MACHADO, Arlindo - Arte e Mídia

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    Este artigo foi publicado na edio 1, em dezembro de 2004, darevista eletrnica e-comps: http://www.compos.org.br/e-compos

    ARTE E MDIA: APROXIMAES E DISTINES

    Arlindo Machado1

    PUC-SP e ECA/USP

    A expresso inglesamedia arte o seu correlato portugus artemdia so usados

    hoje para designar formas de expresso artstica que se apropriam de recursos

    tecnolgicos das mdias e da indstria do entretenimento em geral, ou intervm em

    seus canais de difuso, para propor alternativas qualitativas. Essa designao

    genrica apresenta o inconveniente de restringir a discusso da artemdia apenas aoplano tcnico (suportes, ferramentas, modos de produo, circuitos de difuso), sem

    atingir o cerne da questo, que o entendimento da imbricao desses dois termos:

    mdia e arte. Que fazem eles juntos e que relao mantm entre si? Dizer artemdia

    significa sugerir que os produtos da mdia podem ser encarados como as formas de

    arte de nosso tempo ou, ao contrrio, que a arte de nosso tempo busca de alguma

    forma interferir no circuito massivo das mdias? Em sua acepo prpria, a artemdia

    algo mais que a mera utilizao de cmeras, computadores e sintetizadores na

    produo de arte, ou a simples insero da arte em circuitos massivos como a

    televiso e a Internet. A questo mais complexa saber de que maneira podem se

    combinar, se contaminar e se distinguir arte e mdia, instituies to diferentes do

    1Arlindo Machado professor da PUC-SP e da ECA/USP.

    Publicou, entre outros, os livros Eisenstein: Geometria do xtase,A Iluso Especular, A Arte do Vdeo, Mquina e Imaginrio,El Imaginario Numrico, Video Cuadernos, Pr-cinemas & Ps-cinemas,

    A Televiso Levada a Srio, O Quarto Iconoclasmo, El Paisaje Mediticoe Made in Brasil: Trs Dcadas de Vdeo Brasileiro.

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    ponto de vista das suas respectivas histrias, de seus sujeitos ou protagonistas e da

    insero social de cada uma.

    O suporte instrumental parece resumir o aspecto mais simples do problema. A arte

    sempre foi produzida com os meios de seu tempo. Bach comps fugas para cravo

    porque este era o instrumento musical mais avanado da sua poca em termos de

    engenharia e acstica. J Stockhausen preferiu compor texturas sonoras para

    sintetizadores eletrnicos, pois em sua poca j no fazia mais sentido conceber peas

    para cravo, a no ser em termos de citao histrica. Mas o desafio enfrentado por

    ambos os compositores foi exatamente o mesmo: extrair o mximo das possibilidades

    musicais de dois instrumentos recm-inventados e que davam forma sensibilidadeacstica de suas respectivas pocas. Edgar Degas, que nasceu quase simultaneamente

    com a inveno da fotografia, utilizou extensivamente essa tecnologia, no apenas

    para estudar o comportamento da luz, que ele traduzia em tcnica impressionista,

    mas tambm em suas esculturas, para congelar corpos em movimento com o mesmo

    frescor com que o fazia o rapidssimo obturador da cmera. A srie fundante de

    Marcel Duchamp Nu descendant l'escalier uma aplicao direta da tcnica da

    cronofotografia (precursora da cinematografia) de tienne Marey, com que o artistatravou contato atravs de seu irmo Raymond Duchamp-Vallon, cronofotgrafo do

    Hospital da Salptrire, em Paris. Por que, ento, o artista de nosso tempo recusaria o

    vdeo, o computador, a Internet, os programas de modelao, processamento e edio

    de imagem? Se toda arte feita com os meios de seu tempo, as artes eletrnicas

    representam a expresso mais avanada da criao artstica atual e aquela que

    melhor exprime sensibilidades e saberes do homem da virada do terceiro milnio.

    Desviando a tecnologia do seu projeto industrial

    Mas a apropriao que faz a arte do aparato tecnolgico que lhe contemporneo

    difere significativamente daquela feita por outros setores da sociedade, como a

    indstria de bens de consumo. Em geral, aparelhos, instrumentos e mquinas

    semiticas no so projetados para a produo de arte, pelo menos no no sentido

    secular desse termo, tal como ele se constituiu no mundo moderno a partir mais ou

    menos do sculo XV. Mquinas semiticas so, na maioria dos casos, concebidas

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    dentro de um princpio de produtividade industrial, de automatizao dos

    procedimentos para a produo em larga escala, mas nunca para a produo de

    objetos singulares, singelos e sublimes. A pianola, por exemplo, foi inventada em

    meados do sculo XIX como um recurso industrial para automatizar a execuo

    musical e dispensar a performance ao vivo. Graas a uma fita de papel cujas

    perfuraes memorizavam as posies e os tempos das teclas pressionadas durante

    uma nica execuo, o piano mecnico podia reproduzir essa mesma execuo

    quantas vezes fossem necessrias e sem necessidade da interveno de um intrprete.

    A funo do aparato mecnico era, portanto, aumentar a produtividade da msica

    executada em ambientes pblicos (cafs, restaurantes, hotis) e diminuir os custos,

    substituindo o intrprete de carne e osso pelo seu clone mecnico, mais disciplinado eeconmico. As perfuraes de uma fita podiam ser ainda copiadas para outra fita e

    assim uma nica apresentao se multiplicava em infinitas outras, dando incio ao

    projeto de reprodutibilidade em escala que, um pouco mais tarde, com a inveno do

    fongrafo, desembocaria na poderosa indstria fonogrfica.

    A fotografia, o cinema, o vdeo e o computador foram tambm concebidos e

    desenvolvidos segundo os mesmos princpios de produtividade e racionalidade, nointerior de ambientes industriais e dentro da mesma lgica de expanso capitalista

    (sobre a relao entre a inveno desses dispositivos tcnicos e o contexto poltico-

    econmico ver, sobretudo, Winston 1998 e Zielinski 1999). Mesmo os aplicativos

    explicitamente destinados criao artstica (ou, pelo menos, quilo que a indstria

    entende por criao), como os de autoria em computao grfica, hipermdia e vdeo

    digital, apenas formalizam um conjunto de procedimentos conhecidos, herdados de

    uma histria da arte j assimilada e consagrada. Neles, a parte computvel dos

    elementos constitutivos de determinado sistema simblico, bem como as suas regras

    de articulao e os seus modos de enunciao so inventariados, sistematizados e

    simplificados para serem colocados disposio de um usurio genrico,

    preferencialmente leigo e descartvel, de modo a permitir a produtividade em larga

    escala e atender a uma demanda de tipo industrial.

    Os atuais algoritmos de compactao da imagem, utilizados em quase todos os

    formatos de vdeo digital, so a melhor demonstrao da filosofia que ampara boa

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    parte dos progressos no campo das tecnologias audiovisuais. Eles partem da premissa

    de que toda imagem contm uma taxa elevadssima de redundncia, entendidas como

    tal as reas idnticas dentro de um nico quadro e as que se repetem de um quadro a

    outro, no caso da imagem em movimento. Eliminando-se essa redundncia por meio

    de uma codificao especfica, obtm-se uma significativa compactao dos arquivos

    de imagem. A premissa do vdeo digital evidentemente discutivel, pois s aplicvel

    produo mais banal e cotidiana, de onde, alis, ela foi extrada. Ela no pode aplicar-

    se a imagens limtrofes da arte contempornea, como os quadros da action painting

    ou osflickering films (filmes piscantes, em que cada quadro individual diferente

    dos demais) do cinema experimental norte-americano, razo porque obras dessa

    natureza resultam destrudas pela compactao digital. Experincias desse tipo, quelidam com questes essenciais da arte, como o estranhamento, a incerteza, a

    indeterminao, a histeria, o colapso, o desconforto existencial no esto obviamente

    no horizonte do mercado e da indstria, ambientes usualmente positivos, otimistas e

    banalizados. Algoritmos e aplicativos so concebidos industrialmente para uma

    produo mais rotineira e conservadora, que no perfura limites, nem perturba os

    padres estabelecidos.

    Existem diferentes maneiras de se lidar com as mquinas semiticas

    crescentemente disponveis no mercado da eletrnica. A perspectiva artstica

    certamente a mais desviante de todas, uma vez que ela se afasta em tal intensidade do

    projeto tecnolgico originalmente imprimido s mquinas e programas que equivale

    a uma completa reinveno dos meios. Quando Nam June Paik, com a ajuda de ims

    poderosos, desvia o fluxo dos eltrons no interior do tubo iconoscpico da televiso,

    para corroer a lgica figurativa de suas imagens; quando fotgrafos como Frederic

    Fontenoy e Andrew Davidhazy modificam o mecanismo do obturador da cmera

    fotogrfica para obter no o congelamento de um instante, mas um fulminante

    processo de desintegrao das figuras resultante da anotao do tempo no quadro

    fotogrfico (Machado 1997: 64); quando William Gibson, em seu romance digital

    Agrippa (1992), coloca na tela um texto que se embaralha e se destri, graas a uma

    espcie de vrus de computador capaz de detonar os conflitos de memria do

    aparelho, no se pode mais, em nenhum desses exemplos, dizer que os artistas esto

    operando dentro das possibilidades programadas e previsveis dos meios invocados.

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    Eles esto, na verdade, atravessando os limites das mquinas semiticas e

    reinventando radicalmente o seus programas e as suas finalidades.

    O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se

    s determinaes do aparato tcnico, subverter continuamente a funo da

    mquina ou do programa de que ele se utiliza, manej-los no sentido contrrio de

    sua produtividade programada. Talvez at se possa dizer que um dos papis mais

    importantes da arte numa sociedade tecnocrtica seja justamente a recusa

    sistemtica de submeter-se lgica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o

    projeto industrial das mquinas semiticas, reinventando, em contrapartida, as suas

    funes e finalidades. Longe de deixar-se escravizar por uma norma, por um modoestandardizado de comunicar, obras realmente fundantes na verdade reinventam a

    maneira de se apropriar de uma tecnologia.

    Vejamos o caso de Conlon Nancarrow, compositor anglo-mexicano que, a partir de

    1950, decidiu compor especificamente para a pianola, o mesmo instrumento do

    sculo XIX que introduziu, juntamente com a fotografia, a estandardizao, a

    reprodutibilidade e a serializao da produo audiovisual. Um sculo aps ainveno do piano mecnico, Nancarrow viu nele algo que as geraes anteriores no

    puderam ver, limitadas como estavam pela adeso ao projeto industrial do

    instrumento. Como a msica era produzida graas memorizao das notas

    codificada nas fitas perfuradas, ela podia ser produzida atravs da manipulao direta

    das fitas e no apenas, como se fazia at ento, atravs do registro de uma

    performance. Produzindo as perfuraes manualmente, era possvel fazer o piano

    soar como nunca havia soado antes, pois j no havia o constrangimento da

    performance de um intrprete, restrita, como no poderia deixar de ser, aos limites

    do desempenho humano. A mquina, at ento limitada reproduo de uma

    performance humana, podia agora produzir uma msica que potencializava

    infinitamente essa performance. Mais que isso: explorando diferentes velocidades de

    rotao das fitas, vozes diferentes podiam ser combinadas de forma complexa em

    simultneos accelerandos e ritardandos. Dessa maneira, ao inverter ou corromper a

    programao original da pianola, Nancarrow contribuiu para uma radical reinveno

    dessa mquina at ento restrita a aplicaes comerciais banais.

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    As tcnicas, os artifcios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber,

    construir e exibir seus trabalhos no so apenas ferramentas inertes, nem mediaes

    inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderiam substituir por quaisquer

    outras. Eles esto carregados de conceitos, eles tm uma histria, eles derivam de

    condies produtivas bastante especficas. A artemdia, como qualquer arte

    fortemente determinada pela mediao tcnica, coloca o artista diante do desafio

    permanente de, ao mesmo tempo em que se abre s formas de produzir do presente,

    contrapor-se tambm ao determinismo tecnolgico, recusar o projeto industrial j

    embutido nas mquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte

    simplesmente num endosso dos objetivos de produtividade da sociedade tecnolgica.Longe de se deixar escravizar pelas normas de trabalho, pelos modos estandardizados

    de operar e de se relacionar com as mquinas, longe ainda de se deixar seduzir pela

    festa de efeitos e clichs que atualmente dominam o entretenimento de massa, o

    artista digno desse nome busca se reapropriar das tecnologias mecnicas,

    audiovisuais, eletrnicas e digitais numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar

    em benefcio de suas idias estticas. O desafio atual da artemdia no est, portanto,

    na mera apologia ingnua das atuais possibilidades de criao: a artemdia deve, pelocontrrio, traar uma diferena ntida entre o que , de um lado, a produo

    industrial de estmulos agradveis para as mdias de massa e, de outro, a busca de

    uma tica e uma esttica para a era eletrnica.

    A arte como metalinguagem da mdia

    Como poderamos entender esse desvio do projeto tecnolgico original no

    dilogo com as mdias e a sociedade industrializada? Ora, a artemdia justamente o

    lugar onde essa questo encontra uma resposta consistente. O fato mesmo das suas

    obras estarem sendo produzidas no interior dos modelos econmicos vigentes, mas

    na direo contrria deles, faz delas um dos mais poderosos instrumentos crticos de

    que dispomos hoje para pensar o modo como as sociedades contemporneas se

    constituem, se reproduzem e se mantm. Pode-se mesmo dizer que a artemdia

    representa hoje a metalinguagem da sociedade miditica, na medida em que

    possibilita praticar, no interior da prpria mdia e de seus derivados institucionais

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    (portanto no mais nos guetos acadmicos ou nos espaos tradicionais da arte),

    alternativas crticas aos modelos atuais de normatizao e controle da sociedade.

    A vdeo-arte talvez tenha sido um dos primeiros lugares onde essa conscincia se

    constituiu de forma clara desde o incio. Antes mesmo da inveno do video tape

    porttil e da mdia eletrnica ser reconhecida como campo de possibilidades para a

    expresso esttica, alguns criadores como Wolf Vostell e Nam June Paik j

    desmontavam os sintagmas televisuais em instalaes ao vivo ou atravs do registro

    em suporte cinematogrfico. Pode-se dizer, como o faz Anne-Marie Duguet (1981:

    86), que a perturbao dos signos visuais e sonoros da televiso, o retalhamento e a

    desmontagem impiedosa de seus programas, de seus fragmentos, ou at mesmo deseus rudos naturais, constituem a matria de boa parte das pesquisas plsticas em

    vdeo. Da por que no seria exagero dizer que a televiso tem sido o referente mais

    direto e mais freqente da vdeo-arte nos seus quase quarenta anos de histria.

    Algumas verificaes.This is a Television Receiver (1971), vdeo de David Hall:

    nele, a imagem e a voz bastante familiares do apresentador da BBC Richard Baker

    recitando as notcias de um telejornal so progressivamente deformadas emanamorfoses cada vez mais acentuadas, ao mesmo tempo em que suas sucessivas

    recopiagens vo fazendo desintegrar suas formas originais. Assim, ns assistimos a

    uma desintegrao implacvel da face do apresentador, medida que as anamorfoses

    a distorcem, tornando-a cada vez mais grotesca, e medida tambm que as

    sucessivas regravaes vo degenerando o sinal original, dissolvendo-o

    progressivamente nos rudos do canal. O resultado que essa figura respeitvel e

    emblemtica da mdia se v reduzida quilo que ela em sua essncia: uma seqncia

    de padres pulsantes de luz sobre a superfcie da tela. Outra verificao:

    Technology/Transformation (1979), vdeo de Dara Birnbaum, que utiliza imagens

    pirateadas do seriado americano Wonder Woman (Mulher Maravilha) e as

    desmonta para discutir a imagem da mulher nos meios de massa. A artista fixou-se

    basicamente na seqncia da transformao da mulher comum em Mulher

    Maravilha, um espetculo tpico de seriados juvenis, baseado em efeitos pirotcnicos

    de mgico de vaudeville. Essa seqncia repetida mais de uma dezena de vezes, at

    esgotar todo o seu apelo sedutor e resultar banalizada pelo excesso de nfase.

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    No caminho que vai da vdeo-arte artemdia, h uma obra que se pode considerar

    fundante no que diz respeito ao questionamento da sociedade miditica: a de Antoni

    Muntadas. De fato, poucas obras, a partir da segunda metade do sculo XX, foram

    capazes de revelar o funcionamento mais ntimo e invisvel de nossas sociedades com

    a mesma penetrao e radicalidade com que o fez esse artista catalo. As mdias

    eletrnicas, os espetculos de massa, os cenrios da performance poltica e

    econmica, a instituio das artes, a arquitetura e a organizao urbana, tudo isso foi

    dissecado por ele com o rigor de um cirurgio, o alcance de um filsofo, mas

    sobretudo com a sensibilidade de um artista capaz de experimentar as contradies

    mais agudas de nosso tempo e exprimi-las na linguagem mais adequada. Em outraspalavras, a anlise que faz Muntadas das estruturas de poder, que subjazem por baixo

    das formas aparentemente incuas de nossas sociedades, no toma a forma de um

    discurso racional e distanciado, mas produzida com os mesmos instrumentos e

    meios com que essas estruturas so construdas. Trata-se, portanto, de um ataque

    por dentro, de uma contaminao interna, que faz com que essas estruturas deixem

    momentaneamente de funcionar como habitualmente se espera, para que as

    possamos enxergar por um outro vis, preferencialmente crtico.

    A obra de Muntadas extensa e variada: compreende vdeos, programas para a

    televiso, instalaes multimdia tanto em espaos fechados quanto em espaos

    pblicos, intervenes na paisagem urbana e, mais recentemente, projetos para a

    Internet. Nela, a tendncia mais forte consiste em reciclar materiais audiovisuais, por

    meio da construo de novos enunciados a partir dos materiais que j esto em

    circulao nos meios de massa. Nesse aspecto, Muntadas retoma uma grande

    tradio da arte contempornea, que comea com os ready mades de Duchamp,

    segue com a reapropriao de objetos industriais pelo dadasmo, as colagens de

    Schwitters, Rodtchenko e Heartfield, at a retomada da iconografia de massa pela

    pop art. Mas a sua contribuio particular est em colocar toda essa potica da

    reciclagem a servio de uma investigao sistemtica e implacvel do modo como se

    organizam e se reproduzem as formas de poder no mundo contemporneo.

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    Para proceder ao exame crtico dos mecanismos subjetivos com que trabalha, por

    exemplo, a televiso, Muntadas faz reciclar as imagens e os sons da prpria mdia

    eletrnica, justapondo fragmentos uns em seguida aos outros, como se estivesse

    praticando o zapping, porm, num ritmo muito mais lento, de modo a permitir um

    exame mais sistemtico de seu modo de funcionamento. Basicamente, ele faz correr

    na tela, tal e qual foram nela encontrados, spots publicitrios, programas religiosos,

    propaganda eleitoral ou crditos de abertura e encerramento de programas, todos

    eles tomados dos mais diferentes canais, dos mais variados modelos de televiso das

    vrias partes do globo. O resultado perturbador que tudo, seja qual for a fonte ou a

    origem, tristemente igual e repetitivo, confirmando uma espcie de variao infinita

    em torno da identidade nica. Cross-cultural Television (1987), realizado em parceriacom Hank Bull, exemplar nesse sentido: imagens eletrnicas provenientes de

    inmeros pases do globo demonstram que, malgrado as variaes locais ditadas por

    especificidades culturais ou lingsticas e por diferenas de suporte econmico, a

    televiso se constri da mesma maneira, se enderea de forma semelhante ao

    espectador, fala sempre no mesmo tom de voz e utiliza o mesmo repertrio de

    imagens sob qualquer regime poltico, sob qualquer modelo de tutela institucional,

    sob qualquer patamar de progresso cultural ou econmico. Trata-se, nesse vdeo, detornar evidente o imperialismo do Mesmo na tela pequena.

    Os exemplos poderiam se multiplicar ao infinito. Em nosso tempo, a mdia est

    permanentemente presente ao redor do artista, despejando o seu fluxo contnuo de

    seduo audiovisual, convidando ao gozo do consumo universal e chamando para si o

    peso das decises no plano poltico. difcil imaginar que um artista sintonizado com

    o seu tempo no se sinta forado a se posicionar com relao a isso tudo e a se

    perguntar que papel significante pode ainda a arte jogar nesse contexto. As respostas

    que ele pode dar constituem a diferena introduzida pela interveno artstica no

    universo miditico. Em lugar de simplesmente cumprir o papel que lhe foi designado,

    como criador de demo tapes atestadores do poder da tecnologia, alimentando assim

    com enunciados agradveis a mquina produtiva, o artista, na maioria das vezes, tem

    um projeto crtico relacionado com os meios e circuitos nos quais ele opera. Ele busca

    interferir na prpria lgica das mquinas e dos processos tecnolgicos, subvertendo

    as possibilidades prometidas pelos aparatos e colocando a nu os seus pressupostos,

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    Mas a idia de que se possa fazer arte nas mdias ou com as mdias uma

    discusso que est longe de ser matria de consenso. De uma forma geral, os

    intelectuais de formao tradicional resistem tentao de vislumbrar um alcance

    esttico em produtos de massa, fabricados em escala industrial. No seu modo de

    entender, a boa, profunda e densa tradio cultural, lentamente filtrada ao longo dos

    sculos por uma avaliao crtica competente, no pode ter nada em comum com a

    epidrmica, superficial e descartvel produo em srie de objetos comerciais de

    nossa poca, da porque falar em criatividade ou qualidade esttica a propsito da

    produo miditica s pode ser uma perda de tempo.

    Os defensores da artemdia, entretanto, costumam ser menos arrogantes e maisespertos. Eles defendem a idia de que a demanda comercial e o contexto industrial

    no inviabilizam necessariamente a criao artstica, a menos que identifiquemos a

    arte com o artesanato ou com a aura do objeto nico. No entender destes ltimos, a

    arte de cada poca feita no apenas com os meios, os recursos e as demandas dessa

    poca, mas tambm no interior dos modelos econmicos e institucionais nela

    vigentes, mesmo quando essa arte francamente contestatria em relao a eles. Por

    mais severa que possa ser a nossa crtica indstria do entretenimento de massa, nose pode esquecer que essa indstria no um monolito. Por ser complexa, ela est

    repleta de contradies internas e nessas suas brechas que o artista pode penetrar

    para propor alternativas qualitativas. Assim, no h nenhuma razo porque, no

    interior da indstria do entretenimento, no possam despontar produtos como

    programas de televiso, videoclipes, msica pop etc que em termos de qualidade,

    originalidade e densidade significante rivalizem com a melhor arte sriade nosso

    tempo. No h tambm nenhuma razo porque esses produtos qualitativos da

    comunicao de massa no possam ser considerados verdadeiras obras criativas do

    nosso tempo, sejam elas consideradas arte ou no.

    O fato de determinadas formas artsticas serem criadas no interior de regimes de

    produo restritivos, estandardizados e automatizados, com o suporte de

    instrumentos, know how e linguagem desenvolvidos pela ou para a indstria do

    entretenimento de massa, s vezes at mesmo encomendadas e/ou financiadas pelas

    mesmas instncias econmicas que sustentam ou promovem essas formas

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    industrializadas de produo, no as torna necessariamente homologatrias dessas

    estruturas e poderes. Pelo contrrio, elas podem estar sendo produzidas sob forte

    conflito intelectual e com inabalvel capacidade de resistncia contra as imposies

    do contexto industrial. Afinal, a cultura de outras pocas no esteve menos

    constrangida por imposies de ordem poltica e econmica do que a de agora e nem

    por isso ela deixou de ser realizada com grandeza. Assim como o livro impresso, to

    hostilizado nos seus primrdios, acabou por se revelar o lugar privilegiado da

    literatura, no h porque a televiso ou a Internet no possam abrigar as formas de

    arte de nosso tempo.

    Talvez possamos com proveito aplicar arte produzida na era das mdias o mesmoraciocnio que Walter Benjamin (1969: 72) aplicou fotografia e ao cinema: o

    problema no saber se ainda podemos considerar artsticos objetos e eventos tais

    como um programa de televiso, uma histria em quadrinhos, ou um show de uma

    banda de rock. O que importa perceber que a existncia mesma desses produtos, a

    sua proliferao, a sua implantao na vida social coloca em crise os conceitos

    tradicionais e anteriores sobre o fenmeno artstico, exigindo formulaes mais

    adequadas nova sensibilidade que agora emerge. Uma crtica no dogmtica saberficar atenta dialtica da destruio e da reconstruo, ou da degenerao e do

    renascimento que se faz presente em todas as etapas de grandes transformaes. O

    que no se pode julgar toda essa produo com base numa legislao terica

    prefixada, baseada em categorias assentadas e familiares, j que ela est sendo

    governada por modelos formativos que provavelmente no foram ainda percebidos

    ou analisados teoricamente (Lyotard 1982: 257-267). Com as formas tradicionais de

    arte entrando em fase de esgotamento, a confluncia da arte com a mdia representa

    um campo de possibilidades e de energia criativa que poder resultar proximamente

    num salto no conceito e na prtica tanto da arte quanto da mdia, se houver, claro,

    inteligncias e sensibilidades suficientes para extrair frutos dessa nova situao.

    Existe hoje toda uma polmica com respeito s origens das artes eletrnicas e essa

    polmica pode nos trazer alguns ensinamentos. Para alguns, ela nasce no ambiente

    sofisticado da vdeo-arte, com as primeiras experincias do alemo Wolf Vostell e do

    coreano Nam June Paik. A vdeo-arte surge oficialmente no comeo dos anos 60, com

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    a disponibilizao comercial do Portapack (gravador portatil de videotape) e graas

    sobretudo ao gnio indomesticvel de Paik. Mas se a televiso puder ser includa no

    mbito das artes eletrnicas (e no h nenhuma razo para que no seja), teremos de

    acrescentar galeria de seus pioneiros nomes como o do hngaro-americano Ernie

    Kovacs e do francs Jean-Christophe Averty, que introduziram na televiso a autoria

    e a criao artstica, alm de terem sido os primeiros a explorar largamente a

    linguagem do novo meio, razo porque alguns autores os considerem os verdadeiros

    criadores da vdeo-arte, antes mesmo de Vostell e Paik.

    Averty, o Mlis da televiso, foi um dos primeiros a propor e a realizar, em quase

    uma centena de programas, uma televiso autoral e delirante, utilizando largamenterecursos de insero eletrnica quando eles ainda mal tinham acabado de ser

    inventados. Seus Ubu RoieUbu Enchane, produzidos para a Radio et Tlvision

    Franaise na dcada de 1960, hipertrofiam o que j havia de absurdo na pea

    homnima de Alfred Jarry, inaugurando abertamente uma televiso de inveno.

    Kovacs, por sua vez, desde o comeo dos anos 1950, escreveu, dirigiu e interpretou

    uma srie de programas fulminantemente inventivos para as trs principais redes

    comerciais de televiso dos EUA, onde foram experimentados, de forma sistemtica eradical, vrios procedimentos que depois seriam conhecidos como desconstrutivos:

    dissociao entre imagem e som, revelao dos bastidores da televiso, com seus

    aparatos e tcnicos, desmistificao das tcnicas ilusionistas, constante referncia

    televiso como dispositivo. Bruce Ferguson (1990: 349-365) chegou a vislumbrar na

    obra de autores seminais da vanguarda contempornea, como Michel Snow, Bruce

    Nauman e Vito Acconci, vrios procedimentos desconstrutivos e metalingsticos que

    j haviam sido utilizados antes por Kovacs.

    O sentido das artes eletrnicas adquire rumos completamente diferentes se

    contarmos a sua histria a partir de Paik e Vostell, que vm do circuito sofisticado e

    erudito dos museus e galerias de arte, ou a partir de Kovacs e Averty, que despontam

    da experincia da cultura popular eletrificada e ampliada pelas tecnologias

    eletrnicas. a mesma tenso que existe entre Chaplin e Eisenstein no cinema, ou

    entre Theremin e Stockhausen na msica eletrnica. Tradicionalmente, a histria da

    arte contempornea contada a partir apenas da primeira perspectiva, ignorando

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    quase completamente a segunda, mas uma artemdia conseqente tem de ser capaz

    de encontrar o ponto de fuso das duas principais perspectivas.

    Talvez a dificuldade esteja apenas para aqueles que encaram essa questo a partir

    do prisma das artes tradicionais e para os tericos que se colocam tambm nesse

    horizonte. Quem faz arte hoje, com os meios de hoje, est obrigatoriamente

    enfrentando a todo momento a questo da mdia e do seu contexto, com seus

    constrangimentos de ordem institucional e econmica, com seus imperativos de

    disperso e anonimato, bem como com seus atributos de alcance e influncia. Trata-

    se de uma prtica, ao mesmo tempo, secular e moderna, afirmativa e negativa,

    integrada e apocalptica. Os pblicos dessa nova arte so cada vez mais heterogneos,no necessariamente especializados e nem sempre se do conta de que o que esto

    vivenciando uma experincia esttica. medida que a arte migra do espao privado

    e bem definido do museu, da sala de concertos ou da galeria de arte para o espao

    pblico e turbulento da televiso, da Internet, do disco ou do ambiente urbano, onde

    passa a ser fruda por massas imensas e difceis de caracterizar, ela muda de estatuto

    e alcance, configurando novas e estimulantes possibilidades de insero social. Esse

    movimento complexo e contraditrio, como no poderia deixar de ser, pois implicaum gesto positivo de apropriao, compromisso e insero numa sociedade de base

    tecnocrtica e, ao mesmo tempo, uma postura de rejeio, de crtica, s vezes at

    mesmo de contestao. Ao ser excluda dos seus guetos tradicionais, que a

    legitimavam e a instituam como tal, a arte passa a enfrentar agora o desafio da sua

    dissoluo e da sua reinveno como evento de massa.

    REFERNCIAS

    Benjamin, Walter (1969). A obra de arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica. A Idia

    do Cinema (Jos Lino Grnnewald, org.) Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira.

    Duguet, Anne-Marie (1981). Vido, la mmoire au poing. Paris: Hachette.

    Ferguson, Bruce (1990). The Importance of Being Ernie. Illuminating Video (Doug Hall

    and Sally Jo Fifer, eds.). New York: Aperture.

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    Lyotard, Jean-Franois (1982). Rponse la question: qu'est-ce que le Post moderne?.

    Critique, Paris, n. 419.

    Machado, Arlindo (1997).Pr-cinemas & Ps-cinemas. Campinas: Papirus.

    Winston, Brian (1998).Media Technology and Society. London: Routledge.Zielinski, Siegfried (1999). Audiovisions. Cinema and Television as Entractes in History.

    Amsterdam: Amsterdam Univ. Press.