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MACHADO DE ASSIS

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APOIO da DIRETORIA CULTURALCLUB ATHLETICO PAULISTANO

2016

OITAVO CADERNO DE LITERATURA

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MACHADO DE ASSIS — 2016Copyright © by autoresProjeto com apoio da Diretoria Cultural do Club Athletico PaulistanoVice-Presidente Cultural — Antonio Henrique A. de Godoy Pinheiro1o Diretor Cultural — Eduardo Simone Pereira2o Diretor Cultural — André Luiz Pompeia Sturm

coordenadores

projeto gráfico

Carlos Eduardo Cornacchione

HelO Bello Barros

HelO Bello Barros

apoio de secretaria Silvana Marani & Equipe

Oitavo Caderno de Literatura — Machado de Assis 2016

Antologia escrita por sócios do Club Athletico Paulistano, inspirada na

obra de Machado de Assis. Os textos desta antologia, seus personagens

e enredos existem apenas no mundo da ficção, e são de responsabilidade

dos seus autores.

Postais do antigo Rio de Janeiro[gentilmente cedidos por Rogério Matarazzo]

ilustrações da capa

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SUMÁRIO

PALAVRAS DO NOSSO PRESIDENTE — Ricardo Sampaio Vidal GusmãoA ACADEMIA DE LETRAS DE UM CLUBE PAULISTANO — Maria Lúcia Perrone PassosBRUT OU DEMI-SEC? — Suzana Montoro......................................................................15ANTES DA MEIA-NOITE — Jeanette Rozsas..................................................................19CARUNCHADOS — Ignez Matarazzo..............................................................................21O SÓSIA — Maria Helena F. Vieira....................................................................................23CHÁ DA TARDE — Guilherme Hernandez Filho.............................................................26DIVÃNEANDO — Lilian Gattaz........................................................................................29JOAQUIM MARIA — Giselda Penteado Di Guglielmo....................................................31HEREGE NA IMORTALIDADE — Ercílio Alberto..........................................................37MISSA DO GALO — Guta Rezende..................................................................................40COINCIDÊNCIAS — Bia de Castro Oliveira...................................................................44RATOS — Sérgio Cataldi....................................................................................................48LAÇOS DE CALABROTE — Antonieta Fernandes..........................................................53AS ÁGUAS VÃO E VÊM — Gilda Pasqua Barros de Almeida........................................57O RETRATO DE UM SENHOR AUSTERO — Maria Helena Nogueira de Almeida......61CORRESPONDÊNCIAS — Hans Freudenthal.................................................................66O 10o MANDAMENTO — Lygia Pistelli...........................................................................69A CRIAÇÃO — Betty Wey.................................................................................................71(IN)SANIDADES — Maria Julia Kovács...........................................................................73 O CONTO QUE ME SONHOU — May Parreira e Ferreira.............................................76AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ — Thais Costa.................................................................81DEZEMBROS — Renata Julianelli....................................................................................85ERUDIÇÃO SELVAGEM — Maria Lucia Rizzo...............................................................88INOCENTE OU CULPADA? — Agda Del Cioppo...........................................................89ENCONTROS — Angela Guimarães..................................................................................91ÂNCORA DA ALMA — Teresinha Taumaturgo Policastro...............................................93FASCÍNIO — Heloísa de Queiroz Telles Arrobas Martins.................................................95O HOMEM QUE TINHA DINHEIRO DEMAIS — Tania Melo Franco..........................99PENÉLOPE — Gisella Prado............................................................................................103MEMÓRIAS PÓSTUMAS ÀS AVESSAS — Maria Luíza Galli....................................105SÓ FICARAM AS CARTAS — Angélica Royo..............................................................107A PRAÇA — Maria Angela de Azevedo Antunes.............................................................110O PARASITA CORRUPTO — Carlos de Faro Passos.....................................................113CONVERSAS — Rogério Matarazzo...............................................................................117A AUDIÊNCIA — Danielle Martins Cardoso...................................................................119O SALTEADOR, O MÁGICO e o DEPUTADO — Ricardo Lahud................................124PASSOS NO CORREDOR — HelO Bello Barros...........................................................126MEMORIAL — Carlos Eduardo Cornacchione................................................................131

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Quando tive em mãos nossa coletânea, dedicada esse ano a Machado de Assis, foi como retornar aos bancos da escola e sentir novamente a sensação encantadora do descobrimento da leitura. Imediatamente vi ressurgir na minha frente seus personagens, as horas de silêncio que eles proporcionavam à minha vizinhança, o quintal de minha casa estranhamente sem o barulho da bola ou da bicicleta. Os livros passando a competir de igual para igual com as brincadeiras de garoto.

É dentro desse espírito de resgate, que convido os leitores a

embarcar nessa viagem literária, capitaneada por nossos sócios colaboradores e inspirada em um escritor que já em seu tempo mostrou uma diversidade incomum através de sua obra. Romances, peças teatrais, contos, poemas e artigos, fizeram de Machado de Assis um ícone da literatura brasileira. Fundador e primeiro Presidente da Academia Brasileira de Letras, foi peça fundamental na criação de uma identidade literária nacional.

Esta coletânea é mais um exemplo do maravilhoso trabalho

desenvolvido por nossos sócios na Oficina Literária do Paulistano, que é referência entre os Clubes de São Paulo.

Aproveitem!

Ricardo Sampaio Vidal GusmãoPresidente

PALAVRAS DO NOSSO PRESIDENTE

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A ACADEMIA DE LETRAS DE UM CLUBE PAULISTANOMaria Lúcia Perrone Passos

Os fundadores das primeiras Academias inspiraram-se em Platão e sua lendária aldeia (387 a.C.), em Sócrates e Aristóteles. Voltadas ao cultivo das Ciências Exatas, da História, da Literatura, as academias floresceram no Renascimento italiano, e se difundiram por outros países da Europa e das Américas. Com o tempo os franceses passariam a intitular como tal as instituições do ensino superior, hoje denominadas universidades.

Em 1897, seguindo o modelo da Académie Française, que já existia desde o século XVII, fundou-se no Rio de Janeiro a Academia Brasileira de Letras, dedicada ao cultivo da língua e da literatura brasileiras. Integrada por 40 imortais pertencentes a diversas escolas literárias, congregava um grupo heterogêneo de poetas, contistas, romancistas, jornalistas, críticos literários já conhecidos pela população letrada do país. O primeiro e vitalício presidente, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), um dos fundadores da ABL, era então considerado o mais importante escritor brasileiro.

No final do século XX, a cidade de São Paulo testemunhou o surgimento de variadas modalidades do que hoje costuma-se intitular Oficinas Literárias. Uma oficina, em princípio, é o lugar onde se elabora, fabrica, ou conserta algo, ensinam os dicionários – inclusive o bem escrever, acrescento eu. Aquele que se aventure a percorrer as veredas da Literatura, contudo, deve ter em mente a confissão de Clarice Lispector: o que me atrapalha a vida é escrever, e ainda: que ninguém se engane, só consigo a simplicidade [leia-se: perfeição] através

de muito trabalho (A Hora da Estrela).

Na década de 90, graças aos contatos nos círculos literários da escritora e Segunda Diretora Cultural Jeanette Roszavolgyi, membro da diretoria da União Brasileira de Escritores (UBE), à época, e do empenho do Diretor Vicente Amato Filho (o Nino), foram organizadas palestras de conhecidos

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escritores, e o primeiro Concurso de Literatura do CAP: estavam lançadas as sementes de nossa futura Oficina, inicialmente coordenada pela escritora e agora editora May Parreira e Ferreira e por Helô Bello Barros, escritora e designer gráfica.

Com a aproximação do novo século, outros colaboradores, de maneira especial a escritora e também diretora da UBE, Giselda Penteado Di Guglielmo, que colaborava desde o início, assumiu a Segunda Diretoria Cultural, dando continuidade e maior abrangência às iniciativas daquela Diretoria. Pouco a pouco, o grupo ia sendo reconhecido pela qualidade de seus textos, muitos dos quais têm sido premiados nos mais diversos concursos.

Em 2006 e 2007, os contos, crônicas e poemas dos escritores do CAP foram publicados em coletâneas, com coordenação editorial de May, e diagramação e capa de Helô, que assumiu em 2010 a Coordenação da Oficina. Tiveram início os Cadernos de Literatura, em que um grande escritor é homenageado: Clarice Lispector, coordenação de Helô Bello Barros, e Luís Vaz de Camões, Caderno em que Helô e eu trabalhamos em parceria. Nesse mesmo ano fui Curadora de uma grande exposição, que homenageou o autor d’Os Lusíadas, e o navegador português Vasco da Gama.

Das primeiras coletâneas aos Cadernos de Literatura, os concursos literários anuais e a Página do Escritor, na revista O Paulistano, com o apoio e estímulo permanente da Diretoria Cultural, a academia de letras paulistana mantém-se viva e atuante até nossos dias. Alguns dos participantes são novatos no mundo das letras; outros já têm obras publicadas, premiadas, reconhecimento de público e de crítica. Como ensina um ditado africano, se quiser ir rápido,

vá sozinho, se quiser ir longe, vá na companhia de amigos leais.

Conhecidos escritores orientaram nossa Oficina Literária: Caio Porfírio Carneiro, Claudio Willer, João Silvério Trevisan, Sinval Medina, Fernando Bonassi, Luís Avelima, Renata Palottini, Annita Costa Malufe, Donizete Galvão, Nilza Amaral, Áurea Rampazzo, Marcelino Freire, Nelson de Oliveira, Marne Lúcio Guedes e, a partir de 2014, Fernando Carneiro, Evandro Affonso Ferreira, Reynaldo Damasio e Frederico Barbosa. Diferentes personagens, cada um com seu encanto, seu estilo, seu saber.

A partir de 2011, a Diretoria Cultural publicou um novo Caderno a cada ano, coordenado por Helô e Carlos Eduardo Cornacchione: Dante Alighieri,

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Miguel de Cervantes, William Shakespeare, Vinicius de Moraes, Charles Chaplin e Machado de Assis, em outubro deste ano de 2016. Os escritores e demais sócios do CAP têm contado, ainda, com palestras de especialistas, a maioria deles docentes do mundo universitário, e projeções de filmes de arte, a cargo de Carlos Eduardo, encenações teatrais e outras atividades relacionadas aos temas.

Rainer Maria Rilke (1875-1928), escritor que conheceu a glória ainda em vida, nas Cartas a um jovem poeta (1903) legou-nos sábios conselhos:

Envia seus versos a periódicos, (...) e inquieta-se quando suas tentativas

são recusadas por um ou outro editor (...) peço-lhe que deixe tudo isso, pois

está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer (...). Procure

entrar em si mesmo. Morreria, se lhe fosse vedado escrever? Pergunte-se: sou

mesmo forçado a escrever? Procure narrar o que vê, vive, ama e perde. (...)

Fuja dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana

lhe oferece; relate suas mágoas, desejos, pensamentos passageiros, sua fé em

qualquer beleza – relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade. Utilize,

para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos sonhos e os objetos

de suas lembranças. Se a existência cotidiana lhe parecer pobre, acuse a si

mesmo, diga que não é bastante poeta para extrair suas riquezas. Mesmo

que se encontrasse numa prisão, (...) não lhe ficaria sempre a infância, esta

esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Se depois dessa volta

para dentro (...) brotarem versos, não pense em perguntar a quem quer que

seja se são bons. Nem tão pouco tente interessar as publicações [literárias]

por seus trabalhos, aceite o destino e carregue-o com seu próprio peso e

grandeza. Sem se preocupar com recompensa que possa vir de fora. [Caso

sinta que] deve renunciar a ser poeta, sua vida, a partir desse momento, há

de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos.

Para atingir o êxito, o reconhecimento, são necessários 10% de vocação, 10% de sorte, 80% de perseverança, dedicação – esta a receita do ator Paulo Autran, numa entrevista. E boa lição nos deu Jesus, que ao partir entregou a liderança de seu bem sucedido projeto, a fundação do cristianismo, não a Paulo, escritor cultíssimo, poliglota e carismático, extraordinário marqueteiro do bem (que o santo me perdoe a brincadeira), mas a um pobre, humilde, talvez iletrado pescador: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja.

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Os sócios do CAP que participam de nossa Oficina costumam ser numerosos, mas de repente diminuem, numa seleção natural, diriam os darwinianos; resistem os persistentes, os apaixonados pela Literatura. Alguns haverá que acabarão por concluir serem dotados para outros ramos do conhecimento, que não a escrita; mas até lá têm todo o direito de permanecer no grupo, a meu ver – trazem renovação, calor humano, amizade – o que existe de melhor?

Na Oficina do Paulistano há uma enriquecedora diversidade: mulheres, a maioria, homens, poucos, porém atuantes. Muitos não precisam de oficina alguma para bem escrever, como Guilherme Hernandez, que sobe toda semana a Serra do Mar para vir ao nosso encontro. E ainda meu premiado amigão Ricardo Lahud, que com seu humor peculiar e algumas machadadas, nos tem estimulado desde o começo.

Os jovens, alguns com bastante talento, logo nos deixam, é uma pena. Há aqueles que apresentam certa dificuldade, no início, mas aproveitam o saber e a boa vontade dos mais experientes, dos mestres convidados, e podem nos surpreender. Outros há, muitíssimo talentosos mas bissextos; desaparecem por um bom tempo, a vida os leva para outros destinos, outras moradas: May Parreira, Guararema; Ricardo Lahud, o Guarujá, Luiz Antonio de Queiroz, o Luli, o campus da USP. Acompanham nosso trabalho via internet, dão sugestões quando solicitados; ao voltar, e quase sempre voltam, são recebidos de braços abertos, e nos encantam com sua literatura de alto nível. Há também uma jovem juíza, e inteligentes, perspicazes terapeutas – devido ao horário das audiências e das consultas, não participam das reuniões com regularidade, mas trazem valiosa contribuição, pois lidam no dia a dia com o sofrimento humano, matéria-prima dos grandes escritores.

Estaria compondo um caderno de endereços, uma lista telefônica, e não um ensaio, caso nomeasse um a um, e todos os prêmios com que a maioria já foi contemplada; além do mais, constam, quase todos, do Sumário desta publicação. Cito então Suzana Montoro, Prêmio São Paulo 2012 de Literatura, do Governo do Estado, finalista do Prêmio Jabuti, cinco livros publicados por conceituadas editoras.

Uma digressão: na cerimônia em que Leyla Perrone Moisés, escritora e crítica literária, recebeu o título de Professora Emérita da Universidade de São Paulo, constatei que a USP leva em conta, em primeiro lugar, não o

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brilho das aulas e dos escritos do homenageado, mas o empenho pelo bem comum, a dedicação aos colegas e alunos, a generosidade ao compartilhar conhecimentos. E ainda, muitas vezes em prejuízo da própria carreira, o tempo dedicado a exaustivas reuniões e aos jovens que adentram o universo mágico da Literatura.

Para concluir, palavras de um poema de Sophia de Mello Breyner:

As ordens que levava não cumpri

E assim contando tudo quanto vi

Não sei se tudo errei, ou descobri.

Em nome dos participantes da Oficina Literária, aqui ficam registrados

nossa homenagem e os mais sinceros agradecimentos aos Presidentes e Vice-

Presidentes, e Diretores e Segundos Diretores Culturais do Club Athletico

Paulistano, ao longo do período coberto por este ensaio: Jeanette Beatriz

Roszavolgyi, Vicente Amato Filho, o Nino (in memoriam), Eduardo Telles

Pereira, Giselda Penteado Di Guglielmo, Adriana Magalhães Gouveia, Bia

de Castro Oliveira, Eduardo Simone Pereira, André Luiz Pompeia Sturm, e à

Gerente Cultural Silvana Marani, e sua equipe.

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BRUT OU DEMI-SEC?Suzana Montoro

Ficar no tombadilho olhando para a imensidão de água e céu é das coisas que mais aprecio. O mundo, visto daqui, parece lugar simples regido por poucas e seguras leis, diante de nós apenas a linha divisória no horizonte e a dimensão deste navio que nos conduz como uma imensa tartaruga a seu corpo. Mas não se engane, sob esta manta de água há um mundo submerso, peixes e organismos vários, além de escuridão e silêncio inescrutáveis. Assim também nossa vida, abaixo da superfície do dia a dia, o torvelinho de emoções e impulsos que nos arrastam e nos deixam como que à deriva de nós mesmos. Já percebo que minha filosofia barata a aborrece. Não é minha intenção. Fique mais um pouco, nada temos a perder, o porto está longe, ainda nos resta um par de dias neste navio e garanto que você já está sentindo certo fastio por tanto tempo em alto-mar. É sua primeira viagem de navio? Quanto a mim, já perdi a conta dos dias e noites que estive a bordo. Deveria ter me dedicado à Marinha, bem o sei, mas temia acabar radicado em alguma função em terra, me isolando da vida errante com que sonhara. Optei, sim, por uma vida burocrática que me desse muito dinheiro e disponibilidade para poder viajar o quanto quisesse. Descobri que é mais fácil ganhar dinheiro quando não se tem apego, ganhar para gastar. Afinal, é só dessa maneira que o dinheiro tem valor, não? Depende? Ah, já estou me tornando aborrecido de novo. Perdoe-me, mas o ar marinho me deixa inebriado. Que tal um drinque? Podemos ficar à beira da piscina, a noite está amena e garanto que o ar daqui é mais fresco do que lá dentro. Tenho meus motivos para comemorar e se tiver companhia, tanto melhor. Ao que brindo? Bem, é uma longa história, tentarei não ser prolixo tampouco sentimental em excesso, dois defeitos meus, bem o sei. Uma das vantagens da idade avançada é que perdemos o pudor em relação a nós mesmos, não tentamos ser o que não somos nem nos preocupamos

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com nossos defeitos. Se bem que eu prefira chamá-los de idiossincrasias, soa mais elegante. Ou refinado, como queira. Tanto faz. Sempre fui dado a eufemismos. Decerto isso reflete um traço de minha personalidade. Como já deve ter notado, não sou exatamente o que se pode chamar de homem direto e objetivo. Mas não me leve a mal, sou apenas um homem solitário e fantasioso tentando matar o tempo. Gosta de champanhe? Ah, encontrei a parceira ideal. Uma noite agradável, o mar aparentemente calmo e uma mulher de bom gosto que aceita minha companhia: é tudo o que preciso. Eu bebo pouco atualmente, mas, como disse, é uma data especial. Não, não se trata de aniversário. Apenas lembranças, as tantas reminiscências que alimentamos. Ou que nos alimentam. Você não concorda. Vejo que ainda é jovem. Muito jovem para viajar só. Não, não me conte por que o faz, prefiro criar na imaginação alguma história. Soa fantasioso? E por que não? Haverá assim algum compromisso com a veracidade das histórias que nos contamos? Deixe a vida fustigá-la uns anos mais e verá o que acontece com as certezas. São como as águas deste oceano por onde navegamos, fluidas e passageiras. Ao que brindo? Ah, claro, já me desviei da comemoração. Bem, vamos lá, um brinde aos amores. Um reles e vulgar lugar-comum. Eu também já fui moço e quis ser diferente. Mas desde que o mundo é mundo, o que nos move são as paixões. Sejam quais forem. Platônicas, apolíneas, mundanas, qualquer uma, são elas que põem a vida no eixo. Melhor dizendo, fora do eixo. Ao motor da vida e da morte! Saúde! Você já se enamorou de verdade? Aquele sentimento arrebatador pelo qual se é capaz de cometer as maiores atrocidades? Inclusive a de matar? Pois eu já. Embora não aparente, sou um assassino. Sério. E não foi apenas uma vez, não. Depois da primeira, sempre a mais difícil, tornamo-nos sem-vergonha, por assim dizer. A primeira é que dói, que assusta. Não tenha receio, não sou assassino profissional. Como disse há pouco, gosto de eufemismos. Matar é como seduzir, envolve jogo, envolve parceria. Uma grande arte. Se ainda trabalho? Sim, mas apenas por prazer. Dinheiro, tenho de sobra. Ganhei-o da maneira mais perversa possível, à custa do sofrimento alheio. Advogado, agiota, traficante, o que quiser, qualquer dessas atribuições cabem. Mas não vem ao caso a maneira como fiquei rico. Como me tornei um assassino, sim. Matei por livre escolha. Mais champanhe? Vamos lá, não há nada melhor a se fazer numa noite como esta. Sobretudo para viajantes desacompanhados

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MACHADO DE ASSIS 2016

como nós. Observo que minha história começa a interessar. Sou bom orador. Mas não se iluda, é apenas porque falo de mim e quanto mais envolvidos com o tema, mais convincentes. Voltando ao brinde: aos amores! Aos que valem a pena, àqueles pelos quais matamos. Você sabia que quando alguém morre durante uma viagem de navio, o corpo é atirado em alto-mar? Eu, que tantas vezes cruzei os sete mares, nunca presenciei um evento assim. Dizem que o corpo é ensacado junto com pedras e atirado desde uma rampa do convés. Sempre à noite. Embora exista a alternativa de guardá-lo em frigoríficos até o porto seguinte. Isso eu já vi acontecer. Foi na minha primeira viagem de navio, quem diria, há muito tempo. Eu e minha esposa, tentando vencer uma crise do casamento, embarcamos num transatlântico. Mas se um caso extraconjugal em terra já é bom antídoto contra o tédio matrimonial, melhor ainda quando embalado pela brisa marinha. Em poucos dias eu já estava envolvido com uma espanhola estonteante que viajava sem família nem compromissos. Fiz promessas e mais promessas para quando o navio atracasse. Juras de amor nunca se cumprem. Minha amante e eu fomos surpreendidos por minha esposa e aí começou a confusão. A esposa exigiu que a outra deixasse o navio no porto seguinte. A espanhola reagiu, não tinha nada a perder e, de mais a mais, estávamos enamorados. Ela não abriria mão, a esposa que desembarcasse. Passei uma noite de domingo, se bem me recordo, tomando champanhe no convés e pensando em que fazer: abandonar o navio ou seguir viagem, ficar com uma ou com outra, mas não tive tempo de tomar decisão alguma. O comandante me procurou de madrugada, as duas mulheres tinham brigado, se engalfinharam à beira da piscina, a espanhola caiu na água, não sabia nadar. Minha mulher ficou em estado de choque, não conseguia gritar, não conseguia se mexer, se culpar, coisa nenhuma, foi tomada por um torpor que a engoliu sob densa neblina. Uma sem vida, a outra ausente. O comandante, para evitar problemas maiores, e diante de polpuda recompensa, atribuiu a morte a um acidente e cuidou dos trâmites de maneira eficaz, sem percalços. Minha mulher foi submetida a todos os tipos de tratamentos, desde os mais convencionais até as benzeduras e banhos de inúmeras ervas e unguentos. Tudo em vão, permaneceu alheia como um celacanto nadando em águas profundas. Decidi por fim pela internação. Sou ou não sou um assassino? Matei duas de uma só vez. E a verdade é que eu estava apaixonado. Por ambas. Depois disso, passei

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a viajar o máximo que pude em transatlânticos com este. E, por alguma ironia do destino, sempre encontro jovens que viajam desacompanhadas. Como você. E sempre as convido para um drinque à noite, na beira da piscina deserta. Não se assuste, sou apenas um homem solitário e fantasioso tentando matar o tempo. Poucas coisas me comovem, mas ainda tenho a curiosidade de ver um corpo sem vida ser atirado desde o convés em alto-mar. Hoje é domingo, não? Você me acompanha em mais um champanhe? Brut ou demi-sec?

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ANTES DA MEIA-NOITEJeanette Rozsas

Quem pensas que és, biltre. Como se já não bastasse pavonear-se por aí com tuas raparigas, agora visitas mulher separada, será que imaginas que não sei? Teatro uma vez por semana, mentes sem sequer pestanejar, e ainda me beijas a testa antes de partir para o leito pecaminoso. Até as duas molecas que trabalham para nós riem-se às tuas costas, às minhas, fazem pouco e eu finjo nada saber, nada notar. Nem mesmo à Mamã me queixo, se bem que pela expressão que faz a cada saída tua, noto que ela está bem a par do que ocorre. O respeitável Dr. Francisco Meneses, o tabelião, parte para suas noites de deboche e a esposa, a santinha Conceição, atura tudo sem um pio. No entanto, hoje o insulto foi por demais acintoso. Véspera de Natal e o teatro te chama, infame! Eu gostaria tanto de ir à Missa do Galo, levada pelo braço do esposo, como tantas outras damas... No entanto, deverei ficar só e recolher-me ao leito, chorando a indignação diante da imagem de minha madrinha, Nossa Senhora da Conceição, que já presenciou tantas lágrimas furtivas desde o início de nosso casamento. Pensas, talvez, que me fizeste favor ao desposar-me, eu aos 27 anos e sem maiores atrativos? Mas sou moça ainda, o bastante para atrair olhares compridos do teu escrevente e mesmo do moço Nogueira, que hospedas aqui em casa. Ah, o moço Nogueira... Tão jovem, quase tocante em sua inocência de rapaz da roça encantado com a Capital. Pois bem, Chiquinho, o rapazote está lá em baixo na sala, aguardando para chamar o vizinho e juntos irem à missa que não irei. Já imagino sua agitação quando eu descer para fazer-lhe companhia, a casa toda em silêncio e nós dois à luz do candeeiro, sentados perto, muito perto, para trocarmos palavras e depois, afetos. Hei de encontrar nos braços dele o que jamais encontrei nos teus, frios, ciosos apenas de deveres maritais, cada vez mais esparsos. Se nunca te incentivei, também jamais me neguei. Tudo continuaria assim, nós vivendo os papéis que nos foram impostos, não fosse este teu teatro na véspera de Natal. A afronta merece resposta. Hoje alguma coisa se formou dentro de mim, uma bolha amarga de revolta pelos tantos anos de muda aceitação. Saiba,

Chegamos a ficar por algum tempo – não posso dizer quanto – inteiramente calados... Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na

janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: ‘Missa do galo! missa do galo!’Missa do Galo

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Chiquinho, que antes da meia-noite, sofrerás na carne e no orgulho o mesmo que venho sofrendo. O moço Nogueira mal consegue disfarçar o que só seus olhos revelam quando me aproximo. A frescura provinciana de seus 17 anos, a total falta de malícia, tirará qualquer mácula do que venha a acontecer entre nós. Isso tudo, Chiquinho, tenho ganas de falar-te, cara a cara. Terias, decerto, um ataque apoplético com a revelação. Pouco se me daria... Mas soam as onze, como voaram as horas! Minha Nossa Senhora da Conceição, madrinha, perdoai-me, absolvei-me e dai-me coragem. Melhor trocar este roupão pelo branco, mais novo, mais bonito. Agora, as chinelas de cetim. Pronto. Deixarei o quarto às escuras, caso Mamã acorde. Que ninguém testemunhe minha falta, nem mesmo minha santinha. Adeus, esposa fiel e tolerante, adeus Conceição menosprezada. Parto para o que der e vier.

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CARUNCHADOSIgnez Matarazzo

Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro

para fora, outra que olha de fora para dentro... espantem-se a vontade, podem

ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo... *

Tentarei esclarecer sobre essas almas. A dele, exigência de sucesso no meio corporativo industrial. A essa

trajetória marcante e múltipla de seu trabalho, inclui-se a arte na vida social.Impecável no ser. Olhar profundo, perquiridor. Difícil decifrá-lo, muito

complexo. Dualidade constante em que tempo pensado, tempo vivido.Incontido em ascender e, sem intenção de abandonar seu casulo emocional,

o amor definitivamente estava fora de cogitação.Relacionamentos superficiais, fugazes, incompreendidos pelas exuberantes

mulheres que o acompanhavam no escapismo de seu foco.A dela, ilusão do alumbrado mundo deste bem sucedido empresário,

irresistível no comportamento, imprevisível nas palavras vazias.Ah, como o amou! Amor projeção social, amor presentes, amor vantagens

financeiras, estabilidade, amor profano, camaleão, amor conveniências. Linda, fútil, modelo de olhar embaçado, voz de veludo (artimanha dos apaixonados) incapaz de notar o frágil relacionamento.

Incapaz?Acreditou, realmente acreditou nos sonhos. Divididos.Os constantes assédios levaram-na a cenas públicas de ciúmes. A

personalidade dissimulada até então revelou o lado grosseiro e violento dele. Agressões, registros em B.O., discussões, brigas, queixas, mais queixas.

Entre separações conflitantes e voltas, os protagonistas romantizavam, adocicando os fatos com presenças midiáticas.

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Afinal, glamourosos invejados, formadores de opinião. Obscuros, em papéis cênicos e cínicos.O derreter das falsas aparências deu-se quando ela o flagrou, no último de

seus relacionamentos indecorosos.Toda sofisticação desmoronou-se ao se excederem.Descontrolada, fora de si, vê-lo sufocar não a comoveu.Possivelmente ao olhar-se no espelho desprezou-o, sem lágrimas.Refletido, o corpo inerte.

* O Espelho

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O SÓSIAMaria Helena F. Vieira

Corria o ano de 1985. Como Inspetor do Banco do Brasil, minha missão agora era um trabalho na Agência de Maracaju, cidade na fronteira com o Paraguai. Meu pai, meu ídolo, em tempos não tão passados havia estado muitas vezes lá, na sua profissão de comprar bois para fazendeiros de nossa cidade e das cidades vizinhas. Conhecia a região muito bem, e complementou o que eu já sabia com instruções precisas para que tudo corresse de forma mais fácil para mim.

Com as explicações do meu pai, conferi com prazer a cidade tal como ele a descrevera. No hotel, a surpresa logo cedo: alguém me chamava por um nome diferente, ao mesmo tempo em que me abraçava de modo afetuoso: – Ramón, bom te ver, como está você?

Na rua, as pessoas me cumprimentavam alegres e falavam meu nome, Ramón, Ramón Ajala. Bom que você chegou!

No Banco, funcionários efusivos, o Gerente a me explicar que esperavam a visita de um Inspetor, — Venha, Ramón, vamos tomar um café enquanto aguardamos o tal Inspetor. Nada desconcertado, apenas surpreso, aquiesci.

Sem saber o que acontecia, tive a certeza de ter, ali em Maracaju, um sósia. E um sósia quase perfeito, uma vez que a cada passo me confundiam com ele.

Aproveitei a proximidade com o gerente e me apresentei, para sua grande surpresa. Alberto não conteve a admiração.

Na minha maneira descontraída, indaguei quem era esse meu sósia, Ramón Ajala.

— Fique tranquilo, Ramón é excelente pessoa, gente daqui mesmo da terra, rapaz trabalhador, correntista nosso. Família antiga da região. Filho único. Sua mãe é filha de paraguaios, fazendeiros fortes, e o pai é um pecuarista. Conversando assim com você confirmo ainda mais a semelhança entre os

Cada dia é, em si mesmo, uma vida singular: por outros termos, uma vida dentro da vida.

Sêneca

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dois. Inacreditável. Sei que agora ele está viajando, se estivesse aqui adoraria conhecê-lo.

Nos outros dois dias em que estive trabalhando na cidade, ainda fui muitas vezes abordado como se fosse Ramón. Algumas pessoas já sabiam pelo Gerente que eu era apenas o Inspetor do Banco, e se surpreendiam ainda mais com a semelhança.

Não foi desta vez que pude conhecer Ramón. Tinha uma vaga ideia de que cada um de nós tem um outro quase igual, e achei inquietante e curioso que pudéssemos estar frente a frente em breve.

De volta, detalhei a meus pais a viagem, não esquecendo o episódio da confusão ao ser tomado por outra pessoa. Dos dois quem ficou intrigada foi minha mãe, insistindo em que eu deveria saber mais sobre o suposto sósia. Perspicaz e imaginativa, ela sempre queria detalhes de tudo, inquieta, enquanto meu pai era completamente tranquilo. Rememorei de pronto uma passagem que julgava esquecida: uma vez, bem jovem, assisti boquiaberto minha mãe cortar em tiras um terno de linho cento e vinte de meu pai, enquanto gritava e ameaçava, fora de si. Não contente por picotar o terno, cortou o colete, a camisa, a gravata, até o lenço e a roupa branca. Ele, numa frieza de espantar, nada fez, nada falou. Desafeito a polêmicas. Bem calmo, sorriso nos lábios, muitas vezes até achando graça nas bravezas dela.

Alberto, o Gerente, havia prometido de uma próxima vez apresentar Ramón, que por certo também gostaria de me conhecer.

Encontro adiado, voltei à rotina de trabalho; novas viagens, mas a ideia de conhecer o sósia sempre me vinha à mente, de modo leve e divertido.

Meses depois, decidi: voltaria a Maracaju e iria procurar Alberto para que ele proporcionasse o encontro. E assim foi.

— Que pena, se você tivesse me avisado de sua vinda eu teria dito que esperasse uns dias, Ramón foi para Assunção, resolver negócios e visitar a mãe viúva, que agora mora lá.

Apenas pedi o endereço e me despedi. Naquele mesmo dia tomei o avião para Assunção.A casa era imponente, num bairro de mansões elegantes. Subi cauteloso a

escadaria de mármore e toquei a campainha. Uma empregada uniformizada

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atendeu a porta e eu disse a quê vinha, falar com Ramón. Demonstrou grande surpresa ao ouvir minhas palavras, parecia embasbacada, confusa, depois é que raciocinei.

Ela me introduziu numa sala formal, fresca, cortinas pesadas nos protegendo do calor de fora; cheia de sofás de veludo, tapetes e quadros nas paredes. Sentei-me para esperar. Um carrilhão fatiava o tempo de quinze em quinze minutos. A mesma empregada voltou trazendo café e água, e enquanto eu me servia, olhando ressabiada a me examinar, abriu as cortinas pesadas.

Na sala agora clara, à minha frente, a tela emoldurada mostrava nada mais nada menos que meu pai. Muitos anos mais jovem. Levantei-me e saí quase fugindo daquela casa, sem esperar a mãe ou o filho.

Já acolhido dentro de um táxi vi chegar à casa um outro de mim mesmo.

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CHÁ DA TARDEGuilherme Hernandez Filho

Tarde de sexta-feira e o sol de outono já se punha quando Lurdinha entrou na casa de chá. Procurou por Marina que a esperava sentada à mesa da doçaria. Era um hábito que tinham de tomar um chá de final de tarde semanal, antecedendo as aulas de dança de salão, quando aproveitavam para trocar confidências e observar o movimento. O salão de danças de Dona Cotinha ficava a uma quadra dali.

Cumprimentou-a e sentou-se ao seu lado, esperando que o garçom lhe puxasse a cadeira. Soltou o laço que prendia seu chapéu e liberou seus cabelos loiros cacheados por sobre os ombros.

— Chegaste há tempo?— Na verdade há não mais do que alguns minutos. Eu estava aqui perto, na

modista, experimentando um novo vestido.— Alguma festa?— Sim, na casa dos Junqueira, no início do mês que vem. Esqueceu-se do

aniversário da Rosinha?— Ah, sim, é verdade, havia me esquecido. Também irei. E o teu primo

Francisco irá?— Não sei, ele está lá para a fazenda.Tirou suas luvas brancas, colocou-as sobre a mesa e acenou para o garçom.— Moço, por favor, traga-nos um chá completo para duas.Aproveitou para olhar em volta, perscrutando o ambiente, observando os

demais frequentadores e seu olhar cruzou com o de um rapaz sentado mais ao fundo, que lhe sorriu, maneando a cabeça. Não o conhecia, mas lhe esboçou um leve sorriso em resposta.

— Você reparou no jovem de olhos verdes e terno cinza, sentado ao fundo, perguntou para Marina.

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— Não. Está só?— Sim.O garçom chegou com a bandeja e enquanto dispunha as xícaras e pratinhos,

aproveitaram para olhar para o mancebo, que bebericava calmamente um copo de cerveja.

— Parece estudante, não?— Interessou-se por mim, me sorriu.As duas, nos seus dezesseis anos, já não se continham pela novidade.

Molhavam o biscoito no chá e cochichavam entre si, entre um gole e outro.Não repararam que ele havia se levantado e chegado junto à mesa. Somente

quando sentiram sua presença pararam as risadinhas e olharam.— Boa tarde, senhoritas, se me permitem cumprimentar tão belas jovens.

Meu nome é Bernardo. Seria impertinência minha pedir-lhes para sentar-me à vossa mesa?

Lurdinha mais atirada apresentou-se:— Sou Maria de Lourdes e esta é Marina. Somos amigas. Sente-se.Ele pegou a mão de cada uma, beijando-as, puxou uma cadeira e sentou-se.— Frequentam este local?— Todas as sextas-feiras. Logo mais vamos para nossa aula de dança. O

senhor gosta de dançar?— Por favor, não me chamem de senhor, afinal talvez eu não seja muito

mais velho que as senhoritas. Sim, adoro dançar.— Nós também.Praticamente só Lurdinha falava. Marina, morena, mais discreta, ouvia.— Tão lindas moças são estudantes?— Sim, e o senhor?— Estou na Faculdade de Direito. Último ano.— E vem sempre aqui?— Já estive aqui algumas vezes, mas posso lhes dizer que não em dias de

sorte, como hoje.Sorriram, ruborizando lisonjeadas.— Será que as meninas se importariam se eu as acompanhasse ao salão de

danças? Eu gostava de conhecê-lo.— Não, absolutamente, será um prazer.

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— Então me permitam cobrir as despesas, pagando sua conta.— Não podemos permitir. Nossos pais não aprovariam.— Faço questão.Sacou seu porta-níqueis e abriu-o, quando dele rolou para mesa uma

reluzente, e denunciadora, aliança de casamento.

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DIVÃNEANDOLilian Gattaz

Chegou pontualmente às 8h20. Estendeu-me a mão em cumprimento e, sem fitar-me os olhos, dirigiu-se ao canapé... mal se recostando, murmurou:

— não posso me esquecer do porquê de estar aqui...Ainda que eu tivesse algo a dizer, sua aparente urgência em falar impôs-me

um silêncio adequado.— ... de um espaço infinito e azul, com um sol por cima, fui lançado a um

lugar escuro, empoeirado, cheirando a desolação... como se um depósito sem dono... um armazém abarrotado, o que convém a um armazém digno... todo eu era aquela ordem desobrigada...

— Uma ordem desobrigada..., intervim, valendo-me das reticências para, talvez, incentivar-lhe o discurso e indicar-lhe meu interesse pelas suas associações.

— ... sim, desobrigada e bastante atraente e, se me permite continuar sem interrupções, mais breve concluirei meu relato... eu andava e tropeçava e voltava a buscar os limites de cada objeto pendurado, ou sobreposto, ou atracado naquele embaraçamento atordoante de panelas sem cabo, pregos, porcas, parafusos, um par de sapato desolado, um relógio encantador do tempo, botões à espera de uma casa, uma saia assanhando farfalhos, um cão de latido empalhado e a mesma palha à disposição do fumo de rolo... e a fechadura, a maçaneta e a luva ressentindo a mão que as acolhesse... uma cadeira pendurada pelo canto, pendia de um cabideiro de madeira escura e de verniz gasto... pobre mancebo! mas escuta-me, que ainda há muito!

— Sim, estou a escutar-te, falei, nem tanto por estar atento aos detalhes de seu relato, mas identificando o desconforto daquela mente entulhada de velharias, das quais, buscando fôlego, era mister se livrar

— ... sobre uma banqueta de marfinite verde, um maço de cartas marcadas

A literatura só começa quando nasce em nós uma 3ª pessoa que nos destitui do poder de dizer EU.

Gilles Deleuse

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a dedos de gordura, copas viradas, espadas sem rei e um corselet de valete com manchas de ferrugem ao redor dos colchetes. santo deus!... soquetes, interruptores, fios desencapados aprisionando cúpulas rotas... um calendário aposentado sobre coleção da revista Life, como assim? ... uma bolsinha de festa e, se me deixas aqui, posso seguir até um sem-fim, repassando pelo o que vi...

— Parece-me ser isto o que desejas... falei na intenção de deixá-lo livre para usar o tempo que tínhamos da maneira que bem lhe aprouvesse

— ... eu queria, queria muito deixar aquele lugar, mas o caótico daquele sítio me fez cativo... de um bibelô de bailarina lilás lembro-me bem, e também do par de máscaras de tela preta e vermelha, que me fizeram sorrir só de imaginar o que guardariam de trágico as memórias de tantos achados, perdidos sob o pó daquele lugar... no meio de muitos mais objetos que não vi, porque não couberam nos meus olhos, um rádio capela parecia implorar pelo seu funcionamento. não resisti à conferência... com delicadeza girei um pino que, deduzi, já fora um botão de ligar... o bastante para que pulasse do alto-falante uma nota musical de um amarelo bastante intenso... e em seguida muitas outras, todas azuis... elas começam a saltitar de jeito engraçado... meio destrambelhadas, mas em boa sintonia, as notinhas iam se alocando num acortinado de pentagramas... hipnotizado por aquela dança maluca, eu seguia cada nota até que ela tocasse a tal cortina, só que aí, ela se transformava em uma letrinha e vinha outra e outra e mais uma e mais outra... e no final, o que era para formar frases musicais, formou-se em recado escrito e cantado para mim... Quem quer que sejas tu,

caro ouvinte, certamente não estás em teu juízo perfeito... tens imaginação

de pessoa doente! Vai-te curar, amigo. Vai-te curar, quem quer que sejas tu!... e agora já sabes que foi para livrar-me desta frase que hoje venho a ter contigo.

— Sim, me deixas saber que vens desejoso de aliviar-te de tantas coisas envelhecidas, que jazem na escuridão da tua memória... para descobrir que no meio de todo esse cemitério resiste um espaço azul, animado por notas de vida e onde brinca um raio de sol...

Bem... devido ao longo silêncio que se implantou após minha fala, resolvi consultar o relógio da mesinha à esquerda da minha poltrona... parado!... tentei sacar do colete meu Patek, mas o botão que abriria a caixa enroscou-se na própria corrente, impossibilitando o mostrador... virei-me então para o divã, mas o paciente já havia saído... ou, talvez, ainda não tivesse chegado.

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JOAQUIM MARIAGiselda Penteado Di Guglielmo

Joaquim Maria amava o Rio de Janeiro. Era muito jovem e morava há algum tempo no Cosme Velho com sua mãe, Dona Escolástica Rodrigues Torres. Adorava passear pela cidade. Sentia certa urgência em melhor conhecê-la, em deslindar todos os seus segredos, em penetrar em seu âmago.

Em suas andanças encontrava sempre um senhor de pele morena, vastas suíças brancas, óculos de armação elegante, passo vagaroso e um ar meio tímido, fragilizado, talvez consequência de algum problema de saúde. Dava a impressão de ser uma pessoa dotada de muita inteligência e sabedoria. Achava que ele também morava no Cosme Velho, mas só teve certeza no dia em que o viu saindo de uma casa na sossegada Rua do Cosme Velho, número 18. Tinha dois andares, tipo chalé, terraço no andar superior e um jardim com muitas plantas, cercado por pequeno riacho ladeado por murozinho de pedra. Sua frente era fechada por um portão de ferro trabalhado.

Depois dessa descoberta, o jovem criou coragem e resolveu falar com o morador daquela casa, pois pensava que esse senhor, como ele, devia amar muito a cidade. Logo de manhã cedo o esperou parado em frente à sua moradia e viu que ele se despedia com muito carinho e atenção de uma simpática senhora, certamente sua esposa. Quando se afastou um pouco da casa, Joaquim Maria resolveu apresentar-se:

— Senhor, desculpe a minha ousadia, mas reparei que gosta de passear pela cidade como eu. Meu nome é Joaquim Maria Rodrigues Torres, sou estudante e moro com minha mãe bem perto de sua casa.

O homem, olhando-o com um misto de espanto e divertimento, respondeu:— Que coincidência! Meu nome é também Joaquim Maria! E com um ar divertido e compreensivo disse mais:

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— Quem sabe essa coincidência de nomes e o interesse pela cidade prenuncie o nascimento de uma bela amizade!

Diante de tão promissoras palavras Joaquim Maria começou a falar rapidamente, quase sem fôlego:

— Seria uma honra ter a sua amizade! Eu o venho observando há já algum tempo e reparei no seu grande interesse por nossa cidade. Quem sabe, a partir de agora, possamos visitá-la juntos, pois tenho certeza de que o senhor já a conhece muito bem e poderá me aprofundar em seu conhecimento. Tenho muita vontade de um dia escrever alguma coisa sobre ela.

O outro Joaquim Maria sorriu e aquiesceu:— Por que não? Será um prazer ter, em minhas andanças, um companheiro

jovem interessado na cidade e nas letras. Estou um pouco cansado de meus companheiros de tertúlia.

— O prazer será todo meu, caro Professor! Porque de agora em diante peço licença para chamá-lo de Professor, muito mais adequado para o senhor do que o nome que é também o meu, um jovem imaturo apesar de apaixonado pela história do Rio de Janeiro.

No dia seguinte, como tinham combinado, encontraram-se nas proximidades da casa do Professor e, a partir desse momento, deram início a uma longa viagem cultural e amorosa pelo Rio de Janeiro.

Aproveitando a leve brisa da Primavera iniciaram o passeio pelo Cais Pharoux, onde apanharam um paquete para ir até a barra. E o Professor explicou a Joaquim Maria que Pharoux era um hoteleiro francês, cujo hotel defronte ao cais acabou dando nome ao atracadouro. E o jovem ficou muito impressionado com o rumoroso movimento no interior do paquete, pessoas nacionais e estrangeiras, franceses, ingleses, alemães, argentinos, italianos, que entravam e saíam, com chapéus, malas e binóculos a tiracolo, subiam e desciam pelas escadas dentro do navio transformando tudo numa grande confusão de línguas, homens poderosos e mulheres chorosas ou risonhas, o que não impressionou nem um pouco o Professor. Ele disse que apesar dessa balbúrdia, sua idade, sua experiência e sua sensibilidade permitiam que entendesse essa mescla de humanidade, enquanto divisava lá bem longe, depois da barra, o mar imenso e o céu fechado, que o faziam pensar na solidão humana.

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Num dia de grande gala para a cidade, o Professor o convidou para ir ao Paço Imperial esperar a passagem do préstito do Imperador e ver o coche de Sua Majestade, com suas finas pinturas e as quatro parelhas guiadas por cocheiro grave e digno. Em outro dia, ele subiu com o Professor ao Morro do Castelo pelo lado da Rua do Carmo para poderem vislumbrar a cidade inteira, em todo o seu esplendor. E nessas ocasiões, quando Joaquim Maria conseguia ter uma visão privilegiada de seu amado Rio de Janeiro, sentia recrudescer sua veia poética, que já viera à tona algumas vezes, e desejou ardentemente escrever um dia um poema em sua homenagem.

Na semana seguinte o Professor convidou-o para darem umas voltas pela Rua Direita, a mais longa e imponente da cidade, com suas casas de câmbio, importadoras de café, grandes negociantes atacadistas, farmácias, joalherias de grande luxo e confeitarias famosas. E levou-o a compartilhar uma bela xícara de chá acompanhada de brioches na elegante Confeitaria Carceller que ele adorou, mas não o impediu de prestar atenção nos quitandeiros, que vendiam frutas, e nas africanas e crioulas que, com grandes lenços chamados trunfas amarrados na cabeça, também os vendiam para os passantes. Depois o Professor explicou para ele que a Confeitaria Carceller usava o nome de seu proprietário, José Tomás Carceller, que nomeou também o bulevar em frente à Confeitaria, ponto de partida de muitas carruagens que se dirigiam ao Largo do Machado, passando em seu percurso por ruas, casas, chafarizes e lojas.

Ao passarem certo dia pela Rua do Ouvidor, Joaquim Maria pediu ao Professor que falasse mais sobre essa rua, que muito o interessava. E o Professor, com muita sabedoria e bom humor, começou dizendo que a Rua do Ouvidor era um resumo do Rio de Janeiro. Uma das mais antigas da cidade, sendo antes chamada Rua do Desvio do Mar, Rua Aleixo Manuel, Rua da Cruz e Rua do Padre Homem da Costa. Em meados do século 18 a Fazenda comprou de José de Andrade as casas que ele possuía naquela rua e lá foram morar os Ouvidores, magistrados no Brasil do antigo Império Português. E por isso a rua passou a ser chamada Rua do Ouvidor, desde a metade do século 18. Com a vinda da Corte Portuguesa vieram também muitos comerciantes que se estabeleceram na Rua do Ouvidor e ela se tornou, com suas elegantes lojas de artigos finos, roupas de modas, cabelereiros de senhoras, perfumarias, cafés, confeitarias, joalherias, casas de música e livrarias, o local preferido da

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sociedade elegante da época. Para ele era a verdadeira artéria da cidade, onde as notícias, em forma de boato, corriam de um extremo a outro. Contou também que fora a primeira rua fechada para cavalos e carroças, tornando-se uma rua só de pedestres para melhor atender aos clientes dos grandes escritórios de advocacia e consultórios médicos que ali se instalaram. Apesar de tudo isso o Professor não deixou de fazer uma pequena observação meio jocosa, dizendo achar que as ricas casas de moda feminina da rua faziam dela a verdadeira via

dolorosa dos maridos pobres, que não podiam pagar por tais luxos.Em outra ocasião Joaquim Maria sugeriu que contratassem uma carruagem

para darem prosseguimento aos passeios quando os lugares fossem mais longínquos, pois o Professor demonstrava às vezes certo cansaço, que preocupava seu jovem companheiro.

Mas Joaquim Maria achou que devia falar com sua mãe e lhe explicar para que lugares e em que companhia ele vivia saindo em passeios pela cidade. Falou a ela do Professor e onde ele morava, disse que ele era um homem já idoso e de grande sabedoria e educação, o que a deixou muito mais tranquila. E ele, agora também mais tranquilo, partiu com o Professor para o Largo de São Francisco, onde as carruagens se enfileiravam à espera dos fregueses. Ali, o Professor chamou sua atenção para a bela igreja que dera nome ao Largo e a estátua de José Bonifácio esculpida por Rochet.

Quando num certo dia chegaram até o Rossio, o Professor confidenciou a Joaquim Maria que ali, na Livraria Paula Brito, tivera seu primeiro verdadeiro emprego, fora revisor de provas e colaborara com a revista A Marmota Fluminense. Falou também das noites em que assistira belas peças no Teatro São João, mais tarde destruído pelo fogo. Outras vezes, iam até os Arcos da Lapa e à Rua dos Matacavalos, que assim era chamada – conforme explicou o Professor – por causa de uma estrada plena de atoleiros, que separava a aldeia do Cacique Araribóia da cidade dos brancos, daí o nome de Matacavalos.

Joaquim Maria sempre tivera muita vontade de subir ao Belvedere do Corcovado como todo mundo fazia. Mas não tinha aprendido a cavalgar e a subida tinha que ser feita uma parte a cavalo e o restante a pé. Mas o Professor com muito carinho lhe dissera:

— Não fique triste xará, estou sabendo que brevemente será instalado um moderno trenzinho no Corcovado e então poderemos ir ao topo com todo o conforto!

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Tendo se tornado quase um hábito essas excursões para os dois companheiros e agora amigos – tão diferentes e com igual amor pela cidade – não conseguiam passar muito tempo sem organizar algum roteiro interessante. Assim, num belo dia de verão, decidiram ir até o Passeio Público para ouvir o som das ondas que batiam e recuavam da borda do terraço, como se a própria alma das ondas tentasse amedrontá-los. E se quedaram ouvindo a guitarra, a viola e as cantigas, trazidas pelo povo e pelos namorados que por ali passavam. Às vezes apanhavam a diligência para Copacabana e iam visitar o belo Hotel e Casa de Saúde que haviam sido inaugurados. A praia era cercada de mato aqui e ali, mas a beleza das ondas a tornava única. Diante de tanta beleza, Joaquim Maria sentiu-se de repente inspirado, criou coragem e pediu licença ao Professor para dizer um pequeno poema que havia escrito há algum tempo, inspirado em conto de um autor que muito admirava e que falava de um espelho partido:

OS DOIS LADOS DO ESPELHO

Como olhar no meu espelho

se nele vejo dois lados

um é claro, outro escuro,

ambos a mim revelados?

Como me olhar nesse espelho

se tenho a alma ferida,

como ver o lado certo

se ambos veem minha vida?

Melhor dormir e esquecer

essa estranha dualidade

e permitir aos meus olhos

ver somente a realidade.

O Professor ficou encantado e elogiou muito a verve do jovem poeta. E por sentir que a amizade deles já estava consolidada, resolveu confessar ao novo amigo que era um escritor consagrado, com muitos contos publicados, inclusive aquele que o havia inspirado a escrever o poema. O jovem ficou surpreso, mas não muito. A convivência com o Professor já vinha demonstrando quem era

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ele na realidade e não apenas um velho guarda-livros, que saía de manhã cedo de casa para o trabalho. E Joaquim Maria, que já havia lido alguns livros do Professor antes de conhecê-lo e sentira por essas leituras o enorme talento de seu autor, percebeu que seu sonho de um dia escrever crônicas e contos sobre o Rio de Janeiro era um sonho vão. Talvez fosse melhor continuar com a poesia, quem sabe conseguisse falar sobre a beleza e a alma de sua amada cidade, decifrar seus enigmas, tudo poeticamente.

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HEREGE NA IMORTALIDADEErcílio Alberto

— Livre? — De pensamento, creio.— O que temer? — Nada. — A quem temer? — Ninguém. — Por quê? — Porque os humanos que se unem a Deus obtêm os grandes privilégios. — Se arma com algum deles? — Da onipotência sem poder; da embriaguez sem vinho; da vida sem morte; da riqueza sem luxo; da pobreza sem humilhação.— Quer tornar-se bispo de Lyon, aqui no Império?— Um pecador que não nega seus pecados.— Pois me diga uma coisa, para não deixar dúvidas: Deus perdoa todo mundo?— Todos os que se arrependem e se aproximam Dele com humildade.— Perdoa até os filhos da p... mais filhos da p...?— Deus não faz distinções. — Essa é a justiça divina?— Com algumas ressalvas, creio.— Então, com sua licença, tenho que dizer: Uma m.... de justiça!— Com a Dele ou com a da humana?— Faz diferença?— Experimenta a humana.— Você não tem jeito... Vai para o inferno na certa.— E se eu me casar com a Justiça, tenho possibilidades de me salvar?

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— Isso é sério?— Acho que é. Mas é só uma ideia.— Com qual delas?— A Divina.— Infeliz e pobre terminará sua vida.— O dinheiro não traz felicidade.— Para quem não sabe o que fazer com ele.— O pleno gozo da vida não se compra.— Já foi o tempo em que acreditei em palavras.— Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução.— A revolução dos homens?— Ou a divina.— E desde quando se uniu a Deus?— Eu não, mas os que temem a vida.— Onde se encontra, afinal?— Entre a cruz e a espada, entre o escravo e o Império, entre o amor e a guerra. — Saiba uma coisa sobre essa sua dissociação...— Meu pensamento não está dividido como pensa.— Ouça esse escárnio: Deus, para a felicidade do humano, inventou a fé e o amor. — O Diabo, invejoso, fez o humano confundir fé com religião, e amor com casamento.— Você, às vezes, me surpreende ou me confunde, até. — Estranheza à minha pessoa?— Num momento trata de forma leve assuntos graves, e num outro de forma grave assuntos leves... — É a prova do mundo sensível e inteligível. — Isto cheira a fragmentos filosóficos do humano estagnado no Império.— Quem sou eu para contrariar Heráclito. — Não precisa. É só se definir.— O meu mundo é um infinito e perpétuo tecido de movimentos, onde o meu curso passa como as águas das torrentes.

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— Tortuoso seu rio, sim?— Vai ter como seu leito o mar, que nunca morrerá.— Agora está com a Síndrome da Imortalidade?— O que faço não é só porque gosto, só porque sei, mas também para fazer história.— Também com o Mal de Alzheimer da Humildade?— Está escrito: a imortalidade é um privilégio supremo do qual só alguns escolhidos gozarão.— Anda lendo muito.— Não o suficiente.— Então, quer fazer da vida a crônica do Império?— Conto que não.

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MISSA DO GALOGuta Rezende

O plágio criativo é uma imitação inteligentede versos e metáforas, de ideias e frases,

de resultados e conclusões de outros autores. Gabriel Perissé

O ano, 1889. Nos bancos da praça, republicanos discutiam com os conservadores e muitas vezes chegavam aos socos e pontapés e a polícia intervinha para acalmar os ânimos. O coreto enfeitado para o Natal e a banda da cidade vinha alegrar corações com canções natalinas. Tudo ficava diferente nessa época do ano. As moças caprichavam mais no visual, vestidos engomados, sombrinhas rendadas. Os rapazes ficavam mais atentos, namoros nasciam no footing. Velho costume, eles ficavam parados, enquanto elas andavam de lá para cá, tentando um olhar mais indiscreto. Os estudantes gostavam das festas com as famílias já que passavam todo o ano nas faculdades. Época das mais animadas na cidade. A pensão da rua principal ficava lotada de turistas que vinham atrás da comida de sinhá Leonidia, a melhor cozinheira das Gerais. A Missa do Galo também trazia muita gente. Não era para menos. O padre Tininho vinha do Rio de Janeiro todo ano só para celebrar a missa da meia-noite. Muito querido por todos, ainda muito jovem, tinha um sermão que cativava senhores, senhoras, jovens e até crianças, pois falava de uma maneira a conquistar o mais endurecido coração, se algum houvesse no meio dos fiéis. Mocinhas suspiravam por ele e mesmo sabendo-se pecadoras não conseguiam deixar de pensar em como seria um beijo proibido. Depois, como de costume, cobriam as cabeças com véus de renda branca e se confessavam com o velho Frei. Tive maus pensamentos. Como penitência, reze três salve-rainhas, minha filha. Na igreja, bancos lotados de culpadas batendo no peito.

Rosinda vinha todo ano passar o Natal na casa de seus avós e era assunto

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quase tão importante quanto a Proclamação da República. Chegava de São Paulo sempre acompanhada de sua mãe e de seu pai, médico de São Paulo. Malas e malas de roupas e os chapéus mais lindos trazidos de Paris por uma modista francesa. As primas morriam de inveja, pois, além disso, era linda. Alta, esbelta, senhora de si, sabedora da admiração e despeito que causava aos olhos masculinos e femininos, desceu do trem com um vestido azul claro, golas e barrado de renda, luvas brancas, um delicadíssimo colar de pérolas. O chapéu de abas largas, também azul claro emoldurava o rosto. Ao descer o último degrau deu um suspiro tão fundo que atemorizou sua mãe. Menina estranha essa minha filha. Veio calada de São Paulo até aqui. Parece mesmo não se acostumar com nossa vinda anual a Minas Gerais.

Chegando à casa dos avós, as primas a convidaram para um sorvete na praça, o que ela delicadamente recusou, usando o cansaço como desculpa. Apagou as velas antes das vinte e uma horas. No escuro do quarto pensava no dia seguinte, na noite de Natal, na Missa do Galo. Acordou muito cedo no dia seguinte, mas se deixou ficar na cama pensando no dia que teria pela frente. Só de imaginar a conversa falsa e sem graça das primas se arrepiava. Que chapéu lindo, você me empresta? Adorei a cor do seu vestido. É moda em São Paulo? Como você consegue esses cachos tão lindos, algum segredo? Ufa! Que chatice! Eram mesmo caipiras as primas. Não era à toa que sua mãe vinha com a valise carregada de tecidos e rendas francesas para as tias. Uma das coisas que fascinava Rosinda era o café da manhã da casa da sua avó. Que delícia! Bolos, sequilhos os mais variados, pães assados na hora, roscas trançadas. Sempre que vinha para essas bandas sentia os espartilhos sufocarem, os peitos a pular pelo decote.

À tarde foi passear pela cidade e por onde passava cabeças viravam para olhar sua beleza. Apesar de saber-se admirada por todos os rapazes, não se interessava por nenhum. Correspondia aos olhares com um meigo sorriso e só. Avistou a igreja de Santa Cecília, onde mais tarde iria rezar e outra vez aquele suspiro vindo do fundo da alma

Chegada a hora da missa. O médico, muito orgulhoso de suas mulheres, entrou na igreja, de um lado, sua esposa, de outro, sua filha, deslumbrante no seu vestido rosa. Sentaram-se no primeiro banco, queriam ouvir de perto o sermão do padre Tininho.

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Nesse momento ouviu-se o som do cravo a entoar a mesma melodia de sempre, todos se levantaram e ele entrou. As moças não conseguiram disfarçar a admiração. O Frei não daria conta de tantas confissões no dia seguinte. O sermão daquela noite pareceu mais intenso que nos anos anteriores. Rosinda não tirava os olhos do púlpito. Na hora da comunhão ninguém percebeu a troca de olhares entre ela e o padre e nem mesmo o leve toque de sua mão no rosto de Rosinda ao lhe oferecer a hóstia.

Tudo começou numa confissão. Rosinda tinha dezessete anos e padre Tininho trinta e cinco. O Frei, não dando conta de atender a todos os fiéis que queriam estar de bem para a comunhão, pediu ajuda. Assim que olhou o rosto de Rosinda através da pequena janela do confessionário, padre Tininho viu-se tomado por um sentimento que sabia ser proibido. O mesmo aconteceu com Rosinda. Ao fim da missa, sabendo estar cometendo uma loucura, contornou a igreja, entrou na sacristia e entregou- se de corpo e alma a esse amor proibido. Era o dia 24 de dezembro de 1886.

Já passava de uma hora quando todos se dirigiram para seus lares, sonhando com uma boa noite de sono. Todos, menos Rosinda. Todos, menos padre Tininho. Inconsequente, e como fazia há três anos, Rosinda deu quatro batidas na porta. Cientes do risco que corriam, incapazes de conter esse amor, se atiraram nos braços um do outro e viveram a paixão contida dia após dia, semana após semana, mês após mês. Sem falar, sem trocar uma carta sequer. Viviam das lembranças daqueles momentos e da esperança da próxima Missa do Galo. Rosinda continuava a vir no Natal e terminada a cerimônia, dava quatro batidas na porta da sacristia, padre Tininho abria e se amavam sob o testemunho calado de Santa Cecília, padroeira de Casmurro.

Um ano depois, sentada no primeiro banco, entre os pais, Rosinda estranhou. Um padre desconhecido fez o comunicado. Infelizmente nosso querido padre Tininho não está mais entre nós. Não resistiu a uma forte pneumonia e faleceu no último 15 de dezembro. Um silêncio tomou conta da igreja. O cravo silenciou, as crianças não cantaram a Ave-Maria.

A partir desse momento, Rosinda nunca mais falou. Seus pais, desesperados, consultaram os melhores especialistas da França, Inglaterra, Itália, nada adiantou. Cansados de tanta luta decidiram deixar São Paulo e foram viver nas Gerais. Quem sabe uma mudança de ares, a convivência com as primas lhe fizesse bem.

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Assim que chegaram à cidade, Rosinda manifestou desejo de ir até a igreja. Sempre acompanhada dos pais, sentou-se no primeiro banco e ficou olhando para o vazio. Parecia trocar confidências com Santa Cecília.

Já em casa, muito cansada, recolheu-se cedo. Pela primeira vez, desde a morte do padre Tininho, sonhou com ele elegante em sua batina branca. Dez horas da manhã. A mãe, preocupada, estranhou. A filha nunca dormia tanto. Bateu uma, duas, três vezes. Abriu a porta. Rosinda pálida, olhos abertos, vítreos, um leve sorriso.

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COINCIDÊNCIAS Bia de Castro Oliveira

Elisa parecia negar tudo que pudesse incriminar o adorado esposo; mesmo sendo bem mais velho que ela, fazia o tipo galã nos meios sociais. Ela sempre em dieta à base de remédios e algumas folhas de alface. Se alguém vinha lhe falar sobre as escorregadelas do marido, fazia-se de mouca e talvez pensasse que era por inveja de sua vida.

Filha única e órfã de uma herança com muitos zeros, ela contava para quem quisesse ouvir de sua gratidão por aquele que veio a se tornar seu companheiro. O primeiro encontro dos dois, ocorreu durante o velório de sua mãe. Javier e a falecida eram velhos companheiros de noitadas e, assim que ele soube do ocorrido, foi prestar homenagem à amiga que, como disseram alguns, excedeu-se numa mistura de álcool e barbitúricos. Ela bebia e tomava

remédios por culpa de uma incurável dor de cabeça que tinha, soluçava Elisa apoiada na única amiga Cora enquanto conhecidos da falecida se entreolhavam silentes com pena da desinformação e ingenuidade da menina. Filha única e sem familiares vivos, a cena de vê-la chorando ao lado do caixão era de partir o coração. Javier não titubeou e com um abraço amigo a acolheu e não mais a largou. Sentiu-se segura. O casamento veio em seguida e Arturo, amigo de infância do noivo, foi convidado para ser seu padrinho e entrar com Cora, a melhor amiga da noiva.

Durante os ensaios para a cerimônia de Elisa e Javier, uma forte empatia se formou entre amigos dos noivos e, meses depois, para alegria de todos, aconteceu o enlace de Arturo e Cora. Os dois casais tornaram-se inseparáveis. Melhor não poderia ter acontecido, falava Elisa quando alguém mencionava de forma maldosa uma relação assim tão íntima entre casais. O tempo foi passando e depois de estabilizar-se economicamente a partir do casamento, Javier voltou a participar das regatas de que gostava tanto. Por conta de seu

A mentira é muita vezes tão involuntária como a respiração.Dom Casmurro

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estômago frágil, por mais que quisesse, Elisa não conseguia acompanhá-lo. Começou a se sentir muito sozinha e, por sugestão de Arturo, decidiu aprender golfe no clube de campo.

Seus dias foram sendo tomados pela rotina dos treinos e com o passar do tempo começou a fazer novos amigos e a participar de campeonatos mundo afora. Estava feliz com a nova vida e confessou a alguns amigos mais próximos que sentia um certo desconforto quando o marido estava em casa nos intervalos das viagens. À boca pequena, a distância do casal era amplamente comentada e não entendiam por que ela não enxergava o que era tão evidente.

Como a vida de outros é sempre mais apetitosa de se comentar, já soavam rumores de que ela estaria tranquila porque tinha contratado um detetive para segui-lo. E, já acreditando nesta disposição da milionária, os amigos mais fiéis ao sexo masculino começaram a sinalizar a Javier a necessidade dele ter mais cuidado no seu dia a dia. Com ouvidos surdos Javier parecia não se importar se fosse descoberto e seguia sua rotina sem nada nela mudar.

A casa caiu numa segunda-feira de manhã quando Elisa entra na sala de estar sem se fazer notar e encontra o amado falando de forma íntima e descontraída ao telefone, atitude certamente gerada pela certeza de estar sozinho. Ao desligar o telefone e levantar-se para sair, depara-se com a esposa encostada na porta. Tentando demonstrar uma despreocupação que não tinha, numa cena potencialmente perigosa, pergunta a ela de forma casual:

— Oi querida, que surpresa vê-la em casa a esta hora. Há quanto tempo chegou?

— Acabo de chegar, diz guardando o celular na bolsa enquanto se dirige à poltrona, na qual estava o infeliz.

— Você chegou cedo, Amor.— O professor se atrasou, fiquei impaciente e resolvi voltar para casa. Com

quem você estava falando?— Curiosa! Por que quer saber?— Porque se você não falar a verdade e me levar a sério uma vez na vida,

eu entrego a gravação que acabei de fazer para meus advogados — Quanto você ouviu? — Quanto eu ouvi? Você é um cara de pau. Acho que você deveria me

perguntar o que deixei de ouvir a vida inteira e não o quanto eu ouvi aqui. Cínico!

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— Eu posso explicar— Explicar? Vai me explicar o quanto fui burra e cega todos estes anos?— Não quebre o porta-retratos, Elisa. — Tenho ódio de você. Nunca esteve nem aí com nosso casamento.— As coisas não são bem assim. Pare de gritar.— Quem é ela? Fale de uma vez!— Ninguém importante, coisas de homem. Solte meu braço Elisa, você

está me machucando.— Coisas de homem, coisas de homem. Você me irrita! O que você está

procurando, diabo?— O uísque. Onde está? — Deixa que eu pego.—Elisa! não precisava quebrar a garrafa! Já falei para você que não é

ninguém importante. Não adianta este olhar ameaçador.— Quer saber de uma coisa, seu porco safado? Estou cheia de você. Quero

o divórcio.— Quer o quê, louca descontrolada? — Louca é?— Esta bofetada vai te custar caro, Elisa.— Não se atreva, Javier.—Você quer o divórcio porque me ouviu falando ao telefone com uma

mulher?— Não me importo mais com isto. Não quero saber quem é. Cansei! Chega

de ser humilhada.— Precisa se acalmar. — Concordo, calmamente vou recomeçar minha vida. Fique sabendo

que encontrei um homem que me ama, que me acompanha. Vai ser difícil recomeçar, mas não aguento mais olhar para tua cara.

— Um homem que te ama e acompanha? — Pare de repetir o que falo seu cretino.— Que eu saiba o único amigo que você tem e que participa das suas

viagens é o Arturo. — Engula sua língua, corno.— Está me dizendo então que você e o Arturo estão juntos?

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— Pare de rir, verme imundo. Passei anos sendo roubada por você, traída por estas vagabundas e agora que quero o divórcio porque seu melhor amigo se apaixonou por mim, você ri? Qual é a graça?

— Elisa, pare de gritar. A Cora precisa saber disto— Deixe que eu conto pra Cora. Sei que errei com ela, mas apesar de tudo

a respeito e me pesa magoá-la. Meu ódio é com você, que me maltratou a vida inteira.

— Magoá-la? Ainda não entendeu, querida? A Cora vai adorar saber.

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RATOSSérgio Cataldi

Não sei o que vocês pensam, porém, na minha opinião, rato é um animal injustamente desprezado. Ninguém gosta deles; muitos o detestam e alguns se apavoram. É o caso do Eusébio. Vou contar o que lhe aconteceu.

Quando algum rato aparecia, o pobre coitado ficava histérico, e piorava progressivamente. Na terceira aparição, ficou alucinado, completamente desvairado. Prontinho para internação.

Imaginem como ele se sentiu com o que lhe disse Josefa.— Eusébio, precisamos mandar dedetizar o apartamento.— Por quê?— Encontrei um rato na cozinha.— Então não é dedetizar. Desratizar. É pra já. Vou ligar para a empresa.

E se precipitou rumo ao telefone.— Calma. Lembrou então do pavor de Eusébio por ratos. – Ele não está

mais lá. Foi embora.— Como? — Foi pela geladeira.— O QUÊ? Ele entrou na geladeira? Lixo com ela!— Não. Foi para baixo dela e sumiu. Desapareceu. Lembra que ela está

tapando o ralo da cozinha? Deve ter ido embora pela rede de esgoto.Isso não impediu Eusébio de trancar a porta. Em seguida, chamou o zelador,

eu é que não vou entrar na cozinha!Foi fácil verificar que o tampão do ralo estava faltando. Problema resolvido

com o novo, fornecido pelo zelador. Resultado: uma peça da casa proibida para Eusébio. Porta permanentemente fechada, aberta por Josefa somente quando inquestionavelmente necessário. Só então Eusébio se dispôs a ouvir Josefa.

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— Você deixou um pedaço de queijo em cima do aparador, lembra? Pois bem, quando entrei, o rato – um rato gordo, bem nutrido – estava comendo o queijo e eu o assustei. Aliás, não sobrou quase nada, joguei o resto no lixo.

Nessa hora, a lata de lixo ficou condenada. A partir desse dia, a porta ficava sempre fechada. Ai da Josefa se a

esquecesse aberta, ainda que por poucos minutos! À noite, Eusébio a trancava com duas voltas da chave. Jamais voltou a entrar na cozinha, em nenhuma hipótese. Só assim ia dormir sossegado.

O sossego, porém, não durou muito.

Muito abalado, obrigou o zelador a permanecer no banheiro com ele. Não pôde evitar essa exceção, apesar de apavorá-lo.

— Mas, doutor Eusébio, eu já verifiquei tudo. Não tem nenhum buraco no piso por onde os ratos podem ter saído. Como o senhor explica isso?

— Bem, acho que sua inspeção não foi bem feita, completa. Agora vou fazer a minha. Você vai ver.

Com o cabo da vassoura, bateu em todos os azulejos do piso, um a um. Nenhum som oco. Nenhum quebrado, nem sequer rachado. Ralo com tampão firme. Aparelhos sanitários bem fixos no piso.

Só faltava verificar os azulejos. Desarvorado, bateu neles, um a um, do piso ao teto.

— Doutor Eusébio, rato não voa...— Fique quieto, caladinho. Vou achar a saída.— Doutor, como é que pode um rato sumir...— Um rato, não, um bando, meia dúzia no mínimo, talvez uma dúzia.— E o senhor não viu por onde fugiram?— A coisa foi tão rápida que não deu pra ver. Entrei no banheiro, eles

estavam em cima da pia, em volta da pasta de dentes ou da escova, sei lá; de repente, não estavam mais. Nem deixaram marcas na pasta e na escova.

— E o que o senhor fez?— Fui no outro banheiro – na cozinha não entro mais – e, com a pinça da

Josefa, coloquei os objetos num balde e depois queimei.— Ah! Então foi por isso que alguém chamou os bombeiros. Fez tanta

fumaça, que saiu pela janela, parecia que o banheiro tinha pegado fogo.

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— O pior foi que os bombeiros nem quiseram procurar os ratos, será que não acreditaram em mim?

Nessa noite, tomou uma resolução. Diz o dito popular, todo cuidado é

pouco. E eu também acho que têm razão, se não, nem virariam um dito. Não se atira em mosquito com espingarda, mas num rato pode-se usar revolver.

Dá para imaginar como Eusébio se sentiu: trancou o banheiro e escondeu a chave. Vedou a fresta inferior da porta com panos de chão. Agora se sentia seguro. Coitada da Josefa, não podia mais usar o banheiro da suite, o outro ficava quase na outra ponta do corredor. E ainda teve de comprar nova pinça para sobrancelhas.

Com o passar dos dias, Eusébio começou a se tranquilizar. Mas não conseguia esquecer. Procurou, então, informar-se. Entrou na internet e estudou os tipos de ratos e os meios para exterminá-los. Descobriu que há ratos residentes – camundongos e o rato preto – e não residentes – as ratazanas, que entram pelas redes de esgoto e pelos ralos dos aparelhos sanitários. Encheu o apartamento de veneno de todos os tipos, inclusive iscas, contra os dois tipos de rato, e instruiu rigorosamente Josefa quanto a restos de comida.

A segunda aparição o perturbou mais que a primeira e fez mais estragos. Ao entrar no antigo quarto da filha, agora transformado em escritório, percebeu – creio que intuiu, nem sei se realmente viu – na penumbra movimentos na sua escrivaninha. Parecia um bando de animais pequenos. Outra vez os ratos! Por que o veneno não fez efeito? Quando acendeu luz, tinham desaparecido. Que pena, logo na escrivaninha herdada do pai!

Decidiu na hora: não podia manter o móvel contaminado. Pediu, quase suplicou, para o zelador depositar a escrivaninha no quintal do prédio. Esperou pacientemente. Quando não viu mais ninguém por perto, purificou-a. Se eles

resistem ao veneno, só mesmo com fogo. Os bombeiros, chamados por não se sabe quem, chegaram tarde demais. Não houve outros danos, porém o zelador precisou ser subornado.

Pelo menos agora sabia como tratar as consequências: purificaria todos os objetos contaminados.

Outra peça do apartamento eliminada, trancada a chave. Porém, como

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se proteger contra esses inimigos insidiosos? Lembrou que, para se resolver um problema difícil, é preciso agir a ferro e fogo. Resolvido o fogo, passou então para o ferro. Como sempre, a internet resolveu o problema. Importou da China uma armadura completa do Homem de Ferro, igualzinha à do filme. Ironicamente, não era de ferro, mas de fibra de carbono, muito leve e cheia de tecnologia, incluindo aí um sensor para abrir a máscara. Custou os olhos da cara, comprometendo suas finanças por alguns meses, mas o deixou plenamente satisfeito.

Agora sim, estava a salvo desses inimigos.— Eusébio, você está exagerando, foi longe demais. Está sendo ridículo.

Vai usar essa armadura o tempo todo?— Não sei, sempre que me sentir ameaçado ou inseguro.— Mas parece que está sempre ameaçado, não tira a armadura há dias;

aliás, desde que a vestiu. Inclusive, dorme com ela. E ao tomar banho, como faz?

— Mulher, é necessário, e você também devia se proteger. Sou aposentado e quase não saio. Posso usar quando bem entender.

Josefa percebeu que não adiantava continuar a discutir. Resolveu dar tempo ao tempo.

Os ratos pareciam ter dado uma folga a Eusébio. Aos poucos, foi se acalmando. Até despia a armadura durante o dia. À noite, nem pensar, imagine

se eles me atacam. Mas continuava a evitar os três aposentos infectados, cozinha, banheiro da suite e escritório, sempre trancados.

Quando achou oportuno, Josefa resolveu interrogá-lo.— Eusébio, me explica uma coisa. Como é que eu, que só encontrei um

rato, vi por onde fugiu. E você, que viu um bando, não sabe por onde sumiram.— Está claro que o seu rato era lerdo. E os meus, muito rápidos.— Não será porque você simplesmente...— Não!Paciência. Tentaria em outra hora, de outra forma. Não sei como

simplesmente não desistiu.

Acordou sobressaltado. Onde estou? Deitado. No escuro. Concluiu que estava na cama. Olhou para os lados. Sim, é isso que me acordou. Não o

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barulho, mas a claridade: parecia que um bando de animaizinhos se agitava. Os ratos! De novo! Ainda bem que estava vestindo a armadura, fiz muito bem

em comprar, viu como é necessária?

Ao acender a luz, tinham desaparecido. Ao seu lado, Josefa dormia a sono solto, não era com ela.

— Acorde, mulher! Um bando de ratos passeando sobre o seu corpo e você nem percebe!

— Onde? Não vejo nenhum!— Agora já fugiram. Mas eu ainda os pego. Anda, levanta! Precisamos

destruir a cama, está contaminada. Saia já!A muito custo, e sob protesto, conseguiu conduzir uma Josefa relutante e

sonolenta para o banheiro, onde a trancou. O que fazia essa mulher na minha

cama? Quem será ela?

Sem titubear, chamou os bombeiros.— Minha cama está pegando fogo, venham imediatamente.Arranjou uma explicação convincente, sabe-se lá como. Guiar-se pela

fumaça da janela do segundo andar, escada Magirus, uma simples mangueira d’água; pronto, estava apagado o fogo, caso não tivesse se propagado muito.

Quando os bombeiros chegaram, ateou fogo no querosene do balde em frente da janela aberta – problema da fumaça resolvido. Aguardou o tempo que julgou necessário; só então incendiou a cama, caprichando na sincronização, para reduzir a propagação do fogo.

Saiu do quarto, à procura de refúgio. A primeira porta estava trancada. Entrou na segunda; oba, um banheiro! Surpresa: uma mulher. O que estará fazendo aqui? As feições não lhe eram estranhas. Quem será? Ah, sim, a mulher dos ratos, contaminada. A cama eu já purifiquei. Olhou para as mãos, e viu a lata de querosene e os fósforos.

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LAÇOS DE CALABROTEAntonieta Fernandes

Colocando em perspectiva a história escrita do homem, quando a primeira família protagonizou o homicídio inaugural, fratricídio por motivo torpe, foi como se a baba da inveja de Caim sobre Abel respingasse em toda a humanidade, tal como um fermento bíblico a permear as relações humanas, notadamente as consanguíneas. E assim seguiu replicando-se profeticamente entre Seth e Osíris na mitologia grega, ou Rômulo e Remo na romana. Esta memória atávica sobreveio avolumando-se de maneira cíclica, fosse através de obras clássicas ou romances contemporâneos; entranhando-se através de gerações em contendas renhidas e emblemáticas, muitas vezes imortalizadas em tragédias.

O ponto de partida da presente narrativa teve como cenário um casebre pendurado na escarpa de um promontório, cuja vista descortinava-se adiante para a imensidão do oceano e abaixo para uma aldeia, na qual o meio de subsistência provinha da pesca labutada pelos homens e do artesanato primitivo manufaturado pelas mulheres. Um lar humilde de pessoas calejadas tendo como núcleo familiar um pai destinado pela tradição dos antepassados a tecer a rede, construir o barco e remar atrás de peixe graúdo, enfrentando as intempéries do mar; a mãe, senhora do lar, submissa, mãos adestradas para a coleta das melhores conchas e para a feitura dos artefatos típicos da vila.

Dois filhos: o primogênito nascido taludo, voluntarioso e afeito às lides do mar; foi cedo molhar o lombo infantil nas águas salgadas e fadado por contingência a mourejar com o pai. Cresceu ressentido pela privação do colo materno, perdido precocemente pela vinda do caçula que, prematuro de parto, nasceu com baixo peso, saúde frágil, portanto requereu cuidados redobrados da mãe. Esta, na sua despercebida cegueira cognitiva, privilegiava o caçula em detrimento do maior; tempo e afeto negligenciados gerou, ainda que involuntariamente, comparações irreconciliáveis e desentendimentos entre ambos.

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Enquanto mantinha o caçula dependente de seu zelo, viu nele despertar graça para trabalhos manuais, a alma de artesão e inclinação para os trejeitos efeminados. Alegrou-se por pressentir companhia garantida pela vida afora, afinal seria interrompida a predestinação de mais um filho servir à mãe das águas. O menino repudiado pelo irmão, pela ausência de aptidões masculinas, era motivo de chacota. Dado ao seu mirrado porte físico distanciava-se das brincadeiras ditas viris e do convívio com o irmão, pela falta de afinidades.

Resultou que, cresceram em dissintonia com permanente imagem distorcida no espelho da vida, a refletir em cada um apenas os defeitos do outro; num, menosprezo e opressão; noutro, provocação e dissimulação. Se por um lado o primogênito não poupava oportunidade pra confrontar a debilidade do caçula, o mirrado para vitimar-se, escondia-se na barra da saia da mãe ao menor aceno de picuinha do grandalhão.

Na falta de harmonia, sobejavam os ressentimentos e a discórdia; por acréscimo a hostilidade estava posta. Se para uma criança o primeiro referencial de amor vem através do olhar materno, o de aprovação vem do pai que representa o dever e a lei; e é na gangorra deste pêndulo que se constrói o arcabouço da autoestima.

Ausente o amor-próprio, nem a admiração paterna redimia o primogênito do sentimento de rejeição causado pela lacuna do afeto; somado a isso, não via nenhum benefício na primogenitura, que mais lhe representava o fardo do trabalho e o senso de dever precoce herdado das obrigações.

O pai pressentia ver transformadas em ódio, o que em princípio seriam apenas divergências de infância; com isso temia o risco de um desfecho fatal. Todavia, aquele pescador rústico erguia-se em sabedoria, enquanto buscava uma estratégia para evitar um infortúnio capaz de desagregar seu lar. Esquadrinhava os pensamentos e refletia que caso sua prole fosse maior o efeito não se manifestaria. Uma família numerosa teria mais ombros para suportar desavenças, defeitos de caráter e até desonras.

Se as linhas retas da vida já se descarrilham dos trilhos, o que dizer das tortas e desalinhadas, que já nascem às turras. O conhecimento não lhe viera dos livros que nunca lera, nem de reminiscências bíblicas; jamais ouvira falar de Esaú e Jacó, de José e seus irmãos. Porém, movido por um coração compassivo e pela apreensão do risco latente, tabulava como gerar a

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aproximação dos filhos adolescentes, através de alguma tarefa que despertasse a centelha do companheirismo entre ambos.

Não pretendia usar de sua conferida autoridade para aplicar um sermão verborrágico e alardear uma efêmera reconciliação apaziguadora. Cabia-lhe um papel profético e não de espectador ausente, cúmplice conivente ou testemunha confessa. Não queria ver os filhos submersos pelo castigo de Poseidon.

No Dies Domini, em uma manhã de tempestade à vista, reuniu os filhos, desceu com eles as escarpas, sentou-os na areia e enquanto a brisa soprava forte, semeou com maestria a primeira lição, a mesma corda que enforca o

homem, salva o homem:— A partir de hoje, no alvorecer, os dois se sentarão comigo no cais,

não para edificar os castelos de areia que lhes faltaram na infância e que se espalham à primeira lufada de vento, mas a cada um será dado um rolo de corda fina. Juntos aprenderão a tradição de tecer as redes, fazer as amarras, acochar os nós e, sobretudo, o segredo dos laços de calabrote: aquela amarra tecida a partir de uma delgada corda que, isolada oferece resistência nenhuma, mas quando trançada em entrelaçados finos, contínuos, unidos se tornam fortes o bastante para arrastar um barco pesado contra a arrebentação ou de mantê-lo atracado em noite de tempestade.

Ao pescador nunca lhe foi oferecido um manual de marinheiro, cuja escola da vida veio com o conhecimento salgado, fruto da observação e da necessidade; aprendeu com a reconstrução do barco destruído em noite de arrebentação, com a perda da pescaria graúda pela ruptura da corda frouxa e, a duras penas, a maestria das amarras de calabrote.

Intuía o velho pai que o processo criativo de se debruçarem sobre o entrelaçamento das cordas num movimento engenhoso de ir e vir, alongar, torcer, aparar, alçar exaustivamente até definir a trama; levaria os irmãos unidos ao alisamento das rugas internas, ao afrouxamento das cismas endurecidas e ao desfazimento das desavenças aguerridas. E que no íntimo de cada um, novo paradigma de relacionamento fraterno seria possível. Ainda que fosse à luz do utilitarismo, aprenderiam que aquilo que separados não dariam conta de vencer, se juntos, criariam uma corrente virtuosa de força através da união.

Como uma obra inacabada, sabedor de que a morte originariamente rompe com a constelação familiar, e que, via de regra, os filhos sobrevivem aos

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pais; alertou aos irmãos que, ao longo da vida, haveriam de conviver mais tempo juntos resistindo nas lutas e adversidades, com o entrelaçado afetivo aprendido no emaranhado dos laços de calabrote. Só não caberia entre eles o silêncio, pois este não espelharia fisionomias.

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AS ÁGUAS VÃO E VÊMGilda Pasqua Barros de Almeida

Entre tantas incertezas, entre tantas ilusões, uma certeza há;Felicidade pelo Casamento

Chegaram as férias e Olívia mantinha-se presa à janela da sala. Inverno. Casas, sítios, hotéis ficavam lotados na serra. Afastava a cortina pesada para os lados, enxugava os sopros de neblina derretendo-se nas vidraças e, devagarinho, espiava a casa em frente – seus pulsos se desconjuntavam das mãos tamanha ansiedade – a família do tenente chegara? Olhos indagativos... nada, nem a paisagem lhes respondia. Demorava-se à vitrine e tirava a teima. Nenhum movimento, ninguém.

Servia-se de leite e café descansados sobre o fogão. Gestos repetidos, tais quais os da mãe ao ver a figura de seu pai pela primeira vez, através dos vidros embaçados desta mesma janela. Pouco guarda da fisionomia dele. Fotos e mais fotos desfilavam pelos corredores do sobrado. Homem sorridente, olhar seco, porte altivo, longilíneo, todo de branco com medalhas no peito e sob o braço esquerdo o quepe: seu orgulho. No corredor, com a caneca quente na mão, ela vagava cantarolando qual cisne branco em noite de lua..., sons dessa melodia a acolhiam desde criança junto ao colo quente, carinhoso de Glória, à espera de seu pai.

De quando em quando as duas iam ao Rio de Janeiro visitar os avós que, sendo hipertensos, abstinham-se de apreciar as montanhas que trancavam as ondas, os navios, os veleiros lá embaixo entre o imenso mar respingado de cores várias e a Petrópolis caladamente provinciana.

Dia claro, à beira-mar, Olívia cruza com um jovem, saindo da balsa, ainda em trajes náuticos. Corpos se roçaram, olhos espremeram-se entre sorrisos, sacolas aterrissaram; mãos descontroladas tentavam alcançar coisas de um, de outro indistintamente espalhadas nas tábuas salgadas do ancoradouro. Embaraçada com o fixo olhar dele, Olívia deu-se pressa indo à sombra da paineira onde os avós e sua mãe a esperavam. Glória levantou-se em direção

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à filha; olhos agitados, pareciam procurar algo importante perdido ao redor. A sacola estava nas mãos! Seria uma flecha do Cupido deflagrada por aquele jovem rapaz? Olívia, confusa, não emitia voz; passos atropelavam-se em suas próprias pernas. Tentava aprumar-se balançando a cabeça como se estivesse acordando. Talvez um sonho?

Sem trocarem palavras, chegaram à casa dos avós. Almoço servido, sesta, silêncio. D. Glória refaz a maleta, chama Olívia para as despedidas, a fim de subir a serra ainda sob a luz do sol. Abraços respondiam aos sonoros e carinhosos beijos.

— Venha quando quiser, assim que puder, minha querida neta – dizia a vovó. Aquele cabelo azulado, preso à nuca, recolhia muitas histórias que Olívia sorvia para depois transcrever em seu diário para um dia...

— Em breve voltaremos, mamãe. — Viva! Iremos à praia de novo, vovó! Entusiasmada Olívia se manifestou.— Se o dia estiver lindo como hoje, vovô nos acorda cedo e descemos em

seguida, filha. — Farei seu peixe favorito, queridas meninas.— Sem trabalho, mamãe.— Vocês nos dão felicidade, nunca trabalho – acrescentou o avô.A viagem foi tranquila, pouco trânsito. Olívia pôs-se a ler o livro que levara

e nem havia nele tocado. Como leitura não se deve interromper – dogma de mãe professora – Glória permaneceu com a direção nas mãos, conjecturando sobre o silêncio da filha. Acompanhou-lhe os gestos ao abrir a caixa de fitas, pegar seu solo de piano preferido, regular o volume do aparelho. Assim que chegassem à cidade, o toca-fitas silenciaria, dado o fim do concerto, e Olívia fecharia o livro.

Ao encostar o carro, Glória olhou para a casa do tenente, totalmente às escuras, sem viv’alma.

— Esquisito, Olívia, Marcelo deixou de vir até nos fins de semana.— Nem ele, nem a irmã.— Se bem me lembro, D. Margareth me disse que iriam a Londres celebrar

os 80 anos de sua mãe, mas não sei se seria neste mês. — Pela ausência, tudo indica que sim. O calendário perdeu uma folhinha, mas trouxe de volta Marcelo.

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D. Glória iluminou a casa e o convívio com o vizinho de frente foi restabelecido; ele também pertencia à Marinha. Marcelo estava ao encalço de mais uma patente, mas ainda longe de ser Capitão de Fragata. Era comum ouvi-lo lastimar a partida do pai sem conquistar a medalha última. Mas ele se impunha o desafio: em memória de meu pai alcançarei o topo da nossa carreira.

A espreita pela janela muda de lado. Era ele quem mirava a casa de Olívia. Abre as cortinas e revive cenas dos dois juntos horas e horas debaixo da amoreira carregada, jogando War com mãos ainda pequenas; cresceram trocando histórias lidas ou inventadas ali mesmo e depois promessas... quantas promessas... juras... Era previsto o desfecho. Ninguém duvidaria dele.

No entanto, seu retorno trazia um compromisso inusitado: É irrecusável, Olívia, receber uma bolsa de estudos em Londres! Mas como dizer isso a ela e anunciar a partida? Sem volteios e secamente ele revelou a Olívia sua decisão, ali mesmo no portão da casa. De pronto, ela chocou-se, baixou os olhos. E as promessas ditas, testemunhadas pela amoreira, estariam garantidas? Tudo muito rápido acontecia, inclusive o dia do embarque. Glória acompanhou a filha ao porto e despediram-se dele; olhares amorosos descruzaram-se. Palavras soltas vagaram. Salvas e mais salvas aos marinheiros que deixariam saudades às famílias... amigos... amores.

Do porto à casa dos avós seria o desfecho. Enquanto Olívia subia as escadas, surge-lhe a vontade de permanecer no Rio. Mais que depressa pede permissão à mãe para ficar uns dias de férias com os avós. Glória aquiesceu sem ressalvas, entretanto cismou com o pedido. Seria oportuna sua permanência no Rio de Janeiro? Retornou a Petrópolis, meio apreensiva.

— Manhã radiante não quer ninguém dentro de casa. Já pra praia! – intimou o avô.

Em poucos minutos as duas estavam prontas: vovó não saía sem chapéu, e ela besuntada de protetor solar; ele, muito animado, levava o guarda-sol.

Poucos avôs eram tão cariocas como seu Darcy; vivia a cidade, amava as praias e contagiava os interioranos com as belas surpresas do mar, dos barcos, do povo alegre praiano. Um dia, mais outro e outro Olívia não desejava voltar a Petrópolis. Incentivada pela avó Marilu, inscreveu-se numa escola de natação logo ali na esquina. Touca, pé de pato, roupão passaram a ocupar seu dia. Era

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ágil na água, nadava desde pequena, com facilidade progredia rapidamente, dizia sua preparadora; suas companheiras a prestigiavam, principalmente por ser introvertida, discreta, assim... uma serrana. A escola completaria vinte anos e uma comemoração poria todos os alunos na água em grande competição.

Glória, sentia-se só em Petrópolis, mas acomodara-se, a fim de agradar Olívia nas férias. Desceu a serra pensando em como seria importante prestigiá-la na competição. Mal chegou, convocou seus pais, amigos e vizinhos a comporem uma torcida.

Em meio àquelas bonecas de maiô é aplaudido o campeão ao entrar no ginásio como membro do júri finalista. Sem perceber, ele rela o braço de Olívia, que aguardava na fila a chamada para o posicionamento; de imediato ela se volta para ele e pressente que o vira antes – seria o atual campeão brasileiro que viu na mídia esportiva? Ele acenava à arquibancada e recebia abraços dos colegas jurados.

Glória acompanhava toda a movimentação. Eureka! O campeão de pertinho é mais bonito! Todas em prontidão; Olívia ocupa a raia 3. Soa a largada; as garotas furam as águas e a torcida de Olívia, que não era pequena, estimula-a tanto que ela faz a virada dos cem metros bem antes das demais. Ufa! Eis que vence a etapa, a final! Emocionada sai da raia; aguarda ao lado das competidoras a chamada para receber o troféu. Eis que não só o troféu lhe é passado às mãos, mas também é condecorada pelo campeão brasileiro com uma medalha – parecida com aquelas que via na farda de seu pai. Sorridente, ele olhando fixamente para Olívia, posiciona-se tête-à-tête e lhe diz suavemente:

— Numa certa manhã, nesta mesma praia do Rio de Janeiro encontrei, nas tábuas salgadas do ancoradouro, uma linda morena que recolhia coisas esparramadas no chão, quis retê-la, mas ela me fugiu às pressas e hoje as águas da vitória a trouxeram de volta.

As águas sabem quem levam para não mais voltar e quem trazem para encontrar o que procuravam.

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O RETRATO DE UM SENHOR AUSTEROMaria Helena Nogueira de Almeida

Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua

as publique. Assim dizia Machado de Assis em seu romance Dom Casmurro.O mesmo aconteceu com minhas lembranças, elas sobrevoavam a mente

como pássaros errantes e permaneceram em meu cérebro até que não mais as consegui reter. E foi assim que dei um alívio às minhas memórias.

Ainda segundo Machado, o ridículo é mal que cresce e atinge o maior grau na velhice. Espero, portanto, a complacência do leitor.

Eu era um garoto de seis anos de idade, de nome Mathias Falcão, o maior amigo de minha avó. Morávamos na casa de meus avós paternos, um sobrado situado à Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, esquina com a rua Humaitá. As janelas das salas, com violetas nas jardineiras, davam para a avenida. Os canteiros das rosas ficavam na parte dos fundos, no quintal.

Lembro-me de minha avó, bonita, viúva recente. Todas as tardinhas, eu e ela íamos para a janela da sala de visitas. As pessoas passavam vindas do trabalho e muitos vizinhos nos cumprimentavam. Havia um senhor que, sobremaneira, me assustava. Eu esperava por ele com o coração descompassado. Era um homem alto, elegante, barba grisalha. Parava diante da janela, tirava o chapéu para cumprimentar vovó, olhava para mim, batia com a bengala no chão, piscava o olho esquerdo e continuava o seu caminho. Parecia querer me agradar, mas eu tinha vontade de me esconder. Foi-me explicado que ele era um homem muito importante, gerente de um banco na rua Boa Vista, no centro da cidade. À saida do emprego passava por nossa rua, descia do bonde um quarteirão antes de seu destino só para nos saudar. Eu deveria ser educado para com ele. O gerente assinava os papéis de empréstimos que financiavam nossa fábrica.

Os tempos eram difíceis. A crise de 1929 quebrara vários bancos, o comércio não ia bem, em outubro tinha acontecido o crash da bolsa de Nova York com consequência para vários países, inclusive o Brasil.

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Meu pai havia herdado uma fábrica de gravatas, nos arredores de São Caetano. No passado o negócio fora lucrativo. Ele fazia de tudo para sobreviver e nos dar o conforto em que vivíamos, chegava em casa exausto. Mamãe, estava sempre a corrigir cadernos, a melhor companhia era mesmo vovó.

Eu achava o homem que passava debaixo de nossa janela muito estranho. Certa vez perguntei se ele era casmurro como o tio Cássio. Mamãe, professora de português num ginásio do Estado, gostava de ensinar-me palavras difíceis, explicou que casmurro era alguém muito calado, resmungão, fisionomia fechada. O gerente, um senhor austero ou seja, com ar sério.

No decorrer dos anos tornei-me um rapaz estudioso. Preparei-me para o vestibular da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Fui aprovado, fiz o curso de maneira brilhante.

No meu baile de formatura quando dançava a valsa com minha mãe olhei para uma moça. Chamou minha atenção a beleza suave, olhos verdes, senti que precisava conhecê-la. Tirei-a para dançar, era leve e delicada, olhar franco, diferente dos olhos dissimulados de Capitu. Seu nome Maria das Graças Rodrigues Guimarães. Nunca vi um apelido que combinasse tanto com a pessoa, Gracinha. Estava terminando o curso de letras anglo-germânicas na Faculdade de Filosofia. Logo nos apaixonamos. Nosso casamento ficou combinado para o fim do ano, quando ela se formaria.

Minha namorada explicou que seu pai era um homem muito severo, cheio de princípios. Pessoa difícil de se relacionar. Sua mãe, dócil e submissa.

Em data combinada entre nós dirigi-me à casa de Gracinha. Estava cheio de entusiasmo, coração na garganta. Esperava ser aprovado como futuro genro. Já trabalhava em famoso escritório de advocacia com meu tio. Meus pais e avós já haviam falecido, nossa fábrica fora vendida. Eu estava só e pensava em formar uma família.

Chegando à casa onde faria o pedido de casamento fui bem recepcionado. Empregados solícitos levaram-me até a sala de visitas. O pai de Gracinha recebeu-me com ar reservado. A mãe, ao contrário, foi simpática e agradável. Minha futura noiva radiante, fiquei a admirá-la. Só então notei o quadro na parede central, em moldura dourada, de um homem com olhar indagador, postura majestosa, apoiado a uma bengala com castão de prata. O pintor havia se esmerado, era uma imagem perfeita. Foi um impacto.

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— Aquele senhor austero!Voltei à infância e vi o senhor que passava regularmente sob nossa janela.Meu futuro sogro explicou:— É o retrato de meu pai. Foi feito em Paris, por um pintor talentoso,

desses que ficam nas praças, durante uma viagem realizada com minha mãe. Relatei o fato da infância que me causara uma lembrança inolvidável. Quando disse onde morávamos e o nome de minha avó senti a atmosfera

na sala pesada. O pai de Gracinha parecia constrangido e a mãe empalideceu. Ele nem me deixou sentar, disse saber de minhas intenções, no momento não podia atender-me, pediu que me retirasse e deixou a sala. Gracinha chorava sem nada entender, a mãe insistiu que me retirasse. Pedi explicações, silêncio glacial. Vexado, retirei-me.

Fui para casa. Sempre morei no bairro da Bela Vista. Quando recebi minha herança comprei apartamento perto de nossa antiga residência. Cheguei furioso, jurei nunca mais olhar na cara daquela gente. Estranhava o motivo da recusa. Vi que era algo concernente à minha avó.

As recordações voltaram. Lembrei, toda vez que o senhor austero passava minha avó chamava a pajem, como eram denominadas as babás naquele tempo, pedia que olhasse por mim. Arrumava-se e saía. Voltava tarde, nosso jantar era sempre por volta das nove horas, quando meu avô e meu pai chegavam da fábrica.

Procurei uma prima e grande amiga da família, fui visitá-la e informar sobre os incidentes de meu quase noivado. Contou-me um segredo.

— Lídia, sua avó, possuia uma rara beleza. Ela e o marido ficaram clientes de um certo banco. O gerente logo se apaixonou por ela. No começo Lídia evitou-o, depois se entregou a uma desvairada paixão. Seu avô, creio eu, jamais soube do romance, Lídia era muito esperta, o marido a amava e estava sempre trabalhando na fábrica, desesperado para não ir à falência. O gerente começou a facilitar os empréstimos e assim a fábrica subsistia. Ele passava sob a janela onde vocês ficavam. Era um sinal para que ela o procurasse.

— E o nome do gerente? — Augusto Cesar Guimarães. Havia alugado uma casinha vários quarteirões

abaixo da sua casa. Era lá o local de seus encontros amorosos com Lídia. Dois anos depois seu avô morreu. Lídia e o amante intensificaram as relações. O

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gerente do banco começou a fazer negócios escusos, a dar empréstimos para a fábrica sem a autorização do banco. Acabou por ser demitido. Sua esposa entrou em depressão, os filhos tiveram que abandonar os estudos e arranjar emprego. A mulher de Augusto Cesar, avó de Gracinha, foi procurar a rival e pediu que ela se afastasse de seu marido. Lídia não se deixou convencer e eles continuaram juntos por muitos anos.

— Agora compreendo o motivo da desfeita que sofri, eles identificaram minha origem.

— O nome de Lídia será execrado por aquela família até a oitava geração.Depois de ouvir esse relato voltei para meu apartamento. Decidi sobre um

rompimento sem volta, mas Gracinha procurou-me. Contei tudo o que sabia. Ela chorou, disse que algo do passado não podia nos afastar. Ficamos

separados alguns meses.Gracinha voltou a me procurar. Explicou que o pai jamais aprovaria o

casamento, mas ela o enfrentaria por mim. Veio morar comigo, cuidamos dos papéis para legalizar nossa união. Casamos numa igrejinha com poucos convidados. A mãe dela compareceu para dar a sua bênção. E assim vivemos felizes, veio a prole, um menino, depois uma menina e mais tarde outra menina.

O pai de Gracinha morreu sem reconhecer nosso casamento. Odiou-me para sempre. A casa deles foi vendida. Os móveis repartidos. Dona Dulce, minha sogra, foi morar com a irmã.

E eis que dentre os pertences veio para minha casa o retrato do senhor austero. Incomodava-me ter de olhar para ele todo o dia.

Gracinha lembrou: —Talvez o seu primo Raul se interesse pelo quadro. Ele não é pintor?

A ideia foi muito boa. Raul morava no Rio, vinha constantemente a São Paulo. De certa feita foi à nossa casa. Exibi o retrato.

— Este retrato é fabuloso! O pintor captou muito bem as feições dele. Veja o olhar, segue as pessoas. A expressão do rosto. A maneira elegante como o retratado se posiciona. Você quer vender para mim?

— Vender? Ao contrário, quero que o leve para sempre. É uma longa história. Relatei o ocorrido. Raul com seu espirito carioca deu boas risadas, falou que

o levaria para o Salão de Belas Artes onde dava aulas, o quadro era uma joia.Raul ao se despedir disse com ar galhofeiro:— Ora, ora, quem diria, hein?

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Tia Lídia salvou as finanças da família, mas arruinou um senhor austero. E o pior é que o raio caiu na cabeça do neto.

— Seja lá como for, minha avó é a melhor lembrança de minha infância.— E seu avô, sabia da traição?— Esta é uma dúvida que ficará para sempre.

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CORRESPONDÊNCIASHans Freudenthal

Caro Machado,Venho convidá-lo para passar uma temporada comigo em São Paulo, neste

ano turbulento de 2016. A capital paulista é agora a maior cidade do Brasil.

Traga seus amigos, como José de Alencar, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, e,

naturalmente, a sua esposa Carolina.

Eu gostaria de conhecer sua opinião sobre os dias atuais, quando estamos

testemunhando uma das piores crises político-financeira-morais da história

do país. Ficaria muito grato se pudesse ministrar seus amplos conhecimentos

literários na oficina do clube Paulistano. Aliás, aquela entidade está criando

um livro em sua homenagem. Venha, Machado, venha logo, estamos precisando

de líderes cultos e íntegros.

Peço desculpas pela intimidade desta missiva, uma característica do

século 21, e fico no aguardo de sua prezada resposta,

Seu admirador incontestável,

Hans FreudenthalP.S.: Machado, cá entre nós, me esclareça: Capitu traiu?

Caro Senhor Hans Freudenthal,Fiquei deveras honrado com seu inusitado convite, aceito com muita satisfação.

Quanto à Capitu, proponho uma troca de informações. V. S. me esclareça

dois assuntos: a situação do Brasil nos tempos de hoje, e a noção atual, caso

ainda exista, dos meus textos, com toda a franqueza. Então lhe darei minhas

ideias sobre aquela personagem.

Com meus protestos de admiração e estima, firmo-me,

Mui atenciosamente,

J. M. Machado D´Assis

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Prezado Machado,Recebi com enorme alegria sua aceitação do convite de nos visitar em

São Paulo. Suas solicitações de esclarecimentos são difíceis de resumir; mas,

como seus pedidos são ordens para mim, tentarei.

No mundo atual, a tecnologia domina os corações e as mentes, enchendo a

atmosfera de latarias e poluição. Com o incrível excesso de população, faltam

empregos – há onze milhões de desempregados no Brasil, falta decência, falta

profundidade. Tudo é corrido, superficial, imediatista, só as posses materiais

interessam. Com isso, a cultura sofre um enorme retrocesso. No Brasil e

no mundo. Aqui, a primeira mulher eleita para a Presidência da República

acaba de ser afastada do cargo, e muitos políticos de altos postos estão sendo

investigado quanto à sua honestidade. O país está totalmente falido. Lá,

há guerras em todas as partes, hordas de imigrantes esfomeados chegam à

Europa tentando sobreviver, fanáticos colocam bombas mortíferas em todos

os continentes, o planeta inteira está inseguro.

Para lhe dar um exemplo concreto: cartas, como as que estamos redigindo

aqui, não existem mais. Foram substituídas por mensagens monossilábicas

digitadas nas carcaças metálicas modernas, rebaixando a um estado

lamentável a inteligência humana. A rica e instrutiva literatura epistolar está

agonizante. É, são tempos de mudanças.

Mudanças, você também as vivenciou. Da monarquia para a república,

da escravidão para a libertação, do romantismo para o realismo, da vida

começada como descendente de escravos para o reconhecimento de todos.

Está, pois, altamente qualificado para refletir e registrar seus pensamentos

sobre nossa atualidade.

Opiniões presentes sobre sua obra? Ora! Basta notar que o livro do clube

que o homenageia aparece depois de, em outros anos, ter sido dedicado a

Camões, Cervantes, Dante, Shakespeare. Trata-se do criador que reconciliou

arte e realidade, penetrou com introspecção nas motivações dos personagens,

descreveu em detalhes o universo feminino, manejou com perfeição e inovação

as armas de redação, usou com inteligência e variedade o narrador de seus

enredos, provou-se um mestre inigualável de ironia e observação de costumes,

além de uma imaginação privilegiada. Sua obra continua sendo analisada

por estudiosos brasileiros e estrangeiros, sob todos os aspectos: histórico,

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cultural, psicológico, sociológico, filosófico, existencial. Pesquisam-se suas

fontes oriundas da literatura universal e as suas mudanças de estilo através

dos anos. Quanto assunto! Queremos ouvir, ouvir muito as suas ideias.

Observações negativas, pontuais, não são novidade. Dizem da falta de

descrições detalhadas e das paisagens brasileiras, que certas críticas de

suas crônicas são demais atenuadas, que certos romances apelam somente a

senhoritas, que suas peças teatrais são para serem lidas e não representadas.

São comentários datados, por vezes irrelevantes, de leitores ainda não afeitos

aos temas urbanos. Ou de autores invejosos e frustrados.

Ah, Machado, venha, venha logo. Precisamos de sua vasta experiência

como cronista e escritor, de alguém que paire acima da mediocridade presente,

para nos dar novos rumos, e, quem sabe, novos alentos.

Com sinceridade e respeito,

HansP.S.: E a Capitu?

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MACHADO DE ASSIS 2016

O 10o MANDAMENTOLygia Pistelli

Chamava-se Sarah, moça bonita, de cabelos avermelhados, olhar atrevido, temperamento alegre e expansivo. Gostava de ser cortejada pelos rapazes da cidade, a quem provocava sempre com uma atitude conquistadora. As amigas tinham receio de apresentar-lhe os namorados. Na ocasião retornava de um estágio cultural em Israel trazendo consigo saudades acumuladas das amigas que aqui deixara e dos romances que lá vivera.

Maria, era sua amiga predileta, talvez por ser o seu oposto em todos os aspectos. De fisionomia acabrunhada, beirando a melancolia, cabelos pretos e encaracolados, olhos baços e tristes, muito tímida e de temperamento retraído. Nunca saíra da pequena cidade onde nascera e sempre foi dependente das decisões familiares, antigas e retrógradas. Sob o controle familiar, sua vida e até mesmo sua amizade com Sarah, era questionada. A tradicional família cristã de Maria e a origem judaica de Sarah era o maior ponto conflitante no âmbito familiar.

Após tanto tempo de ausência, Sarah marcou um encontro na quermesse da praça da cidade, ao lado do coreto. Alegre para rever as amigas, não imaginava nenhum acontecimento extraordinário para aquela noite, quando de repente, ele apareceu ao lado de Maria, que o amava muito apesar do impedimento impostos por sua família, pela sua origem judaica.

Ele não era um tipo de galã, mas Sarah o notou.O nariz pontiagudo encimado por uns óculos de lentes redondas, atrás

das quais brilhava um olhar amoroso, penetrante e perspicaz. Sobre o crânio redondo despontava uma cabeleira amarelada, semelhante à penugem de um pintainho. Um sotaque pavoroso, agravado por gaguejos num tom cômico e embaralhado a imitar o grasnar de patos em um charco. Voltava de um estágio cultural em Israel pela mesma época em que Sarah também lá estava.

Não desejar as coisas alheias.

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Ela teve a impressão que bailava dentro desse homenzinho desgracioso uma mente agitada, atenta, sensível, com uma pueril incapacidade para vivenciar provocações e para tomar decisões.

Seus olhares se cruzaram e uma incrível atração os envolveu. Sarah principiou um jogo de sedução logo notado por Josué.

O ponto de partida foram as conversas animadas sobre impressões agradáveis que haviam vivenciado na viagem, deixando-os íntimos e concordes com o regozijo desfrutado.

A aproximação deles nessa longa e divertida conversa, suscitou estranheza às amigas, principalmente à Maria, ao perceber a intenção provocadora e instigante de Sarah.

Revoltada com a atitude da amiga, veio à sua memória, quando na sua infância, sua mãe obrigou-a a dar a sua boneca predileta à sua irmã mais nova. Imediatamente retirou-se do grupo, aturdida pelos pensamentos que a perseguiram e a acabrunharam por toda vida.

Voltou para espanto das amigas e, principalmente de Sarah, transformada. Provocante, o vestido vermelho decotado, deixando perceber a curva dos seios, os cabelos negros presos no alto da cabeça, o batom vermelho nos lábios carnudos.

Aproxima-se de Josué, abraça-o.Todos sentem, além do perfume embriagador, a emoção do beijo

apaixonado trocado entre os namorados.As amigas retiram-se, Sarah desaparece entre as árvores da praça.Maria e Josué completam o momento de amor entre novos beijos

apaixonados.

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A CRIAÇÃOBetty Wey

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária. Um Apólogo

Era uma vez cinco mil tons de luz e cor. Elas aguardam o momento de contribuir para o Maior dos Espetáculos. As poderosas chefes – as três cores primárias – tentam organizar cada setor. O burburinho agita a imensa galera.

— Eu ou você?— Ele ou aquele?— Escutem – comanda Red – sou eu que resolvo aqui.— Psiu! ordem, todos terão sua vez – equaciona Blue.— Por que esse ar pomposo? Deixe-nos atuar Red!— Cresça e apareça Yellow, cada qual tem sua luz e a minha é a do comando.— Essa sua eterna pretensão... qualquer dia pode causar estragos. Vai que

Blue resolva te apagar...— Não surgiu até agora um Blue capaz de me ofuscar. Olhe ao meu redor,

existe alguém mais vibrante do que eu?E Red proclama:— Fileiras de Purples, Pinks e Fuchsias acordem! Brilhem e saúdem o

chefe:— Red, estamos com você em alegria.Orgulhoso, ele cresce e domina a cena avermelhando a paisagem.— Calma aí, espere a minha tranquilidade! – completa Blue. Red, você

com toda essa força, faz aparições rápidas e tantas vezes agressivas. Eu não, fico lá em cima, portanto preciso ir devagar. O azul do céu sou eu.

— Blue, domine em paz – falam as recatadas Turquesas, Navys e Baby

Blues, azulando os vermelhos.— Que nada, o mais importante é a busca da motivação, que só eu posso

transmitir com a força de meus raios dourados de luz – diz Yellow.— Yellow, nos traga essa energia – bradam os equilibrados Goldens,

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Mostardas e Gemas, outonando as colegas.Estavam nessa disputa, quando chega finalmente O Arrebol para dirigir o

espetáculo. O nascimento do dia.

Ele chama Red, chama Blue, chama Yellow.

As três solistas se encaminham para o palco e, de imediato, os tons primários se colocam à postos. Em fileiras de milhares de cores, todas acompanham em harmonia e disciplina.

A expectativa geral traz O Silêncio. Chegou o grande maestro, o sinal do Arrebol.

— Atenção! Acendam suas luzes, as cortinas estão se abrindo...Pinks se fluidificam com Fuchsias e Sulferinos misturados por Red. Yellow

os dilui em Orange que se transforma em Violet pintando magistralmente o horizonte, avançando na escuridão. O time de cores em movimento explode no firmamento, conquista espaços infinitos, minuto a minuto. O renascer do Sol, astro rei, aquece e ilumina as vidas da Terra, em cores poéticas e perfeitas. Pinceladas líquidas de todos os tons em criação sempre inédita, tingem a atmosfera em perfeição. O mundo para por instantes, em êxtase supremo. E lá vem ele... o forte Golden, subindo lento e magistral, no Tempo. Em minutos, os raios de Yellow se transformam em bola de luz e seu intenso brilho, apaga os resíduos de todas as outras cores. O Sol domina a cena. Chegou o seu momento de reinar absoluto no céu, em perfeita sintonia com Blue, em paz outra vez.

Os homens, os prováveis observadores deste milagre, pouco aproveitam do que o Universo lhes prepara. Talvez nem seja para eles que a atmosfera de Cores Líquidas se apresenta. O Maior dos Espetáculos acontece, mesmo se ignorado.

E assim seguem as coisas do Céu sobre a Terra.

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(IN)SANIDADESMaria Julia Kovács

Franco Basaglia há muitos anos se dedica a lutar contra os manicômios, verdadeiras prisões, para os loucos, insanos, lunáticos, esquisitos, esquizofrênicos, paranóicos e em algumas épocas, também, para aqueles que divergiam da ordem pública, anarquistas ou por razões políticas.

O psiquiatra embarcou na Itália rumo ao Brasil. Aproveitou o voo para pensar na sua fala de abertura no Congresso Internacional de Psiquiatria, cujo tema principal era o fim dos manicômios e discussão sobre alternativas de atendimento psiquiátrico. Há tempos vinha acalentando a ideia de vir ao Brasil para conhecer Nise da Silveira. Ouvira falar dela num congresso na Suíça, em que o uso de mandalas se apresentava como proposta terapêutica para pessoas com distúrbios psicóticos. Soube então que Jung admirava a obra da jovem psiquiatra brasileira e a convidara para estudar no Instituto que dirigia. Nise tinha irritado profundamente os psiquiatras de linha mais tradicional no Brasil. Alguns destes profissionais coordenavam o hospital onde ela trabalhava e como castigo a psiquiatra brasileira foi afastada do Setor de Psiquiatria, para coordenar o Setor de Terapia Ocupacional, que tinha pouca visibilidade. O que parecia um castigo foi bênção, e aí a doutora pode desenvolver o seu trabalho inovador utilizando mandalas e outros recursos expressivos. Seus pacientes, agora artistas, poderiam expressar suas loucuras não mais como delírios a serem combatidos e sim, como manifestações da vida interior.

Basaglia, ao sobrevoar as montanhas do Rio de Janeiro, o Pão de Açúcar, o Morro da Urca, viu-se quase pousando no mar. Que terra maravilhosa, palco para as ideias revolucionárias, que pensava lançar. Queria também encontrar Nise, e entender melhor a proposta de seu trabalho. Era coerente com o que vinha pensando como antipsiquiatria. Aguardava ansiosamente este encontro enquanto o táxi o levava para o hotel.

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Nise acordou ansiosa nesse dia. Nas últimas semanas vinha se preparando para o Congresso Internacional de Psiquiatria, do qual era organizadora. Sabia que haveria polêmica, começando pelo convite a Basaglia. Os grandes luminares da psiquiatria brasileira, que coordenavam o Centro Psiquiátrico Pedro II, Colônia Juliano Moreira, Hospital Psiquiátrico do Juqueri, Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena e outros, estariam presentes também. No seu sonho dessa noite eles a prenderam num buraco com choques que eram ativados quando abria a boca.

Estava preocupada com Arthur Bispo do Rosário, seu paciente artista. Pediu a ele para que coordenasse as manifestações artísticas dos companheiros no Congresso. Sabia que era tarefa importante para ele, mas temia sua ansiedade, disparada em situações novas. Foi sobre Arthur que Nise conversara com Jung, que recomendou que se aprofundasse na Psicologia Analítica. Como foi importante para ela este tempo de estudos depois de sua prisão por ideias políticas e também pela restrição de pôr em prática suas ideias revolucionárias. Em vez de lobotomia, eletrochoques e camisas de força, acreditava nas tintas, pincéis e telas. Arthur, seu paciente mais famoso, era prova de suas crenças. E ele estaria presente no evento, mostrando a todos como a arte era fundamental para expressão do turbilhão interno, que assolava seus pacientes.

Nise foi informada que Basaglia chegara, estava no hotel e em breve estaria na abertura do Congresso. Observou-se no espelho. Teria que colocar um vestido, brincos, colar e arrumar os cabelos. O jaleco com respingos de tinta ficou em casa, dobrado sobre a cadeira. Ela não gosta desta exposição, os olhares voltados para si. O compromisso é com seus pacientes e não com a fama. Mas, em prol da luta antimanicomial, entende que sua presença no Congresso é uma obrigação. Estava curiosa e queria conhecer Basaglia pessoalmente, um líder que merecia toda a atenção. O que Nise não sabia é que ele já conhecia o seu trabalho.

Enquanto os dois grandes líderes da psiquiatria se preparavam para o início do evento. Arthur Bispo do Rosário dava os últimos retoques na sua obra. Muito ansioso, correndo de um lado para o outro. Olhos não focavam, pensamentos intrusivos, flashes luminosos envolviam o artista. Perguntava-se, reconheceriam sua obra? Era um artista, uma fraude ou tão somente um louco ousado? Mais importante que tudo era o compromisso com a doutorinha, que o

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salvou dos choques aplicados na Juliano Moreira. Ela contava com sua ajuda, sua arte, na luta contra as prisões chamadas de hospício. Precisa se focar, talvez é melhor pintar, assim se acalmaria, como sempre acontecia desde que descobriu sua arte.

No vaivém do credenciamento dos participantes no Congresso, era possível ver Bispo do Rosário sentado na banqueta com a tela à sua frente pintando freneticamente. Dra. Nise ficaria orgulhosa de vê-lo produzindo. Ouve-se o sinal para o início das atividades.

Dr. Basaglia chega à sala vip, seguido dos admiradores. Sente-se acalentado na cidade maravilhosa, quente e acolhedora. Quer logo conhecer Dra. Nise. Surpreende-se ao vê-la miúda, humilde e nervosa. Como é possível diante do tamanho de sua obra? Logo iniciam a conversa e verificam que suas ideias caminham na mesma direção, e que não podiam tolerar os sofrimentos que se infligia aos que tinham problemas psiquiátricos, sob o nome de cuidados. Não se podia encarcerá-los, ministrar choques elétricos, isolar, amarrar, prender e punir. Proporiam alternativas, nos domicílios, na comunidade, com psicoterapia e arte.

Neste momento um tumulto. Sorrateiro, calado e contrariado Simão Bacamarte entra o recinto do Congresso. Veio porque estudar a loucura era sua meta. Queria confirmar com os notáveis, se estava fazendo a coisa certa ao internar os insanos na Casa Verde, em Itaguaí. O que não esperava é que uma comitiva de sua cidade tinha vindo, também, para pedir que Basaglia e Nise da Silveira intercedessem para que a população não ficasse à mercê do alienista tirano. Houve bate-boca, confusão, socos, logo interrompidos pelos seguranças.

Bacamarte sentou-se na plateia, longe de todos. Ouviu atentamente tudo o que os colegas famosos diziam. E sua mentalidade foi se alterando durante o evento, sem que ninguém soubesse do fato. Nise e Basaglia provocaram grandes discussões no evento, no Brasil e mais particularmente em Itaguaí. Separaram-se ao fim do evento sem saber o que aconteceu naquela pequena cidade brasileira. Arthur se deliciava com a emoção de sua doutora. Bacamarte voltou à cidade e se internou na Casa Verde, para poder estudar em paz desde a sua própria loucura.

Eu estava lá como jovem profissional de Psicologia e posso contar aos meus alunos o que vi. O Congresso não passou de imaginação, de devaneio numa aula de Psicopatologia. Mas seus ensinamentos povoam meus conhecimentos.

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O CONTO QUE ME SONHOUMay Parreira e Ferreira

Todos os sonhos já se sonharam, mesmo assim, existem pessoas que acreditam que são elas é quem sonham. Quem escreve sabe que todos os contos já se contaram e, mesmo assim, insistem em recontá-los. Eu sou alguém que nunca foi propriamente um contador de histórias, mas o tempo passa e vai deixando na gente o gosto de nostalgia do futuro, se é que posso falar assim. Nesses anos de leituras e tratados literários, posso afirmar que, sem exceção, não há o escritor de bem com a vida, de sono tranquilo, de alma lavada. Muitas dores de amor foram contadas, de todos os tormentos já tomamos notícia e sempre há os que ainda se surpreendem com o abandono, com o ódio, com o ciúme.

Por acaso não tenho o nome Capitolina, com o qual Machado nos presenteou. Ah, então você não é Capitu. Não, não sou. E se por um fenômeno desses que acontecem nunca na vida, meu nome fosse Capitu, nada seria diferente, teria tido a mesma dor. Talvez ela tenha sido sonhada com frequência. Talvez ela tenha pensado em quão maravilhosos podem ter sido os sonhos de Bentinho. Talvez os próprios sonhos tenham sido lenitivos apropriados no exílio. Os sonhos alheios têm outros cheiros, outras tessituras. O sonho de quem ama, de quem odeia, de quem se corrói. Qual terá sido o sonho que mais sonhou Capitu. De quais pesadelos deve ter-se vitimado.

A paixão se isola em memórias e os sonos profundos confundem vivos e defuntos, como um dia disse-o Bentinho. Aliás, porque os olhos de Bentinho encontraram os olhos de Sancha e fixaram-se de tal forma que nenhuns deram passagem, foi que Capitu sofreu a acusação e a tormenta que a seguiram desde então. Capitu injustiçada, Capitu revirada. Pobre Capitu.

Porque Bentinho apalpou os braços de nadador de Escobar e sentiu inveja, e sentiu ciúme, porque Escobar abraçava Sancha e Bento sentiu vontade

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá.

Memórias Póstumas de Brás Cubas

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de apalpar os braços de Sancha, são contados sempre os mesmos contos de uma mesma Capitu. Cruel pergunta, traíste ou não, amante desprezada. De tanto sugar a alma de Bento na vaga da ressaca do olhar, ele, desalmado, transformou-se.

Fosse o meu nome Sancha e Capitu não teria o trágico destino. Cabe perguntar se o leitor tem ideia de por que Machado fez seu Bentinho tão fraco. Um Bentinho que sente vertigem e pecado quando aperta a mão da mulher do amigo. Que diz que Sancha é deliciosíssima e o pensamento nela o faz ficar mal entre o amigo e a atração. Melhor culpar a mulher, projetar nela o desejo e desconfiar do amigo, vomitar o que se engasgalha em culpa.

Isso, Bentinho, diga que foi ela quem o traiu. Isso, jogue-a fora como se deve fazer com coisas imprestáveis, não como se faz com adubos, que podem ser depositados logo ali, no terreiro. Jogá-la fora em embrulho especial, passagem só de ida, com um oceano de separação. Fique só, Bentinho, e deixe que o inferno seja ela. Assim agem os nervosos. Diga a todos que o desejo não é seu. Diga que quem desejou foram eles, amigo e esposa. Como se não fosse você, Bento, quem desejou a Sancha.

Depois que Capitu morreu linda na Suíça e o filho de febre tifoide em algum subúrbio de Jerusalém, você Bento escreveu sua história pelas mãos de Machado, para quem tudo são pretextos a um coração agoniado. E isso é o que todos sabem. Sancha, a incauta, sem saber do desejo que despertou, retirou-se com parentes no Paraná, após a morte de Escobar. E ninguém mais ouviu falar dela. Exceto é claro, eu, nas pesquisas incansáveis que fiz em nome de meus ais.

Da friagem do Paraná, e depois de tanto mar escorrer de seus olhos, Sancha foi tomar sustento de alma em modesta pensão na costa italiana. Fosse eu Sancha, me atiraria nas águas claras do Tirreno. Mas não, Sancha nunca pensou em atirar-se em águas claras ou terrosas, sempre a visão do marido tragado pelo mar do Flamengo. Os braços de nadador, as pernas de nadador, não foram mais fortes do que as fortes águas do Flamengo. Foi Escobar nadando e Escobar morrendo.

Amigas que foram desde os tempos de escola, corresponderam-se. Sancha embora recebesse alguma renda, herança deixada por Escobar, desde nunca foi afinada com as contabilidades, coisa que Capitu fazia tão bem. Teve medo

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de ir encontrar a amiga na Suíça, gastar mais do que chegasse e depois ficar sem o sol amarelo da Itália. Sua filha Capituzinha (o nome não poderia ser outro), ficou no Brasil, casada com jovem médico de Curitiba, e nunca mais se lembrou do amigo de infância, Ezequiel, aquele que imitava os gestos de toda gente, e pagou preço do desprezo por assim o fazer. Ezequiel, a quem Capitu e Bento tanto mimaram e tudo fizeram. Feliz criatura que não soube nunca da dúvida do pai. Na última visita, a primeira que fez ao pai, foi bem tratado. Quem os visse juntos acharia em Ezequiel a mesma pessoa de Bento, tão parecidos. Mesmo assim, Bento não via, os olhos de Bento ficaram loucos.

As amigas, cada qual de seu modo, encontraram na Europa um sentido de amparo e conforto. Tive acesso ao pequeno maço de cartas que trocaram em certo período. As correspondências são sinceras no reencontro, falam da infância juntas, do nascimento dos filhos, das visitas dos casais. Em uma das cartas, Sancha escreve sobre a traição vez ou outra do marido, mas isso não levava importância, uma vez que o amor foi preservado. Imagino que Capitu deve ter sorrido ao ler. Como és tola minha amiga, deve ter pensado. Respondeu sobre os delírios de Bento ao afirmar que Ezequiel era filho de Escobar. Acusou-a, desprezou-a. Lembrou de quando Bento confessou a Escobar que morria cada vez que par de olhos varões se assentavam nos ombros de Capitu. Não tenha ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti, ele repetia a passagem bíblica inúmeras vezes.

Capitu escreve uma vez para o Rio, pede a Bento que vá vê-la, tem saudade. Nenhuns sinais de resposta. Vêm os sonhos. Tantos sonhos se apossam de Capitu que se confundem e a confundem. Bentinho vem, Bentinho não vem, Bentinho beijando-a, mostrando a ela as estrelas, Sírio, Marte. Bentinho.

É, a felicidade tem boa alma.Sancha, Sanchinha, sei que nada poderá fazer por Capitu, muito menos

por você, frágil Sancha, então vá para a praia, olhe para o azul-tirreno, sinta o perfume de mel que existe nas brisas italianas, olhe para o horizonte no mar, do outro lado do oceano, deixe que vejam os seus belos olhos, faróis sinais a marinheiros perdidos. Esses olhos pelos quais Bentinho se perdeu, mesmo falando dos oblíquos olhos de Capitu, foram os seus olhos que o deixaram na perplexidade da paixão de homem adulto.

O leitor pode não concordar comigo, mas acho doente, invejoso e egoísta

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o Bento Santiago. Quero ir aos fatos que, nem Capitu, nem Escobar e nem a pobre Sancha, ficaram sabendo. Urge em mim a necessidade.

Se vivo fosse, Bento poderia confirmar o que pensou e sentiu um dia. Sentiu os dedos de Sancha entre os dele, apertando uns aos outros. Não houve meio de desviar o pensamento da mão de Sancha, nem os olhos que trocaram. Ela só olhou, não mais que isso.

Quem viu o pecado foi você, desbendito. Não morresse Escobar e você não teria transformado o seu desejo em calúnia. Não tenha ciúmes de tua mulher, ladainha ininterrupta. Se Capitu soubesse de sua paixão, teria achado uma maneira divertida de se livrar. De tanto desejo que sentiu por Sancha, a mulher do maior amigo, não aguentou a culpa, quando soube que sinhô morreu nadando. Além de invejar o amigo, cobiçou-lhe a mulher. Em seguida, num movimento atormentado, trocou tudo e todos. Escobar e Capitu se submeteram, ele porque morto, ela por não afrontar a sua loucura.

Ezequiel chega e encontra a mãe já desfalecida. Enterra-a e vai ao Brasil ter com Bento, seu pai. Junta cartas, fotos, pequenos objetos da mãe e envia-os à Sancha. E fica Sancha, tão triste.

Em outro dia, Sancha caminha pelas ruas pedregadas do vilarejo e vê um homem, que mais tarde soube o nome, Estevão, afundado num mar vasto e escuro da multidão anônima. Ele a segue até a cadeira na praia, pede licença, senta-se ao lado, apresenta-se tímido. Dois brasileiros em terras estrangeiras sentem-se próximos. Contam-se as vidas. Os dias se passam morosos. Ela se alegra de ter alguém da mesma cidade natal, ali tão perto. Fala sobre a morte da amiga, da lembrança do marido. Ele havia conhecido Escobar, sabia, sim, quem era doutor Bento Santiago. Formaram-se na mesma academia. A conversa que se seguiu, eu intuo.

Estranhas coincidências, ele conta a sua não menos lamentosa história de amor. Foi enamorado de uma jovem, afilhada da vizinha de um amigo, Luiz Alves. Buscou conselhos com o amigo, desconfiou, e por necessidade de revolver o ferro na ferida, sim, descobriu que havia amor entre o próprio conselheiro Luiz Alves e Guiomar, é este o nome da jovem. Como sofreu, o Estevão. Sofreu, quis matar-se. Hoje entendia que ambos foram feitos um para o outro, como a mão e a luva, pois existia entre os dois, ambições que se completavam.

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Sancha se enternece. Sofrem os mesmos padecimentos. Ela se lembra de Guiomar, afilhada da Baronesa. Que mundo tão estranho, extenso e pequeno. Estão eles, juntos, do outro lado do mesmo oceano, olhando-se nos olhos. Os olhos de Sancha não são de ressaca, não pretendem afogar os de Estevão, ao contrário, querem é ver os doces olhos de Estevão. É de meu gosto deixar um final menos desinfeliz aos dois.

Talvez agora, Capitu, a primeira amiga e Escobar, o maior amigo de Bento, tão extremosos ambos, e tão queridos, estejam em algum lugar eterno conversando sobre livros e estrelas. Merece Capitu esta consideração. A você Bento, eu desejo que o destino seja triste e solitário. A terra há-de lhe ser muito pesada. E cheias de pesadelos sejam suas noites. Fosse o meu nome Machado de Assis e eu teria escrito outra história, deslida por certo. Mas se todas as histórias já foram contadas, resta-me enfrentar a insônia. Nem mesmo eu sei, se esse conto contou-se por mim ou fui sonhada por ele.

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AS VOLTAS QUE A VIDA DÁThais Costa

O dia estava ensolarado, saí para umas compras. Distraída, andando na rua, senti que alguém me punha a mão no ombro. Virei-me e exclamei:

Luísa, quanto tempo! Como vai você, como vão os filhos?Todos bem, minha amiga. Já tenho dois netos lindos.Ah, que delícia. De quais filhos? Ainda tem algum morando com você? Do Mateus e da Andréa, um de cada. Não, ninguém mais em casa.Então agora você só curte a vida...Depois que a mamãe morreu, e eu já era viúva, comecei a ter mais tempo

pra mim! Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto.

O caro leitor precisa saber o quanto éramos inseparáveis nos tempos de escola. Entramos juntas na faculdade, na formatura viajamos pela Europa. Casamos e tivemos filhos contemporâneos. Ela era um saco de espantos. Quem conversava com ela sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de ideias e imagens, cada qual mais original, mais bela, às vezes extravagante, às vezes sublime. Luísa teve a sorte de ter uma família muito unida, eles eram solidários em tudo. Ela se casou com um moço bonito que foi contratado pela indústria do pai dela com um cargo alto; teve um filho atrás do outro e não chegou a exercer a advocacia. A conta no banco nunca ficava no vermelho, o gerente fazia ligações para o escritório do pai e o saldo era coberto como por encanto, nem ficava sabendo que tinha excedido o cheque especial. Em algum momento a vida nos afastou, mas isto não significa que o enorme carinho que havia entre nós tenha se perdido. Voltando ao encontro casual, na rua.

E agora que você tem mais tempo livre, o que tem feito?Jogo bingo.O quê???A solidão pesava-me, e a vida era para mim a pior das fadigas, que é a

fadiga sem trabalho. Virei bingueira e tudo melhorou!Não me diga!

A loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa.

Para que transpor a cerca?O Alienista

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A loucura entra em todas as casas. Um grãozinho de sandice, longe de fazer mal, dá certo pico à vida.

É verdade, mas achei que o bingo tivesse sido proibido, vi vários sendo fechados.

Virou ilegal, mas só aqui no bairro tens uns 15. Gosto mais do da Padre João Manoel, mas tem outros.

Puxa, nunca vi nenhum.Não tem placa, claro. Mas muita gente vai.E como se descobre onde tem?Boca a boca. Alguns têm placas discretas com nomes de empresas, mas a

entrada é controlada por porteiro eletrônico, só entra quem eles identificam e permitem.

Incrível, e tão perto de casa. Você não sente insegurança de ir a um estabelecimento ilícito?

Às vezes, mas tenho tido sorte, nunca fizeram blitz enquanto eu estava lá. Minhas amigas já foram parar na delegacia, um vexame!

Que constrangimento!São senhoras finíssimas, passaram por cada uma! O pior foi ter de pedir aos

filhos para ir buscar...Tem uma que o filho é procurador em Brasília, proibiu a mãe de jogar. Já

pensou se ela fosse detida?E seus filhos, não ligam?Aprovar não aprovam, pedem para eu não ir...Quem desobedece à lei não vai obedecer justo a filhos!Lá não sinto o tempo passar, não fico triste nem tenho saudade. Eu falo pra

eles, eu adoro, não tenho por que não ir!!!Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Há que se aproveitar

bem. Tem muita gente lá?Só a minha turminha são uns 25. Somos muito próximos, como uma

família. Quando alguém está meio macambúzio perguntamos: Gentes, quem matou seus cachorrinhos?, como se dissesse: — quem lhe levou os amores, as aventuras secretas, etc... Se morre um parente de alguém, todos ficamos tristes, vamos ao velório, acompanhamos o enterro, como se fosse parente nosso. União na dor e na alegria.

São mais homens ou mulheres?Mais mulheres da nossa faixa etária, mas tem de tudo. Você vai com que frequência?

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Pelo menos quatro vezes por semana. Tem fases que vou todo dia.E costuma ficar quantas horas por lá?Chego no começo da tarde e fico até de madrugada.Nossa! Muito tempo mesmo. Não tem o hábito de jantar?Eles oferecem lanchinhos muito gostosos, presunto e queijo, sucos, a gente

nem sente o tempo passar. As janelas têm persianas, é tudo ar condicionado, então não se percebe escurecer. O tempo voa mesmo.

E você perde muito dinheiro?Agora não, mas já perdi um apartamento, aquele que você conheceu.Meu Deus, um apartamento inteiro, como foi isso?Perdi muitas rodadas mas continuei jogando para recuperar, não conseguia

parar. Aí fui assinando promissória, uma bola de neve. No fim só vendendo o apartamento. Quando meus filhos souberam ficaram umas feras. Me obrigaram a abrir mão das ações da empresa e dos outros imóveis que meu pai deixou, você se lembra como ele acumulou muitos bens. Assinei doação de tudo e agora vivo de uma mesada que eles me dão em cash, tudo controlado. Me tiraram o cartão de crédito, nem conta no banco tenho mais. Depois de uma certa idade parece que os papéis se invertem e os filhos começam a mandar nos pais.

Mas pelo menos vocês se vêem sempre, se dão bem?No começo foi bem difícil, eles ficaram de mal quando eu vendi o

apartamento da Peixoto, onde eles nasceram. Ocupava o andar inteiro, valia um bom dinheiro e o que doeu mais foi deixar as lembranças para trás. Depois, para fazer as pazes, eu concordei em frequentar o J.A..

J.A.?Jogadores Anônimos, um grupo de bingueiros compulsivos que se reúnem

semanalmente para trocar experiências. Às vezes é bem deprimente, tem gente que perde tudo. No meu caso felizmente não cheguei a ficar na miséria.

Nem sabia que existia isso, é igual ao alcoólicos anônimos?Sim, fui toda semana durante dois anos. Aprendi que é preciso pôr limite

até no que a gente mais aprecia. Quando estou perdendo, o jogo acaba quando o dinheiro do dia se esgota. Você ficou tão surpresa, vamos combinar de ir um dia comigo e ver como é, você vai gostar. O bingo da era dos computadores é dinâmico, não tem nada a ver com aquela chatice de antigamente. Dá para jogar até 400 cartelas de uma vez, é o máximo!

E como eu vou poder entrar?Você entra junto comigo, eu tenho senha.

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Ah, não diga!Se um convidado virar cliente assíduo, quem apresentou ganha um bônus

muito bom. O dono do bingo é muito generoso!Ah, que bonzinho, vamos combinar qualquer hora.

* Os trechos em itálico foram extraídos de Memórias Póstumas de Brás Cubas e contos de Papéis Avulsos.

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DEZEMBROSRenata Julianelli

Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte.Memórias Póstumas de Brás Cubas

Atrás da porta, tudo. Deixou flores no vaso, copos-de-leite. Também um bilhete para a cozinheira com cardápio adiantado. Sala-ninho, aconchego dos sofás e fartura de almofadas rechonchudas espalhadas, um canto preferido para cada. O lado do abajur, onde o marido lia, com a pilha de livros sobre o tema da vez, Kabbalah. A cadeira de balanço, herança da bisa, diversão para o filho de cinco. Já o de oito dominava a melhor posição em frente à grande televisão.

Dezembro lá é data de fazer cirurgia de vida ou morte? Teve que ser. Os filhos na janela do carro, acenando um tchau engasgado, a mãe e sua bolha na cabeça. No caminho, parecia previamente anestesiada, sem precisar de médico e drogas e cortes e sangue. Só repetia para o marido que estava tudo preparado para os meninos, compras antecipadas, as sacolas do Natal escondidas no maleiro do escritório. Todos teriam presente.

Cheiro de éter, maca. Vazio. Tempo que não conta. Nem daria para contar porque nele não se

sabe o que passou.UTI. Sono. Desesperado porque não podia ser dormido. Haviam que

estimular sentidos, principalmente a visão, risco de perda prevenido pelo doutor. Enfermeiras que abriam os olhos dela com as mãos.

Vultos, luzes embaçadas, choro. Uma voz dizia que o escapulário foi deixado pelo padrinho, com licença que vamos pendurar. Mal entendeu. Só quando acordou, horas depois. Soube pedir: Moça, avisa que o menor ainda acredita em Papai Noel. Recado dado pela enfermeira sem muita emoção. Elas parecem lidar com sentimentos assim como lidam com esparadrapos.

Manhã seguinte, sorriso de boca seca, sensação que aquela mão quente segurando a sua era do marido. Entorpecida, ria e chorava por tudo continuar.

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Ufa. Despedida que não veio. Sentaria à mesa para a ceia, como aconteceu, viu seus garotos e sobrinhos rasgando embrulhos, ganhando o Natal.

Reconstrução física e mental, dois meses convalescendo, o medo tomou conta. Precisou tarja preta. Ouvia repetidas vezes: algo mudou? ou passou a acreditar mais em Deus? Os outros... eles querem saber, eles imaginam e pedem depoimentos, uma curiosidade sobre a experiência de quase-ter-ido-pro-lado-de-lá. Esse quase é caso sério, remexe conceitos, vínculos, loucuras guardadas.

Santos remédios.A demanda dos dois meninos fazia a vida seguir. Por algum tempo, teria

que encaixar na rotina controles da cirurgia. Entrou e saiu do hospital levando poucas horas no dezembro seguinte. Ser Noel mais uma vez era tão desejado, tão tocante. Chorou. Abrindo surpresas com a família, sorriu. E o ano virou, fogos de artifício explodiam agradecimentos.

Mais meio ano e, de novo, exames. Alterados. Como? Anemia. Injeções. Nada com o aneurisma, lá tudo certo. Se não fosse a laqueadura, há sete anos feita, até poderiam suspeitar do que estavam falando... Gravidez. Como? Um bebê. Não pode ser, im-pos-sí-vel, entendeu? Impossível. Lá vinha a notícia bomba daquela criatura cheia de imprevistos. Susto geral, claro. Ao menos não tinha teor tão grave.

E aquela noite, nem o tarja preta segurou. Choque. Era mesmo uma pessoa chegando. Nos cálculos do médico, previsão para o Reveillon. Como em outros anos, mudanças, confusões, euforia em dezembro. Que mulher para bagunçar a vida da família inteira nos quarenta e cinco do segundo tempo. Todos desacelerando, preparando festas e férias. Mas isso é para quem pode. Reforma na casa, enxoval, aceitação.

Não decido nada. Dividia com quem pudesse ouvir sua perplexidade com o destino. Formulava explicações, tentava respostas. Missões que seriam descobertas ao longo do caminho.

De novo as compras foram antecipadas. As sacolas eram escondidas mais uma vez nos maleiros. Preparativos que remetiam à sua experiência moribunda, porém agora uma prova de superação, ainda a comovia ter sido escolhida, depois de outros dezembros, para gerar uma vida. Menino grande, comemorou o doutor, no último mês nada de abusos.

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Ceia encomendada para esperar o bom velhinho, o vestido que caberia na barriga já passado e pendurado no cabide. No dia 23, contrações após dez da noite, madrugada adentro e 24 cedinho, rompeu a bolsa. Acordou os garotos.

Atrás da porta, tudo. Foram os quatro virar cinco. Mais um Natal em que todos teriam presente.

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ERUDIÇÃO SELVAGEMMaria Lucia Rizzo

A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão;

começo a suspeitar que é um continente. O Alienista

A obra de Picasso faz-me pensar em Machado de Assis, pela subversão da ordem das coisas que os dois empregaram em seus trabalhos. Justapõem os elementos num processo de destruição para criar uma nova forma. Decompõem e recompõem uma obra dentro de uma nova lógica.

Picasso costumava dizer: não pintei a guerra porque não sou o tipo de artista que sai por aí como um fotógrafo, à procura de um tema, mas sem dúvida a guerra está presente no que fiz durante o regime do General Franco. O melhor exemplo dessa fase é o grande painel Guernica, que se encontra no Museu Nacional Reina Sofia, em Madri.

Foi durante uma visita na exposição de Picasso no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, que comecei a pensar na ligação entre o grande escritor e o artista plástico; especialmente diante das obras da fase azul, em que o pintor mostra a dor e a tristeza pelo suicídio de um amigo. O retrato de um doente mental perambulando pelas ruas de Barcelona, figura esquelética e deformada, lembrou-me de certos personagens de Machado. No Instituto, um professor explicava o Surrealismo para visitantes: esse movimento revela pensamentos estrangulados, polêmicos e mentes delirantes. Ouso dizer que Machado, no limiar do Modernismo, antecipou esta sensação de loucura e delírio em O Alienista.

Os quadros vieram de Paris; os textos, dos morros cariocas. Apesar disso, Pintura e Literatura se encontram na Arte Universal e promovem, ambas, revoluções estéticas e novas experiências sensoriais.

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Processo N° 1234.56.78.90 / 30 de junho de 2016 Autor: fulano de tal/ por milhares de leitoresRé: Capitolina Pádua/ Apelido: CapituPedido: Declaração de inocência de Capitolina Pádua. Estamos reunidos neste ato não jurídico para o julgamento subjetivo da ré.

De nossa parte a defenderemos conforme a moral, perante as provas adquiridas e a realidade objetiva.

Esperamos que o Mmo. Juiz do povo, julgue com convicção na verdade. Vamos aos fatos: Bento Santiago, de apelido Dom Casmurro, acusa sua mulher Capitolina, de o ter traído com seu melhor amigo e companheiro de seminário, Ezequiel de Souza Escobar.

Capitu era tachada, por José Dias, agregado da família Santiago, de ser uma desmiolada; que os pais dela faziam não ver; que desejavam o casamento da filha com Bentinho porque eram de classe econômica inferior à dele e esperavam com as bodas, como que ganhar na loteria. Que tinha os olhos de

cigana, oblíqua e dissimulada. Que era muito vaidosa procurando sempre

aparecer.Bento amava desmedidamente Capitolina e atrelado à esse amor, um ciúme

doentio. Achava-a lindíssima como nenhuma outra. Elogiava-lhe as qualidades morais, os gestos, a personalidade. Dizia que ela era mais mulher do que ele

era homem. Que ela era tudo e mais que tudo para ele. Que só pensava nela.

FL.208. Que a imaginação foi a companheira de toda sua existência, viva,

rápida, inquieta. FL.111. Declarava: Eu tinha muita cisma na cabeça, uma

barafunda de ideias e sensações. Era um poço de dúvidas que coaxavam

dentro de mim como verdadeiras rãs. A ponto de me tirarem o sono. Que até

o menor gesto dela o afligia de ciúmes. Que desconfiava de tudo e de todos.

INOCENTE OU CULPADA?Agda Del Cioppo

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Jovens ou maduros. Rapazes que passavam a cavalo sob sua janela; nos bailes ciúmes dos homens que olhavam para seus braços lindos, sem mangas. Tanto que deixou de frequentar muitos, mas aos que foram obrigou-a a usar um xale de voal para cobri-los. Incomodava-se até mesmo com o silêncio por não atinar em que ela estaria pensando. Uma ínfima palavra, uma insistência qualquer, muitas vezes só a indiferença bastava para o encher de terror ou desconfiança. Ciúmes do cavaleiro dândi do cavalo baio, FLS. 58, 143. Imaginava que se ela vivia alegre é porque já namorava algum peralta da vizinhança.

Considerações: A síndrome aumentou quando Capitu, com ingenuidade, sem suspeitar das terríveis consequências de suas inocentes palavras no cérebro do marido, comentou de uma semelhança no olhar de Ezequielzinho com o olhar de Escobar. Daí em diante, o ciúme foi cada vez se avultando mais. Agarrou-se àquela ideia e procurava minúcias no retrato de Escobar, para injustamente compará-lo à Ezequiel. Sua loucura e cegueira era tanta que quase chegou ao suicídio, quase matou o próprio filho e também a esposa. Tomado pela paranoia via traição em todos. a) De Sancha com ele, FLS.216. b) Da mulher do barbeiro com os fregueses. c) De Capitu com Escobar.

Bentinho a amava muito. Desde a infância até enquanto viveu. E ao final declarava que tinha feito da casa da Glória, uma réplica da de Matacavalos, porque queria ter a sensação de estar próximo dos velhos tempos. Que só possuía amigos de data recente. Convivia com a solidão e a saudade. Que faltava a ele, ele mesmo. E concluía: Esta lacuna é tudo.

Em suma, o culpado do desfecho da situação foi Bento, O Dom Casmurro, que fez sua mulher amada extraditada, despojada de sua pátria, seu lar, sua vida íntima, seus familiares e amigos. Ele próprio, por ideia fixa injustificada e doentia privou-se de uma vida feliz. Confessa que durante o resto de sua existência, nenhuma mulher o fez esquecer a primeira amada de seu coração. A Capitu de olhos de ressaca e de cigana oblíqua e dissimulada.

Por todo exposto, esperamos que Capitu seja considerada inocente em vista de todas as virtudes e nenhuma prova do crime que lhe imputam.

Sentença: Por todo o poder que o povo me atribuiu neste julgamento passo à prolação da sentença:

A senhora Capitolina Pádua é declarada INOCENTE.

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ENCONTROSAngela Guimarães

Somos amigos há muitos anos e desde adolescentes nos reunimos todas às quartas-feiras na casa do Bernardo. A conversa, acompanhada de um bom uísque ou um vinho de boa safra, é agradável, mulheres, futebol, política, ciência, economia; às vezes alguns desentendimentos, mas nada sério.

A casa do Bernardo é acolhedora e sua esposa, Beatriz, sabe conduzir nossa turma. Elegante, com um sorriso caloroso, calma, sempre solícita – nem percebemos seu ir e vir na sala. Ao fim dos encontros, os comentários são sempre os mesmos, elogios à Beatriz e à nossa leal amizade de anos.

Bernardo é zeloso, sabe agradar sua mulher, um apaixonado. Eles não têm filhos. Beatriz afirma que ele é a alegria e a razão da sua vida, para ela não cabem filhos nesta união. Soube há algum tempo por ele, que a única discordância dos dois são as visitas semanais de Beatriz à sua madrinha que mora fora da cidade. Ela alega não ter mais ninguém da família e precisa visitar sua madrinha que ajudou sua mãe a criá-la. Na maior parte das vezes costuma ficar ausente por dois dias, segunda e terça; mas na quarta, logo pela manhã, já está em casa para organizar nossas reuniões.

Na última quarta-feira, Bernardo me ligou dizendo que já eram onze horas da manhã e Beatriz ainda não havia chegado da visita.

— Heitor, ela não costuma atrasar. É sempre pontual. Sabe como fico. Liguei para a madrinha, mas não consegui encontrá-las.

Tentei acalmá-lo, talvez as duas tivessem saído e Beatriz se distraiu, mas foi em vão.

—Tenho certeza que alguma coisa aconteceu, ela avisaria. A angústia tomou conta do convicto amante quando começou a

anoitecer. Quase às sete da noite, Bernardo me ligou novamente bem alterado e aflito.

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—Beatriz ainda não chegou! Liguei para Walter, contei do acontecido. E ele, com sua engravatada

postura de não se envolver, aconselhou que devíamos esperar mais um pouco. Ao ligar para Carlos, caiu na caixa postal. Walter e eu combinamos de nos encontrarmos na casa do Bernardo;

afinal, era quarta-feira e nosso encontro semanal ainda estava de pé. Quando chegamos, Bernardo estava desesperado. Foi comovente, chorava e gaguejava, não conseguia se equilibrar. Na sua incerteza de ser amado, perdeu-se em conclusões e desconfianças. Tentamos acalmá-lo, mas foi em vão. Walter foi fumar seu charuto no terraço e eu, incomodado com a situação, fui ver a coleção de uísque de Bernardo.

O silêncio intimidava, mas logo foi interrompido por vozes e risadas vindos de fora. Às nove horas, de roupas e cabelos molhados, chegaram Carlos e Beatriz rindo da coincidência.

— Amor, não é fantástico? Nos encontramos na estação rodoviária com esta chuva, pegamos um táxi e viemos juntos.

Nesta quarta-feira ainda estou esperando a confirmação do nosso encontro.

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ÂNCORA DA ALMATeresinha Taumaturgo Policastro

Quatro senhores, acomodados em confortáveis poltronas num saguão de hotel, conversavam mantendo severa voz. Detive-me, e estiquei ouvidos.

— Nunca defendi o que vocês chamam de dor evolutiva. A valorização do martírio parece ser uma distorção da personalidade. É errando que se aprende, diz o ditado. Mas isso é uma forma de valorizar a ação e não o erro. Veja o caso de Bentinho; iriam mandá-lo contra a vontade para o seminário. Ele sofreu. Doeu muito. Foi uma luta para se livrar da sina; e não houve evolução nenhuma, isso só fez distorcer a sua personalidade – morreu casmurro até a alma.

— Não estou querendo desejar a dor. Mas o amigo há de concordar que ela é útil. Ela nos tira da zona de conforto. Sem o cutucão da necessidade, a humanidade se contentaria em deitar na areia e esperar o coco cair.

— Creio que os colegas estão vendo as coisas com olhos restritos. Falta a ampliação da consciência. Por ampliação da consciência quero dizer que o importante é a maneira como lidamos com a dor, e não a dor em si. Bentinho, quando se sentiu traído, ficou míope, não soube lidar com a dor, por isso transformou-se em casmurro. No entanto, conheço muitos exemplos de pessoas que, diante do sofrimento, evoluíram e ajudaram outros a evoluir. Quantas ONGs não tiveram essa origem, pais lutando por crianças com síndromes, AACD, a Fundação Dorina Nowill, e muitas outras.

— Você está dizendo que tudo é uma questão de alma? Existem almas fortes e almas fracas?

— Chamo isso de âncora da alma.— A palavra é bonita, mas diz o velho ditado: pau que nasce torto…

Rubião, o famoso de: ao vencedor as batatas, desperdiçou toda a herança de Quincas Borba e meteu-se com mulher do alheio. Na literatura machadiana

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sobrevivem os mais adaptados, leia-se: habilidosos nos melindres da vida. Se há alguma coisa que ancora a alma é a conveniência. Evolução, às favas!

— É por isso que o mundo está assim, meus amigos. Cada um só olha o seu. As virtudes são minhas, os defeitos são seus. Precisamos fechar esse ciclo sombrio, retratado por Machado, que domina mentes e corações. Não deve ser a conveniência social a moldar o homem; mas, sim, os exemplos dos homens que têm a alma fortemente ancorada a criar uma sociedade mais flexível. Flexibilidade, essa é a palavra. Precisamos ter fé que o momento para se começar isso é agora, e o caminho é o do entendimento, para termos uma sociedade mais justa, tolerante com as diferenças e, acima de tudo, mais humana.

Nesse correr da argumentação, quem falava notou minha presença. Fez-se silêncio geral, e pouco depois os quatro me mediam. A minha curiosidade tornou o ambiente pesado. Se me fosse dada a faculdade de ler as mentes pelos olhares, diria que naquelas quatro mentes só existia um pensamento – Quem é esse bisbilhoteiro aí parado em vez de carregar as malas? O RH não explicou para ele que é falta de respeito ficar ouvindo conversa de hóspede? Fingi arrumar uma linha solta no botão dourado da farda e saí de manso olhando para os lados.

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FASCÍNIOHeloísa de Queiroz Telles Arrobas Martins

Ernesto aprumou-se na cadeira para ouvir o que o respeitável especialista tinha a dizer. Impaciente, olhar contrariado, não imaginava o que poderia falar que não soubesse. Aquele parecer era realmente desnecessário, mas Clara lhe pedira e ele certamente faria tudo por ela.

O caro leitor deve estar curioso e perdido, então sigamos juntos um verdadeiro fio de Ariadne para desemaranhar esse nó. Profissional competente, filho de renomado advogado dono de grande escritório, Ernesto levava seu corpo atlético em viagens pelo mundo, frequentava altas rodas, era assediado pelas moças, tudo isso no vigor de seus vinte e oito anos. Ouçamos o relato que nos dá.

A primeira vez que a vi senti os olhos quererem saltar das órbitas, uma agitação se apoderou de mim. Os longos cabelos negros escorriam em ondas pelos ombros que se curvavam para dentro a cada nova manchete. O movimento, enérgico e ao mesmo tempo doce, deu-me arrepios, como se um frêmito de prazer percorresse o corpo dela. Braços levemente torneados conduziam à cintura fina, quadris arredondados e ventre quase côncavo. A bermuda agarrada moldava-lhe as coxas firmes sobre pernas estonteantes. O jogo de vôlei estendia-se na quinta partida, cada jogada erguia-lhe o busto provocador um pouco mais alto e eu ficava progressivamente mais ofegante. Amanda venceu a partida, jogou a cabeça para trás, pescoço e colo desnudos pareciam ali para que eu deles me apoderasse. Fascinado por instantes por aquela Medusa, consegui aproximar-me e ser apresentado.

— Pratica algum esporte, Ernesto? — Jogava futebol no colégio e na faculdade, mas recentemente passei a me

interessar pelo vôlei... vejo que joga muito bem, presumo que pratique há anos. — Desde os doze...

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Então ela riu e cravou os olhou nos meus. Mais não foi preciso. Começamos a sair, jantares românticos, fins de semana na praia, sub tegmine fagi, cada vez mais tempo juntos. Amanda exercia um encanto irresistível sobre mim. Não tínhamos amigos em comum, mas achei que ela se entrosava bem na minha roda. Na verdade, depois que começamos o namoro as saídas com eles rarearam. Teriam percebido minha paixão e se afastado para nos deixar à vontade? De qualquer maneira, Amanda parecia radiante, eu a cumulava de presentes que foram se tornando cada vez mais caros e extravagantes. Minha situação financeira e profissional era mais que sólida, podia dar-me ao luxo de mimá-la e assim o fiz – ela era enfática nos agradecimentos e generosa nas carícias que me enredavam mais e mais.

Estando uma tarde no clube encontrei Eugênia e Alberto Franco, ele meu colega da infância à faculdade. Sentamos para um café. Ao longo da conversa cheia de recordações Eugênia mencionou, casualmente, que, meses atrás, Amanda lhe propusera uma tarde no shopping, pouco depois de terem sido apresentadas. A princípio surpresa com o convite porque não tinham nenhuma intimidade, Eugênia não quis ser indelicada com a possível futura namorada do amigo e aceitou o programa. Ficara impressionada com a quantidade das compras da nova conhecida, que na conversa sempre encaixava alguma pergunta sobre mim. Achou que ela estava muito interessada, o que se confirmou com o início do namoro, que, agora, ficava cada vez mais firme.

Se pudesse Ernesto conceber qualquer restrição à conduta da amada, veria nesse depoimento vários motivos para indagações e dúvidas, mas seu amor era ingênuo e puro. Sentiu-se lisonjeado, aquela revelação teve o efeito de consolidar seu afeto por Amanda. Cada vez mais ela lhe parecia viva, esperta, decidida; tinha sempre as respostas prontas, todos os passos planejados, antecipava os desejos dele e os realizava. O que mais podia querer?

Voltou para casa pensando no futuro. Só tinha olhos para Amanda. Iria contar aos pais a intenção de se casar. Sabia que tinham ficado desapontados quando terminara o noivado com Ângela, sobrinha de um dos sócios na banca advocatícia, e que já era como uma filha para eles. Mas tinha certeza de que, com a convivência, agora aceitariam Amanda. Ela se mostrava sempre gentil e atenciosa, via-se que gostava de estar no meio da família, esforçava-se por conquistar sua única irmã e agradar a todos os seus parentes e colegas de trabalho.

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— Onde é que você está com a cabeça? No ambiente formal do escritório, perto do saguão de entrada do luxuoso sobrado, a reação do pai o deixou desconcertado. E sucumbiu quando sua mãe deu razão ao marido. Opiniões convictas e irredutíveis geraram consequências nefastas e duradouras. Sua mãe, deprimida, não conseguiu cuidar do marido sozinha após o severo enfarte e demorada recuperação. Vários meses se passaram, sem abalo nas certezas de lado a lado.

A serenidade de Amanda – ou sangue-frio, conforme o ponto de vista – impressionou nosso rapaz e lhe selou a vontade. Era um fascínio que o subjugava, fascínio paradoxal porque acompanhado de culpa, pois sabia da reprovação e desgosto dos pais, mas fascínio que o arrastava e do qual não conseguia fugir. Os preparativos foram rápidos. Como os pais de Amanda eram falecidos, Ernesto deu-lhe carta branca para realizar o casamento de seus sonhos. Ela não se fez de rogada.

O primeiro ano foi de lua de mel. Continuavam muito unidos, o trabalho dos dois progredia; após o rompimento velado, os pais dele resignados, os amigos também. Perto do segundo aniversário de casamento Ernesto precisou ir a outra cidade a negócios por alguns dias, mas compensou a ausência com uma viagem a Paris na grande data. E comemoraram as bodas de algodão na cidade luz, com muito enlevo, champanhe e música.

Decorrido um par de meses da dispendiosa estada em Paris, Ernesto recebeu a melhor recompensa: Amanda lhe daria um filho! Foi uma ampliação daquele deslumbramento, curtiu cada minuto, cada semana, cada mês daquela barriga que crescia e lhe entregaria um herdeiro, para ser cuidado, afagado, amado. O bebê chegou e foi um menino. Nada faltava para que sua felicidade fosse completa.

Decorreram alguns anos, ao longo dos quais os ventos sopraram em direção oposta. Amanda abandonara a carreira, tornara-se cada vez mais egoísta, gananciosa e, por mais que Ernesto fizesse, nunca estava contente. O divórcio foi inevitável, para gáudio dos pais e amigos do rapaz que, constrangido e triste, admitia o quanto fora cego em relação à verdadeira natureza da esposa.

A vida correu, o tempo fechou a ferida. Ernesto conheceu Clara, prima de uma velha amiga. Tinham muitas experiências em comum, mesmos gostos e princípios. E uma nova trilha se abriu para o casal.

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Clara desejava ter filhos e Ernesto compartilhou essa vontade com esperança de renovação e alegria para todos. Seus pais, que acolheram a nora com entusiasmo, também vibrariam com a notícia. Mas o anseio custava a se concretizar. Clara consultou especialistas e nada de errado se descobriu. Após várias insistências, Ernesto resolveu fazer um check-up. Eis quando encontramos nosso rapaz a escutar os resultados de seus exames.

— Ah, sim, dr. Ernesto, pedi à minha secretária que o chamasse para conversarmos. Realizados todos os testes, pedi opinião a colegas com grande experiência para que não pairassem dúvidas sobre as conclusões. Sei que o assunto é de grande importância, fez bem em me procurar, quero lhe dar os resultados para que possa fazer o que for preciso.

— Agradeço muito sua dedicação e estou ansioso para saber como abreviar essa agonia e poder ser pai logo.

— Então é melhor que lhe diga de pronto: o senhor é estéril.

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O HOMEM QUE TINHA DINHEIRO DEMAISTania Melo Franco

... falto eu, e esta lacuna é tudo. Dom Casmurro

O navio não podia ancorar, disse o comandante; mas o homem não haveria de desistir de sua demanda: queria ver o elefante, ouvira dizer que o animal estava numa das quatrocentas ilhas do Parque Nacional de Anavilhanas, na Amazônia. Fez descer sua Skater 388 SS, a lancha mais veloz do mundo, e foram voar entre as ilhas do Rio Negro, em busca de pistas do surpreendente paquiderme que havia aparecido naquelas paragens.

Avistaram botos rosados, jacarés sonolentos, macacos aos montes dependurados nas árvores, mas o que se ouvia eram apenas os sons da floresta. Diziam os marinheiros: De nada vai adiantar abandonarmos a embarcação; souberam que um pica-pau confundiu com árvores as pernas do bicho, e ele está todo picado – principalmente as patas.

A noite negra foi descendo, e a água do rio, fluindo sob a embarcação, era mais negra ainda do que a noite. Tinham que voltar ao navio, preveniram os marinheiros, o perigo estava próximo; as águas borbulhando de piranhas, caso se chocasse contra qualquer tronco flutuante, escondido pela noite, poderia ser fatal, e seriam o jantar dos peixes e dos jacarés! Mesmo perante tais perigos, aquele homem rico não desistiu de seu capricho, estava convencido de que elefantes traziam boa sorte a quem os tocasse, estivessem eles aonde estivessem.

É bem sabido que na Índia os grandes animais são reverenciados, e de grande ajuda para os fracotes seres humanos – com sua força descomunal são utilizados para o trabalho. E assim foi que o homem rico demais seguiu para Deli, e de lá para Jaipur, com suas muralhas cor-de-rosa. Na fortaleza de Amber, sobre dóceis elefantes decorados seguiram um trajeto até o topo da montanha, de onde desfrutaram a vista magnífica da cidade, toda ela banhada em rosado esplendor. O homem, contudo, não se deixou deslumbrar, aquilo

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era coisa para turistas, ele pensou. Desejava maiores aventuras: deixar as cidades, gozar da proximidade e poder tocar em elefantes rústicos, observar como viviam, de que se alimentavam, como eram cuidados por seus donos.

— Vamos para o Chitwan National Park, no Nepal, ele ordenou. Foi-me dito que lá encontraremos elefantes gigantescos, e em suas florestas poderemos fazer um safári! Na manhã de sua chegada, o homem rico foi içado por guindaste para o topo de um elefante gigante. Uma vez instalado na poltroninha em cima do paquiderme de altura e largura desmesuradas, sentiu-se afinal um aventureiro desbravador. Um guia o acompanhava, sobre outro elefante. Partiram rumo à floresta. Dirigidos por seu próprio instinto, naquela jornada em que deveriam ser prudentes e evitar o perigo, ou enfrentá-lo, os animais seguiam em frente.

Súbito, eis que o elefante do homem muito rico empacou, ao pressentir a proximidade de um casal de rinocerontes brancos e seu filhote recém-nascido, prontos para atacar caso se aproximassem da cria. Aqueles animais de aparência pré-histórica, a um só tempo arredios e atrevidos, ao se moverem, moviam também as placas de sua carapaça de pelagem branca, lembrando uma colcha de retalhos justapostos. A mãe, raivosa e protetora, rascava o chão, pronta para atacá-los.

Caminhando em sua direção, aqueles bichos enormes e pesados eram assustadores até mesmo para um elefante-rei. Perante tal desafio, toda sua coragem foi deixada para trás; prudente, o paquiderme, recuando em marcha a ré, afinal fez meia-volta e retornou ao campo, onde tudo era visível, seguro e protegido, sendo apaziguado de tão grande susto com flores secas e folhas de maconha, e alimentado com cachos e cachos de bananas. À noite, à beira do fogo, a equipe da pousada onde estavam alojados contou casos e mais casos de estragos causados nas expedições e, mais ainda, sobre os elefantes do deserto da Namíbia, e do Mali.

— Vamos seguir viagem, disse o homem rico. Amanhã estaremos em Haub River, em busca dos elefantes do deserto. A Namíbia nos aguarda!

Deserto, aridez, paquidermes migrantes à procura de água. Seriam mesmo elefantes? Os guias locais afirmavam que não, tratava-se de animais pré-históricos, que apenas ali poderiam ser encontrados. Sua aparência, porém, seria a de elefantes, com as orelhas menores e cor pálida, quase branca,

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resultante do excesso de sol e de luz; migram sem parar, informaram. E lá se foi o safári em jipes, atrás daquele grupo de pretensos elefantes.

Bastaram um dia ou dois para que a experiência se revelasse tediosa. Calor escaldante, luminosidade ofuscante, restos de esqueletos espalhados pela areia, nas dunas. E até mesmo vestígios de naufrágios, pois um dia aquela terra fora mar. Mais uma vez decidiram partir, desta vez para os Emirados Árabes – seguindo a sugestão dos guias – onde elefantes, sinais externos da riqueza dos sheiks, são cuidados a pão-de-ló, e participam nas cerimônias de casamento, procissões, festas populares.

Luxo e riqueza fariam bem, após os dias no deserto, na modesta rusticidade dos acampamentos. O voo reconfortante em primeira classe para Dubai, e de lá para Abu Dhabi, onde a riqueza explode por todos os cantos. Calçadas de mármore, fontes jorrando água em cada esquina, canteiros irrigados com água dessalinizada por toda a cidade, flores em profusão. Palmeiras compondo aleias, e o palácio do sheik, encravado em uma baía onde os portugueses fincaram pé nos tempos recuados dos descobrimentos, erguendo fortes em local protegido nas duas extremidades da baía, de onde avistava-se à distância quem quer que se aproximasse.

Riqueza atrai riqueza, e a notícia da chegada do homem rico demais despertou a curiosidade do sheik, que o convidou para jantar em seu palácio. E assim foi que, no decorrer da cerimônia, o homem rico conheceu as quatro jovens esposas de seu anfitrião, adornadas e veladas por seda e ouro. Quanta curiosidade para quem pode ter tudo o que quer!

O convidado fez-se encantador, contou histórias que deliciaram os ouvidos do anfitrião; e o sheik sentiu enorme prazer na companhia daquele homem culto, assim como ele despreocupado com bens materiais. Novamente convidado, após uma semana o homem que tinha dinheiro demais já era hóspede do palácio.

Ao longo daquele convívio apaixonara-se perdidamente pela terceira esposa do sheik. Pequena, frágil, delicada, a jovem era também arrojada; em breve momento em que se viram sós, num gesto de coragem ela despira-se do véu. Era a oportunidade que ele esperava. A partir daí, incapazes de conter o ardor da paixão, os apaixonados valiam-se de todas as artimanhas para se encontrarem. Os olhares trocados, o roçar de mãos acabaram por chamar

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a atenção do sheik, homem experiente e cioso de seus pertences, de suas propriedades.

Uma armadilha foi preparada. Cego da razão, o sheik surpreendeu seu hóspede nos aposentos da terceira esposa. Abuso, desrespeito, traição! Não há julgamento. Para tal crime não há perdão, a pena é a de morte. E aquele homem, isolado numa jaula onde toda a sua fortuna de nada valia, e à mercê de um sheik atraiçoado, chorava aguardando a sua hora. O aviso foi dado ao povo, a execução seria na manhã seguinte.

Convocada para assistir ao espetáculo, na hora marcada a multidão delira na grande praça. Ao som de música e rufar de tambores, eis que surge um elefante – ironias do destino – que desce lentamente a rampa do palácio, arrastando um homem atado pelos pés. Ali terminava a sua busca.

O aparato da descida é suntuoso. Um séquito de guardas os acompanha, e na grande praça a sentença vai ser cumprida. A um sinal do treinador, o elefante ergue-se sobre as patas traseiras, e aguarda novo comando. Os tambores ressoam mais alto, e o gigante desce suas patas dianteiras sobre o corpo deitado do homem que tinha dinheiro demais.

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PENÉLOPEGisella Prado

Todo dia, tudo sempre igual. Pedro Vieira da Costa e Leite é um homem de hábitos. Engenheiro, trabalha em multinacional, carro com um par de anos, apartamento confortável de dois dormitórios, dos antigos. Trajes sóbrios, o terno-e-gravata do dia a dia, o jeans-e-camisa-polo informal. Cumprimenta porteiro, abre porta do elevador para as senhoras, simpático, sempre um sorriso, um dedinho de prosa. Visita a mãe aos domingos.

A peça que não encaixa no quadro é a namorada. Ninguém a conhece mas sabe-se que é negócio sério, de muitos anos. Ele a descreve como linda, loira, cinturinha de vespa, a cor favorita é rosa, vaidosa, viaja pelo mundo em corridas malucas, difícil casarem as agendas. Chama-se Penélope.

Pedro vem com um mimo para dar a ela, um bouquê de flores, um perfume, uma caixa de bombom daquelas bregas, em forma de coração, um par de botas brancas. Os moradores se animam, é hoje que vamos conhecer a moça por quem nosso rapaz tanto suspira.

Ela nunca aparece. E ele cada vez mais enamorado, não tem outro assunto.Parece que foi Dona Laurinda do 84 quem primeiro entendeu. Penélope

não existe, é alguma desilusão antiga de Pedro. Alberto, psicanalista do 32, consulta compêndios e o Google, dá seu vaticínio, pela maneira de agir e falar, trata-se de trauma insuperável, abalou o senso de realidade do engenheiro. Amâncio, dono de bar, conhecedor de pessoas, balança a cabeça, endossa.

Com piedade, os vizinhos começam a tratá-lo com mais atenção, dão-lhe tapinhas nas costas.

O tempo passa, essa história também cai na rotina, todos se acostumam com o pobre maluco do Pedro e sua namorada de fantasia.

A faxineira lhe conta o que falam pelas costas. Sente-se mortificado, traído, bobo. Pensa em pedir explicações aos vizinhos. Retrai-se, se perguntam pela namorada, desconversa. Não quer mais compartilhar seu tesouro.

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Uma onda de alívio percorre o condomínio. Parece que o Pedro caiu na real, deixou de falar na mulher. Alberto é convocado a analisar, suspira entre termos técnicos, com certeza a terapia está ajudando, vejam como mudou sua postura. Bom sinal. Amâncio endossa. Ainda olham com piedade, um rapaz sofrido, mas agora normal, no caminho certo. O tempo passa.

Um dia, Pedro sai com duas enormes malas, camisa florida e calça caqui. Está de mudança, depois vem retirar os móveis. Espera por mais de uma hora.

Do carro rosa conversível, ostentando uma sombrinha, Penélope sorri, dando tchauzinho a todos.

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MEMÓRIAS PÓSTUMAS ÀS AVESSASMaria Luíza Galli

Não chorem por mim! A história que vou lhes contar é a de minha vida de trovador, agora debaixo dos sete palmos, já vencido pelas peripécias da Morte. Em meu epitáfio apenas consta:

AQUI JAZ QUINZINHO, O TROVADORMORTO

AOS TRINTA E TRÊS ANOS DE IDADEORAI POR ELE!

Nasci Quincas do Anjos, mais conhecido como Quinzinho, nos arredores de Salvador, Bahia, sob o signo de Aries, com ascendente em Leão. Falo o tupi-guarani, a língua dos reis Orixás, e também, a língua portuguesa. Sou nativo, sou índio curumim, aculturado e invejado. Sou o sol e a lua, o dia e a noite. No Candomblé, sou filho de Mãe Goyá, aquela que enganou a Morte, disfarçada na pele de um búfalo e com ela trago a saga de minha existência. Sou entidade e também diversidade.

Sempre admirei o grande mestre Machado de Assis, em sua ironia me inspirei e debrucei em meus versos sobre seu pessimismo. Embebi-me das palavras póstumas de Brás Cubas quando filosofa: E, aliás, gosto dos epitáfios;

eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo

que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra

que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus

mortos na vala comum: parece-lhes que a podridão anônima os alcança a

eles mesmos.Fui um menino para lá de travesso e gostava, desde cedo, de prosear e

recitar as poesias de cordel que eu mesmo compunha. Muitas vezes, nas

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas.

Memórias Póstumas de Brás Cubas

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ruas, aceitava um desafio para narrar façanhas em disfarces com o intuito de enganar o Anjo Negro da Foice. Assim, cantando minhas estrofes me pus a desafiar nada mais, nada menos, que a minha própria Morte. Ela me perseguia, franzino que eu era, insistente e continuamente. Como gostava de trovar e brincar com as palavras, despertei nela uma certa inveja, porque com certeza, não conseguia fazer o mesmo. Sempre que podia, queria interferir na minha vida, para me levar embora.

Eh, como era astuciosa a diaba da Morte!Atazanava-me o tempo todo, perturbava-me tanto que eu não conseguia

nem dormir, e sem dormir ela me levaria em seus braços. Ultimamente, não estava conseguindo nem compor minhas trovas, que era o que, neste mundo, eu mais sabia e gostava de fazer. Ela queria me envolver em suas artimanhas, para que eu perdesse a capacidade de raciocínio. Mas, como também eu era astuto, estando sob o manto protetor de minha Entidade, desafiei a Mãe Natureza e encarnei no corpo de um burrico, conseguindo, assim, enganar aquele Anjo Negro que, por diversas vezes, passou ao largo. Mãe Goyá havia me ensinado desde tenra idade:

— Se não há solução, enfrente o Monstro Aterrador e o ludibrie. Tenha o corpo fechado!

Sempre fui em busca de proteção para me salvar, persistente, contudo, ao mesmo tempo vulnerável, como todos os humanos. Certo dia desfolhei um malmequer que me disse que meu destino tinha se cumprido. Minha missão na terra havia terminado e Mãe Goyá já não podia fazer mais nada.

Sem misericórdia e sem piedade, a Morte chegou, implacável, inexorável.

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SÓ FICARAM AS CARTASAngélica Royo

Cartas fazem vivenciar o sentimento de quem as escreveu. Ao serem relidas se tornam vivas e presentes, como num passe de mágica.

Personalidades famosas trocavam correspondências que se tornaram fundamentais para desvendar o caráter de seus autores tais como:

Van Gogh e Théo, Richard Wagner e Mathilde Wasendok, Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, Napoleão Bonaparte e Josephina, Rainha Vitória e Lord Melbough, Pero Vaz de Caminha a D. Manuel I, Eça de Queirós e Emília de Rezende, Machado de Assis e Carolina de Novais.

Guardei algumas cartas que recebi há 25 anos. Semanas atrás, as redescobri.O que me fez guardá-las durante tanto tempo, não saberia dizer. Talvez,

manter presente a sensação de ainda estar vivendo no estrangeiro. De repente senti vontade de devolvê-las pessoalmente aos respectivos remetentes. A ideia excitou minha imaginação. Qual seria a reação deles? Ficariam surpresos? Agradeceriam? Afinal, iriam se defrontar com sua maneira de ser e pensar de 25 anos atrás. Seria isso bom ou ruim? Evolução ou retrocesso?

Pensando em cartas do passado lembro-me de histórias, e histórias me levam a Machado de Assis.

Será que Machado teria alguma curiosidade em saber como seus personagens se tornariam alguns anos depois? Poderiam as cartas entre ele e suas personagens, se escritas, revelar mais do caráter do mestre do que sabemos até hoje?

A CARTOMANTE

Após todos esses anos, Rita diria estar muito bem casada com Vilela.Continuava misteriosa, insinuava nas entrelinhas interesse por outro homem, sem mencionar de onde o conhecia nem quem era. Outra cartomante havia previsto um amor pleno para seu futuro próximo.

A carta como diálogo, deve ser abundante em traços de caráter. Podemos dizer que todos revelam a própria alma em suas cartas.

Demétrio, séc. I a.C. e I d.C.

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Depois de anos ela continua em busca do tempo perdido. Apaixona-se, descarta, torna a se apaixonar. Vilela cada vez mais enamorado, não vê defeitos na esposa, só qualidades, a considera uma excelente mãe. Viajam duas vezes ao ano para fugir da rotina que ela tanto reclama em viver. Um santo homem esse marido.

Mente mais do que dá pelo amor de Deus.

UMA CARTACelestina esperava encontrar seu amor. Um bilhete em papel bordado fora

colocado em sua cesta de costura. Não tinha nome nem sobrenome. Exaltava de sua beleza, olhos, lábios, cabelos e mãos. Qual não foi sua decepção ao saber que a carta era para sua irmã Titina e não para ela. Após todos esses anos, Celestina não se casou, nem pensa no assunto, tem vários pretendentes, depois de ganhar muito dinheiro com prêt-à-porter em sua rede de lojas.

O dinheiro não traz felicidade para quem não sabe o que fazer com ele.

AS CINCO MULHERESMarcelina, a menina moça apaixonada pelo cunhado Júlio, afastou a

morte de sua cabeceira. Depois de ter tido um affair com ele, constatou que

sua predileção não passava de fantasia juvenil. Esqueceram o ocorrido e hoje

convivem bem em família, cada um com a sua.

O primeiro pecado vence a vergonha, o segundo...

Entre Antônia e Oliveira, o que parecia uma só alma em dois corpos, dividiu-se. A paixão ardente transformou-se. E Machado confirmou o que já sabia no passado, de que a amizade continua sendo o melhor pretexto, até hoje inventado, para que um indivíduo pretenda tomar parte da felicidade do outro.

O acaso é um Deus e o diabo ao mesmo tempo.Carolina, viúva de Mendonça, tem hoje meios próprios para lisonjear seus

caprichos, herdou uma soma razoável do falecido. Fernando, seu primeiro amor, esvaiu-se junto às memórias.

Ninguém é insubstituível.

Carlota permaneceu viva e vingou-se da amiga traidora tornando-se amante do próprio marido José Durval, atual de Hortência. Mais uma vez confirmado o dito popular.

Ninguém as faz que as não pague.

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DOM CASMURROCapitu morena de fluido misterioso e enérgico, ambiciosa, inteligente, de

personalidade forte e marcante, finalmente tornou-se loira. Os cabelos brancos insistem em lhe nascer na fronte. Curiosa e sabida, foi ela quem levou o casamento adiante apesar da dúvida de Bentinho que a atormentou ao longo da vida.

Bentinho a expôs perante todos, pela insegurança e suspeita de adultério.Ezequiel, seu filho, menino lindo inteligente, retrospectivo, igualzinho ao pai em caráter.

Calar é melhor que mal falar.Machado não consegue falar sobre Capitu, seu amor por ela transcende

esferas. Criou-a forte para passar na vida tantos dissabores e se recuperar. Cair e levantar-se é só para os fortes.

Deus não lhe dá um fardo maior do que pode carregar.

Machado guardou algumas cartas, muitas de Carolina e outras de Capitu, Celestina, Rita, Catarina, Hortência, Marcelina, Antônia e Carlota, para reler e queimá-las um dia.

Não há descanso eterno nem mesmo o das sepulturas, diria o Bruxo do Cosme Velho.

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A PRAÇAMaria Angela de Azevedo Antunes

Com a chegada do sol, a bela praça retorna à rotina em meio aos improvisos da vida. Flamboyants carregados de flores vermelho-alaranjadas tingem o azul do céu e o verde da grama. Exuberâncias da natureza. Crianças tagarelas ensaiam a vida adulta.

Num canto da praça, um casal de namorados troca olhares e confidências, alheios ao movimento dos cachorros que correm de um lado a outro, quase esbarrando em seus pés. No pequeno lago, peixes e patos nadam silenciosos, riscando a calma das águas.

O menino da bicicleta, com a cesta cheia de encomendas, não resiste às curvas do caminho, e entra na praça a cada entrega. – Ah! se o seu Alfredo souber disso. Na certa, colocaria o rapazinho para correr.

Dona Marta, tem o jardim mais bonito da praça. Rosas de todas as cores. Elegante, com o topete impecável, enche o peito e agradece as pessoas que admiram tamanha maravilha. Conselhos de conduta e pregações são dados a todos. Apoia o prefeito incondicionalmente. Interessante é que foi vista com o Seu Rodolfo, o outro candidato falando a mesma coisa.

Do outro lado da praça, o Prefeito construiu o maior sobrado. Pintou de amarelo, para trazer dinheiro e prosperidade. Janelas brancas, terraços rodeando a casa, uma pérgola de primaveras e um enorme jardim. Ao fundo, a garagem com o melhor carro da rua. Cabelos grisalhos, barba impecável, aparada diariamente com navalha pelo barbeiro. Terno de linho branco bem talhado, o Patek Philipe pendurado por grossa corrente de ouro para ser sacado do bolso do colete, conferindo as horas sempre que encontra alguém. A lavanda, trazida de Paris, finaliza a toilette. Aí sim, despede-se rapidamente da esposa e chega ao portão. Fica lá por um tempo e cumprimenta os que passam.

— Bom dia, Senhor Prefeito!

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— Bom dia!Essa era uma hora propícia para ver e ser visto.As pessoas, conhecedoras de sua vaidade, aproveitam para rasgar elogios:— Quanta elegância, Senhor Prefeito.— Bonito chapéu.— Essa cor lhe cai muito bem.Sempre muito galanteador, flerta cheio de mesuras e recebe as raparigas

na Prefeitura. Todos fecham os olhos para este costume. Generoso como ninguém, consegue calar as testemunhas com belíssimos regalos. Mas sua esposa, Dona Berenice, mulher de rara beleza, não pode sair de casa.

— Mulher minha não fica à toa por aí, diz o Prefeito.Percival, rico fazendeiro e cafeicultor, aliado político e amigo particular do

Prefeito, é proprietário da casa vizinha e vem à cidade de quando em quando a negócios. Nessas ocasiões, faz questão de cumprimentar o Prefeito, tecer um elogio, combinar um encontro para mais tarde no gabinete, e aguardar sua saída.

Os negócios de Percival na cidade, porém, não se limitam a sacas de café, bois na casa dos milhares e contatos políticos; servem também, para que ele pule a baixa mureta que separa as duas casas ao fundo, certificado que está da ausência do dono, e da presença de Dona Berenice. Ficam os dois, juntos, por longo tempo. Depois, Percival retorna pela mesma mureta, com o mesmo cuidado com que entrou. Dona Berenice não reclama mais da solidão.

No centro da praça o pequeno coreto abriga sabiás e tico-ticos, que fazem coro com o concerto mensal, evento principal da cidade. O pianista resolveu se aventurar na pequena cidade do interior, que o recebeu de braços abertos. Pessoas dos vilarejos chegam para ouvir a música clássica de Schubert, Chopin, Mozart entre marchinhas sertanejas da banda da cidade. Músico de pouca renda, dizem que troca aulas pelo aluguel do quarto dos fundos da casa de Dona Hermenegilda, a beata solteirona. É visível a transformação dela, de rabugenta com a molecada e namorados, tornou-se meiga e solícita desde que começou a ter as aulas de piano. Continua a ajudar o Vigário, que faz vistas grossas à situação, afinal, Dona Hermenegilda é das maiores contribuintes da paróquia. Aumentou a frequência às missas como que para excomungar o demônio ou quem sabe amenizar a consciência.

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Sentada no banco da Praça, observando as pessoas, reflito sobre a vida.Conveniências sociais... ditam o comportamento das pessoas?Entre a loucura e a sanidade há o viver. Vai entender oscilação do caráter humano...

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O PARASITA CORRUPTOCarlos de Faro Passos

É uma longa e curiosa família, a dos parasitas sociais.O Parasita

Encontrei recentemente o escritor Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Ele queria conhecer a atual crise brasileira.

— Posso chamá-lo de Machado, caro Acadêmico fundador da ABL? perguntei.

— Com certeza. Peço informar-me sobre a situação político-econômica do nosso país.

— Com prazer. Para começar, seria muito bom fazermos uma análise comparativa da atualidade com o século XIX e início do XX, tão bem retratados na sua obra. Por exemplo, poderia falar sobre os personagens mencionados em sua crônica O Parasita? E também sobre a corrupção citada no Conto de

Escola, e em outros textos famosos?— Certamente. Você conhece certa erva, que desdenha a terra para

enroscar-se, identificar-se com as altas árvores? É a parasita. Ora, a

sociedade, que tem mais de uma afinidade com as florestas, não podia deixar

de ter em si uma porção, ainda que pequena, de parasitas. Há, como disse,

diferentes espécies de parasitas. O mais vulgar e o mais conhecido é o da

mesa de jantar; mas há-os também em literatura, em política e na igreja. Em

política, o parasita galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma

opinião ao grado das circunstâncias, deixando-a ao paladar das situações,

como uma verdadeira maromba de arlequim. Entra no parlamento com a

fronte levantada, votado pela fraude, e escolhido pelo escândalo. Exíguo

de luz intelectual, – toma lá o seu acento e trata de palpar para apoiar as

maiorias. Alguns sobem assim; e todos os povos têm sentido mais ou menos o

peso do domínio desses boêmios de ontem [O Parasita]. E no Brasil de hoje, como é?

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—Temos atualmente vários políticos, que além de parasitas são corruptos. Há duas ou três décadas foi criado o partido político TP, com muitos parasitas. As más-línguas e a oposição afirmam que a sigla partidária significa: Todos Parasitas. É exagero, pois alguns não se incluem na classificação. Muitos atuam para obter sinecuras governamentais e partidárias, pagam dízimos salariais, depois vão à praia, ao lazer ou sindicato. Há também péssima gestão governamental e bastante corrupção através de conluios público-privados, que saqueiam recursos e quebram empresas estatais como a nossa companhia de petróleo, a PauperBras. A justiça brasileira tem atuado com seriedade e firmeza colocando políticos, dirigentes do TP e importantes empresários na cadeia. Havia corrupção no seu tempo, Machado? Fale do tipo indicado no Conto de Escola, por favor.

—Eram três meninos colegas de escola na Rua da Costa. Pilar falou da oferta de propina de Raimundo, filho do professor – garoto mole, aplicado,

inteligência tarda – por troca de serviços; ele daria a moeda, eu lhe explicaria

um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com

medo do pai. Pilar não queria recebê-la, e custava-lhe recusá-la. Olhou para

o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do

nariz… Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? Relançou os

olhos pela sala, e deu com os do Curvelo em nós, com um riso que lhe pareceu

mau; disse ao Raimundo que esperasse. Depois falou: Dê cá… Lembrava-se

do contrato feito. Ensinou-lhe o que era, disfarçando muito. Olhou para o

Curvelo e estremeceu, estava ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava

agora pior. Venha cá! Bradou o mestre. Dê cá a moeda que este seu colega

lhe deu, clamou. Pilar concluiu: Raimundo e Curvelo me deram o primeiro

conhecimento, um da corrupção, outro da delação. O ano era de 1840. Como é agora no Brasil?

— Do ponto de vista moral, pior do que no século XIX, excluindo a nefasta escravidão. A corrupção e a delação estão enraizadas na política e na vida brasileiras. Os governantes usam as empresas estatais para enriquecerem e comprarem apoio no congresso nacional. Muitos fundadores e líderes do TP estão sendo processados, ou na cadeia. Gula, líder do grupo, diz que não sabe de nada, apesar de contestado na justiça e na imprensa local e internacional. Outros partidos também adotam a mesma prática, como o MDBP, que os

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opositores maldosos denominam de Me Dei Bem na Política; seus quadros estão sendo investigados, muito lentamente, pelo Supremo Tribunal Federal. Hoje, Machado, os parlamentares, governadores, prefeitos, ministros, secretários de governo e outros, possuem foro privilegiado, que os livra da justiça comum. O Supremo não possui estrutura suficiente para julgar com celeridade os políticos investigados. Por outro lado, a justiça comum age com eficácia através do programa Lava-rápido, julgando e condenando profissionais liberais, grandes empresários e outros. Mas os políticos, privilegiados com foro especial, estão fora de alcance. Machado, como você conseguiu obter educação e cultura excepcionais levando-se em conta sua infância e juventude tão modestas, sendo neto de escravos, filho de mulato com lavadeira? Você tinha bolsa família?

— Com muita dedicação e trabalho, sempre constante e sério. Comecei

os estudos elementares numa escola pública, como muitos jovens no Brasil

de hoje, onde descobri minha vocação literária. Meu pai achou prudente

contrariar meu desejo, empregou-me numa papelaria, para conhecer uma

atividade prática. Com sua morte, fui forçado a vender balas e doces feitos

por minha madrasta. Em 1856, batalhei para ingressar como aprendiz na

Tipografia Nacional, onde permaneci durante dois anos. O administrador,

vendo minha dedicação aos estudos durante as horas de folga, passou a me

amparar e apoiar. Nunca mais parei de estudar e trabalhar. O que é bolsa

família?

— O Brasil pode – e deve – oferecer programas para redução da miséria e da desigualdade sociais. Nos anos 90, o governador de Brasília criou a bolsa

escola para estudantes pobres que frequentassem, no mínimo, 75% das aulas. Era um correto estímulo temporário ao desenvolvimento educacional dos jovens; não era esmola. O governo federal manteve a proposta, criando outras bolsas como o vale-gás, bolsa alimentação e outras, como forma temporária de transferência de renda. Nos anos 2000, o governo do TP, com objetivos eleitoreiros e populistas, reuniu todas elas e criou a bolsa família, inicialmente de grande valia para a inclusão social dos menos favorecidos. Mal administrada, porém, com avaliação deficiente dos seus benefícios e beneficiários, tornou-se fonte de muito desperdício e corrupção. Virou esmola permanente, sem retorno. Precisa ser aperfeiçoada, como instrumento temporário de ascensão

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social, eliminando desperdícios, multiplicidade de doações para mesmos grupos sociais, e corrupção de agentes públicos que privilegiam familiares ou companheiros. Além da sua dedicação intelectual e profissional, você teve alguma vantagem por ser mestiço e neto de escravos, como cotas reservadas aos grupos minoritários, negros, índios e outros?

—De forma nenhuma; se não estudasse e trabalhasse com afinco não teria alcançado crescimento intelectual e social. As cotas podem eliminar o desafio da competição, formar adultos despreparados para os desafios da vida. E não deixam de ser uma forma de racismo às avessas, diminuindo as vagas dos estudantes que se dedicaram com afinco para ingressar nos cursos superiores. Quem sai perdendo é o Brasil, deixando de preparar a sua juventude para enfrentar os desafios nacionais e globais. Tenho dito: A vida sem luta é um

mar morto no centro do organismo universal. Por outro lado, sou favorável à educação básica gratuita, de boa qualidade, para todos os brasileiros, sem eliminar o ensino privado.

—Machado, vejo que temos tantos temas de interesse comum para analisarmos. Gostaria de debater vários assuntos citados na sua obra, como verbas públicas, impostos, organização governamental [A Sereníssima República], loucura [O Alienista], partidos políticos, racismo, regência e outros. Precisamos de muitos encontros como este, se possível. Mas há um aspecto da sua obra que me surpreendeu; seria você um conformista, em cima

do muro? pergunto com franqueza. Apesar de ter respostas prontas para muitas questões nacionais e internacionais, você escreveu: Extinguir o parasita não

é uma operação de dias, mas um trabalho de séculos. Os meios não os darei

aqui [O Parasita]. Você ainda ficaria calado no Brasil atual, Machado?

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CONVERSASRogério Matarazzo

Certamente não era um dia comum, e isso se confirmaria na aventura que viria a ter no começo da noite. Estava há semanas mergulhado num tresloucado oceano de fantasia e terror, e a busca da palavra certa consumia toda a sua energia na tradução daquela tragédia de Victor Hugo. A encomenda tinha vindo em boa hora mas agora sentia-se prisioneiro daquele estranho monstro marinho que a todos aterrorizava no enredo de Os Trabalhadores do Mar.

Não bastava decifrar a obra, pois a complexidade residia na postura e no temperamento do autor. E para entendê-lo era preciso conhecer os detalhes de seu cotidiano, investigar os escaninhos de sua mente a partir das poucas informações que tinha de suas atitudes. Para isso tinha que contar com o apoio das notícias que lhe chegavam da França por meio de algumas publicações e também por amigos intelectuais que lá viviam.

Dentre as notícias houve uma bem intrigante. Tinha a ver com o exílio de Victor Hugo na ilha de Jersey, que lá se refugiara com a família diante da ameaça de prisão pelo regime tirânico de Napoleão III. Vivendo dias difíceis de isolamento e frustração o escritor iniciara uma experiência espiritualista, que acabaria marcando algumas de suas últimas obras, baseadas em comunicações com os espíritos. Nessa fase ele teria tomado contato com o fenômeno das mesas giratórias, uma invenção americana que permitia que se conversasse com os mortos.

Joaquim Maria ficou entusiasmado com a descoberta e decidiu conhecer melhor a questão. Teve a seu favor o fato de que no Rio de Janeiro de sua época o espiritismo crescia rapidamente graças a um grupo de franceses, muitos deles exilados políticos do regime de Napoleão III. Chegou a conversar com alguns para saber que tipo de engrenagem movia tal fenômeno, mas nada melhor que uma experiência pessoal e era isso o que deveria acontecer naquela

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oportunidade, pois seguindo o conselho de um amigo jornalista iria participar de uma sessão espírita na casa de um notável do Império.

Nem mesmo a chuva fina tirou seu ânimo e protegido por sua sobrecasaca enfrentou o frio incomum para uma noite carioca. O tílburi seguiu para o Catete onde aconteceria a reunião. Entorpecido pelo lento trote dos cavalos deixou que sua mente o levasse para um mundo de fantasia, povoado por personagens que participaram de seus primeiros contos. Alegres, eles dançavam animadamente num ambiente etéreo, de cores suaves que se intercambiavam. Sentia-se confortável e feliz.

Um forte solavanco arrancou-o de seu sonho e o fez perceber que já chegara. Era um sólido casarão, com poucos adornos e uma generosa varanda. Foi recebido por um criado que o encaminhou até uma antessala onde estava o anfitrião Pedro de Araújo Lima, o Marquês de Olinda, acompanhado de mais quatro pessoas. Três homens e uma mulher, todos de meia idade.

Feitas as apresentações passaram logo à ação. Antes disso o Marquês puxou-o para o lado e explicou como funcionava a sessão. O médium, ou os médiuns colocavam as mãos levemente sobre uma pequena mesa redonda e, quando ela estava pronta levantava uma ou duas pernas, repicando no chão. Algumas vezes ela se movimentava sem tocar o chão, e o rumor das batidas parecia acontecer em outro lugar. A comunicação era muito demorada pois a perna da mesa tinha que bater o número de vezes correspondente ao lugar da letra no alfabeto. O ‘A’ vinha de uma batida, o ‘B’ de duas e assim por diante. Nem sempre era calmo e algumas vezes a mesa levitava, quase chegando ao teto. Ocasionalmente deslizava pelo chão ou tremia, com uma certa violência.

Naquela noite parecia tudo calmo, e não houve nenhuma comunicação durante quase meia hora. Até que uma forte batida quebrou o silêncio do recinto. A ela seguiram-se muitas outras, num tremendo frenesi que chegava às beiras da tagarelice. Ele não conseguia acompanhar o que estava sendo transmitido mas ficou preocupado ao perceber que todos olhavam para ele assim que a mesa interrompeu suas batidas.

O anfitrião quebrou o silêncio e informou-lhe que ali, naquele momento, estava um espírito que queria muito conversar com ele. A mulher, que era uma das pessoas que seguravam a mesa, inclusive informou-lhe quem era a entidade: tratava-se de um certo senhor, de nome Brás Cubas.

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A AUDIÊNCIADanielle Martins Cardoso

O ridículo é uma espécie de lastro da alma quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra espécie de carregamento.

Miss Dollar

Havia um caso de provocar comentários. O casal havia concordado em tudo, guarda, regime de visitas e até mesmo a partilha de bens não provocou querela. Mas para a questão pendente, advogados, conciliadores, assistentes sociais, não houve quem desse jeito. As razões da discórdia, ninguém ousava decifrar. Os argumentos de um eram tantos quantos os do outro. Ao juiz restou apelar para Salomão e colocar a mão na massa:

— Matilde, agende a audiência.— Mais uma, Excelência? — A derradeira. A justiça vai se realizar aqui, olhos crus, sem vendas. E

você vai ver que ponho fim nesse processo. — Sim, Meritíssimo. — E intime a tal Julieta. — Como? — Avise ao oficial, mande dar um jeito. Arraste, carregue. Traga nem que

seja sob vara.O juiz reinava na 3ª Vara de Família e Sucessões da Capital há mais de sete

anos. E na carreira, já seguiam mais de quinze. De modo que experiência não lhe faltava. Nem paciência. Lá se foram os tempos que necessitava bater com o martelo ou se alterar. Gritar? Gritos eram para crianças e bichos. Bastava mudar o tom de voz ou raspar a garganta para se fazer respeitar.

Era alto, muito. E magro. Magro dos ombros largos, e por conta disso não ousava vestir paletós claros ou negros. Vara-pau, ghost, defunto, talvez o bullying tenha deixado cicatriz. Optou pelo cinza urbano, com alguma variação para névoa, granito e como uma ardósia seguiu carreira inteira.

Pois Matilde cumpriu a determinacão judicial. Audiência agendada, mandados de intimação expedidos, até mesmo para Julieta, pomo da discórdia entre tão belo casal.

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Instaurada a audiência, Matilde observa os quase ex-cônjuges. Ele, de um tom leitoso de pele, cabelos lisos, brilhantes, rosto vincado de super-homem; ela, olhos azeitona, rapunzel no jeito de vestir e sorrir. Sentados, lados opostos, cada um com seu advogado, por ora sem lágrimas ou escândalos. E os patronos com o termo de acordo:

— Não há qualquer entrevero quanto às questões cruciais da separação, Excelência. Pensão alimentícia, guarda, visitas, partilha de bens, tudo bem combinado. Resta apenas um senão: Julieta.

O juiz, sem a toga, abandonada há tempos no fundo da repartição – maldita capa-preta saída das trevas – olha todos e pede que os advogados se calem.

— As partes, quero ouvir o casal.A quase ex-esposa olha para o juiz, pontuando seus argumentos. Os olhos

verde-mar infinito logo se transformam. Indício de tempestade. Colerizam, homem e mulher.

— Insensível!— Louca, desmiolada!O juiz bem entende o apego das mulheres com animais. E aqui é preciso

revelar que Julieta é uma cadelinha muito magra, mistura de galgo com qualquer outra coisa com pelos, clarinha, parecendo recém saída de episódio sarnento. Até então desconhecida, em seus (des)atributos físicos pelo juiz, mas muito desejada pelo casal. Pois se o magistrado já havia presumido caprichos – ou amores – femininos, não entende porque o homem mantém os mesmos caprichos e amores. Coisas do Fórum, causos do Fórum, se eu contar, ninguém põe fé.

Fala mal falado, pois sem alterar a voz tenta colocar limites na contenda, observando, com curiosidade o quase ex-esposo, que, nervoso, diz que a mulher, preguiçosa, certamente não levará Julieta para passear e dará a ela guloseimas inadequadas, constipando o animal, estragando seus dentes, aliás, o que já aconteceu, e o custo do veterinário, meu, sempre meu! Ela, na mesma toada, insensível, insensível, quase gritando.

Ela e suas lamúrias, ele e seus argumentos. Ninguém cede. — Senhores, não gosto de cães. Muito menos de cadelas. Menos ainda de

animal em apartamento. Mas não estou aqui para julgar o gosto dos outros. Vamos aos fatos. E proponho guarda compartilhada.

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Os advogados ponderam:— Já tentamos, Meritíssimo e sem sucesso. Argumentam que isso não

ajudará o animal, dois lares, ausência de rotina, aliás, consultaram renomado veterinário, pagaram pelo parecer, olhe aqui.

Um deles retira de uma pasta verde-musgo um papel. É o tal parecer e do tal renomado.

O juiz talvez tenha intuído o entrave. Sabe que não há como decidir, senão pelas vias de fato.

— Senhores, que entre Julieta. Ela irá escolher com quem ficará. O casal mostra-se apreensivo. O homem sabe que a mulher sempre seduziu

Julieta com biscoitos recheados. Isso causou mau hálito e os tártaros já denunciados. Ela se lembra do ex-marido com a cadela sob o edredon, fazendo-lhe cócegas, pode ser que Julieta resolvesse, ali, agradecer tais mimos. Pena não ter trazido um pacote de bolachas…

A cadela entra com uma criança. Encoleirada, olha para um lado, para outro, abana o rabo, tímida. Enrodilha aos pés do menino.

— Mas que menino é esse, Matilde? — O filho. Um menino. Até então não comentado, não disputado. O menino. Filho?

O juiz confere os autos e olha para o Promotor, que só agora parece disposto a intervir. Magrelinho, camisa colorida de time, cabelos espetados, olhos copiados da mãe, mas sem a cor de desvario. O nariz, talvez do pai. O resto, o resto dele mesmo, daquele menino.

A cadela permanece agarrada aos pés do garoto. Olhos piscantes, dela, dele. Desconjuntados, infeliz mistura de raças, pelos ralos, puberdade num, doença noutro, ou feiura mesmo. O juiz observa os dois, paradinhos, fotografia de lambe-lambe, parquinho de periferia, carrinho bate-bate, corcel negro, roda gigante com algodão doce, os gritos da criançada no gira-gira, os gritos dentro do carro, o pai atropelando um cachorro. Billy. O estalar dos ossos embaixo do pneu, o pai cuspindo pinga, a mãe estapeando. Billy. Igual folha seca embaixo do sapato, igual estalinho de festa junina. Não, Billy, sem devaneios, diz o magistrado, sem deixar que as palavras alcancem o pensar.

Franze a sobrancelha o garoto. Quer marejar, entre raivoso e triste. E não se mexe, olhando o juiz, que olha o menino e se volta para o casal:

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— A criança, com quem irá ficar? — Guarda compartilhada, Excelência, não há qualquer pendência… — Sim, sim, me responda, garoto: quer morar com quem?O menino faz cara de desentendido. — Diga, gosta de morar com papai ou mamãe? — Com a vó. Moro com minha vó. — Como? — Excelência, intervêm os dois mandatários. Os pais não tem muito tempo

e deixam o filho com a avó, quando necessário, mas a guarda é dos pais. — Certamente. Sua vó, está onde? — Lá fora, ela me trouxe.O juiz coça a cabeça. Quer perguntar ao menino quem lhe dá comida,

banho, o leva para escola. Quimeras.Volta-se para os pais, mais ainda para os olhos da mãe. Aquele verde-mar

infinito, agora água parada, daquelas perigosas para dengue ou aranhas. O pai, cabeça baixa, não encara o magistrado. Vamos ao menino:

— Preste atenção, garoto, que vamos fazer um jogo e eu dou as regras. Pisca, o menino. — Tem que seguir, igual regra de impedimento, pênalti, sabe?Assente com a cabeça. — Você vai sair de fininho, pé de gato, sem fazer barulho, devagar, bem

devagar, que é para Julieta não perceber. Pisca muito, olhos cheios. — Não, não vale chorar e fazer barulho. Vai de ré, devagar, disfarçado. Não se mexe. — Vamos, menino, deixe que o animal escolha com quem irá ficar. Obedece. Julieta permanece deitada, abanando o rabo e olhando os litigantes. Os

gracejos do ex-casal começam, cada um chamando a cria a sua maneira.

Até hoje o juiz se arrepende não ter filmado a cena. Inteira, começo e

fim. Porque quando perguntam, não sabe explicar aquela contenda. Por que queriam tanto a cadela? Uns fazem analogia à galinha de ovos de ouro, outros

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citam práticas sado-masoquistas com animais, outros alegam amor infinito aos pets. O juiz, já aposentado, prefere se lembrar o que sua memória fotografou: Alfredinho e Julieta, olhos piscantes, pelos ralos e arrepiados, encardidos e magricelas, ele, ela.

O menino já tinha saído da sala quando Julieta percebe sua ausência. Dá um ganido, e com meia-volta segue o instinto, ou o grau de afinidade, ou o amor. Segue seu dono.

O casal permanece de pé, em cena de circo, ele assobiando babado, ela estalando os dedos, rebolante. Ridículos, diria depois Matilde, desmerecendo o belo de outrora. E o juiz? Estica o pescoço e consegue ver um rabinho de cena, cadela e menino tomando o rumo da vó. Volta-se para o casal e se lembra do martelo de peroba guardado na gaveta. Acerta com vontade a mesa.

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O SALTEADOR, O MÁGICO E O DEPUTADORicardo Lahud

Qual a diferença entre o poste, a mulher grávida e o bambu? O poste dá a

luz por cima, a mulher grávida dá à luz por baixo.

No agito dessa ressaca política em que colorados e amarelinhos se ofendem mutuamente, ambos com razão, ouço e leio argumentos que me fazem pensar como chegamos a esse ponto, onde congressistas são tratados como bandidos.

Antes de ir adiante, é preciso reconhecer que compartilho a ideia que Machado de Assis fazia de legisladores e de salteadores no seu tempo: O legislador é o homem escolhido pelo povo para votar impostos e leis. Cidadão ordeiro, membro de uma câmara que redige, discute e vota as regras do governo, os deveres do cidadão, as penas do crime. O salteador é o contrário. O ofício deste é justamente infringir as leis que o outro decreta. Inimigo delas, contrário à sociedade e à humanidade, tem por gosto, prática e religião tirar a bolsa aos homens, e, se for preciso, a vida. Foge naturalmente aos tribunais, e, por antecipação, aos agentes de polícia. A sua arma é uma espingarda; para que lhe serviriam penas, a não serem de ouro? Uma espingarda, um punhal, olho vivo, pé leve, e mato, eis tudo o que ele pede ao céu. O mais é com ele.

Como podem duas figuras tão contrárias serem confundidas entre em si? Pois no Brasil se criou essa quimera. Essa mistura de discurso e carabina, esse apoiar o ministério com um voto de confiança às duas horas da tarde, e ir espreitá-lo às cinco, à beira da estrada, para tirar-lhe os restos do subsídio. Tornou-se o exótico, o inacreditável, prática comum e diária, que mal chega a ser notícia que espante o populacho.

Como na piada do bambu, faltou o parágrafo sobre os mágicos que tanto me encantaram nas matinés da minha infância. Mãos ágeis que usam como distração os corpetes carmins das loiras cúmplices enquanto soltam pombas

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de cartolas, transformam bengalas em flores e retiram cordas sem-fim cozidas de lenços coloridos de orelhas desavisadas.

Aproveitando a ingenuidade dos espectadores, alguns mágicos partiram para as sombras onde se tornaram titereiros dos deputados e dos salteadores. Usando propina como fios de controle, usando como distração a santa imagem de contribuintes patriotas, o vil metal doado recuperado na próxima esquina direto do bolso do povo, povo que elege o deputado, teme o salteador e aplaude o mágico, que, como na piada, é o verdadeiro bambu.

Petralhas e coxinhas, habitantes do mesmo saco, tirem os olhos das assistentes dos ilusionistas ou jamais perceberão que a mão é mais rápida que os olhos e muito mais rápida que a justiça.

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PASSOS NO CORREDORHelO Bello Barros

A mulher gorda passava os dias esparramada sobre a cama, coberta por alvos lençóis. Sempre vestida com uma camisola de renda, acomodando o enorme busto no decote. As pernas besuntadas de pomada beladona. Para ampliar a duração das aplicações da graxa escura, envolvia as pernas com plásticos e, por fim, bolsas de água quente. Varizes, são as varizes, justificava-se. Cordas pulsantes meladas por emplastros, unguento e mentol. Por isso não saía do quarto. O estrado mantinha a posição das pernas mais elevadas, favorecendo a circulação obstruída. No canto, sobre a cômoda marchetada, a imagem de Nossa Senhora das Mercês iluminada por uma lamparina. Na primeira gaveta da direita, um maço de dinheiro, um par de brincos de brilhantes e as joias que um dia foram de uso. A da esquerda sempre trancada. Ninguém sabia o motivo, porque a chave vivia amarrada na alça da sua camisola. Chamava e chamava. Um copo d’água por favor? Enquanto isso, do lado de fora do quarto, passos se arrastavam no corredor.

O piso de mármore da sala; as marinhas de Pedro Américo, o Portinari pendurado atrás da mesa de jantar, o lustre de Baccarat; o aparelho Companhia das Índias no guarda-louças, pratarias ensacadas uma a uma em feltro cor de mostarda. Na rouparia de cinco portas, empilhavam-se cambraias e respectivas naftalinas. E ela só precisava de unguento e água para aplacar a dor. Quem por acaso chegasse de visita, ela ordenava:

— Faça um café, aproveite e troque a água destas bolsas, estão frias. Ah! também aqueles brioches. Rápido, a visita tem pressa.

Claro que quem chegava parecia ter pressa de ir embora. Todas as manhãs eram de embate com a fisioterapia. Ela dizia-se indisposta,

exausta e poucas vezes completava a sessão de exercícios. Nos finais de tarde,

Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados.O Enfermeiro

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com a cabeça apoiada em travesseiros, reclamava de não ter o que fazer. Suspirava fundo como para tentar tirar do peito as mãos da angústia.

Aquele quarto era o cancro e a fronteira, o pedágio para entrar na casa. Com licença? Entrava ali quem servia à senhora e, eventualmente, as duas filhas que se alinhavam à espreita, emitindo sons suplicantes. Duas mulheres espantadas com as próprias máscaras, olhando pelas frestas e pela refração dos Gallés.

Eu ajudava no banho da senhora, levava-a ao banheiro, cumpria pequenas tarefas e tinha um pouco de tempo para a leitura. Precisava dormir no emprego, ficar atenta toda a noite. Folgar só às quartas-feiras. Na ocasião, me pareceu ótimo, mas menos de uma semana depois, já estava claro o meu trato fora um engodo. Precisaria ganhar muito mais dinheiro para suportar o silêncio soturno daquela casa. Foi o que pensei na ocasião. Um saco de dinheiro para continuar ali. Além dos irritantes passos no corredor. Eslepte-eslepte-eslepte.

Quão difícil tinha sido arrumar aquele emprego. Não podia me dar ao luxo de perdê-lo. Justo eu, só no mundo. Precisava ficar e por que não aproveitar pra fazer um pé de meia? Não sei exatamente se foi isso que me impediu de ir embora, mas me pareceu assim. Retiraria uma toalha da Ilha da Madeira aqui, uma nota de 100 acolá enquanto a velha dormia. Prometi a mim mesma que seria mais solícita e enfrentaria aquele emprego.

A filha mais velha ficava a maioria do tempo sentada num sofá de dois lugares, as pernas dobradas para cima ocupando os dois acentos. Sobre os joelhos, um tapete. Agulha e lã nas mãos de dedos curtos, tecendo e tecendo cores primitivas. Bordas ininterruptas. O tecido que nunca terminava, completados como num formulário contínuo. Contínua e triste como uma estátua de sal. Tapete de flores estáticas sem plano ou nuances. Fundo negro. Agulha e linha furando a tela, da frente para trás, de trás para frente. Como máquina, repetia o movimento de um comando que parecia partir de um outro setor. Para dentro, de dentro para frente, da frente para o fundo, do fundo para sempre. Levantava-se nas horas das refeições ou esporadicamente quando sentia fome. A água na moringa com copo de cerâmica havia de estar na mesinha ao lado do sofá.

— Quer um café? perguntei.— Obrigada, agora estou ocupada. É urgente.

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— Ah sim, me desculpe. Quando precisar de algo me chame.— Sabe o que é? Alguém traiu o pacto entre os tapetes e permitiu que a

casa permanecesse de pé. Por que todos traem, sabia? Inclusive você com esta cara de mesuras. Alguém traiu para que nós ainda estivéssemos aqui, no nível da água, com água chegando na boca. Alguém traiu as casas que deveriam ser inundadas. Mas falta pouco, preciso continuar.

— Entendo, falei. Mas estava confusa, fiquei confusa. Saí sem encostar a porta e fui à varanda

tomar ar. Mansidão e caridade repetia pra mim mesma. Mansidão e caridade. Mas via nitidamente a casa sendo traída, a água tomando tudo, o tapete como ponte entre-mundos, a inteligência sem rumo, os olhos de vaca da tecelã, a língua grossa na boca, falando de um terror iminente. É urgente. Mansidão, caridade e um lar para morar. Era urgente, sempre fora.

Voltei para o quarto principal, para a cama entalhada forrada de travesseiros, procurando uma âncora. A senhora dormia em suspiros melancólicos. Lembro até hoje das tardes e do tédio. Se olhava pela janela, o máximo que via era a caçamba cheia ou esperando entulho, um guarda movimentando as pernas cansadas do tempo de vigilância, andando dois passos, voltando. Ajustando o fone que lhe conferia status de autoridade da rua. E este era o melhor programa pra digerir mais um dia.

— Vi você me olhando quando estava no banheiro, queria alguma coisa? – perguntei.

— Às vezes quero dizer algo, mas não sei o quê. Este foi o primeiro diálogo com a filha mais nova. O seu olhar parado,

diluído em medicamentos. Tanta inteligência que, de vez em quando, furava com brilho o opaco em que se tornou. Mulher omitida de uso, apenas a me dizer que existem outros mundos que não o meu. Que há lugares de breu, de cortinas fechadas, falando verdades malditas. Por isto a reclusão, o mundo não pode te ver, não quer ver. Quem teria tempo para isso. Ela não conseguia ir adiante, não conseguia agir, trocar, doar, entender o ritmo dos afazeres camuflados. Quem poderia ver, quem? Se nem sua mãe, que escondia-se delas no quarto, envolta em plásticos e emplastros e que, às vezes, me contava do seu passado:

— Assim que meu pai dormia, eu procurava embaixo da cama o que tinha

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escondido. A lata de leite condensado. Fazia nela dois furos e chupava o creme viscoso e doce. Doce de engasgar. Cozinhar eu aprendi na marra, ainda nem tinha tamanho para mexer as panelas no fogão, empurrava um banquinho pra alcançar a chama. A maior tristeza foi sair da escola e trabalhar fazendo marmita para os pensionistas. Depois, veio a madrasta que me ajudou na cozinha, mas tinha perdido o fio dos estudos. Enfim o casamento com João Felício, que Deus o tenha, fardado e digno. Eu, pobre e imigrante, morando no Tatuapé; ele, vivendo num palacete da Avenida Paulista. Tive uma bela vida, parecia ser uma bela vida. Mas acabei assim, presa na cama e tomando conta de duas filhas desamparadas. Sabe? eu não posso nem morrer.

Concordei e soube que ela era digna da minha misericórdia e caridade.Enquanto a filha mais velha tecia no seu quarto, a mais nova gastava o

tapete da sala. Desfazia-se da seda de um persa antigo, girando por horas em torno da mesa. A marca que ficava não era dos seus passos mas uma elipse mais clara, tornando rosado o que um dia fora vermelho. Sabe lá o que pensava em cada volta, só sei que tinha o rosto fechado, o olhar para baixo, as duas mãos nas costas como que resolvendo um cabeludo tratado.

Mas o que fazer com os acontecimentos que chegam e, quando chegam, tudo já foi distribuído, desmontado? Aconteceu da mulher gorda pedir para que eu fechasse a porta do quarto, éramos nós duas. Levantou-se da cama com esforço, fazendo barulho de plástico enquanto se arrastava, tirou a chave da alça da camisola e abriu a gaveta da esquerda. Lá estava a amostra. Um quadrado de cânhamo branco, amarelado pelo tempo, ajurado nas bordas. 12x12 centímetros, bordado em pequenos quadrados de linha rosa: pontos cruz, meio-ponto e cheio.

— Aprendi no grupo escolar, tinha no máximo sete anos, minha mãe era viva. Isso é o melhor de mim, ela disse. Quero ser enterrada com ele. Promete? Pediu e se calou. Colocou o quadrado de cânhamo dentro da gaveta como se fosse um recém-nascido, girou a chave e voltou com o chaveiro para a alça de cetim.

O quadrado de cânhamo bordado na infância, o bem mais precioso. Então era isso, entre tantos objetos de arte, pratarias e tapetes era esse o único item que merecia proteção. Hoje sou eu que levo a chave na alça do sutiã. Não

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poderia enterrar tal relíquia com ela. Quanto tempo se passou? Juro que não sei, mas continuamos aqui, as duas mulheres e eu, tentando preservar o pacto. Continuamos sim, na mesma alternância entre fazer e desfazer tapetes. Durante a noite, feito marionetes, elas voltam para suas caixas. Assim que dormem, vou conferir o tesouro que repousa intacto na gaveta da esquerda. Ponto cruz, meio-ponto e cheio.

Não tenho do que reclamar, nem dos inconfundíveis passos no corredor. Ouço-os como música. Eslepte-Eslepte-Eslepte.

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MACHADO DE ASSIS 2016

MEMORIALCarlos Eduardo Cornacchione

Morri, faz um ano. Está gravado na lápide: Ao Odorífero das flores – descanse em paz. A oração pia chega aos céus, e de lá Beatriz intercedeu por Dante. A minha Beatriz é outra, chama-se Dirce, permanece viva, irá conhecê-la. Por sua devoção de terço contrito pude vir colher, ao pé da minha sepultura, o sentimento depositado num vaso de crisântemos. Durante esse breve retorno, peço licença ao nobre vivente para contar-lhe o que de mais importante ocorreu na minha existência.

5 de agostoCorria o ano de 1951 quando completei 21 anos. Saído o último conviva de nosso modesto jantar, papai – que costumava chamar-me de meu peralta – pela primeira vez tratou-me como amigo, e iniciou-me nos segredos do destino. Apesar de ele próprio considerar-se sem relevo moral, abonava-lhe a falta de preparo na juventude, e depositou seus sonhos no meu ilustre futuro, acima da obscuridade comum. É com os suspiros de uma geração que se amassam as esperanças de outra, e, guardadas as devidas proporções, concluiu que aquela conversa valia o Príncipe de Machiavelli.

10 de fevereiroDesculpe-me se o estilo parece corrido; a janela do infinito é breve. Minha trajetória começou no Snooker do prédio Martinelli. Os anos não importam mais. É comprovado que três quartas partes dos habituados ao taco partilham as opiniões do mesmo taco. E, taco a taco, José Ramires, Bola Branca para os íntimos, era a referência dos três quartos e rapidamente tornou-se a minha. A juventude tem naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade, e carece aparelhar as ideias próprias. O comum supera o extravagante. Correndo

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no feltro verde, Bola Branca ensinou-me a arte de afagar a vermelha e a preta com o mesmo toque, alcançar o sucesso pelas tabelas, correr para o lado que o taco bate, ser UDN e PCB nos mesmos corredores do Martinelli. Do snooker para a vida, uma tacada, um petisco, um chopp, se aquela conversa valeu o príncipe de Maquiavelli, Bola Branca doutorou-me em Stanislaw Ponte Preta.

17 de setembroA data está marcada no recibo. O amigo se amofina com o complexo, rejeita o prolixo. Nisso, recomendo as bibliotecas para os intelectuais solitários, cultores de Baudelaire. Os homens de espírito amplo, que almejam a glória terrena, tocam o coração do povo com as fórmulas consagradas, incrustadas pelos anos no consciente humano. Comprei, no sebo do Calil, o abre-te,

Sésamo da vida social – um almanaque de aforismos e citações célebres. Quem não aprecia um manjar dos deuses num discurso de sobremesa? Ou um calcanhar de Aquiles no memorando? Com um único dito explica-se tudo, abrilhanta-se o vulgo, ilustra-se o encontro. Os adjetivos, as frases de efeito, eis o verniz da retórica – o homem é a medida de todas as coisas.

5 de outubroEis o momento do amigo conhecer Dirce, minha Beatriz, cabeleireira de inúmeros talentos, da tesoura ao permanente. Quando Bola Branca anunciou que sua irmã estava estabelecendo-se, instei todos do Martinelli a comparecerem na inauguração do Dirce’s Hair Style. Fiz questão do primeiro corte. A pedidos, com modestas palavras, louvei a empresária vitoriosa com o suor do trabalho que, ali, naquela sobreloja da Ladeira Porto Geral, era um exemplo para a nação, a alavanca do progresso. Uma furtiva lágrima marejou-lhe quando destaquei o vaso de crisântemos que enviei, ao pé da Virgem Maria na bancada, com um cartão. Fotografia do evento, colorida, publicada na coluna social da revista da associação dos cabeleireiros, foi destaque, no salão e no Martinelli; e Bola Branca exigiu cerimônia para fixar o pôster com dedicatória no Snooker. Vale a efeméride.

28 de setembroDesde a inauguração do Dirce’s, adquiri o hábito de comprar vasos de

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crisântemos. Explico a importância deles. Mais vale um crisântemo mensal que uma tulipa anual. Quantos bilhetes de próprio punho, acompanhado de um crisântemo, o honrado vivente que me lê recebeu no seu último aniversário? Nenhum? Pois então, vê o efeito? O sorriso que se abre vale mais que um campo de tulipas. Um simples gesto. Colecione anotações detalhadas de aniversários, batizados, bodas, formaturas, acrescente as notas pinçadas das colunas sociais e o amigo colherá suspiros a cada encontro, a montanha virá a Maomé. Transformei o gosto em hábito, à primeira hora do dia preparava os cartões, borrifava-lhes água-de-colônia, cortava uma flor do vaso, e pedia para o garoto da repartição entregar os mimos. Receba essa flor como sinal da minha estima – em mãos. Foi numa primavera que Dirce criou a alcunha. Aceitei-a qual um busto em pedestal – Odorífico das flores.

4 de agostoÀ véspera de meus 45 anos, quando profetizaram que cairiam diante de mim as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas, abriu-se, em verdade, o portão do cemitério da Quarta Parada. Acidentei-me. E, qual a maioria das vítimas, não guardo recordação da ocorrência. Restam no meu espectro apenas as dores e a vaga lembrança do turbilhão de gente que se acumulou ao redor da minha carcaça na rua 25 de março. Ao menos foi público, noticiado na Gazeta; Dirce ficou sabendo pela rádio Tupi e fechou o salão por luto. Bola Branca fez ingerências para a municipalidade dar-me pousada honorífica no Araçá, mas a urgência da demanda não permitiu.

Fecha-se uma porta, abre-se outra. Fecha-se a campa, abre-se a eternidade. Não mais a Gazeta de tintas efêmeras, mas as crônicas gravadas nas tábuas seculares registrarão minha homenagem pelo jubileu de Guiglielmo Borsiere. Virgílio há de recordar-se de seus passos nesse círculo guiando o ilustre florentino, é mister dar testemunho aos vivos.O que é isso?O sino. É hora. Devo retornar. Do Quarta Parada escreve-se a continuação da Comédia. Despeço-me fazendo minhas as palavras ditas a Dante pelos meus iguais de infortúnio: Fa che di noi a la gente favelle.

Odorífico das flores, seu criado.

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Obra atualizadaconforme o

Novo Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa

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