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    Expresses e sentidos do lpus eritematoso sistmico (LES)

    Adriana Dias ArajoSecretaria Municipal de Assistncia Social Natal, RN

    Martha Azucena Traverso-Ypez

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    Resumo

    O lpus eritematoso sistmico (LES) uma doena crnica e auto-imune que gera diversos quadros clnicosque se tornam uma ameaa vida da pessoa. Sua etiologia aponta para a combinao de fatores genticos,hormonais e ambientais, e sua incidncia recaiprincipalmente em mulheres. Acredita-se que os sentidosatribudos ao processo de adoecer inuenciam no tratamento do LES e na forma de lidar com as diculdades

    desse processo. Objetivando aprofundar os processos de signicao e gerao de sentidos relacionados

    experincia de LES, foram entrevistadas oito mulheres portadoras da doena. A anlise das narrativasevidencia que no s o LES que tem inmeras maneiras de se apresentar, mas a experincia da doena

    subjetiva e dinmica, tendo diversas formas de signicao conforme as condies advindas do processo deadoecer e suas implicaes. Ratica-se, assim, a necessidade de uma abordagem interdisciplinar que abarque

    essa complexidade, considerando a dimenso biopsicossocial envolvida no processo.

    Palavras-chave: doena crnica; lpus eritematoso sistmico; produo de sentidos

    Abstract

    Expressions and sense making process about Systemic Lupus Erythematous (SLE). Systemic LupusErythematosus (SLE) is a chronic and auto-immune disease which causes different clinical syndromes thatcan put in risk the persons life. Its etiology indicates the combination of genetic, hormonal and environmentalfactors, presenting a higher incidence among women. It is believed that meanings attributed to the illnessprocess inuence its treatment, as well as the persons capacity to cope with the difculties implicit in the

    illness process. Aiming a study in depth of meanings and sense making process related to the experienceof SLE, eight women affected by the disease were interviewed. The analysis of their narratives shows notonly the different symptoms and complex clinic evidences related to SLE, but also the diverse subjectiveand dynamic ways the illness is experienced. This raties the necessity of an interdisciplinary approach to

    embrace the SLE complexity.

    Keywords: chronic disease; Systemic Lupus Erythematosus; sense making processes

    O

    lpus eritematoso sistmico (LES) uma doena crnicae auto-imune que pode atingir vrios rgos e sistemas

    do corpo, gerando diversos quadros clnicos quepodem ser fonte de incapacidade fsica e profundo sofrimentopsicolgico, bem como uma ameaa vida da pessoa (Dobkinet al, 2001; Moreira & Mello Filho, 1992).

    Reconhece-se que esse tipo de doena crnica temuma dimenso psicossomtica prevalente, sendo importanteconsiderar o estresse e o sofrimento psicossocial no seudesencadeamento, evoluo, agravamento e possvel controle(Moreira & Mello Filho, 1992). Esse quadro mostra a necessidadede uma interveno interdisciplinar no atendimento s pessoasportadoras de LES, bem como considerar a forma peculiar dadoena se expressar na vida de cada pessoa, j que os aspectospsicossociais envolvidos contribuem para a complexidade do

    desenvolvimento e exacerbao dos sintomas (Radley, 1999).

    O presente artigo um recorte de uma pesquisa maior queobjetivou aprofundar na anlise da experincia de oito mulheres

    portadoras de LES, atentando paraos processos de signicao eproduo de sentidos ao lidar com as implicaes da doena.Embora nosso foco seja a dimenso psicossocial, um

    conhecimento mnimo da complexidade biolgica da doena necessrio para possibilitar esse dilogo interdisciplinar. Assim,na primeira parte do artigo faz-se um breve esboo sobre a doenae suas implicaes, para depois enfatizar nossa perspectiva detrabalho na interface da psicologia social e os processos sade-doena. A seguir apresentam-se as estratgias da pesquisa e aanlise das narrativas sobre a experincia da doena.

    Acredita-se que considerar os processos de subjetivao dapessoa portadora na interao com o contexto do qual ela fazparte pode inuenciar positivamente no tratamento e na forma de

    lidar com as diculdades implcitas nesse processo do adoecer.

    Estudos de Psicologia 2007, 12(2), 119-127

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    Pode, ainda, contribuir para que prossionais e pessoas afetadas

    estejam mais cientes dessa complexidade.

    Conhecendo o lpus eritematoso sistmico: implica-

    es e tratamento

    Embora seja um artigo dirigido principalmente a psiclogos,

    considerou-se necessrio fazer uma reviso sinttica dacomplexidade implcita na prpria doena. Os primeiros estudosacerca da doena aconteceram a partir da dcada de 50, quandoo mdico Pierre Cazenave constatou em vrias pessoas lesesavermelhadas na face que cobriam o nariz e as bochechas,causando feridinhas. Comparou-as s mordidas de lobo, dando doena o nome de lpus eritematoso (lpus = lobo, eritematoso= vermelho) (Zerbini & Fidelix, 1989).

    Estudos epidemiolgicos apontam que o LES maisfreqente entre mulheres, numa proporo de nove mulheres paracada homem, sendo sua incidncia maior entre os 15 e 45 anos(Sato, 1999; Sato et al, 2002; Zerbini & Fidelix, 1989). No Brasil,de acordo com Sato (1999), no h estudos epidemiolgicosmostrando a incidncia de LES na populao1; enquanto quenos Estados Unidos estima-se que uma pessoa em cada 2000apresenta a doena (Zerbini & Fidelix, 1989). Contudo, nacidade de Natal, em estudo realizado por Villar e Sato (2001), aincidncia de 8,7/100.000/ano, o que parece ser maior que emoutras partes do mundo, em virtude da permanente presena deluz solar com alto ndice de raios ultravioleta.

    Pesquisadores acreditam na possibilidade do LES serherdado, contudo, a constatao da doena nos pais ou avsno quer dizer que a pessoa ter a doena; entretanto, huma maior propenso em manifest-la. Sua etiologia aponta,assim, para a combinao de fatores genticos, hormonais e

    ambientais, j que a industrializao e alteraes nos hbitos devida parecem contribuir para elevar os ndices do LES. A junodesses fatores em pessoas geneticamente predispostas podegerar um desequilbrio no sistema imunolgico, favorecendoo surgimento do lpus (Sato, 1999; Sato et al, 2002; Zerbini &Fidelix, 1989).

    O LES uma doena inamatria, auto-imune, que pode

    atingir mltiplas partes do corpo, principalmente a pele, asjuntas, o sangue e os rins, e pode causar srios problemas aolongo da vida. O sistema imunolgico produz anticorpos paraproteger o organismo de antgenos (corpos estranhos). Havendouma desorganizao imunolgica, o sistema defensivo deixa de

    distinguir entre os antgenos e as clulas e tecidos do prpriocorpo, direcionando anticorpos contra si mesmo, os quaisreagem formando complexos imunolgicos que crescem nostecidos e podem causar inamao, leses e dores (Zerbini &

    Fidelix, 1989).Zerbini e Fidelix (1989) sistematizam os principais

    sintomas da doena em ordem de incidncia: artrite, febre,problemas na pele, tais como vermelhido em asa de borboleta,fotossensibilidade, queda de cabelo, fenmeno de Raynaud(colorao de mos e ps), feridinhas no nariz e na boca, bemcomo cansao, perda de peso, problemas renais, problemaspulmonares, problemas cardacos, aumento de gnglios,depresso e, at, complicaes neurolgicas e psicticas, que

    fazem parte de outras doenas. Essa combinao de sintomas

    diferentes em cada pessoa torna difcil o diagnstico delpus. Contudo, as novas tcnicas de laboratrio e o maiorconhecimento e habilidade dos mdicos para identicar a doena

    tendem a minimizar as diculdades do diagnstico.

    A pessoa ter o diagnstico de LES caso apresente pelo menos quatro destes sintomas, os quais podem ocorrer

    simultaneamente ou separadamente. um diagnstico complexofeito atravs da avaliao clnica, junto com o hemograma,anlise da urina e exames que avaliam o sistema imunolgico.

    As dores nas juntas e nos msculos ocorrem em 90% doscasos. Os msculos podem ser gravemente danicados pela

    doena, podendo resultar em fraqueza e perda da resistncia, casono seja dado um tratamento adequado no incio do problema(Stevens, 2001). A inamao dos rins tambm freqente e

    ocorre em cerca de 50% dos casos. Alm disso, os medicamentosutilizados no controle do lpus podem gerar problemas renaisque se confundem com a nefrite lpica.

    De acordo com Chartash (2001), o lpus pode atingirtodas as partes do corao, sendo a inamao no pericrdio

    a doena mais comum, que pode, ou no, gerar dores no peito. Entretanto, a arteriosclerose a causa mais freqentede problemas coronrios. Tais prejuzos no corao podem seroriundos da inamao causada pela doena em atividade ou,

    tambm, pelo uso de medicamentos. O lpus pode, ainda, causaranemia, gerando cansao, sonolncia e indisposio; se a anemiafor aguda, poder causar falta de ar e palpitaes, mas tende aregredir quando o LES est inativo.

    O envolvimento do sistema nervoso, como assinala Hanly(1991), ocorre em cerca de 75% das pessoas, o que geraconvulses, perda de sensibilidade, disfuno de habilidadesmotoras, depresso, psicose e sndrome orgnica do crebro.

    Esta sndrome se caracteriza por uma deteriorao abrupta ougradual da memria, da orientao e da concentrao, as quaisno so necessariamente permanentes, ocorrendo em algummomento do curso da doena em at 50% das pessoas. Mesmoassim, as pessoas podemmanter um estilo de vida relativamentenormal.

    Zerbini e Fidelix (1989) apontam a psicose e a depressocomo as complicaes neuropsiquitricas mais freqentes. Ofato das pessoas serem portadoras de doena crnica tende acriar uma noo distorcida de que essas pessoas tm razes parase sentirem deprimidas em virtude da doena, o que impede arealizao de um diagnstico precoce. Grande parte das crises

    depressivas em pessoas portadoras de LES tem curta durao,desaparecendo em alguns meses, mas devem ser tratadas com omesmo empenhoe persistncia com que se trata qualquer outraexpresso da crise lpica.

    O tratamento do LES deve ser personalizado e depender,alm da gravidade, dos rgos ou sistemas afetados. No caso deenvolvimento multissistmico, o tratamento dever ser orientadopara a queixa de maior gravidade (Sato et al, 2002). A medicaomais potente para tratar o LES o corticide, no entanto, estetambm provoca diversos efeitos colaterais (enfraquecimentodos ossos, diabetes, catarata, inchao do rosto e do corpo).Em alguns casos, os imunossupressores tambm so usadospara regular a ao do sistema imunolgico que se encontra

    desequilibrado (Zerbini & Fidelix, 1989).

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    Com relao gravidez, as pesquisas de Lockshin (2001)mostram que 50% de todas as gestaes em mulheres com lpusso completamente normais, 25% geram bebs prematuros e25% correspondem perda do feto, por aborto espontneo oumorte do beb. A mortalidade perinatal ser essencialmente maiselevada quando o LES severo e mal controlado. Acredita-se

    que a doena pode se exacerbar no perodo prximo ao momentodo parto e at oito semanas aps. Contudo, o acompanhamentosistemtico pode minimizar a exacerbao da doena (Sato,1999; Zerbini & Fidelix, 1989).

    O melhor momento para a portadora de LES engravidar quando a doena est inativa, mas todas as gestaes devem serconsideradas de alto risco devido severidade da patologia e necessidade do acompanhamento medicamentoso (Lockshin,2001). Contudo, ter a doena no impede que a mulher engravidee gere bebs saudveis, embora toda interveno durante agestao deva ocorrer sob o acompanhamento conjunto entreo reumatologista e o ginecologista. Aquelas que no desejamengravidar devem procurar um mdico para escolher o mtodocontraceptivo, lembrando que o estrgeno contido nas plulasanticoncepcionais pode ativar a doena.

    Diante dessa complexidade, algumas orientaes soessenciais para as pessoas portadoras de LES: (a) bom nvel deinformao da doena e suas implicaes; (b) evitar o sol e aslmpadas em funo da radiao ultravioleta; (c) contar comapoio psicolgico; (d) manter uma disciplina mnima de atividadefsica conforme as limitaes de cada pessoa; (e) adotar uma dietabalanceada, evitando os excessos de sal, carboidratos e lipdios;(f) evitar o tabagismo; (g) no caso das mulheres, recomendvelse abster do uso de anticoncepcionais em funo do estrgeno,apontado como um dos desencadeadores da doena; (h) evitar

    infeces; e (i) saber diferenciar os sintomas que podem sercausados por outros problemas de sade (Krauthamer, Coelho,& Sato, 1999; Sato et al, 2002).

    Fica em evidncia que a experincia do LES no coisafcil, demandando cuidados e mudanas no prprio estilo devida, que so dependentes de como a pessoa signica o processo

    de adoecer.

    Signifcando e gerando sentidos acerca do adoecer

    A ateno aos processos de significao e gerao desentidos faz parte de uma concepo do conhecimento e

    dos processos psicossociais estreitamente ligados ao. Oconhecimento deixa de ser um estado mental interno e passaa ser considerado como parte da ao, um modo peculiar denos relacionar com as situaes existenciais, signicando e nos

    posicionando na dinmica dos processos de intersubjetivao . uma abordagem terico-metodolgica embasada no referencialdo construcionismo social, que reconhece a centralidadeda linguagem para definir os termos atravs dos quaiscompreendemos e lidamos com os fenmenos nossa volta(Spink & Gimenes, 1994).

    Esse processo de signicar a ns mesmos e ao mundo,

    tambm permite que os sentidos sobre a doena sejam permanentemente modificados. De acordo com Grandesso(2000): a rede de signicados do indivduo pode ser reconstruda

    em razo do carter performativo da linguagem (p. 194). Devecar claro que a reconstruo de signicado, segundo a autora,

    quer dizer a mudana de sentidos a partir das novas narrativas queordenam tanto a experincia presente como, tambm, a passada,vislumbrando ainda as possibilidades futuras.

    No caso de uma doena crnica, percebe-se que cada pessoa

    processa os diversos signicados a partir das relaes sociais nocontexto no qual est inserida,nasua histria de vida enassuasexperincias. Destaca-se que, ainda que a doena seja a mesma,cada pessoa constri sentidos diferenciados. Uma pessoa podeinferir que a partir da doena sua vida tornou-se sem rumo edireo, enquanto outra a percebe como algo que lhe deu umsenso de ordem e propsito (Remen, 1993). Igualmente, ossentidos atribudos pela pessoa so dinmicos,sendo construdose permanentemente processados atravs das peculiaridades dadoena e da rede de signicados (de mdicos, outros portadores

    de lpus, vizinhos, amigos, familiares e outros) que fazem partedo seu cotidiano. Assim, os sentidos construdos no momento dodiagnstico ouem que a doena est em atividade so distintosdaquele em que a pessoa convive com a patologia, mas compouca ou nenhuma reincidncia.

    Observa-se, portanto, que importante conhecer os sentidosdados pelos(as) portadores(as)de lpus, pois isso constitui oprimeiro passo para intervenes que permitam uma abordagemmais criteriosa da doena. Na explorao da relao da pessoacom sua prpria doena reside uma das contribuies dapsicologia na interface com a sade, j que permite trabalharcom o que Campos (1992) denomina a vontade de cura (p.45). Ou seja, trata-se de identicar o potencial de recursos

    psicossociais capazes de ajudar a pessoa a lidar melhor comesse sofrimento.

    Estratgia de pesquisa

    A m de conhecer e compreender os sentidos atribudos

    acerca do adoecer, a estratgia utilizada foi a entrevista emprofundidade, considerada como um processo de comunicaoque ocorre entre dois atores sociais (pesquisador e participante).A entrevista viabiliza a elaborao de narrativas e a identicao

    e compreenso dos sentidos produzidos sobre o adoecer.Acredita-se que, nessa relao dialgica, a maior beneciada

    deve ser a prpria participante, ao ter espao para organizarnarrativamente a experincia da doena (Bruner, 1997;

    Grandesso, 2000; Murray, 1999).O Hospital Universitrio da Universidade Federal do RioGrande do Norte foi a instituio escolhida para a realizaoda coleta de dados, pois referncia no estado no diagnsticoe tratamento do LES. Uma vez obtida a autorizao para odesenvolvimento da pesquisa no hospital, o projeto foi submetidoe aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa da UFRN,conforme os critrios estabelecidos pela Resoluo No 196/96,do Conselho Nacional de Sade-CNS.

    O critrio para seleo dos participantes foi ser portadorde LES, estar em atendimento ambulatorial, ser do sexofeminino (por ser a maior incidncia), residir na cidade de Natal e ter disposio para participar da pesquisa. Assim,foram entrevistadas oito participantes que assinaram o Termo

    Sentidos do lpus eritematoso sistmico

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    de Consentimento Informado como requerido pelo Comit detica.

    As entrevistas ocorreram individualmente e para efeito dopresente artigo ser feito um recorte da pesquisa mais ampla paraconsiderar, alm dos dados scio-demogrcos, os processos

    de gerao de sentidos sobre esse adoecer. Todas as entrevistas

    foram gravadas em udio, para posterior transcrio e anlise,garantido o absoluto sigilo das informaes.

    O contato inicial com as participantes foi feito pessoalmente,na sala de espera do ambulatrio do hospital, porm, decidiu-seque as entrevistas seriam realizadas em outro dia e em outrolocal, para garantir a privacidade e o sigilo que requer a situao.Embora se tenha combinado que a coleta seria feita no hospital,duas entrevistas foram realizadas na casa das participantes porestas terem limitaes para se locomover at o hospital.

    De forma geral, as participantes mostraram-se maisreceptivas durante a entrevista do que no primeiro contatoocorrido na sala de espera. Isso foi constatado pela motivao

    expressada no transcorrer do encontro e a boa disposio para

    responder e participar, apesar de uma delas estar com adoenaem atividade e sentindo dores durante a entrevista.

    Conhecendo as participantes

    Com a nalidade de contextualizar e contar quem so as

    mulheres que compem o presente estudo, o roteiro de entrevistacontemplou dados como: idade, estado civil, escolaridade,religio, prosso e/ou situao ocupacional, renda familiar;

    bem como, informaes sobre maternidade. A m de respeitar

    a privacidade das participantes, cada uma identicada aqui

    apenas com uma letra do alfabeto em ordem seqencial. A Tabela1 apresenta o perl das oito participantes.

    A renda per capita de seis participantes era inferior aosalrio mnimo2; cinco das participantes tinham uma rendapercapita entre 80 a 180 reais; uma entre 181 a 281; e duas entre282 a 382 reais. Essa renda tende a ser mais comprometida,considerando os gastos oriundos do tratamento medicamentosopara manter a doena sob controle. A situao prossional antese aps a doena, bem como a ocupao atual apresentada na

    Tabela 2.

    Tabela 2

    Situao profssional e ocupacional das participantes

    n Profisso antes da doena Aps a doena Ocupaes atuais

    1 Operadora de caixa Pensionista Nenhuma1 Auxiliar de servios gerais Encostada pela percia Nenhuma

    1 Auxiliar de costura Aposentada por invalidez Nenhuma

    1 Costureira-operria Aposentada por invalidez Nenhuma

    1 Professora Aposentada por invalidez Escritora, relaes pblicas,vendedora autnoma e voluntria

    3 Estudante Estudante Estudante

    Tabela 1

    Perfl das participantes

    ParticipanteIdade(anos)

    Estado civil Escolaridade Religio

    A 22 Solteira 1o ano do 2o grau CatlicaB 18 Solteira 3o ano do 2o grau EvanglicaC 42 Solteira 2

    ograu completo Catlica

    D 39 Solteira 4a

    srie do 1o

    grau CatlicaE 39 Solteira 2

    asrie do 1

    ograu Catlica/evanglica

    F 46 Separada 2o

    grau completo Catlica

    G 21 Solteira 2o grau completo CatlicaH 44 Casada 3o grau completo Catlica

    Observa-se que a doena impediu que cinco participantescontinuassem seus trabalhos regulares. Porm, para algumasdelas permitiu a realizao de atividades autnomas (trabalhomanual, escritora e vendedora) que so mais exveis sregrasestabelecidas pelo Ministrio do Trabalho que determina uma jornada em torno de 6 a 8 horas dirias. Uma carga horriaxa torna-se, na maioria dos casos, impraticvel conforme os

    sintomas apresentados quando a doena est ativa. A maioriadeclarou car impossibilitada de se locomover, o que exigiu a

    suspensode toda atividade.

    Signifcando e gerando sentidos acerca daexperincia do LES

    A anlise das narrativas objetivando a produo de sentidosorganizou-se a partir dos seguintes eixos temticos: (a) como adoena se expressa; (b) observaes sobre o que prejudica e oque ajuda no controle da doena; (c) a convivncia com o LES;(d) mudanas e limitaes decorrentes do lpus eritematososistmico e (e) a doena e os projetos de vida.

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    Como a doena se expressa

    A diversidade de sintomas manifestados pelas participantescomo: inchao nas articulaes, dor, problemas de pele, diculdade

    de locomoo, depresso, febre, problema respiratrio, problemasde viso, queda de cabelo, feridas, problemas de circulao, perdade peso, inamao nos rins, problemas no corao, presso alta,

    ascite (acmulo de lquido na cavidade abdominal), unhas pretas,sangramento na gengiva, anemia e ndulo, revelam a variedadedos sintomas do LES e a complexidade do quadro clnico. Issoevidencia o porqu dessa patologia ser confundida com outrasdoenas e as diculdades para chegar ao diagnstico.

    A maioria das participantes destaca a presena de sintomassimultneos, sendo o inchao e dores em diversas partes docorpo, as principais queixas. Constata-se, igualmente, que aartrite afeta a todas as participantes, estando de acordo comZerbini e Fidelix (1989), que a apontam como um dos sintomasessenciais do lpus. A inflamao das juntas pode ser tosevera, que cinco mulheres armam ter perdido a capacidade

    de locomoo nos momentos de crise.Os problemas na pele tambm so referidos por todas as

    participantes, podendo atingir no s o aspecto fsico, comotambm o psicossocial, pois afetam a imagem corporal nomomento em que os sintomas esto se manifestando e/ou aodeixarem algumas cicatrizes (Meino, Assis, & Sato, 1999;Zerbini & Fidelix, 1989). Isso pode causar constrangimento pessoa portadora diante daqueles que cam curiosos e at

    questionamo tipo de doena e se esta contagiosa.Considerando que o sistema nervoso tambm atingido pelo

    LES, segundo as participantes, os sintomas de depresso foramevidentes, principalmente na fase inicial da doena. No momento

    da entrevista, as participantes D e E apresentaram algunssintomas de ansiedade e depresso. Contudo, torna-se difcildistinguir se fazia parte da doena ou era em decorrncia doimpacto emocional gerado pela situao existencial vivenciadapelas mesmas (Shapiro, 2001).

    Alm da diversicada sintomatologia apresentada pelas participantes, considerou-se relevante conhecer se elasidenticam situaes especcas em que os sintomas retornam.

    As participantes C e G foram categricas ao armar que

    desconhecem a situao em que os sintomas voltam. Contudo,a justicativa de C reside no fato dos sintomas no retornarem

    com a mesma severidade do incio da doena. Enquanto G

    explica que desde quando obteve o diagnstico (h trs anos) adoena encontra-se inativa.Observa-se ainda a diculdade em identicar situaes

    especcas associadas ao aparecimento dos sintomas, quando a

    doena parece no dar trgua. Pelo fato da doena ter avanadoem virtude do excesso de trabalho e pela idade, F consideraque tem diculdades em manter a doena sob controle e depende

    de altas doses do medicamento. Contudo, a volta dos sintomas inevitvel devido sua evoluo. Apesar disso, ela continuase mostrando ativa e, quando possvel, fazendo trabalhosmanuais para aumentar a sua renda. F, de fato, expressaquerer maximizar o que ainda pode controlar em relao doena. Assim, apesar de adorar ir praia, agora evita, porcausa da exposio solar. Alm disso, como reconhece que

    cansa rapidamente quando est na rua, sai apenas quando imprescindvel.

    B tambm aponta que os sintomas reaparecemautomaticamente quando a medicao suspensa por ordemmdica, evidenciando a dependncia permanente do medicamentopela maioria das entrevistadas. A participante H, igualmente,

    refere-se exposio solar como propiciador da reincidncia dossintomas; porm, enfatiza que diante de algum problema elestambm reaparecem. Durante a entrevista, de forma recorrentefala sobre a crise do seu casamento e o quanto esse sofrimentoconduz ao retorno dos sintomas.

    Aspectos emocionais so tambm destacados comocausadores da volta dos sintomas. Para D, os sintomasvoltam quando sente raiva, enquanto para E voltam diantedos problemas familiares. No entanto, A atribui o retorno dossintomas abaixos nveis de temperatura. Embora alguns dosaspectos apontados como favorecedores do retorno dos sintomaspossam ser controlados (evitar o sol, por exemplo),o estressee os aspectos emocionais fogem do controle, porque ocorremna dinmica interacional com o mundo ao redor, nem semprefavorvel ao bem estar das pessoas envolvidas. Isso revela anecessidade de uma escuta teraputica para viabilizar formasde amenizar esse tipo de sofrimento.

    Percebe-se que todas as participantes que j tiveram adoena ativa por mais de uma vez identicam a situao em que

    ocorre a volta dos sintomas; contudo, isso no garante o controleda mesma, porque os fatores emocionais, o estresse e a prpriadoena so marcados pela imprevisibilidade.

    Com relao maternidade, como a literatura aponta(Lockshin, 2001; Zerbini & Fidelix, 1989), observa-se que serportadora de LES no impede a possibilidade de ter lhos. Assim,

    trs das oito entrevistadas engravidaram, uma delas quatro vezes.Contudo, deve-se destacar que, durante a poca da gestao,nenhuma delas tinha sintomas ou o diagnstico. De qualquerforma, no caso de H, apesar de a doena ter surgido h seteanos e os dois abortos que sofrera terem acontecido muito tempoantes, ela acredita que o fato de no conseguir gerar uma criana

    est relacionado sua patologia.

    Observaes sobre o que prejudica e o que ajuda no

    controle da doena

    Para manter sob um relativo controleuma doena crnicano basta saber quais so as orientaes que devem ser seguidas.

    preciso tambm que a pessoa tenha in-corporado o que podeestar ajudando-a ou prejudicando-a nesse processo de adoecer.Nesse sentido, algumas participantes, quando questionadas sobreos aspectos que sentiam como prejudiciaissade, repetiramde forma quase mecnica: no seguir as recomendaesmdicas, fazer extravagncia, como ir praia, pro sol, comercomida carregada (A). Contudo, a participante B, alm deexpressar que no tomar os remdios propicia o surgimentodos sintomas, aproveita para revelar a sua preocupao acercada possibilidade de que o pai, em algum momento, no tenhacondies econmicas para adquirir os medicamentos de quetanto precisa.

    Igualmente, como nas situaes em que ocorre o retorno dossintomas, foram citados aspectos emocionais e a falta de apoio

    Sentidos do lpus eritematoso sistmico

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    daqueles que as cercam. Assim, C, E, G e H manifestamcomo prejudicial ter raiva, ter conitos com os familiares e no

    ter o apoio destes. A participante F disse no fazer nada queprejudique o controle da sua doena, ao armar que segue todas

    as orientaes mdicas, tomando a medicao e fazendo a dieta,embora, s vezes, burle esta. Ainda que algumas participantes

    mencionem os efeitos colaterais provenientes da medicao,um aspecto interessante foi a participante D ter sido a nica aarmar que justamente a medicao que lhe traz prejuzo: Que

    esse remdio pode curar, pode controlar o lpus, mas eu sei queele t me prejudicando em outras coisas, pode ser uma gastrite,pode ser... qualquer coisa que j tenha aqui em mim.

    Questionadas a respeito do que ajuda no relativo controle

    do LES, em contrapartida, ao que foi explicitado por D, asparticipantes B, E e F referem ser a medicao o elementoque mais ajuda a manter a doena inativa. Por outro lado, asparticipantes A, C, D, G e H destacaram vrios outrosaspectos que tambm auxiliam no controle da doena, tais como:ter uma boa alimentao, ter acompanhamento mdico, evitaro sol, no ter contrariedade, ter vontade de viver, distrair-se,caminhar e ter controle emocional.

    Poder-se-ia pensar que h uma relao entre o que prejudicae o que ajuda no controle do LES. Isto , se a medicao oaspecto fundamental que ajuda no controle, a falta desta tambmseria o principal fator que prejudica. Contudo, percebe-se quenem todas as participantes fazem essa relao quando indicamos fatores emocionais como principais contribuintes para odescontrole da doena. Talvez isso se justique pelo fato de a

    medicao ser um controle mais fcil de ser efetivado por elas;enquanto os aspectos emocionais so mais difceis de seremevitados, pois no dependem somente delas e, sim, de todo

    um contexto familiar e social que propicia a ocorrncia dessesepisdios estressantes.

    A convivncia com o LES

    Os processos de signicao e produo de sentidos, alm

    de perpassarem a experincia dos sintomas, esto presentestambm nas formas como as entrevistadas declararam vivenciaro LES, desde o surgimento dos primeiros sintomas, passandopelo processo de diagnstico, at o momento atual. Como apontaa literatura, o diagnstico da doena difcil e o tempo, desdeo aparecimento dos sintomas iniciais at o diagnstico, podese prolongar e ser marcado por grandes incertezas (Edelmann,2000; Radley, 1994).

    Observando o tempo de diagnstico das participantes (verTabela 3), pode-se constatar que todas tiveram o surgimentoda doena em perodo frtil (entre 17 e 39 anos), coincidindocom a faixa etria apontada na literatura (Sato, 1999; Zerbini& Fidelix, 1989).

    Tabela 3

    Tempo de investigao, idade no diagnstico e tempo de diagnstico

    Tempo deinvestigaodiagnstica

    nIdade no

    diagnsticon

    Tempo dediagnstico

    n

    2 a 4 meses 3 17 a 19 anos 3 1 a 3 anos 45 a 7 meses 2 26 anos 2 7 anos 2

    8 a 12 meses 3 37 a 39 anos 3 13 a 16 anos 2

    Salienta-se, ainda, que enquanto quatro entrevistadas tmo diagnstico de LES entre 01 e 03 anos, a outra metade dasmulheres j o tem por um tempo igual ou superior a sete anos.Todavia, esse maior tempo de convivncia com a doenapareceno contribuir signicativamente para a forma de perceber

    a sua enfermidade na atualidade. De fato, h outros fatores

    que inuenciam essa experincia, tais como a reincidnciae a gravidade dos sintomas, o apoio de familiares, a prpriapersonalidade, a estrutura familiar (ter ou no lhos), a idade e

    os projetos de vida.Praticamente todas as entrevistadas coincidem em relatar

    momentos de muito sofrimento fsico e psquico, j quemanifestavam vrios sintomassem saber a razo destes. Todasfalam de muita dor e sofrimento, tudo quanto era juntainchava, levou um bocado de tempo para descobrir queera lpus, a gente j tava pensando que era uma coisa maissria.

    Com relao reao ao diagnstico, a maioria dasmulheres declarou ter sentido diculdade em receb-lo. Assim,

    o diagnstico foi tanto uma denio da patologia, como um

    momento em que a vida pode sofrer mudanas signicativas

    conforme as especificidades da doena e dos sintomasexperimentados, bem como, a necessidade de controlar e/ouminimizar a reincidncia destes. Ademais, ca em evidncia

    que as pessoas reagem de formas diferentes diante de eventosque podem parecer iguais, dependendo em muito da histria devida de cada uma, assim como do momento e das circunstnciasque elas esto vivendo (Edelmann, 2000; Radley, 1994; Remen,1993).

    A maioria das participantes expressou um sentimentode choque, centrado na constatao da doena no ter cura.

    Evidenciam-se nos depoimentos inquietaes de todo tipo,oriundas da insegurana acerca de como ser a vida, uma vezque o prognstico incerto e inevitavelmente exigir mudanas,nem sempre fceis ou viveis, no estilo de vida (Edelmann,2000; Radley, 1994).

    Contudo, diante do sofrimento durante a fase dos primeirossintomas, em alguns casos o diagnstico tornou-se, tambm,uma forma de alvio. Assim para F, o fato de saber que noera cncer se contraps ao possvel mal-estar do diagnstico.Est implcita a idia, ainda muito presente no imaginrio social,de que o cncer conduz necessariamente condio de nitude

    (Spink & Gimenes, 1994).

    Observa-se nos discursos que, sendo os sintomas to fortes, bastante comum pensar em outras doenas incurveis, at mesmoAIDS, como fora o caso de H e de G. G relata que sofreumuito quando, no bairro, espalharam que ela tinha AIDS. Talassociao entre o LES e outras doenas crnicas justicada

    pela gravidade e semelhana da sintomatologia.Outro sentimento que est presente nesse momento o

    inconformismo. Isso cou evidente na fala de H diante de

    um diagnstico, cujo prognstico dependeria de uma srie dealteraes no seu estilo de vida, que incluiu deixar seu trabalhode professora, a m de ter a doena relativamente controlada.

    C mostra-se mais acomodada com a situao, j que declaraque estava desempregada quando os sintomas surgiram.

    Diferentemente das outras participantes que expressaram

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    emoes negativas diante do diagnstico da doena, aparticipante A, cuja irm falecida teve a mesma doena, seexpressou sobre esta com muita naturalidade e sem nenhumrastro emocional. Possivelmente, para qualquer observador seriauma reao no condizente com a realidade da doena da irmque terminara em bito.

    Evidencia-se, no processo da pesquisa, a variedade deformas de conviver com a doena dependendo da pessoa, daexperincia de vida e at do grau de maturidade para percebera dimenso e implicaes da mesma (Radley, 1994). Portanto,destaca-se que em diferentes propores e dependendo domomento, o LES tem causado algum tipo de impacto emocionalnas participantes, provocando-lhes tristeza, choro, revolta,sofrimento, preocupao e medo. Em algumas ocasies, essessentimentos podem conduzir a um ciclo vicioso, em que tendema desencadear novos sintomas e/ou agravar a situao, j queas doenas auto-imunes como o LES evidenciam a permanenteinterdependncia das dimenses biolgica e psicossocial(Moreira & Mello Filho, 1992).

    Mudanas e limitaes decorrentes do lpus

    eritematoso sistmico

    A doena crnica, na maioria dos casos, exige alteraesno estilo de vida visando minimizar os sintomas e/ou mant-larelativamente controlada (Radley, 1994; Remen, 1993). Nesteestudo, as participantes destacam algumas das mudanas nasua vida: evitar exposio solar; no fazer esforo fsico; notrabalhar; fazer dieta; tomar remdio sistematicamente e sofrerseus efeitos colaterais; conviver com o sofrimento da doenae preocupao pelos cuidados que ela demanda. Contudo,as reaes a essas mudanas dependem muito do contexto

    econmico e social, do apoio que percebem e do tempo deconvivncia com a doena.

    Assim, algumas das participantes citam as frustraes maissignicativas decorrentes das limitaes geradas pelo LES. D,

    por exemplo, alm das restries mais comuns, lamenta por nopoder morar em outro estado devido ao clima frio, o que lhetraria dores mais constantes nas articulaes. Enquanto que Haproveita para evocar o quanto sofreu com o seu afastamento dotrabalho. O mais signicativo para E tem sido conviver com o

    sofrimento ante a possibilidade de morrer, deixando totalmentedesamparado o lho de 8 anos, j que o pai da criana ausente,

    tanto afetiva quanto nanceiramente. Ela deixa em evidncia os

    sintomas do abalo anmico, a ponto defalar para o lho que vaimorrer apesar da doena no ter atingido rgos vitais.

    Algumas das participantes trouxeram a idia da doenacomo anormalidade que as limita nas atividades cotidianas,incluindo as tarefas domsticas. Assim, as participantes B eC armaram que deixaram de ter uma vida normal, esta

    ltima se lamentando tambm pela necessidade de ter quedepender do medicamento para toda a vida.

    Os discursos de A e F, embora no falem emanormalidade, coincidem ao armarem que as mudanas

    sofridas giraram, primordialmente, em torno da impossibilidadede se expor ao sol e das limitaes na realizao de esforofsico.

    Observa-se que a manifestao de vrios sintomas ao mesmotempo implica em diversas limitaes scio-ocupacionais, queatingem a subjetividade e a prpria auto-imagem. De forma geral,todo esse contexto oriundo da doena tem repercutido na vidadestas pessoas de diferentes formas, incluindo a possibilidade deapontar tambm formas alternativas de ver a adversidade. Assim,

    a participante G tenta no focar nas perdas, destacandosempre as alternativas para no abdicar totalmente do que gostade fazer. O que se justica plenamente pela idade e pelo fato de

    a doena estar inativa desde sua primeira crise, alm de estarsempre priorizando que qualquer sacrifcio prefervel paramanter a sade.

    A doena e os projetos de vida

    Percebe-se que, sendo a doena crnica uma ruptura nocurso da vida, a tendncia da pessoa passar por diferentesmomentos de crise que a fazem reetir sobre toda a vida passada,

    rever todos os seus valores e denir prioridades em funo

    das suas atuais limitaes e possibilidades (Grandesso, 2000;

    Remen, 1993).Assim, quando questionadas sobre o seu sentimento em

    ser portadora de LES, e a forma como signicam e lidam com

    a doena, nos deparamos com uma variedade de discursos quepermitem compreender melhor a diversidade das experincias.

    Embora a participante A conhea a doena, no s emrelao a si mesma, mas tambm a partir da convivncia coma sua irm, ela no apenas teve diculdade em compreender a

    pergunta, mas, ao respond-la, expressou nunca ter pensadosobre isso. Alm disso, ao longo da entrevista agiu como se adoena no fosse uma questo grave para ela. Essa atitude talvezdecorra do fato de que a maioria dos membros da famlia sofre

    de diferentes doenas crnicas.A participante B referiu que no se sente bem em serportadora de LES, lembrando ainda que no gosta de falar sobreo assunto. Foi relevante a forma como B signica a doena,

    referindo-se a ela como o visitante indesejado que apareceupraticamente do nada. Contudo, armou que j se acostumou

    com a doena e toma regularmente a medicao. C armou

    que apesar de conviver h 16 anos com LES, tendo de abdicarda praia e sofrer outras limitaes para mant-la sob um relativocontrole, mesmo assim, considera-se uma pessoa normal. Apesarde manifestar alguns sintomas, o tempo de convivncia com adoena a leva a aceitar melhor sua condio e tentar se manterativa socialmente.

    Em contrapartida, D, apesar de ser portadora h 13 anos,at hoje se mostra muito revoltada e inconformada. Igualmenteno caso de E observa-se frustrao e inconformismo. A idiaxa em encontrar uma soluo e at uma cura para a sua doena

    esteve constantemente presente no seu discurso. Revelou,ainda, uma preocupao permanente, falando da doena comoterminal e que a obrigaria a abandonar seu lho, caso ela venha

    a falecer.A participante F mostra ao longo da entrevista uma

    personalidade bem estruturada e decidida. Embora os sintomassejam mais permanentes e limitantes, tenta manter a doenasob controle atravs dos medicamentos e no exagerando

    Sentidos do lpus eritematoso sistmico

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    nas atividades. Contudo, h momentos em que se lamenta dadependncia dos medicamentos e de no poder trabalhar. Porm,percebe a necessidade de se manter lutando para controlar asituao o quanto puder, seja atravs dos remdios ou fazendocroch como uma atividade fisioterpica incentivada pelamdica, mas que tambm se tornou uma forma de aumentar a

    renda familiar.Para G, o momento dodiagnstico foi aterrorizante.Porm, como a doena est inativa h 3 anos, alm de se sentirapoiada pela famlia e pelo namorado e manter suas atividadessociais e ocupacionais, ela se sente, conforme suas palavras,como uma pessoa normal.

    A participante H reconhece a sua preocupao coma sua condio de ser portadora de LES, porque a qualquermomento, pode ser surpreendida com a manifestao de um novosintoma. No entanto, isso no a impediu de buscar alternativasque promovessem o seu crescimento e realizao pessoal,mantendo-se ativa com as diversas ocupaes criadas aps adoena e a conseqente aposentadoria forada. Contudo, apesardessa postura positiva frente doena, assume suas limitaes efragilidade diante da possibilidade de enfrentar uma outra pessoaportadora de LES, no ocultando o impacto emocional que sentequando sabe que algum manifesta a mesma doena.

    Percebe-se que, apesar de toda a complexidade da doena esuas implicaes psicossociais, a maioria das participantes (A,B, C, F, G e H) revelou no seu discurso que aceitaa doena e busca, em maior ou menor grau, alternativas paramanter sua vida social mesmo diante das restries impostaspela doena (Radley, 1994). Por seu turno, D e E mostram-seinconformadas e com muitas diculdades para aceit-la.

    Em relao s perspectivas das participantes acerca do

    futuro, seus discursos podem ser agrupados em duas categorias:(1) exclusivamente voltada para a doena; e (2) preocupaopela doena associada a outras conquistas como constituir umafamlia, estudar, trabalhar, reformar a casa e adquirir bens. Essasaspiraes se resumem para algumas na preocupao de manteruma vida normal.

    A categoria centrada na doena foi ressaltada pelasparticipantes D e E, lembrando que as duas apresentavamsintomas de depresso e mostraram um discurso reiterativocentrado nos problemas e com um vis marcado pela resignaocrist.

    Enquanto que as participantes F e H destacaram tanto

    manter a doena controlada, como ter conforto e seguranaatravs de possesso de bens, as participantes A e G, atpela juventude, enfatizam tambm a realizao de constituir umafamlia, estudar, ter uma prosso, trabalhar e passear. B, alm

    de fazer vestibular e se formar, tem como maior aspirao viveruma vida normal, ao passo que para C ter sua vida quasenormal foi o nico desejo expressado.

    Dessa forma, toda a histria pessoal e os contextos dos quaisparticipam (nos papis de esposa, me, lha ou irm; no trabalho

    ou na escola onde desempenham suas atividades; no hospitalenquanto portadora de uma doena), as relaes interpessoaisestabelecidas por elas nos diversos contextos, incluindo tambmas distintas fontes de informao (televiso, rdio, jornal, entreoutros) inuenciam os processos de signicao, evidenciando

    vrias formas de dar sentido ao seu adoecer. Esses processosestaro permanentemente em movimento e promovendomudanas conforme os novos contextos e papis que elasvenham a assumir ao longo de suas vidas, podendo, assim, sofrermodicaes e gerar novos sentidos.

    Consideraes fnais

    Os livros e artigos cientcos, em sua maioria, transmitem

    apenas o quadro clnico da doena, sem mencionar a pessoaportadora, enquanto que o dilogo com as participantes possibilitou uma maior compreenso acerca do que serportadora de LES. Assim, foi possvel conhecer a viso de cadamulher enquanto pessoa que sofre, chora, tem frustraes eperdas advindas desse adoecer.

    O sentido atribudo pela maioria das participantes sobre oLES que ele algo ruim, horrvel, que apareceu do nada e quea qualquer hora pode se manifestar com novas exacerbaes.

    No entanto, apesar dessa viso negativa e das mudanasimpostas pela mesma, a maioria consegue estabelecer uma boa convivncia com a doena, aceitando-a e tentando criaralternativas para preservar sua identidade social, sem, contudo,negligenciar os cuidados necessrios para mant-la relativamentesob controle.

    Igualmente observa-se que, apesar das mudanas advindasdo adoecer, algumas participantes no se detiveram nas perdas,preferindo focalizar a ateno no potencial que permanece.Assim, uma delas criou alternativas de trabalho com maiorexibilidade nos horrios e a outra buscou estratgias que

    preservassem alguns programas de lazer, considerando o

    melhor horrio para realiz-los. Contudo, as duas pessoas que semostram emocionalmente mais afetadas pela doenacontinuaminsistindo na possibilidade da cura, o que provavelmente asimpede de vislumbrar outras possibilidades.

    A convivncia com a doena no impede que as participantesmais jovens criem expectativas quanto ao seu futuro, seja como desejo de constituir uma famlia ou com a realizao de umacarreira prossional. Enquanto que aquelas que j passaram por

    essa fase da vida esperam poder manter a doena sob controlepara acabar de criar seus lhos e v-los formados.

    Observa-se que a doena repercute na vida das pessoas,especialmente quando foradas a se afastar das atividadesprossionais e/ou ocupacionais. Esse afastamento do trabalho

    repercute diretamente na situao econmica, em um contextode limitaes, afetando a nica garantia de sobrevivncia e sendouma fonte de estresse e preocupao adicional para algumas participantes. Dessa forma, a aposentadoria fornecida peloInstituto Nacional de Servio Social (INSS) constitui um apoiorelevante, que deveria ser adquirido sem tanta burocracia.

    As narrativas das participantes revelam que os variadossintomas fsicos e suas conseqncias so os que causam maissofrimento. No entanto, aps o estabelecimento da doena, osaspectos psicossociais passaram a ser to importantes quanto osbiolgicos no tratamento dos sintomas e no relativo controle dadoena. Assim, constata-se a necessidade de uma abordagem

    interdisciplinar que contemple a permanente interdependncia

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    entre as dimenses biolgica, psicolgica e social, visto que asintomatologia produz mltiplas implicaes que precisam serconsideradas.

    Acredita-se, ainda, que o acompanhamento psicoterpicoe/ou disponibilidade de grupos de apoio para portadores dessadoena seria relevante, pois permitiria a troca de suas experincias

    ao compartilharem suas angstias, temores e estratgias paraultrapassar as diculdades impostas pela doena.

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    Notas1

    Pesquisou-se na Sociedade Brasileira de Reumatologia e no site do Ministrio da Sade e no foram encontrados, at omomento, dados epidemiolgicos no Brasil. O que vem a conrmar a informao de Sato (1999).

    2Salrio mnimo correspondente ao ano de 2003.

    Adriana Dias Arajo, mestre em Psicologia pela UFRN, psicloga no Centro de Referncia da AssistnciaSocialCRAS do municpio de Natal. Endereo para correspondncia: Rua Aeroporto de Cumbica, 22(Emas); Parnamirim, RN; CEP: 59150-000. Tel.: (84) 3643-4573. E-mail: [email protected].

    brMartha Azucena Traverso-Ypez, doutora em Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri, professora no Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:[email protected]

    Recebido em 08.mai.07Reformulado em 25.jul.07

    Aceito em 03.set.07

    Sentidos do lpus eritematoso sistmico