Machado, M - Pelo cheiro do tição

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    Monica Machado Aggio

    escrito em setembro de 2013 para a seleo de Doutorado doPrograma de Ps-graduao em Cincia da Literatura. (2014/1 sem.)

    Memorial

    Pelo cheiro do tio sabe-se a madeira que queimou

    provrbio.

    Tornei-me mestre em Cincia da Literatura em maro deste ano e

    posso dizer que a estudante que sou na Academia e na relao que

    mantenho com minhas curiosidades, coragens e desconfianas tem no

    dito popular o papel do tio. No mestrado, iniciado em 2011,

    minha proposta de trabalho sobre o trabalho de Alberto Mussa

    estava j fatalmente interessada nos modos de escrever; por minhas

    inclinaes profissionais, pela prtica diria e pela graduao em

    Literaturas, resolvi me dedicar ao estudo daquela narrativa e vi,

    durante o curso das disciplinas, que outras sugestes,

    pensamentos, ideias, sentidos e alegorias aconteciam e me

    intrigavam; s no tinha nesse tempo compreendido exatamente os

    motivos. E na escrita da dissertao, Alberto Mussa e a devorao

    da ordem, nunca trabalhei sozinha; tinha sempre a orientao

    precisa, exigente e determinada de Ronaldo Lima Lins; e foi com a

    generosidade dos professores e a comparsaria de meus colegas que

    contei, quando precisei me sustentar em desequilbrio, refazer e

    reajustar pensamentos,.

    Lembro que na questo inicial havia um grande impacto com a

    morte e a implicao para a vida (no exlio) de Miriam Makeba, a

    Mama frica. E que sua histria junto com as de Afonso Ribeiro e

    dos Aimor me ampararam como conscincias humanas, artsticas e

    polticas para a criao conceitual da devorao da ordem como

    cerne de minha crtica. Queria entender como essas pessoas

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    devorao da ordem foi uma suposio minha do que parecia ser uma

    das maneiras possveis de vivermos sem sucumbir a tantas ameaas.

    A devorao que supus, como prtica, est baseada em uma narrativa

    que considero instigante e sedutora, uma fico que est erguida

    sobre fragmentos de mitos, formas de conceituar, pensar e narrar

    que resultante do enfrentamento de um verdadeiro desafio; a

    desfazer certezas e entrelaar o sobrenatural, o fictcio e o real

    destacando a importncia de saberes, pensamentos e artes no

    hegemnicas. Ouvi de Luis Antonio Simas que a grande vingana dos

    povos oprimidos pela colonizao foi ter prevalecido

    culturalmente;2 a grande vingana do povo negro foi fazer do

    imaginrio cultural das terras africanas coisa mais forte que a

    realidade da opresso. As fantasias de carnaval, o Bafo da Ona, o

    Cacique de Ramos, as mscaras, a dana do mestre-sala, o samba e a

    festa canibal so algumas dessas prevalncias.

    E meu grande problema era saber se de fato e de que modo o

    exlio que fundamentava aquelas narrativas possibilitava sua

    integrao a uma lista de muitos antecedentes, de homens

    desnecessarizados, no destrutivos, no oprimidos nem subjugados

    pela natureza ou pela cultura. No foram fceis as insubmisses

    deste ensaio, precisei me mover com o esquema curricular terico e

    pretendi a tenso de dizer o que no sabia plenamente, da a

    ousadia de meu mestrado. Precisei reencontrar conceitos de nao,

    de identidade, entender a diferena, o perspectivismo amerndio,

    as noes de cultura e natureza, modernidade, arte e pensamento. E

    esclareo que quando houve certa atuao de resistncia e proposta

    de transformao humana, preciso dizer que se fez presente mesmo

    s em minha crtica: a literatura de Mussa no de modo nenhum

    panfletria. Esse tipo de trabalho foi o que pretendi realizar: e

    os mtodos da crtica da cultura frankfurtiana e da errncia

    oswaldiana me ampararam teoricamente: na demarcao de uma prtica

    crtica cujas apostas e desafios deviam ser entendidos em

    conjunto, pela contingncia. Adotei a crtica cultural da Escola

    2 Durante o Fim de Semana do Livro no Porto apenas FIM , no Morro daConceio, sbado, dia 20 de outubro de 2012. Na apresentao dessa mesa-redonda,diz o site: Caravana de Escritores, Fundao Biblioteca Nacional, 16:30h Semeu o morro no canta:O samba que d literatura, mesa de Nei Lopes (escritor),

    Luiz Antonio Simas (historiador) e Paulo Lins (escritor). Mais informaesdisponveis em http://blog.fimdolivro.com.br/p/conversas-201012.html, acessado em9 de abril de 2013.

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    de Frankfurt, adotei a sensibilidade como categoria central e

    tentei trabalhar nela com a experincia potencial e emancipatria

    na esttica e na experimentao. Acredito hoje que a alegoria de

    Benjamin que traz o passado ao presente e cumpre as profecias no

    Manifesto antropfago de Oswald de Andrade. Consegui uma

    abertura metodolgica s contribuies da antropologia, primeiro

    com Lvi-Strauss, entre os conceitos de cultura e natureza; e,

    depois, claro, com o perspectivismo amerndio de Eduardo Viveiros

    de Castro.

    E porque eu estava lidando com literatura cannica e com um

    pensamento no ocidental, trabalhei quase sempre em lacunas, em

    reas onde no havia certezas. Adotei, por isso, o ensinamento de

    Richard Feynman,3 de que cientfico o pensamento que no se

    prope a apenas provar esta ou aquela teoria, mas que est

    disposto a criar suposies, experiment-las e lidar com os

    resultados at que possa dizer se sua suposio inicial era mais

    ou menos provvel. Para entender bem, posso logo dizer que na

    literatura, assim como na suposio terico-cientfica, nunca

    haver prova, s probabilidade. No falar de Feynman, o

    questionamento fundador, o trabalho dominante, o principal e

    obviamente o mais importante. quem pe em jogo os princpios,

    fundamentos e sentidos do que est sendo o primeiro passo

    cientfico: o pensamento terico. E no importante que esteja

    certo ou errado, mas que seja possvel, ainda que provvel ou

    improvvel. O importante que os grupos sociais prenhes das

    foras motrizes efetivas do transcurso histrico aceitem encarar o

    outro concreto, no universal nem absoluto da dvida; aceitem

    abrir-se a outras racionalidades no hegemnicas; pressuponham uma

    tica substantiva e apliquem normas reconhecidamente contextuais,

    dependentes e relacionadas entre si, contingentes. Quando elegi

    Walter Benjamin como terico que embasasse meu trabalho, tentei

    evidenciar que entendo a escrita de Mussa como literatura. E lidei

    com o perigo de encar-la com uma concepo meramente

    instrumental, de ser elaborada metafico ou de servir ao

    3Feynman, R. El mtodo cientfico. Universidade de Cornel, 1964. Diponvel emhttp://www.youtube.com/watch?v=3m-j1xs2mS0, acessado em 21-jan., 2013. Richard

    Feynman era um dos fsicos norte-americanos responsveis pelo projeto Manhattan,em Los Alamos, Estados Unidos; e quando esteve no Brasil aprendeu a tocar bongo ea gostar de samba, alm de criticar a pedagogia universitria aqui praticada.

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    ensinamento poltico, ter atuao pedaggica, de atribuir-se a

    funo de ensinar a verdade s massas, de ser propagandstica ou

    de tentar produzir o sentimento original e identitrio das classes

    autnticas e corretas.

    No reafirmar o cnone ocidental nem relativiz-lo era um de

    meus desafios. Escrever sem deixar de enxergar a relao entre o

    pensamento, a fico e a teoria literria era outro. A grande

    tarefa da teoria literria seria introduzir uma fuga na interseo

    dos conceitos do cnone, de valor e de esttica. A minha era

    manter o ponto de vista relacional, no relativo. Eu no desejaria

    definir, por exemplo, se Meu destino ser ona ou no

    literatura. Como trabalhar desse modo sem me arvorar a fundamentar

    um conceito trans-histrico do valor esttico? O valor da

    literatura, de certo modo, dentro do que defende Idelber Avelar

    (2009),4 est em perceber o valor da experincia humana, mas

    preciso considerar que a impossibilidade de esclarecer, ampliar e

    valorizar nossa experincia no mundo convive com o embaamento do

    que seja o prprio mundo e nele o desvelamento da misria. Segundo

    o professor Idelber, o valor esttico de um texto literrio muda

    sempre e ser, necessariamente, um valor contingente;5precisa ser

    independente da subjetividade do gosto (porque no pode ser

    particular, pessoal); pode ser absoluto dentro de uma comunidade

    valorativa, mas no pode ser relativizvel dentro dessa

    comunidade e, por ltimo, pode ser motivado porque no

    resultante de uma eleio arbitrria de traos ou caractersticas

    ditos perfeitos. Sua expresso chave dentro de uma

    comunidade: porque a inteligibilidade de uma narrativa, um texto

    literrio, coincide com os elementos constitutivos da comunidade

    mesma; ou dos fundamentos que presidem sua emergncia. O pacto

    valorativo tem a ver com a poca, muda em tempo-espao. A relao

    4 Avelar, Idelber. Cnone literrio e valor esttico: notas sobre um debateliterrio de nosso tempo. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, p.113-150, 2009. Disponvel em www.abralic.org.br/ revista/2009/15/83/ download,acessado em 9-abr., 2013.5 Na msica, para a sncope, por exemplo, o que era considerado umairregularidade era de fato uma incapacidade de a partitura descreverapropriadamente o objeto musical, desde Bach ao batuque africano. E naliteratura, a expresso de uma conscincia liberada do elitismo falsamenteprivilegiador da identidade nacional dispe do testemunho de Rigoberta Mench

    (editado por Elisabeth Burgos, 1983) e antes dela, com a criao do prmioespecial para testemunhos e relatos, a nova categoria do Casa de Las Americas, em1967.

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    vai depender sempre do lugar discursivo, mas o sujeito nela

    implicado no ocupa um lugar s e indefinidamente. Saber se as

    proposies so ou no coerentes sempre depender da capacidade de

    o cientista perceber a variedade de pontos de vista e atuar em

    cada um deles no rendido, no submetido intelectualmente.

    A narrativa de Mussa deixa que cada um percebesse seu lugar; e

    no neutralizar as questes de Afonso Ribeiro e dos Aimor na

    teoria da ona era uma estratgia. O que devia interessar era

    coloc-los em questo, em motor de pensamento, em confronto com o

    destino de ser ona. E foi escrevendo que os coloquei em questo,

    na dissertao.

    A madeira vem de quando nasci, em 1970, no dia em que o Brasil se

    vingou do Uruguai pela derrota no Maracan e garantiu lugar na

    final da copa mundial; dias depois, ganhamos. Mudei-me com famlia

    e sem, no Rio de Janeiro e pelo Brasil, mais de 40 vezes; no Rio,

    1984, participei da campanha das Diretas; em Natal, 1986, tive meu

    filho; em Aracaju, 1989, usei estrelas pensando em meu primeiro

    voto. J em Fortaleza, de 1991 a 1999, cursei Letras na

    Universidade Federal do Cear, quando fiz encenaes dramticas

    durante o Fora Collor, em 1992; e fui professora de redao em

    dois lugares: um colgio de padres (de 1994 a 1999) e em onze

    cidades do serto Nova Russas, Amontada, Cascavel, Maranguape,

    Messejana, Guaramiranga, Mombaa, Quixad, Caucaia, Maracana e

    Tau integrando um programa eventual e generoso da Universidade

    Estadual do Vale do Acara. Desde que voltei ao Rio, em 2000, aos

    30 anos, sou revisora. Casei-me em 2005. Encantei-me com as

    ancestralidades em 2007, soube das ligaes do tempo e soube meu

    signo em If, o primeiro, que traz a luz alaranjada do amanhecer

    e, evito, por isso, a escurido e a noite.

    Agora possvel falar da brasa, do fogo, do cheiro da fumaa

    e da poeira das cinzas, no doutorado; porque me proponho a

    investigar criticamente algumas narrativas sobre o mundo com que

    no pude lidar na dissertao de mestrado. Se antes me dediquei a

    pensar em como os Aimor (as alegorias da ona) e Afonso Ribeiro

    (o melanclico degredado) puderam, pela devorao da ordem,

    garantir seu lugar na vida e no mundo, praticando a alegria e a

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    errncia oswaldianas, aquela violncia da caada, o perspectivismo

    amerndio e tambm a fuga da sociedade estruturada em domnios e

    preconceitos. Agora me dirijo exatamente para entender como so

    criados esses discursos sobre a vida comum, os mesmos que criam os

    preconceitos, os saberes e as estruturas sociais, polticas e

    religiosas rgidas, opressivas, fantsticas e irreais. O que era

    insuportvel vida desses dois personagens de Mussa era o

    convvio falsamente comunal e a comunho. Pois com o Manifesto

    comum, quero investigar o modo como so construdos o comum e

    seus derivados, quem os constri e que discurso esse que no

    mnimo provoca o embaamento do que queria dizer. No toa me

    repito, porque se antes lidei com o perigo de encarar o corpus com

    uma concepo meramente instrumental, de ser elaborada metafico

    ou de servir ao ensinamento poltico, ter atuao pedaggica, de

    atribuir-se a funo de ensinar a verdade s massas, de ser

    propagandstica ou de tentar produzir o sentimento original e

    identitrio das classes autnticas e corretas porque, agora, o

    que proponho exatamente adotar esses perigos como parte da

    investigao sobre o comum.