Machado de assis casa velha

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  • 1. Casa Velha, de Machado de AssisFonte: ASSIS, Machado de. Casa Velha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986 (Literatura e Teoria Literria, 57).Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas. Para maiores informaes, escreva para .Estamos em busca de patrocinadores e voluntrios para nos ajudar a manter este projeto. Se voc quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para e saiba como isso possvel.Casa Velha Machado de Assis CAPTULO I ANTES E DEPOIS DA MISSA Aqui est o que contava, h muitos anos, um velho cnego da Capela Imperial: No desejo ao meu maior inimigo o que me aconteceu no ms de abril de 1839. Tinha-me dado na cabea escrever uma obra poltica, a histria do reinado de D. Pedro I. At ento esperdiara algum talento em dcimas e sonetos, muitos artigos de peridicos, e alguns sermes, que cedia a outros, depois que reconheci que no tinha os dons indispensveis ao plpito. No ms de agosto de 1838 li as Memrias que outro padre, Lus Gonalves dos Santos, o Padre Perereca chamado, escreveu do tempo do rei, e foi esse livro que me meteu em brios. Achei-o seguramente medocre, e quis mostrar que um membro da igreja brasileira podia fazer cousa melhor.

2. Comecei logo a recolher os materiais necessrios, jornais, debates, documentos pblicos, e a tomar notas de toda a parte e de tudo. No meado de fevereiro, disseram-me que, em certa casa da cidade, acharia, alm de livros, que poderia consultar, muitos papis manuscritos, alguns reservados, naturalmente importantes, porque o dono da casa, falecido desde muitos anos, havia sido ministro de Estado. Compreende-se que esta notcia me aguasse a curiosidade. A casa, que tinha capela para uso da famlia e dos moradores prximos, tinha tambm um padre contratado para dizer missa aos domingos, e confessar pela quaresma: era o Rev. Mascarenhas. Fui ter com ele para que me alcanasse da viva a permisso de ver os papis. No sei se lhe consentir isso, disse-me ele; mas vou ver. Por que no h de consentir? E claro que no me utilizarei seno do que for possvel, e com autorizao dela. Pois sim, mas que livros e papis esto l em grande respeito. No se mexe em nada que foi do marido, por uma espcie de venerao, que a boa senhora conserva e sempre conservar. Mas enfim vou ver, e far-se- o que for possvel. Mascarenhas trouxe-me a resposta dez dias depois. A viva comeou recusando; mas o padre instou, exps o que era, disse-lhe que nada perdia o devido respeito memria do marido consentindo que algum folheasse uma parte da biblioteca e do arquivo, uma parte apenas; e afinal conseguiu, depois de longa resistncia, que me apresentasse l. No me demorei muito em usar do favor; e no domingo prximo acompanhei o Padre Mascarenhas. A casa, cujo lagar e direo no preciso dizer, tinha entre o povo o nome de Casa Velha, e era o realmente: datava dos fins do outro sculo. Era uma edificao slida e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde criana, conhecia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os dous portes enormes, um especial s pessoas da famlia e s visitas, e outro destinado ao servio, s cargas que iam e vinham, s seges, ao gado que saa a pastar. Alm dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho que dava acesso s pessoas da vizinhana, que ali iam ouvir missa aos domingos, ou rezar a ladainha aos sbados. Foi por esse caminho que chegamos casa, s sete horas e poucos minutos. Entramos na capela, aps um raio de sol, que brincava no azulejo da parede interior onde estavam representados vrios passos da Escritura. A capela era pequena, mas muito bem tratada. Ao rs-do-cho, esquerda, perto do altar, uma tribuna servia privativamente dona da casa, e s senhoras da famlia ou hspedas, que entravam pelo interior; os homens, os fmulos e vizinhos ocupavam o corpo da igreja. Foi o que me disse o Padre Mascarenhas explicando tudo. Chamou-me a ateno para os castiais de prata, para as toalhas finas e alvssimas, para o cho em que no havia uma palha. Todos os paramentos so assim, concluiu ele. E este confessionrio? Pequeno, mas um primor. No havia coro nem orgo. J disse que a capela era pequena; em certos dias, a concorrncia missa era tal que at na soleira da porta vinham ajoelhar-se fiis. Mascarenhas faz-me notar esquerda da capela o lagar em que estava sepultado o ex-ministro. Tinha-o conhecido, pouco antes de 1831, e contou-me algumas particularidades interessantes; falou-me tambm da piedade e saudade da viva, da venerao em que tinha a memria dele, das relquias que guardava, das aluses freqentes na conversao. L ver na biblioteca o retrato dele, disse-me. Comearam a entrar na igreja algumas pessoas da vizinhana, em geral pobres, de todas as idades e cores. Dos homens alguns, depois de persignados e rezados, saam, outra vez, para esperar fora, conversando, a hora da missa. Vinham tambm escravos da casa. Um destes era o prprio sacristo; tinha a seu cargo, no s a guarda e asseio da cabela, mas tambm ajudava a missa, e, salvo a prosdia latina' com muita perfeio. Fomos ach-lo diante de uma grande cmoda de jacarand antigo, com argolas de prata nos gavetes, concluindo os arranjos preparatrios. Na sacristia, entrou logo depois um moo de vinte anos mais ou menos, simptico, fisionomia meiga e franca, a quem o Padre Mascarenhas me apresentou; era o filho da dona da casa, Flix.2 3. J sei, disse ele sorrindo, mame me falou de V. Revma. Vem ver o arquivo de papai? Confiei-lhe rapidamente a minha idia, e ele ouviu-me com interesse. Enquanto falvamos vieram outros homens de dentro, um sobrinho do dono da casa, Eduardo, tambm de vinte anos, um velho parente, Coronel Raimundo, e uns dous ou trs hspedes. Flix apresentou-me a todos, e, durante alguns minutos, fui naturalmente objeto de grande curiosidade. Mascarenhas, paramentado e de p, com o cotovelo na borda da cmoda, ia dizendo alguma cousa, pouca; ouvia mais do que falava, com um sorriso antecipado nos lbios, voltando a cabea a mido para um ou outro. Flix tratava -o com benevolncia e at deferncia; pareceu-me inteligente, lhano e modesto. Os outros apenas faziam coro. O coronel no fazia nada mais que confessar que tinha fome; acordara cedo e no tomara caf. Parece que so horas, disse Flix; e, depois de ir porta da capela:Mame j est na tribuna. Vamos? Fomos. Na tribuna estavam quatro senhoras, duas idosas e duas moas. Cumprimentei-as de longe, e, sem mais encar-las, percebi que tratavam de mim, falando umas s outras. Felizmente o padre entrou da a trs minutos, ajoelhamo-nos todos, e seguiu-se a missa que, por fortuna do coronel, foi engrolada. Quando acabou, Flix foi beijar a mo me e outra senhora idosa, tia dele; levou -me e apresentou-me ali mesmo a ambas. No falamos do meu projeto; to-somente a dona da casa disse-me delicadamente: Est entendido que V. Revma. faz-nos a honra de almoar conosco? Inclinei-me afirmativamente. No me lembrou sequer acrescentar que a honra era toda minha. A verdade que me sentia tolhido. Casa, hbitos, pessoas davam-me ares de outro tempo, exalavam um cheiro de vida clssica. No era raro o uso de capela particular; o que me pareceu nico foi a disposio daquela, a tribuna de famlia, a sepultura do chefe, ali mesmo, ao p dos seus, fazendo lembrar as primitivas sociedades em que florescia a religio domstica e o culto privado dos mortos. Logo que as senhoras saram da tribuna, por uma porta interior, voltamos sacristia, onde o Padre Mascarenhas esperava com o coronel e os outros. Da porta da sacristia, passando por um saguo, descemos dous degraus para um ptio, vasto, calado de cantaria, com uma cisterna no meio. De um lado e outro corria um avarandado, ficando esquerda alguns quartos, e direita a cozinha e a copa. Pretas e moleques espiavam-me, curiosos, e creio que sem espanto, porque naturalmente a minha visita era desde alguns dias a preocupao de todos. Com efeito, a casa era uma espcie de vila ou fazenda, onde os dias, ao contrrio de um rifo peregrino, pareciam-se uns com os outros; as pessoas eram as mesmas, nada quebrava a uniformidade das cousas, tudo quieto e patriarcal. D. Antnia governava esse pequeno mundo com muita discrio, brandura e justia. Nascera dona de casa; no prprio tempo em que a vida poltica do marido, e a entrada deste nos conselhos de Pedro I podiam tir-la do recesso e da obscuridade, s a custo e raramente os deixou. Assim que, em todo o ministrio do marido.apenas duas vezes foi ao pao. Era filha de Minas Gerais, mas foi criada no Rio de Janeiro, naquela mesma Casa Velha, onde casou, onde perdeu o marido e onde lhe nasceram os filhos,Flix, e uma menina que morreu com trs anos. A casa fora construda pelo av, em 1780, voltando da Europa, donde trouxe idias de solar e costumes fidalgos; e foi ele, e parece que tambm a filha, me de D. Antnia, quem deu a esta a pontazinha de orgulho, que se lhe podia notar, e quebrava a unidade da ndole desta senhora, essencialmente ch. Inferi isso de algumas anedotas que ela me contou de ambos, no tempo do rei. D. Antnia era antes baixa que alta, magra, muito bem composta, vestida com singeleza e austeridade; devia ter quarenta e seis a quarenta e oito anos. Poucos minutos depois estvamos almoando. O coronel, que afirmava, rindo, ter um buraco de palmo no estmago, nem por isso comeu muito, e durante os primeiros minutos, no disse nada; olhava para mim, obliquamente, e, se dizia alguma cousa, era baixinho, s duas moas, filhas dele; mas desforrou-se para o fim, e no conversava mal. Flix, eu e o Padre Mascarenhas falvamos de poltica, do ministrio e dos sucessos do Sul. Notei desde logo, no filho do ministro, a qualidade de saber escutar, e de dissentir parecendo aceitar o conceito alheio, de tal modo que, s vezes, a gente recebia a opinio devolvida por ele, e supunha ser a mesma que emitira. Outra cousa que me chamou a ateno foi que a me, percebendo o prazer com que eu falava ao filho, parecia encantada e orgulhosa.3 4. Compreendi que ela herdara as naturais esperanas do pai, e rodobrei de ateno com o filho. Fi -lo sem esforo; mas pode ser tambm que entrasse por alguma cousa, naquilo, a necessidade de captar toda a afeio da casa. por motivo do meu projeto. Foi s depois do almoo que falamos do projeto. Passamos varanda, que comunicava com a sala de jantar, e dava para um grande terreiro; era toda ladrilhada, e tinha o tecto sustentado por grossas colunas de cantaria. D. Antnia chamou-me, sentei-me ao p dela, com o Padre Mascarenhas. Reverendssimo, a casa est s suas ordens, disse-me ela. Fiz o que o Sr. Padre Mascarenhas me pediu, e a muito custo, no porque o no julgue pessoa capaz, mas porque os livros e papis de meu marido ningum mexe neles. Creia que agradeo muito... Pode agradecer, interrompeu ela sorrindo; no faria isto a outra pessoa. Precisa ver tudo? No posso dizer se tudo; depois de um rpido exame, saberei mais ou menos o que preciso. E V. Ex. tambm h de ser um livro para mim, e o melhor livro, o mais ntimo. . . Como ? Espero que me conte algumas cousas, que ho de ter ficado escondidas. As histrias fazem-se em parte com as noticias pessoais. V. Ex., esposa de ministro. . . D. Antnia deu de ombros. Ah! eu nunca entendi de poltica; nunca me meti nessas cousas. Tudo pode ser poltica, minha senhora; uma anedota, um dito, qualquer cousa de nada, pode valer muito. Foi neste ponto que ela me disse o que acima referi; vivia em casa, pouco saa, e s foi ao pao duas vezes. Confessou at que da primeira vez teve muito medo, e s o perdeu por se lembrar a tempo de um dito do av. Sa de casa tremendo. Era dia de gala, ia trajada corte; pelas portinholas do coche via muita gente olhando parada. Mas quando me lembrava que tinha de cumprimentar o imperador e a imperatriz, confesso que o corao me batia muito. Ao descer do coche, o medo cresceu, e ainda mais quando subi as escadas do pao. De repente, lembrou-me um dito de meu av. Meu av, quando aqui chegou o rei, levou-me a ver as festas da cidade, e, como eu, ainda mocinha, impressionada, lhe dissesse que tinha medo de encarar o rei, se ele aparecesse na rua, olhou para mim, e disse com um modo muito srio que ele tinha s vezes: "Menina, uma Quintanilha no trame nunca!" Foi o que fiz, lembrou-me que uma Quintanilha no tremia, e, sem tremer, cumprimentei Suas Majestades. Rimo-nos todos. Eu, pela minha parte, declarei que aceitava a explicao e neo lhe pediria nada; e depois falei de outras cousas. Parece que estava de veia, se no que a conversao da viva me meteu em brios. Veio o filho, veio o cunhado, vieram as moas, e posso afirmar que deixei a melhor impresso em todos; foi o que o Padre Mascarenhas me confirmou, alguns dias depois, e foi o que notei por mim mesmo.4 5. CAPTULO II Antes de me despedir deles, fui ver a biblioteca. Era uma vasta sala, dando para a chcara, por meio de seis janelas de grade de ferro, abertas de um s lado. Todo o lado oposto estava forrado de estantes, pejadas de livros. Estes eram, pela maior parte, antigos, e muitos inflio; livros de histria, de poltica, de teologia, alguns de letras e filosofia, no raros em latim e italiano. Eu via-os, tirava e abria um ou outro, dizia alguma palavra, que o Flix, que ia comigo, ouvia com muito prazer, porque as minhas reflexes redundavam em elogio do pai, ao mesmo tempo que lhe davam de mim maior idia. Esta idia cresceu ainda, quando casualmente dei com os olhos na Storia Fiorentina de Varchi, edio de 1721. Confesso que nunca tinha lido esse livro, nem mesmo o li mais tarde; mas um padre italiano, que eu visitara no Hospcio de Jerusalm, na antiga Rua dos Barbonos, possua a obra e falara-me da ltima pgina, que, em alguns exemplares faltava, e tratava do modo descomunalmente sacrlego e brutal com que um dos Farneses tratara o bispo de Fano. Ser o exemplar truncado? disse eu. Truncado? repetiu Flix. Vamos ver, continuei eu, correndo ao fim. No, c est; o cap. 16 do 1v. XVI. Uma cousa indigna: In quest'anno medesimo nacque un caso... No vale a pena ler; imundo. Pus o livro no lugar. Sem olhar para o Flix, senti-o subjugado. Nem confesso este incidente, que me envergonha, seno porque, alm da resoluo de dizer tudo, importa explicar o poder que desde logo exerci naquela casa, e especialmente no esprito do moo. Creram-me naturalmente um sbio, tanto mais digno de admirao, quanto que contava apenas trinta e dous anos. A verdade que era to-somente um homem lido e curioso. Entretanto, como era tambm discreto, deixei de manifestar um reparo que fiz comigo acerca de promiscuidade de cousas religiosas e incrdulas, alguns padres de Igreja no longe de Voltaire e Rousseau, e aqui no havia afetar nada, porque os conhecia, no integralmente, mas no principal que eles deixaram. Quanto parte que imediatamente me interessava, achei muitas cousas, opsculos, jornais, livros, relatrios, maos de papis rotulados e postos por odem, em pequenas estantes, e duas grandes caixas que o Flix me disse estarem cheias de manuscritos. Havia ali dous retratos, um do finado ex-ministro, outro de Pedro I. Conquanto a luz no fosse boa, achei que o Flix parecia-se muito com o pai, descontada a idade, porque o retrato era de 1829, quando o ex-ministro tinha quarenta e quatro anos. A cabea era altiva, o olhar inteligente, a boca voluptuosa; foi a impresso que me deixou o retrato. Flix no tinha, porm, a primeira nem a ltima expresso; a semelhana restringia-se configuraao do rosto, ao corte e viveza dos olhos. Aqui est tudo, disse-me Flix; aquela porta d para uma saleta, onde poder trabalhar, quando quiser, se no preferir aqui mesmo. J disse que sa de l encantado, e que os deixei igualmente encantados comigo. Comecei os meus trabalhos de investigao trs dias depois. S ento revelei a Monsenhor Queirs, meu velho mestre, o projeto que tinha de escrever uma histria do Primeiro Reinado. E revelei -lho com o nico fim de lhe contar as impresses que trouxera da Casa Velha, e confiar as minhas esperanas de algum achado de valor poltico. Monsenhor Queirs abanou a cabea, desconsolado. Era um bom filho da Igreja, que me faz o que sou, menos a tendncia poltica, apesar de que no tempo em que ele floresceu muitos servidores da Igreja tambm o eram do Estado. No aprovou a idia: mas no gastou tempo em tentar dissuadir-me. "Conquanto, disse-me ele, que voc no prejudique sua me, que a Igreja. O Estado um padrasto." A meu cunhado e minha irm, que sabiam do projeto, apenas contei o que se passara na Casa Velha; ficaram contentes, e minha irm pediu-me que a levasse l, alguma vez, para conhecer a casa e a famlia. Na quarta-feira comecei a pesquisa. Vi ento que era mais fcil projet-la, pedi-la e obt-la, que realmente execut-la. Quando me achei na biblioteca e no gabinete contguo, com os livros e papis minha disposio, senti-me constrangido, sem saber por onde comeasse. No era uma casa pblica, arquivo ou biblioteca, era um lugar onde, no que tocava a papis e manuscritos, podia dar5 6. com alguma cousa privada e domstica. Para melhor haver-me, pedi ao Flix que me auxiliasse, disse-lhe at com franqueza, a causa do meu acanhamento. Ele respondeu. polidamente, que tudo estava em boas mos. Insistindo eu, consentiu em servir-me (palavras suas) de sacristo; pedia, porm, licena naquele dia porque tinha de sair; e, na seguinte semana, desde tera-feira at sbado, estaria na roga. Voltaria sbado noite, e da at o fim, estava s minhas ordens. Aceitei este convnio. Ocupei os primeiros dias na leitura de gazetas e opsculos. Conhecia alguns deles, outros no, e no eram estes os menos interessantes. Logo no dia seguinte, Flix acompanhou-me nesse trabalho, e da em diante at seguir para a roga. Eu, em geral chegava s dez horas, conversava um pouco com o dona da casa, as sobrinhas e o coronel; o primo Eduardo retirara-se para S. Paulo. Falvamos das cousas do dia, e poucos minutos depois, nunca mais de meia hora, recolhia -me biblioteca com o filho do ex-ministro. As duas horas, em ponto, era o jantar. No primeiro dia recusei, mas a dona da casa declarou-me que era a condio do obsquio prestado. Ou jantaria com eles, ou retirava-me a licena. Tudo isso com to boa cara que era impossvel teimar na recusa. Jantava. Entre trs e quatro horas descansava um pouco, e depois continuava o trabalho at anoitecer. Um dia, quando ainda o Flix estava na roga, D. Antnia foi ter comigo, com o pretexto de ver o meu trabalho, que lhe no interessava nada. Na vspera, ao jantar, disse -lhe que estimava muito ver as terras da Europa, especialmente Frana e Itlia, e talvez ali fosse da a meses. D. Antnia, entrando na biblioteca, logo depois de algumas palavras insignificantes, guiou a conversa para a viagem, e acabou pedindo que persuadisse o filho a ir comigo. Eu, minha senhora? No se admire do pedido; eu j reparei, apesar do pouco tempo, que Vossa Reverendssima e ele gostam muito um do outro, e sei que se lhe disser isso, com vontade ele cede. No creio que tenha mais fora que sua me. J lhe tem lembrado isso? J, respondeu D. Antnia com uma entonao demorada que exprimia longas instncias sem efeito. E logo depois com um modo alegre: As mes como eu no podem com os filhos. O meu foi criado com muito amor e bastante fraqueza. Tenho-lhe pedido mais de uma vez; ele recusa sempre dizendo que no quer separar-se de mim. Mentira! A verdade que ele no quer sair daqui. No tem ambies, faz estudos incompletos, no lhe importa nada. H uns parentes nossos em Portugal. J lhe disse que fosse visit-los, que eles desejavam v-lo, e que fosse depois Espanha e Frana e outros lugares. Jos Bonifcio l esteve e contava cousas muito interessantes. Sabe o que ele me responde? Que tem medo do mar; ou ento repete que no quer separar-se de mim. E no acha que esta segunda razo a verdadeira? D. Antnia olhou para o cho, e disse com voz sumida: Pode ser. Se a verdadeira, haveria um meio de conciliar tudo, era irem ambos, e eu com ambos, e para mim seria um imenso prazer. Eu? Pois ento? Eu? Deixar esta casa? Vossa Reverendssima est caoando. Daqui para a cova. No fui quando era moa, e agora que estou velha que hei de meter-me em folias... Ele sim, que rapaz,e precisa... Tive uma suspeita sbita: Minha senhora, dar-se- que ele padea de alguma molstia que...6 7. No, no, graas a Deus! Digo que precisa, porque rapaz, e meu av dizia que, para ser homem completo, preciso ver aquelas cousas por l. E s por isso. No, no tem molstia nenhuma; um rapaz forte. Era impossvel, ou, pelo menos, indelicado tentar obter a razo secreta deste pedido, se havia alguma, como me pareceu. Pus termo conversao dizendo que ia convidar o rapaz. D. Antnia agradeceu-me, declarou que no, me havia de arrepender do companheiro, e fez grandes elogios do filho. Quis falar de outras cousas; ela, porem, teimava no assunto da viagem, para familiarizar -mos com a idia, e moralmente constranger-me a realiz-la. No dia seguinte voltou biblioteca, mas com outro pretexto: veio mostrar-me uma boceta de rap, que fora do marido, e que era, realmente, uma perfeio. No tive dvida em dizer-lhe isto mesmo, e ela acabou pedindo-me que a aceitasse como lembrana do finado. Aceitei-a constrangido; falamos ainda da viagem, duas palavras apenas, e fiquei s. No estava contente comigo. Tinha-me deixado resvalar a uma promessa inconsiderada, cuja execuo parecia complicar-se de circunstncias estranhas e obscuras, provavelmente srias. As instncias de D. Antnia, as razes dados, as reticncias, e finalmente aquele mimo, sem outro motivo mais que cativar-me e obrigar-me, tudo isso dava que cismar. Na noite desse dia fui casa do Padre Mascarenhas para sond-lo; perguntei-lhe se sabia alguma cousa do rapaz, se era peralta, se tinha irregularidades na vida. Mascarenhas no sabia nada. At aqui suponho que um modelo de sossego e seriedade, concluiu ele. Verdade seja que s vou l aos domingos. Mas pelos domingos tiram-se os dias santos, repliquei rindo. Flix voltou da roga dous dias depois, num sbado. No domingo no fui l. Na segunda-feira, falei-lhe da viagem que ia fazer, e do desejo que tinha de o levar comigo; respondeu que seria para ele um grande prazer, se pudesse acompanhar-me, mas no podia. Teimei, pedi-lhe razes, falei com tal interesse, que ele, desconfiado, fitou-me os olhos, e disse: Foi mame que lhe pediu. No digo que no; foi ela mesma. Tinha-lhe dito que tencionava ir Europa, daqui a alguns meses, e ela ento falou-me do senhor e das vezes que j lhe tem aconselhado uma viagem. Que admira? Flix conservou os olhos espetados em mim, como se quisesse descer ao fundo da minha conscincia. Ao cabo de alguns instantes respondeu secamente: Nada: no posso ir. Por qu? Aqui teve ele um gesto quase imperceptvel de orgulho molestado; achou naturalmente esquisita a curiosidade de um estranho. Mas, ou fosse da ndole dele, ou do meu carter sacerdotal, vi desaparecer-lhe logo esse pequeno assomo; Flix sorriu e confessou que no podia separar-se da me. Eu, a rigor, no devia dizer mais nada, e encerrar-me no exame dos papis; mas a maldita curiosidade picava-me de esporas, e ainda repliquei alguma cousa; ponderei-lhe que o sentimento era digno e justo, mas que, tendo de viver com os homens, devia comear por ver os homens, e no restringir -se vida simples e emparedada da famlia. Demais, o contacto de outras civilizaes necessariamente nos daria tmpera ao esprito. Escutou calado, mas sem ateno fixa, e quando acabei, declarou ultimando tudo: Bem, pode ser que me resolva; veremos. No vai j? Ento depois falaremos disto; pode ser... E o seu trabalho, est adiantado? No insisti, nem voltei ao assunto, apesar da me, que me falou algumas vezes dele. Pareceu-me que o melhor de tudo era acelerar a concluso do trabalho, e despregar-me de uma intimidade que podia trazer complicaes ou desgostos. As horas que ento passei foram das melhores, regulares e tranqilas, ajustadas a minha ndole quieta e eclesistica. Chegava cedo, conversava alguns minutos, e recolhia-me biblioteca at a hora de jantar, que no passava das duas. O caf ia grande 7 8. varanda, que ficava entre a sala de jantar e o terreiro das casuarinas, assim chamado, por ter um lindo renque dessas rvores, e eu retirava-me antes do pr do sol. Flix ajudava-me grande parte do tempo. Tinha todas as horas livres, e quando no me ajudava porque saira a caar, ou estava lendo, ou teria ido cidade a passeio ou a negcio de a passeio ou a negcio de casa. Vai seno quando, um dia, estando s na biblioteca ouvi rumor do lado de fora. Era a princpio um chiar de carro de bois, de que no fiz caso, por j o ter ouvido de outras vezes; devia ser um dos dons carros que traziam da roga para a Casa Velha, uma ou duas vezes por ms, fruta e legumes. Mas logo depois ouvi outro rodar, que me pareceu de sege, vozes trocadas e como que um encontro dos dous veculos. Fui janela; era isso mesmo. Uma sege, que entrara depois do carro de bois, foi a este no momento em que ele, para lhe dar passagem, torcia o caminho; o boleeiro no pde conter logo as bestas, nem o carro fugir a tempo, mas no houve outra conseqncia alm da vozeria. Quando eu cheguei janela j o carro acabava de passar, e a sege galgou logo os poucos passos que a separavam da porta que ficava justamente por baixo de minha janela. Entretanto. no foi to pouco o tempo que eu no visse aparecer, entre as cortinas entreabertas da sege, a carinha alegre e ridente de uma moa que parecia mofar do perigo. Olhava, ria e falava para dentro da sege. No lhe vi mais do que a cara, e um pouco do pescoo, mas dai a nada, parando a sege porta, as duas cortinas de couro foram corridas para cada lado, e ela e outra desceram rapidamente, e entraram em casa. "Ho de ser visitas", pensei comigo. Voltei para o trabalho; eram onze horas e meia. Perto de uma, entrou na biblioteca o filho de D. Antnia; vinha da praa, aonde fora cedo, para tratar de um negcio do tio coronel. Estava singularmente alegre, expansivo, fazendo-me perguntas e no atendendo, ou atendendo mal s respostas. No me lembraria disto agora, nem nunca mais, se no se tivesse ligado aos acontecimentos prximos, como veremos. A prova de que no dei ento grande importncia ao estado do esprito dele, que da a pouco quase que no lhe respondia nada, e continuava a ver os papis. Folheava justamente um mao de cpias relativas Cisplatina, e preferia o silncio a qualquer assunto de conversa. Flix demorou-se pouco, saiu, mas tornou antes das duas horas, e achou-me concluindo o trabalho do dia, para acudir ao jantar. Da a pouco estvamos mesa. Era costume de D. Antnia vir para a mesa acompanhando a irm (a senhora idosa que achei na tribuna da capela, no primeiro dia em que ali foi), e assim o fez agora, com a diferena que outra senhora a acompanhava tambm. Disseram-me que era amiga da famlia, e chamava-se Mafalda. Logo que nos sentamos, D. Antnia perguntou hspeda: Onde est Lalau? Onde h de estar! talvez brincando com o pavo. Mas, no faz mal, sinh D. Antnia, vamos jantando; ela pode ser que nem tenha vontade de comer: antes de vir comeu um pires de melado com farinha. A sege chegou muito tarde? perguntou Flix hspeda. No, senhor; ainda esperou por ns. Seu irmo est bom? Est; minha cunhada que anda um pouco adoentada. Depois da erisipela que teve pelo natal, nunca ficou boa de todo. Creio que disseram ainda outras cousas; mas no me interessando nada, nem a conversao, nem a hspeda, que era uma pessoa vulgar, fiz o que costumo fazer em tais casos: deixei -me estar comigo. J tinha compreendido que a hspeda era uma das que chegaram na sege, que a outra devia ser a mocinha, cuja cara vi entre as cortinas, e finalmente que. alguma intimidade haveria entre tal gente e aquela casa, visto que, contra a ordem severa desta, Lalau andava atrs do pavo, em vez de estar mesa conosco. Mas, em resumo, tudo isso era bem pouco para quem tinha na cabea a histria de um imperador. Lalau no se demorou muito. Chegou entre o primeiro e o segundo prato. Vinha um pouco esbaforida, voando-lhe os cabelos, que eram curtinhos e em cachos, e quando D. Antnia lhe8 9. perguntou se no estava cansada de travessuras, Lalau ia responder alguma cousa, mas deu comigo, e ficou calada; D. Antnia, que reparou nisso, voltou-se para mim. Reverendssimo, preciso confessar esta pequena e dar-lhe uma penitncia para ver se toma jizo. Olhe que voltou h pouco e j anda naquele estado. Vem c, Lalau. Lalau aproximou-se de D. Antnia, que lhe comps o cabeo do vestido; depois foi sentar-se defronte de mim, ao p da outra hspeda. Realmente, era uma criatura adorvel, espigadinha, no mais de dezessete anos, dotada de um par de olhos, como nunca mais vi outros, claros e vivos, rindo muito por eles, quando no ria com a boca; mas se o riso vinha juntamente de ambas as partes, ento certo que a fisionomia humana confirmava com a anglica, e toda a inocncia e toda alegria que h no cu pareciam falar por ela aos homens. Pode ser que isto parea exagerado a uns e vago a outros, mas no acho do momento um modo melhor de traduzir a sensao que essa menina produziu em mim. Contemplei-a alguns instantes com infinito prazer. Fiei-m e do carter de padre para saborear toda a espiritualidade daquele rosto comprido e fresco, talhado com graa, como o resto da pessoa. No digo que todas as linhas fossem corretas, mas a alma corrigia tudo. Chamava-se Cludia; Lalau era o nome domstico. No tendo pai nem me, vivia em casa de uma tia. Quase se pode dizer que nasceu na Casa Velha, onde os pais estiveram muito tempo como agregados, e aonde iam passar dias e semanas. O pai, Romo Soares, exercia um oficio mecnico, e antes pertencera guarda de cavalaria de polcia; a me, Benedita Soares, era filha de um escrivo da roga, e, segundo me disse a prpria D. Antnia, foi uma das mais bonitas mulheres que ela conheceu desde o tempo do rei. Lalau, se no nasceu ali, ali foi criada e tratada sempre, ela como a me, no mesmo p de outras relaes; eram menos agregadas que hspedas. Da a intimidade desta mocinha, que chegava a infringir a ordem austera da casa, no indo para a mesa com a dona dela. Lalau andava na prpria sege de D. Antnia, vivia do que esta lhe dava, e no lhe dava pouco; em compensao, amava sinceramente a casa e a famlia. Tendo ficado rf desde 1831, D. Antnia cuidou de lhe completar a educao; sabia ler e escrever, coser e bordar; aprendia agora a fazer crivo e renda. Foi D. Antnia quem me deu essas noticias, naquela mesma tarde, ao caf, acrescentando que achava bom cas-la quanto antes; tinha a responsabilidade do seu destino, e receava que lhe acontecesse o mesmo que com outra agregada, seduzida por um saltimbanco em 1835. Nisto a menina veio a ns, olhando muito para mim. Estvamos na varanda. Vou confess-la, disse-lhe eu; mas olhe l se me nega algum pecado. Que pecado, meu Deus! Cruz! Eu no tenho pecado. Nhtnia que anda inventando essas cousas. Eu, pecado? E as travessuras? perguntei-lhe. Olhe, ainda hoje, quando estava quase a suceder um desastre na estrada, entre o carro de bois e a sege em que a senhora vinha, a senhora, em vez de ficar sria e pensar em Deus, enfiou a cabea por entre as cortinas para fora, rindo como uma criana. Que ela seno criana? ponderou D. Antnia. Lalau olhou espantada. Onde estava o senhor padre? Estava no cu, espiando. Ora! diga onde estava. J disse: estava no cu. Adeus! diga onde estava! Lalau! que modos so esses? repreendeu D. Antnia. A moa calou-se aborrecida; eu que fui em auxilio dela, e contei-lhe que estava janela da biblioteca, quando ela chegara. D. Antnia j sabia tudo, pois ali um acontecimento de nada ou quase nada era matria de longas conversaes. No obstante. a mocinha referiu ainda o que se passara e as suas sensaes alegres. Confessou que no tinha medo de nada, e at que queria ver um desastre para9 10. compreender bem o que era. Como a conversao dela era a troncos, interrompeu-se para perguntar-me se era eu quem iria agora dizer missa l em casa, em vez do Padre Mascarenhas. Respondi-lhe que no, quis saber o que estava fazendo na biblioteca. Disse-lhe que fazia crivo. Ela pareceu gostar da resposta; creio que achou entre os nossos espritos algum ponto de contacto. A verdade que, no dia seguinte, vendo-me entrar e ir para a biblioteca, ali foi ter comigo, ansiosa de saber o que eu estava fazendo. Como lhe dissesse que examinava uns papis, ouviu-me atenta, pagou curiosa de algumas notas, e dirigiu-me vrias perguntas; mas deixou logo tudo para contemplar a biblioteca, pea que raramente se abria. Conhecia os retratos, distinguiu-os logo; ainda assim parecia tomar gosto em v-los, principalmente o do ex-ministro; quis saber se ela o conhecia; respondeu-me que sim, que era um bonito homem, e fardado ento parecia um rei. Seguiu -se um grande silncio, durante o qual ela olhou para o retrato, e eu para ela, e que se quebrou com esta frase murmurada pela moa, entre si e Deus: Muito parecido... Parecido com quem? perguntei. Lalau estremeceu e olhou para mim, envergonhada. No era preciso mais; adivinhei tudo. Infelizmente tudo no era ainda tudo.10 11. CAPTULO III Amor non improbatur, escreveu o meu grande Santo Agostinho. A questo para ele, como para mim, que as criaturas sejam amadas e amem em Deus. Assim, quando desconfiei, por aquele gesto, que esta moa e Flix eram namorados, no os condenei por isso, e para dizer tudo, confesso que tive um grande contentamento. No sei bem explic-lo; mas certo que, sendo ali estranho, e vendo esta moa pela primeira vez, a impresso que recebi foi como se tratasse de amigos velhos. Pode ser que a simpatia da minha natureza explique tudo; pode ser tambm que esta moa, assim como fascinara o Flix para o amor, acabasse de fascinar-me para a amizade. Uma ou outra cousa, escolha, a verdade que fiquei satisfeito e os aprovei comigo. Entretanto, adverti que da parte dele no vira nada, nem mesa, nem na varanda, nada que mostrasse igual afeio. Dar-se-ia que s ela o amasse, no ele a ela? A hiptese afligiu-me. Achava-os to ajustados um ao outro, que no acabarem ligados parecia-me uma violao da lei divina. Tais eram as reflexes que vim fazendo, quando dali voltei nesse dia, e para quem andava cata de documentos polticos, no de crer que semelhante preocupao fosse de grande peso; mas nem a alma de um homem to estreita que no caibam nela cousas contrrias nem eu era to historiador como presumira. No escrevi a histria que esperava; a que de l trouxe esta. No me foi difcil averiguar que o Flix amava a pequena. Logo nos primeiros dias pareceu-me outro, mais prazenteiro, e mesa ou fora dela, pude apanhar alguns olhares, que diziam muito. Observei tambm que essa moa, to criana, era inteiramente mulher quando os olhos dela encontravam os dele, como se o amor fosse a puberdade do esprito, e mais notei que, se toda a gente a tratava de um modo afetuoso, mas superior, ele tinha para com ela ateno e respeito. J ento no ia eu ali todos os dias, mas trs ou quatro vezes por semana. A dona da casa, posto que sempre afvel, recebia a impresso natural da assiduidade, que vulgariza tudo. Os dous, no; o Flix vinha muitas vezes esperar-me a distncia da casa, e na casa, ao porto, ou na varanda, achava sempre a mocinha, rindo pela boca e pelos olhos. bem possvel que eu fosse para eles como o trao de pena que liga duas palavras; certo, porm, que gostavam de mim. Eu, entre ambos, com- a minha batina (deixem-me confessar esta vaidade) tinha uns ares do bispo Cirilo entre Eudoro e Cimdoce. H de parecer singular que no me lembrasse logo do pedido de D. Antnia para que o filho me acompanhasse Europa, e o no ligasse a este amor nascente: lembrei-me depois. A princpio, vendo a afeio com que ela tratava a mocinha, cuidei que os aprovava. Mais tarde, quando me recordei do pedido, acreditei que esse amor era para ela o remdio ao mal secreto do filho, se algum havia, que me no quisera revelar. Durante os primeiros dias, depois da chegada de Lalau, nada aconteceu que merea a pena contar aqui. Flix acompanhava-me no trabalho, mas interrompidamente,. e as vezes, se saa a algum negcio da casa, s nos vamos mesa do jantar. Lalau no ia biblioteca; um dia, porem, atreveu-se a entrar s escondidas, e foi ter comigo. Suspendi o trabalho, e conversamos perto de meia hora, sobre uma infinidade de cousas, presentes e passadas. Era mais de onze horas; o dia estava quente, o ar parado, a casa silenciosa; salvo um ou outro mugido, ao longe, ou algum canto de passarinho. Eu, com os estudos clssicos que tivera, e a grande tendncia idealista, dava a tudo a cor das minhas reminiscncias e da minha ndole, acrescendo que a prpria realidade externa, antiquada e solene nos mveis e nos livros,recente e graciosa em Lalau,era propcia a transfigurao. Deixei-me ir ao sabor do momento. Notem bem que ela s vezes, ouvia mal, ou no sabia ouvir absolutamente, mas com os olhos vagos, pensando em outra cousa. Outras vezes interrompia-me para fazer um reparo intil. J disse tambm que tinha a conversao trancada e salteada Com tudo isso, era interessante falar-lhe, e principalmente ouvi-la. Sabia, no meio das puerilidades freqentes da palavra, no destoar nunca da considerao que me devia; e tanto era curiosa como franca. Teve medo? disse ela. Como que a senhora entrou?11 12. Entrando; vi o senhor aqui, e vim muito devagar, pensando que no chegasse ao fim da sala, sem que o senhor me ouvisse, mas no ouvi nada, todo embebido no que est escrevendo. O que ? Cousas srias. Nhtnia disse que o senhor est aqui fazendo umas notas polticas para pr num livro. Ento se sabia como e que me perguntou? Lalau encolheu os ombros. Fez mal, disse eu. Olhe que eu sou padre, posso pregar-lhe um sermo. O senhor prega sermes? por que no vem pregar aqui, na quaresma? Eu gosto muito de sermes. No ano passado, ouvi dous, na igreja da Lapa, muito bonitos. No me lembra o nome do padre. Eu, se fosse padre, havia de pregar tambm. S no gosto dos latinrios; no entendo. Falou assim, a troncos, uns bons cinco minutos; eu deixei-a ir, olhando s, vivendo daquela vida que jorrava dela, cristalina e fresca. No fim, Lalau sentou-se, mas no se conservou sentada mais de dous minutos, levantou-se outra vez para ir janela, e tornou dentro para mirar os livros. Achou -os grandes demais; admirava como havia quem tivesse a pacincia de os ler. E depois alguns eram to velhos! Que tem que sejam velhos? retorqui. Deus velho, e a melhor leitura que h. Lalau olhou espantada para mim. Provavelmente era a primeira vez que ouvia uma figura daquelas, e faz-lhe impresso. Teimou depois que os livros velhos pareciam-se com o antigo capelo da casa, o antecessor do Padre Mascarenhas, que andava sempre com a batina empoeirada, e tinha a cara feita de rugas. Conseguintemente vieram histrias do capelo. Em nenhuma delas, nem de outras entrava o Flix; excluso que podia ser natural, mas que me no pareceu casual. Como eu lhe dissesse que no se deve mofar dos padres, ela ficou muito sria e atenta; depois rompeu, rindo: Mas no do senhor. De mim ou de outro, a mesma cousa. Ora, mas o outro era to feio, to lambuzo. . . Disse-lhe, com as palavras que podia, que o padre padre, qualquer que seja a aparncia. Enquanto lhe lava, ela dava alguns passos de um lado para outro, cuido que para sentir o tapete debaixo dos pos; no o havia seno ali e na sala de visitas, fechada sempre. De quando em quando parava e olhava de cima as figuras desbotadas no cho; outras vezes deixava escorregar o p, de propsito. Tinha o rasgo pueril de achar prazer em qualquer cousa. Est bom, est bom, disse-me ela finalmente, no precisa brigar comigo; no falo mais do capelo. Pode continuar o seu trabalho, vou-me embora. No preciso ir embora. Muito obrigada! Quer que fique olhando para as paredes, enquanto o senhor trabalha. . . Mas se eu no estou trabalhando! Olhe, se quer que eu no faa nada, sente-se um pouco, mas sente-se de uma vez. Lalau sentou-se. A cadeira em que se sentou era uma velha cadeira de espaldar de couro lavrado, e ps em arco. Dali, olhava para fora, e o sol, entrando pela janela, vinha morrer -lhe aos ps. Para no estar em completo sossego, comeou a brincar com os dedos; mas cessou logo, quando lhe perguntei, queima-roupa, se se lembrava da me. As feies da moa perderam instantaneamente o ar alegre e descuidado; tudo o que havia nelas frvolo converteu-se em gravidade e com postura, e a criana desapareceu, para s deixar a mulher com a sua saudade filial. Respondeu-me com uma pergunta. Como podia esquec-la? Sim, senhor, lembrava-se dela, e muito, e rezava por ela todas as noites para que Deus lhe desse o cu. E com certeza estava no cu. Era boa como eu no podia imaginar, e ningum foi nunca to amiga dela, como a defunta. No negava12 13. que Nhtnia lhe queria muito, e tinha provas disso, e assim tambm as mais pessoas de casa; mas a me era outra cousa. A me morria por ela, e quase se pode dizer que foi assim mesmo, porque apanhou uma constipao, estando a trat-la de uma febre, e ficou com uma tosse que nunca mais a deixou. O doutor negou, disse que a morte foi de outra cousa; ela, porm, desconfiou sempre que a doena da me comeou dali. To boa que nem quis que ela a visse morrer, para no padecer mais do que padecia. No pde v-la morrer, viu-a depois de morta, to bonita! to serena! parecia viva! Aqui levou os dedos aos olhos; eu levantei-me e disse-lhe que mudssemos de conversa, que a me estava no cu, e que a vontade de Deus era mais que tudo. Lalau escutou -me com os olhos parados,ela que os trazia como um casal de borboletas,e depois de alguns instantes de silncio, continuou a falar da me, mas j no da morte. seno da vida, e particularmente da beleza. No, eu no podia imaginar como a me era bonita; at parava gente na rua para v-la. E descreveu-a toda, como podia, mostrando bem que as graas fsicas da me, aos olhos dela, eram ainda uma qualidade moral, uma feio, alguma cousa especial e genuna que no possuram nunca as outras mes. Deus que a chamou para si, disse-lhe eu, l sabe por que que o fez. Agora tratemos dos vivos. Ela est no cu, a senhora est aqui, ao p de pessoas que a estimam. . . Oh! eu dava tudo para t-la ao p de mim, na nossa casinha da Cidade Nova! A casa era isto,continuou ela levantando as mos abertas, diante do rosto, e marcando assim o tamanho de um palmo,ainda me lembro bem, era nada, quase nada,no tinha l tapetes nem dourados, mas mame era to boa! to boa! Coitada de mame! Olhe o sol! disse eu procurando desviar-lhe a ateno. Com efeito, o sol, que ia subindo, comeava a lamber-lhe a barra do vestido. Lalau olhou para o cho, quis recuar a cadeira, mas sentindo-a pesada, levantou-se e veio ter comigo; pedindo-me desculpa de tanta cousa que dissera, e no interessava a ningum; e no me deu tempo de replicar, porque acrescentou logo outro pedido: que no contasse nada a Nhtnia. Por qu? Ela pode acreditar que eu disse isto, por no estar bem aqui, e eu estou muito bem aqui, muito bem. Quis ret-la, mas a palavra no alcanou nada, e eu no podia pegar-lhe nas mos. Deixei-a ir, e voltei s minha notas. Elas que no voltaram a mim, por mais que tentasse busc-las e transcrev-las. Lalau ainda tornou sala, da a trs ou quatro minutos, para reiterar o ltimo pedido; prometi-lhe tudo o que quis. Depois, fitando-me bem, acrescentou que eu era padre, e no podia rir dela nem faltar minha palavra. Rir? disse eu em tom de censura. No se zangue comigo, acudiu sorrindo; digo isto porque sou muito medrosa e desconfiada. E, rpida, como passarinho, deixou-me outra vez s. Desta vez no tornei s notas; fiquei passeando na longa sala, custeando as estantes, detendo-me para mirar os livros, mas realmente pensando em Lalau. A simpatia que me arrastava para ela complicava-se agora de venerao, diante daquela exploso de sensibilidade, que estava longe de esperar da parte de uma criatura to travessa e pueril. Achei nessa saudade da me, to viva, aps longos anos, um documento de grande valor moral, pois a afeio que ali lhe mostravam, e o prprio contacto da opulncia podiam naturalmente t -la amortecido ou substitudo. Nada disso; Lalau daria tudo para viver ao p da me! Tudo? Pensei tambm no silncio que me recomendou, medrosa de que a achassem ingrata, e este rasgo no me pareceu menos valioso que o outro; era claro que ela compreendia as indues possveis de uma dor que persiste, a despeito dos carinhos com que cuidavam t-la eliminado, e queria poupar aos seus benfeitores o amargor de crer que empregavam mal o beneficio.13 14. Pouco depois chegou o Flix. Veio falar-me, disse-me que tinha uma boa notcia, que ia mudar de roupa e voltava. Vinte minutos depois estava outra vez comigo, e confiava-me o plano de fazer-se eleger deputado. At agora no tinha resolvido nada, mas acho que devo faz-lo. Sigo a carreira de papai. Que lhe parece. Reverendssimo? Parece-me bem. Todas as carreiras so boas, exceto a do pecado. Tambm eu algum tempo, andei com fumaas de entrar na Cmara; mas no tinha recursos nem alianas polticas; desisti do emprego. E assim foi bom. Sou antes especulativo que ativo; gosto de escrever poltica, no de fazer poltica. Cada qual como Deus o fez. O senhor, se sair a seu pai, que h de ser ativo, e bem ativo. A cousa para breve? No me respondeu nada; tinha os olhos fora dali. Mas logo depois, advertido pelo silncio: O qu? Ah! no para j; estou arranjando as cousas. Estive com alguns amigos de papel, e parece que h furo. Como sabe h muitos desgostos contra o Regente. . . Se o imperador j tivesse a idade de constituio que era bom; ia-se embora o Regente e o resto. . . Pois verdade, creio que sim. . . Entretanto, nunca tinha pensado nisto seriamente; mas as cousas so assim mesmo. . . Que acha? Acho que fez bem. Em todo o caso, peco-lhe segredo; no diga nada a mame. Cr que ela se oponha? No; mas. . . pode ser que no se alcance nada, e para lhe no dar uma esperana que pode falhar... E s isto. Era plausvel a explicao; prometi-lhe no dizer nada. Creio que falamos ainda de poltica, e da poltica daqueles ltimos dez anos, que no era pouca nem plcida. Flix no tinha certamente um plano de idias, e apreciaes originais; atravs das palavras dele, apalpava eu as frmulas e os juzos do crculo ou das pessoas com quem ele lidava para o fim de encetar a carreira. Agora, a particularidade dele era a clareza e retido de esprito precisas para s recolher do que ouvia a parte s e justa, ou, pelo menos, a poro moderada. Nunca andaria nos extremos, qualquer que fosse o seu partido. Trabalhou muito hoje? perguntou-me ele quando nos preparvamos para jantar. Pouco; tive uma visita. Mame? No; outra pessoa, Lalau, no assim que lhe chamam? Esteve aqui uma meia hora. Podia estar trs ou quatro horas que eu no dava por isso. Muito engraada! Mame gosta muito dela, disse ele. Todos devam gostar dela; no s engraada, boa, tem muito bom corao. Digo -lhe que pus de lado o Imperador, os Andradas, os Sete de Abril, pus tudo de lado para ouvi-la falar. Tem cousas de criana, mas no criana. Muito inteligente, no acha? Muito. De que falaram? De mil cousas, talvez duas mil; com ela difcil contar os assuntos; vai de um para outro com tal rapidez que, se a gente no toma cuidado, cai no caminho. Sabe que idia tive aqui, olhando para ela? Que foi? Cas-la.14 15. Cas-la? perguntou ele vivamente. Cas-la eu mesmo;-ser eu o padre que a unisse ao escolhido do seu corao, quando ela o tivesse. . . Flix no disse nada, sorriu acanhadamente, e, pela primeira vez, suspeitei que as intenes do rapaz podiam ser mui outras das que lhe supunha at ento, que haveria nele, porventura em vez de um marido, um sedutor. No alcano exprimir como me doeu esta suposio. Ia tanto para a moa, que era j como se fosse minha irm, o meu prprio sangue, que um estranho ia corromper e prostituir. Quis continuar a falar, para escrutar-lhe bem a alma; no pude, ele esquivou-se, e fiquei outra vez s. Nesse dia retirei-me um pouco mais cedo. D. Antnia achou-me preocupado, eu disse-lhe que tinha dor de cabea. As pessoas de meu temperamento entender-me-o. Bastou que uma idia se me afigurasse possvel para que eu a acreditasse certa. Vi a menina perdida. No houvera ali uma agregada, seduzida em 1835, por um saltimbanco, como me dissera D. Antnia? Agora no seria um saltimbanco, mas o prprio filho da dona da casa. E assim explicou-se-me a teima de D. Antnia em arredar o filho do Rio de Janeiro, comparada com a afeio que tinha menina. Refleti na distancia social que os separava; Lalau era admitida na intimidade da famlia, mas o rapaz, filho de ministro e aspirante a ministro, e mais que tudo filho de casa-grande, tendo herdado o sangue do bisav, to orgulhoso nas veias da me, reservar-se-ia para algum casamento de outra laia. Como, porm, ela era bonita, e a natureza tem leis diferentes da sociedade, e no menos imperiosas, Flix achara um modo de conciliar umas e outras, amando sem casar. Tudo isso que fica a em resumo, foram as minhas reflexes do resto do dia, e de uma parte da noite. Estava irritado contra o rapaz, temia por ela, e no atinava com o que cumpria fazer. Pareceu-me at que no devia fazer nada, ningum me dava direito de presumir intenes e intervir nos negcios particulares de uma famlia que, de mais a mais, enchia-me de obsquios. Isto era verdade; mas, como eu quero dizer tudo, direi um segredo de conscincia. Entre a verdade daquele conceito e o impulso de meu prprio corao, introduzi um princpio religioso, e disse a mim mesmo que era a caridade que me obrigava, que no Evangelho acharia um motivo anterior e superior a todas as convenes humanas. Esta dissimulao de mim para mim podia cal-la agora, que os acontecimentos l vo, mas no daria uma parte da histria que estou narrando, nem a explicaria bem. Lalau no me saa da cabea: as palavras dela, suas maneiras, ingenuidade e lgrimas acudiram-me em tropel memria, e davam-me fora para tentar dominar a situao e desviar o curso dos acontecimentos. No dia seguinte de manh quis rir de mim mesmo e dos meus planos de D. Quixote, remdio herico, porque tal a risada do apupo que ningum a tolera ainda em si mesmo; mas no consegui nada. A conscincia ficou sria, e a contrao do riso desmanchou -se diante da sua impassibilidade. Compus cinco ou seis planos diferentes, alguns absurdos. O melhor deles era avisar a tia da menina; mas rejeitei-o logo por ach-lo odioso. Em verdade, ia dissolver laos ntimos, a ttulo de uma suspeita, que apenas podia explicar a mim mesmo. E, se era odioso, no era menos imprudente; podia supor-se que eu cedia a um sentimento pessoal e reprovado. Rejeitei da vista esta segunda razo, mas atirei-me primeira, e dei de mo ao plano. O melhor de tudo, refleti finalmente, observar e fazer o que puder, segundo as circunstncias, mas de modo que evite estralada. Tinha de ir almoar com um padre italiano, no Hospcio de Jerusalm, o mesmo que me falara da obra florentina, e me dera ocasio de brilhar na Casa Velha. Fui almoar; no fim do almoo, apareceu l um recm-chegado, um missionrio que vinha das partes da China e do Japo, e trazia muitas relquias preciosas. Convidaram-me a v-las. O missionrio era lento na ao e derramado nas palavras, de modo que despendemos naquilo um tempo infinito, e sa de l to tarde que no pude ir nesse dia Casa Velha. De noite, constipei-me, apanhei uma febre, e fiquei cinco dias de cama.15 16. CAPTULO IV Estava prestes a deixar a cama, quando o Flix me apareceu em casa, pedindo desculpa de no ter vindo mais cedo, porque s na vspera soubera da minha doena. Trouxe-me visitas da me e de Lalau. Isto no nada, disse-lhe eu; e se quer que lhe confesse, at foi bom adoecer para descansar um pouco. Virgem Maria! No diga isso. Digo, digo. E no s para descansar, mas at para refletir. Doente, que no l nem conversa, nem faz nada, pensa. Eu vivo s, com o preto que o senhor viu. Vem aqui um ou outro amigo, raro; passo as horas solitrias, olhando para as paredes, e a cabea... A culpa sua, interrompeu-me ele; podia ter ido para a nossa casa, logo que se sentiu incomodado. o que devia ter feito. No imagina mame como ficou cuidadosa, quando soube que o senhor estava de cama. Queria que eu viesse ontem mesmo, de noite, visit-lo: eu que disse que podia estar acomodado, e a visita seria antes uma importunao. E a sua amiguinha! Lalau? Ficou branca como uma cera, quando ouviu a notcia; e pediu-me muito que lhe trouxesse lembranas dela, que lhe desse conselho de no fazer imprudncias, de no apanhar chuva, nem ar, nem nada, para no recair, que as recadas so piores... Veja l; se, em vez de se meter na cama, aqui em casa, tivesse ido para a nossa Casa Velha, l teria duas enfermeiras de truz, e um leitor, como eu, nada para lhe ler tudo o que quisesse. Obrigado, obrigado; agradeo a todos, tanto a elas como ao senhor. Ficar para a outra molstia. E, na verdade, possvel que ento no pensasse em nada. . . Justo. . . . Nem em ningum. Ah! ento Lalau disse isso? Foi exatamente nela que estive pensando. Como assim? Ouvi passos e vozes na sala; era o meu preto que trazia um padre a visitar-me. Noutra ocasio, possvel que Flix se despedisse e cedesse o lugar ao padre; mas a curiosidade valeu aqui ainda mais do que a afeio, e ele ficou. O padre esteve poucos minutos, dez ou vinte, neo me lembra, dando-me algumas notcias eclesisticas, contando anedotas de sacristia, que o Flix escutou com grande interesse, talvez aparente, para justificar a demora. Afinal, saiu, e ficamos outra vez ss. No lhe falei logo de Lalau; foi ele mesmo que, depois de alguns farrapos de conversao, ditos soltos, reparos sem valor, me perguntou o que que pensara dela. Eu, que os espreitava de longe, acudi pergunta. Estive pensando que essa moa superior sua condio, disse eu. A Senhora D. Antnia falou-me de outra agregada que, h quatro anos, foi ali seduzida por um saltimbanco. No creio que esta faa a mesma cousa, porque, apesar da idade e do ar pueril, acho-lhe muito juzo; creio antes que escolher marido, e viver honestamente. Mas aqui 0 ponto. O marido que ela escolher pode bem ser da mesma condio que ela, mas muito inferior moralmente, e ser um mau casamento. Flix dividia os olhos entre mim e a ponta do sapato. Quando acabei, achou-me razo. No lhe parece? perguntei. Decerto. Bem sei que esquisito meter-me assim em cousas alheias... Nada alheio para um bom padre como o senhor, disse ele com gravidade. Obrigado. Confesso-lhe, porm, que essa moa excitou a minha piedade. J lhe disse: tem cousas de criana, mas no criana. Entreg-la a um homem vulgar, que no a entenda, faz-la 16 17. padecer. No sei se a Senhora D. Antnia fez bem em apurar tanto a educao que lhe deu, e os hbitos em que a faz educar; no porque ela no se acomode a tudo, como um bom corao que , mas porque, apesar disso, h de custar-lhe muito baixar a outra vida. Olhe que no censurar... Pelo amor de Deus! sei o que . Pensa que eu no estou com a sua opinio? Estou e muito. Mame que pode ser que no esteja conosco. J tem pensado em vrias pessoas, segundo me consta, e de uma delas chegou a falar-me; era o Vitorino, filho do segeiro que nos conserta as carruagens. Ora veja! -No conheo o Vitorino. Mas pode imagin-lo. Olhei para ele um instante. Pareceu-me que estava de boa-f; mas era possvel que no, e cumpria arrancar-lhe a verdade. Inclinei-me, e disse que j tinha um noivo em vista, muito superior ao Vitorino. Quem? perguntou ele inquieto. O senhor. Flix teve um sobressalto, e ficou muito vermelho. Desculpe-me se lhe digo isto, mas a minha opinio, e no vale mais que opinio. H grande diferena social entre um e outro, mas a natureza, assim como a sociedade a corrige, tambm s vezes corrige a sociedade. Compensaes que Deus d. Acho-os dignos um do outro; os sentimentos dela e os seus so da mesma espcie. Ela inteligente, e o que lhe poderia faltar em educao j sua me lho deu. Teria alguma dvida em casar com ela? Flix estendeu-me a mo. No lhe nego nada, o senhor j adivinhou tudo, disse ele. E continuou, depois de haver-me apertado a mo: Que dvida poderia ter? Ela merece um bom marido, e eu acho que no seria de todo mau. Resta ainda um ponto. Que ponto? Hesitou um instante, bateu com a mo nos joelhos duas ou trs vezes, olhando para mim, como querendo adivinhar as minhas intenes. Resta mame, disse finalmente. Ope-se? Creio que sim. Mas no certo. H de ser certo. Digo-lhe tudo, como se falasse a um amigo velho de nossa casa. Mame percebeu, como o senhor, que ns gostamos um do outro, e ope-se. No o disse ainda francamente, mas sinto que, em caso nenhum, consentir no nosso casamento. Esse Vitorino um candidato inventado para separ-la de mim; e assim outros em que sei que j pensou. Estou que Lalau resistir, mas temo que no seja por muito tempo. . . No se lembra que mame j lhe pediu uma vez para levar-me Europa? Era com o mesmo fim de afastar-me, distrair-me, e cas-la. Acha isso? Com certeza. Como explica ento que ela continue a ter tanto amor pequena? O senhor no conhece mame. E um corao de pomba, e gosta dela como se fosse sua filha. Mas corao uma cousa, e cabea outra. Mame muito orgulhosa em cousas de famlia. Seria capaz de velar uma semana ou duas, cabeceira de Lalau, se a visse doente; mas no consentiria em cas-la comigo. So cousas diferentes.17 18. Devia ser isso mesmo, repliquei alguns instantes depois. E murmurei baixinho as palavras que ela ouvira ao av, no tempo do rei e repetira mais tarde no pao: "Uma Quintanilha no trame nunca!" Nem treme, nem desce, concluiu o rapaz sorrindo. ~ o sentimento de mame. Seja como for, nada est perdido; cuido que arranjaremos tudo. Deixe o negcio por minha conta. Tinha o plano feito. Se houvesse reconhecido que as intenes dele eram impuras, ajudaria a me e trataria de casar a menina com outro. Sabendo que no, ia ter com a me para arrancar-lhe o consentimento em favor do filho. Trs dias depois, voltando Casa Velha, achei nos olhos de Lalau alguma cousa mais particular que a alegria da amiga, achei a comoo da namorada. Era natural que ele lhe tivesse contado a minha promessa. No lho perguntei; mas disse-lhe rindo que parecia ter visto passarinho verde. Toda a alma subiu-lhe ao rosto, e a moca respondeu com ingenuidade, apertando-me a mo: Vi. No explico a sensao que tive; lembra-me que foi de incmodo. Essa palavra sbita, cordial e franca, encerrando todas as energias do amor, lacerou-me as orelhas como uma slaba aguda que era. Que outra esperava, e que outra queria' seno essa? No a pedira, no vinha interceder por um e por outro? Criatura espiritual e neutra, cabia-me to-somente alegrar-me com a declarao da moa, aprov-la, e santific-la ante Deus e os homens. Que incmodo era ento esse? que sentimento esprio vinha mesclar-se minha caridade? Que contradio? que mistrio? Todas essas interrogaes surgiram do fundo de minha conscincia, no assim formuladas, com a sintaxe da reflexo remota e fria, mas sem liame algum, vagas, tortas e obscuras. J se ter entendido a realidade. Tambm eu amava a menina. Como era padre, e nada me fazia pensar em semelhante cousa, o amor insinuou-se-me no corao maneira das cobras, e s lhe senti a presena pela dentada de cime. A confisso dele no me faz mal; a dela que me doeu e me descobriu a mim mesmo. Deste modo, a causa ntima da proteo que eu dava pobre moa era, sem o saber, um sentimento especial. Onde eles viam um simples protetor gratuito existia um homem que, impedido de a amar na terra, procurava ao menos faz-la feliz com outro. A conscincia vaga de um tal estado deu-me ainda mais fora para tentar tudo.18 19. CAPTULO V Falei a dona Antnia no dia seguinte. Estava disposto a pedir-lhe uma conversao particular; mas foi ela mesma que veio ter comigo, dizendo que durante a minha molstia tinha acabado umas alfaias, e queria ouvir a minha opinio; estavam na sacristia. Enquanto atravessvamos a sala e um dos corredores que ficavam ao lado do ptio central, ia-lhe eu falando, sem que ela me prestasse grande ateno. Subimos os trs degraus que davam para uma vasta sala calada de pedra, e abobadada. Ao fundo havia uma grande porta, que levava ao terreiro e chcara; direita ficava a da sacristia, esquerda outra, destinada a um ou mais aposentos, no sei bem. Naquela sala achamos Lalau e o sineiro, este sentado, ela de p. O sineiro era um preto velho e doudo. No fazia mais que tocar o sino da capela, para a missa, aos domingos. O resto do tempo vivia calado ou resmungando. Ningum lhe falava, embora fosse manso. Lalau era a nica, entre todos, parentes, agregados ou fmulos, que ia conversar com ele, interrog-lo, escut-lo, pedir-lhe histrias. E ele contava-lhe histrias muito compridas, sem sentido algumas, outras quase sem nexo, raminiscncias vagas e embrulhadas, ou sugestes do delrio. Era curioso v-los. Lalau perdia a inquietao; ficava sria e tranqila, durante dez, quinze, vinte minutos, a escut-lo. O Gira (nunca lhe conheci outro nome) alegrava-se ao v-la. Com a razo, perdera a convivncia dos mais. Vivia entregue aos pensamentos solitrios, mergulhado na inconscincia e na solido. A moa representava aos olhos dele alguma cousa mais do que uma simples criatura, era a sociedade humana, e uma sombra de sombra da conscincia antiga. Ela, que o sentia, dava-lhe essa curta emerso do abismo, e uma ou duas vezes por semana ia conversar com ele. D. Antnia parou. No contava com a moca ali, ao p da porta da sacristia, e queria falar-me em particular, como se vai ver. Compreendi-o logo pelo desagrado do gesto, como j suspeitara alguma cousa ao v-la preocupada. No momento em que chegvamos' Lalau perguntava ao Gira: E depois, e depois? Depois, o rei pegou gavio, e gavio cantou. Gavio canta? Gavio? U, gente! Gavio cantou: Calunga, mussanga, monandengu. . . Calunga, mussanga, monandengu... Calunga... E o preto dava ao corpo umas sacudidelas para acompanhar a toada africana. Olhei para Lalau. Ela, que ria de tudo, no se ria daquilo, parecia ter no rosto uma expresso de grande piedade. Voltei-me para D. Antnia; esta, depois de hesitar um pouco, deliberou entrar na sacristia, cuja porta estava aberta. Lalau tinha-nos visto, sorriu para ns e continuou o falar com o Gira. D. Antnia e eu entramos. Sobre a cmoda da sacristia estavam as tais alfaias. D. Antnia disse ao preto sacristo, que fosse ajudar a descarregar o carro que chegara da roga, e l a esperasse. Ficamos ss; mostrou-me duas alvas e duas sobrepelizes; depois, sem transio, disse-me que precisava de mim para um grande obsquio. Soube na vspera que o filho andava com idias de ser deputado; pedia-me duas cousas, a primeira que o dissuadisse. Mas por qu? disse-lhe eu. A poltica foi a carreira do pai, a carreira principal no Brasil. . . V que seja; mas, Reverendssimo, ele no tem jeito para a poltica. Quem lhe disse que no? Pode ser que tenha. No trabalho que se conhece o trabalhador; em todo caso,deixe-me falar com franquezaacho bom da sua parte que procure empregar a atividade em alguma cousa exterior. D. Antnia sentou-se, e apontou-me para outra cadeira. Ficamos ambos ao p de uma larga janela, que dava para o terreiro. Sentada, declarou que concordava comigo na necessidade que19 20. apontara, mas ia ento ao segundo obsquio, que no era novo; que o levasse para a Europa. Depois da Europa, com mais alguns anos e experincia das cousas, pode ser que viesse a ser til ao seu pas... Interrompi-a nesse ponto. Ela esperou; eu, depois de fit-la por alguns instantes, disse-lhe que a viagem, com efeito, podia ser til, mas que os costumes do moo eram to caseiros que dificilmente se ajustariam s peregrinaes; salvo se adotssemos um meio-termo: envi-lo casado. No se arranja uma noiva com um simples ba de viagem, disse ela. Est arranjada. D. Antnia estremeceu. Est aqui perto; a sua boa amiga e pupila. Quem? Lalau? Est caoando. Lalau e meu filho? Vossa Reverendssima est brincando comigo. No v que no possvel? Cas-los assim como um remdio? Falemos de outra cousa. No, minha senhora, falemos disto mesmo. D. Antnia, que dirigira os olhos para outro lado, quando preferiu as ltimas palavras, levantou a cabea de sbito, ao ouvir o que lhe disse. Creio que, depois da morte do marido, era a primeira pessoa que lhe fazia frente. Olhou-me espantada. Estava to acostumada a governar ali, naquele mundo insulado, sem contraste nem advertncia, que no podia crer em seus ouvidos. O Padre Mascarenhas dissera-lhe uma vez, ao almoo, que ela era a imperatriz da Casa Velha, e D. Antnia sorriu lisonjeada, com a idia de ser imperatriz em algum ponto da terra. No batia com o cetro em ningum, mas estimava saber que lho reconheciam. Pela minha parte, curvei-me respeitoso, mas insisti que falssemos daquele mesmo assunto, para resolv-lo de uma vez. Resolver o qu? perguntou ela alando desdenhosamente o lbio superior. No percamos tempo em dizer cousas sabidas de ns ambos, continuei. Eles gostam um do outro. Esta a verdade pura. Resta saber se podero casar, e aqui que no acho nem presumo nenhuma razo que se oponha. No falo de seu filho, que um moo digno a todos os respeitos. Falemos dela. Diga-me o que que lhe acha? No quis responder; eu continuei o que dizia, lembrei a educao que ela lhe dera, o amor que lhe tinha, e principalmente falei das virtudes da moa, da delicadeza dos seus sentimentos, e da distino natural, que supria o nascimento. Perguntei-lhe se, em verdade, acreditava que o Vitorino, filho do segeiro... D. Antnia estremeceu. Vejo que est informado de tudo, disse ela depois de um breve instante de silncio. Conspiram contra mim. Bem; que quer de mim Vossa Reverendssima? Que meu filho case com Lalau? No pode ser. E por que no pode ser? Realmente, no sei que idias entraram por aqui depois de 31. So ainda lembranas do Padre Feij. Parece mesmo achaque de padres. Quer ouvir por que razo no podem casar? porque no podem. No lhe nego nada a respeito dela; muito boa menina, dei-lhe a educao que pude, no sei se mais do que convinha, mas, enfim, est criada e pronta para fazer a felicidade de algum homem. Que mais h de ser? Ns no vivamos no mundo da lua, Reverendssimo. Meu filho meu filho, e, alm desta razo, que forte, precisa de alguma aliana de famlia. Isto no novela de prncipes que acabam casando com roceiras, ou de princesas encantadas. Faa-me o favor de dizer com que cara daria eu semelhante notcia aos nossos parentes de Minas e de S. Paulo? Pode ser que a senhora tenha razo; achaque de padre, achaque at de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nasceu nas palhas.. . Sim, senhor; mas nesse caso que mal h em casar com o Vitorino? Filho de segeiro no gente? Diga-me! Para que ela case com meu filho, Nosso Senhor nasceu nas palhas; mas para que case com o Vitorino, j no a mesma cousa... Diga-me!20 21. Mas, Senhora D: Antnia. . . Qual! disse ela levantando-se, e indo at porta que dava para a capela, e depois outra de entrada da sacristia; espiou se nos ouviram, e voltou. Voltando, deu alguns passos sem dizer nada, indo e vindo, desde a porta at parede do fundo, onde pendia uma imagem de Nossa Senhora, com uma coroa de ouro na cabea, e estrelas de ouro no manto. D. Antnia fitou durante alguns momentos a imagem como para defender-se a si mesma. A Virgem coroada, rainha e triunfante, era para ela a legtima deidade catlica, no a Virgem foragida e cada nas palhas de um estbulo. Estava como at ento no a tinha visto. Geralmente, era plcida, e alguma vez impassvel; agora, porem, mostrava-se rspida e inquieta, como se a natureza rompesse as malhas do costume. A pupila abrasava-se de uma flama nova; os movimentos eram sbitos e no sei se desconcertados entre si. Eu, da minha cadeira, ia-a acompanhando com os olhos, a princpio arrependido de ter falado, mas vencendo logo depois esse sentimento de desanimo, e disposto a ir ao fim. Ao cabo de poucos minutos, D. Antnia parou diante de mim.- Quis levantar-me; ela ps-me a mo no ombro, para que ficasse, e abanou a cabea com um ar de censura amiga. Para que me falou nisso? pergunta logo depois com doura. Conheo que fala por ser amigo de um e de outro, e da nossa casa. . . Pode crer, pode crer. Creio, sim. Ento eu no vejo as cousas? Tenho notado que amigo nosso. Ela principalmente, parece t-lo enfeitiado. . . No precisa ficar vermelho; as moas tambm enfeitiam os padres quando querem que eles as casem com os escolhidos do corao delas. Que ela merece, verdade; mas da a casar muito. Venha c, prosseguiu ela sentando-se, vamos fazer um acordo. Eu cedo alguma cousa, o senhor cede tambm, e acharemos um modo de combinar tudo. Confesso-lhe um pecado. A escolha do Vitorino era filha de um mau sentimento; era um modo, no s de os separar, mas at de a castigar um pouco. Perdoe-me, Reverendssimo; cedi ao meu orgulho ofendido. Mas deixemos o Vitorino; convenho que no digno dela. E bom rapaz, mas no est no mesmo grau de educao que dei a Lalau. Vamos a outro; podemos arranjar-lhe empregado do foro, ou mesmo pessoa de negcio... Em todo caso, no seja contra mim; ajude-me antes a arranjar esta dificuldade que surgiu aqui em casa . . . Desde quando? Sei l! desde meses. Desconfiei que se namoravam, e tenho feito o que posso, mas vejo que no posso muito. Entretanto, continua a receb-la. Sim, para vigi-la. Antes a quero aqui que fora daqui. No ento porque a estima? E tambm porque a estimo. Infelizmente, porque a estimo. Quem lhe disse que no gosto dela, e muito? Mas meu filho outra cousa; entrar na famlia que no. D. Antnia, tirou o leno do bolso, para esfregar as mos, tornou a guard-lo, e reclinou-se na cadeira, enquanto eu lhe fui respondendo. Conquanto fosse muito mais baixa que eu, dera um jeito to superior na cabea que parecia olhar de cima. Fui respondendo o que podia e cabia, com boas palavras, mostrando em primeiro lugar a inconvenincia de os deixar namorados e separados: era faz-los pecar ou padecer. Disse-lhe que o filho era tenaz, que a moa provavelmente no teimaria em despos-lo, sabendo que era desagradvel sua benfeitora, mas tambm podia dar-se que o desdm a irritasse, e que a certeza de dominar o corao de Flix lhe sugerisse a idia de o roubar me. Acrescia a educao, ponto em que insisti, a educao e a vida que levava, e que lhe tornariam doloroso passar s mos de criatura inferior. Finalmente,e aqui sorri para lhe pedir perdo, finalmente, era mulher, e a vaidade, insuportvel nos homens, era na mulher um pecado tanto pior quanto lhe ficava bem; Lalau no seria uma exceo do sexo. Herdar com o marido o prestgio de que gozava a Casa Velha acabaria por lhe dar fora e faz-la lutar. Aqui parei; D. Antnia no me respondeu nada, olhava para o cho. 21 22. Como estvamos de costas para a janela, e ficssemos calados algum tempo, fomos acordados do silncio pela voz de Lalau que vinha do lado do terreiro. Voltamos a cabea; vimos a moa repreendendo a dous moleques, crias da casa, que puxavam pela casaca ao sineiro, uma velha casaca que o Flix lhe dera alguns dias antes. O sineiro, resmungando sempre, atravessou o terreiro, tomou direita para o lado da frente da capela, e desapareceu: Lalau pegou na gola da camisa de uma das crias e na orelha da outra, e impediu que elas fossem atrs do pobre-diabo. Olhei para D. Antnia, a fim de ver que impresso lhe dera o ato da moa. Mal comeava a fit-la, reparei que franzia a testa, no sei at se empalidecia; tornando a olhar para fora, tive explicao do abalo. Vi o filho de D. Antnia ao p da moa; acabava de chegar ao grupo. Lalau explicava-lhe naturalmente a ocorrncia; Flix escutava calado, sorrindo, gostando de v-la assim compassiva, e afinal, quando ela acabou, inclinou-se para dizer alguma cousa aos moleques. Vimo-o depois pegar em um destes, e aproxim-lo de si, enquanto a moa ficou com o segundo; e, posto esse pretexto entre eles, comearam a falar baixinho. D. Antnia recuou depressa, para que no a vissem. Creio que era a primeira vez que eles lhe apresentavam semelhante quadro. Recuou levantando-se, e foi para o lado da cmoda; eu continuei a observ-los. No se podia ouvir-lhes nada, mas era claro que falavam de si mesmos. As vezes a boca interrompia os salmos, que ia dizendo, para deixar a antfona aos olhos; logo depois recitava o cntico. Era a eterna aleluia dos namorados. Violentei-me, no tirei a vista do grupo; precisava matar em mim mesmo, pela contemplao objetiva da desesperana, qualquer m sugesto da carne. Olhei para os dous, adivinhei o que estariam dizendo, e, pior ainda, o que estariam calando, e que se lhes podia ler no rosto e nas maneiras. Lalau era agora mulher apenas, sem nenhuma das cousas de criana que a caracterizavam na vida de todas as horas. Com as mos no ombro do moleque, ora fitava os olhos na carapinha deste, ouvindo somente as palavras de Flix; ora erguia-os para o moo, a fim de o mirar calada ou falando. Ele que olhava sempre para ela atento e fixo. Entretanto, D. Antnia aproximara-se outra vez da janela, por trs de mim, e de mais longe, confiada na obscuridade da sacristia. Voltei-me e disse-lhe que a nossa espionagem era de direito divino, que o prprio cu nos aparelhara aquela indiscrio. D. Antnia, em geral avessa s subtilezas do pensamento, menos que nunca podia agora penetr-las; pode ser at que nem me ouvisse. Continuou a olhar para os dous, ansiosa de os perceber, aterrada de os adivinhar. Uma cousa h de conceder, disse-lhe eu, h de conceder que eles parecem ter nascido um para o outro. Olhe como se falam. Veja os modos dela, a dignidade, e ao mesmo tempo a doura; ele parece at que quer fazer esquecer que o herdeiro da casa. No sei at se lhe diga uma cousa; digo se me consentir. . . D. Antnia voltou os olhos a mim com um ar interrogativo e complacente. Digo-lhe que, se algum trocasse os papis, e a desse como sua filha, e a ele como o advogado da casa, ningum poria nenhuma objeo. D. Antnia afastou-se da janela, sem dizer nada; depois tornou a ela, curiosa, interrogando a fisionomia dos dous. No fim de alguns minutos, no tendo esquecido as minhas ltimas palavras, redargiu com ironia e tristeza: Advogado? Creio que muito; diga logo cocheiro. Fiz um gesto de pesar. E pedi-lhe que me desculpasse o estilo pinturesco da conversao; no queria dizer seno que a dignidade da moa f-la-ia supor dona da casa, ao passo que as maneiras respeitosas dele, que to bem lhe iam, poderiam faz-lo crer outra cousa; mas outra cousa educada, notasse bem. D. Antnia ouvia-me distrada e inquieta, olhando para fora e para dentro; e quando afinal os dous separaram-se, indo ele para o lado da frente da capela, que comunicava com o caminho pblico, e ela para a parte oposta, a fim de entrar em casa, D. Antnia sentou -se na cadeira em que estivera antes, e respirou larga. Abanou a cabea duas ou trs vezes, e disse-me sem olhar para mim: No tenho de que me queixar; a culpa toda minha.22 23. De repente, voltou a cabea para 0 meu lado e fitou-me. Tinha as feies um tanto alteradas, como que iluminadas, e esperei que me dissesse alguma cousa, mas no disse. Olhou, olhou, recomps a fisionomia e levantou-se. Vamos. No obedeci logo; imaginei que ela acabava de achar algum estratagema para cumprir a sua vontade, e confessei-lho sem rebuo, porque a situao no comportava j dissimular. D. Antnia respondeu que no, no achara nem buscar nada, e convidou-me a sair. Insisti no receio, acrescentando que, se cogitava dar um golpe, melhor seria avisar-me, para que os dissuadisse, e no fossem eles apanhados de supeto. D. Antnia ouviu sem interromper, e no replicou logo, mas da a alguns segundos, com palavras no claras e seguidas, seno nvias e dbias. Contava comigo ao lado dela, desde que soubesse a verdade. . . mas que a apoiasse j. . . depois.. . ento. . . A verdade? repeti eu. Que verdade? Vamos embora. Diga-me tudo, a ocasio nica, estamos perto de Deus. . . D. Antnia estremeceu ouvindo esta palavra, e deuse pressa em sair da sacristia; levantei-me e sa tambm. Achei-a a dous passos da porta, disse-me que ia ver os aposentos fronteiros, porque contava com hspedes da roga, e foi andando; eu desci os degraus de pedra, atravessei o ptio da cisterna, e recolhi-me biblioteca. Recolhi-me alvoroado. Que verdade seria aquela, anunciada a fugir, tal verdade que me faria trocar de papel, desde que eu a conhecesse? Cumpria arrancar-lha, e a melhor ocasio ia perdida.23 24. CAPTULO VI No dia seguinte fui mais cedo para a Casa Velha, a fim de chegar antes dos hspedes que D. Antnia esperava da roga, mas j os achei l; tinham chegado na vspera, s ave-marias. Um deles, o Coronel Raimundo, estava na varanda da frente, conheceu-me logo, e veio a mim para saber como ia a histria de Pedro I. Sem esperar pela resposta, disse que podia dar -me boas informaes. Conhecera muito o imperador. Assistira dissoluo da Constituinte, por sinal que estava nas galerias, durante a sesso permanente, e ouviu os discursos do Montezuma e dos outros, comendo po e queijo, noite, comprados na Rua da Cadeia; uma noite dos diabos. Vossa Reverendssima vai escrever tudo? Tudo o que souber. Pois eu lhe darei alguma cousa. Comeamos a passear ao longo da varanda grande. Egosmo de letrado! A esperana de alguns documentos e anedotas para o meu livro ps de lado a principal questo daqueles dias; entreguei-me conversao do coronel. J sabemos que era parente da casa; era irmo de um cunhado do marido de D. Antnia, e fora muito amigo e familiar dele. Falamos cerca de meia hora; contou -me muita cousa do tempo, algumas delas arrancadas por mim, porque ele nem sempre via a utilidade de um episdio. Oh! isso no tem interesse! Mas diga, diga, pode ser, insistia eu. Ento ele contava o que era, uma visita, uma conversa, um dito, que eu recolhia de cabea, para transp-lo ao papel, como fiz algumas horas depois. Raimundo foi-se sentindo lisonjeado com a idia de que eu ia imprimir o que me estava contando, e desceu a mincias insignificantes, casos velhos, e finalmente s anedotas dele mesmo, e s partes da sua vida militar. Nhtnia, disse ele vendo entrar a parenta na varanda, este seu padre sabe onde tem a cabea. D. Antnia fez um gesto afirmativo e seco, mas logo depois, para me no molestar, redargiu sorrindo que sim, que tanto sabia onde tinha a cabea como o corao. Lalau e as duas filhas do coronel vieram de fora, veio de dentro uma senhora idosa, arrastando um pouco os ps, e dando o brao a uma moa alta e fina. Ande para aqui, baronesa, disse-lhe D. Antnia. Apresentaram-me s suas damas. Soube que a baronesa era av da moa que a acompanhava. Eram esperadas do Pati do Alferes dez ou doze dias depois; mas vieram antes para assistir festa da Glria. Foi o que me constou ali mesmo pela conversao dos primeiros minutos. A baronesa sentara-se de costas para uma das colunas, na cadeira rasa que lhe deram, ajudada pela neta, que a acomodou minuciosamente. Observei-a por alguns instantes. Os dous cachos brancos e grossos, pelas faces abaixo, eram da mesma cor da touca de cambraia e rendas, os olhos eram castanhos e no inteiramente apagados; l tinham seus momentos de fulgor, principalmente se ela falava em poltica. Sinhazinha, o livro? perguntou ela neta. Est aqui, vov. E o mesmo da outra vez, Nhtania? Era a mesma novela que lera quando ali esteve um ano antes, e queria reler agora: era o Saint Clair das lhas ou os Desterrados na Ilha da Barra. Meteu a mo no bolso e tirou os culos, depois a caixa de rap, e ps tudo no regao. Raimundo, passeando a mo pela barba, disse rindo: Bem, as senhoras vo conversar e ns vamos a um solo. Valeu, Reverendssimo? Fiz um gesto de complacncia.24 25. Flix um parceiro, e Nhtnia tambm; mas vamos s os trs. Nunca jogou com o Flix? Vai ver o que ele , fino como trinta diabos; l na roga d pancada em todo mundo. Aquilo sai ao pai. Se algum dia entrar na Cmara, creia que h de fazer um figuro, como o pai, e talvez mais. E olhe que acho tudo pouco para dar em terra com a tal Regncia do Sr. Pedro de Arajo Lima. . . L vem o coronel com as suas idias extravagantes, acudiu a velha baronesa abrindo a caixa de rap, e oferecendo-me uma pitada, que recusei. Acha que o Arajo Lima vai mal? Preferia o seu amigo Feij? Raimundo replicou, ela treplicou, enquanto eu voltava a ateno para Sinhazinha, que, depois de ter acomodado a av, fora sentar-se com as outras moas. Sinhazinha era o oposto de Lalau. Maneiras pausadas, atitudes longamente quietas; no tinha nos olhos a mesma vida derramada que abrangia todas as cousas e recantos, como os olhos da outra. Bonita era, e a elevao do talhe delgado dava-lhe um ar superior a todas as demais senhoras ali presentes, que eram medianas ou baixinhas, com exceo de Lalau, que ainda assim era menos alta que ela. Mas essa mesma superioridade era diminuda pela modstia da pessoa, cujo acanhamento, se era natural, aperfeioara-se na roga. No olhou para mim quando chegou, nem ainda depois de sentar-se. Usava as plpebras cadas, ou, quando muito, levantava-as para fitar s a pessoa com quem ia falando. Como o pescoo era um tantinho alto demais, e a cabea vivia erecta, aquele gesto podia parecer afetao. Os cabelos eram o encanto da av, que dizia que a neta era a sua alem, porque eles tendiam a ruivo; mas, alm de ruivos, eram crespos, e, penteados e atados ao desdm, davam -lhe muita graa. Gastei nesse exame no mais de dous a trs minutos. Depois, indo a compar-la melhor com Lalau, vi que esta fazia igual exame sorrateiramente. No era a primeira vez que a via, era a segunda ou terceira, desde que Sinhazinha perdera o pai e a me e viera do Rio Grande do Sul para a fazenda da av; no a viu no ano anterior, quando ela ali esteve. e cuido que lhe achava alguma diferena para melhor. Reverendssimo, vamos? disse-me o coronel, acabando de replicar baronesa. L, j. Onde est o parceiro? Havemos de ach-lo. Nhtnia, ele ter sado? D. Antnia respondeu negativamente. Estaria vendo as bastas, que vieram da roga, ou o cavalo que comprara na vspera. E descreveu o cavalo, a pedido do coronel, chegando-se ao mesmo tempo para o lado da Sinhazinha. Chegando a esta parou, ps-lhe uma das mos na cabea, e com a outra levantou-lhe o queixo, para mir-la de cima. Ai, Nhtnia! disse a moca. Est me afogando. D. Antnia fez-lhe uma careta de escrnio, inclinou-se e beijou-lhe a testa com tanta ternura, que me deu cimes pela outra. E sentou-se entre elas todas, e todas lhe fizeram grande festa. Raimundo calara-se para mirar a cena, porque ele queria muito s filhas, e gostava dev-las acariciadas tambm. Nisto ouvimos passos na sala contgua, e da a nada entrava na varanda o filho de D. Antnia. Ora, viva! bradou o coronel. Estvamos espera de voc para um solo. V, v, acudiu a baronesa, levantando os olhos do livro. O coronel est ansioso por jogar, e uma fortuna, porque veio da roga insuportvel, e no me deixa ler... Ento voc comprou um cavalo? Curtos eventos, palavras sem interesse, ou apenas curiosas que me no consolavam da interrupo a que era obrigado no cometimento voluntrio que empreendera; mas naquele dia no foi essa a minha pior impresso. Fomos dali para a mesa do jogo, em uma sala que ficava do outro lado, ao p da alcova do Flix. O coronel, contando os tentos, disse-nos que a baronesa estava com idias de casar com a neta, conquanto ainda no tivesse noivo; era uma idia. Parece que sentia-se fraca, receava morrer sem v-la casada; foi o que ele ouviu dizer aos Rosrios de Iguau, que eram muito da intimidade dela, e at parentes. Depois, rindo para o Flix. 25 26. Ali est um bom arranjo para voc. Ora! rosnou o rapaz. Ora qu? retorquiu o coronel encarando-o, enquanto baralhava e dava as cartas. Repito que era um bom arranjo; eu acho-a bem bonita, acho-a mesmo (tape os ouvidos, Reverendssimo!) acho-a um peixo. O pai educou-a muito bem; e depois duas fazendas, pode-se at dizer trs, mas uma delas tem andado para trs. Duas grandes fazendas, com setecentas cabeas, ou mais; terra de primeira qualidade; muita prata... No h outro herdeiro . . . Solo! interrompeu o moo. Ambos passamos; ele jogou e perdeu. No tinha jogo, foi um modo de interromper o discurso do parente. Mas o coronel era daqueles que no esquecem nada, e da a pouco tornou ao assunto, para dizer que ele, apesar de achacado, se a moa quisesse, tom-la-ia por esposa; e logo rejeitou a idia. No, no podia ser, estava um cangalho velho, no era mais quem dantes fora, no tempo do rei, e ainda depois. E vinha j uma aventura de 1815, quando o parente, em respeito a mim, disse-lhe que jogasse ou amos embora.. . Pela minha parte, estava aborrecido. A opinio do coronel, relativamente convenincia de casar o parente com Sinhazinha, e as mostras de ternura de D. Antnia para com esta, fizeram-me crer que podia haver alguma cousa em esboo; mas, ainda que nada houvesse, Raimundo, expansivo como era, chegaria a insinu-lo parente. Era uma soluo. Ignoro se Flix tambm desconfiava a mesma cousa; , todavia, certo que jogou distrado e calado, durante alguns minutos,o que faz com que o coronel nos dissesse de repente que estvamos no mundo da lua, que no viera da roga para ficar casmurro, e que, ou jogssemos ou ele ia s francesas da Rua do Ouvidor. Ainda uma vez, Flix atalhou a imaginao libertina do tio. Para desvi-lo dali, falou de outros atrativos, de um prestidigitador clebre cujo nome enchia ento a cidade, e que inteiramente me esqueceu, de bailes de mscaras e teatros. Contou-lhe o enredo dos dramas que andavam ento em cena, e aludiu a certa farsa, que divertira muito o coronel, na ltima vez que viera da roga. Raimundo tinha a alma ingenuamente crdula para as fices da poesia; ouvia-as como quem ouve a noticia de uma facada. No era mau homem, e era excelente pai; disse logo que no perderia nada, e levaria ao teatro as suas candongas. Assim chamava s filhas. Jogamos at perto da hora de jantar. Enquanto eles iam cavalaria, ver os animais chegados, dirigi-me para a sala principal, onde achei D. Mafalda, a tia da Lalau, que vinha busc-la para ir com ela s novenas da Glria; a moa voltaria depois da festa. Pareceu-me que Lalau ia obedecer constrangido; e, por outro lado, no ouvi nenhuma objeo da parte de D. Antnia. S estavam as trs; as hspedas da roga tinham-se recolhido por alguns instantes. Raimundo e Flix entraram pouco depois, o primeiro convidando-me a ir passear com ele e o sobrinho, a cavalo. Mas, se eu no sei montar. . . No diga isso! Ento vamos ns dous continuou voltando-se para o sobrinho. Vai Nhtnia... Eu no. . . . Vai Sinhazinha. Sinhazinha cavaleira de traz. Outra vez este nome! A gente como eu, quando receia alguma cousa, faz derivar ou afluir para ela os mais alheios incidentes e as mais casuais circunstncias. Fui acreditando que o coronel era efetivamente um desbravador, e a temer que o Flix no resistisse por muito tempo oferta de uma noiva distinta e graciosa, e da riqueza que viria com ela. Olhei para ele; vi-o falando com a tia de Lalau. Valeu? perguntou-lhe o coronel de longe. Hoje, no. Bem, amanh, depois do almoo. A senhora no perde as novenas da Glria, disse Flix a Mafalda.26 27. minha devoo antiga; e gosto de ir com Lalau, por causa da me, que tambm era muito devota de Nossa Senhora da Glria. Lembra-se, Nhtnia? Mas deixe estar, no dia 16 estamos c. No, interrompeu Flix, venham jantar no dia da Glria; venham de manh. Temos missa na capela, e que diferena h entre a missa cantada e a rezada? No , Reverendssimo? Fiz um gesto de assentimento. D. Antnia, porem, mordeu o lbio inferior, e no teve tempo de intervir, porque a tia da moa concordou logo em traz-la no dia 15 de manh. Lalau agradeceu-lhe com os olhos. No obstante a disposio do moo, fiquei receoso. Ao jantar, acharam-me preocupado; respondi somente que eram remorsos de ter gasto o melhor do dia ao jogo, em vez de ficar ao trabalho, e anunciei a D. Antnia que, em breve tempo, teria concludo as pesquisas. Caindo a tarde, Lalau e a tia despediram-se, e eu ofereci-me para acompanh-las. No era preciso: D. Antnia mandara aprontar a sege. Nhtnia quer dar-se sempre a esses incmodos, disse agradecendo Mafalda. Eu no, redargiu D. Antnia rindo, as incomodadas so as bastas. A sege, em vez de as tomar ao p da porta que ficava por baixo da sala dos livros, veio receb-las diante da varanda, onde nos achvamos todos. O constrangimento de Lalau era j manifesto. Se preferia a me a tudo, como me dissera uma vez, cuido que preferia D. Antnia e a Casa Velha companhia da tia; acrescia agora a presena de hspedes, a variedade de vida que eles traziam Casa Velha; finalmente, pode ser tambm, sem afirm-lo, que tivesse receios idnticos aos meus. Despediu-se penosamente. D. Antnia, embora lhe fosse adversa, certo que ainda a amava, deu-lhe a mo a beijar, e, vendo-a ir, puxou-a para si, e beijou-a na cara uma e muitas vezes. Cuidado, nada de travessuras! disse-lhe. Tia e sobrinha desceram os degraus da varanda, e quando eu ia ajud-las a entrar na sege, atravessou-me o filho da dona da casa, que deu a mo a uma e outra, cheio de respeito e graa. Adeus, Nhtnia! disse a moa metendo a cabea entre as cortinas de couro da sege, e fechando-as, depois de dizer-me adeus com os olhos. EU, que estava no topo da escada, correspondi-lhe igualmente com os olhos, e voltei para as outras pessoas, enquanto a sege ia andando, e o moo subia os degraus. Nhtnia, disse o coronel rindo, este seu filho dava para camarista do pao. D. Antnia, escandalizada, tinha entre as sobrancelhas uma ruga, e olhou sombria para o filho. Quero crer que este incidente foi a gota que fez entornar do esprito de D. Antnia a singular determinao que vou dizer.27 28. CAPTULO VII Era na varanda na manh seguinte. Quando ali cheguei, dei com D. Antnia s, passeando de um para outro lado; a baronesa recolhera-se, e os outros tinham sado a cavalo, depois de alguma espera para que eu os visse; mas cheguei tarde; por que que no fui mais cedo? No pude: estive sabendo as ms notcias que vieram do Sul. Sim? perguntou ela. Contei-lhe o que havia, acerca da rebelio; mas os olhos dela, despidos de curiosidade, vagavam sem ver, e, logo que o percebi. parei subitamente. Ela, depois de alguma pausa: Ah! ento os rebeldes... Repetiu a palavra, murmurou outras, mas sem poder vincul-las entre si, nem dar-lhes o calor que s o real interesse possui. Tinha outra rebelio em casa, e, para ela, a crise domstica valia mais que a pblica. E natural, pensei comigo; e tratei de ir aos meus papis. Ao pedir-lhe licena, vi-a olhar para mim, calada, e reter-me pel