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Pastoral
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Elaboração do Luto
Introdução
Todos os seres humanos, em algum momento de sua existência,
experimentaram algum tipo de perda. Perda faz parte da experiência de todos nós.
Experimentar perda é uma rotina presente em todos os sistemas familiares, em
qualquer grupo dinâmico, e acontece freqüentemente com todos os indivíduos,
quaisquer que sejam suas raízes. Ninguém pode negar as perdas da vida. Elas são
reais e todos sofremos com elas. Algumas pessoas podem até não estar preparadas
para identificar claramente suas perdas, ou mesmo não querer identificá-las
conscientemente, mas seguramente todos nós lamentamos1 sobre alguma perda.
O processo, muitas vezes inconsciente, da dor do luto e do lamento, leva
muitas pessoas a reprimirem seus sentimentos, ou negarem a existência dos
mesmos. Isso não significa que elas não sentiram a perda. O que este
comportamento nos informa é que essas pessoas não lidaram com a perda de
maneira salutar, saudável. Reprimir não é a melhor solução para todo e qualquer
processo que envolva o emocional. Precisamos expressar nossos sentimentos de
forma que nossa saúde seja preservada. Por isso minha meta para este capítulo é
apresentar um breve e conciso trabalho, contudo coerente, sobre o que vem a ser o
Processo de Elaboração do Luto, bem como sua relação com todas as nossas
perdas do cotidiano.
Um outro objetivo para esse capítulo é destacar a importância de
expressarmos nosso sentimento de luto e do lamento como uma resposta mais
profunda, saudável e adequada para qualquer tipo de perda em nossas vidas. Eu
1 Lamento, luto, pesar - Estarei intercâmbiando estes termos entre si. Representam o mesmo significado, ou seja, é o sentimento profundo do enlutado em relação a uma perda qualquer. O termo em inglês “Grief” é o que está em foco.
1
estarei escrevendo sobre o sentimento de luto e sobre perdas da maneira como eu
creio que eles devem ser tratados -- muito conectados um com o outro. Porque um
não existe aparte do outro. Eles dependem muito da interação que os unem, isto é,
um existe por causa do outro, e vice-versa.
A Morte
Nós não podemos afirmar que luto só está relacionado com a morte. É bem
verdade que a morte é o motivo que produz o sentimento mais estressante de pesar
que alguém pode sentir. Normalmente as pessoa se sentem muito angustiadas e
aflitas só em pensar na possibilidade da realidade de suas próprias mortes, ou a de
outra pessoa querida. Processando a morte, ou seja, pensando e conversando
sobre ela, é quando estamos mais próximos da profunda dor que a perda produz
nos seres humanos. As pessoas normalmente experimentam variados tipos de
emoções muito fortes em um processo de luto, especialmente se a perda é de uma
pessoa amada. As questões que a possibilidade de enfrentar a própria morte
levanta, ou a de um ente querido, estão muito relacionadas ao medo do
desconhecido, ou o sentimento de abandono. Morte é algo inesperado, sempre! Não
importa se quem está morrendo já estava extremamente doente ou até mesmo se,
conscientemente, já estávamos nos preparando para sua morte. Nós nunca estamos
preparados para isto, porque a morte nunca é esperada ou é desejada por ninguém.
Como disse uma vez meu professor, Dr. Charles Brown, um dia em classe:
“Ninguém se sente velho o bastante para morrer.” Por causa destes tipos de
sentimentos ligados ao nosso próprio momento de morrer, bem como a morte de
uma outra pessoa, as seres viventes temem e rejeitam veementemente a
possibilidade da morte. Nós seres humanos entramos em pânico só em pensar que
2
a morte é uma realidade para todas as criaturas que estão vivas. Todos sabem
muito bem que enfrentarão a mais obscura, desconhecida e "indesejável" viagem
que a vida lhes oferece – a morte. Ela é assustadora e desmorona toda a segurança
que nós temos nas coisas que vemos e entendemos.
Um outro aspecto da morte é que a intensidade da dor advinda da perda de
alguém que amamos não pode ser repetida em nenhuma outra circunstância. É um
evento que não se repete, único em todos os sentidos. Uma pessoa pode
experimentar a dor da perda simultânea de duas pessoas diferentes, e até mesmo
naquela situação a pessoa não poderá sentir as perdas da mesma maneira. É um
sofrimento pessoal e muito particular, e que depende de muitas variáveis. As
pessoas que perdem um ente querido sentem que o mundo parou, e que todos
devem “esperar” com ela esta “parada” no tempo da vida. A desorientação em
relação a tempo, hora, dia, é muito comum nas pessoas enlutadas, mas a realidade
que eles enfrentarão, mais cedo ou mais tarde, é que o mundo continua em seu
percurso normal, e que todas as outras pessoas precisam continuar vivendo suas
vidas normalmente. Nada realmente mudou, mas ao mesmo tempo tudo mudou, aos
olhos daqueles que sofrem a perda de um ser amado e querido.
A Teologia de Luto
Todos os cristãos estão tentando entender teologicamente o evento morte.
Não há uma unidade de pensamento ou mesmo um só entendimento teológico.
Ninguém pode afirmar ter ou saber a verdade absoluta sobre a realidade da morte.
De acordo com as Escrituras a experiência de morrer fisicamente é uma experiência
única, definitiva e individual para todos os seres viventes deste universo. Algumas
3
exceções estão relacionadas na Bíblia2, e não há muita informação nestes relatos
sobre sua dinâmica de maneira clara. O resultado de tudo isto é que nós só
aprenderemos sobre a dinâmica da morte quando passarmos por ela, ou quando o
Senhor Jesus nos resgatar em Sua gloriosa volta. Mesmo assim, nós cristãos,
continuamos tentando entender sobre a morte, a despeito de nossa finitude. Nós
lemos, escrevemos e discutimos sobre ela. Nós tentamos torná-la mais fácil de ser
entendida e aceita; e ainda assim ela será para nós algo novo e inesperado.
As questões que levantamos sobre a morte, no meu entender, estão muito
relacionadas às nossas convicções teológicas sobre os eventos escatológicos - os
eventos futuros. Eles fazem parte da esperança viva do cristianismo quanto ao dia
de amanhã, que envolverão a igreja como um todo, bem como cada crente. Eles
determinam, ou têm bastante influência, na maneira como estes crentes reagem em
relação à morte e suas incógnitas. Por exemplo, a expectativa escatológica,
constante e iminente da igreja primitiva do Novo Testamento, era muito forte e isso
levou o apóstolo Paulo a definir morte como lucro. A Vida perde seu valor e
interesse quando a expectativa da vinda do Messias é iminente. Até mesmo as
coisas importantes da vida social do crente, como, por exemplo, o casamento3,
perdem seu objetivo. O evento da Segunda Vinda de Jesus, com todas suas
promessas, tem influência muito poderosa na vida das pessoas. Os crentes estão
desejosos para morrer para receber a vida eterna, nossa coroa, depois que
passarmos desta vida mortal de lutas e sofrimentos.
O mesmo evento desempenha um papel decisivo para aqueles crentes que
estão sob opressão, tribulação, inclusive em condições de estresse emocional. Eles
2 Temos alguns exemplos de milagres que aconteceram onde pessoas foram ressuscitadas, no AT e no NT (Elias 1 Rs 17; Elizeu 2 Rs 4; Jesus Jo 11; Pedro At 9). Há casos de duas pessoas que não experimentaram, a morte física, de acordo com o relato bíblico – Enoque (Hb 11) e Elias (2 Rs 2).3 Paulo sugere que permanecessem solteiros para que não houvesse impedimento para a expansão do Evangelho, pois para ele a volta de Jesus era iminente, estava por acontecer ainda em seus dias (I Co 15:50; I Co 7:8).
4
vêm a morte como uma saída. É o mesmo que um “suicídio”. É “buscar” a morte
física que nos garante a vida eterna nos céus. Este pressuposto é perigoso, pois
pode tirar de foco a realidade da vontade de Deus para a vida natural e ministerial
do crente. Isto não é o que a Bíblia ensina. É como desejar uma saída mais fácil
sem pensar em suas conseqüências.
Com certeza a maneira como nós interpretamos teologicamente os eventos
escatológicos molda nossa maneira de ver a vida e a morte.
Para levá-los a uma reflexão e provoca-los a estudar um pouco mais sobre o
assunto, gostaria de apresentar um outro ponto de vista teológico, sem contudo me
aprofundar nele, que é a visão da morte física como conseqüência do pecado.
Chegar a conclusão de que o relato do livro de Gêneses introduz somente a morte
física, biológica, como o castigo para pecado da raça humana, pode ser superficial e
de alguma forma precipitado. Muitos afirmam que a morte pronunciada ao homem e
a mulher, como conseqüência de seus pecados, é a morte física. Claro que não há
tempo para uma exegese profunda do texto, mas pelo menos uma pergunta precisa
ser feita nesta altura do argumento: O homem e a mulher morreram fisicamente logo
após seu pecado? Claro que não! Mas morrerem, pois a Bíblia assim nos ensina.
A orientação divina era que "no dia"4 em que comessem do fruto da árvore
que Deus ordenara que não comessem, eles morreriam. Não houve naquele
momento a morte física, natural, que muitos talvez esperassem. Deus não mente,
consequentemente um “tipo” diferente de morte aconteceu exatamente naquele dia.
Suas vidas foram mudadas pelo "poder" do pecado, o que resultou na morte do
primeiro casal, e consequentemente de toda a espécie humana, de maneira
4 Uma discussão mais aprofundada seria necessário para um maior entendimento sobre as possibilidades de interpretação que este termo trás consigo. Contudo, creio que o argumento deve ser levado em consideração pela força da expressão.
5
instantânea. A morte entra na raça através do pecado de nossos primeiros pais.
Disto sabemos com certeza.
A pergunta ainda fica sem muitos esclarecimentos, e muitos teólogos se
aventuram a dar respostas para o dilema. Não é simples e nem fácil achar “motivos”
para explicar porque Deus não executou a sentença da morte biológica ao varão e a
varoa ainda no éden. Certo é que morremos naquele dia, pois fomos separados de
Deus e expulsos da presença do Criador. A morte natural nos separa de nós
mesmos e de nossos semelhantes, mas a verdadeira morte nos separa de Deus.
Por isso que haverá um tempo escatológico onde a morte definitivamente reinará
para aqueles rebeldes contra Deus e uma implantação da semente de vida eterna
naqueles que foram escolhidos pela graça divina, e a terra e o mar terão que
devolver seus mortos para o julgamento eterno – a morte ou vida.5
Um outro aspecto a ser relacionado com evento citado acima é o fato do
salário do pecado, de acordo com Paulo, ser a morte.6 Claro que ninguém peca e
morre a morte natural, mas todas as pessoas estão mortas quando pecam, pois
estão separadas de Deus. A morte deve ser considerada como a separação do ser
criado de seu Criador. Isso sim é morte. Estar debaixo do poder de pecado e
separado de Deus é que chamamos de verdadeira morte. Deus criou o homem e
mulher como seres finitos. Morte física, a biológica, que eu prefiro chamar de morte
natural, é parte da finitude humana e define os limites com que todos os humanos
devem viver. Não somos deuses, somos criaturas, criados sim à imagem e
semelhança dEle, mas totalmente distintos e limitados. Somos criaturas, não somos
Criadores; Deus é Deus, nós não somos. O morrer natural foi a forma condenatória
externalizada de todo o processo de morte instalado no ser humano pelo ato do
5 Apocalipse 20.11-156 Romanos 3.23, 6.23
6
pecado. O homem morre em todos os aspectos – relacional, consigo mesmo, com a
natureza criada e para com Deus. A restauração também alcançará todos estes
aspectos para que a vida seja restabelecida pelo poder do sopro de Deus. Com o
pecado, tudo passa a acontecer e a história, presa nas mãos do Criador, começa a
se desenrolar. O pecado introduz a morte para a criação boa e perfeita de Deus.
Certa feita Jesus disse aos discípulos que não se preocupassem com o dia de
amanhã. Seu argumento foi que ninguém poderia acrescentar tempo a sua própria
vida.7 A realidade da morte é para todo o mundo vivente e mortal, finito e carente da
restauração celestial. Ser ilimitado, infinito e eterno é prerrogativa exclusiva do
Criador. Ser humano, mortal e limitado é ser de acordo com a natureza criada por
Deus para todas as suas criaturas terrenas.
Perdas
Pensando nesta realidade da finitude humana, eu gostaria de relacionar o
luto, a perda, com o processo de morte. Eu acredito que a realidade de morte só
pode ser compreendida através das experiências pessoais de dor e sofrimento das
pessoas. Nós só poderemos tentar entender o lamento, o luto e o sofrimento das
pessoas quando experimentamos a dor delas, e com elas. O único modo que
podemos entender mais profundamente a realidade de um processo de luto é poder
experimentar a dor da perda de uma outra pessoa.
Eu quero ir um pouco adiante com este pensamento e afirmar que nós
pastores, ou mesmo pessoas que estão envolvidas neste ministério, temos que estar
preparados para empatizar com o momento de cada pessoa, lembrando que cada
pessoa é cada pessoa, distinta e separada diante de Deus. Devemos lembrar que
7 Mateus 6:27
7
cada pessoa reage de uma determinada maneira diante de determinadas situações,
diferentes umas das outras. Tenho certeza que todos gostaríamos de oferecer cura
imediata aos enlutados, mas devemos respeitar o "tempo de reação" de cada
pessoa. Cada pessoa reage e reagirá de maneira diferente. Nos momentos que
somos incapazes de oferecer restauração imediata, devemos oferecer suporte
emocional e espiritual, estando fisicamente presente e solidarizando com suas lutas
daquele momento. Nós não temos a capacidade de prover cura para um processo
de luto, somente a Graça de Deus, aliada ao tempo, pode realmente curar as
pessoas. Nosso trabalho, nosso dever, é estar fisicamente presente para dar apoio
para elas no momento que elas precisam muito de nós, e talvez a nossa presença
ali os confortará e servirá como um instrumento poderoso nas mãos do Senhor para
promover restauração e cura, afinal de contas, luto é um assunto que deve ser
encarado como espiritual.
A pessoa tem que lidar, ela mesma, com o Criador para processar bem uma
perda. Deus está disposto a lidar com nossa dor porque Ele mesmo se identificou
com nossas lutas, tornando-se humano em Jesus Cristo. Nós somos
freqüentemente os canais da graça de Deus, mas eu acredito que é a habilidade de
Deus, lidando com a pessoa, e a abertura da pessoa para receber a graça de Deus,
é que trará cura para todos aqueles que estão enlutados.
Perdas não são somente as que envolvem morte física. Há muitas outras
razões para sentir enlutado, além de uma morte física/natural. Eu diria que todas as
outras possíveis perdas também podem ser chamadas de morte, mas com um
significado diferente. Nós sentimos a “morte” toda vez que estamos desconectados,
cortados, descontinuados, separados, ou desintegrados de alguém ou alguma coisa
desta vida. Tudo aquilo que tem peso e valor para nós é potencialmente fonte de
8
luto. Todos os sentimentos que estão relacionados a experiências, tais como,
abandono, rejeição, separação, perda de um trabalho, enfermidade, mudanças,
insegurança, e muitos outros, trará à tona sentimentos como de morte para todos
nós. É algo natural. Algumas pessoas reagem diferentemente de outras, como já
disse, mas todos sentimos luto. Em alguns casos nem sequer notamos que estão
sofrendo por uma perda, pois para alguns é mais fácil a negação do que o enfrentar
a situação. Isso não significa que eles não estão sofrendo, simplesmente significa
que eles lidam com o luto e a perda de um modo diferente. A verdade é que todos
sem exceção, de maneiras diferentes, sofrerão o processo de luto, sendo este por
morte ou outro tipo de perda. Mitchell e Anderson8 classificam perdas em seis
grandes grupos, ou seis tipos de perdas, o que eu creio que seria de grande valia
avaliarmos na altura deste trabalho.
O primeiro grupo são as perdas materiais, que incluem a perda de um objeto
físico ou algum pertence aos quais as pessoas dão valor de importância a eles. O
valor intrínseco das coisas é que está em pauta, e não o venal.
O segundo tipo é a perda em relacionamentos. As pessoas são muito
apegadas umas às outras. Até mesmo a perda de um animal de estimação gera a
angustia da perda. Relacionamentos rompidos levam a humanidade a experimentar
dor e sofrimento profundos.
O outro tipo de perda é a intrapsíquica. Esta é a “experiência de, aos poucos,
ir perdendo a auto imagem, ir perdendo a visão das possibilidades do que somos, ou
poderíamos chegar a ser. É o abandono de planos para o futuro, é a morte dos
sonhos pessoais.”9 Embora freqüentemente relacionada com a experiência externa,
esta é uma experiência iminentemente intrínseca e pessoal. Como um exemplo eu
8 Mitchell, Kenneth e Herbert Anderson. All Our Losses, All Our Griefs. The Westminster Press. Philadelphia, PA. 1983.9 Ibid., p.36
9
apontaria as mudanças naturais que acontecem na idade da adolescência. Valores
vêm, valores vão, e nada é como era antes. Perdemos e ganhamos, mas a dor da
perda é bem presente.
O quarto tipo é a perda funcional. Ela está relacionado às perdas das funções
físicas e neurológicas. Uma amputação de um membro do corpo, ou mesmo a perda
da habilidade de lembrar de fatos passados, são exemplos deste tipo de perda.
Em quinto está o tipo de perda que se refere à perda de um papel específico
que uma pessoa é acostumada ser ou exercer. A aposentadoria é freqüentemente
um bom exemplo para este tipo de perda. O desemprego ou a inabilidade de
prosseguir com um trabalho ou ministério também são fontes de luto.
A perda Sistêmica, a sexta e última categoria, está relacionada às emoções
que temos quando uma mudança em nosso sistema social aconteceu. Por exemplo,
quando os adultos jovens decidem deixar casa e suas famílias de origem para
estabelecer as suas próprias casas e lares, os pais e outros irmãos experimentam a
dor da separação e da perda. O grupo sente a falta de um de seus membros,
mesmo entendendo que é para o bem deles. Da mesma forma o pastor que tem que
deixar o campo que trabalhou durante algum tempo sofre a dor da perda, mesmo
entendendo que está seguindo a vontade do Pai.
Lamentar e sofrer uma perda são parte natural de nossa humanidade. Esses
sentimentos só reforçam a idéia que somos seres finitos e limitados, carentes do
consolo e do conforto de Deus, nosso Pai. O enlutado, seja ele quem for, ou qual
seja o seu motivo, precisa alcançar a graça de Deus para vencer.
Luto
10
O que pretendo agora é dar algumas definições de Luto, de forma que elas
poderão nos ajudar a entender melhor o processo de elaboração das perdas como
um todo. O primeiro, e óbvio, vindo do dicionário. De acordo com a definição do
Novo Dicionário Aurélio, da Editora Nova Fronteira, luto é: " 1. Sentimento de pesar
e dor pela morte de alguém. 4. Tristeza profunda; consternação; compadecer-se,
condoer-se; sentimento de dó.
Ainda, o Glossário Psiquiátrico, Quinta Edição, define “pesar” como: "uma
resposta emocional normal e apropriada para uma perda externa e conscientemente
reconhecida; está normalmente limitado por um tempo e gradualmente vai se
extinguindo. Deve ser entendida distintamente de depressão."
Eu penso que as duas definições combinadas provêem para nós uma
definição melhor e completa. Na definição do dicionário falta a parte que define
processo de pesar como uma resposta natural, normal e apropriada para as perdas.
Já o Glossário Psiquiátrico não inclui em sua definição o aspecto da dor e do
sofrimento que ele causa. Gostaria de apresentar uma definição que eu acredito seja
mais próxima à realidade do processo do luto. Pesar é para mim é uma resposta
dolorosa, não obstante normal e apropriada para qualquer tipo de perda, seja ela por
morte ou qualquer outro tipo de sentimento de separação. Não há nenhum
sentimento de pesar sem uma perda, assim como não há nenhuma perda sem dor.
A maneira pela qual nós lidamos com esses processos, agimos ou reagimos diante
deles, é o que define como nós lidamos com a questão de uma perda real. Gostaria
agora de desenvolver alguns conceitos para elucidar o que normalmente se acredita
serem os sintomas comuns e até mesmo esperados do enlutado num processo de
perda. Há de se apontar que há sintomas considerados normais e outros abnormais,
11
e gostaria de discutir um pouco sobre a normalidade e a patologia dos sentimentos
que envolvem o luto.
Primeiro, é importante apontar aqui que sentir-se enlutado não é uma doença.
Como mencionei mais cedo, é uma resposta emocional normal e apropriada às
perdas. Embora a pessoa envolvida num processo de luto, muitas vezes, pareça
estar "doente”, porque há muitos sintomas que podem ser parecidos com
enfermidades, tais como, náuseas, sintomas como se estivesse deprimido, tonteiras,
pressão baixa, e outras, pesar não é uma doença. Considerando que eu mencionei
depressão em contraste com pesar, me permitam explicar as diferenças entre os
dois. Isto servirá como uma maneira breve de explorar o conceito de que pesar, o
luto, não é uma doença.
Algumas pessoas diriam que a linha divisória entre as duas coisas é muito
tênue, o que eu concordaria. Contudo, quando prestamos atenção mais diretamente
percebemos que a dinâmica das duas é diferente. Embora o sofrimento causado por
uma perda e a depressão pareçam semelhantes, eles diferem um do outro, por
exemplo, na intensidade e duração deles. Nós não os podemos confundir, ou até
mesmo tentar coloca-los em uma mesma categoria, porque eles são distintivos um
do outro. Enquanto descrevendo os dois sob a perspectiva do humor da pessoa que
está sofrendo, eles se parecem muito, na verdade, quase idênticos. Neste caso, a
princípio, a depressão parece que tem uma reação emocional normal e apropriada
para algum tipo de perda. Os sentimentos são parecidos, como por exemplo, tristeza
profunda, desespero e desânimo, falta ou excesso de apetite, e outros sentimentos e
emoções fortes relacionadas com o humor. A sensação que esses sentimentos nos
trazem é como se a vida tivesse perdido sua cor e seu sabor. O significado de vida é
reduzido a quase nada. O sentimento profundo de desespero das pessoas leva-as a
12
pedir até mesmo a morte, ou talvez esperar que o mundo inteiro parasse "por conta"
delas. Outros sintomas que também podem ser considerados semelhantes nos dois
acasos são: redução da capacidade de raciocínio, diminuição das atividades físicas,
que inclui as atividades sexuais, senso de culpa elevado, e desesperança. Há
emoções muito fortes que envolvem os processos de depressão e de pesar. Eu diria
novamente que as diferenças principais podem ser localizadas então na severidade
dos sentimentos relacionados a depressão, bem como a duração deles. Eu diria que
os sentimentos relacionados com o processo de elaboração da perda podem se
tornar sentimentos que eventualmente, se não houver uma reação da pessoa
envolvida no processo, levam a um quadro depressivo, o que consideraríamos uma
patologia do comportamento. O que gostaria de acentuar aqui é que o luto, se não
processado bem, pode se tornar depressão, que precisa ser encarada
diferentemente da reação normal de enlutar-se por uma perda qualquer. Um outro
sintoma que está com freqüência relacionado a depressão, que talvez diferenciaria
um processo do outro, é insônia constante, ou seja, a inabilidade de se ter uma boa
noite de sono durante período longo.
Concluindo meu ponto até esse momento, eu gostaria de reforçar a idéia de
que as principais diferenças entre os sintomas de um processo de elaboração de
luto e depressão são a duração, freqüência e intensidade com que a pessoa se
envolve nas emoções relacionadas a ambos. Além do mais, há se reforçar que a
depressão é hoje assunto da área médica, e em muitos casos, não tem nada a ver
com os eventos da vida, mas sim com a deficiência hormonal e química do
organismo. Nestes casos, além do acompanhamento terapêutico, é imprescindível
que a pessoa recorra ao uso de medicamentos, que só o profissional da área pode
13
receitar. O médico que as pessoas devem procurar, para estes casos, é o psiquiatra.
Ele é o profissional mais habilitado para diagnosticar e intervir com mais eficácia.
Respostas Apropriadas
As respostas emocionais normais e apropriadas para elaboração de uma
perda podem ser observadas quando as pessoas envolvidas nesses processos
lamentam a dor e o pesar em sua totalidade, ou seja, não se esquivam ou negam o
sentimento. Isto significa que a normalidade de lamentar uma perda é
verdadeiramente sentir a tristeza que ela normalmente traz a nós. É permitir a si
mesmo sentir todos os "sentimentos" advindos da perda do objeto de seu amor.
Nesta altura da discussão, gostaria de ressaltar a questão do fator tempo na
elaboração do luto -- o tempo para elaboração das perdas é muito pessoal e
individual. Ninguém pode determinar a duração certa para um "bom luto." Nós
lamentamos e choramos as perdas de acordo com as nossas próprias limitações e
habilidades. Isso também implica que não há nenhuma correspondência entre dois
processos de pesar, olhando da perspectiva do volume de tempo "chorado." O que
nós chamamos de doentio, patológico, ou luto crônico, depende de muitos outros
fatores que cercam a vida da pessoa que está lamentando, especialmente o que
está acontecendo em sua vida naquele momento. Por exemplo, o apego emocional
que a pessoa tinha com o objeto de amor que se foi, ou até mesmo as condições
físicas, mentais, emocionais ou espirituais da pessoa na hora da perda. Nós
devemos ter muito cuidado antes de "julgar" se o sentimento de perda das pessoas
é normal ou não, usando somente o tempo como o fator determinante. Pode ser um
pesar crônico, contudo ao mesmo tempo poderia ser uma resposta justa e
apropriada, mas uma “resposta lenta" para elaboração saudável de uma perda
14
qualquer. Há muitas outras variáveis envolvidas nisto, por isso devemos ter muita
cautela antes de sair por aí determinando normalidade e anormalidade
simplesmente pelo compasso na elaboração de uma perda. Devemos prestar
atenção nas outras tantas variáveis que estão envolvidas o processo.
Nem todos os processos que lidam com a perda se dão da mesma maneira.
Há certos sentimentos e emoções "esperados" que estão relacionados com a perda.
Entretanto, nem sempre veremos as mesmas reações se repetindo nas pessoas e
seus processos, mesmo que semelhantes. Nem todo o mundo precisa viver o
"processo inteiro" para ter uma resposta saudável a uma perda. Normalmente, mas
nem sempre, os processos repetem algumas reações já esperadas, reações essas
já estudadas e observadas por muitos estudiosos do assunto. Portanto, gostaria de
apresentar algumas reações que poderiam ser consideradas normais em um
processo de elaboração do luto, e para isto estarei anexando um adendo ao final
deste trabalho para avaliação do leitor. Ele versa sobre o processo de luto que tem
de passar pelo vale sombrio da morte. O tema Vale da Morte é inspirado na
expressão do salmista Davi quando escreve o seu salmo de número 23. O adendo
servirá de balizamento para o que vamos discutir abaixo.
A primeira reação normal é o sentimento de "dormência," de não acreditar no
que está acontecendo. A verdade é que o enlutado não quer acreditar que a perda
aconteceu de fato. O desacreditar é uma forma de negação inconsciente daquilo que
realmente aconteceu. É uma maneira de dizermos para nós mesmos que o episódio
não aconteceu, que é só um sonho, e nós acordaremos em alguns minutos, e tudo
não passará de um grande pesadelo. Nesses momentos há uma ausência de
sentimentos que toma conta de nossa vida, e traz uma sensação de que estamos
"passados”. Eles podem durar período curto de tempo, às vezes algumas horas, ou
15
até mesmo dias e meses. Minha compreensão desta reação é que a pessoa está
tentando processar a realidade da perda do seu objeto de amor. É um processo para
tornar a perda "conhecida" de nosso sistema consciente, e assim nos garantir mais
um pouco de tempo para uma elaboração mais produtiva e saudável.
Este período de dormência é seguido por vários outros sentimentos muito
fortes. Eles vêm sem uma ordem específica, mas na maioria dos casos todos estão
presentes nesta fase do processo. Sentimentos tais como raiva, tristeza e
desesperança, estão intensamente presentes. As reações para com eles, ou seja,
como cada um lida com eles especificamente, podem variar de pessoa para a
pessoa. Alguns chorariam em desespero, ou lamentariam por horas; outros podem
se fechar em seus próprios pensamentos, sentindo eles mesmos, sem ajuda
externa, aquilo que os incomoda. Seguramente todos os tipos de reações
demonstram o "poder" que tais emoções tem sobre nós durante estes momentos de
sofrimento intenso. Todos sofrem sem exceção, mesmo que as reações sejam
diferentes umas das outras.
A sensação estranha de um "vazio" que não se sabe explicar é o próximo
passo esperado em um "processo normal" de elaborar perdas. As pessoas
normalmente vão de emoções fortes e impulsivas, como as citadas acima, para
outras mais tranqüilas, porém não menos fortes e intensas. Emoções como a
sensação de vazio e uma vontade de estar mais sozinho e isolado do restante das
pessoas e do mundo. Durante esta fase as pessoas se voltam muito para si em
reflexão. Meu entendimento é que elas, em si voltando para dentro de si mesmas,
estão tentando processar a perda que vai além do externo, do visível. Este momento
é muito precioso, e é para mim o real começo do processo de elaboração do pesar.
Elas estarão constatando de fato que há uma perda real, e que com a perda há uma
16
dor e sofrimentos inevitáveis de saudade e lembranças. Não há como escapar da
realidade dolorosa de uma perda. Sem "uma boa porção" de dor e tristeza no
processo de elaborar perdas, não há nenhuma possibilidade para celebração.10 Nós
precisamos lamentar e sofrer a perda para abrir o caminho da possibilidade para
uma cura. Falando sobre esse assunto me lembrei do escritor cristão C. S. Lewis
quando experimentou o sentimento de perder a sua esposa amada.11 Ele passou por
todas as fases que eu mencionei acima para que a cura final pudesse brotar. Só
depois de um período de muitas lutas e sofrimentos é que ele pôde celebrar e
vencer a fase de desespero. Ele não pôde se sentir livre dos "fardos" pesados do
processo de lamentar a morte de alguém, sem enfrentar a realidade de que o luto
deve ser sentido e vivido completamente, experimentado na sua totalidade, mesmo
que doloroso. A dor e o sofrimento são componentes necessários para se vencer o
desespero e celebrar a vida.
A próxima fase que eu gostaria de mencionar pela qual uma pessoa passa
antes de vencer o processo de luto, é a de se ter uma sensação forte de medo e
ansiedade. Após um período de aparente quietude, vem um medo e uma ansiedade
de como se vai viver sem aquele ou aquela pessoa ou coisa. Todas as perdas
mudam o "ecossistema" de pessoa, e muda drasticamente. A homeostase dos
sistemas muda a partir do ponto que a perda acontece. É exigido da pessoa que
"sobreviveu" viver em um ambiente totalmente diferente, mudado agora pela falta. A
rotina é mudada, bem como todos os tipos de interação com a vida, especialmente
se o "sobrevivente" tivesse tido uma relação muito forte com a outra parte que foi
"ceifada”, que agora já não faz mais parte de seu mundo. O futuro assume um
10 A celebração, a expectativa de viver a vida, virá após o sofrimento ter passado. Quando não aceitamos o sofrimento e a dor da perda, poderemos perder a oportunidade de retornar a vida "normal" após a dura tempestade da perda.11 Lewis, C.S. "Grief Observed" Batan Books. New York, NY. 1976.
17
caráter novo e desconhecido. O medo e ansiedade são agora as emoções que
dominam a cena. A necessidade de ajustes para com a nova situação é o
movimento necessário para sobrevivência adequada daquele que ficou.
Também é muito comum para aqueles que perdem seu objeto de amor é o
sentir-se envergonhado ou culpado. Nós normalmente nos sentimos envergonhados,
e nos culpamos, perguntando se poderíamos ter feito mais do que fizemos. Mitchell
e Anderson dizem que “... A maioria da culpa associada ao sentimento de pesar é
inútil e contraprodutiva para uma elaboração construtiva de perdas."12 Há razões de
ordem natural e outras teológicas. O obvio é que nenhum ser humano pode ser
responsável, ou tem capacidade, de proteger ou cuidar de alguém ou alguma coisa
as 24 horas de um dia, por toda a vida. Somente o Criador tem esta capacidade.
Quando pensamos que somos responsáveis pela perda de alguém ou de alguma
coisa estamos nos tronando idólatras, ou seja, nos colocando no lugar de Deus.
Este seria o aspecto teológico que gostaria de ressaltar. Assumindo esta posição de
"zelador" da vida humana, nós tentamos assumir o papel do Espírito Santo. Só Deus
é responsável para cuidar de nós todo o tempo. Só Deus é o responsável por dar e
tomar a vida, porque só Ele pode fazer isso. Embora estes sentimentos sejam
comumente encontrados entre os que lamentam, eles não ajudam no processo de
superar a dor e o sofrimento advindos de uma perda.
As razões naturais porque não devemos nos culpar pelas perdas ocorridas
estão relacionadas à limitação e finitude do ser, elementos essenciais da natureza
humana. É impossível prover uma proteção de tempo integral para qualquer pessoa.
É simplesmente impossível. Nós dormimos, cochilamos, descuidamos, e isso tudo
12 Mitchell, Kenneth and Herbert Anderson. "All our losses, All our Griefs." The Westminster Press. Philadelphia, PA. 1983.
18
faz parte do ser humano e limitado que somos. Definitivamente a culpa associada ao
luto não é construtiva.
Depois da pessoa chegar à conclusão que só Deus é responsável, e o único
totalmente capaz de cuidar de nós e das pessoas que amamos, a ira e a raiva, uma
vez expressadas apropriadamente no processo, agora assumem um papel mais
complexo. Muitas vezes a raiva é direcionada a Deus, que teria a responsabilidade
de cuidar do objeto de amor da pessoa enlutada. Eu creio que muitos que lamentam
ou choraram por alguma perda têm as mesmas palavras de Marta, a irmã de Lázaro,
ditas ao Senhor Jesus quando ele chegou em sua casa, depois do morte do irmão,
de acordo com a narrativa de João 11:21: " Marta disse a Jesus, Senhor, se o
Senhor tivesse estado aqui, meu irmão não teria morrido." A raiva de Marta
provavelmente não está explícita no texto, mas minha compreensão é que Marta
não estava feliz com a demora de Jesus, e por alguma razão ela O estava
"culpando" pela morte de Lázaro. Eu certamente posso ver decepção e raiva nas
palavras dela, talvez isto se torne mais claro quando fazemos uma leitura mais
aprofundada no texto e do contexto. Eu creio que não podemos inferir, ou mesmo
pressupor, que Marta "soubesse" que Jesus iria ressuscitar Lázaro da morte. Ela
estava desapontada pelo fato de que Jesus não estava lá para prevenir o
acontecido. Interessante é que Jesus entendeu os sentimentos dela e aceitou a
"reclamação" de um modo muito natural – Ele chorou com ela. Jesus sabia que raiva
e desapontamento são sentimentos naturais e são partes de uma resposta humana
esperada em momentos de desespero. Marta sempre foi profundamente abençoada
por Deus por causa do desejo dela de expressar os seus sentimentos autênticos
para com o Mestre, como podemos ler nas narrativas dos Evangelhos concernentes
a sua pessoa.
19
No contexto humano, principalmente no contexto cristão, a raiva nem sempre
pode ser dirigida a Deus de maneira aberta, clara e consciente. Temos muito medo
de nos expressar em relação a Deus como verdadeiramente nos sentimos ou
somos. Muitas vezes lidamos com Deus escondendo o que sentimos ou pensamos,
e fazendo assim achamos que "enganamos" a Ele. Enganamos é a nós mesmos.
Deus conhece tudo, até mesmo aquilo que ainda nem pensamos ou falamos, como
nos diz o Salmo 139. Há uma necessidade de expressar nossos sentimentos com
transparência, inclusive para com Deus. Se não o fazemos da maneira correta e
apropriada, teremos a tendência de conduzi-los para outra direção, talvez para
outras pessoas, relacionamentos ou nós mesmos. A energia interna não é algo que
nós conscientemente podemos controlar completamente. Devemos nos precaver
para não reprimir nossas emoções. Isto não quer dizer "liberar geral”, como dizem
por ai. Isto quer dizer que o autocontrole, aliado a expressão natural e aceitável das
emoções traz equilíbrio e saúde. Se uma pessoa reprime a energia interna, ou seja,
seus sentimentos, o que vai acontecer é a canalização desta energia para qualquer
outra coisa. Normalmente achará um objeto para "descarregar”, o que certamente
não será uma expressão final saudável do sentimento dela. Domínio próprio é parte
indispensável do fruto do Espirito (Gálatas 5).
Reprimir é bem diferente de dominar as atitudes e ações, o que também é
bem diferente de sentir emoções fortes. A razão para tantas doenças
psicossomáticas tratadas pela comunidade médica é a falta de entendimento entre
esses dois pólos de expressar as emoções e os sentimentos. As conseqüências de
sentimentos reprimidos podem afetar a “inteireza" da pessoa, inclusive o organismo
físico. É necessário ter a habilidade de expressar e sentir aqueles sentimentos
apropriados para cada circunstancia de nossa vida. Isso não significa que nós
20
deveríamos sair "batendo" nas pessoas só porque estamos com raiva, ao contrário,
significa assumir que temos raiva e que há outras maneiras de senti-las sem agredir
os outros. De novo, expressar sentimentos é a habilidade de os reconhecer, aceitá-
los e agir de maneira adequada para com cada um deles. Quando nós temos nossas
emoções reconhecidas e compreendidas, todas as coisas se tornam mais fáceis.
Passamos a agir e proagir, ao invés de reagir para com os eventos de vida.
A concepção de ação e reação é muito importante para entender a dinâmica
de expressar sentimentos. O modo saudável para expressar uma emoção é agindo,
não reagindo por causa deles. O termo mais apropriado é proação, ou seja, não
deixar que o momento ou as circunstâncias ditem a maneira de reagirmos diante dos
problemas. Proação é deixar que o domínio próprio dirija nossas vidas. As reações
tendem a ser atos muito inconscientes, o que normalmente serão movidos pelas
forças internas que fogem ao nosso controle. Por outro lado, quando nós agimos, ou
proagimos, respondemos a qualquer fato gerador de emoções somente após
gastarmos algum tempo considerando a situação por inteiro. Reações normalmente
são respostas primitivas e imaturas, que geralmente não produzem fruto algum. Nós
deveríamos estar procurando agir diante das situações, em vez de reagir a elas, de
forma que nós pudéssemos tomar decisões saudáveis e maduras, especialmente
quando a dor da perda está envolvida. A reflexão produz bom senso e revela
caráter firme e consistente.
Não devemos nos esquecer que todo luto é único e pessoal, contudo ao
mesmo tempo universal e um evento que se repete em todos os lugares em todas
as culturas. Isto quer dizer que a mesma dor de um determinado processo de luto
não pode acontecer duas vezes na história. Não existe, e nem existirá, dois
processos que são exatamente iguais. Que faz do luto um processo que não se
21
repete da mesma forma é o fato de que o objeto de amor, uma vez perdido, é
insubstituível. A dor e sofrimento relativos a uma perda pessoal e particular é algo
incomparável a qualquer outra dor e sofrimentos relativos a uma perda, seja ela qual
for, de quem for. O primeiro passo que uma pessoa em um processo de luto precisa
dar é o do reconhecimento da perda. É a habilidade de aceitar a perda; é assumir
que a perda é real. Devemos ser conscientes que a vida nunca será a mesma, como
era antes, para qualquer pessoa que sofre uma perda. Eu tenho minhas dúvidas,
pelo ponto de vista humano, de que as feridas causadas por uma perda muita
grande podem ser totalmente curadas. Pelo menos eu estou certo de que elas
podem ser administradas, vividas de maneira apropriada, o que causará um retorno
para uma condição de vida normal, ou pelo menos aceitável. Mas há perdas que são
irreparáveis. Somente a graça divina pode fazer com que o indivíduo enlutado volte
a normalidade da vida.
Definição Gráfica do Processo de Cura do Luto
Esta porção do trabalho teve a cooperação preciosa do Sem. Jorge no ano de
2001, que se valeu de seus conhecimentos matemáticos e pôde expressar de
maneira bem clara a idéia do luto sendo observado como um movimento espiral.
Essa idéia somente veio acrescentar uma visão bem mais aclarada do processo
espiral da elaboração do luto.
Decorrente da perda, o processo de cura do luto pode ser representado como
sendo uma espiral simétrica ou logarítmica (figuras 1, 2 e 3). A espiral simétrica
representa o processo de cura, no qual, os eventos que relembram o luto pela perda
se apresentam de modo cíclico e com uma freqüência constante, onde, apesar do
desenrolar do tempo, os eventos são relembrados de modo simétrico de tempo
(p.ex.: cada aniversário da perda). Na espiral logarítmica, por sua característica, os
22
eventos que relembram o luto não se apresentam de modo constante, isto é, a cada
fração do ciclo de tempo é adicionado um t13 de modo que os eventos são
relembrados em períodos de tempos cada vez maiores (p.ex.: no primeiro ano,
depois no terceiro ano, depois no oitavo ano, e assim por diante). Cada processo de
luto é regido por uma espiral exclusiva (figura 4), e a função da linha da espiral é a
de representar como estão dispostos os eventos relacionados ao luto, em função da
freqüência de repetição, dos tempos de duração e de sua intensidade. O processo
de luto está sempre apoiado na linha de tempo da vida (KAIROS)14 O processo é
disparado no momento em que ocorre a perda. A cada espiral corresponde uma
linha de tempo do luto (KRONOS)15, que é diferente para cada processo de luto,
mesmo que ocorra mais de uma perda no mesmo instante (figura 5), tendo em vista
que o ângulo de intensidade do luto (figura 6) varia de acordo com o grau de
relacionamento que a pessoa enlutada tem com o objeto da perda. Portanto, na
ocorrência do luto (figura 7) pela perda do objeto estimado, cada evento pode ser
perfeitamente representado na linha dos ciclos dos eventos significativos
(KRONOS), isto é, todos aqueles capazes de relembrar o objeto da perda. Esta
representação é importante porque mostra a progressividade do processo de cura
do luto com o correr do tempo (KRONOS). A sombra projetada representa a área de
importância do evento para relembrar o luto e sua progressiva redução de
intensidade na vida do enlutado, contudo, é de se lembrar que o valor da área de
sombra não reduz, ele permanece constante por toda a vida da pessoa, o que reduz
é somente o efeito do luto na vida da pessoa enlutada.
13 Numa expressão matemática, é um elemento que é adicionado a um número constante para se obter outro número. Neste caso, é uma fração constante de tempo que é adicionada a cada período de tempo anterior para se obter um novo período de tempo, em cada ponto da espiral, e, esta operação é repetida sucessivamente.14 Kairo/j representa o tempo que é simples e unicamente preenchido por Deus, isto é, o tempo total e completamente preenchido, total e completamente o tempo de Deus – a eternidade.15 Xro/noj representa o tempo no qual o homem coloca a sua transitoriedade, é o tempo no qual o homem mede a sua própria existência – o calendário – o relógio.
23
FIGURAS
24
Embora a elaboração do luto não possa ser
um processo determinado por tempo linear, o
enlutado caminha para a normalidade de maneira
gradual através do tempo. O ponto que eu
gostaria de acentuar nesta fase é que o processo
do luto não é uma mesa de tempo retilínea.
Tempo certamente cura as lesões
causadas pela perda, mas o mesmo
tempo também será responsável
para, em tempos posteriores, abrir
as feridas, expô-las novamente. O
processo de cura é mais espiral que linear. Ele sai de um ponto original, a perda, e
vai circundando aquele ponto a cada vez que o tempo passa. Por isso mesmo que
cada aniversário da morte, ou perda, ou cada data significante, ou mesmo
lembranças, trará dor e sofrimento para aquele que está experimentando o processo
de cura interior pela perda de seu objeto de amor. A espiral funciona de tal maneira
que a distância, o tempo e a intensidade, provenientes do evento de origem,
diminuirão o efeito da dor, contudo aparecerão em doses menores, até
desaparecerem. Tempo será o primeiro elemento para promover a cura, não um
tempo cronológico, mas um tempo significante.
Eu afirmei que processo para elaborar a perda é espiral, não linear, por
conseguinte, tempo às vezes, produz resultados proporcionais na direção da cura,
mas nem sempre na mesma proporção. Significa, sim, que quanto mais "distantes"
estamos do evento inicial, que causou a dor, teremos mais chance de alcançar cura
25
para aquela situação traumatizante. Eu não estou negando aqui a particularidade de
cada processo, pois cada caso é cada caso, e cada pessoa terá o seu próprio tempo
significante. O que estou querendo ressaltar é que a espiral é realidade para todos
os casos, de acordo com suas particularidades em agir e reagir ao processo como
um todo.
A cooperação do envolvido no processo também é um instrumento muito útil
para que a cura possa brotar. Dependerá do desejo da pessoa em superar os
primeiros períodos do processo. Tempo e cooperação pessoal são componentes
básicos para uma melhora substancial do envolvido no luto.
O outro ponto que a espiral do processo de elaborar o luto destaca para nós é
que toda vez a espiral coincide com o ponto do evento inicial, aquele momento
particular exercerá o papel de relembrar a pessoa da perda insubstituível que sofreu.
Já mencionei esse fato anteriormente, mas serve para reforçar a idéia de que os
aniversários, coisas que a pessoa fazia ou gostava, cheiros, cores, roupas, cenas,
cinema, comida, e muitas outras coisas, levarão os que lamentam a perda a sofrer
novamente sua dor. Durante estes períodos, o processo inteiro de luto virá à
superfície, fraco às vezes, noutros tempos fortes. Essa é a lembrança que vem
como resultado de um evento inicial, a perda, que é localizado no passado, mas tem
seus efeitos no tempo hoje.
Devemos nos lembrar que há muitas pessoas que "emperram” neste
processo. O fato é que não conseguem sair de onde estão, e ir adiante na direção
da cura. Este tipo de apatia e paralisia pode acontecer, mas somente por algum
tempo. Quando persistir por muito tempo se torna um sintoma patológico de uma
elaboração abnormal.
26
Contudo, há de se lembrar que, como a maioria dos estudiosos diria, o
processo de elaboração do luto verdadeiramente nunca termina. O tempo pode
passar, as pessoas decidirem se ajudar, muita coisa mudar e melhorar, mas a
influência espiral sempre estará presente nas mentes das pessoas, fazendo-as
lembrar de sua dor e pesar, mesmo que diminuída e minimizada. Certamente há
uma diferenciação em uma reação normal e outra que consideramos patológica, e é
o que passaremos a ver em seguida.
Normal e Patológico
A diferença principal entre o lamentar saudável e o patológico é localizada no
fato de como as pessoas aprendem a lidar com a nova situação. Todas as perdas
mudam a estrutura de todos os envolvidos emocionalmente com elas. A estrutura
interna dos indivíduos é sempre danificada por uma perda, seja ela qual for. O
processo de recuperação é uma arte – arte de recriar o presente, com as
recordações do passado e com expectativas novas para o futuro. A realidade da
pessoa enlutada mudou, bem como sua estrutura interna. Há uma necessidade forte
de uma reorientação da pessoa, de quem ela é agora, sem o seu objeto perdido.
Esta nova orientação é praticamente exigida pelas mudanças que aconteceram em
sua vida. A pessoa é chamada a agir na direção futura e assumir sua “nova“ vida
sabendo que há conseqüências advindas da perda que não podem ser esquivadas.
A maturação do processo vem com a descoberta que a perda causou uma ferida
que está doendo e continuará doendo, mas apesar disto, a pessoa precisa continuar
a viver a sua própria vida. O mundo não parou, nem acabou. Continua-se a vida do
mesmo jeito para a grande maioria das pessoas, e esta realidade deve mover o
enlutado na direção da busca da cura.
27
Esta nova orientação para a vida significa aceitar a realidade da perda e
assumir as conseqüências advindas dela. A habilidade de assumir seus sentimentos
e a nova vida faz com que novos recursos passem a existir, o que possibilitará que
se ocupem de suas vidas de maneira mais produtiva. É o resultado positivo
esperado daqueles que enfrentam situações de perdas em suas vidas.
Somente a possibilidade de falar sobre as coisas que aconteceram e
expressar sua dor pessoal já é uma benção tremenda. Melhor ainda é ser capaz de
chorar e sentir com toda a intensidade as emoções ligadas a uma perda, de acordo
com Dr. Bozarth, " ...tão freqüentemente quanto necessário for."16 A habilidade para
chorar e liberar os sentimentos e emoções pessoais que a perda produz nos seres
humanos é um exercício catártico,17 de transformação interior, que provocará
crescimento e habilitará o enlutado a superar aquele período inicial e mais forte da
perda.
A patologia em um processo de pesar é o continuar nestes intensos
sentimentos de desespero por um período muito longo. As pessoas precisam tomar
decisão de continuar adiante, de viver uma vida que está no presente, inclusive
vivendo num ambiente novo onde falta o objeto de seu amor. A melhor maneira de
conseguir isso é expressando os sentimentos relacionados à perda de maneira
autêntica e transparente. Os cristãos normalmente não entendem que lhes é
permitido expressar seus sentimentos de desespero, de dor, em momentos como
estes. Eles pensam que deveriam ser fortes e deveriam “reprimir" os sentimentos
quando eles aparecerem. A idéia por detrás desta postura é que este tipo de
comportamento "forte" mostrará aos outros que somos boas testemunhas da
16 Bozarth, Alla. Life is Good-bye, Life is Hello. CompCare Publishers, Second Edition.17 Catarse, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio, da Editora Nova Fronteira, significa: 1. purgação, purificação, limpeza. 3. Psicol. Efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida. Ela tem um efeito curativo e produz no indivíduo o bem estar advindo do processo de cura.
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esperança que nós "pregamos" que Jesus nos ofereceu. Não devemos mostrar
tristeza nem dor, pois Jesus não ficaria "feliz" de ver-nos desta forma, nem a pessoa
que já partiu e está com o Senhor. Esta, sem dúvida, é uma maneira equivocada de
pensar sobre como Deus nos vê e como Ele nos compreende em nossos momentos
de fraqueza e desespero, especialmente quando perdemos alguém muito especial.
O texto bíblico que estas pessoas normalmente citam como argumento para esta
postura está em 1 Ts 4.13-14, " Não quero, irmãos, que sejais ignorantes com
respeito aos que dormem, que você pode não lamentar como outros que faz que
não têm nenhuma esperança. Para desde que nós acreditamos que o Jesus morreu
e subiu novamente, mesmo assim, por Jesus, Deus trará com ele esses que
dormiram.” Eu digo novamente que eu não quero fazer qualquer trabalho exegético
neste momento, mas eu creio que um breve comentário desta passagem é muito
importante. O apóstolo Paulo não está dizendo que o cristão não deveria expressar
os seus sentimentos quando está num processo de lamento e dor. Minha
compreensão deste texto é que o apóstolo está acentuando a idéia de esperança,
não a negação de pesar. O ponto principal do texto citado, em minha opinião, é que
as pessoas com uma expectativa escatológica para uma vida eterna em Jesus
Cristo também se enlutam, significando que eles choram, eles sofrem, eles
assumem os sentimentos profundos e intensos que a separação de um que nós
amamos freqüentemente produz, mas eles também podem superar esta fase inicial
e este momento mais doloroso da perda porque têm esperança no Salvador e sua
consolação. Eles têm que lamentar e chorar seus “mortos” para depois celebrarem a
esperança e terem um momento para celebração. Só há espaço para celebração se
houver espaço para se lamentar. Não há como celebrar se não há o momento de
contrição e tristeza para sair dele. A mensagem de Paulo para nós neste texto, eu
29
creio, é que nós devemos lamentar e chorar para que nós possamos celebrar a
ressurreição de Jesus, nosso Senhor. Como um antigo professor meu, Dr. C. Brown,
disse em classe que “não há nenhum domingo de ressurreição sem a sexta-feira da
paixão”. A resposta emocional saudável e apropriada para uma perda é pesar, nada
mais, nada menos.
Exemplos na Bíblia estão em todos lugares. Jesus é um exemplo forte de
uma pessoa que se permitiu lamentar e chorar. As Escrituras narram momentos em
que Ele lamentou pelos que amava. Ele também sofreu e Ele não estava
envergonhado de mostrar seus sentimentos de dor e angústia. Ele lamentou quando
Ele ouviu falar da morte do seu amigo Lázaro, como é narrado em João 11. Ele
também lamentou quando ele percebeu que Jerusalém havia rejeitado seu
ministério, como narrado em Mateus 23. Até mesmo raiva e indignação foram partes
das respostas emocionais dele, como nos é apresentado pelo evangelista São João,
no capítulo 2:14-15. Ele também estava em profundo desespero momentos antes da
crucificação, quando no Monte das Oliveiras, de acordo com Mateus 26:37-40, e Ele
não escondeu toda aquela angustia de nós, tanto é que suas palavras e suas ações
são registradas como testemunha eterna pelas Escrituras. Eu poderia descrever
muito mais fatos e eventos na vida do Mestre que relatam que ele era um varão de
dores que sabe o que é padecer, palavras citadas do belíssimo salmo messiânico
narrado em Isaias 53.
Os salmistas também nos dão grandes exemplos para que os cristãos leitores
percebam que também têm o direito de lamentar e sentir angústia em determinados
momentos da vida. Eu gostaria de listar alguns deles como referência para nós. Eles
são chamados de acordo com Dr. Klaus Seybold18 os Lamentos de um Indivíduo.
18 Seybold, Klaus. Introducing the Psalms. T&T Clark Ltd, Edinburgh, Scotland. 1990. P.116.
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São eles: 3, 5-7, 13, 17, 22, 25-28, 35,38,41-43, 51, 54-57, 59, 61, 63, 64, 69, 71, 86,
88, 102, 109, 130, 140, 141, 143 35 textos ao todo, quase um quarto dos Salmos.
Um olhar mais próximo do livro dos salmos será bastante para mostrar que temos o
direito de expressar sentimentos humanos, inclusive raiva e desespera, até mesmo
para Deus. O testemunho das Escrituras somente reforça e valida a concepção de
que lamentar é parte de ser humano e da realidade Cristã de todos nós, e não há
nenhum pecado quando expressamos tais sentimentos em nosso cotidiano.
Os salmistas têm suas almas aliviadas pelo fato de poder expressar diante de
Deus e dos homens como eles se sentem, e assim poderem ser autênticos para
com Deus e com o próximo. Eles alcançaram cura para suas feridas de alma tendo a
liberdade de expressar suas emoções.
Observe que em quase todos os salmos o aspecto curativo da expressão
autêntica de emoções humanas pode ser visto. A maioria dos Salmos termina com
uma contemplação da aceitação de Deus e uma canção de louvores pelo livramento
e cura divina. Este resultado só acontece por causa da possibilidade deles estarem
abertos a Deus e poderem expressar livremente seus sentimentos para com Ele e
saberem que têm sido aceitos por esse Deus maravilhoso. Deus nos aceita de tão
maneira, incluindo com nossos sentimentos de lamento e dor, a ponto de se tornar
carne e osso e habitar entre nós na pessoa de Jesus Cristo. Como Dr. McCann19 diz
no livro dele, "O livro dos Salmos e o livro de Jó têm profundas implicações para
entendermos a identidade de Deus. Se a humanidade foi criada à imagem de Deus,
então Deus também compartilha da angústia e do sofrimento da criação e a criatura,
se tornando um deles".
19 ?McCann, J. Clinton Jr. A Theological Introduction to the Book of Psalms - The Psalms as Torah. Abingdon Press. Nashville, TN. 1993. P.63.
31
É importante destacar e ressaltar o direito que temos como seres humanos, e
especialmente como cristãos, de lamentar e sentir pesar por todas as nossas
perdas.
Do Lamento para a Celebração
Eu gostaria de apontar que a resposta emocional apropriada e esperada para
quem vive um processo de perda, é através de um movimento que sai do lamento e
caminha para a celebração. A verdadeira celebração deve passar pelo processo de
um lamento, de pesar, verdadeiro. Eu gostaria de usar a exposição bonita de Henri
Nouwen20 de como este movimento acontece. De acordo com ele há três
movimentos que uma pessoa precisa fazer para alcançar inteireza depois sofrer uma
perda: (um) De solidão para solitude; (b) de hostilidade para hospitalidade; (c) de
controlar (ilusão) para a oração.
De solidão para solitude.
Eu chamaria este primeiro passo como o restabelecimento da relação da
pessoa com ela mesma. É na verdade uma redescoberta do eu mais profundo da
pessoa. Todos nós queremos nos conhecer. Muitas vezes nos vemos angustiados
por que não nos conhecemos. É através deste movimento é que passamos a nos
compreender melhor.
Devemos, contudo, entender que a solidão está relacionada com o lado
patológico. A solidão é o sentimento de estar só, mesmo com o “mundo” todo ao
redor de nós. Não há interesse algum de comunicar e contatar com as pessoas ao
20 Nouwen, Henri J. M. Reaching Out. Image Books Doubleday. New York, NY. 1975
32
nosso redor. A paranóia de não ser amado por ninguém está constantemente
presente. Nos sentimos sós e “largados”, o que necessariamente não é verdade. O
problema com a solidão é não conseguimos estabelecer uma conexão saudável
conosco mesmos, nem com o mundo ao nosso redor. Criamos uma imagem
distorcida da realidade, e passamos a ver todas as coisas sobre o nosso ponto de
vista doentio. Tudo parece estar cooperando para a nossa derrota. Nos sentimos
perseguidos e sem alento.
Na solidão há uma falta de contato entre o mundo e nós mesmo, o que nos
conduz a perda de nossa identidade. Passamos a viver fora da realidade, vivendo
um eu imaginário que certamente nos levará a morte emocional e espiritual, até
mesmo a morte física. Solidão certamente pode ser considerada como uma “decisão
inconsciente” de deixar o mundo e não existir mais é uma atitude suicida. É o
sentimento ambíguo de existir e não querer existir ao mesmo tempo. Estamos tão
dispostos a nos sentir só, que nos tronamos fracos e fragilizados espiritualmente,
emocionalmente e fisicamente. Nos sentimos sem forças para vencer os medos e
angustias próprias da vida. Por causa de nossa fraqueza, chegamos ao ponto de
desejar não viver mais, e como não podemos “morrer” simplesmente, ou não temos
"coragem" bastante para nos matar, nos isolamos do mundo e de nós mesmos.
Ficamos sós e envolvidos pelo denso e negro véu da solidão. O que realmente
desejamos é fechar os olhos e deixar que o mundo passe por sobre nós e que nada
mais tenha valor ou significado em nossa existência. A solidão é o grande mal do
século. E deve ser combatido com uma atitude solícita por parte de cada um de nós.
Solitude, ao contrário, é o lado saudável e desejado no processo de busca do
equilíbrio espiritual. É o outro lado da moeda. É a habilidade para estar em contato
com o nosso eu. É estar só, separado das pessoas, sem uma companhia física
33
muitas vezes, mas desfrutando alegremente da companhia do nosso ser, que Deus
mesmo criou. É um tempo que gastamos conosco mesmos para avaliar ou meditar
sobre a vida. Há sentimentos de alegria e esperança envolvidos nesta atitude.
Quando praticamos períodos de reclusão para uma viagem de autodescoberta,
produzimos mais vida espiritual em nós para ser compartilhada com os outros.
Aprendendo mais sobre nós mesmos, nos tornamos mais capazes de transmitir as
boas novas do Evangelho a todos que estão ao nosso redor.
Há algo comum entre a solidão e a solitude - é o fato que a pessoa quer estar
só boa parte do tempo, é uma experiência solitária. É bom dizer aqui que não há
nada errado estar só. Distância física de tempos em tempos para um auto-exame ou
mesmo para simples meditação, é muito importante. Esta atitude ajuda a criar uma
maior autonomia de uma vida emocional saudável que toda pessoa precisa ter.
Solitude não é um isolamento permanente ou longo demais. Estar solícito é um
exercício de estar em contato consigo mesmo por um determinado período, para
aproveitar da quietude e de um tempo de silêncio e reclusão. É um tempo para
conhecer e reconhecer limites, assumir nossa finitude e total dependência de Deus .
Um tempo de uma nova avaliação de quem somos, ou melhor dizendo, uma
reidentificação mais cautelosa de nossas estruturas – limites e potenciais. Solitude,
diferente de solidão, conduz as pessoas para celebrar vida e apreciar quem elas
são, e dar graças a Deus pela boa ação do Criador em tê-la formado. Solitude nos
conduz para apreciar o modo que fomos criados, e agradecer a Deus pela
singularidade de sua criação.
De hostilidade para hospitalidade.
Aqui está ressaltada a relação que nós temos com o resto do mundo, das
relações de interpessoais. Mover de hostilidade para a hospitalidade é criar espaço
34
em nossas vidas para outros que também nos amam. É sermos capaz de baixar
guarda, tirar as barreiras, reduzir a animosidade. Hospitalidade é mais que para
receber alguém em nossas casas, é a habilidade para se abrir ao amor e ao toque
sutil das pessoas que nos amam e estão ao nosso redor. Esta abertura para o outro
produz cura e leva à maturidade. A coragem para abrir sua vida para os outros é o
risco necessário para alcançar inteireza e completude.
Hostilidade não trás benefícios para ninguém. Precisamos entender que
através de uma vida voltada a servir a Deus e ao próximo substitui a hostilidade em
nós, criando assim espaço para o amor e a vida. A questão é que na hospitalidade
ficamos muito expostos e muitas vezes isto nos trás medo. Temos medo da traição,
do descaso, do desprezo, da zombaria, de atitudes que nos agridem quando
estamos vulneráveis. É assim que a hospitalidade nos deixa – vulneráveis.
Entretanto, devemos correr o risco. Não há como amadurecer e cresce
espiritualmente, e em todos os sentidos, sem nos expor para o mundo que vivemos.
Talvez não pareça muito seguro, mas é importante e necessário para que
continuemos a progredir na busca de sermos completos.
A resposta para que este movimento se concretize em nossas vidas é
buscando vida simples. Há hoje nos USA um movimento de retorno à vida simples.
Pessoas estão largando empregos e a correria das grandes cidades e procurando
quietude nas coisas verdadeiramente importantes – espiritualidade, família,
relacionamentos duráveis e intensos, amizades, auto-realização. Não há como
exercer a hospitalidade sem ter tal abertura para o mundo, fazendo valer valores
essenciais para vida.
A igreja pode, e deve ser, um grande instrumento para alcançarmos
completude neste sentido. Nos envolvendo mais com a comunidade que servimos,
35
certamente teremos melhores resultados de satisfação pessoal e de conquistas em
todas as áreas.
De controlar para a Oração.
Este movimento redefine nossa relação com o Criador. Seria melhor definir
este passo como um movimento que vai da Ilusão para oração. Nós deveríamos
superar a ilusão de sermos imortais e deveríamos enfrentar a realidade de nossa
finitude. Esta é a razão de colocar a oração em contraste com o controle - pela
ilusão de achar que controlamos as coisas. É na oração que reconhecemos que nós
somos seres finitos e totalmente dependentes de Deus e de sua ação graciosa de
permitir-nos a vida. Se estamos aqui é porque Deus assim o determinou. Não há
como ser diferente – somos criaturas e ele é o Criador. A oração é a proclamação
mais audível de que nós não podemos fazer nada por nós mesmos. Quando oramos
deixamos o controle de nossas vidas nas mãos de Deus, e declaramos total
dependência da providência do Ser Divino.
O problema do ser humano é que ele pensa que deveria estar no controle de
sua vida. Achamos que somos capazes de cuidar de nós mesmos. Até mesmo em
tempos de dificuldades, muitos ainda tentam, em vão, cuidar de seus “negócios” não
permitindo a ação salvadora de Deus em nosso cotidiano. Devíamos lembrar que
em tempos de desespero, de lutas, é que mais ainda devíamos nos render ao seu
grande poder, nos humilhar, e “cair na real” de que é simplesmente uma ilusão
querer controlar nossas vidas. Este é um atributo exclusivo de Deus. Só ele é capaz
de cuidar de nós com eficiência. Em tempos de desespero e desesperança, a
melhor coisa a fazer é não fazer nada. É confiar no poder supremo do Ser Supremo,
e deixar que ele cuide de nós.
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Quando nós estamos tentando controlar nossas próprias vidas estamos nos
tornando idólatras. Estamos tomando o lugar de Deus. Nós estamos dizendo a ele,
muitas vezes inconscientemente, que nós não precisamos de Ele, porque nós
podemos sair da situação sem o aborrecer. Dizemos que “damos conta” de nossa
vida, e dispensamos o cuidado de Deus, o que é um grande risco.
O oposto da ilusão de estar no controle das coisas é a oração. É se render a
Deus e Lhe pedir que ele assuma nossa vida, porque nós, por nós mesmos não
podemos fazer nada. Orar é dizer que só Deus pode nos salvar. Orar é mover de
uma posição de egocentrismo e se colocar no centro dos braços e do cuidado de
Deus. É reconhecer nossa limitação e reconhecer a realidade que só Deus pode, e
fará algo que nos ajudará a viver mais felizes. A oração é o ato mais radical que
expressa nossa confiança em Deus. Oramos, entregamos nosso pedidos a Deus,
sem saber como Deus irá lidar conosco. Por essa razão é que o elemento
confiança é essencial em nosso relacionamento com Deus. Não há como controlar
e confiar. Ou se confia e entrega, ou tenta se controlar e se perde no desespero de
concluir que é impossível cuidar em todo o tempo.
Há muitas mães angustiadas tentando controlar a vida de seus filhos, quando
deviam é descansar nos braços poderosos e capazes do Grande Eu Sou. Há muitos
cônjuges tentando controlar a vida de seus parceiros, sendo que deveriam aprender
a se render na mãos do Grande protetor. Há muitos patrões que se aventuram em
vigiar seus empregados, quando deviam estar orando por eles. Há pastores que
tentam fazer tudo com suas próprias mãos, se esquecendo que seu rebanho só
estará seguro nas mãos do Bom Pastor.
Fica aqui uma dica: Nós precisamos orar mais quando menos a gente sente
vontade em faze-lo, porque a nossa relutância em orar é um sinal de algum
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problema espiritual que somente se manifesta nesta nossa relutância de orar. Se
você não sente vontade de orar, observe sua vida – há algo que não está bem. Ai,
mais do que nunca, é preciso dobrar os joelhos, largar mão do controle, e orar mais.
Conclusão
Eu creio que eu tenha apresentado brevemente alguns pontos sobre os
assuntos principais que envolvem as perdas e o sentimento de dor e de pesar. Eu
sei há muito mais coisas a serem ditas, muito mais a ser lido, e muito ainda a ser
escrito, mas meu intento era abordar o assunto de um modo conciso e coerente de
alguns dos temas mais importantes que concernem ao assunto. Eu estou certo,
depois destas páginas de discussões, minha definição de pesar e luto pode ser
colocada aqui agora com muito mais certeza, ou pelo menos pode ser entendida
melhor: lamento é uma resposta emocional dolorosa, complexa, difícil, normal,
apropriada, esperada e necessária para quaisquer tipos de perdas, sejam elas quais
forem, e que todos os cristãos têm o direito de se sentir tristes e desesperansosos
quando elas acontecem, para que, após o luto e a dor, eles possam experimentar o
sentimento de libertação e regozijo da vitória de terem superado suas perdas.
Elaborado pelo Prof. Rev. Robson Viana Gomes, Th.M.
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