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LUZ,+CÂMERA,+ESCRACHO!+Monografia+Alexandre+Garcia
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1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA – UESB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – DCSA
COLEGIADO DE DIREITO
ALEXANDRE GARCIA ARAÚJO.
LUZ, CÂMERA, ESCRACHO! O PROTAGONISMO E A OUSADIA DA
JUVENTUDE NA LUTA PELO DIREITO À MEMÓRIA,
VERDADE E JUSTIÇA.
VITÓRIA DA CONQUISTA – BA
2013
2
Alexandre Garcia Araújo
LUZ, CÂMERA, ESCRACHO! O PROTAGONISMO E A OUSADIA DA JUVENTUDE NA
LUTA PELA MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA.
Monografia apresentada à Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia como requisito parcial para a
obtenção do título de bacharel em Direito
Orientador: Prof. Msc. Ruy Hermans Medeiros
VITÓRIA DA CONQUISTA – BA
2013
3
Dedico esse trabalho
a todas e todos os jovens que perderam
suas vidas lutando contra a ditadura, e
aos jovens sergipanos Larissa Alves,
Jessy Dayane, Tatiane Leal, Viviane Leal,
Camila Almeida e Gilson Junior. Esses, ainda nos dias
de hoje, tiveram que enfrentar um processo judicial e
encarar o que resta do regime ditatorial.
Assim como os que deram as suas vidas,
não tiveram medo de dizer:
LIBERDADE!
4
AGRADECIMENTO
Apesar de a metodologia estar descrita na introdução, alguns detalhes importantes foram
omitidos e esse é o momento da redenção. Em primeiro lugar, quem escreveu esse trabalho
não foi Alexandre, estudante de Direito da UESB, mas sim Xandó, militante do Levante
Popular da Juventude. Em segundo, eu não fiz esse trabalho sozinho, e nem teria condições de
fazê-lo. Cada acento e vírgula tiveram a contribuição, pitaco e incentivo de dezenas de
integrantes do Levante, que estavam tão ou mais ansiosos do que eu para chegarmos à
conclusão. A maior parte da bibliografia foi indicada por essa galera. Assim, o autor desse
trabalho não é um indivíduo isolado, mas sim um movimento social, que se debruçou sobre
suas próprias ações para se compreender melhor, teorizar sobre um mundo diferente, e gritar
bem alto que a juventude ainda mantém acesa a chama da revolução. Assim, o meu primeiro
agradecimento vai para todas e todos os militantes dessa família que não para de crescer:
LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE!
Agradeço aos meus pais, Alexandra e Miau pelo apoio incessante e pela confiança que
me foi dada. Apesar das discordâncias ideológicas, vocês jamais questionaram a legitimidade
dessa pesquisa e proporcionaram as condições para que eu pudesse me voltar inteiramente a
ela. Apesar de eu não estar realizando o sonho de vocês, vocês criaram as condições para que
eu realizasse o meu, e isso eu levarei para sempre comigo.
A todos os funcionários e professores da UESB, por me acolherem nesse ambiente que
se tornou a minha segunda casa. Ao Prof. Ruy Medeiros, pelas lições de bravura e caráter,
além do esforço de me orientar mesmo estando tão atribulado. A Prof. Marília Flores, nossa
queria Lila, por ter me ajudado com nos momentos iniciais e com a base de toda a pesquisa.
Ao Prof. Fábio Félix, por me fazer caminhar mais à esquerda, pela paciência com a minha
impaciência, e principalmente pela amizade que construímos ao longo desses anos. Aos Profs.
Claudio Carvalho e Paulo Cezar Martins, pela genialidade que executam a militância
acadêmica, e que com certeza me incentivaram a seguir as trilhas da docência. À Prof.
Edvânia Gomes, por me proporcionar a vivência da pesquisa acadêmica e por me mostrar
como deve ser o trabalho de um pesquisador sério e comprometido. À Prof.ª Claudia Fonseca
pela confiança e cumplicidade que resultou em uma boa parceria.
Aos Drs. Paulo Abrão e Marcelo Torelly, membros da Comissão da Anistia do
Ministério da Justiça, que gentilmente disponibilizaram uma série de livros e revistas que
contribuíram sobremaneira à minha formação teórica.
5
Aos companheiros do Movimento Estudantil, por me apresentarem o que a universidade
tem de melhor, e que com certeza não está na sala de aula. Aos que junto comigo construíram
o Centro Acadêmico Ruy Medeiros - CARM e lutaram por um Curso de Direito crítico e
emancipatório. Aos que conheci rodando todo o Brasil nesses anos de FENED – Federação
Nacional de Estudantes de Direito, na luta incansável contra esse Direito elitista, conservador
e que mantém a desigualdade social.
Aos companheiros dos movimentos sociais populares como o MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), MTD
(Movimento dos Trabalhadores Desempregados) e MAB (Movimento dos Atingidos por
Barragens), por me sacudirem e alertarem quem são os mantenedores da pobreza e os
inimigos da classe trabalhadora. Um agradecimento especial aos moradores do Assentamento
9 de Junho, sertão sergipano, ao qual tive a honra de conviver durante dez fantásticos dias. A
experiência de vida e aprendizado que tive ali, nenhum banco acadêmico poderia sequer
descrever. Rosinha, Seu Avassi, Cícero, João Arroz e companhia, assim como o MST mudou a
vida de vocês, a minha nunca mais foi a mesma depois de conhecê-los. E o melhor foi que ali
eu ganhei mais um irmão: aquele axé Diegão!
Não poderia deixar de lembrar e reverenciar os/as camaradas da minha organização, o
partido com menos recursos e mais ousadia da história socialista internacional. Ele veste
minha roupa e pensa com minha cabeça, onde eu moro é a casa dele e quando eu sou atacado
ele luta. Que prazer ser um pedacinho seu: Consulta Popular! Agradeço em especial ao núcleo
de Vitória da Conquista; guerreiros, companheiros, confidentes, amigos, irmãos, exemplos!
Iza, Magu, Clarinha, Gui, Fabi, Mauri, Lidi, Edelson e Xandão, ainda nos encontraremos por
aí, na luta contra o capitalismo, compartilhando a dor e a vitória da classe trabalhadora. Hasta
siempre camaradas!
6
Te bateram,
Te prenderam,
Te humilharam,
Te torturaram
companheiro meu.
Te quiseram arrancar os sonhos
Teu futuro até teu passado.
Quiseram aniquilar-te
E a alguns aniquilaram.
Mas, a todos vocês companheiros nossos,
Dizemos: na tua luta nos reconhecemos.
E contra todas as violências que em vossas peles arderam,
Hoje nos levantamos
Gritamos!
A tua morte compa meu, teu ferimento irmão meu,
Não deixaremos no esquecimento.
Pronunciaremos os nomes de teus assassinos e torturadores
Apontaremos cada um deles
E não descansaremos, até vê-los punidos!
E tu irmão meu, companheiro nosso,
A luta que nos ensinaste com tua trajetória
Em nós se germina,
E ai de sermos um solo fértil
Para que tua vida, tua luta e teus sonhos
Aqui renasçam.
Paula Adissi
7
RESUMO
O presente trabalho procura fazer uma análise das ações realizadas em 2012 pelo
movimento social Levante Popular da Juventude, em torno do direito à Memória, Verdade e
Justiça no Brasil. Essas atividades, conhecidas como escrachos, colocaram em cheque a lei de
anistia e o anonimato de pessoas que foram protagonistas do regime ditatorial, exigindo (em
um primeiro momento) a instauração da Comissão Nacional da Verdade e a punição dos
torturadores. Observando as reações de setores da sociedade frente aos escrachos, utilizando
como referencial teórico a perspectiva Gramsciana de Estado ampliado, ideologia e
hegemonia, intenta-se identificar como as ações dos jovens interferiram na correlação de
forças do Estado, e impulsionaram o debate da Justiça de Transição. Entre ameaças, processos
judiciais, prêmios estaduais e nacionais, debates na academia e nas ruas, fica evidente que as
chagas do regime ditatorial permanecem abertas, e que o povo brasileiro ainda não superou as
marcas desse período – o que traz consequências importantes para a compreensão da
formação social dessa nação.
PALAVRAS-CHAVE: Comissão Nacional da Verdade; Escracho; Justiça de Transição;
Levante Popular da Juventude
8
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo analizar las acciones emprendidas en 2012 por el
movimiento social “Levante Popular da Juventude” en torno al derecho a la Memoria, la
Verdad y la Justicia en Brasil. Estas actividades, conocidas como escraches han cuestionado la
ley de amnistía y el anonimato de las personas que participaron en el régimen dictatorial,
requiriendo (al principio) el establecimiento de la Comisión Nacional de la Verdad y el
castigo de los torturadores. Viendo las reacciones de los sectores de la sociedad antes los
escraches, tomando como perspectiva teórica gramsciana el estado prolongado, ideología y
hegemonía, se intenta identificar cómo las acciones de los jóvenes interfirieron en la
correlación de fuerzas del Estado, e impulsó el debate de Justicia transicional. Entre las
amenazas, juicios, premios estatales y nacionales, debates en las universidad y en las calles, es
evidente que las heridas de la dictadura siguen abiertas, y que el pueblo brasileño todavía
tiene que superar las marcas de este período – lo que tiene implicaciones importantes para la
comprensión la formación social de esta nación.
PALABRAS-CLAVE: Comisión Nacional de la Verdad; Escrache; Justicia
Transicional; Levante Popular da Juventude.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Quadro do funcionamento do IPES 20
Figura 2 – Gráfico da organicidade do Levante 33
Figura 3 - Manifestantes em Escracho 44
Figura 4 - Grafite realizado em Escracho 48
Figura 5 - Representação de tortura 50
Figura 6 - Gráfico da disposição territorial dos atos 55
Figura 7 - Prova do Vestibular da UFU 64
Figura 8 - Fotos de apoio aos jovens processados 68
10
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADESG – Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra
AI – Ato Institucional
AJD – Associação Juízes para a Democracia
ALN – Ação Libertadora Nacional
ARENA – Aliança Renovadora Nacional
BNM – Brasil: Nunca Mais
BOPE – Batalhão de Operações Policiais Especiais
CA – Centro Acadêmico
CAMDE – Campanha da Mulher pela Democracia
CDHMP – Centro de Direitos Humanos e Memória Popular
CEMDP – Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos
CFMDP – Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos
CF – Constituição Federal
CIA – Central Intelligence Agency
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNV – Comissão Nacional da Verdade
COLINA – Comando de Libertação Nacional
CONCLAP – Conselho Superior das Classes Produtoras
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CUT – Central Única dos Trabalhadores
DCE – Diretório Central Estudantil
DOPS – Departamento de Ordem Política e Social
DOI-Codi – Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de
Defesa Interna
DSN – Doutrina de Segurança Nacional
ESG – Escola Superior de Guerra
FFAA – Forças Armadas
FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais
JT – Justiça de Transição
11
Levante – Levante Popular da Juventude
MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens
MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores
MPF – Ministério Público Federal
MST – Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil
OBAN – Operação Bandeirante
ONU – Organização das Nações Unidas
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PC do B – Partido Comunista do Brasil
PCR – Partido Comunista Revolucionário
PM – Polícia Militar
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNDH-3 – Programa Nacional de Direitos Humanos – 3ª versão
PRTB – Partido Renovador Trabalhista Brasileiro
PSOL – Partido Socialismo e Liberdade
PT – Partido dos Trabalhadores
SEDH – Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República
STF – Supremo Tribunal Federal
UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas
UNE – União Nacional dos Estudantes
UFU – Universidade Federal de Uberlândia
USP – Universidade de São Paulo
VAR-Palmares – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13
1 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O DIREITO À MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA
1.1 A ditadura no Brasil............................................................................................................17
1.2 Origem e conceitos da JT....................................................................................................24
1.3 Justiça transicional em terras brasilis................................................................................27
2 A IN(TER)VENÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL
2.1 Que Levante é esse?............................................................................................................31
2.2 Quando não basta o pranto nem a raiva............................................................................34
2.3 Porque se falar em escrachos no Brasil?............................................................................39
2.4 Os escrachos in loco...........................................................................................................41
2.5 Balanço nacional................................................................................................................54
3 AS REAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE AOS ESCRACHOS
3.1 Concepções de Estado, Ideologia e Hegemonia em Gramsci............................................56
3.2 Reações: Ataque ao movimento e solidariedade da sociedade civil...................................58
3.3 Militares..............................................................................................................................59
3.4 Ex-presos políticos e familiares das vítimas.......................................................................60
3.5 Imprensa escrita e televisiva...............................................................................................61
3.6 Redes sociais virtuais..........................................................................................................62
3.7 Terceiros afetados...............................................................................................................63
3.8 Universidade.......................................................................................................................63
3.9 Legislativo...........................................................................................................................64
3.10 Executivo...........................................................................................................................65
3.11 Reações dos escrachados / Poder Judiciário....................................................................66
3.12 Entidades de classe, Movimentos Sociais, Partidos Políticos e Personalidades.............69
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................75
ANEXOS..................................................................................................................................81
13
INTRODUÇÃO
O Brasil, após sofrer o golpe civil-militar de 31 de março de 1964, entrou em um
período de exceção, vivendo sob regime ditatorial até o ano de 1985. Essa realidade não foi
exclusividade brasileira, pois, em um contexto de Guerra Fria e sob forte influência e apoio da
central de inteligência estadunidense – a CIA, foi desencadeada uma série de intervenções em
países latino-americanos, que culminaram na Operação Condor.1 Durante esse período, vários
setores da população brasileira não concordaram com o golpe e a instauração do regime, e
empregaram múltiplas formas de resistência e luta para a restauração da democracia – seja
através da disputa via Congresso Nacional, denúncias na imprensa, mobilizações populares,
estudantis, sindicais, e até a luta armada. Para manter a estabilidade e o Estado de Segurança
Nacional, as forças no poder se utilizaram principalmente do uso da violência para conter
essas manifestações, chegando a institucionalizar a tortura, através do controle policialesco e
judiciário. O Congresso Nacional foi dissolvido diversas vezes e os ditadores passaram a
legislar por decretos, que a partir de 1971, quando tratassem da Segurança Nacional,
poderiam inclusive ser secretos. Mesmo com todo esse aparato em mãos, os agentes do
regime não respeitavam a legislação, sendo necessária a cumplicidade de outros vários atores,
como médicos legistas, peritos, juízes etc. para esconder as sevícias, torturas e assassinatos
cometidos.
Quando o governo Geisel se compromete com a distensão e o retorno das instituições
democráticas no país, sempre deixou explícito que o processo seria lento, gradual e seguro.
Os militares perceberam que, havendo a continuidade do modelo autoritário, haveria a
possibilidade de uma interrupção abrupta do regime, e iniciaram uma transição do “Estado
coercitivo” para o “Estado consenso”, visando a sua legitimação. Ocorreu uma abertura para
que os setores dominantes antagônicos resolvessem suas pendências e contradições, mas que
no fundo, continuava servindo a um modelo de capitalismo “modernizado”, monopolista e
dependente, integrado no quadro internacional (SABOYA et. al., 1982, p 112). A manobra
1 Em breves linhas, a Operação Condor foi a articulação entre os aparatos de inteligência militar dos países do
cone sul, para a captura e extermínio de contestadores dos regimes autoritários. Idealizada pelo chefe da DINA
(Direção de Inteligência Nacional chilena), Coronel Manuel Contreras, e formalizada em 1975 no “primeiro
encontro de trabalho interamericano sobre inteligência nacional”, criou de um sistema de cooperação mútua para
a troca de informações e de agentes de inteligência em territórios vizinhos (NAHOUM e BENEDETTI, 2009, p.
310). Foi o momento em que os ditadores passaram a “exportar” know-hall em técnicas e práticas de tortura,
sendo o Brasil um dos líderes desse “mercado” que ainda envolvia a Bolívia, Argentina, Chile, Equador,
Paraguai e Uruguai.
14
utilizada foi de cooptar e abrir espaço para alguns setores antes dominados, fragmentando a
oposição. Além disso, enquanto negociava com os partidos e instituições civis de setores da
elite, questões como a anistia, fim da censura e retorno do instituto do habeas corpus, o
governo deixava claro que a liberalização não se aplicava à classe trabalhadora, e aumentava a
repressão no meio sindical. (ALVES, 2005, p, 256). Figueiredo dá sequência a esse processo,
mas fica evidente que os militares ainda detinham o poder do Estado, quando, mesmo com
mobilizações de milhões de pessoas, a campanha das “Diretas Já” sucumbe, e a eleição
presidencial de 1985 se dá por votação indireta no Congresso. A abertura representou assim,
uma transição operada por cima.
Em 1979, após forte pressão social, foi promulgada a Lei 6.683, que anistiou aqueles
que cometeram crimes políticos e conexos entre os anos de 1961 a 1979, possibilitou que
alguns dos exilados pudessem voltar ao país e libertou uma parte dos presos políticos.
Contudo, a promulgação dessa lei em plena vigência da ditadura, não foi ampla, geral e
irrestrita, como queriam as forças populares, pois excluiu quem cometeu os chamados crimes
de sangue, e também significou uma auto anistia, absolvendo todos aqueles que cometeram
crimes em nome do regime. Esse é um dos exemplos que demonstra que não houve um
processo de ruptura no país, e possibilita entender porque os mesmos grupos que estavam no
poder se mantiveram, alterando apenas seus métodos e ações.
Em 26 de março de 2012, quase três décadas após a redemocratização do país, um
grupo de jovens organizados no Levante Popular da Juventude, promoveu uma série de ações
que causou grande repercussão na sociedade brasileira: os escrachos (ou esculachos). Em sete
estados da federação, de forma secreta, os jovens se dirigiram até as residências ou locais de
trabalho de militares ou médicos que comprovadamente participaram de sessões de tortura
durante o período da ditadura, denunciando essa situação. Munidos com carros de som,
percussão, panfletos, cartazes, gritos de ordem, e músicas, os jovens denunciavam aos
vizinhos e a quem passava pelo local, que ali morava ou trabalhava um agente da ditadura
militar. Ao longo do ano outros escrachos foram realizados. A temática provocou polêmicas
na sociedade, reações dos militares e chegou, inclusive, a ser tema de questão do vestibular da
UFU – Universidade Federal de Uberlândia.
Essas ações, inéditas no Brasil, foram inspiradas em semelhantes que aconteceram no
Chile e na Argentina, países que também passaram por períodos ditatoriais, mas que já
avançaram na chamada Justiça de Transição, principalmente em decorrência da grande
participação popular. Os escrachos tiveram como propósito inicial pressionar o Estado
brasileiro a instaurar a Comissão Nacional da Verdade (doravante CNV), que já havia sido
15
promulgada por lei desde o mês de novembro de 2011, e também, colocar o debate na ordem
do dia da população, haja vista o grande tabu que gira em torno desse tema.
Desde que foram feitas as primeiras discussões sobre a criação da CNV, ela enfrentou
problemas e contestações. Primeiro porque grande parte da documentação oficial existente
sobre aquele período foi destruída ou continua em poder dos militares. Além disso, devido à
Lei de Anistia e a atual interpretação que o STF lhe atribui, os resultados das investigações
não podem ser utilizados como prova em processos condenatórios. Todavia, o principal
entrave existente, é o grande poder que as Forças Armadas (FFAA) e setores da elite brasileira
ligados àquelas ainda gozam dentro do Estado brasileiro, travando um embate direto com os
governos que tentaram avançar nesse aspecto. É nesse contexto de disputa política entre
militares da ativa e reserva, Governo Federal, parlamentares, ativistas de Direitos Humanos,
mídia e familiares de vítimas, que surge o elemento novo: as mobilizações de rua promovidas
por um movimento social de juventude, que à priori, nada teria a ver com a questão. Cabe
então, como elemento principal dessa pesquisa e como problema a ser investigado, a
identificação das reações do Estado Brasileiro frente aos escrachos promovidos pelo Levante
Popular da Juventude no ano de 2012, e, como essas manifestações contribuíram para a
efetivação do Direito à Memória, Verdade e Justiça.
A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica das primeiras elaborações teóricas
sobre o período de exceção, assim como das experiências da sociedade civil de sistematização
e arquivamento da documentação existente. Além de material escrito, foram utilizados como
fonte de pesquisa filmes curta e longa-metragem e documentários, pois, ao se identificar as
sensações e emoções vividas, percebem-se as dificuldades de resoluções dos conflitos atuais.
Realizou-se também uma análise da legislação brasileira no que tange à temática, como, por
exemplo, a Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 314/1967 e Lei 7.170/1983), Lei de
Anistia (nº 6.683/1979), Lei da que criou a CEMDP – Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos (nº 9.140/1995), a Lei que criou e regulamentou a CNV (nº
12.528/2011) e o PNDH-3 – Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (Decreto nº 7.037/2009).
Sobre os escrachos e as reações do Estado, boa parte das informações foi catalogada a partir
do que foi relatado pela mídia, em jornais impressos, televisivos e na internet. Outras fontes
foram os blogs estaduais e nacional do Levante, e depoimentos de militantes do movimento.
No primeiro capítulo, é feito um apanhado histórico das condições sociopolíticas do
país nos anos que antecederam o golpe, bem como das movimentações das elites no preparo
institucional e de disseminação ideológica que culminaram na queda de João Goulart.
Também foi feito um levantamento teórico acerca da Justiça de Transição e do Direito à
16
Memória, Verdade e Justiça, com seus elementos, objetivos, precedentes e jurisprudência
internacional. Ao final, são arroladas as medidas referentes à justiça transicional no Brasil,
tanto as políticas públicas adotadas, como as decisões judiciais nacionais e internacionais.
O segundo capítulo traz um detalhamento sobre o histórico, diretrizes políticas e modus
operandi do Levante. A partir de então, resgata-se a experiência de organização da sociedade
civil latino-americana, e o motivo e contexto de surgimento dos escrachos. Em seguida, é feita
uma análise de conjuntura do período que precede as ações, identificando as movimentações
políticas do Governo Federal e das Forças Armadas. Por fim, são relacionados todos os
esculachos promovidos pelo movimento no ano de 2012, com destaque para o método e
divulgação das ações.
O terceiro capítulo é destinado à identificação das reações (positivas e negativas) do
Estado brasileiro frente aos escrachos, e para tanto, são apresentadas as concepções
gramscianas de Estado ampliado, hegemonia e ideologia. As reações mais diversas são
descritas e analisadas, e identifica-se a repercussão e o impacto que elas causaram na
sociedade.
Após o desenvolvimento da pesquisa concluiu-se que as ações do Levante alcançaram
ampla repercussão, conseguiram furar o bloqueio da mídia hegemônica, e tiveram boa
recepção por setores da sociedade civil e política. Essas ações foram importantes porque
levaram às ruas um debate que antes estava encastelado nos gabinetes, e se mostraram como
importantes ferramentas na consolidação dos Direitos Humanos e em especial do Direito à
Memória, Verdade e Justiça. Não obstante, concluiu-se também que o Brasil ainda possui
muitos resquícios da ditadura, e que somente com a efetiva mobilização da sociedade civil, o
país poderá superar essas chagas e iniciar um novo ciclo em sua democracia.
17
Capítulo I - JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O DIREITO À MEMÓRIA, VERDADE E
JUSTIÇA
1.1 A ditadura no Brasil
Decorridas algumas décadas da redemocratização do país, percebe-se que grande parte
da população desconhece o que foi o período de exceção, ou carrega consigo uma visão
deturpada daquele momento histórico. Isso se dá devido a uma série de elementos, como o
fato de não ter ocorrido uma reação de massas logo após o golpe (ou uma guerra civil), e
também pelo modo como a oposição foi duramente sufocada – seja através da repressão,
expurgos2 ou censura. Essa não reação pode ser encarada, a priori, como uma aceitação
daquele fato pela população; entretanto, é necessária uma apuração cuidadosa para melhor
compreender como se arquitetou/concretizou o golpe civil-militar de 64.
Esse, fora precedido por outra tentativa em 1961, quando o presidente Jânio Quadros
renuncia e seus ministros militares constituem uma junta militar para tentar impedir que o
vice, João Goulart, assumisse a presidência.3 Como Jango contava com um forte apoio
popular (que englobava as classes trabalhadoras e camponesas, a burguesia industrial de
médio porte, militares nacionalistas, setores agrários do sul, e políticos tradicionais que se
opunham à ESG e ao bloco multinacional e associado), a conspiração fracassa, mas ele acaba
assumindo a presidência com restrições, e tem que aceitar governar em um regime
parlamentarista.4
Dentro do Estado5, todavia, havia se formado um bloco histórico
6 oposto aos setores
que circundavam o populismo, e que era dirigido por um conjunto de intelectuais orgânicos 1)
2 Os expurgos foram os afastamentos e cassações de uma gama de indivíduos durante o regime militar. Dados
revelam que cerca de 50 mil pessoas foram atingidas diretamente pela ditadura, sendo 4.862 cassados, 6.592
militares atingidos, aproximadamente 10 mil funcionários públicos demitidos, 780 cassações de direitos políticos
pelo período de dez anos, e 49 juízes expurgados. Além disso, foram computados milhares de presos políticos, os
quais pelo menos 20 mil foram submetidos a tortura física, pelo menos 360 mortos e 144 dados como
desaparecidos. Foram iniciados 707 processos judiciais por crimes contra a Segurança Nacional que atingiram
10.034 pessoas, 130 foram banidos do território nacional, milhares foram exilados, e centenas de índios e
camponeses foram assassinados (CUNHA, 2010, p. 30). 3 Já em 1953, quando Ministro do Trabalho no governo Vargas, Jango “caiu” por força da oposição exercida
pelas FFAA, onde 80 coronéis assinaram um memorando exigindo a sua saída. 4 O Brasil vivia um momento de ebulição política e participação popular, com uma classe trabalhadora industrial
emergente, e um inicio de organização sindical no campo que mobilizou milhares em prol da reforma agrária e
da equiparação de direitos. Com isso, “na verdade [as Forças Armadas] estavam dando sequência a uma longa
tradição intervencionista que remonta aos séculos anteriores da nossa história. Ainda antes da proclamação da
república e durante a época escravista, registraram-se inúmeros episódios de participação dos militares na
repressão contra levantes populares” (ARNS, 1985, p. 53). 5 Para compreender a concepção de Estado utilizada nesse trabalho, conferir Capítulo III, item 3.1.
18
diretores de multinacionais e diretores e proprietários de interesses associados; 2)
administradores de empresas privadas, técnicos e executivos estatais que faziam parte da
tecnoburocracia, e 3) oficiais militares (DREIFUSS, 1981, p. 71). O domínio desse bloco
multinacional e associado não se dava somente através da imposição econômica, mas também
pela política. Alguns diretores e empresários acumulavam cargos de diretoria em diferentes
companhias e funções estatais, e os oficiais chave eram acionistas ou diretores de corporações
privadas, tornando-se, com isso, capazes de exercer considerável pressão frente aos governos.
A avaliação dos teóricos desse bloco era de que, aquela tentativa de golpe em 1961, não
logrou êxito pois não houve um preparo ideológico eficiente frente às massas, havendo tão
somente a imposição da força pelas FFAA. Ante a essa situação, entram em cena três atores
importantes para a articulação das forças conservadoras e para a preparação da próxima
tentativa de tomada do poder: IBAD, IPES e ESG. O IBAD – Instituto Brasileiro de Ação
Democrática era, nas palavras do então embaixador americano Lincoln Gordon, um “grupo
industrial de moderados e conservadores”, que foi criado com o alegado propósito de
“defender a democracia”. Esse grupo de ação foi denunciado como uma das principais
operações políticas da CIA no Rio de janeiro, sendo basicamente uma organização de ação
anticomunista (idem, p 102). Possuía ligações estreitas com organizações paramilitares e com
a extrema direita da igreja católica (Opus Dei e TFP – Tradição Família e Propriedade), tendo
influenciado processos eleitorais e sindicais, injetando enormes cifras que eram recolhidas do
empresariado e de políticos.
O IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais utilizava a fachada de centro
educacional e de estudos, apartidário e patriótico, e fazia doações para a redução do
analfabetismo entre crianças pobres – o que ocultava o seu trabalho de coordenação da
manipulação de opiniões e guerra psicológica ao governo Jango. O IPES contava com
medalhões como o General Golbery do Couto e Silva, o presidente do Banco do Brasil no
governo Janio, General Eugênio Euclides Figueiredo (pai do General e presidente João
Baptista Figueiredo), Roberto Campos, Henrique Geisel (irmão do General e presidente
Ernesto Geisel), dentre outros. Para recrutar mais militantes e colaboradores, era regra do
instituto que cada integrante deveria arregimentar mais cinco, e o seu lema era “se você não
abandona os seus negócios por uma hora hoje, amanhã não terá negócio algum para se
preocupar” – em clara identificação de sua visão anticomunista (BANDEIRA, apud
6 Articulação entre diferentes classes e categorias sociais sob a liderança de uma classe dominante ou um bloco
de frações. Esse bloco de poder consegue assegurar o consenso e consentimento das classes e grupos
subordinados e subalternos em decorrência de sua capacidade de definir e manter normas de exclusão social e
política; ou seja possui a hegemonia dentro daquela frente (DREIFUSS, 1981, p. 40).
19
DREIFUSS, 1981 p. 252). Enquanto o IBAD era a unidade tática, o IPES era o centro
estratégico, formulando estudos doutrinários que difundissem a ideologia do bloco.
Uma série de associações e entidades também compunham essa rede, estendendo as
articulações do complexo IPES/IBAD e difundindo a Doutrina de Segurança Nacional, como
o CONCLAP (Conselho Superior das Classes Produtoras), FIESP, CONSULTEC, ADESG,
Federation of the American Chambers of Commerce e a CAMDE (Campanha da Mulher pela
Democracia). A interferência e atuação desse bloco foram tão incisivas que, após o processo
eleitoral de outubro de 1962, uma CPI foi instaurada para investigar as relações do complexo.
O IBAD foi fechado por ter sido considerado culpado de corrupção política, enquanto que o
IPES foi absolvido, pois todas as atividades realizadas pelo instituto “coadunavam com os
objetivos declarados” em sua carta de fundação – sendo que cinco dos nove integrantes da
CPI tinham sido beneficiados pelos fundos do complexo (DREIFUSS, 1981, p 207). Pode-se
afirmar que esse complexo, somado à ESG, formava o partido (gramsciano) da burguesia
multinacional e associada no Brasil.
20
Figura 1: Reprodução de quadro que retrata o funcionamento do IPES. Fonte: DREIFUSS, 1981, p. 175.
Enquanto o complexo IBAD/IPES agia com foco nas atividades do Congresso, sindical,
católica e em especial na classe média, a Escola Superior de Guerra (ESG) difundiu a DSN
21
através dos centros militares de estudos e treinamento, bem como nos programas de educação
cívica. A base da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) era de que se vivia uma guerra
permanente e bipolar contra o comunismo no mundo, e que o Brasil possuía uma posição
importante na geopolítica mundial, sendo capaz de influenciar toda a América Latina a partir
de suas decisões. O início da DSN se dá 1949, no governo Dutra, com a criação da ESG.
Formada por oficiais anti-Vargas e pró-UDN, sua inspiração advinha da National War College
estadunidense, e dos ideólogos franceses neocolonialistas. Sua concepção de Segurança
Nacional era um “grau de garantia que, através de ações políticas, econômicas e psicossociais
e militares, o Estado proporciona à Nação, para a conquista e manutenção dos objetivos
nacionais, a despeito dos antagonismos ou pressões, existentes ou potenciais” (SABOYA et.
al., 1982, p. 83/84).
No dia do golpe, com o advento da operação militar de deslocamento de tropas em
direção ao Rio de Janeiro, desencadeou-se também a “operação Brother Sam”, um plano de
contingência requerido pelos líderes do IPES para que as autoridades americanas garantissem
apoio logístico ao movimento anti-João Goulart (DREIFUSS, 1981, p. 399). Os planos eram
de uma intervenção direta no porto de Vitória (ES), com o deslocamento, no dia 2 de abril, de
uma esquadra para aquela cidade – além da intervenção dos cerca de 40 mil soldados
estadunidenses que já se encontravam em solo brasileiro.7 Mas, por que não houve resistência
por parte do governo legalmente eleito? O risco de uma guerra civil e da divisão do país era
concreto, assim como foi com a Coreia e o Vietnã. A resistência partiria do Rio Grande do
Sul, terra de Jango e Brizola, onde o III Exército, um dos mais capacitados militarmente, era
contrário ao golpe. Porém, com o comunicado do General Telles de que no dia 2 de abril já
não detinha mais o controle de todos os batalhões, Jango e seus ministros perceberam que a
resistência era inviável e traria consequências drásticas ao país, podendo levar a morte de
milhares de cidadãos.
O país vivia um período de ascenso das massas e das lutas dos trabalhadores, tendo por
exemplo, uma greve que envolveu 400 mil trabalhadores civis de transportes marítimo,
ferroviário e portuário em todo o país, exigindo a equiparação salarial aos militares (no ano de
1960). Em 1963, 700 mil trabalhadores entraram em greve pretendendo a unificação da data-
base dos acordos salariais e outras reivindicações. Em março de 1964, 200 mil pessoas
7 A interferência estadunidense, de caráter imperialista, não se deu somente no âmbito militar (o qual inclusive
fazia doações de armamento para o Exército brasileiro via Programa de Assistência Mútua), mas também no
fortalecimento da oposição conservadora e na desestabilização da economia. Houve um corte de empréstimos e
crédito ao Governo Federal, ao passo que havia uma ajuda seletiva a determinados estados e governadores
oposicionistas, formando as chamadas ilhas de sanidade. Estados e diretrizes eram então apontadas como modelo
de sucesso, que serviam para propagandear a oposição e fazer frente ao populismo trabalhista.
22
compareceram ao histórico comício das reformas de base no Rio de Janeiro, e em resposta, a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade levou 500 mil pessoas às ruas de São Paulo. A
Marcha da Vitória, em comemoração à deposição de Jango, levou em 2 de abril, 800 mil
pessoas ao centro do Rio de Janeiro, com cartazes e faixas contra o comunismo.
Mas por que não houve uma resposta imediata e expressiva contra o golpe nas ruas
brasileiras? Havia uma rede de informações mapeada pelo complexo IPES/IBAD/ESG, que
possuía um dossiê de informações de 400 mil pessoas ligadas ao governo Jango, a Brizola, às
Ligas Camponesas, sindicalistas, comunistas, estudantes e até mesmo a qualquer pessoa que
já tivesse viajado para Cuba ou para a Rússia. Imediatamente após o anúncio do golpe,
iniciou-se a “operação limpeza”, em que foram instaurados 763 Inquéritos Policiais Militares,
os chamados “IPM‟s da subversão”, onde calcula-se em 50 mil o número de presos e
indiciados. Como no golpe do Estado Novo em 1937, navios tiveram novamente de ser
usados como prisões para abarcar a enorme quantidade de detidos em tão curto lapso temporal
(MARTINS, 1978, p. 120). Com o desenrolar do golpe a partir do sudeste e centro-oeste, no
interior do país o processo se deu por adesão (CORREA, 2011, p. 55), e parte dos grupos
dominantes e oligárquicos aproveitaram esse contexto para denunciar (ainda que de forma
caluniosa) adversários políticos, que também acabaram sendo enquadrados pela DSN.
Contudo, diferentemente de outras ditaduras do cone sul, a manutenção de um
bipartidarismo controlado8
e a rotatividade presidencial aparentavam um mínimo de
democracia e de possibilidades de atuação da oposição. Além disso, a propaganda
governamental sobre o chamado milagre econômico,9 e o sucesso da seleção canarinho com a
8 Com o advento do Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, os partidos políticos existentes foram
extintos e o bipartidarismo foi instituído, com a ARENA representando a situação, e o MDB, a oposição.
Contudo, as cassações que se iniciaram nos primeiros dias após o golpe com a “operação limpeza”, tiveram
continuidade no período seguinte. Diversos políticos foram proibidos de disputar eleições, e outros tantos eleitos
foram cassados por suas manifestações em discursos ou em plenário. O AI-3, por sua vez, estabeleceu em
fevereiro de 1966, que os governadores seriam eleitos indiretamente pelas assembleias legislativas e os prefeitos
das capitais seriam nomeados pelos governadores – os chamados biônicos (ALVES, Maria Helena Moreira. 2005,
passim). Em 1979, com o grande crescimento da oposição, sucessivas derrotas políticas como a revogação do
AI-5 e a promulgação da Lei de Anistia, e a desestabilidade econômica do país, Figueiredo põe em prática o
plano do grande estrategista do regime, o General Golbery do Couto e Silva, restaurando o pluripartidarismo e
fragmentando a oposição. As eleições diretas para presidente, por sua vez, só vão ocorrer após a
redemocratização e a promulgação na nova Constituição, no ano de 1989. 9 Esse período, que data de 68 a 73, foi caracterizado marcadamente pelo crescimento do PIB brasileiro em mais
de 10% ao ano. Megaempreendimentos e obras faraônicas brotavam a cada dia, fazendo com que o setor da
construção civil crescesse acima dos 15% ao ano. Houve também um aumento de investimento do Estado na
indústria pesada, siderurgia, construção naval, e geração de energia hidrelétrica, acompanhado do crescimento da
produção de bens duráveis de consumo e de bens de capital. Como o golpe foi patrocinado por setores da elite,
também foram esses que se beneficiaram do crescimento, aumentando de forma absurda a desigualdade social no
país. Para se ter noção da desigualdade de renda, dados apontam que entre 1970 e 1972, 78,8% da população
recebia menos de dois salários mínimos e trabalhava em média de 12 a 14 horas diárias. Com o advento da
Constituição de 1967, a idade mínima de trabalho foi reduzida para 12 anos, e o resultado desse processo foi que
23
conquista da Copa do Mundo de 1970, mantiveram na memória coletiva algumas recordações
positivas, que em certo grau encobrem ou minimizam as memórias negativas. Esses fatores,
somados à disseminação ideológica nas escolas, universidades e mídia, propiciaram uma
alienação das massas frente à história real do domínio do país, norteada pelos interesses
econômicos e políticos do bloco multinacional e associado. Entretanto, o principal entrave à
construção de uma memória crítica se deu, pois até hoje, grande parte dos arquivos que
contam essa história foi destruída ou permanece nos porões da ditadura. Outro fator
importante, é que nenhum dos algozes do regime foi julgado ou punido pelos crimes que
cometeu. Por conseguinte, permanece no inconsciente coletivo a mensagem do senso comum,
que os agentes estavam a serviço da nação, encampando uma guerra contra a ameaça
comunista, e em busca da paz social10
. Sendo assim, não há porque questionar as suas ações
criminosas ou revirar os entulhos do passado.
Só que o estudo da memória social não revela simplesmente subjetividades, mas sim
ideologias, que têm reflexos mediatos nas decisões e perspectivas de um povo:
As “políticas de memória” sociais e culturais são parte integral do processo de
construção de várias identidades coletivas sociais e políticas, que definem o modo
como diferentes grupos sociais veem a política e os objetivos que desejam alcançar
no futuro. A memória é uma luta sobre o poder e sobre quem decide o futuro, já que
aquilo que as sociedades lembram e esquecem determina suas opções futuras. Mitos
e memórias definem o âmbito e a natureza da ação, reordenam a realidade e
legitimam o exercício do poder. A política da memória se torna parte do processo de
socialização política, ensinando às pessoas como perceber a realidade política e as
ajudando a assimilar ideias e opiniões. A memória é transmitida por “figuras da
autoridade”, permitindo processo de aculturação e socialização dos cidadãos que
vivem dentro das fronteiras de um Estado. Memórias históricas e lembranças
coletivas podem ser instrumentos para legitimar discursos, criar fidelidade e
justificar ações políticas (BRITO, 2009, p 72).
O senso comum é, em regra, a reprodução da ideologia dominante, e serve para a
domesticação do povo. Um povo que não tem uma memória coletiva esclarecida não
consegue interpretar nem se apropriar do passado, e com isso passa por dificuldades ao tentar
moldar o seu futuro. Isto tanto é verdade que em todos os processos de dominação da
humanidade (desde as guerras de antes de Cristo até os colonizadores europeus), a primeira
em 1976, dados do PNAD revelaram que 68% das crianças entrevistadas tinham que trabalhar mais de 40 horas
por semana (ALVES, Maria Helena Moreira, 2005, p 152). Os efeitos decorrentes desse período refletem até
hoje na realidade brasileira... 10
Rememorando o pensamento de Roberto Lyra Filho, pode-se encontrar uma racionalidade para essas
concepções, pois “paz social é, em última análise, o interesse da classe dominante em manter a classe dominada
perfeitamente disciplinada” (apud SABOYA et. al. 1982, p. 216).
24
providência a ser tomada era a destruição de todos os elementos historico-culturais daqueles
povos, com o intuito de “apagá-los” da história.
1.2 Origem e conceitos da JT
Frente a essas considerações, assimila-se que nem o indivíduo, nem a coletividade,
poderão alcançar a sua plenitude sem ter acesso ao seu passado. Por isso, o Direito à Memória
e à Verdade conforma e é parte do princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se de um
direito difuso, transindividual e transgeracional (SANTOS e SOARES, 2012, p 274), que
pode ser classificado, na concepção de Paulo Bonavides, como um Direito Humano de 4ª
Dimensão11
. Dessa maneira, a titularidade do direito à memória e à verdade não é restrita aos
envolvidos em uma determinada situação, podendo ser reivindicada por qualquer cidadão,
desde que haja interesse coletivo e que o direito à privacidade tenha seus limites observados.
Enquanto a guerra foi fria entre Estados Unidos da América e União Soviética, na
África e América Latina das décadas de 60 e 70 a situação esquentou. Uma série de denúncias
internacionais de torturas e desaparecimentos decorrentes desses conflitos, converteram “el
derecho a verdad en objeto de una atención creciente por parte de los órganos
internacionales y regionales de derechos humanos y los titulares de mandatos de
procedimientos especiales” (ONU, 2006, p. 189). Dessarte, é latente o envolvimento e
protagonismo de setores organizados da sociedade civil na construção desse direito, havendo
então uma edificação de baixo para cima, e uma inversão da lógica de produção jurídica
moderna.
No contexto analisado, o direito à memória e à verdade se encontra envolto em um
conjunto maior de ações e elementos complementares, que se materializam na Justiça de
Transição. Na modernidade, diversos países que passaram por processos de invasões, guerras
civis ou regimes totalitários buscaram esses mecanismos para recuperar a sua memória e virar
a página da história, implantando valores e princípios democráticos. Para NAHOUM e
BENEDETTI, a “Justiça de Transição é a rubrica à qual se reporta um conjunto de medidas,
de caráter jurídico, político e social, por meio das quais se responde a violações de direitos
humanos perpetradas sob um dado regime político” (2009, p 301). Kai Ambos, por sua vez, a
conceitua como um “método de restabelecimento da reconciliação da sociedade que passou
11
Os direitos de 4ª dimensão são os que potencializam a universalização dos direitos fundamentais, pois
caminham no sentido de elevar a condição da socialização humana. BONAVIDES os elenca em um rol
exemplificativo como sendo o direito à democracia (plena), o direito à informação e ao pluralismo (2002, p
525).
25
por experiências traumáticas, [buscando a] efetivação da justiça, da punição e
responsabilização dos que violaram os Direitos dos cidadãos”, além do reconhecimento da
responsabilidade do Estado, e do resgate às “histórias das vítimas que restaram adulteradas
e/ou obscurecidas” (apud GALLO, 2010, p. 135). Paul Van Zyl a sintetiza como o “esforço
para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou
violação sistemática dos direitos humanos” (2009, p 32).
Em suma, o objetivo da JT é a promoção da reconciliação nacional, efetivando medidas
que demonstrem que a democracia está a serviço de todos os cidadãos. Os elementos que a
compõem são a I) verdade; II) justiça; III) reparação; e IV) reformas institucionais. Buscar a
verdade não é simplesmente ouvir o outro lado da história, mas sim possibilitar que as
gerações futuras reconheçam a existência de práticas abusivas no passado, para que dessa
forma, possam identificá-las e resistirem a uma possível tentativa de reimplantação das
mesmas. Não se trata assim, de conhecer a história dos vencidos para reescrevê-la novamente
sob uma forma linear e progressiva, mas sim de produzir uma historiografia dialética, em que
a partir dos relatos dos dominados e excluídos, surja a margem para uma batalha
hermenêutica sobre a significação do passado (SILVA FILHO, 2008, 159/160).
Verdade implica responsabilidade! Ao conhecer o passado e identificar as situações de
abuso, faz-se necessário investigar e promover o devido processo legal para julgar os crimes
perpetrados em nome do Estado. Após um julgamento baseado na ampla defesa e nos
princípios constitucionais, os agentes poderão ter ou sua inocência comprovada, ou se
condenados, a individualização da pena a ser cumprida, sem ter de levar para o resto de suas
vidas a indigna estigmatização da impunidade. Essa medida também serve como uma arma
contra o esquecimento, e uma forma de resposta às vítimas e à sociedade como um todo, pois
essas violações são em regra de lesa humanidade. Além da resposta judicial, é indispensável
reparar as vítimas materialmente pelas suas mais diversas perdas, que vão desde bens
materiais, empregos e vagas em universidades, até ter de viver na clandestinidade, romper
todos os laços sociais, ou ter familiares estupradas, torturados ou mortos. Essas reparações
podem assumir diferentes formas como a assistência psicológica, ajuda material (pagamentos
compensatórios, pensões, bolsas de estudos e bolsas) e medidas simbólicas, como a
construção de memoriais e dias comemorativos de lembrança (ZYL, 2009, p. 36). Por fim, são
essenciais as reformas institucionais para modificar e até acabar com estruturas arcaicas
construídas sob a égide dos regimes totalitários, que se não enfrentadas, continuam a produzir
os mesmos efeitos materiais, e reproduzir a linha ideológica opressora. Também passam por
essas reformas um saneamento administrativo, que visa assegurar que as pessoas responsáveis
26
pelas violações dos direitos humanos sejam retiradas dos cargos públicos. Todas essas
diretrizes estão presentes em diversos tratados internacionais, jurisprudência de cortes de
Direitos Humanos, e em resoluções da ONU, o que faz com que o Brasil, assim como a
maioria dos países do mundo, se submeta a tais.
Na Europa do século XX, continente devastado por guerras e regimes totalitários, houve
três “ondas” de verdade e justiça transicional. A primeira, ocorrida no período pós-Segunda
Guerra, na Alemanha e nos países devastados pelos nazistas; a segunda no sul da Europa, em
específico na Grécia, Portugal e Espanha, e a terceira, ocorrida na década de 1990 na Europa
Central e do Leste, que foi caracterizada por “saneamentos administrativos „descomunizantes‟
(Albânia, Bulgária, República Tcheca, Eslováquia, Polônia, Romênia, Alemanha e Hungria),
pela abertura de arquivos da polícia, e por julgamentos seletivos de oficiais de alto escalão ou
de crimes particularmente brutais” (BRITO, 2009, p 59/60).
No continente africano e na América Latina os mecanismos mais utilizados foram as
Comissões da Verdade. Cada uma com sua peculiaridade, tiveram o objetivo comum de
investigar as violações de Direitos Humanos, e possibilitar às vítimas contarem sua própria
história, produzindo por fim, um relatório a ser compartilhado com a população. O objetivo
das comissões não é o de substituir o poder judiciário, mas tão somente investigar os fatos do
passado e reunir documentos.12
Os avanços ou entraves de cada uma dessas comissões, e da
JT como um todo, não dependeram somente do interesse dos governos posteriores, mas sim
da correlação de forças interna de cada país. Não é apenas uma questão de escolha de qual
medida implementar, mas sim de quando cada uma delas será possível. Onde houve processos
insurrecionais e derrotas das classes que estavam no poder, existiram maiores possibilidades
de desenvolvimento de políticas de verdade e justiça – ao revés dos países em que as
transições foram pactuadas, pois ali permaneceram focos de poder do antigo regime, como é o
caso do Brasil.
12
“Em 1974, sob o governo de Idi Amin em Uganda, foi estabelecida a primeira Comissão da Verdade, a qual
teve o objetivo de investigar os desaparecidos durante os seus primeiros anos no poder. Foi uma Comissão
instalada pelo governo ugandês para responder às críticas contra seu regime, as quais começaram a se tornar
mais fortes a partir de 1974. Depois disso e até o ano 2000, formaram-se Comissões da Verdade nestes países:
Bolívia (1982), Argentina (1983), Uruguai (a primeira Comissão em 1985), Zimbábue (1985), Uganda (a
segunda Comissão no ano de 1986, para esclarecer violações durante os últimos anos do regime de Idi Amin),
Chile (a primeira em 1986), Nepal (em 1990), Chade (1991), Alemanha (1992), El Salvador(1992), Sri Lanka
(1994), Haiti (1995), África do Sul (1995), Equador (a primeira em 1996), Guatemala (1999) e Nigéria (1999). A
partir do ano 2000, formaram-se as seguintes Comissões da Verdade: Uruguai (a segunda comissão no ano 2000),
Coreia do Sul (2000), Panamá (2001), Peru (2001), República Federal da Iugoslávia (2001), Gana (2002), Timor
Leste (2002), Serra Leoa (2002), Chile (a segunda comissão em 2003), Paraguai (2004), Marrocos (2004),
Carolina do Norte, EUA (2004), República Democrática do Congo(2004), Indonésia e Timor Leste (2005),
Coreia do Sul (a segunda comissão em 2005), Libéria (2006), Equador (a segunda comissão em 2008), Ilhas
Maurício (2009), Ilhas Salomão (2009), Togo (2009), Quênia (2009) e Canadá (2009)” (POLITI, . p 18).
27
1.3 Justiça transicional em terras brasilis
Nesse ínterim, a situação pátria sempre foi muito complexa, pois o primeiro civil a
assumir a presidência, José Sarney, adveio de uma eleição indireta no Congresso Nacional, e
foi governador biônico do regime ditatorial. Em 1990 assume Fernando Collor, que iniciou
sua carreira na ARENA, e deu vazão ao modelo neoliberal no país, sendo aliado dos
oligopólios empresariais e dos grandes meios de comunicação. Muitos conglomerados
empresariais se beneficiaram de maneira absurda das relações de colaboração com os
ditadores, e com isso acabaram apoiando, direta ou indiretamente, suas ações de violência.
Um caso emblemático é o da Operação Bandeirantes – OBAN13
, no qual banqueiros e grupos
ligados à FIESP financiaram centros paramilitares de excelência em tortura, que além dos
métodos tradicionais, importavam e criavam máquinas de suplícios.
Outro exemplo é o da Rede Globo de televisão, em que o seu proprietário, Roberto
Marinho, foi um dos apoiadores do golpe. A emissora ocultava uma série de fatos e inclusive
fazia propaganda do regime em seus programas jornalísticos, distorcendo dados e maquiando
a realidade – a célebre frase dita pelo presidente Médici ao inaugurar a transmissão em cores
por essas terras, ilustra bem esse raciocínio: “Sinto-me feliz todas as noites quando assisto o
noticiário” ”Por quê?” “Porque no noticiário da TV Globo o mundo está um caos, mas o
Brasil está em paz... É como tomar um calmante após um dia de trabalho...”.14
A partir da
necessidade governamental de transmitir a Copa do Mundo de 70 em escala nacional, a Rede
Globo cresceu exponencialmente, sendo a maior beneficiária dos incentivos estatais, ao
mesmo tempo em que acobertou e inclusive participou das ações ilegais dos militares.
Portanto, buscar memória, verdade e justiça no Brasil significa não somente travar uma
disputa com os “generais de pijama”15
, mas também, combater os grandes grupos econômicos
que sustentaram a ditadura e se favoreceram com ela.
Diante desse quadro, as ações em torno da justiça transicional aconteceram de forma
muito esparsa, partindo de algumas poucas prefeituras e governos ligados à causa, e
principalmente da iniciativa dos familiares das vítimas, e de ativistas de Direitos Humanos (a
exemplo do Grupo Tortura Nunca Mais e da Comissão de Familiares de Mortos e
13
A dramaturgia oferece significativa contribuição para a compreensão dessas relações, v.g. o documentário
“Cidadão Boilesen”, de Chaim Litewiski e o filme “Pra Frente Brasil”, de Roberto Farias. 14
O filme “Além do Cidadão Kane” da BBC de Londres, censurado durante um longo tempo no Brasil, detalha
as relações da emissora e de Roberto Marinho com o regime de exceção. 15
Expressão utilizada para designar os oficiais da reserva.
28
Desaparecidos Políticos, formada ainda na primeira metade da década de 1970). Somente em
1995 foi criada a CEMDP, momento no qual o Estado brasileiro aceita e assume, pela
primeira vez, a responsabilidade pela prática de seus atos ilícitos. É nesse momento que se
iniciam as primeiras investigações sobre os crimes de Estado, e que são concedidas as
primeiras indenizações às vítimas e famílias do regime16
. Ademais, com o advento da Lei
10.559/2002, foi criada no âmbito do Ministério da Justiça, a Comissão de Anistia, que
promove uma série de caravanas e audiências públicas reconhecendo a anistia política a todos
aqueles que, devido às suas posições políticas, foram atingidos pelos atos institucionais e
complementares, tendo sido expurgados, cassados, demitidos etc. Em 2009, foi instituído o
PNDH-3, que trouxe como eixo orientador nº VI o Direito à Memória e à Verdade, com
objetivos estratégicos e ações programáticas sobre: a) o reconhecimento da memória e da
verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado, b) preservação da verdade
histórica e a construção pública da verdade, e c) modernização da legislação relacionada ao
direito à memória e à verdade.
Por diversos momentos, vítimas, familiares e entidades da sociedade civil provocaram o
Poder Judiciário em busca da condenação penal e civil dos perpetradores de crimes durante o
regime. O caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”) se desenrolou
desde 2003, demonstrando desde esse período o descompromisso do Judiciário com a
temática, e revelando contradições dos governos petistas, que hora se mostram engajados com
a causa, hora criam empecilhos para possíveis avanços.
Em 2003 a Justiça brasileira expediu uma sentença final na qual condenava o Estado
a abrir os arquivos das Forças Armadas para informar, em 120 dias, o local do
sepultamento desses militantes. Porém o governo do Presidente Lula recorreu contra
a Justiça, visando não cumprir a lei, apresentando todos os recursos possíveis. Em
2007 esgotaram-se os recursos legais, houve a condenação e desde então o Estado
brasileiro está fora da lei. (CUMPRA-SE, 2011).
Em abril de 2010, o STF julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, movida pela OAB, e reafirmou, por sete votos a dois, a interpretação que
considera os crimes cometidos pelos agentes do Estado como conexos aos crimes políticos. O
entendimento majoritário do Supremo, expresso no acórdão, é de que a Convenção das
Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes (adotada pela Assembleia Geral em 10/12/1984, vigorando desde 26/6/1987) e a
Lei N. 9.455, de 07/4/1997, que define o crime de tortura, foram posteriores à Lei de Anistia.
16
A partir de 2003 a CEMDP foi vinculada à SEDH, tornando-se um dos seus conselhos permanentes.
29
Dessa forma, essa legislação não poderia alcançar os crimes praticados durante o regime,
devido à irretroatividade da lei penal in malam partem. Porém, olvidaram-se os magistrados
que assim votaram, que à época já vigiam tratados internacionais que condenavam aquelas
práticas criminosas, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, Convenção
para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, e as Convenções de Genebra.
Ao interpretar que a Lei de Anistia foi recepcionada pela Constituição de 88, e que os
crimes conexos também foram anistiados, o STF foi de encontro ao entendimento habitual da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já decidiu, em ao menos cinco casos, pela
nulidade da autoanistia criminal decretada por governantes (VENTURA, 2011, p. 312). Assim,
o judiciário manteve a impunidade aos terroristas de Estado, e desrespeitou os tratados e
convenções ratificadas pelo país, ignorando o debate do transconstitucionalismo e da
internacionalização dos Direitos Humanos. Contudo, não se pode olvidar que além da disputa
jurídica, estava em jogo um embate político. Se o resultado fosse favorável à investigação e
condenação dos crimes, um desgaste irreparável poderia emergir da base de sustentação do
Governo Federal.
É bem verdade que o governo brasileiro, embora, de regra, situado “à esquerda” nas
clivagens político-partidárias, baseia-se sobre uma larga coalizão, capaz de dar
guarida até a colaboradores, abertos ou velados, do regime militar. Surpreendente,
porém, é o ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, ele mesmo vítima
da repressão política, ter arbitrado o dissenso governamental em favor dos segundos
e, a seguir, exercido notória pressão para que o STF indeferisse a ADPF 153 (idem,
p. 314).
Em novembro de 2010, após recurso do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o país foi condenado a “realizar todos os esforços para
determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os
restos mortais a seus familiares” tal como “conduzir eficazmente, perante a jurisdição
ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as
correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências
que a lei preveja”.17
Em decorrência da pressão exercida por essa condenação, e até como
forma de se esquivar do cumprimento da sentença, em novembro de 2011 foi criada por lei a
CNV brasileira, que só viria a ser instituída e iniciaria os trabalhos em 16 de maio de 2012.
17
A sentença completa pode ser encontrada em
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em 20 de maio de 2013.
30
Capítulo II – A IN(TER)VENÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL
2.1 Que Levante é esse?
Antes de analisar as ações em torno da memória e verdade, é preciso traçar um breve
histórico do Levante e conhecer as suas origens. Criado em 2006 no estado do Rio Grande do
Sul, surge da articulação e esforço de setores da esquerda que reivindicam e constroem o
Projeto Popular para o Brasil. Partindo da compreensão de que mesmo em momentos de
conformação social a juventude é um elemento dinâmico, e diante da constatação de que boa
parte dos jovens não tem mais sido atraída pelos movimentos e partidos políticos tradicionais,
esses grupos ligados historicamente à esquerda social e aos movimentos de base, perceberam
a necessidade de criação de uma organização de juventude adequada à nova realidade social
brasileira. A Consulta Popular (instrumento político que aglutina diversos segmentos
próximos ao MST e à Via Campesina18
) passa então a envidar esforços e promover debates e
plenárias com o desiderato de criar um movimento que fosse capaz de ir além do movimento
estudantil universitário e secundarista. O desafio posto é o de organizar a juventude das
periferias urbanas e do campo, que são as que sofrem mais diretamente a exploração e
precarização do trabalho, além da falta de acesso a políticas públicas básicas como a saúde e
educação.
Em seguida, militantes de todo o país começaram a desenvolver atividades iniciais que
acumulassem para esse processo organizativo, criando os coletivos campo e cidade e
realizando os acampamentos da juventude popular, como forma de aglutinar os primeiros
grupos de jovens que em seguida conformariam o movimento – nesse primeiro momento só
existia Levante no Rio Grande Sul. Então, em fevereiro de 2012, como epicentro de todas
essas atividades, aconteceu na cidade de Santa Cruz do Sul-RS o I Acampamento Nacional do
Levante, reunindo cerca de 1.200 jovens de 17 estados da federação. O evento foi o marco de
nacionalização do movimento e o seu lançamento para a sociedade. Nele foi eleita uma
coordenação nacional, e apontado para os jovens o desafio de voltar às suas cidades e criarem
células do Levante. Encaminhou-se, igualmente, que a militância deveria organizar
acampamentos estaduais e municipais com o intuito de atrair novos militantes, e pulverizar as
diretrizes nacionais.
18
A Via Campesina é um “movimento internacional que articula os interesses globais dos trabalhadores do
campo. Fundando em 1993 na Bélgica, congrega camponeses, pequenos e médios produtores, sem-terra, povos
indígenas, migrantes e trabalhadores agrícolas em todo o mundo” (BRITO, 2012, p.3).
31
O Levante é um movimento social peculiar. Em primeiro lugar, ele engloba integrantes
de outros movimentos como o hip hop, pastorais de igrejas, MST, MPA (Movimento dos
Pequenos Agricultores), MTD (Movimento dos Trabalhadores Desempregados), MAB
(Movimento dos Atingidos por Barragens), Marcha Mundial de Mulheres etc., e não
configura essa questão como dicotômica, mas sim como complementar. Para a construção de
força social, o Levante orienta-se pelo tripé organização (acúmulo de forças), formação
(práxis transformadora) e lutas (atacar o poder instituído) (LEVANTE POPULAR DA
JUVENTUDE, 2012a, p 13).
O movimento se organiza em células: pequenos grupos de jovens que se ligam por
afinidade territorial, laboral, de curso ou escola. Esse método proporciona que ocorram
encontros mais rápidos e frequentes devido à semelhança da rotina dos integrantes, além de
possibilitar uma maior participação na tomada de decisões, e uma potencialização da
execução dos encaminhamentos. As células são, assim, o espaço político onde os jovens
realizam estudos acerca da realidade em que estão inseridos, formulam as intervenções que
irão permear nesta realidade, e o local onde convivem e compartilham as suas experiências de
vida, exercitando o companheirismo e as relações sociais inerentes ao ser humano e em
especial à juventude. A organização celular permite que o movimento esteja pulverizado ao
máximo pelo território e pelas instituições, abrindo-se infinitas possibilidades de intervenção
quando a população inicia processos de movimentações reivindicatórias. Estando bem
posicionados, os jovens podem incentivar e organizar as massas, utilizando o acúmulo do
movimento para contribuir com a construção das manifestações, assim como no processo de
politização das pautas, avançando de uma consciência econômica para uma consciência
política. “Não sabemos aonde o povo vai se manifestar primeiro, mas nós temos de estar lá
quando acontecer. Temos de formar as lideranças que vão conduzir o processo.” (LEVANTE
POPULAR DA JUVENTUDE, 2012b, p 21).
Além das células, a nível municipal são instâncias do Levante a secretaria operativa e o
acampamento. A nível estadual e nacional as instâncias se repetem e se interligam, havendo
secretarias operativas e acampamentos estaduais e nacionais.
A secretaria operativa é responsável por cumprir as decisões tomadas nas células e
acampamentos. Acumula a tarefa de articulação interna (entre as células) e externa
(com a sociedade de modo geral). É formada por representantes de cada célula. Pode
tomar decisões de emergência. Os acampamentos são as instâncias máximas de decisão. São os espaços em que se
reúnem os/as militantes de todos as células, onde são socializadas as experiências
locais e onde se dá a conversa sobre os rumos gerais do Levante (LEVANTE
POPULAR DA JUVENTUDE, 2012a, p. 17).
32
Figura 2: Gráfico da organicidade do Levante. Fonte: LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE, 2012a, p. 17.
Já que historicamente as classes dominadas não tiveram acesso aos meios de
comunicação de massas, uma série de técnicas de agitação e propaganda (agit-prop) foi
elaborada pela esquerda mundial, como forma contra hegemônica de fazer com que a sua
mensagem chegue ao povo. O Levante elenca a agit-prop como uma de suas tarefas
prioritárias, dando ênfase no caráter comunicativo de todas as suas atividades.19
Essas ações
observam, em regra, cinco aspectos essenciais para que se alcance uma eficiência política: “1)
Estar ligadas a problemas concretos do povo; 2) Ser de fácil compreensão para o senso
comum; 3) Resgatar e fortalecer a identidade e a autoestima do povo; 4) Apontar um corte de
classe e denunciar uma desigualdade social; 5) Difundir o Projeto Popular para o Brasil”
(LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE, 2012b, p 17).
No que tange às suas bandeiras de luta:
o conceito clássico de movimento social se relaciona à existência de uma ou mais
bandeiras de luta que unifiquem os sujeitos envolvidos, o MST por exemplo, luta
pela reforma agrária popular, o MAB luta contra a forma injusta de construção das
hidrelétricas, etc., ou seja, faz parte do grupo quem se identifica com sua pauta
reivindicatória e se engaja por essas conquistas. O diferencial do Levante é que não
elegemos bandeiras prioritárias, mas nos colocamos ao lado das mobilizações que
reivindicam melhores condições de vida para a juventude brasileira. Num contexto
onde falta quase tudo na vida cotidiana do jovem, nosso método é mostrar que sem a
organização coletiva e luta, nenhuma conquista verdadeira é possível.20
Destarte, as pautas tocadas podem ser locais, regionais ou nacionais, a depender da conjuntura
e da necessidade – desde que tenham como programa estratégico o Projeto Popular para o
19
Em dezembro de 2012 foi realizado o I Curso Nacional de Agit-prop do Levante, em Brasília-DF, com
representações de todos o país. Está programado para o ano de 2013 a reprodução desse curso em todos os
estados em que o Levante está inserido, onde os participantes do curso nacional se tornaram os seus
multiplicadores. 20
Disponível em: <http://levante.org.br/quem-somos/>. Acesso em 09 de junho de 2013.
Célula
Célula Célula
Célula
Célula SECRETARIA
OPERATIVA
ACAMPAMENTO
33
Brasil.21
Uma determinada célula da periferia pode encampar a luta pela construção de uma
quadra poliesportiva, bem como lutar contra a remoção de famílias em situações irregulares.
Ao mesmo tempo, pode haver um esforço conjunto de todas as células da cidade para barrar o
aumento da tarifa do transporte, ou promover uma atividade cultural do movimento. Além
disso, podem ser tocadas atividades estaduais, como a construção de um acampamento ou
jornada de lutas, ou atividades nacionais, como a luta pelos 10% do PIB para a educação
pública, ou pelo fim do extermínio da juventude negra.
Ficam nítidos, a partir de sua caracterização, alguns elementos essenciais do movimento,
como sua atuação voltada à esquerda e a sua proximidade com os movimentos da Via
Campesina – os quais têm como marca principal a radicalidade de suas ações. Sendo assim, a
luta por memória, verdade e justiça é uma bandeira que está imersa em seu leito histórico, e
desde os primeiros passos no Sul, fez parte de sua agenda.
2.2 Quando não basta o pranto nem a raiva
Os escrachos realizados pelo Levante foram ações inéditas no Brasil, mas a origem
desse tipo de protesto provém de países vizinhos como a Argentina, Chile e Uruguai, onde
foram protagonizados por movimentos populares desde a década de 90. O seu surgimento
advém mais especificamente da Argentina, esfacelada após a ditadura encabeçada por Jorge
Rafael Videla e pela Junta Militar, que perdurou de 1976 a 1983. Com a redemocratização do
país houve um processo inicial de justiça transicional, com julgamento e sentença a dos
agentes envolvidos. Entretanto, devido a uma série de levantes militares, o presidente Alfosin
foi obrigado a fazer concessões aos setores castrenses ao aprovar as leis da “Obediência
Devida” e do “Ponto Final”, as quais impediram que os julgamentos continuassem. O
desfecho dessas medidas se deu em 1990, no momento em que o presidente Carlos Menem
concedeu uma série de indultos que libertaram os militares que estavam presos (CUETO RUA,
2010, p. 168).
21
O Projeto Popular é o conjunto de bandeiras democráticas e populares da classe trabalhadora que
historicamente foram negadas pelas elites brasileiras; um programa político revolucionário que pauta mudanças
estruturais na sociedade, onde os protagonistas são as massas camponesas e operárias organizadas em busca de
uma pátria socialista. Essas bandeiras perpassam pela democratização dos meios de comunicação, a
universalização do acesso à educação em todos os níveis, redução da jornada de trabalho, reforma política,
defesa da nacionalização do petróleo e dos minérios, combate ao racismo, machismo e homofobia, saúde
universal de qualidade, dentre outras. Os cinco compromissos atuais do Projeto Popular são a Solidariedade, a
Soberania Popular, o Desenvolvimento, a Democracia Popular e a Sustentabilidade (CONSULTA POPULAR,
2011, p. 12).
34
É nesse contexto de impossibilidade de julgamentos aos agentes da repressão, que surge
em 1995 a organização H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el
Silencio), formada pelos filhos dos desaparecidos, perseguidos ou mortos pela ditadura,
resgatando a herança militante de seus pais na busca por Justiça. Eles, que à época das
atrocidades eram crianças, tornaram-se homens e mulheres, e fundiram-se com os esforços
dos que são classificados por BRITO e FERREIRA, para fins de mobilização, como gerações
de memória: a primeira composta pelas vítimas diretas do regime, os ex-presos e perseguidos
políticos; e a segunda geração de memória composta pelas famílias e amigos das vítimas dos
mortos e desaparecidos (2012, p. 9/10). Com o intento de promover a retomada dos
julgamentos e condenações, os H.I.J.O.S. ingressam na cena política buscando novas formas
de intervenção, articulando o artístico e o político, unindo-os ao popular, e dando corpo ao
que viria a ser conhecido como escrache.
A palavra escrache provém do dialeto lunfardo, e significa “por na luz o que está
oculto”, “fazer notório” (GRADEL, 2011, p. 291). A Academia Argentina de Letras lhe
atribuiu o seguinte teor: “denuncia popular en contra de personas acusadas de violaciones a
los derechos humanos o de corrupción, que se realiza mediante actos tales como sentadas,
cánticos, pintadas, frente a su domicilio particular o en lugares públicos” (URSI e
VERZERO, p. 9) – no Chile utiliza-se o termo funa para designar o escracho. Essas ações
coletivas foram organizadas inicialmente por pequenos grupos de 20 a 30 pessoas, que se
deslocavam anteriormente até os bairros dos torturadores para dialogar com a vizinhança e
explicitar o seu passado, convidando-os a participar do ato que aconteceria em breve. No dia
marcado, saiam em marcha com megafones em punho, alertando à vizinhança que naquela rua,
em determinado endereço, vivia tranquilamente um torturador. Ao chegar no local, ovos e
bexigas cheias de tinta vermelha eram arremessadas contra as paredes, como forma de
sinalização, apontando que aquele era o repouso do verdugo.
Ao revés das tradicionais marchas e protestos, esses escrachos voltavam uma atenção
especial à sua estética e detinham um caráter festivo, sendo acompanhados por murgas22
, e
intervenções artístico teatrais. Algumas dessas encenações estéticas representavam cenas do
cotidiano do bairro, onde, após a vizinhança conhecer a sua história, os comerciantes
deixavam de atender ao repressor e os vizinhos deixavam de lhe cumprimentar (CUETO RUA,
2010, p. 174). Outras reproduziam cenas de interrogatórios e torturas comuns nos quartéis e
delegacias. Um dos princípios dessas manifestações é o seu caráter público, pois ao agirem à
22
Manifestação cultural latino-americana de origem espanhola.
35
luz do dia e sem esconder seus rostos, distanciam-se do vandalismo e principalmente dos
militares, os quais promoviam suas ações na calada da noite e até hoje negam a maioria de
seus atos.
Foram realizados escrachos aos agentes mais famosos, como o próprio ditador Videla e
o assassino de Victor Jara no Chile,23
assim como aos de baixa patente, que em ambos os
casos continuavam a fazer parte das forças armadas dos países, de repartições públicas, ou
passaram a trabalhar em empresas de segurança privada. Com a reprodução em massa dos
escrachos, iniciou-se um processo de proteção aos alvos e até de repressão aos protestos, o
que fez com que o movimento tivesse que reinventar e incrementar as suas práticas. Alguns
integrantes do movimento começaram a realizar entrevistas com os moradores da vizinhança,
aplicando-lhes questionários que levavam a informações sobre a história do torturador que ali
vivia. Outra tática foi a de colocar cartazes em telefones públicos, escrito “ligue já”, com o
telefone e detalhes das sevícias do repressor, um mapa de sua casa, e uma bexiga para ser
carregada com tinta vermelha. Dessa forma, houve um incentivo para que os protagonistas das
ações passassem a ser os próprios vizinhos (URSI e VERZERO, p. 9/10).
Sem qualquer poder formal de coerção, essas ações remontam a uma espécie de justiça
participativa e coletiva, promovendo uma condenação moral/simbólica e disputando a
memória coletiva frente ao discurso hegemônico (SOARES e QUINALHA, 2013). Elas
surgem como uma resposta da sociedade civil frente à apatia ou aos entraves impostos pela
sociedade política. Porém, a insígnia “se não há justiça, há escracho popular” demonstra que a
centralidade e objetivo das ações não estão na condenação social, na promoção de uma justiça
paralela, mas sim, na pressão ao poder público pela investigação e julgamento dos repressores.
Percebe-se que em momentos de tensão social, em que a polarização entre as forças
conservadoras e progressistas se acirrou, uma maior quantidade de escrachos foi realizada,
expondo tanto para o poder público, como para a população em geral, a necessidade de uma
tomada de posição. Nas palavras de uma militante do H.I.J.O.S.-La Plata, “el objetivo de los
escraches estuvo cumplido con la anulación de las leyes de impunidad, lo cual fue mérito de
quienes militaron a favor de eso y no del Gobierno que lo promovió y ejecutó: la justicia no
es justicia si no tiene un impulso social” (CUETO RUA, 2010, p. 175). Assim, após a decisão
da Suprema Corte Argentina que reconheceu a inconstitucionalidade das “leis de impunidade”,
23
Victor Jara foi um cantor popular chileno que utilizava a música e o teatro para conscientizar as massas. Com a
eleição de Salvador Allende, Jara é nomeado embaixador cultural em 1971, e após o golpe encabeçado por
Augusto Pinochet, é preso, torturado e morto. O documentário La Funa de Victor Jara, de Nélida Ruiz e Cristian
Villablanca, retrata a sua história e detalha a ação de escracho ao seu algoz. Do mesmo modo, o documentário
Escrache a Videla 2006, de produção de La Comunitaria TV, capta a ação massiva de esculacho em frente à casa
do ditador argentino. Ambos os documentários estão disponíveis na internet.
36
e com a retomada dos julgamentos e prisões a partir de 2005, houve um esvaziamento da
necessidade dos escrachos e a sua consequente diminuição. Alguns ainda foram realizados
logo após a decisão da Corte, como forma de denuncia a agentes que permaneciam ocultos, e
de pressão pela celeridade dos atos processuais.
Alguns pesquisadores da justiça transicional têm dado ênfase ao estudo das ações
realizadas “por fora” das instituições oficiais, classificando esse tipo de manifestação como
uma forma de JT “desde baixo”24
. Elas emergem do seio da sociedade civil em forma de ação
e reivindicação, e cobram que a sociedade política a consolide enquanto lei, decreto ou
decisão judicial – o que Antonio Carlos Wolkmer classifica como pluralismo jurídico. Tendo
como marco teórico a participação popular insurgente, e independente do Estado em sentido
estrito, o pluralismo vem à tona quando as subjetividades participativas reinventam, por meio
de suas práticas cotidianas, a esfera da vida pública (WOLKMER, 2001, p. 168).
Como historicamente as leis foram impostas de cima para baixo pelas elites, e como a
democracia representativa domestica a população no sentido de atribuir à sociedade política a
unicidade do poder decisório, apreende-se o desconforto e até o rechaço a esses tipos de ações
encabeçadas pelos movimentos sociais – principalmente devido ao movimento de
criminalização às manifestações populares, encabeçado pela mídia hegemônica e pelo poder
judiciário. Por vezes as vítimas se tornam algozes, o debate entre legalidade, legitimidade e
moralidade se entrelaçam, os limites do Estado Democrático de Direito são dilatados, e por
vezes até rompidos. Mas essa irrupção encontra albergue nos próprios marcos jurídicos atuais,
marcadamente no direito fundamental de resistência. Afinal, não seria o direito ao protesto um
direito humano de primeira dimensão? Não seria um direito civil, de liberdade, em que o
titular é o próprio indivíduo em oposição ao Estado déspota?
Para Herrera Flores os Direitos Humanos já são, em si, uma “racionalidade de
resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta
pela dignidade humana” (apud PIOVESAN, 2006, p. 8). Acolhido pela Constituição Federal
Brasileira, o direito ao protesto decorre dos direitos constitucionais de liberdade de expressão
(art. 5º IX da CF), direito de reunião (art. 5º XVI da CF), e de liberdade de manifestação de
pensamento (art. 5º IV da CF), sendo caracterizado como um instrumento contra as distorções
da democracia representativa e a dificuldade de acesso aos meios de comunicação no
24
Como exemplo de JT “desde baixo” no Brasil pode-se citar, dentre outros, o trabalho iniciado e desenvolvido
pela CFMDP ainda no período ditatorial, na busca por notícias dos desaparecidos, bem como por seus corpos.
Ademais, há o Projeto Brasil Nunca Mais, que analisou depoimentos prestados à Justiça Militar Brasileira e
recuperou a história das torturas, dos assassinatos de presos políticos, das perseguições policiais e dos
julgamentos tendenciosos, a partir dos próprios documentos oficiais.
37
capitalismo. Trata-se, pois, de uma ação coletiva de reivindicação e de controle do poder
(FERNANDES, 2009, p. 272). Os escrachos também podem ser classificados como atos de
desobediência civil. Esses ocorrem quando a população se convence de que os canais normais
para a mudança já não funcionam, e passam a contestar situações que embora sejam legais,
são ilegítimas.
Algumas críticas de viés democrático e humanista têm questionado a legitimidade dos
escrachos e o seu aceite pela sociedade, compreendendo que há um total desrespeito ao
princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos à honra e à intimidade, atribuindo-lhes
a pecha de execração pública de seres humanos (RODRIGUES, I, 2012). Devido ao seu
caráter radical e até agressivo, por vezes chegou-se a comparar um escracho a um
linchamento, haja vista a inferioridade numérica da vítima e a usurpação do poder punitivo do
Estado, instaurando-se a justiça privada e a vingança social. Para iniciar esse debate é
importante relembrar o poeta alemão Bertold Brecht, para quem “do rio que tudo arrasta, diz-
se que é violento, mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem”. Diferente
dos linchamentos, os escrachos não partem do espontaneísmo das emoções exaltadas, mas sim
de um planejamento coletivo em que o objetivo principal não é a rotulação do alvo, mas sim a
criação de um fato político que incida na correlação de forças. Ademais, não há qualquer
agressão física ou o assassinato durante os escrachos, o que é uma realidade constante dos
linchamentos. Neste tipo de celeuma o confronto não é entre os indivíduos (vítimas e
familiares vs. torturadores), mas sim entre a coletividade social e o Estado coercitivo.
Em todas as situações de impunidade, o que existe é uma continuidade da violência e do
legado autoritário deixado pelos regimes, e o desrespeito por parte desses Estados às normas
internacionais que preconizam a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade. Como
aduzem SOARES e QUINALHA, trata-se um recurso extremo, mas democrático e legítimo,
especialmente porque rompe com a cultura do silêncio e do esquecimento (2013) e impulsiona
a cultura do nunca mais – “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. A
partir do momento em que o Estado desrespeita as próprias regras que ele impõe, cabe à
população encontrar meios de enfrentamento e resistência, o que por vezes acaba por entrar
em conflito com outros princípios democráticos e constitucionais. Dois exemplos que ilustram
esses embates são os conflitos pela terra, e pela redução de tarifas de ônibus. No primeiro,
enquanto os sem-terra ou sem-teto violam o direito constitucional à propriedade, reivindicam
o direito constitucional da função social da propriedade; no segundo enquanto os
manifestantes bloqueiam o trânsito, violam o direito constitucional de ir e vir dos transeuntes,
38
mas ao mesmo tempo reivindicam para si e para a totalidade da população o mesmo direito de
ir e vir, pois com a elevação das tarifas esse direito lhe é retirado ou diminuído.
Essas práticas cotidianas dos Movimentos Sociais definem, nos horizontes do que a
ordem legal vigente chama de “ilegalidade”, novo espaço instituinte de cujas
relações e rupturas, calcadas no binômio “legal/ilegal” emergem direitos igualmente
reconhecidos que acabam não só legitimando a “ilegalidade”, mas edificando “outro
Direito” sob novas formas de legitimação (WOLKMER, 2001, p. 107).
2.3 Porque se falar em escrachos no Brasil?
Para compreender a repercussão que os esculachos alcançaram nacionalmente, faz-se
mister analisar o contexto político em que o país vivia nos meses que lhes antecederam.
Durante décadas, o Clube Militar promoveu cerimônias de comemoração da “Revolução de
1964”, homenageando os integrantes das FFAA da época por “impedirem a tomada do poder”,
e, a consequente imersão do país em uma “república sindicalista”. A comemoração da
“revolução” se configura enquanto disputa ideológica pela significação do passado, e uma
demarcação da posição do não arrependimento frente às iniciativas adotadas à época. Nesse
esforço de disputa da memória coletiva os militares intervencionistas sempre foram muito
preparados. Em 1978, por exemplo, no auge da campanha pela anistia, entidades opositoras
convocaram para 28 de março uma comemoração nacional em reverência aos 10 anos da
morte de Edson Luís. Imediatamente, como forma de tirar a atenção do ato e promover a
disputa ideológica, os comandos do Exército convocaram uma marcha paralela para lembrar
as “vítimas do terrorismo e da subversão” (MARTINS, 1978, p. 133).
No ano de 2011, primeiro do mandato da presidenta Dilma, o “31 de março” foi retirado
do calendário oficial do exército, provocando desconforto e revolta em alguns setores das
FFAA.25
A lei da CNV havia sido promulgada em novembro de 2011, o Ministério Público
Federal oferecia denúncia e reabria alguns inquéritos contra agentes da repressão, e Nelson
Jobim acabava de entregar carta de demissão do Ministério da Defesa, com a consequente
nomeação do civil Celso Amorim para o cargo. Nesse clima de tensão, em 16 de fevereiro de
2012, os clubes da Marinha, Exército e Aeronáutica assinaram um documento intitulado
“Compromissos...”26
, em que faziam duras críticas ao governo, e a declarações dadas por
25
Para alguns, parece que o debate sobre a comemoração do golpe é algo inócuo, e cercear essas manifestações
seria inclusive um desrespeito à liberdade de expressão. Para promover a reflexão sobre a lide, lança-se então a
seguinte provocação: qual seria a recepção da sociedade alemã e mundial se os remanescentes do partido nazista
passassem a comemorar os feitos do regime de Hitler? 26
Anexo I.
39
duas Ministras que afirmaram ser a favor da revisão da Lei de Anistia. Por ordem do Ministro
da Defesa, o documento foi retirado do site dos clubes, levando a uma nova reação, qual seja,
um novo manifesto assinado por generais e coronéis da reserva intitulado “Alerta à Nação:
Eles que venham. Por aqui não passarão!”27
. Esse, reafirmava a validade do outro manifesto,
caracterizava a CNV como revanchista e não reconhecia a autoridade e legitimidade do
Ministro para tal ato. Em seguida, o Clube adiantou a cerimônia de comemoração para o dia
29 de março, desrespeitando a proibição expressa da Presidência da República.28
Atento a esse contexto, o Levante decidiu intervir na celeuma de modo a afirmar a
posição de repúdio ao período ditatorial, pressionar o governo no sentido da urgente
instauração da CNV, cobrar a localização e identificação dos restos mortais de desaparecidos
políticos, e exigir que os torturadores fossem julgados e punidos. Distintamente do H.I.J.O.S.,
o Levante não trazia em sua base social atores de primeira ou segunda geração de memória,
mas sim o que BRITO e FERREIRA caracterizam, como uma terceira geração. Esta é
“composta por jovens que não possuem ligação direta com o período, sendo muitos destes
nascidos no período da redemocratização, mas que além de apoiar as causas das duas gerações
citadas, reivindicam essa memória” como um direito coletivo (2012, p. 9/10).
Inspirado nas máximas de Carlos Marighella “é preciso passar à ação”, e, “a ação é
que faz a organização”, o grupo se organizou de forma secreta e meticulosa, elegendo em
cada cidade grupos de três a sete pessoas que foram responsáveis por identificar o alvo, seu
endereço, pesquisar a sua atuação durante o regime, e preparar o protesto. Até horas antes da
ação, a maioria dos participantes não sabia quem seria o escrachado ou o seu endereço, sendo
o modo que o movimento encontrou para evitar que as informações vazassem. Além disso,
para furar o bloqueio da mídia hegemônica, foi montado todo um esquema de pulverização de
informações através da mídia alternativa (como o jornal Brasil de Fato e blogs progressistas) e
da das redes sociais virtuais, fazendo com que ao final do dia, as matérias e vídeos divulgados
alcançassem milhares de receptores.
2.4 Os escrachos in loco
27
Anexo II. 28
Como contraponto a essa sessão de comemoração do golpe, partidos políticos de esquerda, movimentos de
Direitos Humanos, familiares e vítimas da ditadura organizaram um protesto em frente ao Clube Militar no Rio
de Janeiro-RJ. A polícia foi acionada, e como nos anos de chumbo, reprimiu a manifestação, utilizando gás de
pimenta e bombas de efeito moral. Para fins metodológicos essa ação não será elencada como objeto da pesquisa,
pois apesar de alguns integrantes do Levante estarem presentes, e os militares lhe atribuírem a autoria, há uma
diferença do caráter e objetivo desse protesto.
40
Nesse momento da pesquisa, como fora explicitado em seus objetivos, serão listados
todos os escrachos realizados pelo Levante no ano de 2012 – apesar de também terem
ocorrido ações semelhantes sem a participação do Levante. Todas as ações que serão
elencadas foram encabeçadas, ou contaram com a participação ativa do Levante, mas em
grande parte delas houve também a participação de outras entidades ou movimentos, que
serão pormenorizados a cada relato. Vale salientar que mesmo com todo esse envolvimento de
outras organizações, devido ao critério da novidade e da radicalidade, o Levante no Brasil,
assim como o H.I.J.O.S. na Argentina, acabou ficando conhecido como a juventude dos
escrachos, sendo essa uma de suas marcas distintivas.29
Todas as informações sobre as ações, nomes dos acusados de tortura e as fontes
históricas listadas daqui por diante foram catalogadas no site do movimento30
, e havendo
outras referências bibliográficas consultadas, essas serão devidamente citadas.
2.4.1 - Primeira rodada nacional de escrachos: 26 de março. Nove ações em oito estados
29
Ao longo do ano de 2012 o Levante ainda promoveu escrachos relacionados a outras temáticas sociais. O
primeiro deles, em parceria com a Rede Dois de Outubro, aconteceu em frente à casa de Luiz Antonio Fleury
Filho, governador de São Paulo à época do massacre do Carandiru. Fleury, no dia 2 de outubro de 1992,
autorizou a invasão da polícia no pavilhão 9, que munida com metralhadoras, fuzis e pistolas agiu visando
principalmente tórax e cabeça, em uma ação que resultou na morte de pelo menos 111 detentos. Entre os
envolvidos na chacina apenas o coronel Ubiratan, comandante da ação, foi a julgamento, sendo condenado a uma
pena de 632 anos em regime fechado. Como tratava-se de réu primário com endereço fixo, foi-lhe concedido o
direito de recorrer em liberdade; anos mais tarde a sua sentença foi anulada e o coronel se elegeu deputado
estadual. (FRANCISCO NETO, 2012).
Um segundo escracho aconteceu no dia 16 de outubro e reuniu cerca de 100 pessoas na cidade de Guarajuba
(BA), sendo capitaneado pela Marcha Mundial de Mulheres – que também possui várias militantes do Levante
em sua base. O alvo foi o vocalista da banda de pagode New Hit, Eduardo Martins, que é acusado ao lado de
mais oito integrantes da banda, de terem estuprado duas adolescentes após um de seus shows – o laudo pericial
encontrou sêmen nas roupas e corpos das garotas e confirmou a prática de estupro (G1 BA, 2012). Após 38 dias
presos, um habeas corpus foi concedido e a banda voltou a realizar shows, se tornando inclusive mais famosa
após o caso, passando a percorrer todo o país. Frente a essa situação, a Marcha Mundial de Mulheres e o Levante
passaram a fazer atos de denúncia em todas as cidades em que a banda se apresentou e os movimentos estão
organizados. Durante a primeira audiência de instrução e julgamento, o movimento montou acampamento e
promoveu uma série de manifestações na cidade de Ruy Barbosa-BA, e tem mobilizado ainda mais mulheres
para a audiência em que ocorrerão os interrogatórios, em setembro de 2013.
Também no mês de outubro (dia 23), e também na Bahia (cidade de Salvador), aproximadamente 200 jovens do
Levante e de coletivos estudantis promoveram um escracho à Rede Bahia de Televisão, afiliada da Rede Globo
no estado. Em plena disputa do segundo turno eleitoral, o movimento denunciou que a emissora, pertencente à
família Magalhães, possui vínculos diretos com o que resta da ditadura no Brasil, tendo sido beneficiária de
concessões obtidas quando Antônio Carlos Magalhães fora Ministro das Comunicações. Para comprovar essas
ligações, um histórico do partido Democratas foi delineado, sendo este descendente do PFL, que por sua vez,
adveio do PDS, que nada mais foi do que a conversão da ARENA no momento da redemocratização do país. A
Rede Bahia detém 114 emissoras de rádio e sete de televisão aberta, e é considerada um dos maiores
conglomerados de mídia do nordeste do Brasil (FERNANDES, 2012). 30
<www.levante.org.br.>. Acesso em 20 de maio de 2013.
41
a) Em Porto Alegre-RS, aproximadamente 100 jovens se manifestaram na Rua
Casemiro de Abreu, nº 619, em frente à casa do Coronel Carlos Alberto Ponzi, ex-chefe do
Serviço Nacional de Informações de Porto Alegre e um dos 13 brasileiros acusados pela
Justiça Italiana pelo desaparecimento de Lorenzo Ismael Viñas, em Uruguaina.
b) Em Curitiba-PR, o ato aconteceu na Boca Maldita, centro da capital paranaense, em
conjunto com sindicalistas e entidades de Direitos Humanos. Lá foram denunciados agentes
apontados como torturadores por documentos do Grupo Tortura Nunca Mais, tais como o
Major Lins Zuerzee, Capitão Fernando José Vasconcellos Krueger, Delegado Ozais
Algauer e o Tenente Paulo Avelino Reis. Também foram recordadas e exaltadas a história de
vida de Helenira Resende (militante do PC do B assassinada no Araguaia) e de Maria Aurora
do Nascimento Furtado (militante da ALN, torturada até a morte).
c) Em São Paulo-SP, o protesto foi contra o torturador David dos Santos Araújo, o
Capitão “Lisboa”, em frente à sua empresa de segurança privada DACALA, que fica na Av.
Vereador José Diniz, n 3700, Zona Sul da cidade. David, delegado aposentado do DOI-Codi,
foi escrachado por cerca de 150 pessoas, entre jovens do Levante, vítimas ainda vivas do
torturador, e familiares de vítimas. Consta do livro produzido pela CFMDP, Dossiê Ditadura,
que o ex-delegado torturou Joaquim Seixas e seu filho Ivan frente a frente, além de abusar
sexualmente de Ieda Seixas. Em São Carlos-SP, interior do estado, foram realizadas colagens
de cartazes e pichações durante a madrugada com as frases “Levante contra a Tortura” e
“Levante pela Verdade”.
d) No Rio de Janeiro-RJ, o Levante foi à filial da DACALA e denunciou o passado e
presente do seu proprietário, David dos Santos Araújo31
, ao mesmo tempo em que afixou
uma faixa nos Arcos da Lapa (cartão postal da cidade) em que constava a frase “Levante-se
contra a Tortura: Em defesa da Comissão da Verdade”.
e) Em Belo Horizonte-MG, o escracho foi feito na rua Biagio Polizzi, nº 240, apto 302,
bairro da Graça. Cerca de 70 pessoas se manifestaram em frente ao prédio onde mora
Ariovaldo da Hora e Silva, delegado da Polícia Civil que exerceu atividades no DOPS entre
1969 e 1971. Consta no Projeto BNM que Jaime de Almeida, Afonso Celso Lana Leite,
Cecílio Emigdio Saturnino, Nilo Sérgio Menezes Macedo e João Lucas Alves foram vítimas
de Ariovaldo.
31
Mesmo com as dificuldades para se obter porte e adquirir armas de fogo no Brasil, de acordo com investigação
da Polícia Federal, David possui 111 armas ilegais, além de um arsenal de 800 registradas de forma regular em
nome de sua empresa de segurança privada. Informação disponível em: <http://levante.org.br/esculacho-em-sp-
e-contra-torturador-dono-de-empresa-de-seguranca-sinistra/>. Acesso em 20 de maio de 2013.
42
f) Em Aracaju-SE, o ato aconteceu em frente ao Hospital e Maternidade Santa Isabel, e
a denuncia foi contra o médico e diretor do hospital, Dr. José Carlos Pinheiro. Os jovens
denunciaram que Pinheiro teria auxiliado os trabalhos dos torturadores do 28° Batalhão de
Caçadores (centro onde eram realizadas as torturas em Sergipe), reanimando os militantes que
desmaiavam durante as sessões, e alertando os torturadores até onde poderiam ir sem
provocar a morte das vítimas.
g) O esculacho de José Armando Costa, ex-delegado da Polícia Federal, aconteceu em
frente ao seu escritório de advocacia (Rua João Carvalho, nº 310, bairro da Aldeota,
Fortaleza-CE). Durante o momento de reunião dos jovens, os filhos e funcionários de “Dr.
Armando” saíram do escritório Armando Costa Advogados Associados e tentaram impedir a
manifestação, chegando a agredir os jovens, contudo, não houve feridos. Está registrado no
Projeto BNM que ele inquiria os acusados logo após as sessões de tortura, além de coagi-los a
assinar falsos depoimentos, sob ameaça. O ato também contou com a participação da UNE, do
Coletivo Aparecidos Políticos e do Sindicato dos Gráficos do estado.
h) Em Belém-PA a ação aconteceu em frente ao prédio Visconde, onde reside Adriano
Bessa Ferreira, que prestou serviço militar e também fez carreira no setor financeiro,
chegando a ser presidente do Banco do Estado do Amazonas e da Agência de
Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belém. Seu nome consta de listas da extinta
Comissão Geral de Investigações, e sua atuação se perfazia na delação dos militantes da
oposição, a partir das informações privilegiadas que obtinha por meio de sua influência na alta
sociedade paraense.
43
Figura 3: Escracho em frente à casa do Coronel Carlos Alberto Ponzi, em Porto Alegre-RS. Fonte:
<www.levante.org.br>.
Para essa primeira rodada também estava previsto um escracho na Bahia, todavia,
devido à não confirmação da identidade do agente, a ação foi abortada. Em todas as ações, o
modus operandi perpassou pelos elementos básicos da agit-prop, havendo a comunicação com
a vizinhança através de panfletos, faixas, músicas e encenações teatrais que relembravam as
torturas com choques elétricos, pau-de-arara e afogamentos. Muros e calçadas foram pichados
e cartazes foram colados pelos bairros, denunciando onde viviam ou trabalhavam os agentes
do regime.
Em quase todas as manifestações estiveram presentes familiares de vítimas ou as
próprias vítimas, compartilhando suas experiências, pormenorizando as sevícias, e
parabenizando os jovens por assumirem essa luta que não era somente dos familiares, mas sim
de toda a nação. Em tempo real, o movimento divulgou vídeos pela internet e circulou o
Manifesto Levante Contra a Tortura32
, com o qual explicitou os motivos de ter tomados as
ruas para denunciar os torturadores, além de afirmar o seu compromisso em defesa da CNV.
Em seguida o Levante lançou a campanha virtual Levante pela Verdade, na qual convocava os
jovens de todo o Brasil a se manifestarem na data da comemoração do golpe das seguintes
maneiras: I) mandando um email para a presidenta Dilma exigindo a instalação imediata da
32
Anexo III.
44
CNV; II) tirando uma foto com uma folha escrita “Levante pela Verdade” e compartilhando
por e-mails e redes sociais; III) utilizando a hastag #LevantepelaVerdade na rede social
Twitter; IV) colando cartazes e pichando muros pelas ruas de suas cidades, defendendo e
exigindo a instalação da CNV.
2.4.2 - Escracho a Harry Shibata
Menos de quinze dias após a primeira rodada de escrachos, o movimento demonstrou
coragem e comprometimento com a causa, e realizou, na cidade de São Paulo-SP, mais um
escracho. Essa ação marcou a conformação de uma aliança ampla, que envolveu diversos
setores para além do Levante, criando a Frente do Escracho Popular, que ao longo do ano de
2012 e 2013 realizou outros esculachos. Na madrugada de 7 de abril, dia do Médico Legista e
o dia do Jornalista, cartazes foram colados em postes e muros com a denúncia de que na rua
Zapara, nº 81, bairro Vila Madalena, vivia o médico legista Harry Shibata, colaborador da
ditadura que atestava laudos necroscópicos falsos para acobertar as torturas e sevícias do
regime. Dentre os casos mais conhecidos estão os de Sonia Maria de Moraes Angel Jones, que
foi estuprada com um cassetete e teve seus seios arrancados, e o do jornalista Vladimir
Herzog, que compareceu espontaneamente ao DOI-Codi para prestar depoimento e foi preso e
torturado até a morte – em seus laudos, Shibata confirmou as versões oficiais de morte em
tiroteio e suicídio, respectivamente. O legista foi diretor do Instituto Médico Legal entre 1976
e 1983, e teve seu registro profissional cassado pelo Conselho Federal de Medicina após as
denúncias de sua atuação. “Atualmente, Shibata está sendo processado pelo Ministério
Público Federal juntamente com outras quatro autoridades da época pelo crime de ocultação
de cadáver” (AZENHA, 2012).
2.4.3 - Esculacho no STF
12 de abril, às vésperas do julgamento de recurso que questionou a validade da lei de
anistia para os crimes permanentes, fora convocada por entidades de Direitos Humanos uma
mobilização nacional em Brasília. O Levante participou desse momento, deslocando
militantes de todo o país para a ação e promovendo um esculacho em frente ao STF.
Representando cenas de tortura em pau-de-arara, o movimento manteve as suas características
de ousadia, e enfrentamento à impunidade dos torturadores.
45
2.4.4 - O museu da repressão
No dia 5 de maio, durante a Semana Nacional de Lutas pela Verdade, Memória e Justiça,
foi promovida uma ação que contou com aproximadamente 150 militantes do Coletivo RJ,
Comitê pela Justiça, Verdade e Memória de Niterói, Consulta Popular, DCE UNIRIO, Frente
pela Memória, Verdade e Justiça, Levante Popular da Juventude, PCB, PC do B, Rede
Democrática, União Estadual dos Estudantes e União da Juventude Socialista. O ato
aconteceu na antiga sede do DOPS-RJ, atual Museu da Polícia Civil, e contou com a
colaboração do Centro de Teatro do Oprimido, o que possibilitou uma maior interação com a
população que circulava pelo local. Um dos enfoques do ato foi a exigência de apuração das
declarações dadas pelo ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, de que 10 militantes
oposicionistas haviam sido incinerados na usina Cambahyuba em Campos dos Goytacazes-
RJ.33
2.4.5 - Segunda rodada nacional de escrachos: 14 de maio. Catorze ações em onze estados
No dia 10 de maio foram nomeados os integrantes da CNV, e o dia 16 foi designado
para a sua instalação oficial. Como forma de evidenciar mais ainda esse acontecimento,
reafirmar o seu apoio e defesa à CNV, e colocar em cheque quaisquer possíveis manifestações
dos setores castrenses, o Levante promoveu no dia 14 a segunda rodada nacional de escrachos.
Ao final da rodada um vídeo foi lançado com as fichas de cada alvo34
, contendo seu nome,
acusação, endereço e situação (impune, esculachado em 14/05/2012) – por fim um efeito
visual atestava a marca “encontrado”.
a) Em Belém do Pará, a atividade que reuniu cerca de 50 jovens, aconteceu em
frente ao prédio da Receita Federal, local de trabalho de Magno José Borges e Armando
Souza Dias. Ambos estiveram ligados ao DOI-Codi no período ditatorial, tendo atuado na
33
A violência continua sendo uma realidade nesse local. Em novembro de 2012 duzentas famílias organizadas
pelo MST ocuparam o complexo da usina, que já foi considerado improdutivo pelo INCRA. Em janeiro de 2013
o militante Cícero Guedes dos Santos, que coordenava a ocupação, foi assassinado pela violência do latifúndio –
resquício direto da truculência da ditadura. 34
O vídeo #Levantecontratortura - 2ª rodada nacional de esculachos - Levante Popular da Juventude já
alcançou mais de 11 mil visualizações e está disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=jf_9AaTywVM#at=31>. Acesso em 7 de junho
de 2013.
46
repressão à Guerrilha do Araguaia, e hoje trabalham na ABIN - Agencia Brasileira de
Inteligência.
b) Cerca de 80 militantes promoveram uma ação em frente à antiga sede da Polícia
Federal em Fortaleza-CE. Esse local, no qual hoje funciona a Secretaria de Cultura de
Fortaleza, funcionou como um centro de tortura do regime onde diversos opositores foram
presos, torturados e mortos. Durante a manifestação, fora apresentado para a Prefeitura
Municipal de Fortaleza um conjunto de reivindicações como a mudança dos nomes de ruas,
praças e instituições municipais que homenageiam agentes do regime; o tombamento da
antiga casa de Frei Tito de Alencar; e a criação de um comitê municipal pelo direito à
memória, à verdade e à justiça com representação da sociedade civil e do poder público.
c) Em Natal-RN o ato teve o caráter de homenagem aos perseguidos e mortos
políticos do estado, como Edson Neves, Emanuel Bezerra, Anátalia Alves e José Silton
Pinheiro. Os militantes realizaram a manifestação no Palácio dos Esportes, que leva o nome
de Djalma Maranhão, militante comunista perseguido pelo regime, que morreu no exílio em
1971 em terras uruguaias.
d) Em João Pessoa-PB o ato foi de resgate da memória e diálogo com os estudantes
da Universidade Federal da Paraíba e da Escola Estadual Presidente Medici. Empunhando
faixas e cartazes que reivindicavam a abertura dos arquivos da ditadura, o Levante promoveu
um debate com a presença de ex-presos políticos, e iniciou um debate com a direção da escola
para a proposição de um projeto que vise a mudança do nome da instituição.
e) O escracho realizado em Recife-PE teve como alvo o desembargador aposentado
Aquino de Farias Reis, ex-delegado do DOPS de Pernambuco. A ação aconteceu em frente
ao Condomínio Ilha do Retiro, Av. Beira Rio, nº 240, onde fica sua residência. Aquino atuou
como delegado plantonista nos dias em que o estudante de agronomia Odijas Carvalho esteve
preso, passando por seis dias de tortura até ser morto, no ano de 1971.
f) Repetindo a denúncia da 1ª rodada, em Aracaju-SE o esculacho foi contra o Dr.
José Carlos Pinheiro, diretor do Hospital e Maternidade Santa Isabel. A função do médico
era “diagnosticar” a saúde dos homens e mulheres torturados para determinar se eles
aguentariam ou não mais atos de violência. Nessa rodada, uma enorme pintura em estilo
grafite foi produzida em frente ao seu local de trabalho, e em seguida os militantes se
deslocaram até o centro da cidade para distribuírem panfletos e dialogarem com a sociedade
sergipana.
47
Figura 4: Grafite feito pelos militantes do Levante em frente ao Hospital e Maternidade Santa Isabel durante o
escracho do Dr. Carlos Pinheiro. Fonte: <www.levantepopulardajuventudese.blogspot.com>.
g) Em Salvador-BA, cerca de 150 jovens da capital e das cidades de Cruz das Almas
e Feira de Santana promoveram uma ação em frente à Associação de Karatê da Bahia
(ASKABA), localizada no bairro do Costa Azul. Ali trabalha o ex-cabo do exército, Dalmar
Caribé, que durante a repressão utilizava da arte marcial para torturar os presos políticos.
Participou de sessões de tortura de Theodomiro Romeiro, militante do Partido Comunista
Revolucionário Brasileiro, e junto com o major Nilton Cerqueira foi responsável pelos
assassinatos de Carlos Lamarca e Zequinha Barreto na região de Brotas de Macaúbas. Filiado
ao PRTB, em 2008 Dalmar concorreu ao cargo de vereador na cidade de Belmonte-BA, onde
já foi Secretário de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente.
h) Na cidade de Teófilo Otoni-MG, aproximadamente 40 manifestantes se
encontraram em frente à antiga cadeia da cidade e ao Tiro de Guerra do Exército, para, em
marcha, relembrar a história de Nelson José de Almeida, militante da COLINA morto no
município. Faixas foram afixadas na cidade escrachando o responsável pela sua prisão, tortura
e morte, o ex-tenente Murilo Augusto de Assis Toledo, à época agente do DOPS-MG. Na
capital Belo Horizonte o alvo da primeira rodada nacional foi o torturador de João Lucas
Alves, o delegado Ariovaldo da Hora e Silva. Desta vez as atenções se voltaram para o
48
médico-legista João Bosco Nacif da Silva, que atestou o suicídio daquele35
. Às sete horas da
manhã, uma quantidade em torno de 100 jovens se dirigiu até a casa do legista para denunciá-
lo ao som de cânticos como “bom dia João Bosco como vai? Nós faremos o possível pra tirar
o seu sossego, bom dia João Bosco como vai?”. Após cerca de 40 minutos, o senhor de
cabelos brancos se dirigiu até os manifestantes tentando impedi-los de continuarem; como não
obteve sucesso, acabou por se descontrolar e agrediu alguns dos presentes. Para evitar maiores
desconfortos, os jovens se retiraram do local. Ninguém saiu ferido.
i) Na casa nº 218 da Rua Marques de Abrantes, bairro Flamengo, Zona Sul do Rio
de Janeiro-RJ, 50 integrantes do Levante escracharam o general da reserva José Antônio
Nogueira Belham. Durante o período ditatorial ele foi chefe do DOI-Codi do Rio, e de
acordo com o livro A Ditadura Escancarada, de Elio Gaspari, dentre outras ações cometidas
em sua repartição, está a tortura e morte do ex-deputado Rubens Paiva.
j) O que causa o impacto durante as rodadas não são as ações isoladas, mas sim o
conjunto da obra. Porém o esculacho realizado na cidade do Guarujá-SP acabou por atrair
para si uma maior atenção e ter maior repercussão na mídia. Cerca de 100 manifestantes
foram até a Rua Tereza Moura, nº 36, denunciar que, no apartamento 23-a, vivia o Tenente-
Coronel reformado Maurício Lopes Lima, reconhecido pela presidenta Dilma Rousseff
como seu torturador. Em um depoimento prestado à Justiça Militar na década de 70, bem
como em uma entrevista no ano de 2003, a ex-militante da VAR-Palmares afirmou que o
coronel Maurício esteve presente em suas sessões de tortura – nesse período ele foi orientador
de interrogatórios da Operação Bandeirante e chefe do DOI-Codi. De acordo com o Projeto
BNM e outras fontes históricas, também passaram pelas mãos do repressor o frade
dominicano Frei Tito e o fundador da ALN, Virgílio Gomes da Silva. Interessante a passagem
que ocorreu ao final do protesto, quando o grupo já se preparava para voltar à capital paulista,
momento em que duas viaturas da Polícia Militar abordaram os jovens para compreenderem
do que se tratava o ato. Em determinado momento um dos policiais pergunta se os
manifestantes encaminharam ofício à polícia, como forma inclusive de assegurar o direito
constitucional de manifestação. A resposta de um dos manifestantes é intrépida: “Não! Como
a ditadura não mandava ofício, a gente, nos protestos, também não manda; porque aí ele vai
ser avisado e vai embora” (RODRIGUES, R, 2012).
35
O laudo requerido e realizado a posteriori indicou uma série de marcas de tortura, unhas arrancadas, mas
nenhum indício de suicídio por enforcamento. O nome de João Bosco é um dos que consta no Projeto BNM
como médicos que apoiaram o regime e auxiliaram nos processos de tortura e seu encobrimento.
49
k) Em Porto Alegre-RS os manifestantes identificaram a primeira sede do DOPS,
conhecido como “dopinho”, e promoveram um ato que contou inclusive com a presença do
ex-governador do estado, Olivio Dutra. Nas cidades de São Borja e Santa Maria, interior do
estado, ocorreram colagens de cartazes com os dizeres “ONDE ESTÃO OS TORTURADORES?
NEM ESQUECIDOS, NEM PERDOADOS! LEVANTE PELA VERDADE!”. Um fator
importante é que a cidade de Santa Maria possui o segundo maior contingente militar do
Brasil, e ao promover esse tipo de ação nesta cidade realiza-se uma disputa ideológica direta
frente às novas gerações de militares.
Figura 5: Representação de tortura no pau-de-arara durante um dos esculachos. Fonte: <www.levante.org.br>.
2.4.6 - Mega-escracho durante a Rio+20
O maior escracho do ano aconteceu em 19 de junho durante a Cúpula dos Povos, evento
paralelo à Rio+2036
, e reuniu cerca de 2 mil pessoas. O ato já estava sendo organizado desde
36
Conferência da ONU sobre o desenvolvimento sustentável, que aconteceu 20 anos após a Eco92, também no
Rio de Janeiro (Rio 92+ 20). Nesse evento, entre 13 a 22 de junho de 2012, estiveram presentes diplomatas e
chefes de nações, para discutirem a situação ecológica do mundo e acordar um pacto de preservação ambiental.
Em paralelo a esse evento ocorreu a Cúpula dos Povos, uma forma de denúncia ao teatro montado pelas grandes
multinacionais e governos que já trouxeram uma proposta pronta e que tende a não sair do papel – assim como
50
maio pelo Levante, Articulação Nacional pela Memória, Verdade e Justiça e pela Via
Campesina. A vídeo-chamada gravada pelo cineasta Silvio Tendler convidava as pessoas a se
concentrarem em um ponto marcado, mas não revelava maiores informações sobre quem seria
o esculachado ou o endereço de seu domicílio. A grande massa, composta ainda por
integrantes da Marcha Mundial das Mulheres, Consulta Popular, UNE, MST, MPA, Tortura
Nunca Mais, Movimento Camponês Popular, PSOL, PCB e PCR, seguiu em direção ao prédio
onde reside Dulene Aleixo Garcez dos Reis, capitão da Infantaria do Exército em 1970 – Rua
Lauro Muller, prédio nº 96, apto 1409. Embora mantivesse o seu caráter pacífico, o protesto
foi acompanhado de perto pela Tropa de Choque, com “Caveirão”, armas sônicas e até
helicópteros – a aproximação do prédio também foi restringida pela polícia até determinado
perímetro. Dulene participou da tortura de Cid de Queiróz Benjamin e Mario Alves, e em
maio de 2013, o MPF do Rio ofereceu denúncia contra ele pelo crime de sequestro
qualificado de Mario Alves, cumulado com o pedido de cancelamento de seus proventos,
retirada de suas medalhas e condecorações, além do pagamento de indenização às famílias das
vítimas.
2.4.7 - Escracho ao presidente da CBF
No início do mês de novembro, listas de e-mails, blogs e redes virtuais circularam a
convocação de mais um escracho, assinado pela Articulação Estadual pela Memória, Verdade
e Justiça de São Paulo. Diferentemente das outras ocasiões, não havia segredo com relação à
data (11 de novembro) e ao alvo, o ex-deputado da ARENA e atual presidente da
Confederação Brasileira de Futebol, José Maria Marin. Os manifestantes se dirigiram até o
seu condomínio, que fica na Rua Padre João Manoel, nº 493, em São Paulo-SP. Ao som de
cantigas como “olha a cabeleira do Zezé. Será que ele é? Dedo-duro!”, eles denunciaram aos
vizinhos o passado dessa figura, que representa o Brasil em diversos eventos internacionais.
Marin, que viria a ser vice-governador biônico de Paulo Maluf, foi apontado pelo grupo como
um dos delatores da ditadura, e responsável pela morte de Vladimir Herzog. Em um discurso
proferido no Congresso Nacional37
, Marin exigiu a intervenção estatal na TV Cultura “para
as resoluções de 92. A Cúpula reuniu indígenas, ambientalistas, movimentos estudantis, de luta pela terra e
moradia, camponeses, quilombolas, sindicatos, pastorais, partidos políticos, ONG‟s, movimentos de negritude,
de diversidade e de mulheres. Para além das denúncias, o seu objetivo foi de articulação entre a crítica e a ação,
permitindo a inclusão das pautas ambientais no cotidiano dos movimentos sociais e a superação do
economicismo e do corporativismo nas pautas sindicais. 37
Estão disponíveis na internet as reproduções auditivas dos discursos de Marin. Além do discurso referente a
Vladimir Herzog, há um segundo audio em que, o então deputado, exalta e elogia a figura de Sérgio Fleury, o
51
que a tranquilidade no Estado fosse retomada” (RBA, 2012), pois o jornalismo praticado pela
emissora tinha um viés mais crítico e não dava destaque aos feitos do regime militar. Após o
discurso, Herzog compareceu espontaneamente ao DOI-Codi, sendo preso sem qualquer
mandado judicial, torturado, morto, e tendo a vinculação de sua morte atestada como suicídio.
Também marca a carreira de Marin o episódio da Copa São Paulo de 2012, em que durante a
cerimônia de premiação ao time do Corinthians, o ex-governador literalmente embolsou uma
medalha que seria entregue a um dos jogadores.
2.4.8 - Aniversário do AI-5
No dia 13 de dezembro de 2012 completaram-se 44 anos da publicação do AI – 5, a
mais perversa medida do governo militar. Em atenção a essa data foi realizado um escracho
pela Articulação Estadual pela Memória, Verdade e Justiça do Rio de Janeiro38
em frente ao
prédio onde reside o tenente-coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel, no Rio de Janeiro-RJ.
Lício, também conhecido como “Dr. Asdrubal”, participou do contingente das FA que
combateu a guerrilha do Araguaia, sendo responsável direta e indiretamente pela morte de
aproximadamente 60 militantes. No livro “O coronel rompe o silêncio”, de Luiz Maklouf
Carvalho, Lício confessa a execução de 16 pessoas.
2.4.9 - Batizados e sepultamentos
Um escracho diferente aconteceu no dia 29 de julho, no Rio de Janeiro-RJ. Organizado
pela Articulação Estadual pela Memória, Verdade e Justiça, contou com cerca de 300
manifestantes que marcharam da Orla de Copacabana até a praça do Leme, residência do
verdugo. Dessa vez o escrachado não pôde se esconder: houve contato físico, cartazes foram
pendurados em suas costas e pescoço, e bexigas cheias de tinta vermelha foram-lhe
arremessadas para representar o sangue das vítimas. O alvo foi a estátua do Marechal
Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro ditador do regime, que também dá nome a
dezenas de avenidas, bairros e escolas por todo o país.
mais conhecido torturador e assassino do regime, e que à época da fala já havia sido denunciado como integrante
de Esquadrão da Morte. Os áudios estão disponíveis em: <http://blogdojuca.uol.com.br/2013/04/o-audio-dos-
discursos-de-marin/>. Acesso em 07 de junho de 2013. 38
A Articulação Estadual pela Memória, Verdade e Justiça do Rio de Janeiro é composta pelo Coletivo RJ;
Comitê pela Memória, Verdade e Justiça de Niterói; Consulta Popular; Levante Popular da Juventude; Grupo
Tortura Nunca Mais; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Juventude do PT; PC do B; UNE
e Sindicato Estadual dos Professores de Educação.
52
Esse tipo de ação traz novamente à baila a disputa pela “memória do período da
ditadura, pela soberania sobre espaços públicos e pela impressão de símbolos históricos no
tecido urbano” (DIAS, 2012. p. 165). Enquanto os opositores foram tachados, processados e
perseguidos como terroristas, os que se apoderaram do poder do Estado tiveram os seus
nomes atribuídos a logradouros públicos e até a municípios – como é o caso da cidade de
Presidente Médici no estado de Rondônia.39
Dessarte, desde os primeiros anos da
redemocratização do país, diversas entidades, partidos e movimentos têm travado lutas para a
renomeação desses espaços e para a supressão das homenagens aos agentes do regime, seja
por meio de ações simbólicas ou pela via institucional. Em geral busca-se a troca dos nomes
dos repressores pelo de pessoas que combateram ou foram perseguidas pelo regime, sendo
uma forma de apagar da história dessas pessoas o estigma de inimigos da nação.
Seguindo essa linha de raciocínio e atuação, o Levante promoveu no dia 12 de abril, em
Brasília-DF, a renomeação simbólica da ponte Costa e Silva, rebatizando-a com o nome de
Honestino Guimarães, presidente da UNE em 1971, desaparecido político que até hoje não
teve os seus restos mortais encontrados. Faixas também foram afixadas em viadutos por todo
o plano piloto.
Em 18 de junho, na cidade de Feira de Santana-BA, os militantes saíram às ruas durante
a madrugada e literalmente renomearam uma série de ruas, colando adesivos sobre as placas
indicadoras. A avenida Marechal Castelo Branco foi rebatizada com o nome de Chico Pinto,
as ruas General Costa e Silva e 31 de março com os nomes Luís Antônio Santa Bárbara e 26
de junho, e a praça Presidente Médici levou o nome de Iara Iavelberg. A data de 26 de junho
rememora o ano de 1968 quando houve a Passeata dos Cem Mil, e todas essas pessoas
homenageadas foram cidadãos que nasceram ou viveram na região de Feira de Santana e
fizeram oposição ao regime.
Nos últimos anos uma série de avanços institucionais foram conquistados nesta seara, a
exemplo da diretriz 25 do PNDH-3, que traça como objetivo estratégico “fomentar debates e
divulgar informações no sentido de que logradouros, atos e próprios nacionais ou prédios
públicos não recebam nomes de pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores”
(BRASIL, 2010, p. 177). Mais recentemente, na cidade de São Paulo-SP foi sancionada a lei
nº 15.717 de 23 de abril de 2013, de autoria de vereadores do PC do B, na qual os moradores
39
Esse fato não é algo isolado no passado. No ano de 2010, a turma de aspirantes a oficial que se formou na
AMAN – Academia Militar das Agulhas Negras, homenageou e levou o nome Turma General Emílio
Garrastazu Médici.
53
de ruas que levem o nome de autoridades que tenham cometido crime de lesa humanidade, ou
graves violações de direitos humanos, podem solicitar a mudança de sua nomenclatura.
2.4.10 - Homenagens aos militares honrados
Por diversos momentos, é suscitado o argumento de que as ações em torno da memória
e verdade tem como objetivo difamar as Forças Armadas e desonrar a sua história. Contudo,
no Rio de Janeiro-RJ enquanto uma parte da militância do Levante participava da 2ª rodada de
escrachos, foi promovida paralelamente uma homenagem aos Pracinhas da Força
Expedicionária Brasileira que lutaram contra o nazifascismo na 2ª Guerra Mundial. Ao som
de “Canção do Expedicionário”, ramalhetes de flores com os dizeres “glória eterna aos
heróis da liberdade” foram depositadas no Monumento aos Pracinhas, e entregues a Pedro
Moreira de Lima que representou o seu pai, Brigadeiro Rui Barbosa Moreira Lima40
. Durante
o Grito dos Excluídos41
de Porto Alegre, também foi feita uma entrega de flores a um dos
pracinhas que se encontrava no Monumento ao Expedicionário. Com estas iniciativas o
movimento demonstrou que a luta travada não é direcionada às Forças Armadas, mas sim aos
agentes que participaram de atos de terrorismo de Estado e cercearam a liberdade dos
cidadãos.
2.5 Balanço nacional
Ao final do ano de 2012 foram contabilizadas um total de 33 ações, sendo 2 na região
Norte, 9 no Nordeste, 15 no Sudeste, 2 no Centro-oeste e 5 na região Sul. Percebe-se, ademais,
que o Levante inaugurou esse tipo de intervenção política no país, mas procurou envolver o
máximo possível de entidades da sociedade civil. Com isso, articulações se formaram e deram
sequência às ações de forma mais continuada, a exemplo da Frente Popular do Escracho em
São Paulo, e a Articulação Estadual pela Memória, Verdade e Justiça no Rio de Janeiro. Outro
dado importante é que, parte significante dos agentes denunciados continua ocupando funções
de destaque em órgãos estatais, ou se aposentaram em postos de alta patente, e todos, sem
exceção, vivem em bairros de classe média alta.
40
O ex-combatente não pode estar presente por motivos de saúde. O brigadeiro foi um dos militares expurgados
e perseguidos logo nos primeiros dias após o golpe. 41
Manifestação popular que acontece tradicionalmente no dia da independência do Brasil. Tem como objetivo
fazer frente às comemorações oficiais, questionar qual foi a independência que o país conquistou, e bradar que o
modo de produção capitalista ainda cria, mantém e lucra com a exclusão social.
54
Figur
a 6: Gráfico da disposição territorial das ações. Fonte: elaboração do autor.
55
Capítulo III – AS REAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE AOS
ESCRACHOS
3.1 Concepções de Estado, Ideologia e Hegemonia em Gramsci
Dentre os objetivos da pesquisa, encontra-se a identificação das reações do Estado
Brasileiro frente aos escrachos promovidos pelo Levante no ano de 2012. Mas, antes do
levantamento desses dados, faz-se necessário apresentar qual o referencial teórico utilizado
para às concepções de Estado, ideologia e hegemonia.
Os doutrinadores clássicos da Teoria Geral do Estado utilizam de três elementos para
conceituar essa entidade, quais sejam a soberania, o povo e o território. Em linhas gerais,
adota-se como conceito amplo de Estado “uma ordem jurídica soberana, que tem por fim o
bem comum de um povo situado em determinado território” (DALLARI, 2007, p. 51). Para
explicar a necessidade do surgimento do Estado, os pensadores jusnaturalistas iluministas,
expoentes da ideologia burguesa do século XVIII, formularam a teoria de que os homens
viviam em um “estado de natureza”, caracterizado pelo caos e pela barbárie. Os interesses e
apetites individuais norteavam as ações, promovendo um estado permanente de guerra que
impossibilitava o convívio social harmônico, e no qual o homem seria seu auto destruidor –
“homem como lobo do próprio homem”. Para a superação desse estágio de insegurança social,
fez-se necessária a instauração da ordem, que foi instituída por meio da “lei” e do contrato
social. Para os contratualistas, conscientemente os indivíduos teriam concedido parte de suas
liberdades individuais em troca da garantia de uma liberdade coletiva, uma sociabilidade
mínima que teria possibilitado a convivência e o desenvolvimento da sociedade. Assim
haveria surgido o Estado, representado na figura do Soberano, enquanto que a sociedade civil
seria oriunda da subordinação à unidade política estabelecida em torno da figura do Soberano,
necessitando da instituição desse poder comum para se fundar enquanto coletividade social
(GUIOT, 2006, p 17/18).
Nessa visão, o Estado tem um predomínio inquestionável sobre a sociedade, capaz de
impor de modo coercitivo normas e diretrizes, mas ao mesmo tempo distribui benefícios e
privilégios. No entanto, ao sustentar essa formulação, despreza-se por completo o elemento
subjetivo humano, já que não são levados em conta os sujeitos históricos atuantes, as
contradições e/ou qualquer conteúdo da divisão da sociedade em classes. Para a tradição
marxista, referencial empregado nesta pesquisa, o homem jamais teria vivido em um “estado
de natureza”. Para os que advém desse leito histórico, o Estado é uma ocultação/aparência de
56
um suposto interesse universal, mas que em verdade serve aos interesses e à dominação de
uma classe social, que em algum momento da história se apropriou daquilo que era de todos,
subordinando e transformando os demais em força de trabalho (idem, p. 19). O Estado é,
portanto, o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes.
As primeiras teorizações nesse sentido datam de um determinado momento histórico, no
qual as sociedades capitalistas ainda não tinham se desenvolvido sobremaneira, e encontra
raízes principalmente em duas obras do século XIX: O Manifesto do Partido Comunista
(MARX e ENGELS, 1848) e A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado
(ENGELS, 1884). Em Estado e Revolução (1917), Lenin resgata esses preceitos e sistematiza
o conceito de Estado, destacando todo o caráter repressivo e coercitivo que se expressam
através de seus aparatos: a burocracia, as forças armadas, as leis e a magistratura (LENIN
apud SABOYA, 1982, p. 22).
Antônio Gramsci, comunista italiano que combateu o regime fascista de Mussolini na
segunda década do século XX, estudou de forma diferenciada as chamadas sociedades
ocidentais e orientais, e percebeu que naquelas havia uma maior inserção das massas na vida
político-institucional, fenômeno que chamou de socialização da política. Esse fenômeno pôde
ser comprovado devido ao surgimento de uma rede de organizações de massa e a criação de
múltiplos sujeitos políticos coletivos, a exemplo dos partidos políticos de massa, da conquista
do sufrágio universal, da ação dos sindicatos etc. (GUIOT, 2006, p 21/22). A partir dessas
constatações, Gramsci ampliou o conceito de Estado, propondo que ele comporta em seu
interior duas esferas: a sociedade política (também entendida como “Estado em sentido
restrito” ou “Estado coerção”), que se consubstancia nos aparelhos, órgãos ou agências
burocráticas-coercitivas estatais, e a sociedade civil, formada pelo conjunto dos aparelhos
privados de hegemonia, que se ocupam da elaboração e difusão das ideologias – igrejas,
sindicatos, escolas, partidos, associações, clubes, revistas, editoras, meios de comunicação em
geral etc. Essa sociedade civil também é classificada como “privada”, pois aqueles que
aderem os fazem voluntariamente e não pelo uso da repressão.
Surge então o conceito de Estado ampliado, que é a junção da sociedade civil com a
sociedade política – por meio da sociedade política as classes exercem a dominação mediante
a coerção, enquanto que através da sociedade civil as classes procuram exercer sua hegemonia.
As entidades e agrupamentos que compõem a sociedade civil reproduzem e difundem
ideologias, que são hegemonizadas por um dado bloco histórico, bloco este que consegue
exercer a direção e promover o consenso – ou convencimento (COUTINHO apud GUIOT,
2006, p. 24). A ideologia para Gramsci é a difusão de uma dada visão de mundo (“cultura”),
57
consubstanciada em um corpo de ideias, representações, valores, que formam uma vontade
coletiva. Em alguns momentos, atinge-se tal grau de difusão da ideologia, que por meio do
consenso, alcança-se a hegemonia em um dado setor da sociedade civil. Dessa forma, as
classes dominantes legitimam sua dominação, parecendo ao conjunto da sociedade que as
ideias e interesses são seus, quando em verdade foram assimiladas devido à hegemonia criada.
Durante os anos de chumbo do Brasil, dilacerando a oposição e ceifando centenas de
vidas, o bloco civil-militar multinacional e associado conseguiu exercer a hegemonia em
setores estratégicos do Estado. O uso das categorias gramscianas nesse trabalho permite
reconhecer o quanto da ideologia forjada durante a ditadura ainda persiste na coletividade
brasileira, e qual o seu nível de enraizamento nas instituições estatais. Provavelmente não será
possível elencar todas as manifestações oficiais e extraoficiais acerca da jornada de ações do
Levante, haja vista a repercussão que ela alcançou. Mas, todas as ações que foram
sistematizadas pelo movimento ao longo do ano, além de outras encontradas na internet,
compõem um extenso rol que será apresentado abaixo, e que está sujeito a ampliação em
pesquisas futuras.
3.2 Reações: Ataque ao movimento e solidariedade da sociedade civil
Após a primeira rodada de escrachos, o site e o blog nacional do movimento receberam
dezenas de comentários antagônicos, de apoio e de repulsa às ações. Adjetivos como
terroristas, guerrilheiros, maconheiros, vagabundos, extremistas, juventude hitlerista etc.,
foram acompanhados de palavras de baixo calão e ameaças, e por vezes foram feitas
provocações no sentido de que o destino dos jovens do Levante deveria ser o mesmo dos
opositores da ditadura. No dia 27 de março, um dia após as ações, o servidor que hospeda a
página virtual foi atacado, ficando fora do ar durante toda a tarde. Conhecendo as práticas dos
setores remanescentes da ditadura, e compreendendo que se tratava de uma reação de caráter
intimidatório, foi elaborado um abaixo assinado em solidariedade ao movimento e em defesa
da legitimidade dos atos. Intitulado “Pela garantia da liberdade de manifestação de nossa
juventude”42
, o documento de repudio às ameaças e represálias reuniu 180 assinaturas em
apenas um dia, sendo veiculados por toda a blogosfera e imprensa contra hegemônica.
Entidades de norte a sul do país assinaram o documento, como o Conselho Pastoral dos
42
Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/content/apoio-%C3%A0-liberdade-de-
manifesta%C3%A7%C3%A3o-e-rep%C3%BAdio-%C3%A0s-retalia%C3%A7%C3%B5es> Acesso em 07 de
julho de 2013.
58
Pescadores, Associação dos Geógrafos Brasileiros, Movimento Negro Unificado, Comitês
pela Memória e Verdade, Pastoral da Juventude, Central Única das Favelas, Justiça Global,
além de jornalistas, advogados, juízes, professores universitários, artistas, cineastas, nove
parlamentares, e personalidades como Dom Pedro Casaldaliga, Frei Beto, Fernando Morais,
Anita Leocádia Prestes e Lúcia Murat.
3.3 Militares
Os militares da ativa, em regra, não se manifestam publicamente sobre questões
políticas, sob pena de incorrerem em ato de indisciplina ou insubordinação. Desta forma, o
Clube Militar torna-se uma espécie de porta-voz das opiniões militares, servindo como
termômetro das opiniões e insatisfações das FFAA.43
Como o Clube não se manifestou
oficialmente, analisar-se-á o conteúdo postado em dois blogs que têm os militares como
público principal, e por diversas vezes se colocaram como seus mediadores para a sociedade.
O primeiro, A Verdade Sufocada, recebe cerca de 30 mil visitas por mês e é gerenciado pela
esposa de Carlos Alberto Brilhante Ustra, Coronel reformado do Exército e ex-comandante
do DOI-Codi – no episódio do Manifesto Alerta à Nação, esse blog foi utilizado como ponto
de recolhimento de assinaturas dos oficiais insatisfeitos. O Coronel Ustra foi processado e
condenado em ação cível declaratória, em primeira e segunda instância, por crimes cometidos
no DOI-Codi sob seu comando, e se coloca como o fiel paladino da luta contra a CNV. O
segundo blog é o Alerta Total, dirigido pelo jornalista Jorge Serrão, que já escreveu em um
tabloide sobre assuntos estratégicos voltados para o meio militar, e que tem em seu currículo
uma graduação pela ESG.44
Após a primeira rodada de escrachos, o blog A Verdade Sufocada lançou uma série de
matérias relatando os fatos de maneira negativa, e passou a buscar as origens do movimento,
dando visibilidade à sua ligação com os movimentos da Via Campesina. Em todas as
postagens as ações foram caracterizadas como atos inadmissíveis de vandalismo, e afirmações
sensacionalistas, em tom de pânico, foram disseminadas como forma de alarmar os leitores ao
caráter “comunista/nazifascista” dos atos. A partir de então, as atividades do Levante ligadas
ou não à pauta da memória e verdade, passaram a ser monitoradas e relatadas mensalmente no
43
Importante ressaltar que essas opiniões não assumem caráter hegemônico dentre os militares, havendo setores
que discordam das posições retrógradas e promovem a disputa ideológica dentro das FFAA. Um exemplo claro
dessa celeuma ocorreu quando o brigadeiro Rui Moreira Lima e os comandantes da Marinha, Luiz Carlos
Moreira e Fernando de Santa Rosa, lançaram um manifesto rebatendo o "Alerta à nação", defendendo a
CNV e as vítimas da ditadura. 44
Informações obtidas no próprio Blog.
59
canal comunicativo, numa espécie de vigia a todos os seus passos. O blog de Serrão também
divulgou notícias diretas do site do movimento, como forma de dar conhecimento de sua linha
de atuação aos leitores do Alerta Total. Em diversas postagens o jornalista comparou as ações
dos jovens aos ideais totalitários de Adolf Hitler. (SERRÃO, 2012).45
3.4 Ex-presos políticos e familiares das vítimas
Por se organizarem na CFMDP e em grupos como o Tortura Nunca Mais, essa categoria
será classificada como um movimento social, e portanto, componente da sociedade civil.
Esses atores estiveram presentes na maioria das ações realizadas, demonstrando o seu apoio
aos atos e um enorme entusiasmo ao perceberem que a pauta havia extrapolado o âmbito
privado das vítimas e familiares.
Para além das demonstrações de apoio explicitadas durante as ações, destacam-se aqui
as cartas enviadas pelos ex-presos políticos Aton Fon Filho e Miguel Gonçalves Trujillo Filho.
O primeiro comparou o movimento ao povo de Canudos e aos Cabanos, à Coluna Prestes e
aos Expedicionários da FEB, pela sua bravura e por terem resgatado a bandeira da liberdade –
além de dedicar-lhes uma poesia. Para Trujillo “foi um ato de muita coragem política,
coragem esta que tem faltado a tantos que se dizem „democratas‟ ou de „esquerda‟”, e
finalizou exaltando que “o Levante Popular da Juventude retomou as esperanças de uma
nação inteira”.46
Além de reoxigenar a luta dessas pessoas, o Levante proporcionou que
algumas delas soubessem onde viviam ou trabalhavam os seus algozes, a exemplo de Marcelo
Rubens Paiva e Amelinha Teles. Em entrevista, essa disse que estava cheia de orgulho dos
jovens e se mostrou preocupada pelo fato de seu torturador ter ingressado no ramo da
segurança privada (FARAH, 2012). Marcelo aquele relatou em seu blog a estranha sensação
de costumeiramente transitar pelas mediações da casa do torturador de seu pai, sem se dar
conta disso. Por fim, o filho do Deputado Rubens Paiva escreveu: “Bacana. Criativo. Justo.
Obrigado, garotada. A família agradece” (PAIVA, 2012).
3.5 Imprensa escrita e televisiva
45
Impressiona a quantidade de comentários agressivos a cada matéria publicada. Seguem alguns a título de
ilustração: I) “Até agora não entendi por que não chamaram a PE e por que não mandaram a PM baixar o
porrete nessa vagabundagem”; II) “Esses porqueira vermelhos tão precisando de umas boas horas no pau de
arara pra virarem homens.”; III) “Já ando pensando em organizar um CCC”. 46
Ambas as cartas estão disponíveis no site do Levante.
60
Apesar da redemocratização do país, ainda há uma grande concentração dos meios de
comunicação nas mãos de algumas poucas famílias e grupos econômicos, o que têm
dificultado que as ações dos movimentos sociais possam alcançar as grandes massas. Todavia,
a sincronia e ousadia das ações proporcionaram que houvesse uma grande repercussão na
sociedade, e que o bloqueio da mídia hegemônica fosse superado.
Em se tratando de imprensa escrita, os canais contra hegemônicos acompanharam
diversas ações e deram destaque à temática, a exemplo da revista Caros Amigos, os jornais
Brasil de Fato, Correio da Cidadania e a Agência Carta Maior. O que chama a atenção,
entretanto, é a ampla cobertura dada pelos maiores jornais do país como a Folha de São Paulo,
O Globo, O Estado de S. Paulo, Zero Hora, Extra, e pelos grandes portais de notícias como
Terra, UOL e Band. Chama ainda mais atenção o fato de que boa parte das matérias
vinculadas seguiu uma linha mais descritiva, utilizando-se em grande escala do próprio
material produzido pelo Levante e de entrevistas concedidas por militantes, o que evitou
distorções e a criminalização do movimento. A blogosfera “viralizou” as notícias seguindo a
mesma linha, com alguns poucos autores arriscando-se a emitir opinião sobre os
acontecimentos. A notícia rompeu as fronteiras do país e virou manchete no jornal argentino
“Marcha”47
. O que não causou qualquer surpresa foi a análise feita pelo colunista da Revista
Veja, Reinaldo Azevedo, que taxou os jovens como a “tropa de choque do MST e da Maria do
Rosario” (ministra da SEDH) e qualificou as manifestações de forma negativa, comparando-
as com linchamentos, ao fascismo e à revolução chinesa (AZEVEDO, 2012).
No que tange à cobertura televisiva, a Rede Record veiculou em horário nobre duas
matérias sobre as duas rodadas nacionais de escrachos, no Jornal da Record. As reportagens,
que tiveram duração de 03:18 e 02:33 respectivamente48
, cobriram as ações realizadas em
vários estados, acompanharam os bastidores, entrevistaram integrantes do movimento, as
vítimas do regime e buscaram ouvir a versão dos alvos. Os editoriais fizeram importantes
resgates históricos dos períodos, deram destaque à capacidade de organização do movimento,
e apontaram a atualidade da pauta, não havendo qualquer caracterização negativa das ações.
Apesar de o jornal impresso O Globo ter publicado quase uma dezena de matérias sobre os
atos, a Rede Globo de Televisão somente disponibilizou 5 segundos do Jornal Nacional
(possivelmente devido ao seu atrelamento aos setores golpistas). Em uma reportagem sobre a
47
Disponível em: <http://www.marcha.org.ar/1/>. Acesso em 22 de junho de 2013. 48
As reportagens estão disponíveis em: <http://noticias.r7.com/videos/manifestantes-protestam-contra-ex-
delegado-da-policia-que-atuou-na-ditadura/idmedia/4f70ff2eb51aa10b32e72564.html> e
<http://noticias.r7.com/videos/manifestantes-protestam-contra-a-tortura-em-varias-cidades-do-
brasil/idmedia/4fb1c1e4fc9bf51e2cc13721.html>. Acesso em 22 de junho de 2013.
61
Rio+20, uma matéria relatou que naquele dia também “houve protestos contra a tortura
durante a ditadura militar”. Na TVT, primeira emissora de televisão outorgada a um sindicato
de trabalhadores,49
os atos ganharam destaque. O carro chefe da emissora, Seu Jornal,
programa semanal de notícias, deu ampla cobertura à quase totalidade das ações,
acompanhando e noticiando diversos escrachos e transmitindo uma entrevista após a entrega
do prêmio da SEDH. Em sua totalidade as reportagens atribuíram um caráter positivo às ações,
chegando ao ponto de, ao final de uma das reportagens, o âncora do telejornal exclamar: “essa
é a juventude brasileira!”
3.6 Redes sociais virtuais
Em todo o mundo, as redes sociais virtuais têm sido um grande vetor de mobilizações
populares, possibilitando a difusão de informação em tempo real e com um potencial de
alcance extremamente abrangente. Apesar dos dados do PNAD constatarem que somente
46,5% da população brasileira tem acesso à internet (SALLOWICZ, 2013), em diversos
momentos da história recente, o bloqueio da mídia hegemônica tem sido superado a partir do
compartilhamento em massa de informações, de modo que, a depender da repercussão, as
redes tem conseguido pautar a grande mídia.
Fazendo parte da geração que cresceu sob a égide da internet, o Levante soube utilizar
dessas ferramentas para dar corpo à divulgação em massa das ações, todavia, foram
catalogadas duas reações de censura às suas informações. Durante a 1ª rodada nacional, um
vídeo com os nomes e “currículos” dos alvos foi retirado do site Youtube em questão de horas,
sob a seguinte alegação: “este vídeo foi removido por violar a política do Youtube que proíbe
conteúdo cujo intuito seja assediar, intimidar ou ameaçar” 50
. Além desta situação, na
preparação do escracho de José Maria Marin, o site Facebook suprimiu o evento criado na
rede, o qual trazia informações sobre o ponto de encontro e a natureza da ação. Os
mecanismos de censura que foram ativados consideraram o conteúdo “impróprio” e uma
“violação aos termos de uso”, e quando um novo evento foi criado, novamente ele foi
suprimido. Essas situações demonstram que, apesar do aparente grau de liberdade de
expressão e de seu potencial comunicativo contra hegemônico, as redes sociais, que são
49
A TVT é produzida pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Sua programação vai ao ar em canal aberto (em
algumas cidades do país), em TV a cabo, TV‟s comunitárias e pelo site da emissora. Mais informações em
<www.tvt.org.br>. 50
O vídeo #LEVANTECONTRATORTURA pode ser acessado por outro provedor através do link
<http://vimeo.com/39360961>. O link original, bloqueado pelo Youtube é
<http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=wjcJcb84_jA>. Acesso em 22 de junho de 2013.
62
gerenciadas por grandes corporações internacionais e mantidas sob a vigilância dos Estados
nacionais, têm uma política de privacidade opaca, sem qualquer regulamentação clara, e
atribuindo tratamento diferenciado entre os usuários.
3.7 Terceiros afetados
À época da 1ª rodada nacional, a empresa de segurança privada de David dos Santos
Araújo, Dacala, ostentava em seu site um rol de clientes para a qual prestava serviços. Dentre
outras, figuravam com destaque grandes empresas como a Kia, Ford, Banco Santander,
Volksvagen e Fuji. No mesmo dia do esculacho, como forma de despistar a imagem negativa
que se instauraria sobre as empresas clientes, todas as logomarcas foram retiradas da página.
Prontamente, o Levante publicou em sua página uma matéria destacando a manobra e
elencando o nome de todas aquelas empresas, como forma de questioná-las se continuariam
utilizando os serviços após conhecerem a história da Dacala. O desdobramento foi o esperado,
uma série de empresas como o Banco Itaú e a Anhanguera Educacional rescindiram o contrato
(SALDAÑA e AMAZONAS, 2012), e até a data do término dessa pesquisa a sessão de
clientes do site encontra-se em “manutenção”.51
3.8 Universidade
O processo seletivo 2012.2 da Universidade Federal de Uberlândia trouxe na prova de
sociologia, tipo 1, questão de nº 60, uma pergunta sobre o esculacho no STF:
51
Disponível em: <http://www.dacala.com.br/clientes.php>. Último acesso em 08 de julho de 2013.
63
Figura 7: Prova de sociologia do vestibular da UFU 2012.2. Fonte: <http://www.ingresso.ufu.br/home>
A resposta correta estava na assertiva c): “permite-nos perceber a existência de
movimentos sociais dispostos a promover a releitura da história recente para garantir o
direito à verdade”. O teor da resposta indica que a instituição fez uma leitura positiva da ação,
reconhecendo o movimento como um agente que busca a garantia de direitos através das lutas
sociais.52
3.9 Legislativo
52
Durante a pesquisa, estudantes universitários narraram que professores das mais variadas áreas utilizaram os
escrachos como temas de aulas e requisitaram que as turmas realizassem seminários sobre a temática. Como não
se conseguiu material oficial que subsidiasse esses dados e permitisse a sua análise, só foi catalogada na
categoria Universidade a prova da UFU.
64
Uma semana após a primeira rodada de escrachos, o Levante recebeu um convite da
Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados para participar de uma
audiência pública da Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça – realizada no dia 10
de abril de 2012. O convite, que partiu da então coordenadora da comissão temática, a
Deputada Luíza Erundina, foi destinado a organizações com trajetória de atuação na
promoção dos direitos humanos e do resgate da verdade histórica dos crimes da ditadura. Um
representante do Levante proferiu discurso sobre as ações que estavam sendo realizadas pelo
movimento, cobrou celeridade na instauração da CNV, e explanou sobre a ligação direta entre
a impunidade da tortura e o extermínio da juventude negra em curso no país. Também
participaram da audiência o Movimento Nacional de Direitos Humanos, CUT, OAB, AJD,
CNBB e familiares dos mortos e desaparecidos políticos (PASSOS, 2012).
3.10 Executivo
Foram identificadas duas manifestações oficiais do poder executivo brasileiro em
relação às ações: uma a nível municipal e uma do Governo Federal. Após a colagem de
adesivos sobre as placas de ruas e praças em Feira de Santana-BA (conferir item 2.4.9 -
Batizados e Sepultamentos), a prefeitura municipal (sob administração do partido Democratas)
caracterizou a ação como “vandalismo e desrespeito à sociedade”, pois prejudicou os cidadãos
ao dificultar a localização correta das ruas. De imediato a administração retirou os adesivos
(TRINDADE, 2012). Em resposta, o Levante lançou uma nota de repúdio às declarações da
prefeitura, 1) pelo equívoco jurídico ao tipificar como vandalismo tal ação, haja vista que para
a ocorrência de tal delito faz-se necessária a inutilização, deterioração ou destruição da coisa
alheia, fato que não ocorreu; 2) pelo não reconhecimento da necessidade e urgência de se
alterar os nomes dos logradouros, que ao homenagearem ditadores, maculam e desrespeitam
os valores da democracia (idem).
Ao revés, em relação ao Governo Federal, os atos foram recepcionados de maneira
positiva. Em setembro de 2012, o movimento foi indicado para receber o 18º Prêmio Nacional
de Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência de
República, na categoria Direito à Memória e à Verdade. Trata-se da mais alta condecoração do
governo brasileiro a pessoas ou entidades que desenvolvam ações de destaque na área dos
Direitos Humanos. A indicação partiu conjuntamente do professor da USP, Dr. Fábio Konder
Comparato; do jornalista e escritor Fernando Morais, do dirigente nacional do MST João
Pedro Stédile, da ex-presa política Maria Amélia de Almeida Telles, do jornalista e blogueiro
65
Paulo Henrique Amorim, do Deputado Federal baiano e militante do MST Valmir Assunção, e
do ex-preso político e militante dos Direitos Humanos, Perly Cipriano53
(LEVANTE
POPULAR DA JUVENTUDE, 2012c). Em dezembro ocorreu a cerimônia de premiação em
Brasília, na qual o Levante não recebeu o prêmio na categoria almejada, mas foi agraciado
com a Menção Honrosa, entregue em mãos pela Ministra da SEDH e pela presidenta Dilma
Rousseff. Nas palavras de Dilma “o prêmio homenageia pessoas lutadoras que arriscam suas
vidas em defesa dos direitos humanos” (LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE, 2012d).
3.11 Reações dos escrachados / Poder Judiciário
Até a data de conclusão dessa pesquisa, 08 de julho de 2013, somente foram
identificadas duas ações judiciais ajuizadas pelos alvos dos esculachos. Em 19 de outubro de
2012, em Sergipe, o médico José Carlos Pinheiro ofereceu queixa-crime pelo delito de calúnia
(art. 138 c/c 141, III, todos do Código Penal) contra seis militantes do Levante, feito esse que
tramitou no Juizado Especial Criminal de Aracaju, processo n° 201245102302. A
identificação dos jovens se deu através de marcações de fotos no Facebook54
. Das mais de 30
pessoas presentes, a ação recaiu somente sobre Larissa Alves, Jessy Dayane, Tatiane Leal,
Viviane Leal, Camila Almeida e Gilson Junior (sendo que Gilson não estava presente no dia
das ações). Durante a inquirição policial somente uma das jovens prestou termos de
declaração, admitindo a sua participação e a dos demais no ato, esclarecendo que se tratava de
uma ação nacional orquestrada por sua organização. Os demais utilizaram o direito ao silêncio
e se reservaram a prenunciar-se em juízo.
O delito de calúnia consiste em imputar falsamente a outrem fato definido como crime.
A queixa-crime ainda requeria o reconhecimento da causa de aumento de pena prevista no
inciso III, presente quando o crime ocorre na presença de várias pessoas, ou por meio que
facilite a sua divulgação. Na inicial o querelante alegou que serviu à Marinha e não ao
Exército, e que sempre atendeu aos militares e seus dependentes, nunca havendo praticado
qualquer ato atentatório à dignidade da pessoa humana. O embasamento do escracho foi a ata
da 85ª sessão ordinária da Câmara de Vereadores de Aracaju, realizada no dia 20 de setembro
de 1989, em que o então vereador Marcélio Bomfim denunciou que o médico “auscultava
53
Fábio Konder recebeu o referido prêmio em 2007, assim como Maria Amélia Telles em 2008. 54
A partir de então, como política de segurança, as notas do Levante Sergipe passaram a ser assinadas por João
Mulungu. Esse nome foi escolhido para preservar a identidade dos militantes, e como forma de homenagear um
dos escravos que lutou de forma contundente pela abolição, formando quilombos, e contribuindo com a fuga e
organização de centenas de escravos.
66
para conferir o sofrimento e até que ponto o ser humano aguentava as torturas”. José Carlos
chegou a alegar que as acusações foram equivocadas e que ele teria sido confundido com
outro “Pinheiro”, e que na ocasião, ingressou com uma ação penal contra o político, mas que a
Justiça arquivou o caso (BRITTO, 2012).
Após essas declarações, Marcélio Bonfim afirmou que testemunharia em favor dos
militantes e que “só poderia pedir desculpas ao médico por não ter criado este
constrangimento mais cedo, pois o episódio já estaria esquecido” (NUNES, 2012). Cartas de
apoio começaram a ecoar de diversos setores da sociedade civil em defesa dos jovens
processados, partindo de Centros Acadêmicos, Executivas e Federações de curso, sindicatos,
movimentos sociais, do diretório do PSOL de Aracaju e de dois deputados estaduais do PT,
que levaram a celeuma à tribuna da Assembleia Legislativa. Característica da atual geração,
também foi iniciada uma campanha virtual no sentido de despersonificar a autoria da ação e
coletivizá-la. A partir de então, pessoas de todo o Brasil divulgaram fotos com cartazes em
que afirmavam: “eu também escrachei o Dr. Carlos Pinheiro”. Com o intuito de deslocar a
lide do âmbito local para o nacional, o caso foi levado a uma das audiências públicas da CNV,
sendo recepcionado com a demonstração de apoio das comissárias presentes e o
acompanhamento do caso pela Comissão. No dia 5 de dezembro, data de comemoração dos
101 anos do nascimento de Carlos Marighella, foi realizado um ato-show de solidariedade aos
jovens, que contou com a presença de lideranças sociais e ex-presos políticos.
67
Figura 8: Fotos de apoio aos jovens processados enviadas por militantes de todo o país. Fonte:
<www.levantepopulardajuventudese.blogspot.com>
O Levante estava disposto a buscar todos os meios cabíveis para assegurar a defesa dos
processados e garantir o direito à memória e à verdade, e se fosse necessário, provocaria a
Organização dos Estados Americanos (OEA) e sua Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. Após toda essa repercussão, o querelante recuou em seu intento no dia da audiência
(que contou inclusive com a presença do ouvidor estadual de Direitos Humanos de Sergipe), e
retirou a queixa-crime, impossibilitando que a reação do Poder Judiciário pudesse ser aferida:
Iniciada a audiência o advogado do querelante requereu a juntada de petição em três
laudas, informando que não tinha mais interesse no prosseguimento da ação penal,
requerendo a extinção da ação, já que a teor do que contem a fl.03 do seu
requerimento, não vislumbrava resultado justo em face da dificuldade em identificar
e qualificar todos os manifestantes, como também não tem interesse pecuniário e
nem interesse de prejudicar a idoneidade dos jovens que participaram da
manifestação oriunda de um movimento nacional, além do que coloca-se desde já à
disposição da Comissão Nacional da Verdade para colaborar pelo direito à memória,
à verdade e à justiça, sobre fatos do seu conhecimento ocorridos durante o período
que serviu à Marinho (sic) do Brasil em Sergipe. A seguir, foi concedida a palavra
ao representante do MP que assim se manifestou: Srª. Juíza, na ação penal
privada, antes que fosse recebida a queixa-crime o querelante renuncia ao direito que
se funda, motivo pelo qual opina o Ministério Pública que se declare extinta a
punibilidade dos querelados, a teor do art. 107, V, do CP. É o parecer. Pela MM.
Juíza foi proferida a seguinte sentença: Conforme se vê do presente termo o
querelante não mais interesse na presente ação penal. A queixa ainda não fora
recebida, razão pela qual não vislumbro justa causa para a ação e por consequência,
68
EXTINGO A PUNIBILIDADE DOS QUERELADOS (JECRIM ARACAJU,
2012).55
A segunda lide teve como protagonista David dos Santos Araújo. De acordo com a
equipe de comunicação do Levante, no dia 14 de junho de 2013, mais de um ano após o seu
escracho, o site do movimento foi retirado do ar devido a uma notificação judicial emitida
contra o provedor que hospeda a página. A notificação foi no sentido da retirada imediata da
matéria “David dos Santos esconde clientes da Dacala. Levante Popular mostra!” que
possivelmente estaria gerando um marketing negativo para a empresa Dacala. Apesar do
intento de dirimir os efeitos do escracho sobre a empresa, a ação não surtiu tantos efeitos
práticos, haja vista que a mesma matéria continua disponível no site do Jornal Brasil de Fato,
e pode ser encontrada em uma pesquisa simples em sites de busca. Dois dias depois o site do
Levante voltou ao ar.
3.12 Entidades de classe, Movimentos Sociais, Partidos Políticos e Personalidades
Além de todas essas reações já mencionadas, ainda foram catalogadas ao longo do ano
manifestações de importantes formadores de opinião e entes da sociedade civil. Central
sindical que nasceu combatendo o regime militar, a CUT lançou uma nota de apoio e
saudação ao Levante, demonstrando entusiasmo com as ações e se colocando como parceira
na luta por memória, verdade e justiça (CUT, 2012). A OAB seccional Rio de Janeiro, por sua
vez, participou de reunião com os jovens, expressou o apoio às manifestações e ofereceu
respaldo institucional em caso de possíveis retaliações advindas dos escrachados. O
Presidente da seccional, Wadih Damous, destacou durante a reunião que os “escrachos
substituíram a justiça que STF deixou de fazer ao decidir que os torturadores estão sob o
abrigo da Lei de Anistia” (OAB, 2012).56
No Rio Grande do Norte o Levante recebeu o XIX
55
Se o querelante não desistisse da ação, uma problemática inusitada estaria instaurada frente ao Judiciário
brasileiro. O crime de calúnia admite a exceção da verdade, que é a “faculdade atribuída ao suposto autor do
crime de calúnia de demonstrar que, efetivamente, os fatos por ele narrados são verdadeiros” (GRECO, 2005).
Em juízo, os acusados poderiam demonstrar que o médico auxiliou o crime de tortura, mas, no entanto, devido à
atual interpretação do STF, esse crime foi anistiado. Esse tema é por demais complexo para se tratar dentro dessa
pesquisa, mas permanece o problema: caberia ou não a exceção da verdade no caso de um crime que não foi
investigado e que foi anistiado? 56
A OAB exerceu papel fundamental na luta pela redemocratização do país, principalmente por questionar
juridicamente o Estado de exceção, lutar pela revogação do AI-5 e pelo restabelecimento do instituto do habeas
corpus. Nesse período de maior atuação da OAB, que foi concomitante à reabertura, houve um índice crescente
de ações paramilitares e clandestinas, que contou com o incentivo e a conivência do Governo. No ano de 1980,
um atentado a bomba vitimou Lyda Monteiro da Silva, secretaria da entidade que abriu uma carta bomba
69
Prêmio Estadual de Direitos Humanos, pelas ações em pró da memória, verdade e justiça. O
prêmio concedido pelo Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, organização não
governamental filiada ao Movimento Nacional de Direitos Humanos, e tem o objetivo de
agraciar aquelas pessoas ou entidades comprometidas com os Direitos Humanos, as
liberdades democráticas e a defesa da vida.57
Dois representantes de partidos políticos se manifestaram sobre as ações, expressando
óticas opostas. Enquanto o presidente do PT, Rui Falcão, gravou um vídeo em que elogiou os
atos e seu caráter cívico, a juventude do PSDB-MG postou em seu site um texto que definiu a
juventude do Levante como “fascista” e “a caminho do totalitarismo”. Com teor semelhante
às ideias dos militares intervencionistas e seus interlocutores, o militante da JPSDB concluiu a
nota com o chamado: “é hora, pois, de nos levantarmos e defendermos, novamente, as
posições democráticas duramente conquistadas por aqueles que lutaram pela democracia e
contra as guerrilhas de esquerda” (SERPA, 2012).
Em entrevistas, o integrante da CNV, Paulo Sérgio Pinheiro, demonstrou simpatia com o
movimento ao dizer que adora os escrachos, mas que por já ter 70 anos não teria mais pique
para as ações (LIMA, 2013). Ademais, Pinheiro validou as ações por compreender que elas
politizam o tema e contribuem com os trabalhos da Comissão (BARBOSA, 2012). Os
professores universitários Carlos Fico (UFRJ), Vladimir Safatle (USP) e Francisco Foot
Hardman (UNICAMP) publicaram textos em que analisaram a conjuntura do Brasil no que
tange à Justiça de Transição e aduziram que os atos: são legítimos e eficazes (HARDMAN,
2012), honraram o país (SAFATLE, 2012) e que apesar de parecerem algo violento apoiava o
escracho, sendo um barulho necessário (FICO, 2012). A socióloga chilena Marta Harnecker,
que viveu a experiência da revolução cubana e que foi assessora do governo de Hugo Chavez,
gravou um vídeo de apoio às lutas travadas pelo Levante no Brasil e apontou a necessidade de
avanços no país que continua atrasado em relação aos vizinhos latino-americanos.
Representando um dos setores da cultura negra e periférica, o rapper Emicida também teceu
elogios aos escrachos e acrescentou que “nenhuma revolução foi feita sem a participação e
protagonismo da juventude” (LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE, 2012e).
destinada ao seu presidente. Não por acaso, em 2012, na semana em que foi instaurada a Comissão Estadual da
Verdade na seccional RJ, uma bomba explodiu em seu prédio-sede, dessa vez sem vítimas (PINTO, 2013). 57
Ao chegarem na Assembleia Legislativa do estado, os homenageados da noite foram surpreendidos com a
repressão dos seguranças, que confiscaram o seu megafone, revistaram as suas bolsas, e impediram que
adentrassem no recinto portando bandeiras. Frente a tal situação, os militantes aproveitaram o momento do
discurso de agradecimento para realizar mais um escracho, e denunciaram a situação. Após a fala, o presidente
da sessão ordenou que os seguranças liberassem a entrada dos que estavam do lado de fora, liberando o porte dos
objetos que bem entendessem.
70
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho procurou arrolar todos os escrachos promovidos pelo Levante Popular da
Juventude no ano de 2012, e, identificar quais foram as reações do Estado ampliado frente a
tais ações. Ademais, buscou-se compreender como essas manifestações contribuíram para a
efetivação do Direito à Memória, Verdade e Justiça na realidade brasileira.
Após a catalogação de reações, constatou-se que apesar do caráter radical e até
“agressivo” das ações, houve uma grande receptividade e legitimação dos atos por parte dos
mais variados setores da sociedade civil e política. A partir dos escrachos, sujeitos sociais que
não estão diretamente ligados à causa se posicionaram em defesa do movimento e em apoio à
CNV, e com isso, o foco da disputa deixou de ser somente entre os “militares de pijama”
versus vítimas e familiares. O fato de não ocorrerem retaliações por parte da polícia, bem
como as condolências advindas do legislativo e executivo federal, apontam para os
movimentos sociais populares a possibilidade de atuação mais incisiva nesta causa, e quiçá da
conquista de mais avanços no que tange à justiça transicional.
Além disso, as ações do Levante foram importantes porque conseguiram furar o
bloqueio da grande mídia e fizeram o debate ganhar as ruas, gerando controvérsias e
discussões, que acumulam para a formação da consciência do povo. Com certeza, esse
processo também serviu de exemplo e incentivou dezenas de jovens organizados na UNE, em
DCE‟s e Centros Acadêmicos, levando-os a compor comissões estaduais da verdade, bem
como a instaurarem comissões da verdade em suas próprias instituições de ensino. Todavia,
ao se analisar as reações dos militares, setores da mídia, e os comentários emitidos nos canais
virtuais de comunicação, restou evidente que ainda há forte resistência ideológica e fática para
se perpetuar a legitimação dos interventores e evitar qualquer tipo de avanço. Ademais, é
importante ressaltar que o Judiciário não chegou a se manifestar sobre os atos, e que o seu
histórico conservador é de perpetuação da ordem dominante e de criminalização dos
movimentos sociais.
No que tange à consolidação da JT, os esculachos se colocaram como uma ferramenta
popular de construção, “desde baixo”, de uma ideologia contra hegemônica. Em se tratando
de Direito à Memória, os escrachos pautaram de forma direta a mídia, instituições
educacionais e poderes públicos, levando-os a promoverem debates, produzirem matérias e
levarem o tema para o público de forma mais cotidiana. Ao denunciarem para os vizinhos e
para a população em geral o passado dos militares e de seus cúmplices, as ações contribuíram
71
com a construção do Direito à Verdade. Também foram lembrados e homenageados os
opositores do regime, que entregaram suas vidas para a construção de outro país e por muito
tempo foram tachados como terroristas. Essas incursões possibilitam que seja construída a
outra face da história, e que a hegemonia forjada pelas elites golpistas seja minada.
Até então, não se desencadeou de forma direta nenhuma Reforma Institucional devido
aos escrachos, entretanto, é importante recordar a lei que foi sancionada em São Paulo que
possibilita a alteração de nomes de ruas. Apesar de o projeto de lei ser anterior à jornada de
atos, não é desprezível o fato de que o Levante promoveu cinco ações nesse estado, e outras
foram promovidas pela Frente do Escracho Popular, fato que certamente influenciou a
aprovação normativa. Em se tratando de Justiça e Condenações, os escrachos escancararam
para a sociedade a impunidade e o conforto em que vivem os perpetradores de atrocidades
nacionais, e reavivaram os debates sobre a interpretação da Lei de Anistia e a possibilidade de
condenação dos crimes de lesa humanidade. Apreende-se então que diversos elementos
inerentes à JT alcançaram outro patamar, que foi aberta uma margem para a implementação
de políticas públicas, e que os escrachos contribuíram com a consolidação dos Direitos
Humanos no país.
Vale ressaltar que apesar de alguns avanços, esses são mínimos, e a JT no Brasil ainda
está muito aquém dos demais países que passaram por regimes ditatoriais. As medidas
governamentais se mostram muito tímidas, e ainda que a sociedade civil faça movimentações
importantes, é preciso que haja vontade política do Governo Federal para a superação do
desafio que está colocado. É perceptível que as instituições brasileiras ainda estão carregadas
de resquícios da ditadura, e que os donos do poder apenas trocaram de papeis, sem qualquer
alteração significativa na estrutura social. No entendimento de Tales Ab‟Saber,
O que restou da ditadura militar foi simplesmente tudo. Tudo menos a própria
ditadura. O Brasil continuou sendo um país extremamente excludente e fortemente
autoritário, com controles particulares do espaço público, confirmando sua
incapacidade profunda de superar a clivagem social radical de sua origem (2010, p.
193).
As Forças Armadas são o maior exemplo disso. Pouco se atenta a essa questão, mas a
estrutura da instituição pouco foi alterada após o processo de redemocratização do país, e
mesmo durante o processo constituinte, as prerrogativas militares da Carta de 69 foram
mantidas. Mesmo em tempos de paz, o orçamento destinado às FFAA ainda é altíssimo,
estando entre as 11 nações com maior gasto militar (PÉREZ, 2013), e superando o montante
destinado a áreas como saneamento ou habitação. A Justiça Militar, que continuou sendo
72
responsável pelo julgamento da maioria dos delitos castrenses, possui um sistema pouco
acessível, e que acaba beneficiando o corporativismo. O seu funcionamento, assim como o
recrutamento de seus magistrados e membros, permaneceu praticamente inalterado após a
abertura do regime. Enquanto na maioria das democracias do mundo o policiamento ostensivo
é realizado por civis, a militarização da Polícia no Brasil ainda é uma realidade. Apesar dos
soldos serem pagos pelos estados federados, e dos comandantes das PM‟s serem indicados
pelos governadores, quem define a operacionalização dos quarteis, adestramento e
coordenação das PM‟s é o COTER – Comando de Operações Terrestres, que é dirigido por
um general do Exército (ZAVERUCHA, 2010, p. 53).
A Doutrina de Segurança Nacional continua presente até os dias de hoje, e para que seja
extirpada de vez das diretrizes das FFAA, urge que haja um grande processo de reformulação
dos currículos de formação de oficiais, de seus regimentos disciplinares e da pedagogia
utilizada em suas escolas.58
Quase toda a legislação sobre o sistema financeiro nacional foi
editada durante o governo Castelo Branco e permanece inalterada – a exemplo do Código
Tributário, lei do Sistema Financeiro da Habitação, lei do mercado de capitais, dentre outras.
Outrossim, como no país não foi criada uma legislação específica para os crimes políticos,
ainda recorre-se à Lei de Segurança Nacional de 83 para julgar determinados setores da
população. Foi com base nela, por exemplo, que o Ministério Público Federal denunciou em
2008, oito integrantes do MST por “integrarem agrupamentos que tinham por objetivo a
mudança do Estado de Direito, a ordem vigente no Brasil, e praticarem crimes por
inconformismo político” (idem, p. 69).
Outra parte da herança ditatorial, e que tem o mais claro recorte de classe e raça, é
naturalização da violência e aceitação da tortura. A exaltação do Filme Tropa de Elite e do
(ab)uso da tortura por parte do BOPE e do personagem Capitão Nascimento, reflete a
ideologia amplamente difundida nos anos de chumbo, na qual, para o combate à violência
criminal, admite-se e necessita-se da violência estatal 59
60
- em novembro de 2010 a capa da
Revista Veja estampou a foto do ator que interpretou o Capitão Nascimento e a seguinte
58
É flagrante o caso do livro didático “História do Brasil - Império e República” utilizado pelos estudantes do 7º
ano dos colégios militares, confeccionado pela Editora Bibliex - Biblioteca do Exército. Na obra não há qualquer
menção à tortura e ao desaparecimento de opositores ao regime militar, a censura é justificada porque a
preservação da ordem pública era condição necessária ao progresso do país e as cassações políticas são
atribuídas à oposição do MDB, pois “embora o governo pregasse o retorno à normalidade democrática, a
intransigência do partido oposicionista motivou a necessidade de algumas cassações políticas” (PINHO, 2010). 59
Segundo levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo, 47,5%
dos brasileiros toleram tortura para a obtenção de provas. Em pesquisa realizada no ano de 1999, esse percentual
era de 29,8%. CARDIA, Nancy. 2012, p 306. 60
Nos primeiros cinco anos de vigência da Lei de Tortura (9.455/97), das 524 denúncias que foram apresentadas,
somente 15 chegaram à fase de julgamento, e apenas 9 restaram em condenação (PIOVESAN, 2010, p. 105).
73
manchete: “O primeiro Super-Herói brasileiro”. O resultado disso tudo é que a polícia
brasileira tornou-se a única da América Latina cuja violência e cujos abusos aumentaram após
o processo de redemocratização, violentando, matando e torturando mais do que no período
1964-1985 (KEHL p. 37). Possivelmente, enquanto a contenda dos anos de chumbo não for
exaustivamente debatida pela população, ela continuará reivindicando os Direitos Humanos
apenas para os “humanos direitos”, sem se atentar para o sistema que forja a realidade de
exclusão social. Como o período ditatorial não foi devidamente encarado, assimilado e
superado, e como as instituições permaneceram inalteradas, os personagens mudaram, mas as
práticas continuaram as mesmas: antes o inimigo era político e se personificava nos
“esquerdistas” ou “subversivos”; hoje é o traficante, a juventude negra das favelas, a
população drogodependente e em situação de rua, e os movimentos sociais.
Apesar de todas as considerações sobre a influência da ditadura em nossa adolescente
democracia, outros países já demonstraram que as chagas são suturáveis e passíveis de
cicatrização. Até antes da instauração da CNV, as medidas de justiça transicional só estavam
ocorrendo no âmbito da esfera privada, resumidamente ao pagamento de indenizações. Com o
término dos trabalhos da Comissão, possivelmente não se chegará ao fim, mas sim ao início
de um novo ciclo de discussões e possibilidades na esfera pública. Apesar de não ser esse o
seu objetivo, em muitos países os relatórios finais das Comissões foram usados como meio de
prova pelo Judiciário para desencadear ações contra os agentes dos regimes, e os comissários
brasileiros já tem apontado neste sentido. Entretanto, analisando as últimas mobilizações,
parece que a sociedade civil não está apenas travando a luta pela memória, verdade e justiça,
mas sim, em última análise, dando prosseguimento aos embates da década de 60 e 70, na luta
por democracia plena. Os jovens do Levante já mostraram a sua cara e deixaram o recado para
os torturadores, poder público e sociedade em geral: Enquanto não houver justiça, haverá
escracho popular!
74
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80
ANEXO I
MANIFESTO INTERCLUBES MILITARES
COMPROMISSOS...
“Dirijo-me também aos partidos de oposição e aos setores da sociedade que não
estiveram conosco nesta caminhada. Estendo minha mão a eles. De minha parte, não haverá
discriminação, privilégios ou compadrio. A partir da minha posse, serei presidenta de todos os
brasileiros e brasileiras, respeitando as diferenças de opinião, de crença e de orientação
política.”
No dia 31 de outubro de 2010, após ter confirmada a vitória na disputa presidencial, a
Sra Dilma Roussef proferiu um discurso, do qual destacamos o parágrafo acima transcrito.
Era uma proposta de conduzir os destinos da nação como uma verdadeira estadista.
Logo no início do seu mandato, os Clubes Militares transcreveram a mensagem que a
então candidata enviara aos militares da ativa e da reserva, pensionistas das Forças Armadas e
aos associados dos Clubes. Na mensagem a candidata assumia vários compromissos. Ao
transcrevê-la, os Clubes lhe davam um voto de confiança, na expectativa de que os cumprisse.
Ao completar o primeiro ano do mandato, paulatinamente vê-se a Presidente
afastando-se das premissas por ela mesma estipuladas. Parece que a preocupação em governar
para uma parcela da população sobrepuja-se ao desejo de atender aos interesses de todos os
brasileiros.
Especificamente na semana próxima passada, e por três dias consecutivos, pode-se
exemplificar a assertiva acima citada.
Na quarta-feira, 8 de fevereiro, a Ministra da Secretaria de Direitos Humanos
concedeu uma entrevista à repórter Júnia Gama, publicada no dia imediato no jornal Correio
Braziliense, na qual mais uma vez asseverava a possibilidade de as partes que se
considerassem ofendidas por fatos ocorridos nos governos militares pudessem ingressar com
ações na justiça, buscando a responsabilização criminal de agentes
repressores, à semelhança ao que ocorre em países vizinhos. Mais uma vez esta autoridade da
República sobrepunha sua opinião à recente decisão do STF, instado a opinar sobre a validade
da Lei da Anistia. E, a Presidente não veio a público para contradizer a subordinada.
Dois dias depois tomou posse como Ministra da Secretaria de Política para as
Mulheres a Sra Eleonora Menicucci. Em seu discurso a Ministra, em presença da Presidente,
teceu críticas exarcebadas aos governos militares e, se auto-elogiando, ressaltou o fato de ter
81
lutado pela democracia (sic), ao mesmo tempo em que homenageava os companheiros que
tombaram na refrega. A platéia aplaudiu a fala, incluindo a Sra Presidente. Ora, todos
sabemos que o grupo ao qual pertenceu a Sra Eleonora conduziu suas ações no sentido de
implantar, pela força, uma ditadura, nunca tendo pretendido a democracia.
Para finalizar a semana, o Partido dos Trabalhadores, ao qual a Presidente pertence,
celebrou os seus 32 anos de criação. Na ocasião foram divulgadas as Resoluções Políticas
tomadas pelo Partido. Foi dado realce ao item que diz que o PT estará empenhado junto com a
sociedade no resgate de nossa memória da luta pela democracia (sic) durante o período da
ditadura militar. Pode-se afirmar que a assertiva é uma falácia, posto que quando de sua
criação o governo já promovera a abertura política, incluindo a possibilidade de fundação de
outros partidos políticos, encerrando o bi-partidarismo.
Os Clubes Militares expressam a preocupação com as manifestações de auxiliares da
Presidente sem que ela, como a mandatária maior da nação, venha a público expressar
desacordo com a posição assumida por eles e pelo partido ao qual é filiada e aguardam com
expectativa positiva a postura de Presidente de todos os brasileiros e não de minorias sectárias
ou de partidos políticos.
Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 2012
V. Alte Ricardo Antonio da Veiga Cabral
Presidente Clube Naval
Gen Ex Renato Cesar Tibau da Costa
Presidente Clube Militar
Ten Brig Carlos de Almeida Baptista
Presidente Clube de Aeronáutica
82
ANEXO II
MANIFESTO À NAÇÃO BRASILEIRA
“Eles que venham. Por aqui não passarão!”
Este é um alerta à Nação brasileira, assinado por homens cuja existência foi marcada
por servir à Pátria, tendo como guia o seu juramento de por ela, se preciso for, dar a própria
vida. São homens que representam o Exército das gerações passadas e são os responsáveis
pelos fundamentos em que se alicerça o Exército do presente.
Em uníssono, reafirmamos a validade do conteúdo do Manifesto publicado no site do
Clube Militar, a partir do dia 16 de fevereiro próximo passado, e dele retirado, segundo o
publicado em jornais de circulação nacional, por ordem do Ministro da Defesa, a quem não
reconhecemos qualquer tipo de autoridade ou legitimidade para fazê-lo.
O Clube Militar é uma associação civil, não subordinada a quem quer que seja, a não
ser a sua Diretoria, eleita por seu quadro social, tendo mais de cento e vinte anos de gloriosa
existência. Anos de luta, determinação, conquistas, vitórias e de participação efetiva em casos
relevantes da História Pátria.
A fundação do Clube, em si, constituiu-se em importante fato histórico, produzindo
marcas sensíveis no contexto nacional, ação empreendida por homens determinados, gerada
entre os episódios sócio-políticos e militares que marcaram o final do século XIX. Ao longo
do tempo, foi partícipe de ocorrências importantes como a Abolição da Escravatura, a
Proclamação da República, a questão do petróleo e a Contra-revolução de 1964, apenas para
citar alguns.
O Clube Militar não se intimida e continuará atento e vigilante, propugnando
comportamento ético para nossos homens públicos, envolvidos em chocantes escândalos em
série, defendendo a dignidade dos militares, hoje ferida e constrangida com salários aviltados
e cortes orçamentários, estes últimos impedindo que tenhamos Forças Armadas (FFAA) a
altura da necessária Segurança Externa e do perfil político-estratégico que o País já ostenta.
FFAA que se mostram, em recente pesquisa, como Instituição da mais alta confiabilidade do
Povo brasileiro (pesquisa da Escola de Direito da FGV-SP).
O Clube Militar, sem sombra de dúvida, incorpora nossos valores, nossos ideais, e tem
como um de seus objetivos defender, sempre, os interesses maiores da Pátria.
83
Assim, esta foi a finalidade precípua do manifesto supracitado que reconhece na
aprovação da “Comissão da Verdade” ato inconsequente de revanchismo explícito e de
afronta à lei da Anistia com o beneplácito, inaceitável, do atual governo.
Assinam, abaixo, os Oficiais Generais por ordem de antiguidade e os Oficiais
superiores por ordem de adesão.
OFICIAIS GENERAIS
Gen Gilberto Barbosa de Figueiredo
Gen Amaury Sá Freire de Lima
Gen Cássio Cunha
Gen Ulisses Lisboa Perazzo Lannes
Gen Marco Antonio Tilscher Saraiva
Gen Aricildes de Moraes Motta
Gen Tirteu Frota
Gen César Augusto Nicodemus de Souza
Gen Marco Antonio Felício da Silva
Gen Bda Newton Mousinho de Albuquerque
Gen Paulo César Lima de Siqueira
Gen Manoel Theóphilo Gaspar de Oliveira
Gen Elieser Girão Monteiro
OFICIAIS SUPERIORES
T Cel Carlos de Souza Scheliga
Cel Carlos Alberto Brilhante Ustra
Cel Ronaldo Pêcego de Morais Coutinho
Capitão-de-Mar-e-Guerra Joannis Cristino Roidis
Cel Seixas Marques
Cel Pedro Moezia de Lima
Cel Cláudio Miguez
Cel Yvo Salvany
Cel Ernesto Caruso
Cel Juvêncio Saldanha Lemos
84
Cel Paulo Ricardo Paiva
Cel Raul Borges
Cel Rubens Del Nero
Cel Ronaldo Pimenta Carvalho
Cel Jarbas Guimarães Pontes
Cel Miguel Netto Armando
Cel Florimar Ferreira Coutinho
Cel Av Julio Cesar de Oliveira Medeiros
Cel.Av.Luís Mauro Ferreira Gomes
Cel Carlos Rodolfo Bopp
Cel Nilton Correa Lampert
Cel Horacio de Godoy
Cel Manuel Joaquim de Araujo Goes
Cel Luiz Veríssimo de Castro
Cel Sergio Marinho de Carvalho
Cel Antenor dos Santos Oliveira
Cel Josã de Mattos Medeiros
Cel Mario Monteiro Campos
Cel Armando Binari Wyatt
Cel Antonio Osvaldo Silvano
Cel Alédio P. Fernandes
Cel Francisco Zacarias
Cel Paulo Baciuk
Cel Julio da Cunha Fournier
Cel Arnaldo N. Fleury Curado
Cel Walter de Campos
Cel Silvério Mendes
Cel Luiz Carvalho Silva
Cel Reynaldo De Biasi Silva Rocha
Cel Wadir Abbês
Cel Flavio Bisch Fabres
Cel Flavio Acauan Souto
Cel Luiz Carlos Fortes Bustamante Sá
Cel Plotino Ladeira da Matta
85
Cel Jacob Cesar Ribas Filho
Cel Murilo Silva de Souza
Cel Gilson Fernandes
Cel José Leopoldino
Cel Evani Lima e Silva
Cel Antonio Medina Filho
Cel José Eymard Bonfim Borges
Cel Dirceu Wolmann Junior
Cel Sérgio Lobo Rodrigues
Cel Jones Amaral
Cel Moacyr Mansur de Carvalho
Cel Waine Canto
Cel Moacyr Guimarães de Oliveira
Cel Flavio Andre Teixeira
Cel Nelson Henrique Bonança de Almeida
Cel Roberto Fonseca
Cel Jose Antonio Barbosa
Cel Cav Ref Jomar Mendonça
Cel Nilo Cardoso Daltro
Cel Carlos Sergio Maia Mondaini
Cel Vicente Deo
Cel Av Milton Mauro Mallet Aleixo
Cel José Roberto Marques Frazão
Cel Luiz Solano
Cel Flavio Andre Teixeira
Cel Jorge Luiz Kormann
Cel Aluísio Madruga de Moura e Souza
Cel Aer Edno Marcolino
Cel Paulo Cesar Romero Castelo Branco
Cel Carlos Leger Sherman Palmer
Capitão-de-Mar-e-Guerra Cesar Augusto Santos Azevedo
T Cel Osmar José de Barros Ribeiro
T Cel Mayrseu Cople Bahia
TCel José Cláudio de Carvalho Vargas
86
TCel Aer Jorge Ruiz Gomes.
TCel Aer Paulo Cezar Dockorn
Cap de Fragata Rafael Lopes Matos
Maj Paulo Roberto Dias da Cunha
Cel Américo Adnauer Heckert
OFICIAIS SUBALTERNOS
2º Ten José Vargas Jiménez
87
ANEXO III
MANIFESTO LEVANTE CONTRA TORTURA
Mas ninguém se rendeu ao sono.
Todos sabem (e isso nos deixa vivos):
a noite que abriga os carrascos,
abriga também os rebelados.
Em algum lugar, não sei onde,
numa casa de subúrbios,
no porão de alguma fábrica
se traçam planos de revolta.
Pedro Tierra
Saímos às ruas hoje para resgatar a história do nosso povo e do nosso país.
Lembramos da parte talvez mais sombria da história do Brasil, e que parece ser
propositadamente esquecida: a Ditadura Militar. Um período onde jovens como nós, mulheres,
homens, trabalhadores, estudantes, foram proibidos de lutar por uma vida melhor, foram
proibidos de sonhar. Foram esmagados por uma ditadura que cruelmente perseguiu, prendeu,
torturou e exterminou toda uma geração que ousou se levantar.
Não deixaremos que a história seja omitida, apaziguada ou relativizada por quem quer
que seja. A história dos que foram assassinados e torturados porque acreditavam ser possível
construir uma sociedade mais justa é também a nossa história. Nós somos seu povo. A mesma
força que matou e torturou durante a ditadura hoje mata e tortura a juventude negra e pobre.
Não aceitamos que nos torturem, que nos silenciem, nem que enterrem nossa memória. Não
esqueceremos de toda a barbárie cometida.
Temos a disposição de contar a história dos que caíram e é necessário expor e julgar
aqueles que torturaram e assassinaram nosso povo e nossos sonhos. Torturadores e apoiadores
da ditadura militar: vocês não foram absolvidos! Não podemos aceitar que vocês vivam suas
vidas como se nada tivesse acontecido enquanto, do nosso lado, o que resta são silêncio,
saudades e a loucura provocada pela tortura. Nós acreditamos na justiça e não temos medo de
denunciar os verdadeiros responsáveis por tanta dor e sofrimento.
88
Convidamos a juventude e toda a sociedade para se posicionar em defesa da Comissão
Nacional da Verdade e contra os torturadores, que hoje denunciamos e que vivem escondidos
e impunes e seguem ameaçando a liberdade do povo. Até que todos os torturadores sejam
julgados, não esqueceremos, nem descansaremos.
Pela memória, verdade e justiça!
Levante Popular da Juventude
26 de março de 2012