMIENTO, 1994: 145, 275, 276). A proposta de Alberdi semelhante, conforme

    se pode verificar em seu clssico trabalho sobre a reorganizao constitucional da Argentina.

    Neste trabalho, encontramos uma expresso que sintetiza todo o seu projeto de reforma. Para

    ele, tratava-se de criar na Argentina uma Constituio absorvente, atraente e dotada de tal

    fora de assimilao que faa seus quantos forem os elementos que se acerquem do pas; uma

    Constituio calculada especial e diretamente para dar 4 ou 6 milhes de habitantes em

    poucos anos. (ALBERDI,1994: 104, grifo nosso)

    Essa semelhana de estratgia de transformao social entre Tavares Bastos e aqueles

    pensadores e poltico-militantes argentinos tambm reforou a nossa hiptese de que o que

    levou muitos autores brasileiros a conceberem o liberalismo como idia desventurada em

    terras de escravos e de agregados , justamente, o fato de estes ltimos considerarem como

    foras sociais apenas aquelas existentes no pas, ignorando-se o potencial transformador que

    os liberais vislumbravam no espao extraterritorial do Estado-nao.

    o universalismo da concepo liberal que lhe faculta esse olhar mais abrangente e a

    identificao dessas foras de transformao extraterritoriais. A concepo nacionalista

    tambm no cega nem ingnua a ponto de ignorar esses movimentos da histria mundial,

    mas da sua natureza desconfiar daquilo que no nacional e, por essa razo, seus partidrios

    no tm o desassombro para apostar em foras externas como elementos bsicos de um

    projeto de transformao.

    Para Tavares Bastos, no se tratava simplesmente de atrair europeus como sucedneos

    do trabalho escravo, como pretendiam os fazendeiros, mas um reforo de populao j

    educada na escola da civilizao europia e que, se fosse atrada em grandes levas, poderiam

    realmente fazer o brasileiro trocar de alma. Com isso, queria promover uma revoluo

    completa no pas, inclusive no aspecto cultural.

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    A importncia que Tavares Bastos dava a esse projeto era tamanha que todas as

    reformas que props em sua obra estavam subordinadas a um nico fim: tornar o pas atrativo

    para o imigrante europeu. Essa idia obsessiva em seus escritos.

    Se quer reformar a educao, porque a reforma necessria para a imigrao, pois,

    em sua concepo, o europeu no iria para um pas sem escola; se prope a construo de

    uma rede ferroviria, porque a imigrao depende dela; se luta pelo casamento civil,

    porque considera-o imprescindvel para atrair o imigrante protestante; se prope o imposto

    territorial, porque julga que os latifndios improdutivos repelem o imigrante; se prope

    algumas reformas na lei de terras, porque julga-as necessrias para facilitar o acesso do

    imigrante s terras pblicas; se advoga a liberalizao da lei de naturalizao, porque julga-a

    imprescindvel ao interesse do imigrante; se prope a descentralizao poltica, porque

    avalia que isto deixar o Estado mais gil para as tarefas que lhe cabem no esforo de

    atualizao do pas, para coloc-lo em p de igualdade com outras naes concorrentes na

    atrao de imigrantes. Enfim, a leitura de suas obras revela que nenhuma idia importante

    discutida ou proposta por ele est desligada do projeto imigrantista. Essa idia organiza todas

    as demais.

    Tendo em vista que a imigrao em massa no era uma criao fantasiosa da cabea de

    Tavares Bastos, mas uma fora histrica real (QUEIROZ, 1979), responsvel pela formao e

    rpido desenvolvimento de pases como Estados Unidos, Canad, Austrlia, cujo fluxo estava

    em aumento na poca em que ele viveu, no se pode tomar o seu liberalismo como idia fora

    de lugar nem, como colocou REGO (1989), como idia extempornea. Seu projeto liberal de

    transformao social estava, portanto, firmemente alicerado na realidade porque projetou

    uma reforma modernizadora da sociedade brasileira e identificou corretamente a base social

    em que se apoiar para realizar esse projeto. Neste sentido, quando se avalia a proposta liberal

    de Tavares Bastos mediante um confronto com a realidade de sua poca, por realidade deve-

    se entender, como ele prprio j alertou, tambm o mundo que estava alm do Po de

    Acar, assim como Marx e Engels j haviam alertado os idealistas alemes de que havia um

    mundo para alm da Feira de Livros de Leipzig.

    Sendo assim, somente aqueles que tomam o conceito de realidade num sentido restrito

    (isto , circunscrito ao Estado-nao) podem conceber o liberalismo como uma idia

    inadequada ao Brasil do sculo XIX ou, ento, como uma ideologia que tendia a reforar as

    relaes de dominao dos proprietrios agrrios. Na variante representada por Tavares

    Bastos, o liberalismo foi uma idia fora que pde atuar eficazmente no sentido da

    transformao da paisagem social do Brasil de finais do sculo XIX e incio do sculo XX.

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