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Página web: http://epaa.asu.edu/ojs/ Artigo recebido: 10/05/2013 Facebook: /EPAAA Revisões recebidas: 12/12/2013 Twitter: @epaa_aape Aceito: 4/03/2014 DOSSIÊ EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS; APRENDIZAGEM NO SÉCULO 21 arquivos analíticos de políticas educativas Revista acadêmica, avaliada por pares, independente, de acesso aberto, e multilíngüe Arizona State University Volume 22 Número 61 30 de Junho 2014 ISSN 1068-2341 Educação de Jovens e Adultos: encantamento e permanência na escola Jeferson Ventura Machado Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre & Dóris Maria Luzzardi Fiss Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil Citação: Machado, J.V.; Fiss, D.M.L. (2014). Educação de Jovens e Adultos: encantamento e permanência na escola. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 22(61). http://dx.doi.org/10.14507/epaa.v22n61.2014. Dossiê Educação de Jovens e Adultos; aprendizagem no século 21; diversidade de sujeitos que aprendem; aprender como prática social. Editoras convidadas: Sandra Regina Sales & Jane Paiva Resumo: Esta pesquisa, desenvolvida em 2011 e 2012, buscou identificar fatores de permanência e encantamento do aluno com a escola, valorizando situações que diminuem os efeitos dos processos de exclusão na EJA. Buscou-se compreender que movimentos significam a escola. Considerando uma situação complexa na qual rivalizam evasão e permanência, perguntou-se: O que faz este educando permanecer na escola? O que acontece, durante sua caminhada, que faz com que ele mantenha o vínculo com a instituição? Paulo Freire, Luís Fernando Monteiro Mileto, Gerson Tavares do Carmo e Juarez Dayrell foram os referenciais teóricos. O trabalho empírico envolveu entrevista de noventa alunos em uma escola pública municipal (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil). Concluiu-se que boa parte dos alunos entrevistados procura a EJA, nesta escola, aape epaa

MACHADO, J.v.; FISS, D.M.L. Educação de Jovens e Adultos Encantamento e Permanência Na Escola

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Esta pesquisa, desenvolvida em 2011 e 2012, buscou identificar fatores depermanência e encantamento do aluno com a escola, valorizando situações que diminuemos efeitos dos processos de exclusão na EJA. Buscou-se compreender que movimentossignificam a escola. Considerando uma situação complexa na qual rivalizam evasão epermanência, perguntou-se: O que faz este educando permanecer na escola? O queacontece, durante sua caminhada, que faz com que ele mantenha o vínculo com ainstituição? Paulo Freire, Luís Fernando Monteiro Mileto, Gerson Tavares do Carmo eJuarez Dayrell foram os referenciais teóricos. O trabalho empírico envolveu entrevista denoventa alunos em uma escola pública municipal (Porto Alegre, Rio Grande do Sul,Brasil). Concluiu-se que boa parte dos alunos entrevistados procura a EJA, nesta escola, motivada pela necessidade de mobilidade social, conhecimento ou certificação. Os fatoresque determinam efetiva permanência estão articulados ao desejo de pertencimento aogrupo social ou à relevância e ao significado dos conteúdos aprendidos.

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  • Pgina web: http://epaa.asu.edu/ojs/ Artigo recebido: 10/05/2013 Facebook: /EPAAA Revises recebidas: 12/12/2013 Twitter: @epaa_aape Aceito: 4/03/2014

    DOSSI

    EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS; APRENDIZAGEM NO SCULO 21 arquivos analticos de polticas educativas Revista acadmica, avaliada por pares, independente, de acesso aberto, e multilnge

    Arizona State University

    Volume 22 Nmero 61 30 de Junho 2014 ISSN 1068-2341

    Educao de Jovens e Adultos: encantamento e permanncia na escola

    Jeferson Ventura Machado Secretaria Municipal de Educao de Porto Alegre

    &

    Dris Maria Luzzardi Fiss Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Brasil

    Citao: Machado, J.V.; Fiss, D.M.L. (2014). Educao de Jovens e Adultos: encantamento e permanncia na escola. Arquivos Analticos de Polticas Educativas, 22(61). http://dx.doi.org/10.14507/epaa.v22n61.2014. Dossi Educao de Jovens e Adultos; aprendizagem no sculo 21; diversidade de sujeitos que aprendem; aprender como prtica social. Editoras convidadas: Sandra Regina Sales & Jane Paiva

    Resumo: Esta pesquisa, desenvolvida em 2011 e 2012, buscou identificar fatores de permanncia e encantamento do aluno com a escola, valorizando situaes que diminuem os efeitos dos processos de excluso na EJA. Buscou-se compreender que movimentos significam a escola. Considerando uma situao complexa na qual rivalizam evaso e permanncia, perguntou-se: O que faz este educando permanecer na escola? O que acontece, durante sua caminhada, que faz com que ele mantenha o vnculo com a instituio? Paulo Freire, Lus Fernando Monteiro Mileto, Gerson Tavares do Carmo e Juarez Dayrell foram os referenciais tericos. O trabalho emprico envolveu entrevista de noventa alunos em uma escola pblica municipal (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil). Concluiu-se que boa parte dos alunos entrevistados procura a EJA, nesta escola,

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    motivada pela necessidade de mobilidade social, conhecimento ou certificao. Os fatores que determinam efetiva permanncia esto articulados ao desejo de pertencimento ao grupo social ou relevncia e ao significado dos contedos aprendidos. Palavras-chave: Educao de Jovens e Adultos; Permanncia; Processos de excluso; Currculo. Education for Youth and Adults: enchantment and permanency at school Abstract: This research, conducted in 2011 and 2012, tried to identify the factors of student retention and enchantment with the school, valuing situations that reduce the effects of the processes of exclusion in EJA (Education for Youth and Adults. Considering a complex situation in which rivaling dropout and permanency, it was asked: What makes this learner stay at school? What happens during their journey that makes them keep their bound with the institution? Paulo Freire, Fernando Lus Monteiro Miletus, Gerson Tavares do Carmo and Juarez were Dayrell theoretical references. Empirical work included interviews of ninety students at a local public school (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil). It was concluded that most of the students interviewed EJA looking at this school, were motivated by the need for social mobility, knowledge or certification. The factors, which determine effective permanency, are articulated as the desire of social group belonging or the relevance or to the meaning of learnt subjects. Keywords: Education for Youth and Adults; Permanency; Exclusion processes; Curriculum. Educacin de Jvenes y Adultos: encantamiento y permanencia en la escuela Resumen: Esta investigacin, llevada a cabo en 2011 y 2012, trat de identificar los factores de permanencia y encantamiento del alumno con la escuela, valorizando las situaciones que reducen los efectos de los procesos de exclusin en EJA. Se trat de entender que movimientos significan a la escuela. Teniendo en cuenta una situacin compleja en la que rivalizan la evasin y la permanencia, se pregunt: Qu lo hace permanecer a este educando en la escuela? Qu sucede durante su camino, que lo hace mantener el vnculo con la institucin? Paulo Freire, Lus Fernando Monteiro Mileto, Gerson Tavares do Carmo y Jurez Dayrell fueron los referenciales tericos. El trabajo emprico incluy entrevistas de noventa estudiantes en una escuela pblica municipal (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil). Se concluy que la mayora de los alumnos entrevistados busca a EJA, en esta escuela, motivados por la necesidad de la movilidad social, el conocimiento o la certificacin. Los factores que determinan la permanencia efectiva se articulan al deseo de pertenecer a un grupo social o a la relevancia y al significado de los contenidos aprendidos. Palabras clave: Educacin de Jvenes y Adultos; Permanencia; Procesos de exclusin; Currculo

    Introduo

    Este texto coloca em discusso os fatores de permanncia e encantamento do educando jovem e adulto com a escola, valorizando situaes que diminuem os efeitos dos processos de excluso na EJA. Para isso, recorre a concepes de escola, juventude e cultura exploradas por Paulo Freire, Lus Fernando Monteiro Mileto, Gerson Tavares do Carmo e Juarez Dayrell respectivamente, procurando demonstrar as interfaces com os significados constitudos por educandos jovens e adultos. Tendo isto em vista, organizamos a discusso a partir de algumas sees e subsees.

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    A primeira seo, sob o ttulo Currculo, processos de excluso e permanncia, resgata modos de compreender o currculo na EJA a partir de pesquisas desenvolvidas por estudiosos preocupados, por um lado, com os processos de excluso que interferem na histria de escolarizao dos educandos e, por outro, com o entendimento dos modos e motivos de permanncia constitudos por eles. A segunda, Trajetrias ou Sem estudo a gente no nada, demonstra, a partir da interpretao das vozes de noventa educandos jovens e adultos, como eles se relacionam com a escola e que elementos participam desta relao o que apresentado em trs subsees respectivamente: Trabalho, escola e mobilidade social; Pertencimento social; e Escola, conhecimento e mito. Por fim, em Ambiente educativo e permanncia ou Novas amizades, aulas que prendem a ateno, querer melhorar a si mesmo, ltima seo do artigo, exploramos, e buscamos entender, uma srie de fatores, subjetivos ou objetivos, a partir dos quais resultam, de maneira positiva e produtiva, situaes que favorecem a aprendizagem, em um sentido de autonomia e empoderamento dos sujeitos.

    Nas consideraes finais, ou Algumas consideraes, fechamos o texto, sinalizando que boa parte dos alunos entrevistados procura a EJA, na escola investigada, motivada pela necessidade de mobilidade social, conhecimento ou certificao. Dessa forma, podemos especular que os fatores que determinam efetiva permanncia esto articulados ao desejo de pertencimento ao grupo social ou relevncia e ao significado dos contedos aprendidos.

    Nas escolas, por vezes, somos surpreendidos por propostas a partir das quais o trabalho com os saberes se faz mediado por uma perspectiva cooperativa e participativa que justifica e d sentido existncia dos sujeitos e, tambm, prpria escola. O sentido a que nos referimos o de constituio de uma sociedade solidria, acolhedora e de respeito a todos os tipos de diferena. Sentido quer dizer caminho no percorrido, mas que se deseja percorrer, portanto, significa projeto, sonho, utopia. Aprender a ensinar com sentido aprender a ensinar com um sonho na mente. A pedagogia serve de guia para realizar esse sonho (Gadotti, 2003, p. 11). Potencializar estas propostas, analis-las, tentar compreend-las nas suas intenes e nos seus sentidos, no como modelos ou guias, mas como caminhos possveis assumidos nas escolas, talvez possa provocar certo engajamento num compromisso como o que sugere Paulo Freire (1997) quando destaca:

    [...] sem sequer poder negar a desesperana como algo concreto e sem desconhecer as razes histricas, econmicas e sociais que a explicam, no entendo a existncia humana e a necessria luta para faz-la melhor, sem esperana e sem sonho. A esperana necessidade ontolgica. A desesperana, esperana que, perdendo o endereo, se torna distoro da necessidade ontolgica. No sou esperanoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histrico. (p. 5). Em relao direta com os elementos referidos, e como se destacou antes, o objeto de

    interesse do estudo tematizado neste artigo diz respeito aos fatores que contribuem para a permanncia do educando jovem e adulto na escola. Ao evidenci-los, pretendeu-se valorizar situaes que diminuem os processos de excluso que encontramos na escola sob a forma de evaso, especificamente na Educao de Jovens e Adultos. Da mesma forma, buscou-se compreender que movimentos significam a escola. Considerando esta situao complexa na qual rivalizam evaso e permanncia, perguntou-se: O que faz este educando permanecer na escola? O que acontece, durante a sua caminhada na escola, que faz com que ele mantenha o vnculo com a instituio?, sendo estas as prprias questes da pesquisa. Exploramos estas questes por meio, principalmente, de ideias presentes em Paulo Freire, agregando concepes de Lus Fernando Monteiro Mileto, Gerson Tavares do Carmo e Juarez Dayrell. O trabalho emprico envolveu a escuta de algumas das vozes da escola. Estas vozes, noventa educandos jovens e adultos, fazem parte de turmas de Educao de Jovens e Adultos (T41, T42, T51, T52, T61 e T62) da Escola Municipal Jos Loureiro da Silva, localizada em Porto Alegre (Rio Grande do Sul), local em que trabalha um dos pesquisadores envolvido com o estudo de que

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    trata este artigo. O critrio de escolha dos sujeitos de pesquisa foi justamente sua relao com este pesquisador: todos os entrevistados eram alunos dele poca, possibilitando um trabalho de escuta para alm do momento da entrevista o que terminou por permitir a anlise mais atenta das situaes e realidades sobre as quais os estudantes falam em seus depoimentos, buscando perceb-las tambm a partir dos enlaces com a prtica pedaggica. Aps esclarecer sobre o tema e os objetivos desta investigao, foi feito um convite conversa a estes educandos. Atendendo espontaneamente a solicitao de seu professor, eles responderam as seguintes perguntas: O que motiva sua vinda escola? Na escola, do que voc gosta? E do que no gosta? Por qu? Em algum momento voc pensou em desistir de estudar? Quando? Na sua opinio, por que alguns colegas desistem? O que no tem na escola que voc gostaria que tivesse? Neste seu tempo de EJA, que momento foi marcante?

    Currculo, processos de excluso e permanncia

    A evaso na EJA ocorre por fatores externos, vinculados s condies socioeconmicas dos alunos e tambm em funo das relaes afetivas familiares ou do grupo de amizades, ou ainda por fatores internos inerentes ao ambiente de ensino onde alunos e professores, enquanto sujeitos, estabelecem relaes na busca de reconhecimento social e conhecimento escolar. Como destaca Mileto (2010), quando se reporta pesquisa que desenvolveu, durante os anos de 2007 e 2008, sobre as estratgias e trajetrias de permanncia na Educao de Jovens e Adultos, uma

    [...] pluralidade de interferncias podem ser observadas nos processos que levam deciso dos sujeitos em desistir ou permanecer [...]. Para efeitos de anlise, foi adotada, em relao instituio escolar, a classificao que identifica fatores externos e fatores internos vinculados permanncia ou evaso [...]. Os fatores externos esto vinculados principalmente aos obstculos interpostos pelas estruturas socioeconmicas, que se refletem no cotidiano e nas histrias de vida dos alunos. Os fatores internos decorrem da configurao das relaes sociais institudas no mbito do espao escolar, destacadamente as interaes estabelecidas no interior da turma. As aes pedaggicas, no sentido amplo, que se processaram nesses grupos sociais, constituram aspectos de fundamental relevncia (p. 10).1 De maneiras diferentes e partindo de investigaes distintas, outros pesquisadores tambm

    referem provveis motivos de evaso na EJA que, em ltima instncia, poderiam ser compreendidos como Mileto prope. Mayra de Paula Lioncio (2009), ao descrever estudo que foi desenvolvido em escola estadual da cidade de So Paulo e envolveu entrevista de 101 Jovens e Adultos com idades entre 18 e 60 anos, chama a ateno para alguns aspectos perturbadores da relao estabelecida entre os educandos e o espao escolar: a existncia de pouca afinidade entre eles e o ambiente escolar; a lgica infantil dos currculos presente nas propostas pedaggicas para a EJA acrescida de outros elementos que denotam inadequao das prticas aos perfis socioeconmico-culturais dos educandos jovens e adultos e s suas possibilidades e necessidades; as escolhas que os alunos precisam fazer entre a escola e o trabalho, ou seja, sua sobrevivncia, em funo de dificuldades criadas tanto por um espao quanto pelo outro; e, por fim, o desdobramento imediato da evaso no trabalho em sala de aula no momento da matrcula, uma turma se forma, professores so designados e, ao verificar o nmero de alunos evadidos no meio do bimestre, os responsveis so levados a unir salas devido diminuio dos alunos frequentes. O que leva outros alunos a desistirem tambm por se perceberem sozinhos (p. 2) na medida em que os vnculos assumidos com os antigos colegas so desconstitudos.

    1 Disponvel em www.seeja.com.br. Acessado em 10/06/2011.

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    Especificamente quanto s interfaces entre jovens ou adultos e escola, Juarez Dayrell (1999; 2001; 2002; 2003a; 2003b; 2003c; 2004) oferece vrios subsdios para esta discusso. O autor, partindo de pesquisas realizadas junto a diferentes grupos juvenis com a finalidade de compreender seus movimentos de aproximao e distanciamento da instituio educativa, se inscreve em um debate mais amplo acerca dos tempos da vida e as possveis relaes com a educao. Ele adverte, junto com Edgar Morin (1987), a respeito dos significados de se ter uma idade, das relaes entre os diferentes tempos da vida e, principalmente, da naturalizao com que geralmente este tema tratado e segundo a qual ser criana, jovem, adulto ou idoso corresponde to-somente a um dado da natureza; no a uma dimenso simblica. Agrega a esta preocupante constatao uma outra que fala sobre a escola: muitos educadores no se perguntam pela especificidade do jovem, pelas demandas prprias de seus processos de formao. O que equivale a um problema se considerarmos que os processos educativos esto intrinsecamente ligados s diferentes temporalidades humanas, demandando posturas e metodologias prprias a cada uma delas (Dayrell, 2004, p. 3).

    Em uma das investigaes realizada por ele, revela que os depoimentos dos jovens deixam claro que, para a maioria, a escola se realiza como uma provao, uma chatice necessria para um credenciamento que tem um peso relativo no mercado de trabalho. As experincias escolares narradas vm reforar a ideia de que: A instituio escolar pouco eficaz no seu aparelhamento para enfrentar as condies adversas de vida com as quais os jovens vieram se defrontando, no constituindo referncia de valores no seu processo de construo como sujeitos (Dayrell, 2002, p. 120).

    A escola precisa reconhecer o jovem, o adulto, o idoso que existe por trs do aluno, adaptando a ele seus processos educativos e compreendendo seus projetos de vida como componentes necessrios do projeto pedaggico mais amplo da instituio. Desse modo, ela passa a lidar com o educando como sujeito para alm de sua condio de aluno. Escut-lo, entend-lo como interlocutor legtimo e perceb-lo como parceiro na definio das aes, na partilha e produo de saberes, so consequncias de uma escolha feita pela instituio. Como destaca Nvoa (2009),

    O trabalho escolar tem duas grandes finalidades: por um lado, a transmisso e apropriao dos conhecimentos e da cultura; por outro lado, a compreenso da arte do encontro, da comunicao e da vida em conjunto. isto que a Escola sabe fazer; isto que a Escola faz melhor. nisto que ela deve concentrar suas prioridades (p. 31). De certa forma, o professor o fiel depositrio da cultura. Mas ele no recebe a cultura

    simplesmente. Ele precisa estabelecer elos entre os muitos saberes sobre o mundo, compreender como foram construdas as diferentes interpretaes desse mundo e, conhecendo os estudantes, situ-los em seu contexto sociohistrico. Na relao com os educandos jovens e adultos, ele precisa decodificar, ler, compreender e explicar textos, situaes, intenes e sentimentos o que confere uma dimenso tanto relacional quanto interpretativa ao ofcio de mestre-professor2. Alm disso, e remetendo a consideraes feitas por Ldke e Boing (2004), um aspecto crtico tambm inerente prtica pedaggica por caracterizar as interpretaes que os professores fazem da cultura e a partir das quais se desafia os alunos a observarem o panorama cultural sem lhes impor um modo nico de analis-lo. Pelo contrrio, os educandos so incentivados a percorrer seus prprios percursos de interpretao numa busca de construo de seus conhecimentos. 2 Segundo Arroyo (2002), falar em ofcio de mestre remete memria da docncia por trs motivos: o termo ofcio remete a artfice, portanto, a um fazer qualificado, profissional Os ofcios se referem a um coletivo de trabalhadores qualificados, os mestres de um ofcio que s eles sabem fazer, que lhes pertence, porque aprenderam seus segredos, seus saberes e suas artes. [...] Os mestres de ofcio carregavam o orgulho de sua maestria (p. 18); o sentimento, s vezes titubeante, de orgulho pelo trabalho que se produz; o princpio de docncia-artista que atravessa tanto o ofcio dos mestres-artfices quanto dos mestres-professores uma vez que educar incorpora as marcas de um ofcio e de uma arte, aprendida no dilogo de geraes (op. cit.).

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    Os educadores, ao promoverem tal ao, reconhecem as especificidades do que ser jovem, do que ser adulto da EJA, pois, consoante adverte Arroyo (2006), estes sujeitos no so qualquer jovem ou qualquer adulto: So jovens e adultos com rosto, com histrias, com cor, com trajetrias scio-tnico-raciais, do campo, da periferia [...] (p. 22). Nisto reside a importncia de se pensar a Educao de Jovens e Adultos considerando quem so esses jovens, como se constroem como jovens e adultos e qual sua histria de construo:

    So jovens e adultos que tm uma trajetria muito especfica, que vivenciam situaes de opresso, excluso, marginalizao, condenados sobrevivncia, que buscam horizontes de liberdade e emancipao no trabalho e na educao. Essa especificidade de vida confere outra EJA [...]. essa particularidade de sua condio social, tnica, racial, cultural e especial (de jovens e adultos populares do campo, das vilas e favelas) que tem de ser o ponto de referncia para a construo da EJA (p. 23). Portanto, ponto de referncia para a proposio de projetos de trabalho que, ao dar conta

    dessa realidade e dessa condio de produo da existncia pelos educandos jovens e adultos, incluam um compromisso de ressignificao da escola por meio da compreenso tanto dos processos de excluso vividos pelos sujeitos quanto de suas histrias de permanncia na instituio escolar. A este respeito, convm destacar que, em funo mesmo dos muitos fatores mencionados, abordar a questo dos processos de excluso, que assumem a forma de evaso na EJA, ou mesmo da permanncia, sempre muito difcil, porque, como destacam Silva e Pinheiro (2010), ao remeter a estudo realizado no perodo de 2005 a 2009 a respeito da evaso na EJA em escolas no Rio Grande do Norte, inmeros condicionantes histricos, polticos, sociais e culturais [...] determinam essa realidade (p. 7). O que confirmado por Carmo (2010) quando adverte que as causas da evaso na EJA

    [...] no se restringem a aspectos individuais de dificuldades de aprendizagem, ou de dificuldades didticas do professor ou do conflito estudo/trabalho. Vo alm, abrangem causas de carter poltico, social e econmico, expresso dos desencontros entre a cultura escolar, a cultura popular, a cultura dominante e as relaes desiguais de poder e sociais da derivadas (p. 21).3 Portanto, no cabe uma culpabilizao de alunos, ou mesmo de professores, pelo fenmeno

    da evaso. O que no podemos , estudando e pesquisando o assunto, encarar com normalidade este processo de excluso associado a tantos outros por que passam os educandos e, s vezes, decorrente deles, sem adotarmos medidas e mudanas de rumo que combatam efetivamente o problema. necessrio encarar os processos de excluso como produtores de situaes que necessitam de compreenso por parte dos educadores seguida de intervenes a partir das quais os movimentos de sadas e retornos dos alunos, e tambm a evaso, sejam desnaturalizados.

    Considerando o campo pesquisado nesta investigao, que resulta da anlise de depoimentos de noventa educandos jovens e adultos, salienta-se uma constatao que lhe especfica: duas categorias de alunos frequentam a EJA.4 Os alunos que interromperam os estudos em funo do trabalho, para suprir as necessidades econmicas da famlia e, neste grupo, encontramos em maior nmero os mais velhos, e os alunos que no se adequaram formalidade do ensino regular. Neste grupo, encontramos, cada vez mais, jovens que, aceleradamente, modificam a EJA no que tange s

    3 Disponvel em www.seeja.com.br. Acesso em 10/06/2011. 4 Convm destacar que, na EJA, em geral, alm das duas categorias apresentadas, existe a que se refere aos que, mesmo adultos, no interromperam os estudos, pelo fato de nunca terem frequentado escola antes da EJA. No entanto, considerando especificamente o campo investigado e a entrevista dirigida aos noventa educandos jovens e adultos, este terceiro grupo no foi identificado nos sujeitos de pesquisa. Isto no significa, no entanto, que ele no exista na instituio pesquisada, apenas que no corresponde realidade dos sujeitos entrevistados.

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    marcas culturais com que se inscrevem nela e s demandas que apresentam5. O trabalho, ou a necessidade dele, aparece como causa, de maneira efetiva e numerosa, nas falas desses estudantes, tanto para o aluno evadir como retornar aos bancos escolares. Muitos, a maioria, elegem o trabalho como responsvel por sua desistncia da escola. E com certeza este um fator relevante. Mas ele tambm motiva os estudantes a buscarem uma certificao e o conhecimento visando ascenso profissional e a melhores rendimentos, porque, como descreve Lioncio (2009),

    [...] vemos o Adulto ou Jovem j inserido no mercado de trabalho, alis, um mercado que tem como cenrio a constante ebulio de processos e exigncias cada vez maiores, e ele se v quase que na obrigao de ampliar sua qualificao com um diploma que talvez o capacitar para brigar por perspectivas melhores no que tange ao seu universo profissional ou a se manter no espao j conquistado (p. 6-7). Esta situao no pode ser simplificada, pois, sob o manto do trabalho, encontraremos

    nuances que podem indicar caminhos sociais e educativos que nos auxiliem a melhor compreender a evaso, transformando-a, talvez, no seu contrrio a permanncia. Por um lado, as conjunturas polticas e econmicas, apesar de cobrarem certificaes aos melhores postos, no preconizam tempos e espaos para uma formao mais humana dos indivduos. Do outro lado, os certificadores e a escola vivem o dilema de instrumentalizar sujeitos para assumir postos de trabalho reproduzindo que ideais? No existe uma vertente exclusiva, mas muitas vezes os professores reproduzem o que as classes econmicas dominantes desejam, formando cordatos funcionrios que se submetero ao sistema vigente. Outras vezes, despertam os alunos para outro viver, em que a exigncia de direitos sociais uma possibilidade concreta e prpria da condio humana. Estes dois mundos, escola e trabalho, se retroalimentam no discurso, mas se afastam sobremaneira na concretude do seu dia a dia, sobretudo se pensarmos na ainda dominante prtica pedaggica constituda a partir de princpios curriculares tradicionais que no assumem como compromisso o estabelecimento de dilogo entre diversos e diferentes saberes. Como destacam Silva e Pinheiro (2010), um currculo que pode, inclusive, acarretar insatisfaes e afastamento dos alunos das classes/salas da EJA por no encontrarem sentido e significado no fazer escolar (p. 4).

    Apesar de ser legtimo afirmar que dificuldade financeira e necessidade de trabalho so causas reais para se deixar de frequentar a escola, elas podem estar escondendo um novo insucesso escolar do aluno que j foi, em algum momento de sua trajetria escolar, sentenciado reprovao e inadequao ao modelo imposto por uma pedagogia que no o acolhia na sua diferena. Conforme lembra Carmo (2010),

    [...] um aluno dizer que parou de estudar para trabalhar pode ser um fato concreto, mas igualmente uma explicao digna por perceber estar perdendo o jogo escolar, afinal trabalhar e estudar ao mesmo tempo no uma situao estranha ao universo da EJA. Aceita-se socialmente o mito trabalho como justificativa digna, porque construdo coerentemente com o senso comum dominante, que exerce um papel de mascaramento e de explicao consensual para realidades intudas e pressentidas, mas no passveis de compreenso racional [...] (p. 24).

    Como contrarresposta a tal situao, convm destacar que qualquer que seja o currculo

    idealizado, ele deve necessariamente incorporar o acolhimento do outro na sua diferena e 5 A este respeito, convm conferir material organizado por Juarez Dayrell, Maria Ignez Costa Moreira e Mrcia Stengel (2011) no qual foram compilados os trabalhos discutidos no IV Simpsio Internacional sobre Juventude Brasileira ocorrido em Belo Horizonte (Minas Gerais Brasil). Em particular as seguintes discusses estabelecem relao direta com o que se problematiza neste artigo: Adolescentes, jvenes y socializacin: entre resistencias, tensiones y emergencias de Marcelo Urresti; Juventude e escola de Mnica Dias Peregrino Ferreira; Entre sonhos e projetos de jovens, a escola... de Geraldo Leo; e Juventude, trabalho e educao: crnica de uma relao infeliz em quatro atos de Naira Lisboa Franzoi.

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    singularidade. Deve incorporar a cultura dos alunos sem negar a histria e a cultura da humanidade, precisa ser construdo coletivamente e com significado prtico e transformador do cotidiano. Conforme se disse antes, fundamental reconhecer a posio e os saberes a partir dos quais cada sujeito envolvido no processo ensino-aprendizagem se significa e com os quais elabora suas prticas, lembrando que, na escola ou no trabalho, nossos alunos esto em busca de reconhecimento social. Pertencer ao ambiente de ensino, se sentir parte dele, vai ao encontro de suas aspiraes e favorece a aprendizagem.

    Lus Fernando Mileto, em seu trabalho Estratgias e trajetrias de permanncia na Educao de Jovens e Adultos (2010), uma das poucas referncias sobre o assunto, fala que a

    [...] construo de um sentido de pertencimento a um grupo social, identificado pela existncia de elementos comuns em relao sua prpria trajetria escolar (e de vida), favoreceu significativamente a possibilidade de permanncia e concluso do ensino fundamental no PEJA da escola pesquisada (p. 14). Talvez, coletivamente, em um processo solidrio e cooperativo, possamos aproximar o

    mundo da escola e do trabalho, reconhecendo a cultura existente e agregando a ela o j estabelecido pela humanidade por meio da transformao ou busca de novos dilogos com os sistemas vigentes, a fim de compreend-los e adequ-los a uma condio de vida mais digna a todos. Talvez, dessa forma, possamos reconhecer e produzir a escola, e o currculo, como espao de criao um currculo que dialogue com elementos mais dinmicos do cotidiano das escolas/classes de EJA (Carmo, 2010, p. 28), recuperando histrias de vida dos alunos e das alunas, seus contedos elaborados nas lutas de classe, programas de vida e tantos outros elementos pulsantes, inscritos na individualidade de cada sujeito (Idem). Mas

    Como podemos possibilitar processos formativos que se contraponham aos condicionamentos impostos pelos processos colonizadores de programao do individualismo desumanizante, efetivados pela cultura de massa, e promover as necessrias desaprendizagens? Seria possvel, pela educao escolar, efetivar a predominncia da atividade mental do ns sobre a atividade mental do eu [...], que produza a no aceitao da lgica perversa da dominao, desarticulando os dispositivos ideolgicos internos de opresso e materializando formas de resistncia que exijam outras condies de existncia, aliceradas no direito plenitude da vida? (Mileto, 2009, p. 15)

    O objetivo, que se esconde nas provocaes de Mileto, estabelece correspondncia com a compreenso da escola como sendo importante para o futuro das pessoas. A oferta institucional traduz esta compreenso? Escolas e professores, imbudos deste jeito de entender escola, encontram eco deste entendimento e positivo envolvimento, esforo e interesse por parte dos alunos que buscam a EJA? rgos governamentais tm interesse numa escola engajada com a vida das comunidades de onde vm os educandos?

    Na EJA, existe uma caminhada histrica um tanto desvinculada da escola formal diurna, o que resultou em aes alternativas importantes visando atender necessidade de jovens e adultos que interromperam seus estudos. No texto Avaliao Emancipatria no SEJA: no tempo do fazer e do aprender, Vieira, Penteado e Garcia (2005) atentam para o fato de que o movimento constante de entrada e sada dos alunos remete tambm para a concepo diferenciada do planejamento pedaggico. Alm de as autoras pontuarem a necessidade de o educador aproveitar e reconhecer a aprendizagem dos estudantes e os motivos de afastamento, elas preconizam que se atente para o movimento e a flexibilidade do currculo e da avaliao, superando uma viso linear e cumulativa do processo. Difcil exerccio quando levamos em considerao os modos de seleo e distribuio de contedos que costumam ser ponto de partida para o planejamento das aulas, afetando-o.

    Esse processo de avano decorrente do ingresso permanente, que se soma realidade dos alunos que se afastam quando a vida os desafia para o afastamento, retomando quando estes

  • Arquivos Analticos de Polticas Educativas Vol. 22, No. 61 9

    desafios so superados, traz contribuies para o trabalho pedaggico. Em primeiro lugar, exige uma problematizao do trabalho escolar deslocado do mundo da vida. Esse movimento exige dos educadores uma postura de pesquisa para explorar a riqueza que existe no ingresso de novos educandos. O ingresso deve povoar o mundo da escola com os saberes produzidos no mundo da vida, no qual a escola tambm lugar de sistematizao desses saberes, por meio do estabelecimento de novas relaes que o dilogo com os referenciais tericos j sistematizados possibilita (p. 215). As autoras ainda preconizam uma avaliao contnua e a qualquer tempo, acompanhando

    como se d a aprendizagem, compactuando professores e alunos com a verificao dos avanos, estabelecendo critrios claros para todos, conhecidos e partilhados por todos. Com esse envolvimento, remetemos, de novo, questo do pertencimento e da significao do espao escolar para o aluno, que visualiza seu mundo conhecido atravs de sua participao e pode estabelecer pontos de contato com o mundo da escola, enxergando objetivos de trabalho na instituio educativa vinculados sua atuao em outros espaos. Avaliao, ou mesmo o processo de produo de conhecimento, quando compartilhados e assumidos como responsabilidade dos atores, significa pertencimento, amplia o envolvimento e sustenta a permanncia.

    A avaliao assim concebida remete necessariamente para a ressignificao dos tempos presentes nos calendrios escolares, rompendo com as datas pr-fixadas para a verificao da aprendizagem, j que uma avaliao contnua e processual, assim como a aprendizagem. Portanto, educadores e educandos se educam e se avaliam permanentemente, e de forma sistemtica, e os educandos avanam de Totalidade a qualquer tempo, opondo-se a avaliaes no final de etapas. Neste enfoque, avano e permanncia so vistos como processos compartilhados de responsabilidade entre educadores e educandos e no como instncias de poder de um sobre o outro, ou de submisso a esse poder. So, portanto, dimenses compartilhadas de responsabilidade em direo a objetivos comuns: o conhecimento e a autonomia dos sujeitos (p. 216). Concentrando as atenes no papel da escola, desvinculando seu uso poltico por

    administraes temporrias, focando na Educao de Jovens e Adultos concebida a partir de princpios como, por exemplo, os de Paulo Freire, na sua dimenso libertadora e de autonomia, enfim, valorizando a cultura diversificada dos educandos, poderamos estabelecer relaes mais prximas e de significado relevante. O que envolve estabelecer um currculo em que haja espao tanto para os saberes considerados importantes pelos educadores, como para os saberes experienciados pelos educandos, construindo pontes e caminhos de reflexo e constante avaliao de progressos e observando as diferentes trajetrias. Inventar currculos que talvez nos aproximassem de nosso papel de construir uma educao transformadora, visando autonomia, com respeito a maneiras diferentes de ver e viver o mundo.

    [...] reconhecer as prticas curriculares como espao de criao curricular e no apenas como momentos de aplicao de currculos pr-fabricados. Superar a concepo formalista de currculo e incorporar elementos mais dinmicos do cotidiano das escolas e classes nas quais os currculos ganham sua real existncia um grande desafio. Super-lo depende do reconhecimento da riqueza das prticas cotidianas, da impossibilidade de trabalharmos do mesmo jeito em classes, escolas, espaos distintos, nos quais mudam todo o ambiente

  • Encantamento e permanncia na escola DOSSIE EJA II 10

    espacial, alm dos alunos com os quais nos deparamos. Como poderia o currculo real, a prtica cotidiana serem idnticos em situaes diversas? (Oliveira, 2005, p. 232)6. A autora discorre, com propriedade, sobre a quem podem servir os processos atualmente

    usados quando se pensa em currculo e que legitimam o deslocamento da escola de seu verdadeiro foco, afastando os educandos que no veem refletidos, na prtica, seus anseios e sua necessidade de pertencimento.

    A cientifizao das explicaes do mundo e dos processos sociais tem permitido a legitimao dos processos sociais de dominao em nossa sociedade. Assim o currculo definido formalmente, proposto por especialistas a partir do estudo de modelos idealizados da atividade pedaggica e dos processos de aprendizagens dos que a ela sero submetidos, bem como da escolha daquele que melhor se adapte aos objetivos, tambm idealizados, da escolarizao e avaliao segundo sua adequao ao modelo proposto. Contrariamente a esse tipo de entendimento que congela e negligencia toda a riqueza dos processos reais da vida social e, portanto, escolar, seria necessrio desenvolver novos modos de compreenso revertendo-se a tendncia dominante de entendimento do currculo. (Oliveira, 2005, p. 236). A evaso alija milhes de brasileiros do processo histrico de formao social e de

    identidade do pas. O que pode unir os estudantes ao longo de sua histria de escolarizao, com a aquisio de habilidades e ferramentas que os auxiliem em seu processo de entendimento do mundo, para atuar nele e modific-lo, com autonomia, talvez passe por valores solidrios, cooperativos e de aceitao, que levam ao sentimento de pertencimento. Isto permite indagar se as relaes humanas no seriam o principal encanto da escola, a principal e mais importante razo de permanncia nela. Buscamos inspirao na concepo de ambiente educativo7 do MST (Movimento dos Sem-Terra) para sustentar a afirmao anterior, citando Roseli Caldart, no texto O Currculo das Escolas do MST, de 2005:

    Numa escola pensada como lugar de formao humana os valores passam a ter lugar central. So valores que movem nossas prticas, nossa vida, nosso ser humano. E a associao entre os valores e educao da sensibilidade neste contexto no arbitrria. Os sentimentos so a terra de cultivo de valores. O MST espera de suas escolas que ajudem na educao da sensibilidade de seus educandos para a dimenso dos valores, que trabalhem as relaes sociais e afetivas entre as pessoas nessa perspectiva; e que, em seu dia-a-dia, educandos e educadores recuperem e cultivem valores humanos como a solidariedade, a lealdade, o companheirismo, o esprito de sacrifcio pelo bem do coletivo, a liberdade, a sobriedade, a beleza, a disciplina, a indignao diante das injustias, o compromisso com a vida [...]. (p. 249). A concretude das experincias j vivenciadas por diversos colegas, aqui identificados na

    reviso dos referenciais tericos, aponta para uma caminhada constituda por fazeres e saberes de significado emancipatrio e de cidadania que, para a Educao de Jovens e Adultos, no novidade, tendo em vista sua especificidade e sua trajetria histrica. A apropriao do j pensado, estudado e praticado, pelos muitos educadores que esto envolvidos com esta modalidade de ensino, adequando experincias e saberes realidade dos sujeitos e da escola, possivelmente, ajuda a melhor

    6 Esta citao foi extrada do texto Tendncias recentes dos estudos e das prticas curriculares, de Ins Barbosa de Oliveira, presente na obra Construo coletiva: contribuies educao de jovens e adultos, da Coleo Educao para Todos, editada pelo MEC e UNESCO. 7 A expresso ambiente educativo, que muitas vezes aparecer neste texto, refere-se ao conjunto de fatores que interferem, promovem e facilitam o fazer pedaggico em uma perspectiva de aquisio de conhecimento e habilidades para signific-lo. Abrange tanto a atuao de ensinantes e aprendentes como a organizao pedaggica e a constituio do espao fsico.

  • Arquivos Analticos de Polticas Educativas Vol. 22, No. 61 11

    compreender o quadro de evases atual e, talvez, propor intervenes que provoquem alguma modificao nele.

    Trajetrias ou Sem estudo a gente no nada

    Buscando entender os motivos que levam os alunos da Educao de Jovens e Adultos a percorrer at o final e, talvez, com motivao, os anos formativos desta modalidade de ensino, ou mesmo os fatores que resultam na interrupo desta trajetria, foram ouvidos noventa alunos das Totalidades8 Finais de uma Escola Pblica Municipal de Porto Alegre, localizada em regio com grande concentrao de pessoas com baixa renda. Os alunos desta escola a frequentam quatro dias por semana segunda, tera, quinta e sexta-feira. Na quarta-feira, os professores realizam reunies de formao, na prpria instituio, tanto para tratar de assuntos administrativos como pedaggicos. O tempo de aula dividido em dois blocos de 1h e 45min, com 15min de intervalo. Cada bloco contempla disciplinas diferentes que estavam assim distribudas na turma T61 : Tabela 1 Distribuio das disciplinas

    Segunda-feira Tera-feira Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira Histria Geografia Reunio Ingls Cincias

    Ed. Fsica Arte Educao Pedaggica Matemtica Portugus

    As outras turmas possuam semelhante grade de horrios com diferente disposio das disciplinas nos dias da semana. Como se disse antes, na quarta-feira os alunos eram dispensados enquanto os professores participavam da reunio pedaggica semanal.

    A pesquisa realizada nos anos de 2011 e 2012 mapeou tanto mecanismos de motivao dos alunos em retomar sua formao, relacionados satisfao no cotidiano escolar, quanto fatores que geram desistncia, elementos que poderiam melhorar o ambiente educativo e fatos que foram marcantes durante sua trajetria escolar. A anlise dos depoimentos dos educandos resultou no reconhecimento, em seus pronunciamentos, de sua motivao, ou no, para ir escola.

    Cabe destacar, especificamente quanto ao perfil do grupo de noventa jovens e adultos entrevistados, algumas caratersticas representadas nas Tabelas e Grficos a seguir:

    Tabela 2 Sexo dos/as educandos/as entrevistados/as

    Sexo N de

    educandos/as %

    Feminino 48 53% Masculino 42 47%

    Total 90 100%

    8 A denominao de Totalidades do Conhecimento resulta da concepo de um ensino interdisciplinar. Elas se constituem os instrumentos conceituais a partir dos quais a interdisciplinaridade poder efetivar-se na dependncia da atitude, da predisposio, dos conceitos epistemolgicos dos professores, em particular do grupo que formam e reformam (Cadernos Pedaggicos da SMED: Totalidades do conhecimento - em busca da unidade perdida; um currculo de educao popular. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educao, 1999).

  • Encantamento e permanncia na escola DOSSIE EJA II 12

    39404142434445464748

    Nmero deeducandos/as

    FemininoMasculino

    Tabela 3 Idade dos/as educandos/as entrevistados/as

    Idade N educandos/as %

    15 a 17 51 57% 18 a 23 23 25,5% 24 a 27 2 2%

    Mais de 28 14 15,5% Total 90 100%

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    Nmero deeducandos/as

    15 a 1718 a 2324 a 27mais de 28

    Tabela 4 Etapa de escolarizao dos educandos jovens e adultos entrevistados

    Etapa de escolarizao

    N educandos/as %

    T4 27 30% T5 34 38% T6 29 32%

    Total 90 100%

    53%

    47%

    57%

    25,5%

    15,5%

    2%

    Grfico 2. Idade dos/as educandos/as entrevistados/as

    Grfico 1. Sexo dos/as educandos/as entrevistados/as

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    0

    5

    10

    15

    20

    25

    30

    35

    Nmero deeducandos/as

    T4

    T5

    T6

    Nas respostas produzidas pelos educandos, conseguimos destacar trs realidades: 1) o estabelecimento de vinculao entre mobilidade social, caracterizada pela necessidade do

    aluno em melhorar sua condio de vida, e escola foi evidenciada nas respostas de 55 educandos:

    Porque eu quero ser algum na vida. Eu trabalho e no o emprego que eu estou que eu quero para o resto da minha vida. Eu quero ser algum na vida e adquirir o que meu. (Thain, 16, T519)10

    2) a busca de conhecimento, em uma tentativa de instrumentalizao11 individual e crescimento pessoal, foi identificada nas respostas de 23 educandos:

    O que me motiva a vir na escola a vontade de aprender e de terminar meus estudos. Ser um grande veterinrio na vida. (Pedro,17, T41)

    3) e o pertencimento social, calcado nas relaes estabelecidas com o grupo com que compartilham suas experincias na escola e, em alguns casos, fora dela tambm, foi percebido nas respostas de 12 educandos:

    Minha motivao para vir escola porque vrios amigos meus que comearam comigo no esto mais junto, da eu vejo que perdi muito tempo de brincadeira e da eu resolvi que fazer isso que eu fazia era uma bobagem porque eu via que meus amigos estavam na minha frente. (Bruno,17, T41) A grande maioria dos educandos retoma seus estudos em busca de reconhecimento social e

    melhoria em sua qualidade de vida, entretanto as motivaes se deslocam entre o anseio individual e o sentido coletivo. Suas trajetrias pessoais so importantes, mas a preocupao com a famlia, com o crculo de amizades ou com o grupo social, pertencente ou desejado, so vistos de forma diferente pelos alunos. Tambm de maneira diferente percebida a satisfao com o saber e a busca por melhores postos de trabalho, com projees de formao menos ou mais ambiciosas. No entanto, s vezes tais elementos so esquecidos pelos educadores destes jovens e adultos, que uniformizam uma maneira de ensinar que no observa as diferenas.

    Conhecer, ouvir os sujeitos pertencentes ao processo educativo, professores e alunos, avaliar e repensar, se necessrio, a prtica, pode conduzir a uma jornada de aprimoramento constante. Nesse sentido, preciso considerar

    9A fim de melhor situar o leitor, foram apresentados, junto ao nome, dados relativos idade e etapa de escolarizao/turma a que pertencia o educando no ano de 2011. 10Os nomes indicados so fictcios para preservar a identidade dos alunos que responderam s perguntas. 11 O sentido da expresso instrumentalizao, usada aqui e em outras partes do texto, no se reduz a um sentido funcional, pragmtico, mas tem a ver com um caminho ou possibilidade de empoderamento dos sujeitos em relao aos seus anseios quanto sua trajetria social, tanto no que se refere escola como fora dela.

    38%

    30% 32%

    Grfico 3. Etapa de escolarizao dos/as educandos/as entrevistados/as

  • Encantamento e permanncia na escola DOSSIE EJA II 14

    Quem so estes jovens? O que vo buscar na escola? O que significa para eles a instituio escolar? Qual o significado das experincias vivenciadas neste espao? Para grande parte dos professores, perguntas como estas no fazem sentido, pois a resposta bvia: so alunos. E essa categoria que vai informar seu olhar e as relaes que mantm com os jovens, a compreenso das suas atitudes e expectativas. Assim, independente do sexo, da idade, da origem social, das experincias vivenciadas, todos so considerados igualmente alunos, procuram a escola com as mesmas expectativas e necessidades. Para esses professores, a instituio escolar deveria buscar atender a todos da mesma forma, com a mesma organizao do trabalho escolar, mesma grade e currculo. A homogeneizao dos sujeitos como alunos corresponde homogeneizao da instituio escolar, compreendida como universal. (Dayrell, 2001, p. 139). Para a EJA, como especula Arroyo (2006), uma forma narrativa de trabalho com os

    conhecimentos parece ser caminho importante a ser seguido. Forma esta que se faz a partir da discusso em torno das experincias de vida dos sujeitos, dos significados que cada grupo vai descobrindo nas lutas por terra, por trabalho, nas vivncias da cidade e do campo, de tal modo que consigamos captar, valorizar e trabalhar os saberes, conhecimentos, culturas, interrogaes e significados que os adultos e jovens populares produzem em suas vivncias coletivas (p. 32).

    Trabalho, escola e mobilidade social

    O trabalho tanto porta de entrada, fator motivacional para que os alunos busquem a escola no intuito de melhorar sua qualidade de vida e seu poder aquisitivo, como porta de sada por incompatibilidade de horrios ou cansao pela dupla e estafante jornada de trabalho. Na pesquisa desenvolvida, quando os educandos jovens e adultos foram indagados sobre suas motivaes para a vinda escola, o desejo de mobilidade social foi a resposta mais frequente, com 55 entrevistados manifestando, em seus questionrios, a busca de escolarizao para galgar, na escala social, melhores postos de trabalho e melhores condies de vida. A busca pela certificao e/ou pela aquisio de saberes mais instrumentais, que possibilitem desempenhar alguma funo com mais eficincia no mundo do trabalho, move os alunos para ingressarem e permanecerem na escola:

    Bom! Em primeiro lugar quero me formar! Tenho em mente que s terminando meus estudos que vou conseguir algo melhor em minha vida. (Barbara, 19, T62) O que me motiva a vir para a escola a vontade de me formar e depois arrumar um bom emprego. Ir para uma faculdade e tambm me formar. (Wesley, 19, T42)

    Talvez pela necessidade de recuperao do tempo perdido, referida por alguns nas

    entrevistas, essa busca se acelera sem levar em conta a qualidade da aprendizagem ou, o que mais grave, alicerada em uma concepo de incapacidade dos alunos em elaborarem, com maior competncia, os temas e assuntos estudados pela fadiga de quem estuda noite ou por dificuldades cognitivas. Uma posio de comodidade tanto do professor como dos alunos que nem sempre so desafiados a desenvolver sua capacidade de produzir conhecimento.

    Outra caracterstica da EJA na lgica do atalho est na concepo de uma educao para a apropriao de um mnimo de contedos. Neste sentido, essa tendncia predominante tambm poderia ser denominada a lgica do pouco para quem pouco, com a apropriao deste mnimo, haveria a concretizao do objetivo principal dessa concepo, ou seja, os indivduos receberiam a almejada certificao, cumprindo o Estado a sua obrigao de fornecer a habilitao para que possam competir por posies subordinadas no mercado de trabalho. (Mileto, 2009, p. 93)

  • Arquivos Analticos de Polticas Educativas Vol. 22, No. 61 15

    Nessa perspectiva levantada por Mileto (2009), as projees futuras dos alunos que responderam s perguntas da entrevista poderiam ser frustradas. Alm disso, percebendo essa realidade, poderiam perder sua motivao inicial. Esta busca de uma vida melhor tambm pode esbarrar nas oportunidades ofertadas pelo modelo poltico e econmico de uma sociedade capitalista. A tendncia dos nossos alunos da Educao de Jovens e Adultos suprir as vagas de trabalho menos aquinhoadas de reconhecimento salarial e social. No entanto, no s nestes postos de trabalho mais subalternos residem as aspiraes dos alunos entrevistados como declaram Tayline, Juan e Marcos:

    Meu futuro, e que eu sempre levo comigo que um dia vou chegar aonde eu sempre quis, ser advogada. (Tayline, 15, T41) (grifos dos autores) Um pensamento de ser algum na vida, de ser chefe de alguma empresa. Ser dono de algo que voc batalhou o ano inteiro. Isso que me motiva. (Juan, 16, T51) (grifos dos autores) um motivo bom, porque eu poderei me formar para ter um bom futuro, depois de me formar tambm penso em fazer uma faculdade para ficar completa a minha ficha. (Marcos,15, T42) (grifos dos autores)

    A Educao de Jovens e Adultos representa, de fato, um passo em direo a esse propsito de futuro mencionado pelos alunos? Se esses educandos perdessem essa iluso continuariam na escola? Convm destacar que a escolarizao alvo tanto dos alunos, no seu desejo por mobilidade social, como do processo seletivo organizado pelos empregadores para preenchimento das vagas disponveis no mercado de trabalho. Mas que habilidades da formao escolar estes possveis empregadores aproveitam nos processos de seleo?

    Quais seriam os caminhos capazes, no mbito da educao escolar, de possibilitar a formao dos jovens e adultos trabalhadores que no represente mais um momento de no efetivao de um direito? Seria suficiente apenas a garantia da certificao? Qual o principal objetivo dos sujeitos que procuram a EJA, acesso ao conhecimento socialmente produzido pelo trabalho humano ou obteno de um certificado de concluso de ensino fundamental? Inegavelmente, a perspectiva de EJA [...] fundamenta-se em uma concepo de educao pblica mais prxima de um ritual meramente burocrtico, pelo qual o poder estatal concederia, benevolamente, um documento que habilitaria aquele que o possui o direito de pleitear, mas de forma alguma constituindo uma garantia, uma ocupao no concorrido mercado de trabalho. (Mileto, 2009, p. 103-104)

    Convm destacar que a possibilidade de mobilidade social, no modelo econmico vigente, reduzida. Este modelo econmico tem produzido mais excluso do que possibilidades outras de incluso aos educandos jovens e adultos. Do ponto de vista dos dinamismos sociais, no se pode ignorar a ascenso social de alguns indivduos. Todavia, ela pouco significa se considerarmos a permanncia de uma estrutura econmica que produz excluses insistentemente, preservando a desumana misria e explorao da maioria dos trabalhadores (Mileto, 2009, p. 114). Pertencimento social

    Ao mesmo tempo em que os alunos expressam, de maneira to contundente, essa necessidade e desejo de ascenso e mobilidade social, ficou evidente, na pesquisa realizada, uma busca por pertencimento social. Os alunos desejam pertencer a outro grupo e no ao seu de origem, mas, em contrapartida (e talvez contraditoriamente), sentem a necessidade de consolidar relaes

  • Encantamento e permanncia na escola DOSSIE EJA II 16

    sociais tambm com o grupo de que fazem parte originalmente, mantendo alguns vnculos afetivos de suporte para continuar sua trajetria.

    Na construo de suas identidades, os educandos jovens e adultos dividem tempo e espao com colegas e professores. Este convvio pode ser facilitador, ou no, da permanncia na escola, pois os professores, por vezes, no percebem que, na relao com o outro, nossos alunos efetivamente se desvelam como, s vezes, no conseguem se mostrar em um trabalho escolar de poucos pontos de contato com seus interesses. Por outro lado, quando estas relaes e marcas culturais so consideradas, podem-se criar condies para aprendizagens significativas. Reconhecer as aspiraes dos educandos, em uma perspectiva mais ampla, e adequar as propostas de trabalho, nessa direo, talvez permita evidenciar alguns fatores de permanncia. Carmo (2009) destaca que

    [...] a questo do retorno escola pode ser abordada como tambm envolta em outro mito, o da idealizao da escola, ou da iluso fecunda, como diz Sposito (1993)12. Com a evaso da EJA no acontece o mesmo, posto que ela transborda inclusive o campo da educao, no s porque abrange os indivduos que no mais voltam escola, mas, principalmente, porque suas causas no se restringem a aspectos individuais [...]. (Carmo, 2009, p. 21).

    perceptvel a falta de interesse e motivao por parte de alguns educandos em relao s

    atividades apresentadas a eles no cotidiano. Descartando a falta de interesse pessoal, o no estar nem a de alguns, tambm recebemos crticas de alunos interessados sobre atividades que julgam enfadonhas.

    Eu gosto de Educao Fsica e no gosto de Portugus, porque temos que s ler e ler. (Helen, 17, T52) No gosto de algumas matrias, mas gosto de outras e principalmente da quarta-feira que no tem aula. (Samara, 19, T51) Matemtica completamente chato, no gosto, me perturba. (Manuel, 16, T41)

    No dilogo entre os atores, a possibilidade de encontro entre os anseios e motivaes, que impeliram os alunos a buscar a Educao de Jovens e Adultos, e o ambiente educativo, que palco da aprendizagem, precisa efetivar-se de forma significativa. Talvez desta maneira, com uma ao pedaggica que leve em considerao a cultura dos aprendentes, as aprendizagens constitudas e desejadas pelos educandos possam auxiliar no s na sobrevivncia imediata, como na transformao de seus modos de existir no mundo tal como sugere Ernani Maria Fiori no prefcio de Pedagofia do Oprimido de Paulo Freire (1987):

    A educao libertadora incompatvel com uma pedagogia que, de maneira consciente ou mistificada, tem sido prtica de dominao. A prtica de liberdade s encontrar adequada expresso numa pedagogia em que o oprimido tenha condies de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua prpria destinao histrica. Uma cultura tecida com a trama da dominao, por mais generosos que sejam os propsitos de seus educadores, barreira cerrada s possibilidades educacionais dos que se situam nas subculturas dos proletrios e marginais. Ao contrrio, uma nova pedagogia enraizada na vida destas subculturas, a partir delas e com elas, ser um contnuo retomar reflexivo de seus prprios caminhos de liberao; no ser simples reflexo, seno reflexiva criao e recriao, um ir adiante nestes caminhos: mtodo, prtica de liberdade, que, por ser tal,

    12 Sposito, M.P.. A recusa da escola. In: Sposito, M.P. (1993) A Iluso Fecunda: a luta por educao nos movimentos populares. So Paulo: Hucitec; Edusp. p. 337-90.

  • Arquivos Analticos de Polticas Educativas Vol. 22, No. 61 17

    est intrinsecamente incapacitado para o exerccio da dominao. A pedagogia do oprimido , pois, liberadora de ambos, do oprimido e do opressor. (p. 5)

    A apropriao da cultura j produzida pela humanidade de extrema relevncia desde que ela se alicerce no j conhecido para criar e recriar significados. Mas a intencionalidade deste trabalho, buscando pontos de contato com a vida e a cultura dos aprendentes, que possibilitar o conhecimento. Quando a escola se torna importante para os sujeitos, nos deparamos com educadores motivados e alunos determinados a permanecer nela.

    O que acontece conosco que se o que aprendemos no tem sentido, no atende a alguma necessidade, no aprendemos. O que aprendemos tem que significar para ns. Alguma coisa ou pessoa significativa quando ela deixa de ser indiferente. Esquecemos o que aprendemos sem sentido, o que no pode ser usado. Guardar coisa intil burrice. O corpo aprende para viver. isso que d sentido ao conhecimento. O que se aprende so ferramentas, possibilidades de poder. O corpo no aprende por aprender. (Gadotti, 2003, p. 47-48) Na pesquisa realizada foram identificados posicionamentos que no parecem evidenciar falta

    de envolvimento do educando com a escola, mas interesse dos alunos numa relao maior da prtica pedaggica com seus anseios de sociabilidade como demonstram os trechos destacados.

    O que motiva sua vinda escola? Para mim vir escola, o que eu gosto mais vir pra conversar com os colegas, conhecer mais amigos... (Jonathan, 16, T42) (grifos dos autores) Na escola, de que voc gosta? E do que voc no gosta? Por qu? Gosto dos professores e dos colegas. Eu no gosto do recreio. Eu acho que devia ter mais tempo13. (Gabriel, 18, T62) (grifos dos autores) O que me motiva que em um ano fazemos as duas sries numa s. Isto uma oportunidade e tanto. Eu gosto porque so apenas quatro dias de aula e no exige os mesmos padres que nas outras escolas e no gosto do recreio, por ser muito curto. Gosto da janta por ser gostosa e da ateno dos professores com os alunos. (Jessica, 17, T51) (grifos dos autores) Mais do que falta de interesse, ou a facilidade de cursar a modalidade de ensino Educao de

    Jovens e Adultos na escola em que ocorreu a pesquisa, relatada na fala de Jessica, estas manifestaes apresentam um caminho de abordagem para a prtica pedaggica. As trocas com os colegas e as atividades de socializao tm grande importncia para os alunos. Talvez, em uma perspectiva de intencionalidade pedaggica, consigamos, utilizando este interesse por momentos de socializao, abordar temas que tenham relevncia tanto para os alunos como para os professores em seu planejamento curricular.

    Olhar a instituio escolar pelo prisma do cotidiano permite vislumbrar a dimenso educativa presente no conjunto das relaes sociais que ocorrem no seu interior. A questo que se coloca que essa dimenso ocorre predominantemente pela prtica usual dos alunos, revelia da escola, que no a potencializa. Os tempos que a escola reserva para atividades de socializao so mnimos, quando no reprimidos. (Dayrell, 2001, p. 151)

    13 Quanto resposta de Gabriel convm destacar que, a partir da anlise feita aqui, a referncia ao pouco tempo de recreio no foi tomada como equivalente a desinteresse pelas outras atividades propostas na escola, mas como compreenso da escola enquanto espao de socializao: o recreio, dessa forma, traduziria um tempo em que esta socializao, nem sempre promovida em aula, ocorre.

  • Encantamento e permanncia na escola DOSSIE EJA II 18

    A relao conflituosa entre os jovens e os mais velhos, ao mesmo tempo em que perturba o segundo grupo, enriquece as relaes. Na pesquisa no so citados, pelos mais jovens, em nenhum momento, os alunos de mais idade, mas, na perspectiva aqui descrita, podemos imaginar que, havendo ocupao do mesmo espao, alguma influncia ocorra. E, pela experincia de trabalho no ambiente em que ocorreu a pesquisa, as reaes de impacincia foram raras, enquanto que a tolerncia e as trocas com respeito imperaram.

    O que motiva sua vinda escola? Primeiro o auxlio a minha filha de 13 anos, aluna da escola, pois aos meus 65 anos no me lembrava de quase nada e agora j posso ajud-la. E o bem estar moral de vencer ainda, de ser capaz ainda e de encontrar gente jovem. (Marcelo, 65, T61) (grifos dos autores) Na escola, de que voc gosta? Do que no gosta? Por qu? Gosto muito do que acabei de citar, muita gente jovem e principalmente de sentar novamente num banco escolar. No gosto de alguns jovens que vem escola perder tempo, pois tiram o lugar de outro. (Marcelo, 65, T61) (grifos dos autores)

    O que motiva sua vinda escola? Para tentar me reencontrar com o mundo novamente e tentar que meus filhos voltem ao reencontro novamente com a escola. (Daniel, 59, T41) (grifos dos autores)

    O evidente carter de interrupo de trajetria de vida, que encontramos nas manifestaes de Marcelo e Daniel, ambos com mais de 60 anos, indica uma retomada, uma apropriao social que foi negada em determinado momento. No sendo considerado por eles o desejo de melhor colocao no mercado de trabalho, fica a necessidade de pertencimento e reconhecimento e a satisfao com a prpria produo de seu saber e da sua histria.

    Nesta ordem de raciocnio, a Educao de Jovens e Adultos (EJA) representa uma dvida social no reparada para com os que no tiveram acesso e nem domnio da escrita e da leitura como bens sociais, na escola ou fora dela, e tenham sido a fora de trabalho empregada na constituio de riquezas e na elevao de obras pblicas. Ser privado deste acesso , de fato, a perda de um instrumento imprescindvel para uma presena significativa na convivncia social contempornea. (Cury, 2000, p. 5) Este resgate social no atinge somente as relaes estabelecidas com a comunidade atuante

    no ambiente escolar, mas ocorre tambm internamente no sujeito, motivando a trilhar por novos caminhos, constituindo sua condio humana de ser inacabado e desenvolvendo sua autoestima. Sobre essa construo do ser humano, Ernani Maria Fiori, na Pedagogia do Oprimido (Freire, 1987), diz:

    Eis porque, em uma cultura letrada, se aprende a ler e escrever, mas a inteno ltima com que o faz, vai alm da alfabetizao. Atravessa e anima toda a empresa educativa, que no seno aprendizagem permanente deste esforo de totalizao jamais acabada atravs do qual o homem tenta abraar-se inteiramente na plenitude de sua forma. a prpria dialtica em que se existencia o homem. Mas, para isto, para assumir responsavelmente sua misso de homem, h de aprender a dizer sua palavra, pois, com ela, constitui a si mesmo e a comunho humana em que se constitui; instaura o mundo em que se humaniza, humanizando-o. Com a palavra o homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condio humana. (p. 7) O que aparece de uma maneira significativa nos dois grupos, jovens e adultos, constatado em

    uma observao cotidiana, certo receio em retomar a convivncia escolar. Esta observao foi

  • Arquivos Analticos de Polticas Educativas Vol. 22, No. 61 19

    possvel, porque um dos pesquisadores professor na escola investigada, desenvolvendo seu trabalho junto aos alunos que responderam s perguntas. Uma tal proximidade permitiu contato dirio e acompanhamento da trajetria escolar tanto de alunos que cursaram exclusivamente a Educao de Jovens e Adultos como de alunos que pertenciam escola, interromperam sua caminhada e a retomaram, iniciando sua histria na EJA em funo desta retomada.

    O receio de retomada da caminhada escolar talvez ocorra pelo anterior no estabelecimento, no espao educacional, de relaes consideradas significativas pelos educandos, talvez pela inadequao da proposta pedaggica vivenciada anteriormente, ou mesmo pelo longo tempo de afastamento da escola. Merecedora de um olhar mais aprofundado, esta questo pode indicar caminhos de acolhimento que possibilitem uma boa e mais rpida socializao dos sujeitos, favorecendo o processo de construo de conhecimento. Este sentimento no exclusividade regional. Encontra correspondncia, por exemplo, em escola localizada no estado do Rio de Janeiro onde Lus Fernando Mileto desenvolveu pesquisa sobre a permanncia do educando jovem e adulto, em 2009, e que est descrita e analisada em sua dissertao de mestrado: No mesmo barco, dando fora, um ajuda o outro a no desistir Estratgias e trajetrias de permanncia na Educao de Jovens e Adultos: Os recorrentes depoimentos que, sob diferentes justificativas, explicitaram o medo de voltar a estudar, exemplificam esse processo de insero em um espao social pouco familiar ou marcado por memrias, geralmente, pouco prazerosas (Mileto, 2009, p. 200). Cabe construir, assim, um ambiente educativo no qual as trocas sejam oportunizadas com intencionalidade pedaggica, fazendo parte do conceito de aprendizagem concreta e significativa, abraado como meta no processo. Esta mistura de socializao com conhecimento inerente construo dos sujeitos. Como diz Mileto, por meio da constituio de identidades estabelecidas pelo pertencimento, reforavam-se os processos de construo de estratgias de suporte mtuo, favorecendo o sucesso escolar dos alunos componentes destas redes sociais caracterizadas pelas relaes de amizade, cooperao e solidariedade (Mileto, 2009, p. 198) o que sublinhado pelas palavras de Igor:

    O que motiva sua vinda escola? As novas amizades. Aulas que prendem a ateno. Querer melhorar a si mesmo. Colegas mais maduros. Na escola, o que voc gosta? Das aulas, principalmente de Cincias, que prende bastante a ateno. Todos os alunos so amigos, no h brigas e discusses. Todos se respeitam. (Igor, 18, T61)

    Escola, conhecimento e mito Outro aspecto bastante salientado pelos alunos, na pesquisa realizada, foi a vinda, ou o

    retorno, para a escola em busca do conhecimento, do aprender o necessrio para viabilizar seus projetos pessoais futuros ou imediatos. A escola, no discurso dos sujeitos entrevistados, responsvel pela educao vista, por eles, como caminho redentor e condio fundamental para a ascenso social e formao do indivduo. Baseados no mito da escola, os alunos retomam ou iniciam seus estudos formais, acreditando que longe dela no h salvao.

    Os discursos fundadores deste mito partem de vrios segmentos. Os empregadores exigem a educao formal, compreendida como certificao, para habilitar o jovem ou adulto seleo para uma vaga de trabalho disponvel. As famlias, quase todas, gostariam que os filhos tivessem o estudo que, para eles, na sua histria de vida, foi impossvel ter. Os professores salientam a importncia do saber e da formao. Polticos, em campanhas eleitorais, elegem a educao como item principal de suas plataformas, prometem mais escolas, mais recursos, melhores salrios aos professores e especial valorizao da educao.

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    Bombardeados, por todos os lados, os alunos, diante do conceito social estabelecido, creem que a escola caminho de melhores oportunidades. Chegam convencidos disso e, mesmo no aparecendo os recursos e valorizao prometidos pelo poder pblico, mesmo, em alguns casos, no recebendo o devido apoio familiar, desenvolvem competncias e habilidades que os impulsionam na sua trajetria de vida. A escola, os professores e as relaes sociais os auxiliam neste processo de conquistas pessoais, que passam tambm por sua individualidade e motivao.

    O que motiva sua vinda escola? Em primeiro lugar eu. E pelos meus pais quero me formar em veterinria e mostrar que eu posso e que sou capaz, mesmo minha famlia no dando o apoio que eu mereo. (Gabriela, 15, T41) (grifos dos autores) Bom, eu venho escola para adquirir conhecimento e tambm porque eu preciso para ser algum na vida. O estudo muito importante para abrir portas no futuro e tambm para no ser mais uma analfabeta e no deixar os polticos fazerem o que querem no nosso pas, porque para eles quanto mais analfabetos melhor. (Diule,17, T61) (grifos dos autores)

    Com certeza, a escola necessita ser reformulada, repensada. preciso redefinir espaos e tempos, porm, sozinha ela no dar conta de todos os anseios e necessidades dos aprendentes que a procuram na esperana de escreverem sua histria de outro modo.

    [...] qualquer instituio, por si s seja a escola, o trabalho ou aquelas ligadas cultura , pouco pode fazer se no estiver acompanhada de uma rede de sustentao mais ampla, com polticas pblicas que garantam espaos e tempos para que os jovens possam se colocar de fato como sujeitos e cidados, com direito a viver plenamente a juventude (Dayrell, 2003, p. 51).

    Na pesquisa realizada, os alunos demonstraram grande apreo por seus professores tanto em sua condio de ensinantes como de parceiros em suas histrias de vida. No entanto, percebemos, tambm, uma situao tensa relacionada diretamente s atitudes de alunos e de professores respectivamente: por um lado, alguns alunos so desmotivados diante de qualquer proposta de trabalho pedaggico, por outro lado, algumas propostas no dialogam com o cotidiano e com a bagagem cultural destes alunos.

    Os alunos so vistos de forma homognea, com os mesmos interesses e necessidades, quais sejam o de aprender contedos para fazer provas e passar de ano. Cabe, assim, ao professor ensinar, transmitir estes contedos, materializando seu papel. O professor parece no perceber, ou no levar em conta a trama de relaes e sentidos existentes na sala de aula. O seu olhar percebe os alunos apenas enquanto seres de cognio, e, mesmo assim, de forma equivocada: sua maior ou menor capacidade de aprender contedos e comportamentos; sua maior ou menor disciplina. [...] o conhecimento aquele consagrado nos programas e materializado nos livros didticos. O conhecimento escolar se reduz a um conjunto de informaes j construdas, cabendo ao professor transmiti-las e, aos alunos, memoriz-las. So descontextualizadas, sem uma intencionalidade explcita e, muito menos, uma articulao com a realidade dos alunos. [...] a pergunta imediata poderia ser: quais so os objetivos desta unidade? Qual a relao que existe com a realidade dos alunos? O que e em que este tema acrescenta algo ou importante para cada um deles? (Dayrell, 2001, p. 155)

    Mesmo assim, mitos parte, os alunos destacam a disponibilidade dos professores e as consequncias de suas propostas de trabalho:

    Gosto de estudar, de ouvir as opinies dos professores, sempre nos ensinam algo a mais... (Cristina, 49, T61)

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    O que motiva eu vir escola o conhecimento que obtenho a cada dia com os professores. Eu gosto da maneira que cada professor tem ao ensinar. Bah, os professores so muito legais. Abordam temas interessantes. (Maria Eduarda, 18, T52)

    A viso e posicionamento dos professores em relao aos seus alunos podem, de maneira decisiva, influenciar no seu rendimento e na constituio de identidades no ambiente educativo. Como adverte Dayrell (2001),

    Nessa construo de imagens e esteretipos, mesmo sendo fruto das relaes entre alunos e professores, o discurso e a postura destes tm uma influncia muito grande, interferindo diretamente na produo de tipos de alunos e da prpria turma. Uma turma pode ser bagunceira ou fraca para uns professores e no o ser para outros, mas certamente isso interfere na autoimagem, e ela pode assumir de fato o tipo ou abrir o conflito com o professor. [...] De uma forma ou de outra, a construo destas autoimagens interfere, e muito, no desempenho escolar da turma e do aluno, refletindo tambm no seu desempenho social, em outros espaos alm da escola. Existe uma dimenso educativa nas relaes sociais vivenciadas no interior da instituio, nesse processo de produo de imagens e esteretipos, que interfere na produo da subjetividade de cada um dos alunos, de forma positiva ou negativa. (Dayrell, 2001, p. 154)

    O professor no apenas um apndice na organizao relacional estabelecida na escola. No gosto da educao de alguns professores, s porque acham que so professores acham que podem mandar e esculachar o aluno. (Juan, 16, T51) (grifos dos autores) Um momento marcante na escola foi quando teve professores que notaram que fiquei um pouco desmotivado com certos acontecimentos, mas tive a ajuda de professores que me motivaram a ir em frente. Pois agradeo. Isso nos motiva. Espero que no s a mim, mas a todos que querem alcanar seus objetivos. (Luis Fernando, 28, T52) (grifos dos autores)

    O envolvimento dos professores no ambiente educativo, fazendo, com ateno e

    disponibilidade, uma leitura adequada no s do processo de aprendizagem, mas das singularidades dos alunos, pode ser o diferencial para a produo de conhecimentos e funcionar como fator de permanncia e pertencimento.

    Ambiente educativo e permanncia ou Novas amizades, aulas que prendem a ateno,

    querer melhorar a si mesmo O papel do professor, no campo afetivo e relacional, pode ser de vital importncia para o

    sucesso do aprendizado e, consequentemente, para a permanncia dos alunos na Educao de Jovens e Adultos. Na perspectiva da prtica pedaggica, nos deparamos com a mesma importncia. Abordagens significativas, com reconhecimento, pelo jovem e adulto, de sua aplicabilidade prtica, e estabelecimento de relaes com a vida cotidiana preparariam, talvez, os aprendentes para o enfrentamento das dificuldades, agregando conhecimentos para melhor aproveitar oportunidades no campo do saber. Contedos pouco relevantes ao aluno ou assuntos que no estabelecem ponto de contato com seu cotidiano podem gerar inadequao do ambiente educativo e afast-lo de sua formao, como relata a aluna Juliana, 16 anos, da turma T41:

    Em algum momento voc pensou em desistir de estudar?

  • Encantamento e permanncia na escola DOSSIE EJA II 22

    Sim. Eu at cheguei a parar, mas eu achei melhor voltar. Todos desistem porque a escola anoja, muito ruim estudar. Mas como preciso... (grifos dos autores)

    Em contrapartida, essa mesma aluna, apesar deste sentimento, refere um momento marcante em sua trajetria na Educao de Jovens e Adultos o que revela que, para ela, no s de situaes desagradveis esto sendo constitudas suas experincias na escola:

    (O momento marcante) foi quando eu passei no teste de Geografia. Interessante uma aluna que diz possuir asco pela escola eleger como momento marcante seu sucesso em uma avaliao. Disto decorre pensar que, no processo de reconhecimento da cultura discente e de avaliao da prtica pedaggica que, s vezes, de maneira automtica, os professores reproduzem ano aps ano, poder-se-iam ressignificar os assuntos abordados, ouvindo as falas dos alunos, tentando compreender seus significados.

    Eu pensei em desistir porque eu rodei algumas vezes, da era chato todo ano ver as mesmas coisas que eu j tinha aprendido no ano anterior. E acho que pelo mesmo motivo os outros colegas tambm param de vir aula. Eu gostaria que melhorasse o ensino aqui na escola, porque muitas pessoas quando vo para o 2 grau, que eram aqui da escola, acabam repetindo de ano por conta do ensino ser muito fraco. (Kemilym,16, T52) (grifos dos autores) Evidente que devemos considerar as responsabilidades da aluna Kemilym para com seu

    desempenho e seu comprometimento como estudante, mas sua crtica tambm pode mobilizar discusses, visto que ela percebe a repetio de contedos e, tomando conscincia deste fato, ainda menciona, por conhecimento do seu meio social, que colegas que prosseguiram sua caminhada educativa encontraram dificuldades em outras escolas. A escola precisa ser um ambiente acolhedor, de dilogo entre os sujeitos que a compem, pessoas que compartilham uma caminhada de vida e so responsveis pelo apoio realizao dos projetos dos educandos.

    Nunca pensei em parar (de estudar). As pessoas param por ter de trabalhar, por falta de nimo, por ter medo de no passar... (Priscila,17, T62). (grifos dos autores) No pensei (em parar) porque esse ano, depois de muitos anos sem estudar, resolvi tomar um rumo melhor em minha vida e nesses planos estavam os estudos. Na minha opinio, muita gente desiste porque muito difcil conciliar a vida com os estudos e ter tempo para os dois. Mas preciso passar por cima de muitas dificuldades. (Alana, 20, T61). (grifos dos autores)

    Esta desvinculao da vida com a escola, relatada pelas alunas, deveria ser motivo de grande preocupao por parte dos educadores. No ambiente escolar, vrias so as experincias vividas, muito tempo se passa junto com os alunos o que j deveria ser suficiente para a promoo de investimentos outros, de aes outras. Pensando nisto, referimos a Escola da Ponte, de Portugal, conhecida como experincia inovadora no campo educacional14. Ela nos traz, em seu projeto pedaggico, algumas opes que, talvez, nos possibilitem reconhecer caminhos de interveno outra quanto atuao dos orientadores educativos:

    26. Para que seja assegurada a perenidade do projeto e seu aprofundamento e aperfeioamento, indispensvel que, a par da identificao de dificuldades de aprendizagem

    14 Rubem Alves, no livro A Escola que Sempre Sonhei Sem Imaginar que Pudesse Existir (2001), descreve sua visita Escola da Ponte, em Vila das Aves (Porto, Portugal).

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    nos alunos, todos os orientadores educativos reconheam e procurem ultrapassar as suas dificuldades de ensino ou relao pedaggica. 27. O orientador educativo no pode ser mais entendido como um prtico da docncia, ou seja, um profissional enredado numa lgica instrutiva centrada em prticas tradicionais de ensino, que dirige o acesso dos alunos a um conhecimento codificado e predeterminado. 28. O orientador educativo , essencialmente, um promotor de educao, na medida em que chamado a participar na concretizao do Projeto Educativo da Escola, a co-orientar o percurso educativo de cada aluno e apoiar os seus processos de aprendizagem. [...] 32. A organizao do trabalho na escola gravitar em torno do aluno, devendo estar sempre presente no desenvolvimento das atividades a ideia de que se impe ajudar cada educando a alicerar o seu prprio projeto de vida. S assim a escola poder contribuir para que cada aluno aprenda a estar, a ser, a conhecer e a agir.15

    Cabe destacar que ambiente educativo, vrias vezes mencionado neste trabalho, compreende uma gama de fatores, subjetivos e objetivos, a partir dos quais resultam, de maneira positiva, situaes que favorecem a aprendizagem, em um sentido de autonomia e empoderamento dos sujeitos. No que tange ao empoderamento (ou empowerment), cabe lembrar o que Freire diz quando, ao discutir sua compreenso sobre este conceito, explica que ele transcende a noo de empoderamento como atividade isolada, mas est ligado classe social, ao saber de classe das comunidades:

    A questo do empowerment da classe social envolve a questo de como a classe trabalhadora, atravs de suas prprias experincias, sua prpria construo de cultura, se empenha na obteno de poder poltico. Isto faz do empowerment muito mais do que um invento individual ou psicolgico. Indica um processo poltico das classes dominadas que buscam a prpria liberdade da dominao, um longo processo histrico de que a educao uma frente de luta (Freire e Shor, 1992, p. 138).

    Esses sentidos todos esto respingados pelo dizer a sua palavra, pelo autobiografar-se nos

    contextos e prticas a partir dos quais os sujeitos vo produzindo sua subjetividade e sua identidade, que atravessada pelos acontecimentos de suas vidas, de seu estar no e com o mundo, no e com o outro, por seus modos de se constiturem autores, protagonistas de sua histria e produtores de conhecimento (Autor, 2010, p. 55). Henry Giroux (2002) ainda destaca a necessidade de esta relao entre empoderamento, autoria e protagonismo social se traduzir em compromisso a partir do qual os alunos sejam introduzidos a uma linguagem do empowerment e da tica radical que lhes permita pensar a respeito de como a vida em comunidade deve ser construda em torno de um projeto do possvel (p. 21).

    Resulta disso que o ambiente, para ser educativo, precisa considerar sempre as vozes e os modos de os educandos, os educadores e todos os que vivem a escola se fazerem sujeitos do coletivo escolar, visando constituio de comunidades capazes de criar condies organizacionais propcias para a permanente construo e reconstruo crtica da prtica educativa. Em outras palavras, um ambiente que se (re)faz desde uma pedagogia do empoderamento articulada a projetos sociais que intentem intensificar a possibilidade humana de tal modo que os educandos tenham a oportunidade de utilizar a sua prpria realidade como contedo da vida que dialoga com os

    15 Tpicos retirados do projeto educativo da Escola da Ponte, enviado aos professores que participaram do curso on line Fazer a Ponte, em 2011, que ofereceu a oportunidade de conhecer o funcionamento da Escola da Ponte, sua metodologia, prtica educativa, o desenvolvimento da autonomia, da motivao, da disciplina e da avaliao dos alunos. O projeto completo est disponvel em http://portal.eb1-ponte-n1.rcts.pt/.

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    contedos escolares e os afeta: A voz dos alunos jamais deve ser sacrificada, uma vez que ela o nico meio pelo qual eles do sentido prpria experincia no mundo (Macedo, 2002, p. 100).

    Assim sendo, fazem parte dos aspectos necessrios constituio do ambiente educativo a atuao dos professores o que envolve seu fazer pedaggico, sua percepo da vida e cultura dos alunos, seu olhar atento e afetivo, seu contnuo aprendizado e trabalho colaborativo. Tambm a atuao dos alunos, vivenciando as experincias propostas e envolvendo-se com o trabalho, participando com sua experincia de vida e buscando relacionar a escola com o mundo conhecido e, para alm dele, com o mundo possvel a partir de suas novas descobertas. A organizao pedaggica e administrativa, no estabelecimento dos tempos e espaos, bem como na elaborao dos currculos, torna-se de verdadeira e fundamental importncia nessa compreenso de ambiente educativo. Ainda o espao fsico, onde todas estas relaes, sociais e de aprendizagens, se desenvolvem, elemento tambm relevante e precisa oferecer condies materiais adequadas para o ensino.

    Os alunos, participantes desta pesquisa, em sua maioria deixam claro sua satisfao com o empenho e envolvimento dos professores no seu projeto de escolarizao presente. Esta atuao docente engajada com as realidades de vida dos educandos, alm de agregar conhecimentos, serve de combustvel para sua permanncia, possivelmente fazendo o momento da trajetria to importante como as aspiraes futuras dos aprendentes. Estes momentos convergem para o que j foi mencionado neste texto: as relaes positivas estabelecidas, somando vivncias de sociabilidade e contedos, talvez sirvam, no s para agregar conhecimentos, mas tambm como ferramenta de empoderamento dos sujeitos na relao com o mundo.

    No seu tempo de EJA, que momento foi marcante? Foi que eu aprendi o que tinha deixado muito tempo atrs sem estudar. Fui muito bem recebida pelos professores. Achei que depois de alguns anos no saberia fazer as tarefas escolares. Hoje me sinto muito vitoriosa de chegar at aqui. (Renata,35, T61) (grifos dos autores) Eu gosto de estudar, e tambm das aulas de Cincias, Ingls e Geografia. Para mim so professores que nos incentivam muito em nossos estudos. (grifos dos autores) Em algum momento voc pensou em desistir de estudar? Sim. No comeo achei que no iria aguentar ficar dentro de uma sala de aula, que era justamente na aula de Portugus, que a professora s nos dava textos e falava e eu comecei a me aborrecer. Mas com o passar das aulas aprendi que no era bem assim. Meu momento marcante foi descobrir coisas boas para mim e quando eu peguei meu boletim. Foi uma coisa bem marcante, ou seja, emocionante, quando voc pensa por que ter parado de estudar. (Andressa, 27, T61) Todos os dias so timos, mas a cada dia fico feliz com algum trabalho que fao e acerto. Meu ingls, embora saiba pouco ainda, jamais vou esquecer estas aulas. Nunca antes imaginei que estudaria ingls. (Micaela, 54, T61) (grifos dos autores) Em algum momento voc pensou em desistir de estudar? Sim. Quando no conseguia entender a matria. No seu tempo de EJA, que momento foi marcante? No fim de cada etapa quando vejo que cheguei a algum lugar. Que subi um degrau a mais nesta grande escadaria que a vida e a sociedade exigem da gente.(Cristina, 49, T61)

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    Na escola onde estudam os alunos que participaram desta pesquisa, no segundo semestre de 2011, ocorreu um projeto coletivo planejado e executado com ampla participao de docentes e alunos. O envolvimento do coletivo de agentes da escola e da comunidade bem exemplifica uma prtica pedaggica com significncia para o educando e, tambm, para o educador. A Secretaria Municipal de Educao do Municpio de Porto Alegre, anualmente, prope um trabalho denominado Adote um Escritor: a escola escolhe um autor, trabalha com os alunos sua obra, recebe livros e, se possvel, a visita do autor. No perodo supracitado, todos, de alguma forma, trabalharam o texto da pea de teatro Bailei na Curva16, do ator, diretor e escritor Julio Conte17. O texto foi trabalhado na disciplina de Portugus, o perodo cronolgico foi trabalhado nas aulas de Histria, partes da pea foram encenadas na disciplina de Arte-Educao, enfim, de alguma forma todos se envolveram. Em alguns momentos, todos os alunos e todos os professores se reuniram no mesmo espao no ginsio, na rea externa, onde encenavam, cantavam e discutiam muito. O projeto no foi esquecido pelos alunos:

    Que momento foi marcante? O aprendizado. Amigos e professores. E a visita do Julio Conte no ano passado, na apresentao. (Cristina, 16, T51) Momento marcante foi no final do ano passado, quando o autor veio at a escola, porque gostei. Porque naquele momento ele no se importou em vir at uma escola que fica entre vilas. Ele apenas se importou em dar sua ateno. (Daniele, 18, T51)

    O momento marcante foi quando teve a apresentao que os alunos da escola prepararam para o autor Julio Conte. (Thain, 16, T51) Teve vrios, mas o mais marcante foi no ano passado quando um escritor elogiou nosso trabalho. (Esther, 33, T61) No ano passado participar da pea e da presena do autor Julio Conte. (Ana, 50, T51)

    Quando da visita do autor escola, ele falou sobre sua obra e a debateu com os alunos. Foi apresentado um pouco da construo e apropriao da obra, pelos educandos, a seu autor. Transcrevemos, agora, as suas impresses a respeito do trabalho:

    Onde as Imagens Permanecem18 Fui a dois eventos em dois dias seguidos. Tera compareci a uma escola municipal no corao da Vila Tronco e quarta no Leopoldina Juvenil para o lanamento do livro sobre Porto Alegre de Leonid Streliaev. Na tera foi comovente. Um homem de sessenta anos lendo em pblico pela primeira vez. Ele l o texto inicial de Bailei na Curva: O Brasil pode explodir a qualquer momento em qualquer direo... D uma entonao de Reprter Esso. Ele cria referncia, se relaciona com o texto, l em voz alta. Depois a cena do Aborto. Conceio, uma mulher que traz no rosto as marcas do seu trabalho, entra nervosa, com texto na mo, quase chorando de emoo d as falas do personagem Rodrigo. (Na primeira

    16 "Bailei na Curva", pea dirigida por Julio Conte, mostra a trajetria de sete crianas, vizinhas na mesma rua, percorrendo trs dcadas, do golpe militar de 1964 ao Movimento de Diretas J. Embalados por inesquecveis canes, na sonoridade de discos de vinil, inmeros personagens nos fazem relembrar importantes momentos da histria do Brasil. 17 Julio Conte (Caxias do Sul, 1955) um psicanalista, diretor de teatro, ator e dramaturgo brasileiro. Formou-se em Direo Teatral em 1984 e em Medicina em 1985, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 18 Texto disponibilizado pelo autor em sua pgina: http://julioconte.com.br/

  • Encantamento e permanncia na escola DOSSIE EJA II 26

    montagem fui eu que interpretei.) Depois, Ruth interpretada por uma menina, Luciana, parece mais segura do texto, controla a situao de dentro da cena. Ajuda as atrizes. Solidariedade. Jacar interpretado por outra aluna. Quando cheguei escola perguntei que personagem ela iria interpretar. Ela respondeu: Jacar. Pensei, puxa, uma menina. No entanto, quando ela entra em cena eu no a reconheo. Quem eu vejo em cena o Jacar. No a atriz. Depois comea a cena da Reunio Danante. A pesquisa musical excelente, d o clima. Os atores desta vez so