57
Elaboração do Luto Introdução Todos os seres humanos, em algum momento de sua existência, experimentaram algum tipo de perda. Perda faz parte da experiência de todos nós. Experimentar perda é uma rotina presente em todos os sistemas familiares, em qualquer grupo dinâmico, e acontece freqüentemente com todos os indivíduos, quaisquer que sejam suas raízes. Ninguém pode negar as perdas da vida. Elas são reais e todos sofremos com elas. Algumas pessoas podem até não estar preparadas para identificar claramente suas perdas, ou mesmo não querer identificá-las conscientemente, mas seguramente todos nós lamentamos 1 sobre alguma perda. O processo, muitas vezes inconsciente, da dor do luto e do lamento, leva muitas pessoas a reprimirem seus sentimentos, ou negarem a existência dos mesmos. Isso não significa que elas não sentiram a perda. O que este comportamento nos informa é que essas pessoas não lidaram com a perda de maneira salutar, saudável. Reprimir não é a melhor solução para todo e qualquer 1 Lamento, luto, pesar - Estarei intercâmbiando estes termos entre si. Representam o mesmo significado, ou seja, é o sentimento profundo do enlutado em relação a uma perda qualquer. O termo em inglês “Grief” é o que está em foco. 1

Luto

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Pastoral

Citation preview

Page 1: Luto

Elaboração do Luto

Introdução

Todos os seres humanos, em algum momento de sua existência,

experimentaram algum tipo de perda. Perda faz parte da experiência de todos nós.

Experimentar perda é uma rotina presente em todos os sistemas familiares, em

qualquer grupo dinâmico, e acontece freqüentemente com todos os indivíduos,

quaisquer que sejam suas raízes. Ninguém pode negar as perdas da vida. Elas são

reais e todos sofremos com elas. Algumas pessoas podem até não estar preparadas

para identificar claramente suas perdas, ou mesmo não querer identificá-las

conscientemente, mas seguramente todos nós lamentamos1 sobre alguma perda.

O processo, muitas vezes inconsciente, da dor do luto e do lamento, leva

muitas pessoas a reprimirem seus sentimentos, ou negarem a existência dos

mesmos. Isso não significa que elas não sentiram a perda. O que este

comportamento nos informa é que essas pessoas não lidaram com a perda de

maneira salutar, saudável. Reprimir não é a melhor solução para todo e qualquer

processo que envolva o emocional. Precisamos expressar nossos sentimentos de

forma que nossa saúde seja preservada. Por isso minha meta para este capítulo é

apresentar um breve e conciso trabalho, contudo coerente, sobre o que vem a ser o

Processo de Elaboração do Luto, bem como sua relação com todas as nossas

perdas do cotidiano.

Um outro objetivo para esse capítulo é destacar a importância de

expressarmos nosso sentimento de luto e do lamento como uma resposta mais

profunda, saudável e adequada para qualquer tipo de perda em nossas vidas. Eu

1 Lamento, luto, pesar - Estarei intercâmbiando estes termos entre si. Representam o mesmo significado, ou seja, é o sentimento profundo do enlutado em relação a uma perda qualquer. O termo em inglês “Grief” é o que está em foco.

1

Page 2: Luto

estarei escrevendo sobre o sentimento de luto e sobre perdas da maneira como eu

creio que eles devem ser tratados -- muito conectados um com o outro. Porque um

não existe aparte do outro. Eles dependem muito da interação que os unem, isto é,

um existe por causa do outro, e vice-versa.

A Morte

Nós não podemos afirmar que luto só está relacionado com a morte. É bem

verdade que a morte é o motivo que produz o sentimento mais estressante de pesar

que alguém pode sentir. Normalmente as pessoa se sentem muito angustiadas e

aflitas só em pensar na possibilidade da realidade de suas próprias mortes, ou a de

outra pessoa querida. Processando a morte, ou seja, pensando e conversando

sobre ela, é quando estamos mais próximos da profunda dor que a perda produz

nos seres humanos. As pessoas normalmente experimentam variados tipos de

emoções muito fortes em um processo de luto, especialmente se a perda é de uma

pessoa amada. As questões que a possibilidade de enfrentar a própria morte

levanta, ou a de um ente querido, estão muito relacionadas ao medo do

desconhecido, ou o sentimento de abandono. Morte é algo inesperado, sempre! Não

importa se quem está morrendo já estava extremamente doente ou até mesmo se,

conscientemente, já estávamos nos preparando para sua morte. Nós nunca estamos

preparados para isto, porque a morte nunca é esperada ou é desejada por ninguém.

Como disse uma vez meu professor, Dr. Charles Brown, um dia em classe:

“Ninguém se sente velho o bastante para morrer.” Por causa destes tipos de

sentimentos ligados ao nosso próprio momento de morrer, bem como a morte de

uma outra pessoa, as seres viventes temem e rejeitam veementemente a

possibilidade da morte. Nós seres humanos entramos em pânico só em pensar que

2

Page 3: Luto

a morte é uma realidade para todas as criaturas que estão vivas. Todos sabem

muito bem que enfrentarão a mais obscura, desconhecida e "indesejável" viagem

que a vida lhes oferece – a morte. Ela é assustadora e desmorona toda a segurança

que nós temos nas coisas que vemos e entendemos.

Um outro aspecto da morte é que a intensidade da dor advinda da perda de

alguém que amamos não pode ser repetida em nenhuma outra circunstância. É um

evento que não se repete, único em todos os sentidos. Uma pessoa pode

experimentar a dor da perda simultânea de duas pessoas diferentes, e até mesmo

naquela situação a pessoa não poderá sentir as perdas da mesma maneira. É um

sofrimento pessoal e muito particular, e que depende de muitas variáveis. As

pessoas que perdem um ente querido sentem que o mundo parou, e que todos

devem “esperar” com ela esta “parada” no tempo da vida. A desorientação em

relação a tempo, hora, dia, é muito comum nas pessoas enlutadas, mas a realidade

que eles enfrentarão, mais cedo ou mais tarde, é que o mundo continua em seu

percurso normal, e que todas as outras pessoas precisam continuar vivendo suas

vidas normalmente. Nada realmente mudou, mas ao mesmo tempo tudo mudou, aos

olhos daqueles que sofrem a perda de um ser amado e querido.

A Teologia de Luto

Todos os cristãos estão tentando entender teologicamente o evento morte.

Não há uma unidade de pensamento ou mesmo um só entendimento teológico.

Ninguém pode afirmar ter ou saber a verdade absoluta sobre a realidade da morte.

De acordo com as Escrituras a experiência de morrer fisicamente é uma experiência

única, definitiva e individual para todos os seres viventes deste universo. Algumas

3

Page 4: Luto

exceções estão relacionadas na Bíblia2, e não há muita informação nestes relatos

sobre sua dinâmica de maneira clara. O resultado de tudo isto é que nós só

aprenderemos sobre a dinâmica da morte quando passarmos por ela, ou quando o

Senhor Jesus nos resgatar em Sua gloriosa volta. Mesmo assim, nós cristãos,

continuamos tentando entender sobre a morte, a despeito de nossa finitude. Nós

lemos, escrevemos e discutimos sobre ela. Nós tentamos torná-la mais fácil de ser

entendida e aceita; e ainda assim ela será para nós algo novo e inesperado.

As questões que levantamos sobre a morte, no meu entender, estão muito

relacionadas às nossas convicções teológicas sobre os eventos escatológicos - os

eventos futuros. Eles fazem parte da esperança viva do cristianismo quanto ao dia

de amanhã, que envolverão a igreja como um todo, bem como cada crente. Eles

determinam, ou têm bastante influência, na maneira como estes crentes reagem em

relação à morte e suas incógnitas. Por exemplo, a expectativa escatológica,

constante e iminente da igreja primitiva do Novo Testamento, era muito forte e isso

levou o apóstolo Paulo a definir morte como lucro. A Vida perde seu valor e

interesse quando a expectativa da vinda do Messias é iminente. Até mesmo as

coisas importantes da vida social do crente, como, por exemplo, o casamento3,

perdem seu objetivo. O evento da Segunda Vinda de Jesus, com todas suas

promessas, tem influência muito poderosa na vida das pessoas. Os crentes estão

desejosos para morrer para receber a vida eterna, nossa coroa, depois que

passarmos desta vida mortal de lutas e sofrimentos.

O mesmo evento desempenha um papel decisivo para aqueles crentes que

estão sob opressão, tribulação, inclusive em condições de estresse emocional. Eles

2 Temos alguns exemplos de milagres que aconteceram onde pessoas foram ressuscitadas, no AT e no NT (Elias 1 Rs 17; Elizeu 2 Rs 4; Jesus Jo 11; Pedro At 9). Há casos de duas pessoas que não experimentaram, a morte física, de acordo com o relato bíblico – Enoque (Hb 11) e Elias (2 Rs 2).3 Paulo sugere que permanecessem solteiros para que não houvesse impedimento para a expansão do Evangelho, pois para ele a volta de Jesus era iminente, estava por acontecer ainda em seus dias (I Co 15:50; I Co 7:8).

4

Page 5: Luto

vêm a morte como uma saída. É o mesmo que um “suicídio”. É “buscar” a morte

física que nos garante a vida eterna nos céus. Este pressuposto é perigoso, pois

pode tirar de foco a realidade da vontade de Deus para a vida natural e ministerial

do crente. Isto não é o que a Bíblia ensina. É como desejar uma saída mais fácil

sem pensar em suas conseqüências.

Com certeza a maneira como nós interpretamos teologicamente os eventos

escatológicos molda nossa maneira de ver a vida e a morte.

Para levá-los a uma reflexão e provoca-los a estudar um pouco mais sobre o

assunto, gostaria de apresentar um outro ponto de vista teológico, sem contudo me

aprofundar nele, que é a visão da morte física como conseqüência do pecado.

Chegar a conclusão de que o relato do livro de Gêneses introduz somente a morte

física, biológica, como o castigo para pecado da raça humana, pode ser superficial e

de alguma forma precipitado. Muitos afirmam que a morte pronunciada ao homem e

a mulher, como conseqüência de seus pecados, é a morte física. Claro que não há

tempo para uma exegese profunda do texto, mas pelo menos uma pergunta precisa

ser feita nesta altura do argumento: O homem e a mulher morreram fisicamente logo

após seu pecado? Claro que não! Mas morrerem, pois a Bíblia assim nos ensina.

A orientação divina era que "no dia"4 em que comessem do fruto da árvore

que Deus ordenara que não comessem, eles morreriam. Não houve naquele

momento a morte física, natural, que muitos talvez esperassem. Deus não mente,

consequentemente um “tipo” diferente de morte aconteceu exatamente naquele dia.

Suas vidas foram mudadas pelo "poder" do pecado, o que resultou na morte do

primeiro casal, e consequentemente de toda a espécie humana, de maneira

4 Uma discussão mais aprofundada seria necessário para um maior entendimento sobre as possibilidades de interpretação que este termo trás consigo. Contudo, creio que o argumento deve ser levado em consideração pela força da expressão.

5

Page 6: Luto

instantânea. A morte entra na raça através do pecado de nossos primeiros pais.

Disto sabemos com certeza.

A pergunta ainda fica sem muitos esclarecimentos, e muitos teólogos se

aventuram a dar respostas para o dilema. Não é simples e nem fácil achar “motivos”

para explicar porque Deus não executou a sentença da morte biológica ao varão e a

varoa ainda no éden. Certo é que morremos naquele dia, pois fomos separados de

Deus e expulsos da presença do Criador. A morte natural nos separa de nós

mesmos e de nossos semelhantes, mas a verdadeira morte nos separa de Deus.

Por isso que haverá um tempo escatológico onde a morte definitivamente reinará

para aqueles rebeldes contra Deus e uma implantação da semente de vida eterna

naqueles que foram escolhidos pela graça divina, e a terra e o mar terão que

devolver seus mortos para o julgamento eterno – a morte ou vida.5

Um outro aspecto a ser relacionado com evento citado acima é o fato do

salário do pecado, de acordo com Paulo, ser a morte.6 Claro que ninguém peca e

morre a morte natural, mas todas as pessoas estão mortas quando pecam, pois

estão separadas de Deus. A morte deve ser considerada como a separação do ser

criado de seu Criador. Isso sim é morte. Estar debaixo do poder de pecado e

separado de Deus é que chamamos de verdadeira morte. Deus criou o homem e

mulher como seres finitos. Morte física, a biológica, que eu prefiro chamar de morte

natural, é parte da finitude humana e define os limites com que todos os humanos

devem viver. Não somos deuses, somos criaturas, criados sim à imagem e

semelhança dEle, mas totalmente distintos e limitados. Somos criaturas, não somos

Criadores; Deus é Deus, nós não somos. O morrer natural foi a forma condenatória

externalizada de todo o processo de morte instalado no ser humano pelo ato do

5 Apocalipse 20.11-156 Romanos 3.23, 6.23

6

Page 7: Luto

pecado. O homem morre em todos os aspectos – relacional, consigo mesmo, com a

natureza criada e para com Deus. A restauração também alcançará todos estes

aspectos para que a vida seja restabelecida pelo poder do sopro de Deus. Com o

pecado, tudo passa a acontecer e a história, presa nas mãos do Criador, começa a

se desenrolar. O pecado introduz a morte para a criação boa e perfeita de Deus.

Certa feita Jesus disse aos discípulos que não se preocupassem com o dia de

amanhã. Seu argumento foi que ninguém poderia acrescentar tempo a sua própria

vida.7 A realidade da morte é para todo o mundo vivente e mortal, finito e carente da

restauração celestial. Ser ilimitado, infinito e eterno é prerrogativa exclusiva do

Criador. Ser humano, mortal e limitado é ser de acordo com a natureza criada por

Deus para todas as suas criaturas terrenas.

Perdas

Pensando nesta realidade da finitude humana, eu gostaria de relacionar o

luto, a perda, com o processo de morte. Eu acredito que a realidade de morte só

pode ser compreendida através das experiências pessoais de dor e sofrimento das

pessoas. Nós só poderemos tentar entender o lamento, o luto e o sofrimento das

pessoas quando experimentamos a dor delas, e com elas. O único modo que

podemos entender mais profundamente a realidade de um processo de luto é poder

experimentar a dor da perda de uma outra pessoa.

Eu quero ir um pouco adiante com este pensamento e afirmar que nós

pastores, ou mesmo pessoas que estão envolvidas neste ministério, temos que estar

preparados para empatizar com o momento de cada pessoa, lembrando que cada

pessoa é cada pessoa, distinta e separada diante de Deus. Devemos lembrar que

7 Mateus 6:27

7

Page 8: Luto

cada pessoa reage de uma determinada maneira diante de determinadas situações,

diferentes umas das outras. Tenho certeza que todos gostaríamos de oferecer cura

imediata aos enlutados, mas devemos respeitar o "tempo de reação" de cada

pessoa. Cada pessoa reage e reagirá de maneira diferente. Nos momentos que

somos incapazes de oferecer restauração imediata, devemos oferecer suporte

emocional e espiritual, estando fisicamente presente e solidarizando com suas lutas

daquele momento. Nós não temos a capacidade de prover cura para um processo

de luto, somente a Graça de Deus, aliada ao tempo, pode realmente curar as

pessoas. Nosso trabalho, nosso dever, é estar fisicamente presente para dar apoio

para elas no momento que elas precisam muito de nós, e talvez a nossa presença

ali os confortará e servirá como um instrumento poderoso nas mãos do Senhor para

promover restauração e cura, afinal de contas, luto é um assunto que deve ser

encarado como espiritual.

A pessoa tem que lidar, ela mesma, com o Criador para processar bem uma

perda. Deus está disposto a lidar com nossa dor porque Ele mesmo se identificou

com nossas lutas, tornando-se humano em Jesus Cristo. Nós somos

freqüentemente os canais da graça de Deus, mas eu acredito que é a habilidade de

Deus, lidando com a pessoa, e a abertura da pessoa para receber a graça de Deus,

é que trará cura para todos aqueles que estão enlutados.

Perdas não são somente as que envolvem morte física. Há muitas outras

razões para sentir enlutado, além de uma morte física/natural. Eu diria que todas as

outras possíveis perdas também podem ser chamadas de morte, mas com um

significado diferente. Nós sentimos a “morte” toda vez que estamos desconectados,

cortados, descontinuados, separados, ou desintegrados de alguém ou alguma coisa

desta vida. Tudo aquilo que tem peso e valor para nós é potencialmente fonte de

8

Page 9: Luto

luto. Todos os sentimentos que estão relacionados a experiências, tais como,

abandono, rejeição, separação, perda de um trabalho, enfermidade, mudanças,

insegurança, e muitos outros, trará à tona sentimentos como de morte para todos

nós. É algo natural. Algumas pessoas reagem diferentemente de outras, como já

disse, mas todos sentimos luto. Em alguns casos nem sequer notamos que estão

sofrendo por uma perda, pois para alguns é mais fácil a negação do que o enfrentar

a situação. Isso não significa que eles não estão sofrendo, simplesmente significa

que eles lidam com o luto e a perda de um modo diferente. A verdade é que todos

sem exceção, de maneiras diferentes, sofrerão o processo de luto, sendo este por

morte ou outro tipo de perda. Mitchell e Anderson8 classificam perdas em seis

grandes grupos, ou seis tipos de perdas, o que eu creio que seria de grande valia

avaliarmos na altura deste trabalho.

O primeiro grupo são as perdas materiais, que incluem a perda de um objeto

físico ou algum pertence aos quais as pessoas dão valor de importância a eles. O

valor intrínseco das coisas é que está em pauta, e não o venal.

O segundo tipo é a perda em relacionamentos. As pessoas são muito

apegadas umas às outras. Até mesmo a perda de um animal de estimação gera a

angustia da perda. Relacionamentos rompidos levam a humanidade a experimentar

dor e sofrimento profundos.

O outro tipo de perda é a intrapsíquica. Esta é a “experiência de, aos poucos,

ir perdendo a auto imagem, ir perdendo a visão das possibilidades do que somos, ou

poderíamos chegar a ser. É o abandono de planos para o futuro, é a morte dos

sonhos pessoais.”9 Embora freqüentemente relacionada com a experiência externa,

esta é uma experiência iminentemente intrínseca e pessoal. Como um exemplo eu

8 Mitchell, Kenneth e Herbert Anderson. All Our Losses, All Our Griefs. The Westminster Press. Philadelphia, PA. 1983.9 Ibid., p.36

9

Page 10: Luto

apontaria as mudanças naturais que acontecem na idade da adolescência. Valores

vêm, valores vão, e nada é como era antes. Perdemos e ganhamos, mas a dor da

perda é bem presente.

O quarto tipo é a perda funcional. Ela está relacionado às perdas das funções

físicas e neurológicas. Uma amputação de um membro do corpo, ou mesmo a perda

da habilidade de lembrar de fatos passados, são exemplos deste tipo de perda.

Em quinto está o tipo de perda que se refere à perda de um papel específico

que uma pessoa é acostumada ser ou exercer. A aposentadoria é freqüentemente

um bom exemplo para este tipo de perda. O desemprego ou a inabilidade de

prosseguir com um trabalho ou ministério também são fontes de luto.

A perda Sistêmica, a sexta e última categoria, está relacionada às emoções

que temos quando uma mudança em nosso sistema social aconteceu. Por exemplo,

quando os adultos jovens decidem deixar casa e suas famílias de origem para

estabelecer as suas próprias casas e lares, os pais e outros irmãos experimentam a

dor da separação e da perda. O grupo sente a falta de um de seus membros,

mesmo entendendo que é para o bem deles. Da mesma forma o pastor que tem que

deixar o campo que trabalhou durante algum tempo sofre a dor da perda, mesmo

entendendo que está seguindo a vontade do Pai.

Lamentar e sofrer uma perda são parte natural de nossa humanidade. Esses

sentimentos só reforçam a idéia que somos seres finitos e limitados, carentes do

consolo e do conforto de Deus, nosso Pai. O enlutado, seja ele quem for, ou qual

seja o seu motivo, precisa alcançar a graça de Deus para vencer.

Luto

10

Page 11: Luto

O que pretendo agora é dar algumas definições de Luto, de forma que elas

poderão nos ajudar a entender melhor o processo de elaboração das perdas como

um todo. O primeiro, e óbvio, vindo do dicionário. De acordo com a definição do

Novo Dicionário Aurélio, da Editora Nova Fronteira, luto é: " 1. Sentimento de pesar

e dor pela morte de alguém. 4. Tristeza profunda; consternação; compadecer-se,

condoer-se; sentimento de dó.

Ainda, o Glossário Psiquiátrico, Quinta Edição, define “pesar” como: "uma

resposta emocional normal e apropriada para uma perda externa e conscientemente

reconhecida; está normalmente limitado por um tempo e gradualmente vai se

extinguindo. Deve ser entendida distintamente de depressão."

Eu penso que as duas definições combinadas provêem para nós uma

definição melhor e completa. Na definição do dicionário falta a parte que define

processo de pesar como uma resposta natural, normal e apropriada para as perdas.

Já o Glossário Psiquiátrico não inclui em sua definição o aspecto da dor e do

sofrimento que ele causa. Gostaria de apresentar uma definição que eu acredito seja

mais próxima à realidade do processo do luto. Pesar é para mim é uma resposta

dolorosa, não obstante normal e apropriada para qualquer tipo de perda, seja ela por

morte ou qualquer outro tipo de sentimento de separação. Não há nenhum

sentimento de pesar sem uma perda, assim como não há nenhuma perda sem dor.

A maneira pela qual nós lidamos com esses processos, agimos ou reagimos diante

deles, é o que define como nós lidamos com a questão de uma perda real. Gostaria

agora de desenvolver alguns conceitos para elucidar o que normalmente se acredita

serem os sintomas comuns e até mesmo esperados do enlutado num processo de

perda. Há de se apontar que há sintomas considerados normais e outros abnormais,

11

Page 12: Luto

e gostaria de discutir um pouco sobre a normalidade e a patologia dos sentimentos

que envolvem o luto.

Primeiro, é importante apontar aqui que sentir-se enlutado não é uma doença.

Como mencionei mais cedo, é uma resposta emocional normal e apropriada às

perdas. Embora a pessoa envolvida num processo de luto, muitas vezes, pareça

estar "doente”, porque há muitos sintomas que podem ser parecidos com

enfermidades, tais como, náuseas, sintomas como se estivesse deprimido, tonteiras,

pressão baixa, e outras, pesar não é uma doença. Considerando que eu mencionei

depressão em contraste com pesar, me permitam explicar as diferenças entre os

dois. Isto servirá como uma maneira breve de explorar o conceito de que pesar, o

luto, não é uma doença.

Algumas pessoas diriam que a linha divisória entre as duas coisas é muito

tênue, o que eu concordaria. Contudo, quando prestamos atenção mais diretamente

percebemos que a dinâmica das duas é diferente. Embora o sofrimento causado por

uma perda e a depressão pareçam semelhantes, eles diferem um do outro, por

exemplo, na intensidade e duração deles. Nós não os podemos confundir, ou até

mesmo tentar coloca-los em uma mesma categoria, porque eles são distintivos um

do outro. Enquanto descrevendo os dois sob a perspectiva do humor da pessoa que

está sofrendo, eles se parecem muito, na verdade, quase idênticos. Neste caso, a

princípio, a depressão parece que tem uma reação emocional normal e apropriada

para algum tipo de perda. Os sentimentos são parecidos, como por exemplo, tristeza

profunda, desespero e desânimo, falta ou excesso de apetite, e outros sentimentos e

emoções fortes relacionadas com o humor. A sensação que esses sentimentos nos

trazem é como se a vida tivesse perdido sua cor e seu sabor. O significado de vida é

reduzido a quase nada. O sentimento profundo de desespero das pessoas leva-as a

12

Page 13: Luto

pedir até mesmo a morte, ou talvez esperar que o mundo inteiro parasse "por conta"

delas. Outros sintomas que também podem ser considerados semelhantes nos dois

acasos são: redução da capacidade de raciocínio, diminuição das atividades físicas,

que inclui as atividades sexuais, senso de culpa elevado, e desesperança. Há

emoções muito fortes que envolvem os processos de depressão e de pesar. Eu diria

novamente que as diferenças principais podem ser localizadas então na severidade

dos sentimentos relacionados a depressão, bem como a duração deles. Eu diria que

os sentimentos relacionados com o processo de elaboração da perda podem se

tornar sentimentos que eventualmente, se não houver uma reação da pessoa

envolvida no processo, levam a um quadro depressivo, o que consideraríamos uma

patologia do comportamento. O que gostaria de acentuar aqui é que o luto, se não

processado bem, pode se tornar depressão, que precisa ser encarada

diferentemente da reação normal de enlutar-se por uma perda qualquer. Um outro

sintoma que está com freqüência relacionado a depressão, que talvez diferenciaria

um processo do outro, é insônia constante, ou seja, a inabilidade de se ter uma boa

noite de sono durante período longo.

Concluindo meu ponto até esse momento, eu gostaria de reforçar a idéia de

que as principais diferenças entre os sintomas de um processo de elaboração de

luto e depressão são a duração, freqüência e intensidade com que a pessoa se

envolve nas emoções relacionadas a ambos. Além do mais, há se reforçar que a

depressão é hoje assunto da área médica, e em muitos casos, não tem nada a ver

com os eventos da vida, mas sim com a deficiência hormonal e química do

organismo. Nestes casos, além do acompanhamento terapêutico, é imprescindível

que a pessoa recorra ao uso de medicamentos, que só o profissional da área pode

13

Page 14: Luto

receitar. O médico que as pessoas devem procurar, para estes casos, é o psiquiatra.

Ele é o profissional mais habilitado para diagnosticar e intervir com mais eficácia.

Respostas Apropriadas

As respostas emocionais normais e apropriadas para elaboração de uma

perda podem ser observadas quando as pessoas envolvidas nesses processos

lamentam a dor e o pesar em sua totalidade, ou seja, não se esquivam ou negam o

sentimento. Isto significa que a normalidade de lamentar uma perda é

verdadeiramente sentir a tristeza que ela normalmente traz a nós. É permitir a si

mesmo sentir todos os "sentimentos" advindos da perda do objeto de seu amor.

Nesta altura da discussão, gostaria de ressaltar a questão do fator tempo na

elaboração do luto -- o tempo para elaboração das perdas é muito pessoal e

individual. Ninguém pode determinar a duração certa para um "bom luto." Nós

lamentamos e choramos as perdas de acordo com as nossas próprias limitações e

habilidades. Isso também implica que não há nenhuma correspondência entre dois

processos de pesar, olhando da perspectiva do volume de tempo "chorado." O que

nós chamamos de doentio, patológico, ou luto crônico, depende de muitos outros

fatores que cercam a vida da pessoa que está lamentando, especialmente o que

está acontecendo em sua vida naquele momento. Por exemplo, o apego emocional

que a pessoa tinha com o objeto de amor que se foi, ou até mesmo as condições

físicas, mentais, emocionais ou espirituais da pessoa na hora da perda. Nós

devemos ter muito cuidado antes de "julgar" se o sentimento de perda das pessoas

é normal ou não, usando somente o tempo como o fator determinante. Pode ser um

pesar crônico, contudo ao mesmo tempo poderia ser uma resposta justa e

apropriada, mas uma “resposta lenta" para elaboração saudável de uma perda

14

Page 15: Luto

qualquer. Há muitas outras variáveis envolvidas nisto, por isso devemos ter muita

cautela antes de sair por aí determinando normalidade e anormalidade

simplesmente pelo compasso na elaboração de uma perda. Devemos prestar

atenção nas outras tantas variáveis que estão envolvidas o processo.

Nem todos os processos que lidam com a perda se dão da mesma maneira.

Há certos sentimentos e emoções "esperados" que estão relacionados com a perda.

Entretanto, nem sempre veremos as mesmas reações se repetindo nas pessoas e

seus processos, mesmo que semelhantes. Nem todo o mundo precisa viver o

"processo inteiro" para ter uma resposta saudável a uma perda. Normalmente, mas

nem sempre, os processos repetem algumas reações já esperadas, reações essas

já estudadas e observadas por muitos estudiosos do assunto. Portanto, gostaria de

apresentar algumas reações que poderiam ser consideradas normais em um

processo de elaboração do luto, e para isto estarei anexando um adendo ao final

deste trabalho para avaliação do leitor. Ele versa sobre o processo de luto que tem

de passar pelo vale sombrio da morte. O tema Vale da Morte é inspirado na

expressão do salmista Davi quando escreve o seu salmo de número 23. O adendo

servirá de balizamento para o que vamos discutir abaixo.

A primeira reação normal é o sentimento de "dormência," de não acreditar no

que está acontecendo. A verdade é que o enlutado não quer acreditar que a perda

aconteceu de fato. O desacreditar é uma forma de negação inconsciente daquilo que

realmente aconteceu. É uma maneira de dizermos para nós mesmos que o episódio

não aconteceu, que é só um sonho, e nós acordaremos em alguns minutos, e tudo

não passará de um grande pesadelo. Nesses momentos há uma ausência de

sentimentos que toma conta de nossa vida, e traz uma sensação de que estamos

"passados”. Eles podem durar período curto de tempo, às vezes algumas horas, ou

15

Page 16: Luto

até mesmo dias e meses. Minha compreensão desta reação é que a pessoa está

tentando processar a realidade da perda do seu objeto de amor. É um processo para

tornar a perda "conhecida" de nosso sistema consciente, e assim nos garantir mais

um pouco de tempo para uma elaboração mais produtiva e saudável.

Este período de dormência é seguido por vários outros sentimentos muito

fortes. Eles vêm sem uma ordem específica, mas na maioria dos casos todos estão

presentes nesta fase do processo. Sentimentos tais como raiva, tristeza e

desesperança, estão intensamente presentes. As reações para com eles, ou seja,

como cada um lida com eles especificamente, podem variar de pessoa para a

pessoa. Alguns chorariam em desespero, ou lamentariam por horas; outros podem

se fechar em seus próprios pensamentos, sentindo eles mesmos, sem ajuda

externa, aquilo que os incomoda. Seguramente todos os tipos de reações

demonstram o "poder" que tais emoções tem sobre nós durante estes momentos de

sofrimento intenso. Todos sofrem sem exceção, mesmo que as reações sejam

diferentes umas das outras.

A sensação estranha de um "vazio" que não se sabe explicar é o próximo

passo esperado em um "processo normal" de elaborar perdas. As pessoas

normalmente vão de emoções fortes e impulsivas, como as citadas acima, para

outras mais tranqüilas, porém não menos fortes e intensas. Emoções como a

sensação de vazio e uma vontade de estar mais sozinho e isolado do restante das

pessoas e do mundo. Durante esta fase as pessoas se voltam muito para si em

reflexão. Meu entendimento é que elas, em si voltando para dentro de si mesmas,

estão tentando processar a perda que vai além do externo, do visível. Este momento

é muito precioso, e é para mim o real começo do processo de elaboração do pesar.

Elas estarão constatando de fato que há uma perda real, e que com a perda há uma

16

Page 17: Luto

dor e sofrimentos inevitáveis de saudade e lembranças. Não há como escapar da

realidade dolorosa de uma perda. Sem "uma boa porção" de dor e tristeza no

processo de elaborar perdas, não há nenhuma possibilidade para celebração.10 Nós

precisamos lamentar e sofrer a perda para abrir o caminho da possibilidade para

uma cura. Falando sobre esse assunto me lembrei do escritor cristão C. S. Lewis

quando experimentou o sentimento de perder a sua esposa amada.11 Ele passou por

todas as fases que eu mencionei acima para que a cura final pudesse brotar. Só

depois de um período de muitas lutas e sofrimentos é que ele pôde celebrar e

vencer a fase de desespero. Ele não pôde se sentir livre dos "fardos" pesados do

processo de lamentar a morte de alguém, sem enfrentar a realidade de que o luto

deve ser sentido e vivido completamente, experimentado na sua totalidade, mesmo

que doloroso. A dor e o sofrimento são componentes necessários para se vencer o

desespero e celebrar a vida.

A próxima fase que eu gostaria de mencionar pela qual uma pessoa passa

antes de vencer o processo de luto, é a de se ter uma sensação forte de medo e

ansiedade. Após um período de aparente quietude, vem um medo e uma ansiedade

de como se vai viver sem aquele ou aquela pessoa ou coisa. Todas as perdas

mudam o "ecossistema" de pessoa, e muda drasticamente. A homeostase dos

sistemas muda a partir do ponto que a perda acontece. É exigido da pessoa que

"sobreviveu" viver em um ambiente totalmente diferente, mudado agora pela falta. A

rotina é mudada, bem como todos os tipos de interação com a vida, especialmente

se o "sobrevivente" tivesse tido uma relação muito forte com a outra parte que foi

"ceifada”, que agora já não faz mais parte de seu mundo. O futuro assume um

10 A celebração, a expectativa de viver a vida, virá após o sofrimento ter passado. Quando não aceitamos o sofrimento e a dor da perda, poderemos perder a oportunidade de retornar a vida "normal" após a dura tempestade da perda.11 Lewis, C.S. "Grief Observed" Batan Books. New York, NY. 1976.

17

Page 18: Luto

caráter novo e desconhecido. O medo e ansiedade são agora as emoções que

dominam a cena. A necessidade de ajustes para com a nova situação é o

movimento necessário para sobrevivência adequada daquele que ficou.

Também é muito comum para aqueles que perdem seu objeto de amor é o

sentir-se envergonhado ou culpado. Nós normalmente nos sentimos envergonhados,

e nos culpamos, perguntando se poderíamos ter feito mais do que fizemos. Mitchell

e Anderson dizem que “... A maioria da culpa associada ao sentimento de pesar é

inútil e contraprodutiva para uma elaboração construtiva de perdas."12 Há razões de

ordem natural e outras teológicas. O obvio é que nenhum ser humano pode ser

responsável, ou tem capacidade, de proteger ou cuidar de alguém ou alguma coisa

as 24 horas de um dia, por toda a vida. Somente o Criador tem esta capacidade.

Quando pensamos que somos responsáveis pela perda de alguém ou de alguma

coisa estamos nos tronando idólatras, ou seja, nos colocando no lugar de Deus.

Este seria o aspecto teológico que gostaria de ressaltar. Assumindo esta posição de

"zelador" da vida humana, nós tentamos assumir o papel do Espírito Santo. Só Deus

é responsável para cuidar de nós todo o tempo. Só Deus é o responsável por dar e

tomar a vida, porque só Ele pode fazer isso. Embora estes sentimentos sejam

comumente encontrados entre os que lamentam, eles não ajudam no processo de

superar a dor e o sofrimento advindos de uma perda.

As razões naturais porque não devemos nos culpar pelas perdas ocorridas

estão relacionadas à limitação e finitude do ser, elementos essenciais da natureza

humana. É impossível prover uma proteção de tempo integral para qualquer pessoa.

É simplesmente impossível. Nós dormimos, cochilamos, descuidamos, e isso tudo

12 Mitchell, Kenneth and Herbert Anderson. "All our losses, All our Griefs." The Westminster Press. Philadelphia, PA. 1983.

18

Page 19: Luto

faz parte do ser humano e limitado que somos. Definitivamente a culpa associada ao

luto não é construtiva.

Depois da pessoa chegar à conclusão que só Deus é responsável, e o único

totalmente capaz de cuidar de nós e das pessoas que amamos, a ira e a raiva, uma

vez expressadas apropriadamente no processo, agora assumem um papel mais

complexo. Muitas vezes a raiva é direcionada a Deus, que teria a responsabilidade

de cuidar do objeto de amor da pessoa enlutada. Eu creio que muitos que lamentam

ou choraram por alguma perda têm as mesmas palavras de Marta, a irmã de Lázaro,

ditas ao Senhor Jesus quando ele chegou em sua casa, depois do morte do irmão,

de acordo com a narrativa de João 11:21: " Marta disse a Jesus, Senhor, se o

Senhor tivesse estado aqui, meu irmão não teria morrido." A raiva de Marta

provavelmente não está explícita no texto, mas minha compreensão é que Marta

não estava feliz com a demora de Jesus, e por alguma razão ela O estava

"culpando" pela morte de Lázaro. Eu certamente posso ver decepção e raiva nas

palavras dela, talvez isto se torne mais claro quando fazemos uma leitura mais

aprofundada no texto e do contexto. Eu creio que não podemos inferir, ou mesmo

pressupor, que Marta "soubesse" que Jesus iria ressuscitar Lázaro da morte. Ela

estava desapontada pelo fato de que Jesus não estava lá para prevenir o

acontecido. Interessante é que Jesus entendeu os sentimentos dela e aceitou a

"reclamação" de um modo muito natural – Ele chorou com ela. Jesus sabia que raiva

e desapontamento são sentimentos naturais e são partes de uma resposta humana

esperada em momentos de desespero. Marta sempre foi profundamente abençoada

por Deus por causa do desejo dela de expressar os seus sentimentos autênticos

para com o Mestre, como podemos ler nas narrativas dos Evangelhos concernentes

a sua pessoa.

19

Page 20: Luto

No contexto humano, principalmente no contexto cristão, a raiva nem sempre

pode ser dirigida a Deus de maneira aberta, clara e consciente. Temos muito medo

de nos expressar em relação a Deus como verdadeiramente nos sentimos ou

somos. Muitas vezes lidamos com Deus escondendo o que sentimos ou pensamos,

e fazendo assim achamos que "enganamos" a Ele. Enganamos é a nós mesmos.

Deus conhece tudo, até mesmo aquilo que ainda nem pensamos ou falamos, como

nos diz o Salmo 139. Há uma necessidade de expressar nossos sentimentos com

transparência, inclusive para com Deus. Se não o fazemos da maneira correta e

apropriada, teremos a tendência de conduzi-los para outra direção, talvez para

outras pessoas, relacionamentos ou nós mesmos. A energia interna não é algo que

nós conscientemente podemos controlar completamente. Devemos nos precaver

para não reprimir nossas emoções. Isto não quer dizer "liberar geral”, como dizem

por ai. Isto quer dizer que o autocontrole, aliado a expressão natural e aceitável das

emoções traz equilíbrio e saúde. Se uma pessoa reprime a energia interna, ou seja,

seus sentimentos, o que vai acontecer é a canalização desta energia para qualquer

outra coisa. Normalmente achará um objeto para "descarregar”, o que certamente

não será uma expressão final saudável do sentimento dela. Domínio próprio é parte

indispensável do fruto do Espirito (Gálatas 5).

Reprimir é bem diferente de dominar as atitudes e ações, o que também é

bem diferente de sentir emoções fortes. A razão para tantas doenças

psicossomáticas tratadas pela comunidade médica é a falta de entendimento entre

esses dois pólos de expressar as emoções e os sentimentos. As conseqüências de

sentimentos reprimidos podem afetar a “inteireza" da pessoa, inclusive o organismo

físico. É necessário ter a habilidade de expressar e sentir aqueles sentimentos

apropriados para cada circunstancia de nossa vida. Isso não significa que nós

20

Page 21: Luto

deveríamos sair "batendo" nas pessoas só porque estamos com raiva, ao contrário,

significa assumir que temos raiva e que há outras maneiras de senti-las sem agredir

os outros. De novo, expressar sentimentos é a habilidade de os reconhecer, aceitá-

los e agir de maneira adequada para com cada um deles. Quando nós temos nossas

emoções reconhecidas e compreendidas, todas as coisas se tornam mais fáceis.

Passamos a agir e proagir, ao invés de reagir para com os eventos de vida.

A concepção de ação e reação é muito importante para entender a dinâmica

de expressar sentimentos. O modo saudável para expressar uma emoção é agindo,

não reagindo por causa deles. O termo mais apropriado é proação, ou seja, não

deixar que o momento ou as circunstâncias ditem a maneira de reagirmos diante dos

problemas. Proação é deixar que o domínio próprio dirija nossas vidas. As reações

tendem a ser atos muito inconscientes, o que normalmente serão movidos pelas

forças internas que fogem ao nosso controle. Por outro lado, quando nós agimos, ou

proagimos, respondemos a qualquer fato gerador de emoções somente após

gastarmos algum tempo considerando a situação por inteiro. Reações normalmente

são respostas primitivas e imaturas, que geralmente não produzem fruto algum. Nós

deveríamos estar procurando agir diante das situações, em vez de reagir a elas, de

forma que nós pudéssemos tomar decisões saudáveis e maduras, especialmente

quando a dor da perda está envolvida. A reflexão produz bom senso e revela

caráter firme e consistente.

Não devemos nos esquecer que todo luto é único e pessoal, contudo ao

mesmo tempo universal e um evento que se repete em todos os lugares em todas

as culturas. Isto quer dizer que a mesma dor de um determinado processo de luto

não pode acontecer duas vezes na história. Não existe, e nem existirá, dois

processos que são exatamente iguais. Que faz do luto um processo que não se

21

Page 22: Luto

repete da mesma forma é o fato de que o objeto de amor, uma vez perdido, é

insubstituível. A dor e sofrimento relativos a uma perda pessoal e particular é algo

incomparável a qualquer outra dor e sofrimentos relativos a uma perda, seja ela qual

for, de quem for. O primeiro passo que uma pessoa em um processo de luto precisa

dar é o do reconhecimento da perda. É a habilidade de aceitar a perda; é assumir

que a perda é real. Devemos ser conscientes que a vida nunca será a mesma, como

era antes, para qualquer pessoa que sofre uma perda. Eu tenho minhas dúvidas,

pelo ponto de vista humano, de que as feridas causadas por uma perda muita

grande podem ser totalmente curadas. Pelo menos eu estou certo de que elas

podem ser administradas, vividas de maneira apropriada, o que causará um retorno

para uma condição de vida normal, ou pelo menos aceitável. Mas há perdas que são

irreparáveis. Somente a graça divina pode fazer com que o indivíduo enlutado volte

a normalidade da vida.

Definição Gráfica do Processo de Cura do Luto

Esta porção do trabalho teve a cooperação preciosa do Sem. Jorge no ano de

2001, que se valeu de seus conhecimentos matemáticos e pôde expressar de

maneira bem clara a idéia do luto sendo observado como um movimento espiral.

Essa idéia somente veio acrescentar uma visão bem mais aclarada do processo

espiral da elaboração do luto.

Decorrente da perda, o processo de cura do luto pode ser representado como

sendo uma espiral simétrica ou logarítmica (figuras 1, 2 e 3). A espiral simétrica

representa o processo de cura, no qual, os eventos que relembram o luto pela perda

se apresentam de modo cíclico e com uma freqüência constante, onde, apesar do

desenrolar do tempo, os eventos são relembrados de modo simétrico de tempo

(p.ex.: cada aniversário da perda). Na espiral logarítmica, por sua característica, os

22

Page 23: Luto

eventos que relembram o luto não se apresentam de modo constante, isto é, a cada

fração do ciclo de tempo é adicionado um t13 de modo que os eventos são

relembrados em períodos de tempos cada vez maiores (p.ex.: no primeiro ano,

depois no terceiro ano, depois no oitavo ano, e assim por diante). Cada processo de

luto é regido por uma espiral exclusiva (figura 4), e a função da linha da espiral é a

de representar como estão dispostos os eventos relacionados ao luto, em função da

freqüência de repetição, dos tempos de duração e de sua intensidade. O processo

de luto está sempre apoiado na linha de tempo da vida (KAIROS)14 O processo é

disparado no momento em que ocorre a perda. A cada espiral corresponde uma

linha de tempo do luto (KRONOS)15, que é diferente para cada processo de luto,

mesmo que ocorra mais de uma perda no mesmo instante (figura 5), tendo em vista

que o ângulo de intensidade do luto (figura 6) varia de acordo com o grau de

relacionamento que a pessoa enlutada tem com o objeto da perda. Portanto, na

ocorrência do luto (figura 7) pela perda do objeto estimado, cada evento pode ser

perfeitamente representado na linha dos ciclos dos eventos significativos

(KRONOS), isto é, todos aqueles capazes de relembrar o objeto da perda. Esta

representação é importante porque mostra a progressividade do processo de cura

do luto com o correr do tempo (KRONOS). A sombra projetada representa a área de

importância do evento para relembrar o luto e sua progressiva redução de

intensidade na vida do enlutado, contudo, é de se lembrar que o valor da área de

sombra não reduz, ele permanece constante por toda a vida da pessoa, o que reduz

é somente o efeito do luto na vida da pessoa enlutada.

13 Numa expressão matemática, é um elemento que é adicionado a um número constante para se obter outro número. Neste caso, é uma fração constante de tempo que é adicionada a cada período de tempo anterior para se obter um novo período de tempo, em cada ponto da espiral, e, esta operação é repetida sucessivamente.14 Kairo/j representa o tempo que é simples e unicamente preenchido por Deus, isto é, o tempo total e completamente preenchido, total e completamente o tempo de Deus – a eternidade.15 Xro/noj representa o tempo no qual o homem coloca a sua transitoriedade, é o tempo no qual o homem mede a sua própria existência – o calendário – o relógio.

23

Page 24: Luto

FIGURAS

24

Page 25: Luto

Embora a elaboração do luto não possa ser

um processo determinado por tempo linear, o

enlutado caminha para a normalidade de maneira

gradual através do tempo. O ponto que eu

gostaria de acentuar nesta fase é que o processo

do luto não é uma mesa de tempo retilínea.

Tempo certamente cura as lesões

causadas pela perda, mas o mesmo

tempo também será responsável

para, em tempos posteriores, abrir

as feridas, expô-las novamente. O

processo de cura é mais espiral que linear. Ele sai de um ponto original, a perda, e

vai circundando aquele ponto a cada vez que o tempo passa. Por isso mesmo que

cada aniversário da morte, ou perda, ou cada data significante, ou mesmo

lembranças, trará dor e sofrimento para aquele que está experimentando o processo

de cura interior pela perda de seu objeto de amor. A espiral funciona de tal maneira

que a distância, o tempo e a intensidade, provenientes do evento de origem,

diminuirão o efeito da dor, contudo aparecerão em doses menores, até

desaparecerem. Tempo será o primeiro elemento para promover a cura, não um

tempo cronológico, mas um tempo significante.

Eu afirmei que processo para elaborar a perda é espiral, não linear, por

conseguinte, tempo às vezes, produz resultados proporcionais na direção da cura,

mas nem sempre na mesma proporção. Significa, sim, que quanto mais "distantes"

estamos do evento inicial, que causou a dor, teremos mais chance de alcançar cura

25

Page 26: Luto

para aquela situação traumatizante. Eu não estou negando aqui a particularidade de

cada processo, pois cada caso é cada caso, e cada pessoa terá o seu próprio tempo

significante. O que estou querendo ressaltar é que a espiral é realidade para todos

os casos, de acordo com suas particularidades em agir e reagir ao processo como

um todo.

A cooperação do envolvido no processo também é um instrumento muito útil

para que a cura possa brotar. Dependerá do desejo da pessoa em superar os

primeiros períodos do processo. Tempo e cooperação pessoal são componentes

básicos para uma melhora substancial do envolvido no luto.

O outro ponto que a espiral do processo de elaborar o luto destaca para nós é

que toda vez a espiral coincide com o ponto do evento inicial, aquele momento

particular exercerá o papel de relembrar a pessoa da perda insubstituível que sofreu.

Já mencionei esse fato anteriormente, mas serve para reforçar a idéia de que os

aniversários, coisas que a pessoa fazia ou gostava, cheiros, cores, roupas, cenas,

cinema, comida, e muitas outras coisas, levarão os que lamentam a perda a sofrer

novamente sua dor. Durante estes períodos, o processo inteiro de luto virá à

superfície, fraco às vezes, noutros tempos fortes. Essa é a lembrança que vem

como resultado de um evento inicial, a perda, que é localizado no passado, mas tem

seus efeitos no tempo hoje.

Devemos nos lembrar que há muitas pessoas que "emperram” neste

processo. O fato é que não conseguem sair de onde estão, e ir adiante na direção

da cura. Este tipo de apatia e paralisia pode acontecer, mas somente por algum

tempo. Quando persistir por muito tempo se torna um sintoma patológico de uma

elaboração abnormal.

26

Page 27: Luto

Contudo, há de se lembrar que, como a maioria dos estudiosos diria, o

processo de elaboração do luto verdadeiramente nunca termina. O tempo pode

passar, as pessoas decidirem se ajudar, muita coisa mudar e melhorar, mas a

influência espiral sempre estará presente nas mentes das pessoas, fazendo-as

lembrar de sua dor e pesar, mesmo que diminuída e minimizada. Certamente há

uma diferenciação em uma reação normal e outra que consideramos patológica, e é

o que passaremos a ver em seguida.

Normal e Patológico

A diferença principal entre o lamentar saudável e o patológico é localizada no

fato de como as pessoas aprendem a lidar com a nova situação. Todas as perdas

mudam a estrutura de todos os envolvidos emocionalmente com elas. A estrutura

interna dos indivíduos é sempre danificada por uma perda, seja ela qual for. O

processo de recuperação é uma arte – arte de recriar o presente, com as

recordações do passado e com expectativas novas para o futuro. A realidade da

pessoa enlutada mudou, bem como sua estrutura interna. Há uma necessidade forte

de uma reorientação da pessoa, de quem ela é agora, sem o seu objeto perdido.

Esta nova orientação é praticamente exigida pelas mudanças que aconteceram em

sua vida. A pessoa é chamada a agir na direção futura e assumir sua “nova“ vida

sabendo que há conseqüências advindas da perda que não podem ser esquivadas.

A maturação do processo vem com a descoberta que a perda causou uma ferida

que está doendo e continuará doendo, mas apesar disto, a pessoa precisa continuar

a viver a sua própria vida. O mundo não parou, nem acabou. Continua-se a vida do

mesmo jeito para a grande maioria das pessoas, e esta realidade deve mover o

enlutado na direção da busca da cura.

27

Page 28: Luto

Esta nova orientação para a vida significa aceitar a realidade da perda e

assumir as conseqüências advindas dela. A habilidade de assumir seus sentimentos

e a nova vida faz com que novos recursos passem a existir, o que possibilitará que

se ocupem de suas vidas de maneira mais produtiva. É o resultado positivo

esperado daqueles que enfrentam situações de perdas em suas vidas.

Somente a possibilidade de falar sobre as coisas que aconteceram e

expressar sua dor pessoal já é uma benção tremenda. Melhor ainda é ser capaz de

chorar e sentir com toda a intensidade as emoções ligadas a uma perda, de acordo

com Dr. Bozarth, " ...tão freqüentemente quanto necessário for."16 A habilidade para

chorar e liberar os sentimentos e emoções pessoais que a perda produz nos seres

humanos é um exercício catártico,17 de transformação interior, que provocará

crescimento e habilitará o enlutado a superar aquele período inicial e mais forte da

perda.

A patologia em um processo de pesar é o continuar nestes intensos

sentimentos de desespero por um período muito longo. As pessoas precisam tomar

decisão de continuar adiante, de viver uma vida que está no presente, inclusive

vivendo num ambiente novo onde falta o objeto de seu amor. A melhor maneira de

conseguir isso é expressando os sentimentos relacionados à perda de maneira

autêntica e transparente. Os cristãos normalmente não entendem que lhes é

permitido expressar seus sentimentos de desespero, de dor, em momentos como

estes. Eles pensam que deveriam ser fortes e deveriam “reprimir" os sentimentos

quando eles aparecerem. A idéia por detrás desta postura é que este tipo de

comportamento "forte" mostrará aos outros que somos boas testemunhas da

16 Bozarth, Alla. Life is Good-bye, Life is Hello. CompCare Publishers, Second Edition.17 Catarse, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio, da Editora Nova Fronteira, significa: 1. purgação, purificação, limpeza. 3. Psicol. Efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida. Ela tem um efeito curativo e produz no indivíduo o bem estar advindo do processo de cura.

28

Page 29: Luto

esperança que nós "pregamos" que Jesus nos ofereceu. Não devemos mostrar

tristeza nem dor, pois Jesus não ficaria "feliz" de ver-nos desta forma, nem a pessoa

que já partiu e está com o Senhor. Esta, sem dúvida, é uma maneira equivocada de

pensar sobre como Deus nos vê e como Ele nos compreende em nossos momentos

de fraqueza e desespero, especialmente quando perdemos alguém muito especial.

O texto bíblico que estas pessoas normalmente citam como argumento para esta

postura está em 1 Ts 4.13-14, " Não quero, irmãos, que sejais ignorantes com

respeito aos que dormem, que você pode não lamentar como outros que faz que

não têm nenhuma esperança. Para desde que nós acreditamos que o Jesus morreu

e subiu novamente, mesmo assim, por Jesus, Deus trará com ele esses que

dormiram.” Eu digo novamente que eu não quero fazer qualquer trabalho exegético

neste momento, mas eu creio que um breve comentário desta passagem é muito

importante. O apóstolo Paulo não está dizendo que o cristão não deveria expressar

os seus sentimentos quando está num processo de lamento e dor. Minha

compreensão deste texto é que o apóstolo está acentuando a idéia de esperança,

não a negação de pesar. O ponto principal do texto citado, em minha opinião, é que

as pessoas com uma expectativa escatológica para uma vida eterna em Jesus

Cristo também se enlutam, significando que eles choram, eles sofrem, eles

assumem os sentimentos profundos e intensos que a separação de um que nós

amamos freqüentemente produz, mas eles também podem superar esta fase inicial

e este momento mais doloroso da perda porque têm esperança no Salvador e sua

consolação. Eles têm que lamentar e chorar seus “mortos” para depois celebrarem a

esperança e terem um momento para celebração. Só há espaço para celebração se

houver espaço para se lamentar. Não há como celebrar se não há o momento de

contrição e tristeza para sair dele. A mensagem de Paulo para nós neste texto, eu

29

Page 30: Luto

creio, é que nós devemos lamentar e chorar para que nós possamos celebrar a

ressurreição de Jesus, nosso Senhor. Como um antigo professor meu, Dr. C. Brown,

disse em classe que “não há nenhum domingo de ressurreição sem a sexta-feira da

paixão”. A resposta emocional saudável e apropriada para uma perda é pesar, nada

mais, nada menos.

Exemplos na Bíblia estão em todos lugares. Jesus é um exemplo forte de

uma pessoa que se permitiu lamentar e chorar. As Escrituras narram momentos em

que Ele lamentou pelos que amava. Ele também sofreu e Ele não estava

envergonhado de mostrar seus sentimentos de dor e angústia. Ele lamentou quando

Ele ouviu falar da morte do seu amigo Lázaro, como é narrado em João 11. Ele

também lamentou quando ele percebeu que Jerusalém havia rejeitado seu

ministério, como narrado em Mateus 23. Até mesmo raiva e indignação foram partes

das respostas emocionais dele, como nos é apresentado pelo evangelista São João,

no capítulo 2:14-15. Ele também estava em profundo desespero momentos antes da

crucificação, quando no Monte das Oliveiras, de acordo com Mateus 26:37-40, e Ele

não escondeu toda aquela angustia de nós, tanto é que suas palavras e suas ações

são registradas como testemunha eterna pelas Escrituras. Eu poderia descrever

muito mais fatos e eventos na vida do Mestre que relatam que ele era um varão de

dores que sabe o que é padecer, palavras citadas do belíssimo salmo messiânico

narrado em Isaias 53.

Os salmistas também nos dão grandes exemplos para que os cristãos leitores

percebam que também têm o direito de lamentar e sentir angústia em determinados

momentos da vida. Eu gostaria de listar alguns deles como referência para nós. Eles

são chamados de acordo com Dr. Klaus Seybold18 os Lamentos de um Indivíduo.

18 Seybold, Klaus. Introducing the Psalms. T&T Clark Ltd, Edinburgh, Scotland. 1990. P.116.

30

Page 31: Luto

São eles: 3, 5-7, 13, 17, 22, 25-28, 35,38,41-43, 51, 54-57, 59, 61, 63, 64, 69, 71, 86,

88, 102, 109, 130, 140, 141, 143 35 textos ao todo, quase um quarto dos Salmos.

Um olhar mais próximo do livro dos salmos será bastante para mostrar que temos o

direito de expressar sentimentos humanos, inclusive raiva e desespera, até mesmo

para Deus. O testemunho das Escrituras somente reforça e valida a concepção de

que lamentar é parte de ser humano e da realidade Cristã de todos nós, e não há

nenhum pecado quando expressamos tais sentimentos em nosso cotidiano.

Os salmistas têm suas almas aliviadas pelo fato de poder expressar diante de

Deus e dos homens como eles se sentem, e assim poderem ser autênticos para

com Deus e com o próximo. Eles alcançaram cura para suas feridas de alma tendo a

liberdade de expressar suas emoções.

Observe que em quase todos os salmos o aspecto curativo da expressão

autêntica de emoções humanas pode ser visto. A maioria dos Salmos termina com

uma contemplação da aceitação de Deus e uma canção de louvores pelo livramento

e cura divina. Este resultado só acontece por causa da possibilidade deles estarem

abertos a Deus e poderem expressar livremente seus sentimentos para com Ele e

saberem que têm sido aceitos por esse Deus maravilhoso. Deus nos aceita de tão

maneira, incluindo com nossos sentimentos de lamento e dor, a ponto de se tornar

carne e osso e habitar entre nós na pessoa de Jesus Cristo. Como Dr. McCann19 diz

no livro dele, "O livro dos Salmos e o livro de Jó têm profundas implicações para

entendermos a identidade de Deus. Se a humanidade foi criada à imagem de Deus,

então Deus também compartilha da angústia e do sofrimento da criação e a criatura,

se tornando um deles".

19 ?McCann, J. Clinton Jr. A Theological Introduction to the Book of Psalms - The Psalms as Torah. Abingdon Press. Nashville, TN. 1993. P.63.

31

Page 32: Luto

É importante destacar e ressaltar o direito que temos como seres humanos, e

especialmente como cristãos, de lamentar e sentir pesar por todas as nossas

perdas.

Do Lamento para a Celebração

Eu gostaria de apontar que a resposta emocional apropriada e esperada para

quem vive um processo de perda, é através de um movimento que sai do lamento e

caminha para a celebração. A verdadeira celebração deve passar pelo processo de

um lamento, de pesar, verdadeiro. Eu gostaria de usar a exposição bonita de Henri

Nouwen20 de como este movimento acontece. De acordo com ele há três

movimentos que uma pessoa precisa fazer para alcançar inteireza depois sofrer uma

perda: (um) De solidão para solitude; (b) de hostilidade para hospitalidade; (c) de

controlar (ilusão) para a oração.

De solidão para solitude.

Eu chamaria este primeiro passo como o restabelecimento da relação da

pessoa com ela mesma. É na verdade uma redescoberta do eu mais profundo da

pessoa. Todos nós queremos nos conhecer. Muitas vezes nos vemos angustiados

por que não nos conhecemos. É através deste movimento é que passamos a nos

compreender melhor.

Devemos, contudo, entender que a solidão está relacionada com o lado

patológico. A solidão é o sentimento de estar só, mesmo com o “mundo” todo ao

redor de nós. Não há interesse algum de comunicar e contatar com as pessoas ao

20 Nouwen, Henri J. M. Reaching Out. Image Books Doubleday. New York, NY. 1975

32

Page 33: Luto

nosso redor. A paranóia de não ser amado por ninguém está constantemente

presente. Nos sentimos sós e “largados”, o que necessariamente não é verdade. O

problema com a solidão é não conseguimos estabelecer uma conexão saudável

conosco mesmos, nem com o mundo ao nosso redor. Criamos uma imagem

distorcida da realidade, e passamos a ver todas as coisas sobre o nosso ponto de

vista doentio. Tudo parece estar cooperando para a nossa derrota. Nos sentimos

perseguidos e sem alento.

Na solidão há uma falta de contato entre o mundo e nós mesmo, o que nos

conduz a perda de nossa identidade. Passamos a viver fora da realidade, vivendo

um eu imaginário que certamente nos levará a morte emocional e espiritual, até

mesmo a morte física. Solidão certamente pode ser considerada como uma “decisão

inconsciente” de deixar o mundo e não existir mais é uma atitude suicida. É o

sentimento ambíguo de existir e não querer existir ao mesmo tempo. Estamos tão

dispostos a nos sentir só, que nos tronamos fracos e fragilizados espiritualmente,

emocionalmente e fisicamente. Nos sentimos sem forças para vencer os medos e

angustias próprias da vida. Por causa de nossa fraqueza, chegamos ao ponto de

desejar não viver mais, e como não podemos “morrer” simplesmente, ou não temos

"coragem" bastante para nos matar, nos isolamos do mundo e de nós mesmos.

Ficamos sós e envolvidos pelo denso e negro véu da solidão. O que realmente

desejamos é fechar os olhos e deixar que o mundo passe por sobre nós e que nada

mais tenha valor ou significado em nossa existência. A solidão é o grande mal do

século. E deve ser combatido com uma atitude solícita por parte de cada um de nós.

Solitude, ao contrário, é o lado saudável e desejado no processo de busca do

equilíbrio espiritual. É o outro lado da moeda. É a habilidade para estar em contato

com o nosso eu. É estar só, separado das pessoas, sem uma companhia física

33

Page 34: Luto

muitas vezes, mas desfrutando alegremente da companhia do nosso ser, que Deus

mesmo criou. É um tempo que gastamos conosco mesmos para avaliar ou meditar

sobre a vida. Há sentimentos de alegria e esperança envolvidos nesta atitude.

Quando praticamos períodos de reclusão para uma viagem de autodescoberta,

produzimos mais vida espiritual em nós para ser compartilhada com os outros.

Aprendendo mais sobre nós mesmos, nos tornamos mais capazes de transmitir as

boas novas do Evangelho a todos que estão ao nosso redor.

Há algo comum entre a solidão e a solitude - é o fato que a pessoa quer estar

só boa parte do tempo, é uma experiência solitária. É bom dizer aqui que não há

nada errado estar só. Distância física de tempos em tempos para um auto-exame ou

mesmo para simples meditação, é muito importante. Esta atitude ajuda a criar uma

maior autonomia de uma vida emocional saudável que toda pessoa precisa ter.

Solitude não é um isolamento permanente ou longo demais. Estar solícito é um

exercício de estar em contato consigo mesmo por um determinado período, para

aproveitar da quietude e de um tempo de silêncio e reclusão. É um tempo para

conhecer e reconhecer limites, assumir nossa finitude e total dependência de Deus .

Um tempo de uma nova avaliação de quem somos, ou melhor dizendo, uma

reidentificação mais cautelosa de nossas estruturas – limites e potenciais. Solitude,

diferente de solidão, conduz as pessoas para celebrar vida e apreciar quem elas

são, e dar graças a Deus pela boa ação do Criador em tê-la formado. Solitude nos

conduz para apreciar o modo que fomos criados, e agradecer a Deus pela

singularidade de sua criação.

De hostilidade para hospitalidade.

Aqui está ressaltada a relação que nós temos com o resto do mundo, das

relações de interpessoais. Mover de hostilidade para a hospitalidade é criar espaço

34

Page 35: Luto

em nossas vidas para outros que também nos amam. É sermos capaz de baixar

guarda, tirar as barreiras, reduzir a animosidade. Hospitalidade é mais que para

receber alguém em nossas casas, é a habilidade para se abrir ao amor e ao toque

sutil das pessoas que nos amam e estão ao nosso redor. Esta abertura para o outro

produz cura e leva à maturidade. A coragem para abrir sua vida para os outros é o

risco necessário para alcançar inteireza e completude.

Hostilidade não trás benefícios para ninguém. Precisamos entender que

através de uma vida voltada a servir a Deus e ao próximo substitui a hostilidade em

nós, criando assim espaço para o amor e a vida. A questão é que na hospitalidade

ficamos muito expostos e muitas vezes isto nos trás medo. Temos medo da traição,

do descaso, do desprezo, da zombaria, de atitudes que nos agridem quando

estamos vulneráveis. É assim que a hospitalidade nos deixa – vulneráveis.

Entretanto, devemos correr o risco. Não há como amadurecer e cresce

espiritualmente, e em todos os sentidos, sem nos expor para o mundo que vivemos.

Talvez não pareça muito seguro, mas é importante e necessário para que

continuemos a progredir na busca de sermos completos.

A resposta para que este movimento se concretize em nossas vidas é

buscando vida simples. Há hoje nos USA um movimento de retorno à vida simples.

Pessoas estão largando empregos e a correria das grandes cidades e procurando

quietude nas coisas verdadeiramente importantes – espiritualidade, família,

relacionamentos duráveis e intensos, amizades, auto-realização. Não há como

exercer a hospitalidade sem ter tal abertura para o mundo, fazendo valer valores

essenciais para vida.

A igreja pode, e deve ser, um grande instrumento para alcançarmos

completude neste sentido. Nos envolvendo mais com a comunidade que servimos,

35

Page 36: Luto

certamente teremos melhores resultados de satisfação pessoal e de conquistas em

todas as áreas.

De controlar para a Oração.

Este movimento redefine nossa relação com o Criador. Seria melhor definir

este passo como um movimento que vai da Ilusão para oração. Nós deveríamos

superar a ilusão de sermos imortais e deveríamos enfrentar a realidade de nossa

finitude. Esta é a razão de colocar a oração em contraste com o controle - pela

ilusão de achar que controlamos as coisas. É na oração que reconhecemos que nós

somos seres finitos e totalmente dependentes de Deus e de sua ação graciosa de

permitir-nos a vida. Se estamos aqui é porque Deus assim o determinou. Não há

como ser diferente – somos criaturas e ele é o Criador. A oração é a proclamação

mais audível de que nós não podemos fazer nada por nós mesmos. Quando oramos

deixamos o controle de nossas vidas nas mãos de Deus, e declaramos total

dependência da providência do Ser Divino.

O problema do ser humano é que ele pensa que deveria estar no controle de

sua vida. Achamos que somos capazes de cuidar de nós mesmos. Até mesmo em

tempos de dificuldades, muitos ainda tentam, em vão, cuidar de seus “negócios” não

permitindo a ação salvadora de Deus em nosso cotidiano. Devíamos lembrar que

em tempos de desespero, de lutas, é que mais ainda devíamos nos render ao seu

grande poder, nos humilhar, e “cair na real” de que é simplesmente uma ilusão

querer controlar nossas vidas. Este é um atributo exclusivo de Deus. Só ele é capaz

de cuidar de nós com eficiência. Em tempos de desespero e desesperança, a

melhor coisa a fazer é não fazer nada. É confiar no poder supremo do Ser Supremo,

e deixar que ele cuide de nós.

36

Page 37: Luto

Quando nós estamos tentando controlar nossas próprias vidas estamos nos

tornando idólatras. Estamos tomando o lugar de Deus. Nós estamos dizendo a ele,

muitas vezes inconscientemente, que nós não precisamos de Ele, porque nós

podemos sair da situação sem o aborrecer. Dizemos que “damos conta” de nossa

vida, e dispensamos o cuidado de Deus, o que é um grande risco.

O oposto da ilusão de estar no controle das coisas é a oração. É se render a

Deus e Lhe pedir que ele assuma nossa vida, porque nós, por nós mesmos não

podemos fazer nada. Orar é dizer que só Deus pode nos salvar. Orar é mover de

uma posição de egocentrismo e se colocar no centro dos braços e do cuidado de

Deus. É reconhecer nossa limitação e reconhecer a realidade que só Deus pode, e

fará algo que nos ajudará a viver mais felizes. A oração é o ato mais radical que

expressa nossa confiança em Deus. Oramos, entregamos nosso pedidos a Deus,

sem saber como Deus irá lidar conosco. Por essa razão é que o elemento

confiança é essencial em nosso relacionamento com Deus. Não há como controlar

e confiar. Ou se confia e entrega, ou tenta se controlar e se perde no desespero de

concluir que é impossível cuidar em todo o tempo.

Há muitas mães angustiadas tentando controlar a vida de seus filhos, quando

deviam é descansar nos braços poderosos e capazes do Grande Eu Sou. Há muitos

cônjuges tentando controlar a vida de seus parceiros, sendo que deveriam aprender

a se render na mãos do Grande protetor. Há muitos patrões que se aventuram em

vigiar seus empregados, quando deviam estar orando por eles. Há pastores que

tentam fazer tudo com suas próprias mãos, se esquecendo que seu rebanho só

estará seguro nas mãos do Bom Pastor.

Fica aqui uma dica: Nós precisamos orar mais quando menos a gente sente

vontade em faze-lo, porque a nossa relutância em orar é um sinal de algum

37

Page 38: Luto

problema espiritual que somente se manifesta nesta nossa relutância de orar. Se

você não sente vontade de orar, observe sua vida – há algo que não está bem. Ai,

mais do que nunca, é preciso dobrar os joelhos, largar mão do controle, e orar mais.

Conclusão

Eu creio que eu tenha apresentado brevemente alguns pontos sobre os

assuntos principais que envolvem as perdas e o sentimento de dor e de pesar. Eu

sei há muito mais coisas a serem ditas, muito mais a ser lido, e muito ainda a ser

escrito, mas meu intento era abordar o assunto de um modo conciso e coerente de

alguns dos temas mais importantes que concernem ao assunto. Eu estou certo,

depois destas páginas de discussões, minha definição de pesar e luto pode ser

colocada aqui agora com muito mais certeza, ou pelo menos pode ser entendida

melhor: lamento é uma resposta emocional dolorosa, complexa, difícil, normal,

apropriada, esperada e necessária para quaisquer tipos de perdas, sejam elas quais

forem, e que todos os cristãos têm o direito de se sentir tristes e desesperansosos

quando elas acontecem, para que, após o luto e a dor, eles possam experimentar o

sentimento de libertação e regozijo da vitória de terem superado suas perdas.

Elaborado pelo Prof. Rev. Robson Viana Gomes, Th.M.

38