Machado de Assis e Guimaraes Rosa

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    FRENTE A O ESPELHO DE MACHADOE DE GUIMARES ROSA

    FACE TO THE MIRROR FROM MACHADO

    AND FROM GUIMARAES ROSA

    Profa. Edna Maria F. S. Nascimento*

    Profa.Dra. Maria Clia Leonel**RESUMO: Embora a crtica machadiana e a rosiana j tenha se debru-ado sobre essas narrativas, isoladamente, ou por meio de comparao,acreditamos haver alguns aspectos desses contos que merecem ser ainda

    explorados. Assim, o artigo prope-se a comparar os dois contos hom-nimos de Machado de Assis e de Guimares Rosa, procurando obser-

    var os pontos de convergncia e os de divergncia no que diz respeito importncia das narrativas na produo de cada um dos escritores,na concepo sobre o tema, na construo da histria, na escolha dosnarradores.PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis, Guimares Rosa, conto, espe-lho, comparao.

    ABSRAC: Despite the critic o Machado de Assis and GuimaresRosa have already devoted hard analysis to these narratives, alone, orby means o comparison, we believe that there are some aspects aboutthese short stories which still deserve to be deeply explored. Tereore,this article proposes to compare these two homonymous short stories oMachado de Assis and Guimares Rosa, aiming the observation o theconvergent and divergent points regarding the importance o the narra-tives within each writers production, in the conception on the theme, inhistory construction, in the choice o the narrators.KEY WORDS: Machado de Assis, Guimares Rosa, short story, mirror,

    comparison.

    * Proessora Doutora e Coordenadora do Programa de Ps Graduao daUNIFRAN* ProessoraDoutora da UNESP Araraquara

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    FRENTE A O ESPELHO DE MACHADOE DE GUIMARES ROSA

    Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para

    ora, outra que olha de ora para dentro... Espantem-se vontade, podem car

    de boca aberta, dar de ombros, tudo; no admito rplica.

    (Machado de Assis, O espelho)

    Se me permite, espero, agora, sua opinio, mesma, do senhor, sobre tanto as-

    sunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente

    amigo, mas companheiro no amor da cincia, de seus transviados acertos e de

    seus esbarros titubeados. Sim?

    (Guimares Rosa, O espelho)

    Ao belo Narciso, irsias havia predito que ele viveria apenas enquanto a si

    mesmo no se visse. (ROSA, 1972, p. 72).Sua imagem, entrevista no espe-lho da gua, poderia representar a morte. Para os povos antigos e para quemsupe que o refexo da pessoa a alma, o espelho inspira receio supersti-cioso: ela pode, no espelho, recolher-se. Muitos so os conceitos impressosna palavra espelho representao, cone, refexibilidade, alma, que nosconduzem a valores como vida, morte, medo, subjetividade, alteridade.

    Neste estudo, colocamo-nos rente a dois espelhos, o de Machado de As-sis e o de Guimares Rosa e comparamos as concepes desses escrito-

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    res relativamente a esse tema e a alguns de seus aspectos composicionais,como o tratamento do narrador. Como se trata de autores muito distantesno tempo e com estilos bastante dierentes, pode-se considerar que se tratade universos literrios distintos. O ttulo, reiterado nos contos, abre o di-

    logo entre esses textos que partem de uma cena enunciativa o momentopresente , para remontar ao passado. Na narrativa machadiana, d-se o re-torno a um acontecimento passado, que marcou a personagem principal e,na composio rosiana, o protagonista-narrador recupera seu percurso damocidade maturidade, quando so revividos atos essenciais que exigemrefexo. Em ambos, o mote o espelho.

    No conhecido ensaio Esquema de Machado de Assis, Antonio Can-dido (1970, p. 23), vincula O espelho publicado em Papis avulsos em

    1882 , questo undamental da obra machadiana que a da identidade,da diviso do ser ou do desdobramento da personalidade, estudado porAugusto Meyer. de 1935 a refexo de Meyer (1975) sobre o conto empauta que se refete na Apresentao de Eugnio Gomes (1973, p. 13),aos contos machadianos da Coleo Nossos Clssicos. Comentando ostextos alegricos de Machado de Assis, em que se enquadra essa compo-sio, o crtico estabelece um dilogo entre tal narrativa e outras que tmcomo caracterstica uma losoa sub specie ludis e que desenvolvem idiascontidas no conto eoria do medalho, que oi publicado em 1881, eno romance Memrias pstumas de Brs Cubas, do mesmo ano. Na cita-o que recortamos da Apresentao, Gomes (1973, p. 13-14), explicita aconcepo machadiana de medalho e d-nos o percurso da retomada detal noo em vrios textos machadianos:

    Em que consiste a teoria do medalho que um pai irnico procura transmitir ao

    lho quando este chega maioridade? Em manter, para um pereito convvio

    social, as exterioridades brilhantes e vazias que azem desse convvio a bem-

    aventurana de tantos indivduos: a atuidade, a carncia de idias prprias, apreocupao absorvente com coisas e atos rvolos, o vocabulrio e idias de

    emprstimo, o gosto da publicidade, com o conseqente horror solido. O

    que signica esse horror em um pobre de esprito v-se no conto S (1885); o

    also esplendor de uma personalidade eita de umo e estultcia o tema de O

    Diplomtico (1884), enquanto Evoluo, tambm deste ano, mostra um per-

    eito arqutipo de vulgar apropriador de idias alheias, entusiasta do Progresso.

    A alegoria da alma exterior n O espelho por igual um desdobramento

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    especco da teoria do medalho, cujos eeitos j estavam alis diundidos nasMemrias Pstumas de Brs Cubas.

    odas essas obras citadas por Gomes so da dcada de 80 do sculo XIX,

    que, segundo esse crtico e muitos outros, a ase culminante do conto ma-chadiano, quando predomina o humor irnico.

    De todo modo, na mesma direo de Meyer e Gomes temos a leitura deAlredo Bosi (1999, p. 102) publicada no Brasil em 1982 e que tem comoorigem um estudo eito para uma antologia da Biblioteca de Ayacucho de Ca-racas , sintetizada por ele mesmo: O espelho matriz de uma certeza ma-chadiana que poderia ormular-se assim: s h consistncia no desempenhodo papel social; aqum da cena pblica a alma humana dbia e veleitria.

    A avor da posio dos crticos mencionados, lembramos que, noconto O espelho, ao ttulo, que condensa igurativamente o assuntoque vai ser tratado, dado o subttulo que o expande tematicamente:Esboo de uma nova teoria da alma humana. A nova teoria de ato,exposta na narrativa.

    Nela, o espelho constri-se como uma expanso conguradora da almahumana, ou melhor, da alma exterior, elaborada por Jacobina, que noquer discusso sobre a questo em pauta, propondo-se apenas a exempli-car a sua teoria:

    Nem conjetura, nem opinio, redargiu ele [Jacobina]; uma ou outra pode

    dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu no discuto. Mas, se querem ou-

    vir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a

    mais clara demonstrao acerca da matria de que se trata. Em primeiro lugar,

    no h uma s alma, h duas... [...] uma que olha de dentro para ora, outra que

    olha de ora para dentro... (ASSIS, 1973, p. 25-26)

    Para melhor explicar aos seus atentos ouvintes o que entende por almaexterior, alm de outros exemplos, o protagonista cita uma rase de Shylocke a comenta:

    A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perd-los equiva-lia a morrer. Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a ubal; um punhalque me enterras no corao. Vejam bem esta rase; a perda dos ducados,alma exterior, era a morte para ele. (ASSIS, 1973, p. 26).

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    Juntamente com as situaes exemplares, o protagonista arma quea alma humana no sempre a mesma. odas essas proposies servemcomo introduo para o caso ocorrido com ele prprio. Aos 25 anos, Ja-cobina, moo pobre, ora nomeado aleres da Guarda Nacional. De Joo-

    zinho, como era chamado em amlia, passa a ser o aleres. A importnciada patente recebida bastante reorada, quando, a convite de uma tia, vaipassar uns dias no stio dela, levando a arda como ela havia lhe solicitadocom insistncia. Para a ia Marcolina, ele torna-se o Senhor Alerescomdireito a todas as honrarias: Eu pedia-lhe que me chamasse Joozinho,como dantes; e ela abanava a cabea, bradando que no, que era o senhorAleres. (ASSIS, 1973, p. 28).

    Esse tratamento enaltecedor permite a observao: zeram em mim

    uma transormao, que o natural sentimento da mocidade ajudou e com-pletou [...] O aleres eliminou o homem(ASSIS, 1973, p. 29), cando umaparte mnima de humanidade:

    Aconteceu ento que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os

    olhos das moas, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapaps da

    casa, tudo o que me alava do posto, nada do que me alava do homem. [...] Era

    exclusivamente aleres. (ASSIS, 1973, p. 29)

    ia Marcolina, a principal personagem a proporcionar ao jovem aleresas condies que sustentavam a natureza da sua alma exterior, deixa o stiopara acudir uma lha que estava morte, cando, no local, apenas os pou-cos escravos da casa que, com o correr do tempo, tambm o abandonam.

    Vendo-se totalmente s, sem nenhum lego humano, sente-se um de-unto andante, um sonmbulo, um boneco mecnico. S o sono lhe d al-

    vio, pois,

    [...] eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma inte-rior. Nos sonhos, ardava-me orgulhosamente, no meio da amlia e dos ami-

    gos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam de aleres [...] e tudo isso me

    azia viver. (ASSIS, 1973, p. 33)

    Um dia, resolve olhar no espelho e relata o que v: no me estampoua igura ntida e inteira, mas vaga, esumada, diusa, sombra de som-bra (ASSIS, 1973, p. 34). Com medo, quer ir embora, comea a vestir-se,

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    com a tripartio de Corpo de baile na dcada de sessenta do sculo passa-do, a possibilidade de se visualizar O recado do morro como composiocentral do conjunto de novelas cou prejudicada.

    O estudo mais abrangente de Primeiras estrias, de Ana Paula Pacheco

    (2006) analisa, no ltimo captulo, As ormas do espelho dilemas da re-presentao, a narrativa que nos ocupa, examinando entre outras, a ques-to do duplo e a relao com o texto homnimo de Machado de Assis.

    No conto rosiano, relata-se uma experincia que induz a intuies e re-fexes sobre o que , na verdade, o espelho, ou seja, o problema da identi-dade da psique humana. O texto comea com travesso e, como em Grandeserto: veredas e Meu tio o Iauret de Estas estrias, um dilogo pelametade, ou seja, o discurso pressupe um interlocutor culto como no nico

    romance rosiano: O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nemtenha idia do que seja na verdade um espelho? (ROSA, 1972, p. 71).O enunciador comea a narrativa armando que h espelhos bons e

    maus e a partir dessa constatao, interroga: Como que o senhor, eu,os restantes prximos, somos, no visvel? (ROSA, 1972, p. 71). Relacionaainda uma srie de exemplos que poderiam comprovar como, de ato, so oshomens e, logo a seguir, desmonta-os. Quanto s otograas, diz: Ainda quetirados de imediato um aps outro, os retratos sempre sero entre si muitodierentes(ROSA, 1972, p. 71, grio do autor); quanto s mscaras,Valem,grosso modo, para o alquejo das ormas, no para o explodir da expresso,o dinamismo sionmico (ROSA, 1972, p. 71); a respeito da nossa percep-o relativamente a outras pessoas, h deormao de ordem psicolgica:Os olhos, por enquanto, so a porta do engano. (ROSA, 1972, p. 72).

    odas essas ponderaes servem como introduo para o ato que vainarrar: o encontro, ocorrido no cotidiano e involuntariamente, de ummoo ele prprio, personagem qualicado como contente, vaidoso,consigo mesmo, em um espelho:

    Foi num lavatrio de edicio pblico, por acaso [...] E o que enxerguei, por ins-

    tante, oi uma gura, perl humano, desagradvel ao derradeiro grau, repulsivo

    seno hediondo [...] causava-me dio e susto, eriamento, espavor. E era logo

    descobri... era eu, mesmo! (ROSA, 1972, p. 73).

    A partir da, o narrador-protagonista comea a procurar o que denecomo oeu por detrs de mim, a minha vera ormapor meio de vrios

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    articios,em dierentes posies e expresses de sentimento ira, medo,orgulho, alegria, tristeza rente ao espelho. Queria ir alm da mscara nelerefetida, alm do rosto externo, que ormado de diversos componentes.Principiou por bloquear a ona, elemento animal que lhe seria correspon-

    dente: E, ento, eu teria que, aps dissoci-lo meticulosamente, aprendera no ver, no espelho, os traos que em mim recordavam o grande elino.Atirei-me a tanto. (ROSA, 1972, p. 75, grio do autor)

    O segundo componente apagado o elemento hereditrio, as pare-cenas com os pais e avs.Desaparece, ainda, o que se deve ao contgiodas paixes [...] o que ressaltava das desordenadas presses psicolgicastransitrias(ROSA, 1972, p. 76), o que materializa idias e sugestes deoutrem, alm de interesses emeros. At que, um dia,

    Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e no me vi. No vi nada.

    S o campo, liso, s vcuas, aberto como o sol, gua limpssima, disperso

    da luz, tapadamente tudo. Eu no tinha ormas, rosto? Apalpei-me, em muito.

    Mas, o invisto. O cto. O sem evidncia sica. Eu era o transparente contem-

    plador?... irei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair na poltrona. (ROSA,

    1972, p. 76).

    Sem rosto externo, sem olhos, o protagonista quer voltar a t-los, querse espelhar, porque uma dvida o assalta: Seria eu um... des-almado? (ROSA, 1972, p. 77).Anos mais tarde, depois de sorimentos grandes e deamar, relata:

    Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; no este, que o senhor

    razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto-quase, de nascimento abis-

    sal... E era no mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, s. S.

    (ROSA, 1972, p. 78).

    O conto rosiano termina com a questo: Ser este nosso desengonoe mundo o plano interseco de planos onde se completam de azeras almas? (ROSA, 1972, p. 78). Respondida a questo armativamente, a

    vidasendo experincia extrema e sria, bastando o despojamento de tudoo que obstrui o seu crescimento, surge espao para novo questionamen-to: Voc chegou a existir?e, com ele, a destruio da concepo de vidacomoagradvel acaso.

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    Os trs pargraos nais dO espelho rosiano so espelho do que asua narrativa: uma interrogao, a dvida gurativizada e no resolvida. Aointerlocutor culto, mesmo j no nal, o narrador solicita a opinio sobre oassunto.

    Entre os dois contos, h semelhanas visveis quanto histria e pelapresena de protagonistas que so tambm narradores. odavia, no quetange concepo que os preside, h dierena undamental: o narradormachadiano, dono de uma verdade que supe ser cientca, compraz-se emilustr-la com uma experincia pessoal. O de Guimares Rosa, tambm apartir do relato de vivncia prpria, meticulosamente relatada, e em buscade explicaes cientcas e loscas, termina como comeou: com dvi-das e perguntas.

    Alm disso, a imagem refetida do aleres a sua alma exterior, a suamscara social, a representao para o e do outro. Embora o narrador ma-chadiano mencione a existncia de duas almas, s trata de uma, como co-menta Dante Moreira Leite (1967, p. 194), alinhando-se aos crticos ante-riormente citados:

    Observe-se que, embora aa reerncia a duas almas, uma que olha para dentro

    e outra que olha para ora, a descrio apresentada no conto limita-se alma

    externa, como se ambas pudessem reduzir-se exterioridade [...] essa orma de

    descrever corresponde concepo de Machado de Assis, segundo a qual a maior

    parte da vida mental um processo de ajustamento s aparncias sociais.

    Por sua vez, John Gledson em A histria do Brasil em Papis avulsos, deMachado de Assis (2006, p. 71), relacionando co e histria emboraressaltando que, nos contos machadianos em que se inclui O espelho, nose dene o enquadramento histrico arma: [...] aqui, mais do quenunca as especulaes de Machado se centram na questo da identidade

    nacional que to reqentemente tem preocupado os intelectuais latino-americanos desde a Independncia. (p. 72). No caso especco da narrativaque nos ocupa, localiza a primeira reerncia histrica na meno ao espe-lho que a tia mandara colocar no quarto de Jacobina e que ora compradode uma das dalgas vindas em 1808 com a corte de D. Joo VI. A reerncia origem do espelho indicaria que as intenes do escritor no eram ape-nas loscas problematizando as questes da alma e da identidade pesso-al, pois, nesse caso, qualquer espelho serviria. O estudioso de Machado

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    (GLEDSON, 2006, p. 74), segue apontando o que, a seu ver, seriam refexosda histria na composio em pauta. Por exemplo, a identidade nacionalseria imperceptvel como o protagonista no espelho, ou seja, tal objeto [...], ele prprio, um refexo do que acontecer mais tarde quando o aleres

    elimina o homem. ambm Jacobina um espao vazio rodeado por umamoldura decorativa o uniorme que ele veste para o impedir de desapare-cer. No entanto, ressalta que, em O espelho e em outras narrativas comoos romances Dom Casmurro e Quincas Borba, A linguagem da psicologia(pr-reudiana) sobretudo do inconsciente encontra um lugar naturalnessa original anlise histrica. (p. 75).

    Nesse ponto, o estudo de John Gledson aproxima-se do de Dante Mo-reira Leite (1967, p. 198), para quem o desmascaramento da alma exte-

    rior de Jacobina vincula o conto machadiano teoria reudiana:

    [...] a teoria de Machado de Assis contm outro elemento importante, corres-

    pondente idia de desmascaramento das aparncias da pessoa. Essa tendncia

    supe uma oposio undamental entre os impulsos individuais e asexigncias

    da sociedade, a que a pessoa se submete. Essa tendncia oi a que, dentro

    evidentemente, de outras premissas tericas, encontrou expresso na teoria

    reudiana da personalidade.

    A imagem do narrador rosiano, dierentemente daquela apresentada emO espelho de Machado de Assis, aparece horrenda, desaz-se, desaparecee principia a reconstituir-se. a alma mais prounda: composta do ancestralanimal, dos resduos dos antecedentes humanos, das paixes resultantes depresses psicolgicas e daquilo que materializao das idias e sugestesde outrem, portanto, no apenas exterior; , no que diz respeito psiquehumana, mais complexa do que a de Machado. A alma de Guimares Rosadesmancha-se em couve-forou bucho de boi e,ao recompor-se, depois

    de ascese e sorimento como em A hora e vez de Augusto Matraga ,e j amando, emerge como for pelgica: a inocncia do rosto inantil.Moreira Leite v na ona a representao do dio, o ser consumido pelo so-rimento. Por um lado, sem o dio, o ser humano ca sem alma; por outrolado, a alma verdadeira reencontrada com o amor. A teoria de Gui-mares Rosa, segundo Moreira Leite (1967, p. 198), est prxima da teoria

    jungiana alm de introduzir outros signicados, no explicitados:

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    Se passamos para O espelho de Guimares Rosa, encontramos uma concep-

    o psicolgica que, sob alguns aspectos pelo menos, se aproxima da teoria

    jungiana de personalidade, embora introduza tambm outros conceitos. Ao

    contrrio do que ocorre no conto de Machado de Assis, a exteriorizao perde

    qualquer signicado, e o heri-narrador procura devassar a sua intimidade, embusca de elementosundamentais. Essa pesquisa conduz descoberta de traos

    de dio, mas, undamentalmente, de dio contra si mesmo. Quando elimina o

    dio, o heri ca sem alma, pois esse sentimento seria o seu ncleo undamen-

    tal; s depois de um perodo de grandes sorimentos que o espelho comea a

    refetir um comeo de luz, enquanto o rosto s aparecer, emboraseja rosti-

    nho de menino, de menos-que-menino, s, depois do amor.

    H, tambm, no texto de Guimares Rosa, uma relao entre a arte de vi-ver e arte da arte, o processo criativo, naquilo que o escritor sempre propepara a criao: o alijamento do que obstrui e soterra, os ancestrais animais, osantepassados, os constrangimentos psicolgicos, as exigncias alheias.

    Contudo, no que diz respeito s personagens, os dois protagonistas, deMachado e de Guimares Rosa, so tentaculizados, seduzidos pelo eeitoespecular que a imagem refetida no espelho. Se compararmos como azHeloisa Vilhena de Arajo (1998) em relao a Guimares Rosa os prota-gonistas com o mito de Narciso e tomarmos como ponto de partida a refe-xo sobre esse tema em A. Allejo (apudSILVA, 1995, p. 164-175), De comoel proto-sujeito se agresiviza. El mito de Narciso, vemos que, nos trs casosh a ao que encurta a distncia que os leva identicao com o outroespecular. Como Este intentar ser el otro de Narciso terminar con l, serla muerte de Narciso y el triuno de lo especular (ALLEJO, apudSILVA,1995, p. 165). Narciso morre, tentando a identicao com a imagem que oseduz. o ncleo da contradio do narcisismo: para que a imagem puedapatentizarse como verdadera imagen tiene que morir lo real de Narciso.

    (ALLEJO, apudSILVA, 1995, p. 165). Segue a idia de auto-agressividade:em toda relao especular estabelece-se um par em que um dos membros dissolvido. Nos dois contos, passa-se da dissoluo recomposio daimagem. Narciso v de pronto o Narciso belo e seduzido pela beleza quecorresponde a padres simblicos, no por uma beleza qualquer.

    Para Jacobina sobreviver, precisa ver-se num padro de beleza aceito,padronizado como tal o aleres; a personagem rosiana reencontra-secom a interioridade no rosto de menino, livre das injunes ancestrais,

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    psicolgicas, sociais. anto o narrador machadiano quanto o rosiano vmborres quando se aastam do ideal de beleza que abraam. Seriam anti-narcisos por evolurem da morte narcsica um, pela identicao com abeleza exterior; outro com a interior que no leva morte?

    A aproximao e o aastamento no que diz respeito s vozes narrativastambm devem ser considerados. Ambos os narradores enunciam ulterior-mente os acontecimentos, tendo, sobre eles, aparentemente, domnio total.odavia, em Machado, h dois narradores: o narrador heterodiegtico (GE-NEE, [198-], p. 244), delega a voz personagem Jacobina, conhecedordo narrado. O que chama a ateno o ato de a sua enunciao autodieg-tica azer-se de modo claramente dialogado.

    Em Guimares Rosa, temos um narrador autodiegtico, cujo relato se

    d por dilogo implcito. Apesar de ser tambm dono absoluto dos atos, um narrador que, com a narrao, quer recuperar o acontecido, entend-lo,e, por meio dele, refetir sobre o seu signicado. Na sua ala, os questiona-mentos se sucedem, no se resolvem, como em Grande serto: veredas eoutros escritos rosianos.

    Por sua vez, Jacobina narra diegeticamente de modo tradicional, conclusi-vo. O relato de sua experincia que pode ser considerada como experimen-to cientco , d autoridade ao argumento inquestionvel da alma exterior,questo cara a Machado de Assis, para quem a alma exterior tudo.

    O narrador rosiano, de um ponto de vista que tambm se quer cien-tco e ainda intuitivo como, alis, o protagonista machadiano , se-gue etapas que se poderiam dizer cientcas e tem respostas que a melhorcincia sempre dar: alguma certeza e muita dvida. Para completarmosas observaes de Moreira Leite, podemos acrescentar que a personagem-narradora no elimina apenas o dio-ona, mas tambm os componenteshereditrios, a paixo, o outro e o supercial. O caminho percorrido peloprotagonista rosiano humanstico e mstico pelo sorimento e amor a

    imagem se recompe como deve ser: livre de todas as injunes.J no relato de Jacobina, a experincia que ocorreu com ele que o au-

    toriza a armar que, dependendo da relao que a pessoa estabelece como Outro, a natureza da sua alma exterior alterada. No presente, como osquatro cavalheiros que ouvem sua histria, tendo entre quarenta e cinqen-ta anos, a sua alma exterior, ou, pelo menos, uma parte dela, se espelha naopinio dos amigos que o vem como casmurro cuja esprtula no debateno passava de um ou outro resmungo de aprovao. (ASSIS, 1973, p. 25).

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    O episdio relatado por ele exemplica como a alma exterior sore mudan-as conorme a relao estabelecida com o Outro.

    As vrias denominaes do protagonista machadiano refetem a nature-za das dierentes almas exteriores construdas a partir de cada relao com o

    Outro. No momento presente da narrao, Jacobina tratado ormalmentepelo seu sobrenome pelos companheiros de especulao. As caractersticasda personagem, que no admitia conjectura, opinio e que era casmurroesto contidas na denominao que recebe na idade madura. O sobrenomeJacobina remete, em primeiro lugar, aos Jacobinos, os parisienses partid-rios exaltados da democracia a partir de 1789 e, no Brasil, o termo passoua identicar os xenobos, em especial os lusobos (NASCENES, 1955),os nacionalistas extremados (FERREIRA, 1999). J a orma Jacobina que

    pode provir do tupi yakuabina e signica terreno de cascalhos (GU-RIOS, 1973) e que, segundo Houaiss e Villar (2001), um termo da Bahiaque designa terreno imprprio para a lavoura, coberto de mato baixo, cer-rado e espinhoso. Citando Luiz Caldas ibiri, a propsito do nome dacidade baiana, os dicionaristas registram outro signicado para a palavraespcie de rvore que perde as olhas por ocasio das secas o que corro-bora com o qualicativo intransigente, reratrio que podemos atribuir satitudes da personagem no momento da narrao.

    No tempo passado, as dierentes identicaes de Jacobina demonstramo percurso da alma exterior de Joozinho, hipocorstico carinhoso agre-gado ao nome Joo, que signica cheio de graa (GURIOS, 1973), atchegar idade adulta:

    PRESENE

    PASSADO

    Deno

    mina-es

    Jacobina Joozinho

    Aleres Senhoraleres

    N h ale-

    res

    Eu

    eu1 Jacobina

    ou-tro

    compa-nheiros

    amlia GuardaNacio-nal

    iaMarcolina

    e s c r a -vos

    EU

    eu2 compa-nheiros

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    Frente a O espelho de Machado e de Guimares Rosa 289

    Na leitura do Esboo de uma nova teoria da alma humana a partir dasormas de tratamento que o Outro atribui ao protagonista, o apagamentodo aleres comea a ocorrer quando a denominao dada por ia Marco-lina, Senhor Aleres, substituda por Nh Aleres em que o Outro so

    os escravos que no tinham autoridade para reerendar o papel social dealeres:

    Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espritos bo-

    ais. O aleres continuava a dominar em mim, embora a vida osse menos in-

    tensa, e a conscincia mais dbil. Os escravos punham uma nota de humildade

    nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a aeio dos parentes e a

    intimidade domstica interrompida. (ASSIS, 1973, p. 30)

    ia Marcolina, viva do Capito Peanha, que mais reconhece o valordo posto do sobrinho e que martela no seu ouvido a palavra aleres comocomenta o narrador E sempre aleres; era aleres para c, aleres para l,aleres a toda hora. (ASSIS, 1973, p. 28). Reerenda a gura de eco de iaMarcolina a etimologia de seu nome. Gurios (1973) nos d a chave paratal interpretao Marcolina, diminutivo de Marcos, derivado de marcusgrande martelo de erreiro que segundo L. Deroy provm de etrusco mar-ce, martelador, erreiro, da raiz mar, bater, erir.

    Quando at mesmo os escravos deixam o stio, totalmente s, o eu, des-pojado do outro, encontra o EU, a alma interior, que sem o OURO nada:[...] porque a alma interior perdia a ao exclusiva, e cava dependente daoutra, que teimava em no tornar... E no tornava. (ASSIS, 1973, p. 33).

    O preenchimento do eu d-se no espelho, onde o eu desdobra-se noprprio EU que se espanta por no se reconhecer: Olhei e recuei. O pr-prio vidro parecia conjurado com o resto do universo; no me estampoua gura ntida e inteira, mas vaga, esumada, diusa, sombra de sombra.

    (ASSIS, 1973, p. 34).O reconhecimento de si s acontece quando o eu exterior, o aleres, eli-

    mina o desconhecido eu: [...] era eu mesmo, o aleres, que achava, enm,a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do stio, dispersa e ugidacom os escravos, ei-la recolhida no espelho. (ASSIS, 1973, p. 35).

    A alma de Jacobina, nas dierentes ases da sua vida, de natureza social,tirando-lhe o que lhe exterior, nada resta. Sob a aparncia dos dierentesespelhos que so os outros, a alma interior no passvel de ser capturada.

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    Edna Maria F. S. Nascimento e Maria Clia Leonel290

    O conto rosiano, por sua vez, narra a busca da alma atravs da expe-rincia do espelho. O percurso da personagem annima no se centra nooutro, mas no despojamento do seu EU, a alma interna que lhe interessaconhecer: Os olhos, por enquanto, so a porta do engano; duvide deles,

    dos seus, no de mim. (ROSA, 1972, p. 73).Como emAs aventuras de Alice no pas das maravilhas eAtravs do es-

    pelho e o que Alice encontrou l (1977), o annimo no se contenta com suaimagem refetida e relata, no presente, quando j est mais velho, o que en-controu na experincia vivida na mocidade. Em queda em rodopio de orapara dentro v-se de rente com o EU que sou o OURO:

    E o que enxerguei, por instante, oi uma gura, perl humano, desagradvel ao

    derradeiro grau, repulsivo seno hediondo. Deu-me nusea, aquele homem,causava-me dio e susto, eriamento, espavor. E era logo descobri... era eu,

    mesmo! (ROSA, 1972, p. 73)

    Na busca do EU por trs de mim, da sua essncia, da vera orma, ossia inerior na escala era, porm a ona (ROSA, 1972, p. 35) e a des-gura. Somente depois do sorimento consegue vislumbrar uma radincia e,enm, quando ama se congura, renascido, em um rosto de menino.

    No texto rosiano, o conhecimento do EU depende do encontro com aalma interior, que acontece como uma queda em rodopio para dentro desi e que, em um aunilamento, chega ao nal do tnel onde o que resta [...] o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: Voc chegou a existir? (ROSA, 1972, p. 78, grio do autor):

    O texto machadiano, que se assemelha a um ensaio, em que Jacobinaexemplica de maneira didtica o esboo de uma nova teoria da alma hu-mana, deende que se pode mudar constantemente de espelho, dependendoda relao que se estabelece com o OURO. Demonstrada orma de um

    teorema, para a nova teoria, conhecer a si ser conhecido pelo OURO.Como dito, o texto cria um eeito de verdade que espelha a crena macha-diana na supremacia da sociedade em relao ao indivduo.

    Dierentemente, a experincia atravs do espelho da narrativa rosianadeixa-nos a dvida sobre como se encontrar o verdadeiro EU, conguradano julgamento-problema: Voc chegou a existir?, que condensa acrise existencial do sculo XX.

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    Frente a O espelho de Machado e de Guimares Rosa 291

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    Ed M i F S N i t M i Cli L l292

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    Recebido em 25 de novembro de 2007Aceito em 27 de evereiro de 2008