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MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. É Possível Afastar a Ponderação (PENSAR)

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Este trabalho visa a examinar a crítica feita ao uso da ponderação de princípios, no âmbito da interpretação e da aplicação do direito, dada suas supostas subjetividade e fluidez. O afastamento da ponderação, contudo, não é possível diante do reconhecimento da positividade de normas com estrutura de mandamentos de otimização, além de não conferir ao ato de interpretar maior objetividade.***The aim of this paper is to analyze the ponderation of principles in the interpretation of the law, and its critics. It demonstrates that avoiding or abandoning the use of ponderation does not increase the objectivity in interpretation, and is really impossible when we recognize the existence of principles.

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Page 1: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. É Possível Afastar a Ponderação (PENSAR)

É POSSÍVEL AFASTAR A PONDERAÇÃO?IS IT POSSIBLE TO AVOID PONDERATION?

Hugo de Brito Machado Segundo*

Resumo: Este trabalho visa a examinar a crítica feita ao uso da ponderação de princípios, no âmbito da interpretação e da aplicação do direito, dada suas supostas subjetividade e fluidez. O afastamento da ponderação, contudo, não é possível diante do reconhecimento da positividade de normas com estrutura de mandamentos de otimização, além de não conferir ao ato de interpretar maior objetividade.

Palavras-chave: Ponderação. Subjetividade. Direito por princípios.

Abstract: The aim of this paper is to analyze the ponderation of principles in the interpretation of the law, and its critics. It demonstrates that avoiding or abandoning the use of ponderation does not increase the objectivity in interpretation, and is really impossible when we recognize the existence of principles.

Key-words: Ponderation. Subjectivity. Principles.

IntroduçãoQuestão de grande relevo, atualmente, consiste em saber se é possível deixar de utilizar,

na resolução de problemas jurídicos, a técnica de ponderação de princípios, realizada através da aplicação do postulado da proporcionalidade. Isso porque, tendo em vista a larga difusão de teorias segundo as quais princípios são mandamentos de otimização, cujos conflitos devem ser resolvidos através do postulado da proporcionalidade, surgiram vozes no sentido de que tal técnica seria irracional, permitiria a prática de arbitrariedades por parte do Judiciário (que teria seus poderes hipertrofiados), além de minar a segurança e a certeza do Direito.

Neste texto, se revisitam essas críticas, para, em seguida, investigar-se se é possível interpretar e aplicar normas jurídicas sem recorrer a essa técnica de conciliação de princípios. Afere-se, ao final, se seu afastamento não conduziria a resultados eivados, com ainda maior

* Advogado em Fortaleza. Mestre em Direito pela UFC. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – Unifor. Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários. Professor de Processo Tributário da pós-graduação da Unifor. Professor de Direito Tributário da Faculdade Christus e da Faculdade Farias Brito. Conselheiro Seccional da OAB/CE (triênio 2007/2009). Email: [email protected]. Blog: www.direitoedemocracia.blogspot.com

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intensidade, dos mesmos defeitos que se lhe apontam, aos quais se somaria a falta de clareza e de explicitude, a inviabilizar o controle racional e intersubjetivo da atividade do intérprete.

1. Direito por princípios e ponderação1.1. Preliminarmente

Já no Século IV a.C, Aristóteles afirmava que, embora as leis devam ser gerais e abstratas, é imprescindível que sejam aplicadas com equidade, atentando-se para as peculiaridades de cada caso concreto (DEL VECCHIO, 1979, p. 47). Essa adequação da lei ao caso concreto, feita pelo intérprete, tem o claro propósito de fazê-la compatível com os fins que orientaram a sua elaboração.

Dezenas de séculos depois, buscando objetividade, segurança e certeza, Kelsen defende que essa adequação não seria uma atividade científica, eis que a ciência jurídica fornece apenas – para o intérprete de uma norma– um quadro ou moldura com vários significados possíveis, sendo a escolha de uma deles um ato de vontade do aplicador, guiado por critérios políticos (KELSEN, 2000, p. 390). O acerto dessa afirmação – desde que se parta da mesma premissa de que parte Kelsen, evidentemente – é demonstrado pela insuficiência do elemento literal na interpretação das normas jurídicas, aliada à inexistência de hierarquia entre os demais elementos de interpretação, que podem levar a resultados contraditórios uns em relação aos outros, sem que se possa afirmar, de forma geral, qual deles deve preponderar sobre os demais (ALEXY, 1989, p. 3).

Entretanto, facilmente se percebe que, adotada em seus moldes originais, a postura metodológica kelseniana reduz sensivelmente a utilidade da ciência jurídica. Afinal, se o conhecimento puro e objetivo que se tem do Direito não se presta – sozinho – para solucionar problemas concretos, mas apenas para iniciar a sua solução, reduzindo sempre a um quadro ou moldura os vários significados cientificamente possíveis, e transferindo a solução do problema para outras áreas do conhecimento, vão-se por água abaixo a pureza, a segurança e a objetividade do conhecimento científico do Direito, especialmente porque a ciência pura não tem controle sobre essa opção política feita dentro da moldura. Ao banhar a criança – diz Larenz – Kelsen deitou-a fora com a água do banho (1997, p. 107).

Apesar de todas as críticas que lhe podem ser dirigidas, contudo, não se pode ignorar que neste ponto Kelsen teve o inegável mérito de reconhecer os limites do positivismo lógico-dedutivo (PERELMAN, 2000, p. 93). A partir dele, o desafio passou a ser o estabelecimento de critérios de escolha de significados possíveis dentro da moldura oferecida pela ciência em sua vetusta concepção positivista, critérios estes que, embora não decorram de um dedutivismo lógico-formal, devem ser o mais racionais e objetivos possíveis, nos moldes de uma nova visão de ciência, a qual indica soluções aproximadas, fundadas em verdades construídas e reconhecidamente provisórias. É o campo propício para o chamado direito por princípios.

É preciso reconhecer, diga-se de passagem, que essa forma de analisar o Direito não é recente. Como já apontado, no pensamento de Aristóteles observa-se uma acentuada preocupação com a aplicação da lei abstrata aos casos concretos, sendo ele, aliás, a fonte de inspiração de Theodor Viehweg para o Tópica e Jurisprudência, o qual, no dizer de Paulo Bonavides, vem à lume “na hora exata quando as mais prementes e angustiantes exigências metodológicas põem claramente a nu o espaço em branco deixado pela hermenêutica constitucional clássica,

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característica do positivismo lógico-dedutivo” (BONAVIDES, 1997, p. 452). De qualquer sorte, não se pode negar que os teóricos contemporâneos têm o mérito de teorizar e procurar demonstrar racionalmente como esse processo de ponderação deve acontecer.

1.2. Direito por regras e direito por princípiosLembrando sempre que a história não é linear, como, aliás, demonstram os exemplos –

Aristóteles e Kelsen – citados no item precedente deste texto, pode-se dizer que a ciência jurídica ocupou-se de modo precípuo, até o início do Século XX, do Direito enquanto sistema de regras jurídicas. Construíram-se teorias sobre proposições que prevêem hipóteses e prescrevem condutas a serem seguidas se e quando essas hipóteses se vierem a concretizar no mundo fenomênico, e sobre o ordenamento que seria apenas o conjunto hierárquico e sistematizado dessas prescrições. Nesse contexto – que Paulo Bonavides denomina de primeira fase da juridicidade dos princípios (2003, p. 259) –, para os partidários do jusnaturalismo, as regras jurídicas deveriam ser interpretadas e aplicadas em conformidade com os princípios do direito natural, que seriam deduzidos de um plano metajurídico variável conforme a corrente doutrinária considerada (a razão humana, razão divina etc.) (RADBRUCH, SCHMIDTH e WELZEL, 1971). Já os positivistas refutam a existência de tais princípios de direito natural, pugnando pela consideração apenas das regras positivadas (v.g. Kelsen e o quadro ou moldura aqui já referidos). Note-se que o positivista não refuta a possibilidade de tais princípios de direito natural influenciarem de fato na interpretação e na aplicação do direito: apenas afasta a possibilidade de essa influência contar com explicação científica.

Considerando que alguns princípios poderiam ser induzidos do ordenamento jurídico, a partir dos valores subjacentes às diversas regras, passou-se a admitir a aplicação subsidiária dos mesmos. Esta foi a segunda fase na evolução da juridicidade dos princípios: em caso de lacuna (falta de uma regra jurídica), poder-se-ia recorrer aos “princípios gerais de direito”, que seriam normas dotadas de elevadíssima generalidade e estariam implícitas no sistema. Não se estaria recorrendo a um plano metajurídico, mas descobrindo regras no próprio ordenamento existente. Mesmo assim, cabe observar que o princípio jurídico assumia, nesse contexto, papel secundário. Não se sobrepunha à lei, mas apenas auxiliava sua interpretação, e evitava o vazio normativo na hipótese de lacuna.

Finalmente, nas últimas décadas do Século XX, inaugura-se a fase do assim chamado pós-positivismo. A jurisprudência das Cortes Internacionais de Justiça, seguida posteriormente pela doutrina, reconhece a força normativa de uma série de princípios fundamentais, que, a partir então, passam a ser considerados positivados nas Constituições. De uma posição subsidiária à lei, os princípios são transportados para o centro das Constituições. A partir de então, o dever de elaborar e interpretar as demais normas do ordenamento de acordo com os princípios deixa de ser uma recomendação, e passa a ser um dever jurídico, mesmo para os que não aceitam a existência de um direito natural. Daí porque alguns autores chamam essa fase da Teoria do Direito de pós-positivismo: seria a superação dialética da divergência entre positivismo jurídico e jusnaturalismo.1

1 A expressão pós-positivismo é passível de diversas criticas, pois confunde positivismo com positividade, tendo como superada a divergência apenas porque o ordenamento jurídico tem, atualmente, conteúdo considerado satisfatório. O aprofundamento deste aspecto, contudo, apesar de dotado de inegável importância, não se comporta nos limites deste artigo, nem seria relevante para as suas conclusões.

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Os princípios, hoje se reconhece, guiam a elaboração, a interpretação e a aplicação das regras. Daí porque se faz referência a um “direito por princípios”, direito este que representaria a evolução do vetusto “direito por regras”, chegando a teoria dos princípios, no dizer de Bonavides, aos

seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios. (2002, p. 265)

O direito por princípios, como se sabe, tem toda relação com o postulado da proporcionalidade. Isso porque as Constituições contemporâneas positivaram uma série de princípios (ou disposições nelas contidas passaram a ser assim consideradas). Alguns deles impõem vedações ao Poder Público, afirmando o que este não deve fazer. Muitos outros, porém, preconizam o cumprimento de deveres positivos: proteger o meio ambiente; assegurar o pleno emprego; proteger a família, a criança, o idoso etc. Note-se que muitos desses deveres não podem ser atendidos ao mesmo tempo de modo integral e absoluto. É o caso da livre iniciativa e da proteção ao meio ambiente. Para prestigiar o princípio da livre iniciativa, é necessário assegurar aos cidadãos a livre utilização de sua propriedade e de sua criatividade na consecução de seus fins empresariais. Para proteger o meio ambiente, porém, é necessário restringir o uso da propriedade de sorte a que não se destruam matas, não se matem animais, não se polua o ar etc. O pleno atendimento do primeiro princípio esvazia inteiramente de sentido o segundo, e vice-versa. É necessário conciliá-los, para possibilitar que ambos sejam observados proporcionalmente. Como observa Karl Larenz,

hay que encontrar una composición del conflicto que permita la subsistencia de cada uno de los derechos con el máximo contenido posible. Esto significa que ningún derecho tiene que retroceder más de lo que sea necesario para no recortar el del otro de un modo que sea no exigible. (2001, p. 63)

O chamado princípio da proporcionalidade, portanto, nada mais é que o método de conciliação de princípios em conflito, assim como os critérios hierárquico, cronológico e da especialidade servem para dirimir conflitos entre regras. É por isso, aliás, que alguns autores não consideram apropriado falar-se em “princípio” da proporcionalidade.

1.3. Princípios, regras ou postulados?A maior parte dos autores refere-se à proporcionalidade como princípio. Assim também o

faz a jurisprudência brasileira. Há autores, contudo, que refutam essa denominação, preferindo denominar a proporcionalidade de regra, ou de postulado.

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Na verdade, esta discussão é meramente terminológica. Cada autor está a designar a mesmíssima realidade com palavras diferentes. Tudo depende de saber o que cada um pretende dizer com os termos princípio, regra, e postulado.

A respeito das várias significações que pode ter a palavra princípio, Paulo Bonavides doutrina, fundado nas lições de Ricardo Guastini:

Em primeiro lugar, o vocábulo ‘princípio’, diz textualmente aquele jurista, se refere a normas (ou a disposições legislativas que exprimem normas) providas de um alto grau de generalidade.

Em segundo lugar, prossegue Guastini, os juristas usam o vocábulo ‘princípio’ para referir-se a normas (ou a disposições que exprimem normas) providas de um alto grau de indeterminação e que por isso requerem concretização por via interpretativa, sem a qual não seriam suscetíveis de aplicação a casos concretos.

Em terceiro lugar, afirma ainda o mesmo autor, os juristas empregam a palavra ‘princípio’ para referir-se a normas (ou disposições normativas) de caráter ‘programático’.

Em quarto lugar, continua aquele pensador, o uso que os juristas às vezes fazem do termo ‘princípio’ é para referir-se a normas (ou a dispositivos que exprimem normas) cuja posição na hierarquia das fontes de Direito é muito elevada.

Em quinto lugar – novamente Guastini – ‘os juristas usam o vocábulo princípio para designar normas (ou disposições normativas) que desempenham função ‘importante’ ou ‘fundamental’ no sistema jurídico ou político unitariamente considerado, ou num ou noutro subsistema do sistema jurídico conjunto (o Direito Civil, o Direito do Trabalho, o Direito das Obrigações)’

Em sexto lugar, finalmente, elucida Guastini, os juristas se valem da expressão ‘princípio’ para designar normas (ou disposições que exprimem normas) dirigidas a órgãos de aplicação, cuja específica função é fazer a escolha dos dispositivos ou das normas aplicáveis nos diversos casos. (2002, p. 231)

A doutrina brasileira clássica geralmente adota, de modo não muito preciso, todas as definições acima transcritas. Batiza de princípio, por isso, a legalidade, a anterioridade, a isonomia etc. Não se perquire a respeito de sua estrutura normativa2, definindo-se como princípio, também, as normas que atendem à terceira definição acima transcrita, ou seja, normas que apontam um fim ou um objetivo a ser seguido, sem necessariamente indicar os meios (v.g. capacidade contributiva, livre iniciativa, proteção ao meio ambiente etc.), e até mesmo a sexta definição (princípio hierárquico, princípio da especialidade, princípio cronológico...).

Por essa definição clássica, e bastante abrangente, o dever de proporcionalidade decorre, sim, de um princípio. Preenche, com precisão, a sexta definição transcrita: a proporcionalidade determina qual princípio é aplicável, ou deve preponderar, nos diversos casos.

2 Não se perquire se a norma possui a estrutura de regra (hipótese – conseqüência), ou de mandamento de otimização (mera indicação de fim a ser seguido). Para Humberto Ávila, a propósito, o princípio não é propriamente um “mandamento de otimização”, mas sim “normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.” (Cf. ÁVILA, 2004, p. 70)

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Todavia, é de observar que, pela doutrina de Robert Alexy, quem mais popularmente teorizou a aplicação da proporcionalidade na concretização de princípios, a legalidade e a anterioridade seriam regras3, e não princípios. Mesmo assim, não se devem fazer duras críticas àqueles que se reportam ao princípio da legalidade ou ao princípio da anterioridade. O termo está consagrado (PEREIRA, 2006, p. 323), e o importante é saber do que se está tratando (saber qual é a “estrutura” do princípio), a fim de não se pretender “sopesar” ou “relativizar” normas cuja estrutura não permite tal procedimento.

Os autores que preferem afirmar que o dever de proporcionalidade decorre de uma regra, em verdade, fazem-no porque adotam a definição de princípio jurídico dada por Robert Alexy, que é um pouco diferente, e mais estreita, que a definição prevalente na doutrina brasileira. Para Alexy, como se sabe, princípio é aquela norma que não prescreve uma conduta específica, em face de uma “hipótese de incidência” determinada, mas sim consagra a positivação de um valor, de uma meta ou de um fim a ser seguido (mandamento de otimização). Para ele, princípio é apenas a disposição que se enquadra na terceira das definições acima transcritas. Nesse sentido, realmente, a proporcionalidade não é um princípio (não deve ser atendida “na medida do possível”, gradualmente). Para Virgílio Afonso da Silva, por esses fundamentos, a proporcionalidade é uma regra jurídica (2004, p. 87).

Humberto Ávila, por sua vez, refuta que o dever de proporcionalidade decorra de uma regra jurídica. Para ele, trata-se de uma exigência do ordenamento, intrínseca à sua estrutura, e que decorre do próprio reconhecimento da positividade das normas dotadas da estrutura de mandamentos de otimização. O dever de agir proporcionalmente, para ele, não é um all or nothing. Não decorre da incidência de uma regra sobre a concretização, no mundo fenomênico, dos fatos nela previstos. Pelo contrário, trata-se de uma “metanorma”, ou norma de sobredireito, que ele prefere denominar de “postulado”, e que se diferencia tanto das regras quanto dos princípios (2004a, p. 88), pelo menos se dermos a estes últimos o estreito significado que lhes atribui Alexy.

A razão parece estar com Ávila. Realmente, a proporcionalidade não decorre de uma norma jurídica, seja elas regra ou princípio. O dever de proporcionalidade decorre da própria positividade dos princípios. É o mesmo que ocorre com os critérios hierárquico, cronológico e da especialidade, para solucionar conflitos entre regras: são exigências lógicas do sistema, e não precisam estar positivadas em nenhum ato normativo para serem invocadas. De qualquer sorte, considerando que a doutrina clássica dá acepção bastante ampla ao termo princípio (cogitando inclusive de um “princípio hierárquico”), não vemos qualquer impropriedade em se denominar a proporcionalidade de princípio. O importante é saber que não são mandamentos de otimização, e não podem, por isso, ser “relativizados” em face de outros princípios.

1.4. Razoabilidade e proporcionalidadeNa doutrina e também na jurisprudência há referências à razoabilidade e à

proporcionalidade como expressões sinônimas (Cf., v.g., STF, ADin 1.922/MC-DF – Rel. Min.

3 A rigor, e com maior propriedade, pode-se dizer que, do enunciado normativo do qual se extrai o chamado “princípio da legalidade” podem ser construídos, em cada caso concreto, tanto regras (proibição da instituição de tributo por ato normativo diverso da lei), como princípios (liberdade contratual dentro de certos limites, liberdade para elaborar planejamentos tributários dentro de certos limites, etc.). Confira-se, a propósito: ÁVILA, 2004, p. 34

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Moreira Alves – DJ de 24.11.2000, p. 89). Autores conceituados consideram que são dois nomes utilizados para designar a mesma realidade. Apenas a origem das expressões seria distinta: o termo razoabilidade é oriundo do direito anglo-americano, enquanto proporcionalidade seria preferido pelos autores germânicos.

A rigor, as palavras apenas designam parcelas da realidade. Não há proibição em se empregar uma, ou outra, desde que se saiba o que se está a designar com elas. E não se pode negar que, consideradas as expressões razoabilidade e proporcionalidade em seu sentido coloquial, há realmente equivalência. Algo desproporcional será necessariamente irrazoável, e vice-versa. (SILVA, 2004, p. 89)

Exame atento às origens das expressões “razoabilidade” e “proporcionalidade”, contudo, revela que, originalmente, seus significados não são inteiramente equivalentes.

É certo que assim como a proporcionalidade, a razoabilidade possibilita um maior controle dos atos do Poder Público quando estes tenham uma finalidade lícita, e empreguem na consecução dessa finalidade meios não admissíveis, seja porque excessivos, seja porque desviados. Há um núcleo comum, pois tanto um como o outro postulado exigem que os atos sejam adequados e necessários para chegar à finalidade a que se destinam. Entende-se por adequado aquele meio que, uma vez empregado, realmente conduza à finalidade que se diz com ele pretendida. Tal meio passa a ser necessário quando não existir nenhum outro que seja igualmente adequado, e ao mesmo tempo menos gravoso a outros valores fundamentais inerentes ao problema.

Entretanto, sabe-se que o ato, mesmo adequado e necessário, pode ainda assim ser inválido. Há uma terceira exigência a ser cumprida, e é neste ponto que razoabilidade e proporcionalidade se diferenciam.

Para ser razoável, em sentido estrito, o ato deve ser, além de adequado e necessário, compatível com o senso comum, o que conduz a uma idéia de consenso, de legitimidade, de compatibilidade com os valores prevalentes naquela comunidade na qual o princípio será aplicado (MORAES, 2004, p. 130). Há como que uma válvula de escape jusnaturalista para viabilizar uma contenção de arbitrariedades contidas no Direito positivo, quando estas não sejam inválidas à luz de critérios fornecidos pelo próprio ordenamento jurídico. A rigor, um ato, normativo ou não, que seja adequado e necessário, mas seja irrazoável em sentido estrito, na verdade é um ato injusto. Há, nesse particular, uma janela (a irrazoabilidade) para afastar a aplicação de uma norma formalmente válida, mas contrária aos padrões de boa-fé, justiça e prudência.

A razoabilidade, nesse sentido, seria uma decorrência direta da racionalidade humana. O racional, com efeito, é aquilo que pode ser compreendido e aceito pelos demais. Uma seqüência de sons é uma música, e não uma série desordenada de ruídos, quando os seus ouvintes nela reconhecem harmonia, melodia e ritmo. Uma ordem jurídica, do mesmo modo, para ser reconhecida como tal, há de possuir um mínimo de razoabilidade, sob pena de não ser aceita pela sociedade à qual se dirige, e perecer por ineficácia. A coação, sozinha, não lhe garante a efetividade (VASCONCELOS, 2001): quando muito retarda um pouco uma revolução (MIRANDA, 2000, p. 116). Por conta disso, a ciência jurídica “debe intentar lograr aquellas interpretaciones jurídicas que pudieran contar con el apoyo de la mayoria en una comunidad

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jurídica que razona racionalmente” (AARNIO, 1991, p. 286). Sempre está presente a idéia de consenso, de aceitação.

Por isso mesmo, a razoabilidade não tem utilidade apenas no controle da relação entre meios e fins, mas também em muitas outras circunstâncias, tais como na determinação do critério de discriminação a ser usado na concretização do princípio da isonomia em seu aspecto material, no emprego da equidade quando da interpretação e da aplicação de regras jurídicas etc. (ÁVILA, 2004a, p. 104)

Já o princípio da proporcionalidade realiza especificamente o controle da relação entre meios e fins, e o faz através da ponderação dos valores constitucionalmente positivados inerentes ao problema. Caso o meio seja adequado e necessário, tem-se ainda de ponderar se o valor por ele prestigiado não está sendo demasiadamente sobreposto a outros, igualmente nobres. Nesse último exame, através do qual os teóricos do Direito procuram objetivar tanto quanto possível as valorações feitas pelo intérprete da norma, deve ser dada preponderância ao valor que, em prevalecendo, cause menores estragos aos demais que com ele se chocam.

Assim, embora seja pouco provável, pode ocorrer de um ato ser irrazoável e não ser desproporcional, ou ser desproporcional e não ser irrazoável. É certo que diante de uma Constituição como a brasileira, que contém princípios fundamentais que conferem grande abertura ao sistema jurídico, como o da dignidade da pessoa humana, é difícil que um ato seja irrazoável e não seja, também, desproporcional. Pode ocorrer, porém, em outro contexto normativo, de um ato ser irrazoável, embora não seja desproporcional. Ademais, a maneira como tais postulados são aplicados, e a fundamentação da decisão que o faz, são assaz diferentes. É por isso que dizemos que tais princípios não se excluem, nem se confundem: devem ser somados, na difícil tarefa de conter os abusos do Poder Público. J. J. Gomes Canotilho, a propósito, reconhece que com a razoabilidade, e a proporcionalidade, “é possível recolocar a administração (e, de um modo geral, os poderes públicos) num plano menos sobranceiro e incontestado relativamente ao cidadão.” (2002, p. 268)

2. Principais críticas à aplicação do postulado da proporcionalidade2.1. Generalidades

Em face de posições como as acima rapidamente resenhadas, sempre que o juiz cogita da aplicação de uma lei, de seu significado à luz do caso concreto, deve verificar o princípio a ela subjacente ou por ela realizado – fim para o qual a medida nela preconizada é meio – de sorte a aferir qual sentido deve ser atribuído à norma nela veiculada de sorte a mais adequadamente realizar esse princípio (e os demais a serem com ele conciliados).

Nessa verificação, pode o juiz concluir pela inconstitucionalidade da lei. Seria o caso de uma lei que veiculasse excessiva restrição a um princípio constitucional, restrição esta não justificada pela proporcional preponderância do princípio constitucional por ela concretizado. Pode, também, proceder a uma interpretação da lei conforme a constituição, dando-lhe sentido mais coerente com a ponderada consideração dos princípios subjacentes ao problema, caso os limites representados pelo seu texto o permitam.

Exemplificando, ao avaliar a validade, o sentido e o alcance das disposições da Lei 11.705/2008, que impõe severo tratamento aos motoristas que dirijam com qualquer teor de

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álcool no organismo (e também que se recusem a se submeter ao bafômetro), o Judiciário deverá analisar não apenas a literalidade de suas disposições gramaticais, a relações de umas com as outras ou a razão que levou o legislador a editá-las. Além disso, deverá ser feita uma ponderação entre o direito à livre-iniciativa que assiste a bares e restaurantes, a valorização do emprego dos que trabalham nesses estabelecimentos, a autonomia da vontade e a liberdade de quem deseje consumir pequena quantidade de álcool não passível de interferir em seus reflexos, o direito de não produzir provas contra si mesmo (em relação ao uso do bafômetro), e também o direito à vida e à integridade física de todos os que poderiam ser vítimas de condutores alcoolizados. Afinal, todos esses aspectos a serem ponderados decorrem de normas com estrutura de princípio, positivadas na ordem jurídica brasileira.

Tal procedimento tem sido alvo de críticas, embora em escala muito menor que a adesão por ele recebida. Tais críticas, mutuamente relacionadas, serão abaixo resenhadas para, em seguida, serem examinadas.

2.2. Críticas à ponderação de princípiosA primeira crítica que se faz ao procedimento descrito no item anterior (de resto fundado

em tudo o que se explicou no item 1 deste texto), é a de que não é possível o seu controle racional. O julgador poderia resolver a ponderação tanto em um sentido, como em outro, sem que se pudesse afirmar ter ele incorrido em acerto ou em erro. Ponderar seria uma desculpa, ou um eufemismo, para violar um direito sem que seja necessário admitir essa violação.

Diretamente relacionada com a crítica anterior, outra também feita é a de que a técnica retira a objetividade do processo de interpretação e aplicação do direito. Habermas, por exemplo, afirma que a teoria de R. Alexy “consiste em interpretar os princípios transformados em valores como mandamentos de otimização, de maior ou menor intensidade. Essa interpretação vem ao encontro do discurso da ‘ponderação de valores’, corrente entre os juristas, o qual, no entanto, é frouxo.” (1997, p. 315) Ainda nas palavras de Habermas, “uma vez que não há unidades de medida inequívocas, aplicáveis aos assim chamados bens do direito, o modelo economicista de fundamentação, proposto por Alexy (1985, 143-153) não consegue legar a discussão adiante.” (1997, p. 321)

Outro problema da técnica apontada seria o de que, com ela, tornar-se-ia possível ao Judiciário desconsiderar as escolhas feitas pelo legislativo na concretização das normas constitucionais. Através de uma “ponderação” que chegasse a resultado diferente daquele que originou uma lei votada pelo parlamento, o Judiciário afirmaria a invalidade desta, em prejuízo do princípio da soberania popular.

Jane Reis Gonçalves Pereira faz pertinente e fiel descrição das teorias críticas à ponderação (críticas do que ela chama “teoria externa” de limitação aos direitos fundamentais), partindo das obras de Friedrich Müller (1996, p. 93) e de Ignácio Otto y Pardo para afirmar:

Os opositores da teoria externa sustentaram que esta, por admitir a possibilidade de a esfera de proteção dos direitos vir a ser limitada por outros direitos ou bens constitucionais, favorece a multiplicação desordenada de conflitos entre direitos fundamentais. A proliferação de colisões entre direitos fundamentais acarretaria, segundo essa visão, seu enfraquecimento, porquanto não há critérios objetivos que permitam identificar quando certos direitos devem prevalecer sobre outros. O princípio

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da ponderação de bens – que se encontra intrinsecamente ligado aos conflitos de direitos fundamentais – é também severamente criticado. Afirma-se que esta técnica, ao atribuir ao Judiciário o papel de estabelecer uma solução que envolve, necessariamente, juízos de valor subjetivos, compromete a garantia da segurança jurídica e desqualifica a legitimidade democrática das decisões. (PEREIRA, 2006, p. 158-159)

Teriam as críticas procedência? É do que se cuida a seguir.

3. É possível afastar a ponderação? É ela irracional, ou uma decorrência direta e inafastável da racionalidade?3.1. Qual a alternativa?

Diante das críticas antes resumidas, a primeira questão que pode ser formulada é a que batiza este subitem: qual a alternativa?

Com efeito, no item 1 deste texto se procurou demonstrar que o direito por princípios, e a ponderação à luz do caso, são soluções encontradas – imperfeitas, é certo, mas as existentes e possíveis – para a insuficiência reconhecida por Kelsen. A alternativa seria o “poder discricionário” do juiz, de que tratam os positivistas, certamente muito mais inseguro, incerto e subjetivo. Realmente, se só são válidas - com indagam, com precisão, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2000, p. 3) - as verdades demonstradas pelo cálculo, de forma irrefutável, objetiva, exata, então os setores do conhecimento humano sobre os quais não é possível aplicar essa forma de conhecimento devem ser entregues ao irracional? A resposta negativa parece se impor, não podendo a imperfeição da solução encontrada ser motivo para que seja afastada, a menos, naturalmente, que se aponte outra melhor, o que não fazem os críticos da ponderação.

3.2. Análise das críticas apresentadasQuanto à crítica ligada à suposta irracionalidade e ao subjetivismo a que conduz a técnica

da ponderação, é de se observar que, como será adiante demonstrado, a ponderação é atividade intimamente ligada à racionalidade, e não à irracionalidade. A escolha diante do ambiente que o cerca, calcada em critérios e parâmetros pré-estabelecidos, é algo que todo ser racional4 faz a cada passo, não só na aplicação de normas jurídicas, mas antes da decisão relativa a cada conduta. Apenas as condutas instintivas não são precedidas de uma ponderação. Já o subjetivismo, demonstra a moldura de Kelsen e o discricionarismo dos positivistas em geral, não é aumentado, e sim reduzido, pela técnica de ponderação, que impõe ao aplicador que justifique explicitamente por que optou por uma e não por outra das soluções “formalmente possíveis”.

Por outro lado, tendo a epistemologia e a hermenêutica contemporâneas afastado a idéia de uma ciência “neutra” e “objetiva”, capaz de alcançar verdades absolutas, não faria qualquer sentido continuar pugnando por tais soluções no âmbito do Direito, à cata de uma segurança e de

4 Para Ortega, racionalidade é “la facultad que posee exclusivamente el hombre y que le permite captar y comprender el entorno que le rodea”. Para ele, o termo “racional”, atribuído a uma conduta ou ao produto desta conduta, é demasiado amplo, e tem múltiplos sentidos, pois a razão “puede ser utilizada com muy distintos fines”. (ORTEGA, 1998, p. 15).

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uma objetividade da qual mesmo a física – nascedouro do cientificismo oriundo do paradigma cartesiano/newtoniano – abriu mão.

Quanto à questão do déficit democrático das decisões judiciais, que teriam maior poder para declarar a inconstitucionalidade de uma lei, trata-se de argumento falso, que suscita um pseudo-problema. Isso porque não é a técnica de ponderação que dá ao Judiciário o poder de afirmar a inconstitucionalidade de uma lei. Trata-se de decorrência do princípio da separação de poderes ou funções, essencial e inerente ao Estado de Direito, e fruto de um aperfeiçoamento necessário do modelo grego de democracia. A técnica da ponderação, ao revés, permite ao Judiciário que se chegue a esse mesmo resultado (afirmar a inconstitucionalidade da lei), mas exige dele uma justificativa antes obscurecida. Em vez de maior poder, portanto, a técnica traz à atividade judicial – se corretamente aplicada – mais rígidos limites. Jane Reis Gonçalves Pereira observa, a esse respeito, que a ponderação “é uma técnica indispensável quando se trata de solucionar conflitos entre princípios, sendo, dentre as diversas alternativas que se apresentam, o método que confere maior transparência e controlabilidade à hermenêutica constitucional” (PEREIRA, 2006, p. 113).

Realmente, ao apreciar a validade de um ato (normativo ou não), deve-se aferir se, através dele, será realizada a finalidade determinada por um princípio constitucional. Deve-se verificar, ainda, se o ato de cuja validade ou invalidade se cogita é um meio ou um instrumento que realmente atingirá essa finalidade; se não existem outros meios que atingem com menor sacrifício a outros princípios a serem igualmente preservados; e, finalmente, se a maior efetividade obtida com a medida (relativamente ao princípio que a justifica) supera a compressão aos princípios eventualmente antagônicos. Na lição de José de Melo Alexandrino, há no caso exigências metodológicas diferenciadas: “observação empírica, primeiro; comparação entre alternativas, num segundo momento; e pesagem entre vantagens e sacrifícios, no final.” (2007, p. 127)

Já o problema ligado à hipertrofia do trabalho das Cortes Constitucionais, que seriam assoberbadas como conseqüência do fato de que “toda questão passaria a ser constitucional”, o problema novamente não decorre da ponderação, mas do fato de se ter uma Constituição analítica, que trata de diversos assuntos, e que direta ou indiretamente dá suporte de validade a toda a ordem jurídica. Os mecanismos para se resolver essa questão, contudo, não dependem da supressão da técnica da ponderação, mas, antes, de critérios como o da “repercussão geral”, já adotado pela Constituição brasileira, ou o do não conhecimento de recursos em relação aos quais se discute a interpretação da lei e, de modo apenas reflexo, uma ofensa indireta à Constituição.

3.3. É possível não ponderar?Outro aspecto a ser considerado, no exame que ora se faz, é o de saber se é possível a um

ser racional, agindo racionalmente, não efetuar uma ponderação de elementos à luz de circunstâncias concretas que justifiquem a atribuição de pesos distintos a eles.

Afinal, princípios são mandamentos de otimização, ou, na visão mais aperfeiçoada de Humberto Ávila, “são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.” (2004a, p. 70) Não há como conformar princípios que apontam para direções diversas senão através da ponderação.

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E isso, aliás, não ocorre apenas no âmbito jurídico. Toda a atividade racional implica uma avaliação e uma conciliação de fins à luz de circunstâncias que justificam que se lhes atribuam pesos diversos.

Para usar de um exemplo bem simples, imagine-se alguém que decide entrar em forma, e também estudar mais para tentar a aprovação em um concurso público. Duas metas distintas, que exigem condutas eventualmente inteiramente diversas. Promover ao máximo a primeira das metas demandaria do sujeito passar horas realizando atividade física, deixando assim de estudar e, por conseguinte, de realizar a outra meta. Mas também passar o dia a estudar, atividade sedentária, não lhe restituiria a forma física desejada. A necessidade de se encontrar um meio termo é evidente. Imagine-se, então, que em dada semana o sujeito está gripado, ou contundido, e por isso proibido por seu médico de praticar exercícios. Poderá, então, dedicar-se plenamente aos estudos, pois não seria mesmo possível fazer exercícios. Deixar de estudar não seria adequado nem necessário para realizar a meta de entrar em forma, em face das circunstâncias.

Área na qual a ponderação é feita, todos os dias, e com muita freqüência, é na medicina. Imagine-se, por exemplo, o médico que trabalha em um hospital de emergência no qual todos os aparelhos de respiração artificial estão ocupados por doentes em estado grave. Chega, então, jovem motociclista acidentado, necessitando do aparelho com urgência, sob pena de não sobreviver. Todos estão, contudo, como dito, ocupados. Um deles, não obstante, está ocupado por senhor idoso de 95 anos, em coma, portador de câncer em estado terminal. O médico, num dilema terrível, retira o aparelho do senhor idoso, que morre, e o utiliza para salvar a vida do jovem acidentado. O idoso tinha como expectativa de vida (vegetativa) talvez mais alguns meses, no melhor dos cenários. O jovem, sobrevivendo ao acidente, poderia viver com saúde ainda por muitas décadas. Não houve, no caso, uma ponderação?

E, se o leitor pensar um pouco nas escolhas que faz todos os dias verá que, quando são verdadeiramente racionais, baseiam-se em ponderação. Como, então, dizer que o procedimento é irracional?

Esse assunto, aliás, como muitos outros, é bem mais antigo do que se pensa. Basta que se refira, para demonstrá-lo, o clássico diálogo entre Sócrates e Eutidemo em torno da justiça, que chegou à contemporaneidade pelas palavras de Xenofonte. Tendo sido estabelecido por Eutidemo que a mentira e a apropriação seriam ações sempre injustas, e não justas, Sócrates o faz reconhecer a justiça de tais atitudes, em certas circunstâncias, diante das peculiaridades de certos casos concretos por ele imaginados, e dos motivos pelos quais mentir e apropriar-se do alheio são ações consideradas injustas:

- Pois bem – prosseguiu Sócrates -, se, vendo suas tropas desanimadas, anuncia-lhe falsamente um general que lhes chegam auxílios e dessa forma consegue devolver-lhes a coragem, de que lado colocaremos essa mentira?

– Do lado da justiça, acredito.

– E se precisando uma criança de remédio e não querendo tomá-lo, seus pais a enganam, impingindo-lhe o remédio mesclado com alimentos, e assim lhe restituem a saúde, onde poremos este engano?

– Do mesmo lado.

– Enfim, se vejo um amigo presa do desespero e por temer que atente contra a vida, tomo-lhe a espada e todas as demais armas, de que lado colocas tal atitude?

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– Por Zeus! Claro que do lado da justiça. (2000, p. 230)

Assim, o que se tem é o seguinte: diante de um texto claro, dois positivistas ortodoxos podem divergir à vontade, que a sua ciência será incapaz de resolver o problema. Um ministro do STF decide uma questão de uma maneira, invocando a interpretação literal, e outro colega seu de outra maneira, invocando a sistêmica, e ambos não aceitam discutir pois estão apenas cumprindo a lei – ou a Constituição – que o outro abertamente viola. E ambos acreditam piamente nisso, sendo precisamente esse tipo de situação que Dworkin explora para criticar aqueles que ignoram a distinção entre o direito em um momento pré-interpretativo e o direito como produto da interpretação. Em suas palavras,

Os juizes considerados liberais e os chamados conservadores estão de acordo quanto às palavras que formam a Constituição enquanto texto pré-interpretativo. Divergem sobre o que é a Constituição enquanto direito pós-interpretativo, sobre as normas que mobiliza para avaliar os atos públicos. Cada tipo de juiz tenta aplicar a Constituição enquanto direito, segundo seu julgamento interpretativo do que ela é, e cada tipo acha que o outro está subvertendo a verdadeira Constituição.” (1999, p. 428)

A ponderação de princípios, nesse contexto, permite que o debate entre tais juízes, com opiniões contrárias, continue, não sendo interrompido com um "é assim porque é claro!" e ponto. E Kelsen, não se pode ignorar, deu passos importantíssimos para isso: i) reconheceu a insuficiência da ciência "pura" para dar uma solução para cada problema; ii) reconheceu que essas soluções podem ser diferentes para cada caso; iii) reconheceu que a solução será encontrada pelo intérprete em cada caso. Ele só não aceitava que isso tudo fosse científico. Mas, considerando que a idéia que se tem de ciência, hoje, é bem diferente da existente no início do Século XX, a superação desse obstáculo não representa qualquer dificuldade.

3.4. Não se pode criticar a técnica a partir de sua errada aplicaçãoFinalmente, em relação aos que consideram perigoso o método acima apontado, sob a

alegativa de que seria excessivamente subjetivo e fluido, servindo como mera escusa para o puro e simples estiolamento de direitos fundamentais, é preciso ter o cuidado para não criticar a técnica por conta de sua indevida aplicação.

Com efeito, essa crítica tem lugar porque, por vezes, alguns intérpretes que invocam a proporcionalidade e a relatividade dos direitos fundamentais, em vez de conciliarem princípios constitucionais, utilizam-no de modo equivocado e unilateral, para assim obterem a flexibilização de direitos frente a idéias tão autoritárias quanto vazias, como a da “proteção do interesse público” (MACHADO, 2007). Para agravar o quadro, esses mesmos intérpretes mudam de discurso quando tal sopesamento é invocado contra os interesses do Estado, quando não raro a doutrina jurídica que passa a ser invocada – e infelizmente às vezes aceita pelas Cortes Superiores brasileiras – retrocede trezentos anos, à escola da exegese, e princípios fundamentais são mutilados em favor da disposição expressa, literal e isolada de uma regra legal.

Essa má aplicação do método, porém, não desmente a força normativa dos princípios, nem a validade dos critérios empregados na conciliação destes. Não adianta, aliás, pugnar por um retorno à visão formalista do Direito, até porque, como insistido ao longo deste texto, a ciência

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“objetiva” e “neutra” sempre possibilitará a tomada das arbitrárias decisões referidas no parágrafo anterior, todas situadas dentro do quadro ou moldura por ela oferecido. Não está nela a solução. Na verdade, será o emprego dos princípios, nos moldes sumariamente explicados no início deste texto que possibilitará à comunidade jurídica apontar racionalmente por que uma determinada interpretação é a melhor, possibilitando inclusive uma crítica muito bem fundamentada àquelas decisões judiciais que desprestigiem valores fundamentais em prol de outros menos nobres.

O que se deve ter, em última análise, é um redobrado cuidado na escolha dos princípios a serem proporcionalmente conciliados, e no peso a ser-lhes atribuído, em cada caso, e, especialmente, na explícita, clara e detalhada fundamentação da decisão que procede à sua aplicação.

Não é lícito ao intérprete/aplicador do direito afirmar, simplesmente, que não irá observar o princípio “x” porque o mesmo é “relativo”, e por isso deve ser “ponderado”. É imprescindível que se explique, também: Com o que ponderar? Por que ponderar? Como a ponderação chegou à conclusão adotada? A decisão que não fornecer resposta a essas questões não estará fundamentada, e poderá estar utilizando a “relatividade” do princípio invocado por uma das partes como desculpa para violá-lo.

Exemplificando, se um cidadão afirma que determinada lei é inconstitucional, por malferir seu direito à livre iniciativa, não poderá o juiz afirmar apenas que tal direito, consagrado em um princípio constitucional, é relativo. É preciso que diga: a restrição a esse direito, levada a efeito pela lei impugnada pelo contribuinte, realiza algum outro princípio constitucional? Qual? Caso afirmativo, é verdadeiramente adequada para realizar esse princípio? Não existem outras maneiras de realizar esse outro princípio, menos gravosas que a restrição impugnada pelo contribuinte? E, mesmo se todas as respostas às perguntas anteriores forem afirmativas: a promoção ou o benefício que essa lei confere ao outro princípio envolvido no problema supera os gravames causados ao direito à livre iniciativa?

Caso seja respondida negativamente pelo menos uma das perguntas anteriores, a restrição ao princípio da livre iniciativa não se justifica, e é inconstitucional. Entretanto, se todas forem respondidas positivamente, a lei impugnada é válida e veicula restrição (ou “relativização”) constitucional ao princípio em questão.

Considerações finaisEm razão do que foi visto ao longo deste pequeno texto, pode-se concluir, em suma, que

não há como reconhecer a aplicabilidade de princípios jurídicos sem recorrer à técnica da ponderação, por meio do postulado da proporcionalidade. A ponderação é a técnica que oferece a objetividade, a racionalidade e a controlabilidade possível a esse processo. Evitá-la não agrega segurança, nem afasta o poder discricionário do Juiz, levando em verdade ao resultado contrário.

A rigor, proporcionalidade, ponderação, fórmula do peso, são apenas tentativas de teorizar a racionalidade que orienta inconscientemente as escolhas humanas, a cada passo. Basta ver a "ponderação" que um médico faz antes de receitar um remédio, sopesando se com ele se alcançará a cura (adequação), se não há outro mais barato, ou com menos contra-indicações (necessidade), e se os efeitos colaterais, se inevitáveis, não são piores que a própria doença

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(proporcionalidade em sentido estrito). É algo tão lógico que eles, os médicos, devem ficar impressionados que tanto se teorize a respeito nos cursos - logo onde! - de Direito.

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