Lutero e o Do Servo Arbítro

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  • 4 Lutero e o Du Serf Arbitre.

    4.1 A crise espiritual de Lutero e os princpios de sua nova teologia: a natureza decada do homem e a justificao pela f.

    A crise espiritual de Lutero se define pela natureza de seu profundo

    sentimento religioso, de seu desespero da misria humana diante da onipotncia

    infinita de Deus, de seu reconhecimento de que o homem, manchado pelo pecado,

    incapaz de salvar-se mediante seus prprios esforos, estando predestinado danao

    eterna, a menos que a Graa divina intervenha em seu socorro. A crise de Lutero

    parece j se iniciar em 1505, quando, repentinamente, abandona a carreira que

    pretendia seguir no ramo do Direito, e ingressa no convento agostiniano de Erfurt1.

    Ela se intensificaria aps 1511, com sua sada de Erfurt, e estabelecimento definitivo

    em Wittenberg.

    Foi sua crise espiritual que precipitou a formao de sua nova teologia,

    caracterizada por um agostinianismo extremado, tendo como centro a noo da

    natureza decada do homem. Movido por sua angstia, Lutero formulou novos

    princpios para o verdadeiro sentimento cristo, indo contra a autoridade da Igreja e

    do Papado em matria de f, e criticando todo um conjunto de atitudes no s

    religiosas, mas sociais e polticas, ligadas tradio romano catlica2, que professava

    a crena no livre arbtrio do homem e de seu poder na conduo do processo que o

    levaria salvao. Dava incio, ento, ao movimento reformador, que iria cindir a

    cristandade ocidental, disseminando, a partir da questo confessional, conflitos

    polticos e sociais por toda a Europa dos meados do sculo XVI.

    Lutero deu forma pormenorizada s suas convices teolgicas no Du Serf

    Arbitre, onde tematizou da maneira mais detalhada e profunda a sua concepo

    pessimista da natureza humana. Respondendo ao Essai sur le libre Arbitre, com que

    Erasmo pretendeu demonstrar a inconsistncia da teologia luterana, em seus

    1 SKINNER, Q., op. cit., p. 289. 2 Ibid., p. 285.

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    princpios fundamentais, o reformador atacou de forma violenta a noo ampla e

    elevada das virtudes e capacidades do homem, cerne do iderio humanista, tal como

    vimos expresso no Discurso sobre a Dignidade do homem de Pico, e afirmado na

    Diatribe de Erasmo. No Du Serf Arbitre, Lutero negou veementemente, o poder da

    ao do homem em transformar a si mesmo e ao mundo, afirmando, a partir do

    resgate de Sto Agostinho, uma natureza humana imutvel, definida em sua essncia

    pela corrupo do pecado, e, portanto, predestinada danao. Negou tambm, o

    valor moral da experincia no mundo, enquanto espao do pecado, situando-a no

    domnio da absoluta necessidade.

    A religiosidade de Lutero no se fundava no amor, mas no temor de Deus. Sua

    conscincia, sempre intranqila sobre o estado de sua alma, se em Graa ou danao,

    merc de uma divindade inescrutvel em seus desgnios, se nutria de uma

    concepo de Deus como um juiz terrvel, exigente e tirnico, a quem se deveria

    aplacar com boas obras, jejuns, mortificaes da carne e pregaes. No era este,

    entretanto, o ensinamento que havia recebido de seus mestres e superiores em Erfurt,

    a comear por Juan Staupitz, que sempre afirmara a crena em um Deus consolador,

    pai das misericrdias, a quem os homens deveriam confiar e ter esperanas, e do

    Cristo redentor, personificao do perdo, tal como aparecia nas oraes da liturgia

    romana. O temor da justia divina permaneceu sempre arraigado no corao de

    Lutero, fruto de sua religiosidade profunda, convulsa e trgica3. Precisava estar

    absolutamente certo de sua salvao, mas tal certeza no teria efeito para ele se

    baseada em razes objetivas pela persuaso, pelo mero cumprimento dos sacramentos

    e de boas obras, somente adquiriria sentido se vivenciada internamente como

    segurana subjetiva, paz de esprito. A estrita observncia monacal e a prtica de

    penitncias com que procurou implorar o auxlio divino para pacificar seu esprito e

    extirpar sua inclinao malfica, resultaram sempre em fracassos lamentveis. Toda

    sua luta era v, o pecado continuava a manchar sua alma, fazendo-se expresso de sua

    angstia espiritual, e sinal de sua incapacidade intrnseca em cumprir a Lei de Deus.

    Plenamente consciente de no poder mudar seu destino por suas prprias foras,

    3 Ibid., p. 295.

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    chegou a julgar-se incapaz de amar a um Deus que no s o perdera pelo pecado, mas

    dele se vingaria com sua justia implacvel.

    Foi por volta de 1514, na torre do convento de Wittenberg, que Lutero

    recebeu a revelao que ps fim sua angstia. Desde aquele momento, pde

    discernir, com clareza, atravs da iluminao do Esprito Santo, o verdadeiro sentido

    das Escrituras. O pecado, ento, se reafirmou a ele, no como uma fraqueza do

    homem a ser remediada por meios externos, mas sim como um poder maldito e

    infinito, que caracteriza sua natureza, separando-o definitivamente do Criador. Lutero

    afirmava que o pecado era impossvel de ser suprimido pelas boas obras, pois, sendo

    o homem essencialmente corrompido, qualquer ao sua carregava a mancha do mal,

    mas, ao mesmo tempo, sublinhou que a interveno misericordiosa da Graa podia

    salv-lo, atravs do dom da f, cuja luz iluminava o esprito e aclarava o significado

    da Palavra divina contida nas Escrituras. Segundo Lutero, os textos sagrados

    convidam o verdadeiro cristo a resignar-se sua condio de pecador, convencendo-

    se da ineficcia de suas boas aes para sua salvao. O verdadeiro cristo, nesta

    perspectiva, deveria depositar toda sua confiana na ao redentora de Deus, convicto

    de que s a f na onipotncia divina poderia salv-lo.

    Estabelecia-se assim, o princpio fundamental da doutrina luterana, ou seja, a

    idia da justificao interna pela f, e da inutilidade das obras externas do homem

    para sua salvao. Diante da dimenso espiritual onde o cristo recebia a luz do

    Esprito Santo, e onde a f se vivificava pela Palavra divina, o mundo, surgia aos

    olhos de Lutero como reino da corrupo, espao da ao e construo do homem, e,

    portanto, expresso de sua servido ao pecado. Partindo de tal oposio, fundada

    numa f de natureza puramente interna, Lutero passaria a questionar a autoridade

    espiritual da Igreja, assim como a legitimidade de seus poderes seculares.

    O princpio da justificao pela f devia ser tido pelo reformador

    necessariamente como revelao, pois seu carter de verdade e sua origem sagrada

    dependia da circunstncia de no provir dele mesmo, enquanto pecador, mas da

    iluminao divina4. Foi ento, que comeou a desprezar como inteis o ascetismo, o

    esforo humano, a observncia monacal, acusando seus irmos de Erfurt de soberba e

    4 FEBVRE, L., Martn Lutero un destino, p. 62.

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    desobedincia, ao pretenderem obter a salvao por suas prprias aes. De acordo

    com Lutero, a f, com que o cristo tornava-se objeto da misericrdia divina,

    traduzia-se antes de tudo, no reconhecimento de sua prpria misria, pelo qual se

    confiava inteiramente onipotncia da justia de Deus, que, pronunciada no esprito

    como um milagre, jamais poderia ser representada pelo poder corrupto da Igreja

    Romana.

    Uma humildade de tipo passivo e derrotista se afirmou, portanto, no cerne de

    sua religiosidade. Sua confiana na Graa redentora de Deus, se fez acompanhar da

    convico profunda de que a Lei divina havia sido formulada no Velho Testamento

    para que o homem se visse diante de sua incapacidade em cumpri-la, e encarasse o

    abismo que o separa do Criador. O verdadeiro cristo, segundo Lutero no se

    desesperava de sua misria, mas, se deleitava na f ardorosa que depositava em

    Cristo, que cumprira por ns a Lei que somos definitivamente incapazes de cumprir,

    nos libertando, assim, de suas exigncias5.

    No demais lembrarmos que, a interveno de Deus e a iluminao pela f,

    na perspectiva luterana no tornam o homem justo, no o purifica do pecado, mas

    apenas inicia um processo de regenerao, cujo desenlace s pode se dar aps a

    morte. A ao do cristo no mundo deve ser apenas fortalecer sua f na salvao

    futura atravs da Palavra viva de Deus. importante sublinharmos que para Lutero, a

    misericrdia de Deus no tem qualquer proporo com os mritos humanos, desta

    forma, aqueles que so agraciados pela f, no so exatamente os justificados, mas

    sim os que devem ser justificados aps a morte. Como bem nos mostra Lucien

    Febvre: Para Lutero, a justificao deixa subsistir o pecado e no d nenhum lugar

    moralidade natural. A justia prpria do homem radicalmente incompatvel com

    a justia sobrenatural de Deus.6

    A revelao decisiva na religiosidade de Lutero se d por ocasio da leitura

    dos textos de So Paulo. Nos escritos do apstolo encontra a frmula fundamental de

    sua descoberta: o justo viver pela f, que corrige como "somente pela f"7. Ele

    afirmava ter encontrado nos textos paulinos, a essncia de sua doutrina, e, segundo

    5 LUTERO, A Liberdade do Cristo, p. 31. 6 Ibid., p. 59. 7 SPENL, J. E., O Pensamento Alemo, p. 11.

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    suas prprias palavras, em seu Comentrio Epstola aos Romanos: a luz clara

    quase o suficiente para clarear toda a Escritura8. Nesta sua obra de 1516 Lutero

    estabeleceu o significado do princpio da justificao pela f, da indiferena entre as

    boas e as ms aes dos homens, do ponto de vista de sua salvao, a partir da nfase

    em sua natureza corrompida. Deus surge aqui, no como a justia imanente dos

    telogos, mas como uma vontade ativa e radiante, dando-se ao homem para que o

    homem se lhe d de volta9:

    Primeiramente, temos de conhecer a linguagem e saber o que So Paulo quer dizer com estas palavras: lei, pecado, graa, f, justia, carne, esprito e coisas semelhantes, caso contrrio a leitura de nada adiantar. Neste caso, tu no deves entender a palavra Lei de maneira humana como se fosse uma doutrina referente s obras que precisam ser feitas ou no, como ocorre com as leis humanas, quando a lei cumprida por meio de obras apesar de o corao no estar presente. Deus julga considerando o fundo do corao; por isso, a sua Lei exige tambm o fundo do corao e no se d por satisfeita com obras, mas pune, ao contrrio aquelas obras que no vm do fundo do corao por serem hipocrisia e mentira. Por essa razo, todas as pessoas so chamadas de mentirosas em si, pois ningum cumpre a Lei de Deus do fundo do corao e porque todos encontram dentro de si mesmos a indisposio para o bem e a disposio para o mal. (...) Por isso, ele afirma no captulo 7 que a Lei espiritual. O que significa isso? Se a Lei fosse carnal as obras lhe bastariam. Sendo, porm, espiritual, ningum a satisfaz, a no ser que tudo que tu faas venha do fundo do corao. Mas ningum d um corao assim, a no ser o esprito de Deus; ele que iguala a pessoa Lei.10

    Em outubro deste mesmo ano, Lutero escreve a Spalatino, capelo de

    Frederico II, discordando da interpretao erasmiana dos escritos do apstolo.

    Considerava um equvoco o entendimento do humanista acerca das obras e do

    cumprimento da Lei, no encarecimento que ele concedia em sua religiosidade

    colaborao da ao do homem para a salvao, iniciando por si, um processo de

    purificao de sua natureza, pelo cultivo das virtudes dos Antigos e da moral crist.

    Dizia que Erasmo deveria dar mais importncia ao pecado original e ler mais Sto

    Agostinho. Mais tarde, em carta a Juan Lang, um partidrio seu de Erfurt, insistiria na

    8 LUTERO, Prefcio Epstola de So Paulo aos Romanos, In: A Liberdade do Cristo, p. 82. 9 FEBVRE, L., Martn Lutero un destino, p. 64. 10 LUTERO., op. cit., p. 85.

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    crtica ao pensamento daquele que era, neste perodo, o grande rei da vida intelectual

    europia. Anunciava j, futuros combates:

    Leio a nosso Erasmo, e meu afeto por ele diminui a cada dia. Me agrada que repreenda to constante como eruditamente a religiosos e sacerdotes, acusando-lhes de inveterada e entorpecida ignorncia, mas temoque no enaltea o bastante a Cristo e Graa de Deus, em que muito mais ignorante que o Estapulense: em Erasmo, o humano prevalece sobre o divino.11

    4. 2 As vias da ruptura com Igreja.

    O ano de 1517 comea na Europa como um tempo de esperanas pela reforma

    pacfica da cristandade12, dentro do esprito da concrdia universal entre os homens,

    que animava o iderio dos humanistas cristos. O V Conclio de Latro realizava-se

    em Roma sob os auspcios de Leo X, e o douto e piedoso Francesco Della

    Mirandola, sobrinho de Pico, dirigia ao Papa um memorial ameaando a Igreja com a

    ira de Deus, se esta no se regenerasse na moralizao do corpo eclesistico. O

    grande humanista Erasmo de Rotterd, um dos maiores divulgadores do esprito de

    um novo cristianismo, acabava de publicar sua edio crtica do Novo Testamento e

    anunciava o alvorecer de um sculo de ouro, com o triunfo da paz, da piedade e das

    letras, contudo, sempre atento ao rumo dos acontecimentos, no tardaria a perceber

    um surdo rumor de catstrofe nos pases do norte, que viria turvar suas expectativas e

    dos demais humanistas e poetas de toda a Europa, proponentes de uma reforma

    conciliatria da Igreja.

    Foi na ocasio mesma em que Lutero, aps ter lido os textos paulinos,

    meditava sobre a ineficcia das obras externas e a justificao pela f, que grandes

    multides de fiis abandonavam Wittenberg, desejosos de obter as indulgncias

    predicadas nas cidades prximas pelo Frei dominicano Juan Tetzel, em nome do

    Arcebispo de Mongcia. Tetzel afirmava que para que uma alma deixasse o

    Purgatrio em direo ao Paraso, bastava que algum cedesse Igreja, em nome

    11 GARCA-VILLOSLADA, R., op. cit., p. 219. 12 Ibid., p. 319.

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    dela, certa quantia em dinheiro. Mais do que isso sustentava que a Graa indulgencial

    era a mesma Graa pela qual o homem se reconciliava com Deus, no sendo

    necessrio, nesta perspectiva, o arrependimento interno do pecador para sua salvao.

    Tais postulados iam radicalmente contra os princpios da religiosidade crist

    de Lutero. Veementemente indignado, ele escreveu uma carta de protesto ao

    Arcebispo de Mongcia, juntamente com uma cpia de suas recm escritas Noventa e

    cinco teses contra as indulgncias. No foi ele o primeiro em seu tempo, a levantar a

    voz contra os abusos da venda de indulgncias, o Cardeal Cisneros, por exemplo,

    grande reformador da Igreja na Espanha j o havia feito antes em carta a Leo X13. As

    teses de Lutero, entretanto, iam alm da denncia das indulgncias como uma

    devoo supersticiosa, continham a impugnao de certos dogmas tradicionais, que o

    tornariam suspeito de heresia.

    Escandalizado, com o teor das teses, o Arcebispo de Mongcia as enviou para

    os telogos e juristas de sua Universidade, para que eles as examinassem e dessem

    seu parecer. Estes concordaram com o Arcebispo declarando que era preciso

    entabular um processo contra seu autor. As teses foram, ento, transmitidas a Roma.

    A condenao Papal viria em 1518, com uma intimao de Leo X para que Lutero se

    retratasse. Mas, em carta ao Cardeal Cayetano, representante do Papa no Sacro

    Imprio, Lutero se recusava a obedecer s ordens do Pontfice, declarando no poder

    revogar uma doutrina fundada nas Escrituras indo contra a sua prpria conscincia.

    A questo sobre as indulgncias marca o preldio da reforma. Como afirma

    Donald Kelley14, o caminho que leva das Noventa e cinco teses negao radical do

    primado romano em 1520, foi contnuo e direto, impulsionado pela difuso e traduo

    dos escritos de Lutero por toda a Europa, atravs das novas tcnicas da imprensa.

    Este caminho foi semeado de controvrsias e disputas acadmicas que funcionaram

    como veculo primrio de formao da doutrina luterana.

    O contedo heterodoxo das teses de Lutero se baseia no princpio da

    justificao pela f. Seus leitores descobriram nelas uma atitude de autosuficincia

    teolgica, e uma rebeldia latente15. A heterodoxia se dava na negao do tesouro

    13 Ibid., p. 330. 14 KELLEY, D., The Begining of Ideology, p. 25. 15 GARCA-VILLOSLADA, R., op. cit., p. 346.

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    espiritual da Igreja, ou seja, da crena de que ela dispunha dos mritos de Cristo e dos

    Santos, para conceder aos homens a remisso de seus pecados. No poderia haver

    para Lutero, nenhuma instituio que pudesse funcionar como mediadora entre o

    homem e Deus, sendo, o mundo, em sua perspectiva, a dimenso da degenerao do

    pecado, e, portanto, totalmente oposto ao reino espiritual da infinita liberdade e

    majestade divinas.

    Lutero rechaava a validade tradicional da penitncia, questionava a

    autoridade espiritual da Igreja, e podia faz-lo sem medo, proclamando uma nova

    concepo da religio crist, pois Frederico II, o eleitor da Saxnia havia se

    comprometido em defend-lo. Por esta poca, Lutero ganhava cada vez mais

    notoriedade e formava adeptos na Universidade de Wittenberg, fundada por

    Frederico. Dali, ele desafiaria o Pontificado Romano e a todos os doutores e telogos

    escolsticos, na formulao de sua prpria doutrina, a partir da pureza da Palavra

    divina, uma vez desvendado o verdadeiro sentido das Escrituras pela luz da f.

    As intervenes diplomticas de Frederico, que no queria que um dos mais

    eminentes telogos e professores de sua Universidade fosse condenado como herege,

    determinaram a mudana de atitude de Roma em relao questo luterana. Leo X

    sabia da imensa influncia que o eleitor da Saxnia tinha sobre os negcios do

    Imprio junto a Maximiliano, e procurava entabular com ele uma poltica aduladora e

    de negociaes na esperana da retratao de Lutero, ou que Frederico permitisse que

    o monge fosse enviado a Roma.

    Em abril de 1518, os 27 conventos da observncia alem enviaram seus

    representantes a Heidelberg na reunio trienal do captulo da Congregao, Lutero foi

    designado como representante de Wittenberg. As autoridades Romanas se enganaram

    quando esperaram que lhe fosse feito, nesta ocasio, alguma espcie de repreenso

    pelos membros da Congregao. A sombra do prncipe lhe protegia contra qualquer

    autoridade. Lutero aproveitou a ocasio favorvel para expor as doutrinas

    fundamentais de sua nova religiosidade, indo alm da crtica s indulgncias.

    Defendeu na sala do convento de Heidelberg 40 teses contra a teologia tomista e a

    filosofia aristotlica, repudiando o princpio escolstico de que o homem pode

    compreender a Lei de Deus com sua razo e us-la para sua conduta no mundo. Com

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    sua nova teologia bblica e antiescolstica, formaria adeptos entre a juventude

    universitria do norte da Europa, tais como Martn Bucer, futuro reformador de

    Estrasburgo, Juan Brenz, que predicar o luteranismo em Subia, e o mais brilhante e

    prometedor dos jovens fascinados por suas novas idias, o humanista Felipe

    Melanchton, que ingressava na Universidade de Wittenberg em agosto daquele

    mesmo de 1518.

    Melanchton era sobrinho de Reuchlin, o grande erudito alemo que anos antes

    do escndalo luterano, havia suscitado um dos primeiros grandes conflitos do

    Renascimento entre o humanismo e a Igreja catlica. Despertou polmicas no mbito

    dos crculos eruditos de clrigos e de sbios humanistas, ao afirmar a necessidade de

    se recorrer aos textos e cultura hebraica para se compreender a verdade do Antigo

    Testamento. Assim como Pico Della Mirandola j havia feito, enfatizou a importncia

    do conhecimento da cabala para se alcanar a revelao em sua plenitude, que teria

    escapado Igreja. Com isso, Reuchlin reafirmava a tradio hermtica e ecumnica

    dos neoplatnicos florentinos face ortodoxia clerical, que considerava ilcita a

    leitura dos textos hebraicos. A maior parte dos humanistas alemes, tais como Ulrich

    Von Hutten, Pirckheimer e Wimpfeling, se colocou ao lado de Reuchlin, frisando a

    necessidade de acesso aos textos originais e verdade da revelao para a vida da

    alma crist, em oposio a um cristianismo centrado no cumprimento dos

    sacramentos e na obedincia Igreja e ao Papado. O conflito em torno de Reuchlin

    iniciou-se em 1506, e, como acentua Skinner16, expressou o dio j difundido entre os

    humanistas alemes contra a tirania de Roma sobre a Alemanha, ainda antes dos

    protestos de Lutero. Nessa ocasio, Hutten, um dos mais radicais destes humanistas,

    chegaria a questionar frontalmente os Direitos do Papado em decidir o caso em ltima

    instncia, a favor dos telogos, denunciando seu poder de interveno na Igreja alem

    como abuso de autoridade.

    Entre os muitos humanistas que, na disputa reuchliana, tomaram partido pela

    renovao das letras, e contra a ortodoxia romana, estavam alm de Erasmo,

    Melanchton, que se tornaria guia e mestre de hebraico e grego em Wittenberg, onde

    seria um dos principais telogos do luteranismo e amigo pessoal do reformador. Mas,

    16 SKINNER, Q., op. cit., p. 332.

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    j proliferavam, tambm, por este tempo, os inimigos declarados do reformador, e as

    disputas acadmicas, frutos das polmicas que sua nova doutrina despertava entre os

    doutos, se multiplicavam, tais como as que o envolvera com Juan Tetzel em

    Frankfurt, e mais tarde, em Leipzig com Juan Eck., um dos maiores telogos da

    Alemanha de ento, que havia escrito contra Lutero, classificando sua doutrina de

    sediciosa, temerria e hertica17.

    Na disputa de Leipzig, com Eck, em 1519, Lutero negou sistematicamente a

    autoridade da Igreja, num preldio de seus escritos mais violentos contra a tradio

    romano-catlica, que viriam a lume no ano seguinte. Pela primeira vez, condenou de

    forma explcita e veemente a regra da f verdadeira estabelecida pela Igreja, retirando

    o poder tradicional do Papa e dos conclios, e centrando-se num novo critrio, ou seja,

    na autoridade nica das Escrituras, cujo sentido s poderia ser revelado numa

    persuaso de natureza interior pela luz do Esprito18.

    Dessa forma Lutero rompia com sculos de uma vigorosa tradio segundo a

    qual, a verdade de qualquer proposio religiosa se fundava no fato de que era

    autorizada pela Igreja. Suprimia qualquer base objetiva para se testar a verdade de

    uma afirmao em matria de f, pois que o nico novo critrio por ele apresentado

    como princpio de sua teologia, consistia numa persuaso interior, e, portanto,

    pertencia somente ao foro privado da conscincia. Neste momento, sublinha

    Popkin19, Lutero deixava de ser mais um reformador, atacando os abusos e a

    corrupo da Igreja, para tornar-se lder de uma revolta intelectual, a partir da

    natureza do conflito que inaugurava acerca do critrio da verdade teolgica, na

    tematizao de um problema fundamental dos escritos pirrnicos de Sexto Emprico:

    "A caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter conseqncias

    extremamente amplas no s na teologia mas em todos os domnios intelectuais do

    ser humano.20

    A Alemanha dos incios do sculo XVI prspera, cheia de cidades

    deslumbrantes, com burgueses ricos e ativos, e formada por principados cada vez

    17 Ibid., p. 348. 18 POPKIN, R., op. cit., p. 26. 19 Ibid. 20 Ibid., p. 29.

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    mais poderosos empenhados num vigoroso esforo de concentrao poltica e

    territorial, devendo, contudo, a legitimidade de seu poder ao Sacro Imprio21. Se na

    maior parte dos Reinos europeus desta poca, como Frana e Inglaterra, ricos e

    prestigiosos monarcas reuniam em torno de si as foras e energias da nao nos

    tempos de crise, a Alemanha sob a autoridade do Sacro Imprio, se definia pela falta

    de unidade poltica e moral, num agregado de anseios contraditrios, dispersos numa

    multido de Reinos e cidades fortes econmica e politicamente. A submisso, ainda

    que apenas nominal, ao poder do Imprio, j fraco e decadente, impedia que os

    Reinos germnicos se unificassem numa organizao principesca com um chefe

    soberano realmente digno do nome22.

    Exatamente quando Lutero explicitava o radicalismo de suas idias em

    Leipzig, morria o Imperador Maximiliano, e humanistas exaltados como Crotus

    Rubianus e Ulrich Von Hutten incitavam e catalizavam os anseios difusos nos

    territrios germnicos, de forjar uma independncia, em meio ao vazio do trono

    imperial e o forte desejo de libertao do centralismo romano que tiranizava os povos

    sob a autoridade do Papa23.

    Como nos lembra Skinner24, o descontentamento das autoridades seculares

    europias contra o poder de interveno do Papado em seus territrios, cobrando

    impostos em seu nome, e controlando a concesso de benefcios no interior de cada

    Igreja nacional, j se fazia sentir desde a Idade Mdia. Em vrios pases os governos

    seculares conseguiram entrar num acordo com a S romana, e obtiveram concesses

    da Igreja, exercendo completo controle jurisdicional em seus territrios. Foi o caso da

    Frana em 1348, e da Espanha em 1482, que sempre manteriam relaes amistosas

    com Roma. Nos pases do norte, entretanto, em que as disputas sobre os direitos da

    Santa S, no encontraram solues, a presso sobre o Papado tenderia a aumentar,

    mesmo antes de Lutero. Foi o caso da Alemanha, da Inglaterra e da Escandinvia, que

    logo iriam aderir Reforma. A crise entre as autoridades seculares da Alemanha e o

    Papado, encontrou uma forte expresso no texto do humanista Wimpfeling, Agravos

    21 FEBVRE, L., Martn Lutero, p. 95. 22 Ibid., p. 98. 23 FEBVRE, L., op. cit., p. 129. 24 SKINNER, Q., op. cit., p. 341.

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  • 88

    da nao germnica25 de 1515, onde atacava os privilgios e jurisdies do

    estamento clerical. Wimpfeling acusava de ilegtima a vasta extenso de poderes do

    Papa na Alemanha, tida como usurpadora e gananciosa, em seus altos impostos sobre

    o povo germnico.

    Uma onda de nacionalismo xenfobo varria a Alemanha da poca de Lutero.

    A morte de Maximiliano abria um perodo de grande mutao, em que os diversos

    elementos sociais, os prncipes, os burgueses e o campesinato, faziam reivindicaes

    polticas e sociais precisas, por uma maior soberania, e pelo direito de representao

    na Dieta do Imprio, reconstituindo as liberdades germnicas obstrudas pela

    ingerncia constante do poder da Igreja26. Os humanistas germnicos procuravam

    uma figura de fora, que pudesse representar seus anseios. Erasmo foi objeto desse

    culto num primeiro momento27, mas, com a disputa de Leipzig, homens como Crotus

    e Hutten encontraram em Lutero e sua nova teologia, a marca distintiva da cultura

    alem, o fundamento e a fora combativa de uma Alemanha que queria ser livre e

    dona de sua terra, contra o domnio da Roma mercantil dos Pontfices.

    Aps a eleio de Carlos V, o apoio a Lutero entre os prncipes s iria crescer.

    Vrios deles como Felipe de Hessen e Ulrico de Wurttemberg, abraaram o

    luteranismo por motivos pessoais ou polticos, contra o domnio tradicional do

    Imprio e da Igreja28. Deste modo, as idias do reformador saam de um s golpe, do

    domnio especulativo e doutrinal, ganhando o espao pblico, e a ruptura religiosa

    passava a se articular com o esprito de nacionalidade e com motivaes sociais e

    polticas. Como nos mostra Kelley29, o conflito confessional j no mais se definiria,

    ento, apenas como uma questo de discordncias doutrinais, mas ainda, e, sobretudo,

    como de obedincia ou no s autoridades estabelecidas, numa descrena e rejeio

    sistemtica da velha tradio romano catlica. Diante do desencadeamento deste

    processo ideolgico, que comea na disputa de Leipzig, podia-se duvidar j que

    25 Ibid., p. 340. 26 Segundo Pierre Mesnard, a partir desta perspectiva que os historiadores alemes, hesitam em apresentar uma filosofia da histria da Reforma inteiramente dominada por Lutero, apresentando a Reforma a um tempo como sua obra pessoal, e como destino da Europa. MESNARD, P., op. cit. p. 178. 27 Idem. 28 GARCIA-VILLOSLADA, R., Races Historicas del luteranismo, p. 183. 29 KELLEY, D., op. cit., p. 19.

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    pudesse ser realizada ainda na Europa a conciliao e a paz crist, num esprito de

    unidade embebido de cultura Antiga, idealizado por Erasmo e seus seguidores.

    Nos incios de 1520, no entanto, o crculo da ortodoxia mais e mais se

    fechava contra o reformador alemo. Eck, seu grande adversrio, partia ento, para

    Roma com a inteno declarada de obter da cria Papal a sua condenao. Foi-lhe til

    nesta ocasio o conhecimento da doutrina luterana que tivera a oportunidade de

    adquirir com a disputa de Leipzig. Em junho era, enfim, publicada em Roma a bula

    Exsurge Domine, que excomungava Lutero, entregava ao fogo as suas obras e lhe

    dava o prazo de sessenta dias para retratar-se. Porm, todos sabiam que isso no

    aconteceria. O Papa j se havia convencido, ento, da ineficcia da poltica de

    negociaes. Ineficcia esta, que se mostrava mais flagrante diante da perda de

    influncia de Frederico junto ao Imprio, aps a morte de Maximiliano e eleio de

    Carlos V30.

    Mas, as idias luteranas j se haviam difundido largamente, e ganhavam cada

    vez mais adeptos no somente entre os prncipes. Melanchton, representando a

    posio de muitos dos humanistas alemes, tomava o partido de Lutero, e em 1521,

    colocaria em ordem a doutrina do mestre em seus clebres Loci communes31. Alguns

    artistas como Durer, Cranach e Holbein j abandonavam a Igreja Romana. Os

    burgueses urbanos, sobretudo, se inclinavam Reforma, e numerosas cidades, como

    Constana, Nuremberg e Magdeburgo se recusariam a aplicar a condenao do

    luteranismo, muitas delas viriam a abraar sem reservas a nova doutrina nos anos

    seguintes. Erasmo tambm se punha ao lado de Lutero, no interesse de salvaguardar

    seu ideal da reforma conciliatria, comprometendo-se a obter da Santa S, e se

    necessrio impor-lhe com toda a deferncia necessria, a suspenso da sentena. Para

    isso incitava os nimos dos humanistas luteranos contra a bula, atravs de libelos

    annimos, e usava de toda a sua influncia junto aos conselheiros do Imperador para

    que o estimulassem busca de uma soluo pacfica para o conflito. As atividades do

    polemista Hutten em sua defesa, por sua vez, no foram menos expressivas. Assim

    que a bula foi publicada, apoderou-se dela e a divulgou por toda a Alemanha com

    30 GARCIA-VILLOSLADA, R., Martn Lutero v. 2, p. 453. 31 DELUMEAU, J., Nascimento e Afirmao da Reforma, p. 94.

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    mordazes glosas antipapais, tais como esta: No de Lutero que se trata e sim de

    todos ns; o Papa no saca a espada contra um s, mas nos ataca a todos. Escutem-

    me, despertem porque sois germanos!32.

    Lutero podia estar seguro de que no seria preso sem fortes resistncias. Em

    dezembro de 1520, queimou publicamente em Wittenberg a bula que lhe condenava e

    o corpus da Lei cannica, dramatizando sua ruptura definitiva com a tradio

    eclesistica e a autoridade da Igreja Romana33. Esta ruptura seria reafirmada

    oficialmente na Dieta de Worms em 1521, numa apresentao inflamada do novo

    critrio34 que justificava sua teologia, ou seja, a certeza subjetiva, a convico interna

    do cristo iluminado pela f ao ler os textos sagrados. Recusando retratar-se, Lutero

    pronunciou em Worms, estas j famosas palavras:

    "A menos que eu seja convencido de estar errado pelo testemunho das Escrituras ou (pois no confio na autoridade sem sustentao do Papa e dos conclios, uma vez que bvio que mais de uma vez eles erraram e se contradisseram) por um raciocnio manifesto eu seja condenado pelas Escrituras a que fao meu apelo, e minha conscincia se torne cativa da palavra de Deus, eu no posso retratar-me e no me retratarei acerca de nada , j que agir contra a prpria conscincia no seguro para ns, nem depende de ns. Isto o que sustento. No posso faz-lo de outra forma. Que Deus me ajude. Amm."35

    Logo quando se afastava de Worms, o reformador foi levado ao castelo de

    Wartburg por cavaleiros de Frederico II, onde permaneceu a salvo do perigo de ser

    encontrado e enviado justia. Ali permaneceu at o ano seguinte, quando voltou s

    pressas para Wittenberg, ansioso por retomar a direo do movimento, que se

    descaracterizava sob a liderana de Carlstadt, um fervoroso partidrio seu, desde a

    disputa de Leipzig.

    As prdicas de Carlstadt so em geral consideradas como a principal origem

    das dissenses mais radicais da Reforma36, que desde ento proliferariam na Europa

    entre novos profetas celestes, anabatistas e sacramentrios. Carlstadt negava o valor

    do batismo dos recm nascidos, e afirmava a necessidade do batismo dos adultos

    32 Apud FEBVRE, L., Martn Lutero un destino, p. 148. 33 KELLEY, D., op. cit., p. 25. 34 POPKIN, R., op. cit., p. 27. 35 Apud. Ibid.

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  • 91

    verdadeiramente crentes, ou seja, justificados pelo dom da f, estimulando em seu

    nome atos de iconoclastia e de revolta contra as autoridades estabelecidas, tidas como

    personificao do pecado. Suas idias seriam retomadas de maneira mais radical por

    Tomas Muntzer e seus discpulos anabatistas de Zwickau. Para impor suas doutrinas,

    Muntzer logo iria aderir revolta dos camponeses que eclodia em Mulhausen em

    1524.

    A partir de sua volta a Wittenberg, Lutero no economizaria esforos na

    eliminao destas seitas radicais e na represso das insurreies camponesas

    incentivadas por tais iderios. Perceberia, ao mesmo tempo a necessidade de

    fortalecer os laos da Reforma com as autoridades seculares. Daria, ento, contornos

    mais bem definidos e slidos sua nova doutrina, fundada na liberdade espiritual do

    cristo, cuja contrapartida, como veremos mais adiante, estava na obedincia aos

    poderes temporais, que deveriam reinar soberbos no mundo, sem obedecer s ordens

    de Roma, considerada um poder usurpador e corrupto, com suas prerrogativas de

    autoridade espiritual.

    Mais tarde, quando a Reforma j se encontrava sob a proteo dos prncipes,

    Joo da Saxnia, sucessor de Frederico, e Felipe de Hessen organizaram a Aliana de

    Torgau37, uma liga de prncipes protestantes contra a formao de uma liga catlica

    na Alemanha. Quando em 1529, uma nova Dieta pretendeu repor em vigor a

    condenao de Worms, seis prncipes e quatorze cidades protestaram. Com a adeso

    de Hamburgo, Brunswick e Lubeck Reforma, se fundaria a liga de Smalkade38. Este

    movimento de expanso do luteranismo perdurou nos anos seguintes levando o

    Imperador a aceitar a dissenso protestante. A Paz de Augsburgo em 1555 viria

    enfim, repartir oficialmente a Alemanha entre o luteranismo e o catolicismo. Dois

    teros do pas j haviam, ento, aderido nova f.

    36 SKINNER, Q., op. cit, p. 356. 37 DELUMEAU, J., op. cit., p. 95. 38 Ibid.

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    4. 3 Doutrina luterana e o Servo Arbtrio.

    Foi em 1520 que Lutero publicou suas obras mais incendirias. Em A Igreja

    no Cativeiro da Babilnia, destrua a autoridade clerical acusando sua corrupo face

    pureza do esprito evanglico. No Manifesto Nobreza Alem, nitidamente

    inspirado por Hutten, exortava os prncipes e nobres da Alemanha rebeldia contra

    um papado explorador que suprimia as liberdades crists essenciais, se imiscuindo no

    mbito interno e espiritual dos fiis. Finalmente em A Liberdade do Cristo, expunha

    a natureza da liberdade dos verdadeiros crentes. Se as duas primeiras obras se

    referiam, respectivamente, doutrina do sacerdcio universal dos cristos (diante do

    qual a Igreja perdia a primazia e legitimidade de seu poder), e das responsabilidades

    que os prncipes e os nobres deveriam ter no mbito de uma religio reformada, A

    Liberdade do Cristo encerrava a crena essencial de Lutero39, numa salvao que

    depende s da f, em oposio obedincia externa aos ditames da ortodoxia

    catlica. Assim Lutero define e explica essa liberdade:

    Um cristo um senhor livre sobre todas as coisas e no se submete a ningum. Um cristo um sdito e servidor de todas as coisas e se submete a todos. (...) Para compreender estas duas afirmaes contraditrias sobre a liberdade e a servido, devemos considerar que todo cristo possui uma natureza dupla, espiritual e corporal. Segundo a alma ele chamado de espiritual, novo e interior; segundo a carne e o sangue ele chamado de homem corporal, velho e exterior.40

    No cerne da afirmao de Lutero est a concepo do homem corrompido

    essencialmente pelo pecado, ele na verdade, um mal permanente do qual o homem

    s pode libertar-se na sua dimenso espiritual onde se faz objeto da interveno

    externa da luz divina expressa no dom da f. Esta ltima, fundamentalmente oposta

    dimenso mundana da degenerao absoluta traduo de uma liberdade que s se

    realiza ao preo da negao do mundo e do prprio homem, do reconhecimento que

    ele faz pela f, de sua misria, e, enfim, de sua condio irremedivel de servo do

    pecado no plano temporal.

    39 MESNARD, P., op. cit., p. 181. 40 LUTERO, A liberdade do Cristo, p. 25.

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  • 93

    Nesta perspectiva, o verdadeiro cristo, livre espiritualmente pela f, , em

    contrapartida, resignado sua inaltervel condio de pecador, despreza, assim, o

    significado tradicional do cumprimento da Lei e das boas obras assim como a

    obedincia Igreja, pois sabe que as coisas externas do mundo jamais podero influir

    em sua natureza interna constitutiva, cuja promessa de modificao s pode se dar

    pela poderosa interveno da Graa. ela, que pronunciada no esprito cumpre as

    verdadeiras aes virtuosas, impossveis de serem cumpridas pela vontade humana

    farisaica, manchada pela soberba. As prdicas de Lutero invertiam, assim, a relao

    tradicional entre as boas obras e a salvao, exigindo uma transformao total de

    nossos juzos morais: em seu ponto de vista, no so as boas aes que fazem um

    homem bom, mas, inversamente, o homem bom que pratica boas aes. Face

    expresso macia da Igreja visvel, ele opunha sua Igreja invisvel41, daqueles que se

    encontravam unidos entre si pelos laos secretos da mesma e verdadeira f,

    libertadora das coisas do mundo. Estes so, em sua doutrina, os verdadeiros crentes,

    juntos na comunho profunda de suas alegrias espirituais, ignorando os laos externos

    de uma submisso hipcrita ao Papa e aos princpios da Igreja.

    A essncia da religiosidade luterana, o princpio da unio entre o homem e

    Deus, reside na negao do livre arbtrio humano, no reconhecimento de sua natureza

    decada, na sua postura passiva e resignada ante a majestade do poder divino, atravs

    do qual, e somente dele, pode obter sua salvao. Tal negao to radical e

    apaixonada escandalizava a Erasmo, que aps ter envidado todos os seus esforos

    para salvar a verdade evanglica numa soluo pacfica da questo, convencia-se

    finalmente da inevitabilidade do cisma, retirando-se da cena do conflito s vsperas

    da Dieta de Worms. Contestou ento, a crtica que lhe havia sido feita por Lutero da

    importncia que dera ao livre arbtrio em sua traduo da Epstola aos Romanos. A

    ameaa quietista e imoralista da interpretao luterana se lhe afigurava muito pior do

    que a ameaa farisaica42.

    Em carta a Melanchthon datada de 1524, criticava a atitude dos reformadores

    que, por esta poca j disseminavam conflitos pela Europa, estando em profundo

    41 FEBVRE, L., Martn Lutero, un destino, op. cit., p. 154. 42 BATAILLON, M., op. cit., p. 148.

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    desacordo com a filosofia crist, base da religiosidade verdadeira, segundo sua

    concepo: Estes homens tm sempre na boca o Evangelho, a palavra de Deus, a f,

    Cristo, o Esprito; mas se se observa sua conduta, quo longe esto de sua

    linguagem! Devemos arrojar aos Mestres, aos Pontfices e aos bispos para tolerar

    tiranos mais duros?43

    Lutero no tardaria a escutar rumores de que o humanista preparava um

    ataque contra ele. Escreveu a Erasmo em um tom de solene advertncia, porm, um

    tanto depreciativo face quele que tinha sido um pioneiro da causa evanglica. Pedia

    para que ele se mantivesse neutro no conflito, contentando-se em ser apenas um

    espectador de sua tragdia44. Mas, j era tarde demais, e o Essai sur le libre Arbitre

    saa publicado, neste mesmo ano de 1524, pondo de manifesto uma divergncia

    irremedivel entre os dois. No ano seguinte Lutero lanava sua resposta a Erasmo

    com o Du Serf Arbitre. Sobre o texto de Lutero nos diz Marcel Bataillon45:

    A importncia do Ensaio sobre o Livre Arbtrio na Histria do pensamento cristo seria muito dbil se no tivesse provocado a formidvel rplica do Servo Arbtrio: afirmao de um Deus, que apoderando-se de Lutero como em outro tempo de Sto Agostinho - , lhe fez medir para sempre o seu nada.

    Assim que teve acesso ao texto de Erasmo, Lutero declarou que o lia com

    asco e fastdio, e ao escrever sua resposta, diferiu do tom expositivo e sereno do

    humanista. O Du Serf Arbitre se caracteriza por sua virulncia, seu mpeto, sua

    torrencialidade. O texto se desenvolve numa inventiva contnua, cheia de desprezos e

    mordacidades. O reformador aproveitou a ocasio para demonstrar sua doutrina com

    um vigor indito, refutando ponto por ponto as asseres do discurso adversrio,

    procedendo tal como Erasmo, nas citaes de passagens das Escrituras.

    O Du Serf Arbitre, tanto em seu contedo quanto em sua forma, no se presta

    ao gnero didtico, se enquadra antes, no gnero judicirio46, num tom polmico

    atravs do qual o reformador se prope a contestar publicamente no somente as

    43 Carta de Erasmo a Melanchton, 6 de setembro de 1524. Apud BATAILLON, M., op. cit., p. 147. 44 Ibid., p. 149. 45 Ibid., p. 150. 46 LAGARRIGUE, G., op. cit., p. 38.

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    idias mas a pessoa de Erasmo, sua honra e fama de intelectual moralista. Nas

    primeiras pginas do livro, escritas em forma de carta endereada ao humanista,

    Lutero dedica-se a desmascar-lo. Se ele era considerado superior no mundo

    intelectual europeu pela fora de sua eloqncia, por sua linguagem impecvel, de

    acordo com as regras da retrica Clssica, no podia, entretanto, aos olhos do

    reformador, dissimular, o contedo de seu discurso:

    ton petit livre toi m`a paru si bas et si vil que j`ai vivement plaint d`avoir Sali ton language si beau et si talentueux avec de telles immondices, et que je me suis indigne qu`une si indigne matire ft vhicule par les si prcieux ornements de l`eloquence: comme si l`on transportait des dchets et des excrments dans des vases d`or et d`argent.47

    Mais adiante, continua Lutero: si je suis malhabile sous le rapport du

    language, je ne suis pas sous le rapport de la connaissance, grace a Dieu.48.

    Considerava Erasmo como uma nulidade em conhecimentos teolgicos, sendo

    fortemente perigoso por poder seduzir com sua linguagem queles que o lem sem

    estar plenos internamente do esprito49.

    A primeira parte do Du Serf Arbitre se inicia com a apresentao da definio

    do livre arbtrio dada pelo humanista em sua obra: nous entendons ici par libre

    arbitre la force de la volont humaine telle que par elle l`homme puise s`attacher aux

    choses qui conduissent au salut ternel ou se dtourner de celles-ci.50 Lutero a

    considera obscura e mal explicada, e nos lembra da tradio jurdica que afirma que

    se algum fala de modo obscuro, quando poderia falar claramente, pode-se usar de

    suas prprias palavras para o contradizer51. Assim, prope-se a analisar tal definio

    47 seu pequeno livro me pareceu to baixo e to vil que eu lamentei vivamente por voc ter sujado sua linguagem to bela e to talentosa com tais imundcies e me indignei que uma matria to indigna fosse veiculada pelos preciosos ornamentos da eloqncia como se transportssemos dejetos e excrementos em vasos de ouro e prata. LUTERO, Du Serf Arbitre, p. 64. 48 sou inbil no que diz respeito linguagem, mas no o sou no que concerne ao conhecimento, graas a Deus. Ibid. 49 Ibid., p. 65. 50 Ns entendemos aqui por livre arbtrio, a fora da vontade humana, pela qual o homem pode se ligar s coisas que o conduzem salvao eterna, ou se desviar delas. Ibid., p. 181. 51 Ibid., p. 184.

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    parte por parte, usando seus conhecimentos das Escrituras para refut-la na afirmao

    do princpio fundamental de sua teologia:

    Quant aux choses qui conduissent au salut ternel, je pense que ce sont les paroles et les oeuvres de Dieu, qui sont offertes la volont humaine, pour qu`elle s`y attache ou s`en dtourne. Or japelle Parole de Dieu aussi bien la Loi que l`Evangile. La Loi exige les ouevres, l`Evangile la foi. Rien d`autre, en effet, ne nous conduit la grace de Dieu ou au salut ternel, si ce n`est la Parole et l`oeuvre de Dieu: puisque la grace ou l`Esprit est la vie mme, laquelle nous sommes conduits par la Parole et louevre de Dieu.

    Mais cette vie, ou ce salut ternel, est une chose incomprhensible pour l`intelligence humaine, comme Paul le dit, en se refrent saie, I Corinthiens II: Cest une des choses que l`oeil na point vue, que l`oreille n`a point entendue et qui nest point monte dans l coueur de l`homme, une chose que Dieu a prpare pour ceux qui l`aimaient.52

    4. 3.1 formao religiosa de Lutero.

    Se quisermos plantear uma explicao histrica, ainda que remota, da apario

    de certos dogmas luteranos no podemos esquecer dos possveis influxos do contexto

    da decadncia da teologia nos sculos XIV e XV, cuja atmosfera esteve presente na

    formao religiosa de Lutero e dos humanistas.

    As tradicionais disputas teolgicas escolsticas, que, de incio tinham

    finalidade pedaggica e de preciso de idias, transformavam-se por esta poca em

    meros torneios de agudeza dialtica entre tomistas, escotistas e nominalistas. No se

    distinguiam ento, a palavra de Deus da palavra dos homens, j no mais se sabia

    onde terminava a interpretao do mestre e onde comeava o dogma da f, a teologia

    se tornava, portanto, totalmente obscura53. O empenho de humanistas como Erasmo e

    52 Quanto s coisas que conduzem salvao eterna, eu penso que so as palavras e as obras de Deus, que so oferecidas vontade humana para que a elas se ligue ou delas se desvie. Ora, eu chamo Palavra de Deus, tanto a Lei como o Evangelho. A Lei exige as obras, o Evangelho a f. Nada mais, com efeito nos conduz Graa de Deus e salvao eterna, alm da Palavra e a obra de Deus: j que a Graa, e o Esprito so a vida mesma, qual somos conduzidos pela palavra e pela obra de Deus. Mas esta vida, ou essa salvao eterna, uma coisa incompreensvel pela inteligncia humana, tal como diz Paulo, referindo-se Isaas, I Corntios II: Esta uma das coisas que os olhos no podem ver, que os ouvidos no podem ouvir, que no est posto no corao dos homens, uma das coisas que Deus preparou para aqueles que o amam. Ibid. 53 GARCIA-VILLOSLADA, R., Races Historicas del Luteranismo, p. 101.

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    Reuchlin em purgar o cristianismo de tais supersties e formalismos e reformar a

    teologia decadente atravs do apelo constante Bblia em seu texto original,

    cumpriram uma funo muito importante de inspirar e canalizar a polmica luterana

    na preparao das origens da reforma protestante54.

    Como sublinha Cantimori55, a luta contra a escolstica e a filosofia tomista em

    toda a sua amplitude, trao distintivo do humanismo alemo e de suas aspiraes

    espirituais renovadoras que o distingue do humanismo italiano. Tal luta com Lutero,

    se converte em desprezo absoluto, identificando-se com uma averso ao Direito

    cannico e o esprito racionalista e jurdico da organizao da Igreja. O reformador

    repudiava na tradio escolstica, a justia que esta prestava liberdade humana,

    tendo como sua problemtica central, a questo do conhecimento de Deus, dentro dos

    quadros do racionalismo aristotlico. Acusava na escolstica a tentativa de aplicar

    uma cincia humana e corrupta cincia divina e inescrutvel de Deus.

    No mbito das disputas teolgicas dos sculos XIV e XV, a escola

    nominalista de Guilherme de Ockham, foi a maior responsvel pela queda da tradio

    escolstica56. Apresentava-se no sculo XIV, como a via moderna face via antiqua

    dos tomistas. Os nominalistas rompiam com a unidade entre razo e f, entre filosofia

    e religio. Desprezavam a fora da razo humana e s admitiam o conhecimento de

    verdades como a unidade e infinidade de Deus, a espiritualidade e imortalidade da

    alma, mediante a certeza da f divina. Repudiavam, portanto, a metafsica, negando o

    valor objetivo de idias e conceitos. Para eles, o poder cognitivo do homem se

    limitava experincia sensvel imediata, e jamais podia apreender a onipotncia

    divina. Em seus tempos no convento de Efurt, Lutero abraou com fervor o

    nominalismo. Teve ali grandes mestres desta corrente tais como J. Truffetter e B.

    Arnoldi de Usingen. Procurou a soluo de seus problemas ntimos numa consolao

    subjetiva, tratando sempre de fundar suas experincias pessoais nos textos das

    Sagradas Escrituras.

    Face a uma teologia formalista e seca, reduzida quase toda a questes lgicas,

    Lutero se fazia partidrio de uma teologia prtica, cultivando uma tendncia moral,

    54 CANTIMORI, D., op. cit., p. 95. 55 Ibid. 56 GARCIA-VILLOSLADA, R., op. cit., p. 104.

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  • 98

    espiritual e mstica, tais como os seguidores da Devotio Moderna, com quem tomara

    contato em sua primeira formao na escola de Magdenburgo, e sem se fundar em

    princpios dogmticos, mas na experincia vital e psicolgica, a partir da palavra pura

    das Escrituras, tal como os humanistas de seu tempo. Por conta de sua recusa da ento

    decadente tradio escolstica, Lutero foi levado tambm a absorver as idias de

    alguns dos msticos alemes da grande escola de Mestre Eckhart que florescera em

    fins da Idade Mdia57. No tivera contato com a obra de Eckhart, porm, conheceu e

    estimou muito a obra de Tauler, um dos seus principais discpulos. Atravs de Tauler,

    que predicara num alemo rude e pitoresco58, Lutero aprendeu a amar mais a sua

    lngua e, a partir de sua doutrina, que tinha por finalidade nica o encaminhamento

    das almas para a ntima unio com Deus, reafirmou o desprezo que nutria pela razo

    humana e pela lgica aristotlica.

    A crise de Lutero, que j mencionamos no incio deste captulo como essncia

    de sua religiosidade ardente, de natureza internalizada, espiritual, o empurraria cada

    vez mais para a crtica da observncia de seus irmos de Erfurt, e o levaria a deixar o

    convento indo se estabelecer em Wittenberg em 1511.

    A universidade de Wittenberg, fundada por Frederico, o sbio, era uma

    autntica universidade renascentista, que, pondo em prtica as novas tcnicas da

    crtica filolgica, encarnava o esprito moderno como nenhum outro centro

    universitrio na Alemanha de ento59. Ali, Lutero permaneceria por trinta e quatro

    anos, na ctedra de teologia, tornando a universidade, o centro irradiador de sua nova

    doutrina. Em suas lies, durante todo esse tempo, no fez mais que explicar a Bblia,

    dedicando sua vida ao estudo das Sagradas Escrituras. Estava, dessa forma, em

    consonncia com o esprito de sua poca, traduzido na obra de homens como John

    Colet, Lefvre D`Etaples e Erasmo numa reao contra o mtodo escolstico das

    ctedras tradicionais de teologia60.

    57 Ibid., p. 134. 58 Ibid., p. 138. 59 Id., Martn Lutero, v. 1, p. 170. 60 Ibid., p. 183.

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  • 99

    Foi em seus primeiros anos em Wittenberg, que se consumou sua converso

    ao mais extremado agostinianismo61, como resultado da intensificao de sua

    angstia espiritual sobre a incerteza da salvao. Reagia assim, contra a teoria

    occamista do livre arbtrio. Esta, centrada numa concepo da onipotncia de Deus

    por seu voluntarismo infinito, afirmava que, embora a razo do homem fosse

    insuficiente para alcanar a Graa, ela podia lhe ser concedida mediante sua ao

    natural e virtuosa. Contra tal teoria, Lutero afirmava a absoluta necessidade da Graa,

    ao passo que rebaixava com negro pessimismo no s a razo, mas tambm a vontade

    e todas as faculdades do homem, cuja natureza se definia pela mancha do pecado. No

    Du Serf Arbitre, atacou violentamente a conciliao feita por Erasmo entre o livre

    arbtrio e a Graa na Diatribe. Em sua perspectiva, no havia concrdia possvel entre

    a liberdade humana e a onipotncia de Deus. Para Lutero, a parcela concedida por

    Erasmo determinao da ao do homem para contribuir com sua salvao, ofendia

    a majestade divina. Segundo o reformador, o encarecimento erasmiano do livre

    arbtrio era uma ousadia sem precedentes:

    rasme surpasse aussi, de loin, les plagiens. Car ils attribuent la divinit au libre arbitre tout entier, tandis qu`rasme l`attribue la moiti du libre arbitre! Ils dintinguent em effet deux parties dans le libre arbitre, la faculte de discernement et la facult de choisir, attribuant faussement l`une la raison et l`autre la volont, ce que font aussi les sophistes. Mais rasme, sous-estimant la facult de discernement, se borne exalter la facult de choisir; et de la sorte cest um libre arbitre boiteux et demi-libre qu`il fait Dieu! (...) chez rasme, le libre arbitre par sa propre force, non seulement se meut, mais encore s`attache aux choses qui sont ternelles, c`est--dire aux choses qui lui sont incomprhensibles. Dans la dfinition du libre arbitre, c`est um auteur vraiment nouveau, dont la voix na pas de prcdent: les philosophes, les plagiens, les sophistes et tous les autres, il les laisse loin derrire lui.62

    61 Ibid., p. 306. 62 Erasmo ultrapassa de longe os pelagianos, pois eles atribuem divindade o livre arbtrio inteiro, enquanto que Erasmo lhe atribui a metade do livre arbtrio! Eles distinguem, com efeito, duas partes no livre arbtrio, a faculdade de discernir e a faculdade de escolher, atribuindo falsamente uma razo e a outra vontade, como fazem tambm os sofistas. Mas Erasmo, subestimando a faculdade de discernir, limita-se a exaltar a faculdade de escolher; de sorte que de um livre arbtrio manco e semi-livre que ele faz Deus! (...) Em Erasmo, o livre arbtrio, por sua prpria fora, no somente se move, mas ainda se liga s coisas que so eternas, isto , s coisas que lhe so incompreensveis. Na definio do livre arbtrio, este um autor verdadeiramente novo, sua voz no tem precedentes: os filsofos, os pelagianos, os sofistas e todos os outros, ele os deixa pra trs de si. LUTERO, Du Serf Arbitre, p. 187.

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  • 100

    Por outro lado, Lutero nos lembra, que embora o humanista supervalorize o

    livre arbtrio do homem, ele ao mesmo tempo, sublinha em sua Diatribe, que esse

    mesmo livre arbtrio permanece ineficaz sem a ajuda da Graa, numa reafirmao da

    vontade humana manchada pelo pecado e dependente da interveno divina, da

    mesma forma que sustenta a teologia luterana. Lutero despreza esta definio que

    chama de um paradoxo intil63, uma fico dialtica que define o querer do homem

    numa situao mdia, entre a corrupo e a salvao, entre o pecado e a virtude,

    como se se tratasse de uma vontade pura64. Ele critica o esforo conciliador de

    Erasmo como pouco esclarecedor, e cita as palavras de Cristo dando maior nfase

    sua inventiva: la chose se prsente plutt comme dit Christ: Celui qui n`est pas

    avec moi est contre moi. Il ne dit pas: Celui qui n`est pas avec moi n`est certes pas

    contre moi, mais entre les deux.65 Para Lutero, este paradoxo a essncia do texto

    de Erasmo, que no podendo escapar s suas contradies se torna prisioneiro delas.

    Estas, ao fim e ao cabo, ele afirma, o fazem concordar com o princpio luterano do

    servo arbtrio, da natureza humana corrompida:

    c`est cela que l`invincible et trs puissante vrit a poss la Diatribe, et elle rendu sotte sa sagesse, au point que s`apprtant parler contre nous, elle a t force parler pour nous et contre elle. Il en est de mme du libre arbitre quand il fait quelque chose de bien: car en essayant d`agir contre le mal, cest contre le bien qu`il agit mal; de sorte que la Diatribe est en paroles ce que le libre arbitre est en action! Et quoique la Diatribe elle-mme ne soit tout entire rien d`autre que l`ouevre excellente du libre arbitre, c`est em le dfendant qu`elle le condamne, et c`est em le condamnant qu`elle le dfend: cest-`a-dire qu`elle est deux fois sotte, quand elle veut sembler sage.66

    63 Ibid., p. 194. 64 Ibid., p. 197. 65 A coisa se apresenta de preferncia como diz Cristo: Aquele que no est comigo est contra mim. Ele no disse: Aquele que no est comigo no est contra mim, mas sim, entre os dois. Ibid. 66 essa verdade invencvel e potente que torna tola a sabedoria da Diatribe, ao ponto em que ela forada a falar por ns, mesmo quando pretende falar contra ns. Ela se assemelha ao livre arbtrio quando faz qualquer coisa boa: pois tentando agir contra o mal, contra o bem que age mal; de sorte que a Diatribe em palavras o que o livre arbtrio em ao! E embora se dedique inteiramente a louvar a obra excelente do livre arbtrio, a defendendo que a condena, e condenando-o que ela o defende: isto , ela duas vezes tola, quando pretende parecer sbia. Ibid.

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  • 101

    Uma definio do livre arbtrio como ineficaz sem a ajuda da Graa, como

    reafirma Lutero, no seno tornar vazio o prprio conceito de livre arbtrio67. Critica

    a trama de palavras tecida por Erasmo, tida como forjadora de monstros68 ao procurar

    conciliar coisas to opostas e contraditrias. Sua natureza parece ser ignorada pelo

    prprio autor, que atravs de sua linguagem elegante e bem ornada procura distrair

    seus leitores da certeza da verdade crist mais alta, consubstanciada na convico

    profunda da misria do homem. O reformador enfatiza que no essa a linguagem

    que deve ser usada em matria teolgica: "la thologie exige-t-elle un sentiment de

    nature rendre attentif pntrant, tendu, prudent, nergique.69 O princpio bsico

    da religiosidade luterana consiste na emergncia de uma verdade que se impe a ns.

    Para ele, o verdadeiro conhecimento religioso no pode conter contradies, sendo a

    f, composta de afirmaes absolutas, certezas inabalveis, inscritas em nossos

    coraes pelo Esprito Santo.

    Em sua traduo do Novo Testamento, na edio de 1519, Erasmo, ao traduzir

    Verbo por Sermo, na famosa passagem de S. Joo I:1 "No comeo era a Palavra",

    fazia da palavra no mais uma entidade esttica, mas uma presena ativa, acentuando

    seu poder criativo na forma do discurso70. O Esprito Santo para Erasmo razo e

    sabedoria, na valorizao da palavra divina, em seu poder de eloquncia e de

    persuaso a instruir e inspirar os cristos na conduo de suas vidas de acordo com a

    filosofia de Cristo.

    Tal persuaso para Lutero, entretanto, no tem qualquer valor, diante da

    persuaso interior e mstica que lhe garante a firme certeza daquilo que dizem os

    textos sagrados. Esta, fundadora de sua teologia, provm da revelao celestial e se

    d, somente, sob o extremo desprezo da razo, tida como expresso do estado de

    desregramento permanente e profundo que caracteriza a natureza humana. Segundo

    Lutero, o sentido das Escrituras claro e evidente, tal como deve ser a verdadeira f:

    composta de certezas profundas. Tentar alcan-las por meio da razo, entretanto,

    impossvel, pois s se consegue assim, chegar a argumentos retricos e circulares. S

    67 Ibid., p. 199. 68 Ibid. 69 "a teologia exige um sentimento de natureza a tornar atento, penetrante, tenso, prudente, enrgico." Ibid., p. 195.

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  • 102

    a iluminao do Esprito Santo pode nos garantir tais certezas sem margens a novas

    questes e dvidas71.

    Atacava a exegese bblica de Erasmo, que privilegiava a interpretao

    alegrica dos textos, e afirmava a importncia do estudo da literatura pag para um

    melhor entendimento do Evangelho. O valor que a leitura humanista concedia aos

    tropos e dedues, era para Lutero, uma profanao dos textos sagrados, pois

    implicava o esquecimento da pureza cristalina das palavras de Deus contidas neles.

    Na significao pura e simples das palavras, estavam expressos, segundo o

    reformador, os principais artigos da f crist. Acusando a interveno da razo

    humana na compreenso das Escrituras, Lutero aparecia como um profeta inspirado,

    como um comentador autorizado, erguendo contra os erros e balbulcios da filosofia

    humana, os ensinamentos dogmticos de Deus72. Segundo ele, as hipocrisias

    exegticas de Erasmo faziam os textos bblicos significarem o contrrio de seu

    verdadeiro contedo:

    n`y a pas combat propos du text lui-mme, ni dsormais propos des dductions et similitudes, mis propos des tropes et interprtations. Quand donc arrivera-t-il que nous ayons, pour et contre le libre arbitre, un text simple et pur, sans tropes ni dductions? L`criture n`a-t-elle nule par tels text? Et perptuellement l`affaire du libre arbitre sera-t-elle douteuse, parce qu`elle n`est consolide par aucun texte certain, mais qu`elle est dbattue seulement au moyen de dductions et de tropes introduits par des tres humains en dsaccord entre eux, comme un roseau est agit par des vents.73

    4. 3. 2 O Servo arbtrio e a viso luterana do mundo.

    Era, portanto, atravs da clareza e simplicidade das palavras das Escrituras,

    iluminadas pelo Esprito Santo, que Lutero sustentava os pontos essenciais de sua

    70McCONICA, J.,. Erasmus. In: Renaissance Thinkers, p. 72. 71 POPKIN, R., op. cit., p. 35. 72 MESNARD, P., op. cit., p. 194. 73 no h combate a propsito do texto por si mesmo, nem adiante a propsito das dedues e similitudes, colocadas a propsito desses tropos e interpretaes. Quando, portanto, acontecer que tenhamos, a favor e contra o livre arbtrio, um texto puro e simples, sem tropos e dedues? A Escritura no possui em nenhuma parte tais textos? E perpetuamente a questo do livre arbtrio ser duvidosa, por no ser consolidada por um texto certo, mas debatida somente por meio de dedues e

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  • 103

    doutrina. Encarava o mundo como o imprio de sat, fixava o objetivo real da vida do

    cristo no alm, e atentava para o perigo das chamadas boas obras, lembrando que o

    pecado daquele que se admite pecador est mais prximo da salvao do que o

    farisasmo daquele que se cr justo. Desta forma, no podia, seno, menosprezar a

    linguagem persuasiva, pela qual o humanista, pouco preocupado em basear sua f em

    verdades teolgicas, pretendia realizar seu principal objetivo, ou seja, vivificar nos

    homens um sentimento cristo autntico, acentuando seu carter tico. Seu interesse

    era a reforma moral do homem, signo de sua salvao e da renovao do mundo,

    materializada no consenso e na paz crist. Estes eram para Erasmo a traduo do

    verdadeiro cristianismo, centrado na vida, na valorizao da natureza humana e na

    celebrao da fora positiva de sua ao, tida como transformadora e redentora.

    Idealizava, assim, o valor da experincia no mundo, a partir da crena na capacidade

    do homem em se autoformar. Privilegiou a reforma na educao74, para o estmulo do

    progresso da virtude, para a realizao de uma liberdade marcada por um profundo

    sentido tico e moral, baseada na filosofia de Cristo, que levaria o homem

    purificao de sua natureza, e enfim, ao caminho da salvao eterna.

    Erasmo procurava harmonizar seu ideal humanista com o encarecimento da

    onipotncia da Graa divina, que tambm cumpria importante papel em sua

    religiosidade, impedindo, assim, que a confiana do homem em si mesmo,

    engendrasse em seu esprito, a vaidade e o orgulho, sinais como eram, de sua

    degradao moral, e, portanto, contrrios ao ideal de constituio de uma sociedade

    baseada nos ensinamentos de Cristo em sua simplicidade. Como nos diz Ricardo

    Villoslada75: Para Erasmo, a paz a tranqilidade so o bem supremo; para Lutero,

    a f, a conscincia, a salvao eterna, a palavra de Deus, e por estes bens est

    disposto a arrostar a morte ainda que o mundo inteiro se afunde no caos e no

    nada..

    tropos introduzidos por seres humanos em desacordo entre si, como um canio agitado pelos ventos? LUTERO, op. cit., p. 267. 74 GREENE, T., op. cit., p. 249. 75 GARCIA-VILLOSLADA, R., Martn Lutero, v. 2, p. 193.

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  • 104

    Um bom exemplo da natureza da crtica de Lutero exegese erasmiana est

    na citao da passagem do Eclesiastes usada pelo humanista76 na sua afirmao do

    livre arbtrio. Ela vem reforar a idia de que Erasmo se utiliza de artimanhas

    retricas para afirmar o livre arbtrio nas Escrituras:

    par les mots tends la main, etc., lorsqu`ils sont compris simplement, comme ils sonnent et l`exclusion des tropes et dductions rien d`autre nest signifi ce que nous devons faire, car telle est la nature d`un verbe l`impratif chez les grammairiens et dans l`usage de la langue. Mais la Diatribe aprs avoir nglig cette simplicit du mote et amne de faon force des dductions et des tropes, interprte ainsi: tends la main: cest dire que tu peux par ta propre force tendre la main.77

    A argumentao de Lutero, como afirma Mesnard78, de uma simplicidade

    radical. Afirma a clareza do contedo dos textos sagrados, e condena a fraqueza

    humana dos padres da Igreja que pregaram a existncia do livre arbtrio. Para ele, ou

    o livre arbtrio existe, e a Graa intil (no poderia haver maior blasfmia) ou a

    Graa onipotente e o livre arbtrio um termo vazio.

    A importncia do conhecimento do sentido literal da Palavra divina, atravs

    da iluminao pela f, to cara teologia luterana, foi negligenciada tambm por

    alguns de seus velhos partidrios, ainda que de maneira bastante diversa da que

    Lutero criticava no procedimento de Erasmo. Mas era tambm do ponto de vista de

    uma religiosidade que legitimava a interveno da ao humana na ordem do mundo,

    que Lutero atacaria tais dissidncias radicais da nova f, acusando de equivocadas tais

    compreenses da idia da liberdade do cristo, e do sentido dos textos sagrados.

    Diante disso, Erasmo parecia estar certo quando afirmou que as Escrituras no eram

    assim to claras, e quando previu a anarquia religiosa por toda a cristandade, assim

    76 Cf. p. 47. 77 pelas palavras estenda a mo, etc., quando compreendidas simplesmente como soam nada alm significado alm do fato de que se exige de ns que estendamos a mo. E isto significa aquilo que ns devemos fazer, pois essa a natureza de um verbo no imperativo entre os gramticos e segundo o uso da lngua. Mas a Diatribe aps negligenciar essa simplicidade da palavra levada, de maneira a reforar as dedues e os tropos, a interpret-las assim: estenda a mo: isto , que tu podes por tua prpria fora estender a mo. LUTERO, op. cit., p. 269. 78 MESNARD, P., op. cit., p. 195.

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  • 105

    que cada um recorresse sua prpria conscincia como padro e critrio da verdade

    religiosa79.

    Por volta de 1522, Carlstadt, que fora colega de Lutero na disputa de Leipzig,

    tornava-se lder da Reforma, por ocasio do exlio de seu mestre em Wartburg80.

    Predicava, ento, em Wittenberg, uma religiosidade que se baseava antes na

    iluminao interna do esprito do que no sentido estrito da Palavra divina. Segundo

    ele, era a revelao o princpio fundamental da nova f, pois levava os iluminados

    descoberta de um sentido mais profundo nos textos sagrados, inspirado diretamente

    por Deus. Tal descoberta, de natureza totalmente mstica e subjetiva, diante da qual se

    empalidecia a letra, era o sinal da salvao divina, e era em nome dos eleitos que

    Carlstadt negava o valor do batismo dos recm nascidos, afirmando a legitimidade de

    um segundo batismo, para destacar aqueles que foram iluminados internamente pela

    f, e escolhidos por Deus para a salvao eterna.

    O anabatismo em sua forma mais radical, implicando uma separao

    definitiva da Igreja, e o embate com a ordem social, que se espalharia pelo centro e o

    norte da Europa, teve sua principal origem nas prdicas de Carsltadt81. Ele criticava

    Lutero por sua atitude passiva e resignada ante as autoridades seculares, proclamando

    que os eleitos, uma vez libertados do pecado, no poderiam viver sob o domnio das

    autoridades civis, postas no mundo para manter a ordem e a paz entre os pecadores82.

    Carlstadt lembrava que Lutero, ao relegar aos prncipes o dever de manter a unidade

    civil, esquecera-se de instru-los no principal, ou seja, a obedincia estrita ao

    Evangelho, no extermnio dos mpios e na realizao de uma reforma religiosa

    completa e piedosa, em nome dos iluminados. Incitaria seus fiis a atos de revolta e

    iconoclastia, com o objetivo de instaurar no mundo o reino Cristo formado pelos

    justos.

    Carlstadt dava seu apoio de sbio, aos insurrectos, seguidores de Tomas

    Muntzer, proco de Zwickau por recomendao de Lutero. Muntzer viu na pobreza e

    no sofrimento os sinais mais certos da eleio divina, e procurou fundar contra a

    79 POPKIN, R., op. cit., p. 28. 80 SKINNER, Q., op. cit., p. 356. 81 LECLER, J., op. cit., p. 202. 82 SKINNER, Q., op. cit., p. 355.

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  • 106

    doutrina luterana, uma nova Igreja do esprito. Muntzer radicalizava a teoria de

    Carlstadt, segundo ele, a iluminao pela f no dependia do acesso s Escrituras,

    podendo atingir at mesmo os iletrados, operando constantemente no esprito atravs

    de vises e revelaes83. Estimulou o levante campons em Muhlhausen na Turngia,

    tido por ele, como uma revolta contra os mpios, por parte dos justos, destinados a

    fazer triunfar a f verdadeira no mundo numa luta aberta contra os prncipes e

    poderosos, que lhes impediam seu caminho rumo ao Evangelho. Deveriam eles, como

    iluminados, e livres pela f, reivindicar seus direitos face aos tiranos que os

    oprimiam. Anunciando a proximidade do juzo final, Muntzer proclamava o advento

    do novo reino de Cristo, numa nova ordem social, constituda pela comunidade

    sagrada dos novos crentes.

    Ambos, Carlstatd e Muntzer, embora luteranos, em princpio, criticavam o

    mestre por no levar, segundo eles, os princpios de sua doutrina s suas ltimas

    conseqncias. Segundo Muntzer afirmava, os pobres j so por demais infelizes para

    ter tempo de ler a Bblia e rezar, e nenhuma reforma religiosa possvel sem

    revoluo social84, os justificados deveriam, portanto, obter sua liberdade j,

    eliminando o domnio satnico dos poderosos, e herdando para si o mundo. A

    resposta de Lutero viria j em 1524 com sua Carta aos prncipes da Saxnia acerca

    do esprito revolucionrio. Prevenia os prncipes contra Muntzer, que era, este sim,

    em sua opinio a encarnao do demnio85.

    Logo as insurreies camponesas, os atos de violncia e iconoclastia, se

    espalhariam por vrias regies do Imprio, sem unidade nem organizao planejada.

    No mesmo ano de 1525, quando escrevia o Du Serf Arbitre, Lutero publicava

    tambm uma inventiva violenta e apaixonada contra os atos de revolta, intitulada

    Contra as rapaces e homicidas hordas dos camponeses. Neste texto, defendia

    freneticamente a legtima autoridade de qualquer governo estabelecido, e a represso

    sistemtica da ao interventora do homem na ordem do mundo86.

    83 LECLER, J., op. cit.. p. 203. 84 DELUMEAU, J., op. cit. , p. 101. 85 GARCIA-VILLOSLADA, R., Martn Lutero v. 2, p. 184. 86 Ibid., p. 213.

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  • 107

    Lutero reafirmava ento, que a nica liberdade que deve ser reivindicada pelo

    cristo de ordem espiritual, e que os nicos direitos que a iluminao pela f lhe

    concede, so os de sua prpria espiritualidade87. No mundo, afirmava ele, o cristo

    deveria sofrer resignado e carregar em silncio a cruz de sua misria. Em sua

    teologia, a servido no terreno temporal a partir do reconhecimento de si como

    pecador, era conseqncia direta da liberdade na ordem espiritual, a nica liberdade

    autntica e verdadeira, sob a luz da f, em benefcio da qual nada podem as coisas vs

    do mundo.

    A ao do homem na transformao da ordem mundana, segundo a

    perspectiva luterana no podia provir de Deus, mas necessariamente do demnio.

    Quando de seu exlio forado em Wartburg, Lutero recebeu notcias da proliferao

    destes exaltados que pretendiam semear a revolta e o esprito de sedio entre seus

    fiis, apressou-se para retornar a Wittenberg e retomar as rdeas do movimento88.

    Apoiou a represso violenta das insurreies pelos prncipes, que, logo, organizados

    na Liga de Subia89, eliminariam as resistncias e capturariam seus lderes. Lutero

    pregava a absoluta obedincia aos prncipes, pois que o exerccio de seu poder na

    ordem temporal, fosse ou no opressor, era legtimo, estabelecido por Deus, no

    espao mundano que criara justamente para que o homem reconhecesse sua condio

    decada e sofresse em silncio. Afirmava, portanto, de forma explcita que toda a

    autoridade poltica provinha de Deus90, encontrando na Epstola aos Romanos, a

    passagem mais importante de toda a Bblia no que se refere obrigao poltica. O

    texto Paulino sublinhava a necessidade de sujeio s mais altas potestades e o

    tratamento de todos os poderes existentes como ordenados pela divindade.

    Diante da liberdade espiritual do cristo, o mundo nada era para Lutero. Se

    nenhum evento mundano podia influir sobre a condio espiritual, a nica verdadeira,

    para que promover a discrdia em seu nome, e seguir Carlstadt e Muntzer na

    destruio de imagens Igrejas e conventos, que nada significavam?91 O verdadeiro

    cristo livre sabia que sua liberdade jamais poderia ser vivenciada na ordem temporal.

    87 FEBVRE, L., Martn Lutero un destino, p. 226. 88 Ibid., p. 211. 89 GARCIA-VILLOSLADA, R., op. cit., p. 215. 90 SKINNER, Q., op. cit., p. 297.

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  • 108

    Enfatizando, desta forma, que a justia e as instituies seculares em nada

    participavam da ordem da salvao, Lutero destruiu a tradicional oposio entre

    autoridade temporal e espiritual, fazendo ruir, em seus princpios, os poderes

    universais do Sacro Imprio e da Igreja. Imps, ao mesmo tempo, um limite bem

    definido ao exerccio do poder dos prncipes, ou seja, a dimenso interna do crente,

    espao de sua liberdade, onde se tornava membro da Igreja invisvel dos justificados

    pela f. Os governantes seculares, segundo ele, haviam sido postos no mundo para

    regular a parte externa da vida do cristo, garantindo a paz e impedindo as ms aes,

    o domnio interno da conscincia dos crentes jamais poderia ser tocado por seu poder.

    A crena religiosa, de natureza puramente espiritual, e portanto, no pertencente

    ordem do mundo, dizia Lutero, no poderia ser objeto da coao externa, mas, por

    outro lado, o reformador admitiu o surgimento de um sistema de Igrejas nacionais

    independentes, sobre as quais os prncipes deveriam deter total autoridade, j que,

    estabelecidas como instituies mundanas92.

    No mbito da filosofia poltica luterana, desaparecia a noo de Lei natural, a

    ser imitada pelos governantes, e pela qual os homens podiam julgar suas atitudes.

    Segundo esta perspectiva, uma vez que os governantes no devem aos homens a sua

    autoridade, no so responsveis perante eles, mas somente perante Deus. A noo do

    mundo e de tudo que nele acontece, como totalmente ordenado pelos desgnios

    divinos, uma das principais teses teolgicas de Lutero, seria o princpio de sua

    concepo do poder absoluto dos prncipes, reafirmado por Melanchton em 1521,

    num importante ensaio sobre o conceito de autoridade temporal em forma de

    concluso ao seu Tpicos comuns de teologia93. O eco de tais idias no tardaria a se

    fazer ouvir na Inglaterra, quando foi retomado pelo reformador Tyndale em sua obra

    Da obedincia do Cristo, com que declarava que toda a estrutura da vida poltica era

    instituda por Deus, e obedecer ao rei, significava obedecer vontade divina, evitando

    a danao eterna e garantindo a paz na vida terrena e na vida espiritual94.

    91 FEBVRE, L., op. cit., p. 233. 92 SKINNER, Q., op. cit., p. 297. 93 Ibid., p. 347. 94 Ibid., p. 349.

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    Segundo Lutero, enfim, o verdadeiro justificado pela f deveria reconhecer

    que sua maldade essencial viciaria todos os seus atos, e que, acreditando nas coisas

    do mundo, e procurando transform-las em seu benefcio s conseguiria se afundar

    mais ainda em sua condio miservel. A nica ao a ser praticada pelo cristo no

    mundo, afirmava ele, o fortalecimento de sua f pela Palavra das Escrituras, e a

    obedincia estrita ordem do mundo seu dever essencial. Deve-se reconhecer,

    sublinhava ele, que o mundo no o espao da misericrdia, mas sim da clera e da

    perdio, e assim, com furor, que os exrcitos da Liga de Subia cairiam em cima

    das hordas de camponeses revoltosos que se espalhavam ento por vrias regies do

    Imprio, da Subia Rennia, da Turingia Franconia.

    A misso privilegiada que o reformador acredita ter de cumprir no mundo,

    portanto, a predicao da Palavra divina95 dos Evangelhos, que ensina o cristo a

    sofrer de corao submisso a injustia mundana, sabendo que a nica justia

    verdadeira a justia de Deus pronunciada no esprito dos homens. Condenou a voz

    espiritual dos profetas celestes como inspirada pelo demnio, sinal de sua

    incompreenso dos textos sagrados, que os impele ao interventora na ordem do

    mundo, procurando instituir uma nova ordem social, s custas de atos de revolta e

    violncia.

    Voltando agora, ao Du Serf Arbitre, acusa tambm a interpretao bblica de

    Erasmo de incompreenso. Incompreenso esta, contudo, que nada tem haver com

    uma inspirao mstica, mas sim, fruto de seu cristianismo humanista, que a partir

    da crena no homem, torna a moral e a tica, o contedo principal do cristianismo,

    numa secularizao do sentimento religioso. O humanista celebrava, assim, a fora

    renovadora da razo humana na ordem do mundo, insuflada no corao dos homens

    pela sabedoria dos Antigos e pelos ensinamentos de Cristo, que redimiam a

    humanidade perante Deus. Na terceira parte de sua furiosa resposta ao Essai sur le

    libre Arbitre, o reformador, declara, a partir de So Paulo e So Joo, o significado

    cristalino das Escrituras, por elas mesmas, princpio de sua doutrina, ignorado, a seu

    ver, pelos mtodos interpretativos de Erasmo:

    95 FEBVRE, L., op. cit., p.217.

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    la justice de Dieu est rvle dans l`vangile, pour que cela soit objet de foi. Par consquent, tous les hommes dont impies et injustes: Dieu serait em effet insens, sil rvlait aux hommes une justice qu`ils connatraient dj ou dont ils auraient en eux les germes. Mais puisqu`il n`est pas insens, et cependant leur rvle la justice du salut, il est manifeste que le libre arbitre, mme chez les hommes les plus minents, non seulement ne peut avoir ou vouloir quelque chose, mais encore ne peut mme pas connatre ce qui est juste devant Dieu.96

    Mas, face desordem poltica e social generalizada causada pelas seitas

    radicais, Lutero seria levado a reconhecer a necessidade de tornar mais slida sua

    doutrina, na fundao de uma nova Lei que regesse a constituio de uma nova Igreja

    no mundo, com cerimnias reguladas e artigos de f bem definidos, sob a autoridade

    e proteo da justia secular. J em 1523 publicou sua Formula missa et comunionis

    contendo explicaes para a ordenao do culto para a Igreja de Wittenberg97.

    Buscando uma nova Lei para regular as coisas do mundo, foi direto ao Antigo

    Testamento98, reafirmando mais uma vez a necessidade absoluta da obedincia estrita

    aos prncipes, considerando blasfematrio qualquer levantamento contra seu poder.

    Em sua obra Sobre a Autoridade secular, tambm de 1523, Lutero apresentou alguns

    dos temas e idias fundamentais que informavam seu pensamento sobre assuntos

    polticos e sobre a organizao do Estado. Nela, a verdadeira religio, apareceu

    rigorosamente apartada da vida da comunidade civil, sendo de natureza estritamente

    pessoal e particular. Deste ponto de vista, o mundo jamais poderia ser governado pela

    Lei do Evangelho, no interesse do verdadeiro esprito cristo:

    "Se no existissem leis e governos, uma vez que o mundo mau e apenas um ser humano em mil um verdadeiro cristo, as pessoas se destruiriam umas s outras e ningum seria capaz de sustentar sua mulher e seus filhos, de se alimentar e de servir a Deus (...) Vocs imaginam qual seria o resultado se algum quisesse ter o mundo governado segundo o Evangelho e abolir a espada e toda a lei secular, com base em todos serem batizados e cristos e de o Evangelho no

    96 a justia de Deus revelada no Evangelho, para que seja o nico objeto de f. Por conseqncia, todos os homens so mpios e injustos: Deus seria, com efeito, insensato, se revelasse aos homens uma justia que eles j conhecessem ou da qual tirariam de si mesmos os princpios. Mas, porque no insensato, ele, entretanto, revela a justia da salvao, e ela manifesta que o livre arbtrio, ainda que entre os homens mais eminentes, no somente no pode ter ou querer qualquer coisa, mas ainda, que no pode nem mesmo reconhecer o que justo diante de Deus. LUTERO, Du Serf Arbitre, p. 391. 97 FEBVRE, L., op. cit., p. 220. 98 Ibid., p. 247.

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    admitir o uso da lei ou da espada entre os cristos, que de qualquer modo, no necessitam delas? Esse algum libertaria os animais selvagens de seus laos e os deixaria maltratar e dilacerar a todos em pedaos, dizendo enquanto isso que na realidade esses animais so coisinhas delicadas, dceis e meigas."99

    Em seu ponto de vista, se os prncipes so opressores, o so porque Deus

    assim os quis, e cairo por si mesmos quando Deus assim o quiser100. A autoridade

    secular havia sido posta no mundo para impor a ordem e a disciplina sobre uma

    humanidade perversa e autodestrutiva. Nos anos posteriores publicao do Du Serf

    Arbitre, e represso das sublevaes camponesas, o poder absoluto de alguns dos

    grandes prncipes alemes passou a proteger e regular as novas Igrejas e o culto, se

    exercendo plenamente em seus territrios, sem dever qualquer obedincia a Roma, s

    no podendo tocar, como j vimos mais acima, na liberdade espiritual dos crentes, no

    domnio em que se realizava efetivamente a iluminao pela f. Como nos mostra

    Lucien Febvre101, um segundo Lutero surgia ento, sem nada do fervor proftico e

    ousado do idealista dos primeiros tempos. Os prncipes germnicos que no eram

    tidos, num primeiro momento, mais do que como pragas a serem suportadas pelos

    cristos em sua existncia temporal se converteriam em principais guardies e

    protetores da Reforma. Em seus escritos de 1529, 1530 e 1533, Lutero procurou

    insistir na idia do Estado como de instituio divina, fundando inteiramente em

    Deus o poder absoluto dos prncipes.

    4. 3. 3 O Servo Arbtrio, a Reforma e o Humanismo.

    Lutero considerou o Du Serf Arbitre como o seu melhor trabalho102 expressou

    ali sua teologia com um vigor incomparvel, tratando de sua raiz mais profunda. Na

    concluso do livro, a