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MADRAS
As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário
Janaína Laport Bêta
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).
Orientador: Prof. Manuel Antônio de Castro
Rio de Janeiro Dezembro 2010
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MADRAS As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário
Janaína Laport Bêta
Orientador: Profº Doutor Manuel Antônio de Castro.
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).
Examinada por:
Presidente, Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro
____________________________________________________________
Prof. Doutor Antônio Jardim - Departamento de Ciência da Literatura – UFRJ
____________________________________________________________
Prof. Doutor Gilvan Fogel – IFCS - UFRJ
Profª Doutora Angélica Soares – Departamento de Ciência da Literatura – UFRJ, Suplente
Profª. Doutora Cláudia Andréia Prata - PPGHC – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro Dezembro 2010
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FICHA CATALOGRÁFICA
Bêta, Janaína Laport. MADRAS. As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário / Janaína Laport Bêta. Rio de Janeiro: UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), 2010.
ix, 155f.: il.; 31 cm. Orientador: Manuel Antônio de Castro.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação de Ciência da Literatura (Poética), 2010.
Referências Bibliográficas: f. 147-155. 1. Introdução sobre o assunto e o Título. 2. A loucura como Início. 3. Bispo e os Conceitos de Arte Contemporânea. 4. O Contemporâneo como conceito X O tempo como questão. 5. O Sagrado e o movimento do Ser nas Obras de Bispo. I. Castro, Manuel Antônio de. (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Literatura (Poética). III. Madras – As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário.
4
Àqueles pelos quais sou:
A você meu amor, por sua presença. Por manter-se ao meu lado sendo a única pessoa com a qual compartilho feliz o silêncio.
À nossa linda Maria, que através de nós veio, para ser, e é.
A Antonio Jardim: por apresentar-me ao pensar poético; por sua amizade afetuosa; pela luz de seu talento que reafirma em música o vigorar da poesia.
E especialmente a Manuel Antônio de Castro: Meu Grande Mestre, alguém a quem esperava, mesmo sem saber que. Ao modo oriental, guia-me para além de mim, dizendo: aproprie-se de seu próprio. Agradeço ainda pela simplicidade
franciscana, por sua sabedoria e bondade.
A Gilvan Fogel agradeço a acolhida, uma honra.
in memoriam:
Àqueles que aqui já não estão: pelo perfume da saudade.
5
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Manoel de Barros
6
RESUMO
MADRAS
Janaína Laport Bêta
Orientador: Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).
Desejo neste estudo habitar as obras que através de Arthur Bispo do Rosário vieram à presença. Uma busca por restaurar a potência do olhar pensante, habitando o que nelas se doa. Habitar é de-morar. De-morando no olhar a possibilidade de retorno ao ver inaugural, ao espanto, ao não-visto de tudo aquilo que vem à presença. Re-conhecendo, no que não se doa em totalidade ao ver, num resguardar-se, o vigorar inesgotável da própria Arte. Entrever a silenciosa e originária fonte de todo o não-visto: A Linguagem, essência da arte, morada do ser. Nas obras sua fala. As mais de oitocentas obras de Bispo o revelam como um dos guardiões dessa morada. A Linguagem fala através das obras, mas por vezes é inaudível, abafada por ensurdecedor ruído dos muitos conceitos que a história da arte enquanto disciplina formula, brada. Conceitos que disseminam ainda espécie de miopia que oculta a verdade ao submeter a Arte à razão. O exercício de pensamento proposto não buscará catalogar ou conceituar, mas dialogar com questões corporificadas em obras na condição poética do a-se-pensar. Contudo, questões que permeiam o universo de Bispo são complexas. Paradoxalmente afirmamos que tal complexidade se dá pela simplicidade que as constituem. Desabituamo-nos com o simples, soterrados sob montanha de teorias estéticas. Há que se ajustar as lentes. No percurso, avistaremos conceitos: contemporâneo, subjetividade e vanguardas artísticas – lotes lindeiros, quase miragens, ladeando veredas do próprio, do delírio inspirado, caminho que conduzirá à questões da ordem do tempo, da loucura e do sagrado.
Palavras-chave: Arte, Bispo do Rosário, Linguagem, Loucura, Sagrado.
Rio de Janeiro
7
Dezembro 2010
ABSTRACT
MADRAS The folds in of the Sacred the fabric Poetic Arthur Bispo do Rosário
Janaína Laport Bêta
Orientador: Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).
In this study, the desire to reside works through Arthur Bispo do Rosario came to attend. A search for restoring the power of the thoughtfullook, living in what donates on them. To reside is of-living. Of-living in looking at the possibility of returning after seeing the opening, the astonishment, the unseen of everything that comes to presence. Re-knowing in what is not donated in full to see, guarding itself, the inexhaustible force of his own Art. To glimpse the silent and originating source of all unseen: The Language, the essence of art – home ofthe being. In the works, his speech.Bispo‟s more than eight hundred works reveal him as a one guardian of this home. The Language speaks through works; sometimes it is inaudible, drowned out by a deafening noise of the many concepts that art history, as a discipline, formulates, calls. Concepts that even spread a kind of myopia that hides the truth by submitting Art to reason. The proposed exercise of thought will not seek to catalogue or conceptualize, but, instead, will engage with issues embodied in works, in the poetic condition about-to-think. However, issues that permeate the Bispo‟s universe are complex. Paradoxically, we affirm that such complexity is given by the simplicity that constitutes them. We are out of the habit of what is simple;we are buried under a mountain of aesthetic theories. Lenses should be adjusted. On the way we will see concepts: contemporary, subjectivity, and artistic avant-gardes – borderinglots, almost mirages, flanking paths of their own, of the inspiredrave, pathway that will lead to questions of time order, of madness, and of sacred.
Keywords: Art, Bispo do Rosário, Language, Madness, Sacred.
Rio de Janeiro Dezembro 2010
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Sumário:
1. O Tecido - - - - - - - - - - - - - - [apresentação] - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -10
1.1. Da Trama e da Urdidura - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -11 1.2. Tecelão ou Alfaiate - - - [o homem Bispo do Rosário]- - - - - - - - - - -13 1.3. Dos fios - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 17 2. O Molde - - - - - - - - [Para o retalhar conceitual do tecido - - - - - - - - - - - - - -20 Tentativas de aproximação entre Bispo e Agamben
2.1. A negatividade- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -26 A arte contemporânea em Duchamp por Agamben e suas relações com Bispo do Rosário 2. 2.O duplo: Sagrado e profano - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 35
3. O Risco - - - - - - - - - - - -[entre o duplo e a dobra] - - - - - - - - - - - - - - - - - 40 3.1. A primeira dobra no duplo - - - -[Doença mental e loucura] - - - - - - -40 3.2. A segunda dobra no duplo - - - -[Bispo o artista contemporâneo]- - - 46 Os atributos do tempo 4. O Corte - - - - - - - - - - - [entre a dobra e o duplo] - - - - - - - - - - - - - - - - -58 Refazendo o percurso ou outra tentativa de pensar o Sagrado
5. Alinhavos- - - - - -[As dobras poéticas no Manto da Apresentação] - - - - - - -64 5.1. O Ver - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 66 5.2. Obra - - - - - - - - - - - - - - [mecanismos e criação] - - - - - - - - - - - - - 72 5.3. Poíesis e Tékhne- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 75 5.4. O Próprio e a Realidade- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 76 5.5. O Figurar do Manto - - - - - - - - [e o espaço-tempo] - - - - - - - - - - - 85 5.6. O Tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -89
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5.7. Memória - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -91 6. Costura - - - - - - - - - - - - - - - - [Ou sutura do ser] - - - - - - - - - - - - - - - - -97 6.1. Manto da Apresentação- - - -[Veste para um grego intempestivo]- - - 97 6.2. A Loucura e suas Dobras - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -99 6.3. Daseinsanálise- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -100 6.4. Daseinsanálise e Esquizofrenia - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 105 6.5. A abertura e os modos de ser do esquizofrênico - - - - - - - - - 108 6.6. No dia 22 de dezembro eu vim - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -115 6.7. O Sagrado - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -121 6.8. A Finitude - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -129 7. Arremate- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 134
8. Bordado- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -136
9. Chuleio- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -137
10. Aviamentos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -147
10
1. O Tecido - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Apresentação
Da trama e da urdidura do Madras – o rico tecido cuja intensidade dos
matizes traz um perfume do oriente no rastro pictórico do fazer artesanal de
mãos indianas, que mergulham em tinas de cor as fibras a serem urdidas por
outras mãos, dando corpo ao peculiar xadrez – a inspiração: pensar [como
tecido poético] a produção plástica que através de Arthur Bispo do Rosário veio
à presença.
Das inquietudes despertas na feitura do trabalho final de graduação,
questionamentos se transubstanciaram em algo maior: Necessidade
[inicialmente entendia como reta – que não admitindo curvas – impulsionava
em novo percurso, que a cada passo foi revelando a plenitude de um traçado
circular. Por pequeno segmento deste círculo, estes escritos em forma de
dissertação de mestrado].
Necessidade. Não encontro modo outro de nomear [capaz de abarcar
em totalidade e intensidade] a relação entre mim e as questões que desde
então me tomaram. Vinda da área de Artes, com formação em História da Arte,
não encontrava, entre os inúmeros conceitos disponíveis, algum que
excedesse o mero tangenciar as obras. Conceitos sempre insuficientes diante
das questões que se apresentam ao ver no universo da produção poética de
Bispo do Rosário – aquele que se apresentou ao mundo não como artista, mas
como inventariante das obras dos homens sobre a terra.
Como usar ferramentas da razão para pensar a loucura?
11
1.1. Da Trama e da Urdidura - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Depois de longa procura, ela me dá a notícia: Assim aqui nada repousa sobre
razão profunda.
Stefan George1
A poética em Bispo do Rosário e o Madras. Fios que da roca partem
formando meadas de rica cor e no tear se entrecruzam em urdidura e trama – o
gesto inegavelmente mais forte que a mão a urdir. Fios de vida e morte,
loucura e sanidade, limite e não-limite se entretecem em obras de densa carga
poética. Moira de artista. Da condição à possibilidade: ser tecelão. Fio-destino:
estar acima da razão cotidiana e fraca, entregar-se ao movimento do ser,
deixando-se arrebatar pelo delírio inspirado. Obrar em arte. Esgarçando
cuidadosamente as meadas deste Madras, por entre as labirínticas fibras que
se entrelaçam, buscaremos o a-se-pensar. Em cada uma das obras a fala do
pulsar poético que habita a existência humana. Ou melhor, cada obra a dizer
da condição humana: habitar o poético, habitar poeticamente, fundar mundo. O
real dizendo-se em cada dobra deste tecido vivo.
Pensava, anteriormente, que o artista Bispo havia construído o conjunto
de suas obras lançando-se sobre o tecido urdido em vivências, tudo ali partindo
dele, de seu intelecto. Julgava serem as obras fruto de intencionalidade.
Acreditava na subjetividade artística – e não apenas na de Bispo. Julgava
também, na condição de historiadora, poder lançar-me sobre o tecido que
constitui sua poética e, em metacostura, coser um manto, um traje, a escrita
crítica. Avistava questões e ainda assim insistia em buscar agulhas, para, com
linhas de pensamento advindas de retroses conceituais, iniciar costura.
Assim procedi por algum tempo, buscando em pensamentos prontos
“suporte” para a escrita. Até que, em dado momento, questões que não cabiam
1 Apud HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem, pág. 124.
12
em conceitos se apresentaram mudando o curso do trabalho, redesenhando
todo o percurso.
Desde então, inúmeros descobrimentos me tomaram de assalto. Entre
eles o mais importante é hoje perceber não haver linhas, tampouco moldes ou
medidas capazes de auxiliar em costura de pensamento que se dirija às obras
de arte; arrisco ainda dizer que em especial aquelas que através de Bispo
vieram à presença. Percebemos que ao traçarmos uma reta a ser seguida, por
vezes não observamos devidamente o caminho. Caminhos se dão no
caminhar. Ao refazer o percurso pelas questões que habitam as veredas do
pensar poético pude perceber que ainda que pareça não avançarmos, a
circularidade se revela muito mais profícua, pois passando inúmeras vezes
pelo mesmo ponto, olhando-o de diferentes modos a cada refazer do caminho,
tanto a vereda quanto nós haveremos sempre de sermos outros. Nas páginas
que se seguem, teço os registros deste percurso que começa por via conceitual
e bifurca-se em estâncias do poético...
13
1. 2. Tecelão ou Alfaiate? - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - O homem Bispo do Rosário
Antes de nos enveredarmos pelo labirinto das obras, busquemos
primeiramente conhecer um pouco da história do homem Arthur Bispo do
Rosário2.
Bispo, ao ser interrogado sobre sua origem, dizia ser enviado dos céus.
E respondia:
– Um dia eu simplesmente apareci no mundo.
Nasceu no Sergipe, na cidade de Japaratuba, em 5 de outubro de 19093,
filho de Adriano Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus.
Diagnosticado pela psiquiatria como esquizofrênico-paranóico foi interno da
Colônia Juliano Moreira. De sua vida pessoal pouco sabemos: Foi marinheiro,
pugilista, funcionário da Light e prestava serviços a uma família em Botafogo,
zona sul do Rio de Janeiro por ocasião do primeiro surto, ocorrido em 22 de
dezembro de 1938. Sobre este fato temos a narrativa do próprio Bispo,
registrada nos bordados de um de seus estandartes:
22 DEZEMBRO 1938 – MEIA NOITE ACOMPANHADO POR – 7
– ANJOS EM NUVENS ESPECIAIS FORMA ESTEIRA – MIM
DEIXARAM NA CASA NOS FUNDO MURRADO RUA SÃO
CLEMENTE – 301 – BOTAFOGO ENTRE AS RUAS PALMEIRAS
2 A respeito de sua vida há excelente biografia escrita pela jornalista Luciana Hidalgo intitulada:
Arthur Bispo do Rosário o senhor do labirinto. Bem como o livro catálogo lançado pela equipe de direção do Museu que fica na Colônia Juliano Moreira: Bispo do Rosário século XX. Rio de Janeiro: Museu Bispo do Rosário e prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 2006. 3 Há divergências quanto sua data de nascimento. Na biografia escrita por Luciana Hidalgo
consta a data de 5 de outubro, já no livro editado pelo Museu Bispo do Rosário cita a data de 14 de maio segundo registros da Marinha de Guerra do Brasil., onde Bispo teria servido de 1925 a 1933. Já nos registros da companhia Light, onde Bispo teria trabalhado até 1937, a data é 16 de março de 1911.
14
E MATRIZ EU COM LANÇA NAS MÃO NESTA NUVES
ESPÍRITO MALISMO NÃO PENETRA AS 11 HORAS ANTES DE
IR AO CENTRO DA CIDADE NA RUA PRIMEIRO DE MARÇO –
PRAÇA – 15 – EU FIZ ORAÇÃO DO CLEDO NO CORREDOR
PERTO DA PORTA – VEIO MIM – HUMBERTO MAGALHAES
LEONI – ADVOGADO MESTRE PARA ONDE EU IA
PERGUNTOU EU VOU ME APRESENTAR – NA IGREJA DA
CANDELÁRIA ESTA FOI MINHA RESPOSTA EU ABRIR A
PORTA LADO LESTE UM JARDIM VARAS CORES AO 7 –
METROS DE FRENTE UM PORTÃO DE – 2 METROS DE
ALTURA DE FERRO LADO ESQUERDA COM SEUS
GRADEADOS TODAS DE PONTA LANÇA UM METRO E VINTE
DE ALTURA – 10 – ESPAÇOS – UMA POLEGADA SOBRE UMA
PILATRA DE 60 – CITIMETROS DE CIMENTO PISO DE LADO
ESQUERDA – 70 – LARGURA ATÉ PORTÃO EU FIQUEI NA
CALÇADA ESPERANDO NO PONTO DE PARADA – FICA
ENFRENTE NUMERO 301 – BONDE – JARDIM LEBLO TOMEI
ESTA CONDUÇÃO JÁ NO FIM DESTA RUA AOS 10 – MINUTOS
FEZ CURVA PARA LADO ESQUERDA – SEGUE VIAGEM PELA
PRAIA DE BOTAFOGO RUA SENADOR VERGUEIRO EM SUA
VELOCIDADE NORMAL VAI PELO CENTRO – QUASE NO FIM
UM PEQUENO QUARTEIRÃO FAZ CURVA PARA A DIREITA
NESTA RUA DE ESQUINA OBSERVO UMA EMBAIXADA –
CURVA A ESQUERDA ENTRA NA PRAIA DO FLAMENGO
LOGO OBSERVEI QUE É OS FUNDOS DO PALACIO DO
CATETE – SEDE DE SUA EXCELENCIA PRESIDENTE –
ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL – UM PORTÃO DE FERRO
LARGO COM SUAS GRADES DE PONTA DE LANÇAS SOBRE
PILATRAS DE PEDRA AOS 2 – METROS DE ALTURA PODE
SER MAIS – 100 DISTANCIA UM SOLDADO EXERCITO DE
SINTILNELA COM SEU FUZIL NA COSTA SUA BANDLEIRA
15
AFRENTE COURO PROXIMO GURITA JARDIM [...] (Apud.
HIDALGO, 1996, p. 11).
Bispo, que então descansava no quintal do casarão da família Leone
onde era auxiliar de serviços gerais, situado à rua São Clemente, 301, em
Botafogo RJ, percebe o céu se abrir e diante de seu pasmo 7 anjos o
convocam a inventariar a passagem do homem sobre a terra. Tomado pela
força da visão, Bispo sai a vaguear pelas ruas desertas naquela noite de 22 de
dezembro. Ao patrão, o advogado Humberto Magalhães, diz apenas que irá se
apresentar na Igreja da Candelária. “A glória absoluta: ele era enfim
reconhecido. Como Jesus Cristo? „Esta falando com ele‟, arriscaria em
confissão”. (HIDALGO, 1996, p. 13). Perambulou pelas igrejas do Centro da
cidade por dois dias – sua via crucis – escoltado por anjos. A peregrinação
terminou no Mosteiro de São Bento por julgar poder ser reconhecido pelos
monges como um enviado de Deus. No dia 24 de dezembro, acontece o marco
humano entre a “realidade” e o delírio: Bispo é recolhido ao hospício da Praia
Vermelha. Era quase natal. Não estaria presente na ceia da família Leone.
A jornalista Luciana Hidalgo, em seu livro Arthur Bispo do Rosário o
senhor do labirinto, esclarece-nos os pormenores do “exílio” de Bispo da terra
dos homens. Teria chegado ao manicômio da praia vermelha – Hospital
Nacional dos Alienados (ex- Pedro II), pelas mãos das autoridades, assim
como Lima Barreto que também passou uma temporada por lá em 1919 e
1920, e demais “loucos” da época. Como todo paciente que caia nas malhas da
psiquiatria naquele tempo, Bispo, dado como indigente, recebeu o mesmo
tratamento: despido de seus trajes foi impelido a vestir o uniforme oficial do
“hospital”. Depois o claustro.
Passadas as festas natalinas, um mês após a internação, em 25 de
janeiro, foi transferido para a Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, sendo
alojado no pavilhão 11 do Núcleo Ulisses Viana, o mais constrangedor dos
setores, reservado aos pacientes mais agressivos e agitados, onde
16
permaneceria por longos cinquenta anos – de 1939 a 1989. Neste período
houve algumas saídas, entre os anos de 1940 e 1960, onde procurou os
antigos patrões em Botafogo, sendo sempre bem recebido. Realizou ainda
alguns trabalhos: em um escritório de advocacia; na portaria do Hotel Suíço, na
Glória; como segurança pessoal do senador Gilberto Marinho; e no início dos
anos 60, a clínica pediátrica AMIU, em Botafogo, onde ficou voluntariamente
isolado num quartinho do sótão e produziu grande parte de sua obra. No ano
de 1964, retornou à Colônia Juliano Moreira, lá permanecendo até sua morte,
em 5 de julho de 1989 às 19h, de infarto do miocárdio, arteriosclerose e
broncopneumonia.
Mesmo recluso Bispo não se desvirtuou da convocação, assumindo
posição de inventariante das obras do homem sobre a terra, pôs-se a obrar
incessantemente, deixando-nos por legado uma das mais intrigantes
produções plásticas contemporâneas, constituída de “restos”, ou seja, materiais
desprezados, dos mais diversos, apropriações, que através de suas mãos dão
corpo ao poético em inúmeros estandartes, bordados, ORFAs4,
assemblagens,5 miniaturas, e tudo o mais que se apresentou como necessário
ao ofício de inventariar.
Mesmo sem recursos Bispo obrou, atendendo ao chamado, à
necessidade da arte. E não havendo fio, desteceu seus uniformes e lençóis
azuis de interno. Como base para os ricos bordados, ordinários cobertores, que
no operar da arte transfiguraram-se em ricos fardões dignos da academia,
4 O.R.F.A. – Sigla para: objetos recobertos por fio azul. Bispo necessitava reproduzir o que via,
para poder juntar em seu inventário toda produção humana. ORFAs eram réplicas de objetos cotidianos, como que “mumificados” pelo fio azul. Imagem no capítulo Chuleio, p. 139. Ilustração 3. 5 O termo assemblage é incorporado às artes em 1953, cunhado por Jean Dubuffet (1901 –
1985) para fazer referência a trabalhos que, segundo ele, "vão além das colagens". O princípio que orienta a feitura de assemblages é a "estética da acumulação": todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte. A ideia forte que ancora as assemblages diz respeito à concepção de que os objetos díspares reunidos na obra, ainda que produzam um novo conjunto, não perdem o sentido original. Menos que síntese, trata-se de justaposição de elementos, em que é possível identificar cada peça no interior do conjunto mais amplo. Imagem p. 139 (vitrine) e 140 (assemblegem),. ilustrações 4 e 5..
17
faixas de misses, estandartes que narram minúcias do funcionamento do corpo
humano, da construção de fragatas, de escolas de aprendiz de marinheiros, de
ferrovias, de esportes, da geometria...
Foram inúmeras as obras, confeccionadas, catalogadas (no rigor de uma
arquivologia própria) e armazenadas com o empenho e a força de uma
existência. Dentre elas um destaque: o Manto da Apresentação6, traje-obra
confeccionado por Bispo para o dia de sua morte, quando estaria diante do
criador para apresentar seu trabalho: o inventário de toda produção humana
sobre a terra.
1. 3. Dos Fios - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - No osso da fala dos loucos há lírios.
Manoel de Barros
Na poética de Bispo do Rosário fragatas bordadas navegam –
Travessia.
Todo um oceano de delírio criativo. Sacralidade. Resistentes à aridez
dos conceitos, as obras convocam e, como não se firmam como fruto de
subjetividade artística, só se abrem ao ver em diálogo poético. Ao crítico é
subtraído o esforço da bagagem teórica, nada precisa carregar da ordem dos
aparatos conceituais. Dele, as obras exigem apenas o essencial: a condição do
olhar que vê, um ver voltado para as questões originárias. Um olhar aberto ao
a-se-pensar naquilo que ali se presentifica.
Muito se tem dito sobre o artista Bispo do Rosário. Pesquisadores de
distintas áreas do conhecimento humano voltam olhares nesta direção. Entre
defesas e ataques, há os que afirmem e os que repudiem sua condição de
artista. Respostas que se cristalizam em conceitos são produzidas aos montes.
6 Ver Ilustração 1 e 2 no capítulo Chuleio, p. 137 e 138.
18
Hoje o pensamento que me move busca um caminhar que não se dirija a tais
cercanias, pois os conceitos muitas vezes se estabelecem quando as
respostas se tornam mais importantes que as questões, o que geralmente
ocorre a pensamentos que seguem pelo viés da metafísica7, que ao longo da
história contribuiu para a construção do que hoje conhecemos por subjetividade
artística.
Antecipadamente afirmamos não possuir respostas, e de fato não nos
empenharemos em buscá-las. As questões sim, estas nos movem. Inúmeras,
que se perfilam ao arrostarmos as obras. Antecipamos que entre as questões
que aqui se apresentarão, até mesmo quando o percurso ainda se dá por via
conceitual, não figura a discussão sobre a veracidade artística de Arthur Bispo
do Rosário, reconhecidamente um dos grandes nomes da arte contemporânea
brasileira – atestado não por este ou aquele crítico, mas pela plenitude da arte
que se doa ao ver e prescinde defesa, falam por si. Tampouco é o homem-
artista-Bispo-do-Rosário a ocupar o centro deste estudo. Esclarecemos: é o
enigma da arte nas obras quem convoca.
O pensamento imbrica questões originárias: a Loucura e o Sagrado. A
condição de interno na Colônia Juliano Moreira onde passou grande parte da
vida, até a data de sua morte em 1989, e as dissonâncias implicadas nesta
condição, não se deixa descartar impunemente. Há os que rejeitem as obras
que através de Bispo vieram à presença por considerá-las o que chamam de
art brut8; outros defendem com veemência seu espaço nas artes
contemporâneas agregando à sua história o “status” (ou melhor dizer rótulo?)
7 Buscaremos, através de verbete do Dicionário de Poética e Pensamento esclarecer o que entendemos
por metafísica: “3. (...). Qualquer tentativa de dizer o que a palavra metafísica oculta é uma
decisão pelo fracasso. E, no entanto, a palavra é simples, muito simples. Compõe-se do prefixo grego metá-, que significa: entre, além, para, junto a; e da palavra phýsis. A meta-física diz respeito à subjetividade porque o ser-humano é o Entre-da-phýsis. Porém, tal Entre é ambíguo e a phýsis é misteriosa e enigmática. Ela possibilita muitas leituras. Inclusive a metafísica. Nenhuma semântica, nenhuma lógica consegue abarcá-la e apreendê-la”. (CASTRO: Metafísica, 3). 8 Termo cunhado por Jean Dubuffet para a arte dos artistas não-intelectualizados, pacientes
mentais, etc. Entre nós Mário Pedrosa chamou arte virgem ou arte inconsciente. Roger Cardinal, na Inglaterra, traduziu o termo art brut por outsider art; e nos EUA, a arte dos loucos é rotulada de folk art, ao lado da arte dos negros e dos índios (AQUINO, 2006).
19
de artista conceitual. Penso que quando somos tomados por questões,
inúmeros caminhos se fazem possíveis, no entanto, a meu ver, os até então
trilhados não se mostram profícuos. Nega-se ou afirma-se uma condição
mental em busca de respostas, mas não há um verdadeiro abrir-se ao que se
coloca nesta discussão, ou seja: a loucura, que põe em xeque a ideia de
subjetividade, autonomia e vontade que impera atualmente no meio artístico.
Quanto ao sagrado ali manifesto pouco ou nada se diz.
Não nos posicionamos ao lado de nenhum grupo. Não creio que uma
obra de arte precise de classificações ou catalogações para vir a ser. De modo
algum temos a pretensão de buscar soluções que possibilitem conceituar as
obras de Bispo do Rosário, tampouco solucionar o enigma que constitui a Arte.
Manuel Antônio de Castro, em seu ensaio O contemporâneo e o enigma da
paideia poética, traz para o pensamento reflexões de Martin Heidegger no
posfácio de A Origem da Obra de Arte que aclaram o percurso: “As reflexões
precedentes dizem respeito ao enigma da arte, ao enigma que é a própria arte.
Está longe de nós a pretensão de resolver o enigma. Permanece a tarefa de
ver o enigma” (HEIDEGGER, trad. CASTRO e SILVA, 2010, p. 201). Creio na
necessidade de aceitarmos o diálogo proposto pelas obras. Apenas
avistaremos o enigma. Mas aceitar o diálogo implica não rejeitar nenhuma das
questões que se apresentam no universo das obras. Se para muitos a loucura
em Bispo é o cerne de sua poética e para outros é o que comprometeria sua
veracidade artística, o que me parece inquestionável é que de fato ela
configura o início. Dediquemos então à loucura um olhar piedoso, lembrando
mais uma vez Martin Heidegger, que diz ser a questão a piedade do
pensamento. Aceitando a loucura como inerente ao próprio do artista Bispo,
buscarei entender sua presença na construção e constituição poética das
obras. Nossa caminhada, como mencionado anteriormente, apresentará dois
momentos. Primeiramente se moverá no duplo dos conceitos, apenas
tangenciando a loucura e o sagrado. Posteriormente, realizaremos a tentativa
de embrenharmo-nos nas dobras deste rico tecido e suas questões.
20
2. O Molde: para o retalhar conceitual do tecido
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Tentativas de Aproximação entre Bispo e Agamben
Iniciando nosso percurso realizaremos breve incursão pelo pensamento
do filósofo italiano Giorgio Agamben, buscando estabelecer posteriormente
aproximações entre sua escrita e a produção plástica de Bispo do Rosário.
Esclarecemos, contudo, que o que será desenvolvido neste capítulo e
posteriormente nos 2 e 3 (como sinalizam os títulos deste e dos capítulos
subseqüentes) faz parte de nossa incursão em terreno conceitual9, exercício
importante antes de adentrarmos pelas veredas do poético.
A encenação de um ato profanatório: pinceladas em branco de titânio
sobre a célebre obra O triunfo do Genius da destruição – do pintor húngaro
Mihály Zichy, expoente do romantismo – traduz a bela capa com a qual nos
defrontamos ao termos em mãos a edição brasileira da obra Profanações, do
pensador italiano Giorgio Agamben – uma aproximação, em síntese imagética,
do denso pensamento que ali repousa na condição de escrita que aguarda
leitura.
Selvino J. Assmann, tradutor da obra em questão, em texto de acolhida,
efetua generosa cartografia das veredas da escrita das páginas
subsequuentes, descrevendo o autor como “intelectual instigante, exigente e
intempestivo”10 – e para nossa conformada angústia, antecipa o que em breve
descobriríamos – capaz de impressionar (e assustar) os mais aplicados
9 Neste capítulo buscaremos entender um pouco do pensamento de Giorgio Agamben, em
conceitos relativos ao sagrado e ao profano, bem como ao contemporâneo que habitam sua escrita. “Ensaiaremos”, mais adiante, aproximarmo-nos das obras de Bispo por este caminho. Contudo, se revelará claramente a insuficiência de tal percurso calcado no sendo (ente), na subjetividade artística, diante das questões do ser que habitam a arte, e que persistem, convocam. Questões essas a serem tratadas oportunamente. 10 ASSMANN, Selvino J. “Apresentação”. In: Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São
Paulo: Boitempo, 2007. p. 7.
21
leitores. Os mecanismos da escrita de Agamben percorrem o inimaginável ao
realizar uma leitura ímpar da situação política atual, “andando sinuosamente
entre uma miríade de autores antigos (como Aristóteles), medievais, modernos
e contemporâneos” (Ibid., p. 7), transitando pelos mais diversificados campos
do saber, estabelecendo diagonais de pensamento que vão da teologia à
política, da metafísica à literatura. Seu pensar imbrica entre outros caminhos –
como nos esclarece o autor que o apresenta – pelo da biopolítica, vendo-a
como luta da vida e das formas de vida contra o poder. Poder que denuncia
pelo ato de subjugar essas mesmas formas, submetendo-as a seus fins
particulares, muitas vezes pouco ou nada legítimos.
Em Profanações11, conceitos essenciais ao nosso estudo são
elaborados em torno de elementar questão – o Sagrado, analisado de forma
precisa, em raciocínio que abarca de modo irretocável o sentido pleno que esta
condição (expressão?) assume no mundo contemporâneo. Para Agamben,
esse é o mundo onde o habitar é movido pelo inevitável, onde tudo parece
atender a urgente necessidade que a tudo sacraliza. O pensador finca seu
movimento de resistência, buscando des-criar o que existe. Re-busca as
longínquas terras da infância e na potencialidade ali resguardada – no
encantamento do jogar e amar, na capacidade de viver em plenitude um
estranhamento sem reservas, lá onde nos desvencilhamos do medo de estar
entre o dizível e o indizível – encontra modos para des-criar a obviedade
existente. Conclama-nos a penetrar por frestas da subjetividade, da liberdade
individual, conscientes de que no império do necessário e da impossibilidade
não há sujeito, não há liberdade, tão pouco criação.
Da infância quer o entre-lugar, aquele entre o dizível e o indizível. O
retorno ao início, para onde julga ser a habitação da liberdade, da
subjetividade. No elaborar do conceito de potência, desperta-nos para a
possibilidade da vida ser pensada como o que excede as próprias formas e
realizações, afirmando que a potência não se esgota no ato, mas que há toda
uma relação com a privação, onde ela pode a própria impotência. Fazendo-nos
11
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
22
repensar questões primordiais como: potência-ato, possível-real, ofertando-nos
uma nova forma de olhar para o ato da criação e da obra. Com relação à Ética,
a luta por ela no pensamento de Agamben é menos luta pelo cumprimento de
uma norma, da realização de essências humanas, destino, vocações históricas
ou espirituais; tornando-se tão e simplesmente a luta pela liberdade, pela
experimentação da própria existência como possibilidade ou potência de ser e
de não-ser.
Embora não se trate de negar que o ser humano tenha uma tarefa a realizar, a luta pela ética é a luta pela liberdade, ou seja, luta para que possamos experimentar nossa “própria existência como possibilidade ou potência”, potência de ser e de não ser (AGAMBEN, 2007, 9).
No conceito de profanação, concentra-se o instrumento de sua filosofia.
Por ferramenta, o ato de profanar o sagrado busca devolver ao mundo, à
humanidade, o que lhe foi historicamente subtraído ao uso pela sacralização.
Desloca esta visão para o âmbito da política e partindo de Walter Benjamin –
para quem o capitalismo é visto como religião – propõe a “profanação do
improfanável” como tarefa “política da geração que vem”. Alertando-nos para a
necessidade de nos libertarmos do consumismo desmedido e asfixiante no
qual estamos soterrados, tratando-se ao mesmo tempo – como nos esclarece
Assmann –- de “afastarmo-nos do eu soberano de Descartes, e chamar a
atenção para o impessoal, o obscuro, o pré-individual da vida de cada um de
nós”. Na Incessante tarefa de profanar, nem mesmo a figura do autor está a
salvo, como bem elabora nos ensaios Genius e O Autor como Gesto. Com
relação ao jogo sacralizar x profanar, agracia-nos com o brilho de seu
pensamento em Elogio da profanação, escrito de particular interesse para
nosso estudo, ao qual retornaremos mais adiante.
Outros escritos de Agamben que não constam em Profanações nos
serão igualmente importantes ao percurso – O fim do Poema, Ideia da Prosa, O
cinema de Guy Debord e O Homem sem Conteúdo. Nos dois primeiros
Agamben pensa os Institutos Poéticos – o enjambement, a versura, a rima, a
23
cesura e o fim do poema – aquilo que, em princípio, seria próprio da poesia e
não da prosa, trazendo-os para o seu pensar filosófico a junção entre poesia e
filosofia como algo elementar. Para o italiano (cujo pensar neste ponto difere de
Heidegger) poesia e prosa não constituem troncos paralelos em um mesmo
bosque, mas ramificações de um mesmo caule – a Linguagem.
Dentre os institutos poéticos por ele pensados, o que mais nos atraiu
neste pequeno estudo é o enjambement, que podemos definir em sua usual
aplicação no poema, como a oposição entre um limite métrico e um limite
sintático. O enjambement, ou ao menos sua possibilidade, constitui em seu
pensamento, a única garantia de diferenciação entre verso e prosa, a
configurar-se como único traço distintivo. (...) revela uma não-coincidência, um
deslocamento entre o metro e a sintaxe, entre o ritmo sonoro e o sentido, como
se o poema vivesse desse íntimo desacordo (AGAMBEN, 1998). No
enjambement, o verso se interrompe saltando sobre o abismo do sentido, para
pousar na linha seguinte, transgredindo assim a própria unidade puramente
sonora, bem como, e de modo simultâneo, sua identidade e medida. Para
Agamben este instituto poético desvela a qualidade bustrofédica da poesia,
revelando a hibridez que habita todo discurso humano: o misto de poesia e
prosa. Pensando o enjambement como o salto sobre o abismo do sentido, vê
na versura (termo que vai colher entre aqueles que aram a terra) o exato tempo
do salto – da queda, do “cair para cima”, do estar sobre o abismo.
Em O Fim do Poema – título do escrito, bem como instituto poético ali
articulado –, reforça que a poesia não vive senão na tensão e no contraste (e,
portanto também na interferência) entre o som e o sentido. Agamben o define
como última estrutura formal perceptível de um texto poético. Questiona-nos:
se o poema se estabelece e se sustenta na tensão entre som e sentido, o que
acontece quando o poema finda? Como se dá o enjambement final e o que
acontece no término do poema, quando obviamente já não é possível tal
oposição? Se o verso define-se pelo enjambement e se sabemos não ser
possível enjambement no fim do poema, então devemos concluir, segundo
Agamben, que o último verso não é um verso. Como se o poema fosse incapaz
24
de findar-se, pois admitir o fim, seria cair formalmente na ruína do verso, seria
permitir a coincidência exata entre som e sentido. Então, o poema (na figura do
poeta que o escreve) em busca de solução, suspende o próprio fim numa
tentativa de não se arruinar no fosso abissal do sentido. Tendo estas reflexões
em mente, o filósofo, a partir das palavras de Dante – no De Vulgari Eloquentia,
afirma que: “belíssimas são as terminações dos últimos versos, se caem, com
as rimas, no silêncio” – e questiona o que seria esse “silêncio”. Seria a poesia
transitando definitivamente para a prosa? As bodas místicas entre o som e o
sentido? Ou, ao contrário, seria a separação definitiva de ambos? Assim não
deixaria detrás de si um espaço vazio12. Conclui, entretanto, que no fim do
poema o vazio não está atrás, mas sim adiante. Para ele, o fim do poema não
constitui como o enjambement um salto sobre, mas sim um lançar-se no
abismo, um mergulho, uma queda sem fim para lá onde a linguagem habita,
onde tudo se constitui pura abertura; infinitos possíveis.
Em O cinema de Guy Debord, o pensador articula questões relativas ao
modo como o homem, em relação aos demais animais irracionais, relaciona-se
com a imagem, defendendo-o como única espécie que por elas se interessa:
“Uma definição do homem, do nosso ponto de vista específico, poderia ser que
o homem é o animal que vai ao cinema”.13
Refletindo sobre o que é inerente à linguagem cinematográfica,
Agamben, define-a como um não arquétipo, como a imagem-movimento,
carregada de tensão dinâmica, experiência histórica – não a cronológica, mas a
“messiânica”, da “Salvação, uma história última, escatológica, em que coisa
alguma deve ser consumada. Cada momento, cada imagem está carregada de
história, porque ela é a pequena porta pela qual o Messias entra”.14 Esta
situação messiânica que avista no cinema de Guy Debord – também
partilhada, segundo ele, por Godard – é calcada num mesmo paradigma: a
12
AGAMBEN: 2002, p. 146) “O fim do poema”. Tradução de Sérgio Alcides. Revista Cacto nº 1, agosto
2002. p. 142-149. 13
O cinema de Guy Dedord; imagem e memória. Disponível em:http://www.intermidias.blogspot.com/2007/07/0-cinema-de-guy-debord-de-giorgio.html. § 3. 14
Ibid. §4.
25
montagem. Para o filósofo, nela reside o caráter mais próprio do cinema, sua
condição de possibilidade – a repetição e a paragem.
Para pensar a repetição, Agamben solicita a companhia dos que a
pensaram anteriormente: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze.
Ao se aproximar do conceito de memória, afirma que: repetir uma coisa é
torná-la de novo possível15. Nesse sentido, a memória é entendida como
aquela capaz de modalizar o real, capaz de transformar o real em possível e o
possível em real e, com isso, define ser isto o que o cinema faz todo o tempo.
Para ele, através da repetição, Debord abre uma zona de indecidibilidade entre
o real e o possível.
Ao falar da segunda condição de possibilidade do cinema – a paragem –
, diz ser ela o fator que o aproxima da poesia e o distancia da prosa. É neste
ponto, ao estabelecer paralelo entre o enjambement e a paragem, que o
pensamento de Agamben desperta em nós maior atenção, avizinhando-se de
nosso particular interesse. Para ele, se o enjambement é uma das condições
de possibilidade de trazer para o poema uma disjunção entre som e sentido, a
paragem, tal como Debord a pratica, traria para o cinema a hesitação
prolongada entre a imagem e o sentido.
Para o filósofo, repetição e paragem juntas realizam a tarefa messiânica
do cinema, não no que se refere aos atos de criação, mas de des-criação. E
busca em Deleuze eco para seu pensar: “(...) cada ato de criação é sempre um
ato de resistência”. Mas o que significa resistir? É antes de mais nada ter a
força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte que o fato que aí
está”.16
De um modo geral, ao habitar a escrita de Giorgio Agamben, temos a
incessante busca por uma aproximação entre a poesia e a filosofia, bem como
da consolidação de uma nova Estância crítica, mais próxima à fala do poeta,
sendo este um ponto convergente em seus inúmeros escritos. Dentre outras
questões que habitam O cinema de Guy Debord, o que particularmente suscita-
15
(AGAMBEN, 2007, p.3) 16
Ibid. §12.
26
nos interesse consiste no sinalizar da possibilidade de pensarmos, a partir dos
institutos poéticos, os mais diversificados segmentos da cultura humana.
2.1. A Negatividade - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A arte contemporânea em Duchamp por Agamben e as relações com Bispo do Rosário
As obras de arte são sempre o produto de um risco corrido, de uma experiência levada ao extremo, até o ponto em que o homem não
pode mais continuar. Rilke
O pensar de Nietzsche acerca de Kant, colocação que se revela nuclear
ao nosso intento, habita as primeiras linhas do capítulo um, de O Homem sem
Conteúdo. Agamben, ao transcrever as palavras do pensador da Vontade de
Potência, sinaliza-nos o caminho a percorrer: Kant, como todos os filósofos, em
vez de encarar o problema estético a partir da experiência do artista (do
criador), refletiu sobre a arte e o belo apenas do ponto de vista do “espectador”
(Apud AGAMBEN, 1996).
De acordo com ele, Nietzsche aponta que outro equívoco de Kant seria
o de ter classificado o Belo, o que para ele consistia no próprio da arte, como
algo desinteressado. Nietzsche em seu escrito viria propor uma espécie de
purificação no sentido de Belo. O que, segundo Agamben, realiza-se da
seguinte forma:
Essa purificação se realiza por uma inversão da perspectiva tradicional sobre a obra de arte: a dimensão da esteticidade – a apreensão sensível do objeto belo pelo espectador – cede lugar à experiência criadora do artista que vê em sua própria obra uma promessa de
27
felicidade. Na “hora da mais curta sombra”, chegada ao limite extremo de seu destino, a arte sai do horizonte neutro da esteticidade para se reconhecer na “esfera de ouro” da vontade de potência. Pigmaleão, o escultor que se apaixona por sua própria criação até desejar que ela não pertença mais à arte, mas à vida, é o símbolo dessa rotação da ideia de beleza desinteressada, como denominador da arte, à de felicidade, ou seja, à ideia de um crescimento e de um desenvolvimento ilimitado dos valores vitais, enquanto que o ponto focal da reflexão sobre a arte se desloca do espectador desinteressado ao artista interessado (AGAMBEN, 1996, cap. 1 § 2).
Desde Kant, como denuncia Nietzsche em citação de Agamben, o
desinteresse e o gozo estético coordenam as artes, ficando vedada a nós a
possibilidade de compreensão da ameaça que a arte representou entre os
gregos e o que temia Platão ao expulsar o poeta da pólis. Entre os povos da
Grécia Antiga grande teria sido o poder da arte sobre a alma. Hoje, contudo,
caberia a nós apenas manifestar reações de espectadores benévolos, em tudo
diferindo dos gregos – para os quais os efeitos da imaginação inspirada
resultava em “terror divino”. Segundo Agamben, esse “terror divino”, a partir de
certo momento, entretanto, voltaria frequentemente a ser entrevisto nos
escritos de artistas e nos registros das experiências com a arte. Com relação a
este dado, o italiano nos diz:
A arte – para quem a cria – se torna uma experiência cada vez mais inquietante, frente à qual falar de interesse é pelo menos um eufemismo, porque o que está em jogo não parece ser, de modo algum, a produção de uma obra bela, mas a vida ou a morte do autor, ou, pelo menos, sua salvação espiritual (Ibid, § 7).
Em posição duelar, encontra-se a crescente inocência do expectador frente ao
objeto belo e a perigosa experiência do artista, para quem esta experiência
com a arte e sua promessa de felicidade, torna-se o veneno que condena à
morte a própria experiência. Na concepção de Baudelaire, segundo Agamben,
este duelo revela-se mortal, e assim o artista grita de terror antes de ser
vencido.
28
Ao final do capítulo, Agamben faz menção ao “embarque da arte moderna para
Cítera”, e ao fato de isto não haver conduzido o artista à felicidade, mas sim a
se medir ao Mais Inquietante, ao terror divino, o mesmo que levou Platão a
banir os poetas de sua cidade. Entre os modos de entendimento deste trecho
está o que o considera uma alusão aos movimentos de Não-arte liderados por
Marcel Duchamp, onde o artista assumindo a posição de pensador, do crítico,
decide banir de sua “polis” o próprio objeto de arte, já então a seu ver
contaminado, corrompido pelo poder do sistema. E assim é decretada, pós-
Hegel, a segunda morte da arte. A arte se purificaria do espectador para se
reencontrar, em sua integridade, frente a uma ameaça absoluta.
Para Agamben – segundo Suely Cavendish17 – a arte não morre, como um
zumbi sobrevive eternamente a si mesma – em destino definido por escolha
própria, tornando-se um nada após seu autoaniquilamento. A subjetividade
artística moderna, contemporânea, sem conteúdo afirma a todo tempo a si
mesma, firmando-se puramente em sua força de negação. Assim, a essência
da arte se confunde com a essência do niilismo, com o ser se destinando ao
homem na forma do Nada, em circularidade, reflexividade, num dobrar-se
infinitamente sobre si mesma. É importante frisar aqui que o pensador italiano
não busca desvelar a essência alienada da obra de arte, mas sim, refletir de
modo pertinente o destino da Arte em nosso tempo, no desejo vê-la assumir
um posicionamento verdadeiro e crítico, o que proporcionaria um salvar-se do
afogamento no “pântano da estética e da técnica”, restaurando o status poético
humano à sua dimensão originária. Para Cavendish, nesse pensamento –
reunificação humanista e retorno à origem – configura-se a utopia em Giorgio
Agamben.
No pensamento de Agamben, ready-made é o fenômeno através do qual
a arte sinaliza de modo crítico para as muitas cisões que o artista e a própria
17
Toda nossa tentativa de entender o pensamento de Agamben em O Homen sem Conteúdo, realizada a partir deste parágrafo, seguirá os passos do estudo de Suely Cavendish: Poíesis, Negatividade e a Condição Moderna da Arte em Giorgio Agamben. Disponível em: http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/a41.htm.
29
arte de nosso tempo vivenciam. Cisões instauradas a partir da trincadura entre
trabalho manual e intelectual, manifestada em todas as direções no universo
artístico. A mesma trincadura manifesta a subjetividade do artista que se aparta
de seu fazer, de sua comunidade, perdendo a identificação imediata com seu
material. Por fosso a dividir a criação humana – o juízo estético, o mesmo a
promover a rachadura e se instalar no aberto, condenando a margens distintas
a obra de arte e o produto da técnica, a visão do artista e a do espectador que
avalia, o fazer intelectual do artista e a habilidade manual, a artesania. O ready-
made surgiria então como o apelo mais contundente, como um apontar para o
fechamento desta fenda, visto que neles a própria arte produz a supressão do
status, do glamour do “trabalho artístico” frente ao manual ou ao produto da
técnica. Agamben afirma ser a arte moderna (contemporânea?), arte sem
conteúdo, onde o artista experimenta na obra a subjetividade artística como
essência absoluta, onde todo o conteúdo torna-se indiferente. Para ele, o
grande problema reside no fato de que o puro princípio criativo formal separado
de qualquer conteúdo, torna-se insubstânciável, abstrato, aniquilando todo e
qualquer esforço do conteúdo atualizar-se, transcender-se. Assim, resta ao
artista apenas a angústia da situação sem saída – se busca sua certeza num
conteúdo ou fé particular, mente, pois sabe que só a pura subjetividade
artística pode ser a essência de tudo. Por outro lado, se a busca se norteia na
pura subjetividade artística, sua realidade, estabelece um paradoxo – ter que
encontrar sua essência naquilo que não tem essência, buscando conteúdo no
que é mera forma. Logo, percebendo-se participante de um jogo
alucinadamente perigoso, ele, o artista, utiliza como matéria prima apenas
signos, sendo a forma tudo com o que pode contar para deixar o mundo das
formas. E assim enclausura-se no círculo vicioso que criou para si.
Suely Cavendish, seguindo fio de Ariadne – rastro das argumentações
do pensador italiano que se embrenha no labirinto –, diz que a arte jaz em sua
incapacidade de atingir a dimensão concreta da obra, habitando e se deixando
habitar pelo nada, sendo a crise em nosso tempo uma crise da poesia, em seu
entendimento pleno na expressão poíesis. O que de fato estaria em crise em
nosso tempo seria a essência alienada da poíesis, ou seja, da produção
30
humana, do trabalho humano. Nesse ponto, a autora diz que o pensamento de
Agamben se avizinha ao de Marx.
Para discutir a questão acerca de o ser humano possuir um status
poiético, produtivo, o pensador convoca seus pares, os Antigos, trazendo do
Symposium de Platão a definição de poíesis: “Toda causa que traz à existência
aquilo que ali não havia antes [...]”. Toda vez que algo que não existia é trazido
à presença, há poíesis. Assim, tanto é poíesis a obra do artista quanto a do
artesão, sendo a própria natureza, em sua constância em “trazer a presença”,
também poíesis. De Aristóteles, vai buscar no segundo livro em que este trata
da física, a Tékhne, nome ali atribuído a tudo aquilo que não contém em si
mesmo seu próprio princípio e origem, encontrando sua entrada a partir da
atividade produtiva humana; assim se referindo tanto à atividade do artesão
que molda o vaso, quanto a atividade do artista que esculpi a estátua. Assim
chegamos ao ponto em que percebemos que, tanto na definição de Platão
quanto na de Aristóteles, haveria uma unicidade da atividade produtiva
humana, que como esclarece Cavendish, Agamben busca destacar.
Com o advento da 1ª revolução industrial, bem como o desenvolvimento
de novas tecnologias, a unicidade acima descrita se parte, surgindo um duplo
modo das coisas produzidas pelo homem virem à presença. Neste momento,
surgem duas possibilidades de produção – os que seguem o estatuto da
estética: as obras de arte e os produtos da técnica. Desde o seu princípio a
estética passa então a definir como caráter particular da obra de arte a
originalidade. A autora nos diz que por originalidade Agamben compreende não
apenas o que é único, diferente de tudo o mais, mas a proximidade com
relação à origem (Ibid., §10).
Valendo-se dessa condição de permanente proximidade com a origem,
com sua Arkhé Formal, o pensador defende que a originalidade na obra de arte
tem relação de tal proximidade com a poíesis, que exclui a possibilidade de que
sua entrada em presença possa ser reproduzida, como se a forma se
autoproduzisse em presença apenas no ato da criação estética. Gostaríamos
de estabelecer nesse ponto, uma suspensão na linear leitura que até aqui
31
realizamos no texto de Cavendish, pois uma questão acerca deste
posicionamento de Agamben, que aos poucos se insinuava, toma corpo. Com
base nas reflexões sobre originalidade, questiono como o italiano pensaria a
gravura – a litografia, a xilogravura, as gravuras em metal etc. – bem como os
múltiplos; ou ainda o cinema peloo qual demonstrou tamanho apreço em seu
escrito sobre Guy Debord? Se não é possível reproduzir a entrada em
presença, seria a gravura ou o cinema em sua inerente reprodutibilidade
apenas produto da técnica? Talvez com relação aos múltiplos objetos do
contemporâneo seja mais simples o esquivar da questão, contudo, permanece
de modo incômodo o eco do conceito, quando nos propomos a pensar as
gravuras ao longo da história da arte. As magníficas águas-fortes de Rembrant
a exemplo – Da P.A a uma hipotética tiragem 25/2518, rigorosamente iguais e
autênticas, não havendo diferença entra original e cópia. Seriam entradas em
presença apenas as matrizes, e não o que através delas vêm à presença? E
caso as consideremos não originais, perderia então toda a tiragem o “status” de
obra de arte?
Deixemos de lado por hora tal questão. Retomemos o pensamento de
Agamben através do fio mediador de Suely Cavendish. Segundo ele, não há a
mesma relação de proximidade com a imagem (eidos) nos produtos da técnica,
onde a reprodutibilidade é compreendida como relação de não proximidade
com a origem, ficando a originalidade como caráter essencial da obra de arte.
A dualidade da poiética humana agora nos parece tão comum e natural
que, segundo o italiano, esquecemo-nos que apenas recentemente a obra de
arte adentrou a dimensão estética. Desde o alargamento da fissura entre arte e
técnica, houve o gradativo desaparecimento das oficinas e das escolas de arte
e demais estruturas de composição artística. Diluíram-se os espaços onde
personalidades se integravam.
18
Forma de numeração usualmente utilizada nas gravuras para definir sua posição de impressão. P.A – indicação da primeira cópia, a Prova de Artista, que não entra na contagem posterior da tiragem.
32
O artista no qual o demônio crítico moderno se insinuou deve livrar-se dessa comunidade ou perecer. Outro aspecto que diferencia a arte nos tempos modernos é que ela agora constrói seu próprio mundo, consignado à dimensão estética atemporal dos museus.19
Esse amor dos tempos modernos, da arte pela arte mesma, nas
palavras do italiano quase não é encontrado na Idade Média. Lá a
subjetividade do artista confundia-se com os seus materiais, diante da obra de
arte acabada era impossível falar de participação estética. O homem medieval
[e não apenas ele, mas outros posteriores – Miguel Ângelo Buonarroti a
exemplo] ao produzir sua arte, estava construindo, delimitando e percorrendo
os limites de seu mundo, relacionando-se intimamente com ele em completa
inteiração. Após a fissura entre arte e técnica, houve uma mudança de foco
para o puro princípio criativo da arte como finalidade de si mesma. Funda-se
então a busca incessante de cada um dos lados (seja o do julgamento estético
– por críticos, espectadores e artistas; ou o da subjetividade artística sem
conteúdo – por artistas) pela dissolução da concretude da obra em um
infindável paradoxo.
A unidade original da obra de arte rompeu-se, deixando, de um lado o julgamento estético, e de outro a subjetividade artística sem conteúdo, o puro princípio criativo (Ibid.).
Para Giorgio Agamben, Duchamp com seus ready-mades – segundo a
leitura que até aqui nos conduz – é tão somente a execução em arte de um ato
gratuito que faz um objeto comprado numa loja de departamentos – produto da
técnica – entrar na esfera da arte. Um jogo criativo que expõe a fratura na
unicidade original ao expor o duplo status da atividade criativa humana, visto
introduzir um objeto reprodutível na esfera de objetos de autenticidade e
singularidade. Entretanto, ressalta que tal gesto não procede e, ao exemplificar,
diz que a improcedência ficou evidente quando Duchamp quis fazer do ready-
19
CAVENDISH, Suely. Poíesis, Negatividade e a Condição Moderna da Arte em Giorgio Agamben. §12.
33
made uma via de mão dupla, por tentar transformar um Rembrandt numa tábua
de engomar. O pensador afirma que a passagem de um status a outro é
impossível: O que é reprodutível não pode se tornar original, e o que é
irreprodutível não pode ser reproduzido (Ibid §13). Para ele, os ready-mades
habitam uma espécie de limbo.
A nosso ver, a via dos ready-mades é de mão única, pois acreditamos
ser possível usar a ironia artística como matéria prima que agregue à técnica
atributos de originalidade, contudo, cremos como Agamben, ser impossível
destituir uma obra de arte de sua originalidade, de sua condição poética.
Acerca da poética de Duchamp, consideramos importante inserir neste ponto
outro parecer:
No trabalho de Marcel Duchamp, há um alvo preciso: o sistema de arte. Para ele, atacar o sistema da arte significava investir contra todo o aparelho cultural-ideológico. Não se trata de atacar cegamente um moinho, mas de nele penetrar e, compreendendo seu funcionamento, inverter seu mecanismo, voltando-o contra si mesmo. Neste sentido, a arte vai adquirir um outro percurso, pois pretende agir dentro das forças da sociedade, desarticulando o sistema cultural dominante (ZILIO, 1997, p. 32).
Segundo Cavendish, para Agamben nos ready-mades nada assume
presença, nada que não havia antes é trazido à existência, que não seja a
privação de uma potencialidade que não encontra sua realidade em parte
alguma. Agamben coloca como contraponto a Duchamp (o homem sem
conteúdo) e sua obra os artistas medievais com conteúdo. Achamos pertinente
trazer para o diálogo um artista também anterior à fratura da presença discutida
pelo italiano, não da Idade Média, mas grande mestre da transição entre
renascimento e maneirismo, também italiano, anteriormente mencionado por
nós – Michelangelo Buonarroti e sua primorosa obra: as pinturas do teto da
Capela Sistina. Para ele, o trabalho artístico era o meio pelo qual o homem
podia alcançar a consciência individual e a compreensão do mundo, o que
converteu para si em uma espécie de religião universal. Em esforço hercúleo, o
34
até então escultor [o que explicita de modo indiscutível sua genialidade], realiza
em apenas quatro anos de trabalho solitário grandiosa obra. Por motivos muito
próprios, relativos à intensa luta entre razão e fé, bem como demais conflitos
de artista (plenamente aceitáveis em um homem do renascimento), dispensou
ajudantes. Deitado de costas sobre andaimes altíssimos realizou a mais bela e
árdua obra pictórica da história da arte, onde não apenas narrou o mito cristão,
mas criou mundo de dimensões sobre-humanas esculpido a pincéis. Se como
diz Agamben, uma obra como o mictório R. Mutt é em si apenas potentia,
existindo apenas no modo da disponibilidade, de ser útil para alguma coisa, a
pintura de Miguel Ângelo Buonarroti abarca, em contrapartida, o conceito de
energéia – o que entra e permanece em presença efetiva pela poíesis,
reunindo finalidade e forma – plena, inteira, possuindo a si mesma como seu
próprio fim, como princípio criativo sempre ativo, que se refaz, atualiza-se,
atributo esse que a sustém através dos tempo, mantendo-a contemporânea.
Agamben diz em O homem sem conteúdo, que devido à instituição
Museu, onde quer a obra de arte seja produzida e exibida, seu aspecto
energéico (o ser-para-o-trabalho) ou princípio criativo ativo é apagado, para dar
lugar a sua função de estimulante para o sentimento estético, tornando-se
mero suporte desta fruição. Essa disponibilidade para a fruição obscurece o
caratér energéico de sua duração final em sua própria forma20. [O que de modo
algum se dá na obra pictórica de Michelangelo, por não estar no museu, bem
como justifica o tamanho impacto provocado pelas obras de Bispo nos que a
viram antes que estas para lá fossem]. Na condição de dynamus
(disponibilidade para o que quer que seja) assumida pela obra de arte
deslocada para o museu, a divisão do status unitário migra da esfera da
energéia para aquela da dinâmica, como o produto da técnica – posto em
trabalho para a mera potencialidade. Finalizando as questões de O homem
sem conteúdo, pensadas por Suely Cavendish, chegamos ao ponto em que
Agamben fecha o ciclo acerca dos ready-mades, dizendo que a condição de
esquiva no que se refere à fruição estética similar àquelas do consumo do
20
CAVENDISH, Poíesis, Negatividade e a Condição Moderna da Arte em Giorgio Agamben. §16.
35
produto técnico, atualizam (ao menos por breve instante) a suspensão desses
dois estados, evidenciando a laceração de modo mais efetivo que a obra
aberta, apresenta-se assim como verdadeira disponibilidade para o nada.
Assim teríamos nos ready-mades (bem como na pop art) o próprio atingir
presença da privação. Após todas as colocações feitas, Cavendish finaliza com
a seguinte questão do pensador: “Como é possível alcançar uma nova poética
de maneira original?”.
2. 2. O duplo: Sagrado e profano
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Nenhuma intimidade que não seja com
o estranhamento. Sereno abrigo da própria impotência.
Alberto Pucheu
Segundo Giorgio Agamben21, Consagrar, ou seja, tornar algo sagrado,
era entre os juristas romanos termo que designava a saída das coisas da
esfera do direito humano. Ao buscar a etimologia do termo religio, ao contrário
do que se possa previamente pensar, o italiano descobre que não deriva de
religare (o que une o humano e o divino), mas, de relegere que nos diz
justamente do contrário – o que se deve observar para respeitar a separação
entre o sagrado e o profano. Assim religio seria menos o que une homens e
deuses, e mais o que cuida para que se mantenham distintos. Portanto a
religião, segundo ele, não se opõem à incredulidade e à indiferença em relação
ao divino, mas à “negligência” com relação a ele, uma atitude livre e distraída.
Ao embrenhar-se por veredas políticas, Agamben diz que, para Walter
Benjamin, o capitalismo não representa apenas a secularização do
protestantismo, mas constitui, ele próprio, um ato religioso, a saber, uma
religião que se desenvolveu de modo parasitário a partir do cristianismo.
21
(AGAMBEN, 2007, p.65).
36
Denuncia que o capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no
cristianismo, generaliza e absolutiza em todo âmbito a estrutura da separação
que define a religião.
Onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la por si mesma e é totalmente indiferente à cisão sagrado/profano, divino/humano [...]. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo que é feito, produzido e vivido [...] acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada [...] na qual todo uso se torna duravelmente impossível. Esta é a esfera do consumo (AGAMBEN, 2007, p. 66).
Por esta via de pensamento, deslocar algo para uma esfera separada,
fora do uso, é um ato de (con)sagração. Se entendermos por sagrado aquilo
que foi retirado do uso dos homens, profano é o que de sagrado ou religioso
que era, foi devolvido ao uso e à propriedade dos homens. Para ele, a escritura
é uma proposta profana, por mover-se conscientemente entre o dizível e o
indizível. A obra plástica a seu modo é também uma forma de escrita, nesse
sentido, a fim de pensar a obra de Bispo pelo viés conceitual, poderíamos dizer
que através de suas caixas de acumulação, onde repousam moedas e fichas
de ônibus que tiveram o fluxo interrompido, o artista registra em caligrafia
espacial, a profanação do que é mais que sagrado em uma sociedade
capitalista: o dinheiro.
Mas Bispo também “profana” (se pensarmos profanar no sentido
proposto pelo italiano) objetos corriqueiros, cotidianos, interrompendo-lhes a
circulação, arrancando-lhes a condição do que é para o descarte: sejam
talheres, sapatos ou botões. Mostrando, com isso, que nesses “objetos”
também há a potência do não ser. “Profanar é assumir a vida como jogo, jogo
que nos tira da esfera do sagrado, sendo uma espécie de inversão do mesmo”
(Ibid.. p.13).
37
Bispo joga ao buscar inventariar o universo ao seu redor. É imbuído de
um propósito sagrado, contudo, um sagrado diferente daquele promovido por
mecanismos capitalistas. O sagrado em Bispo é o próprio poético, o deixar-se
tomar pela loucura, pela linguagem. É experiência, no sentido de ex-peras,
excede, vai além dos limites do possível é delírio inspirado, fuga da norma, não
se relaciona com o sagrado “exterior” mapeado por Agamben (dominação). Do
mesmo modo que, como nos diz Manuel Antônio de Castro, há dois
Ocidentes22, há diferenças fundamentais entre o Sagrado que move Bispo e o
sagrado pensado por Agamben. Bispo funda profanação reversa, que
(des)sacraliza para (res)Sacralizar.
Ainda segundo Agamben, a profanação sempre implica em
neutralização daquilo que se profana. “Depois de ter sido profanado, o que
estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso”
(Ibid., p. 68). É neste ponto que o jogo de fato se instaura. O artista elege,
objetos não auráticos, isto é, que nasceram para o consumo; retira-os de
circulação, destituindo-os de sua serventia imediata; profana-os, para a seguir
obrá-los, inserindo-os em seu inventário. Assim (re)sacraliza-os em obra. Sua
ação última é um ato sacralizador e simultaneamente profanatório, visto que
despe os objetos da costumeira (des)utilidade que lhes era conferida em
mundo de consumo e descarte. “Profanar significa abrir a possibilidade de uma
forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um
uso particular” (Ibid., p. 66).
22 O autor no ensaio Os dois Ocidentes: Poética. Disponível em http//:www.travessia
poética.blogspot.com, nos diz: “O primeiro Ocidente é o que todos conhecem num itinerário estruturado em torno de uma construção metafísica pela qual todo saber se centraliza no ente enquanto ente, ou seja, na determinação do real enquanto um conhecimento inicialmente filosófico, depois teológico e finalmente científico. Em si, os três tem a mesma matriz: a decisão do conhecer baseado na proposição, na causalidade, no fundamento a partir de uma verdade lógica e conceitual. [...] O segundo ocidente. [...] Há um outro ocidente. O dos mitos, o das grandes obras de arte, o dos místicos e o dos pensadores. Este ocidente sempre existiu, mas foi silenciado pelo outro. E se hoje o outro se globalizou, também é verdade que este se Ocidente silenciado também se globalizou. Mas é uma outra globalização: o da escuta do sentido do ser enquanto poíesis e pensamento [...].
38
Os objetos de Arthur Bispo do Rosário são ambíguos, são da ordem do
jogo, remontam à infância, à liberdade perdida; põem a todo o momento em
evidência a potência das coisas. Sua obra constitui sim, há que se reconhecer,
resistência ao sistema, minando-o de dentro de um de seus dispositivos;
contudo, seu resistir é poético, sem o alarde de discursos, conceitos ou
políticas. Não há nele “engajamento”, vontade de luta. Há necessidade.
De todo modo, como nada passa impunemente de uma de uma esfera a
outra no mundo funcional regido pelos atributos do universo capitalista, suas
obras – se a pensarmos pelo ponto de vista conceitual, seguindo o pensar de
Agamben –, como tudo que é submetido ao jogo de transitar do sagrado ao
profano e do profano ao sagrado, leva consigo uma espécie de carga. Há que
se prestar contas de “algo parecido com um resíduo de profanidade em toda
coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente em todo objeto
profanado” (Ibid.). Com isso, as obras de Bispo, criadas no delírio sagrado,
para “uso” definido – levadas a Deus no dia da Apresentação – hoje habitam o
museu.
Assim, percebemos com clareza, como o “uso” é sempre, ainda segundo
palavras de Agamben, uma relação com o inapropriável, referindo-se às coisas
enquanto não podem tornar-se objetos de posse. O uso evidência a verdadeira
natureza da propriedade. A propriedade configura tão somente um “dispositivo”
que desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada, onde é
convertido em direito. “A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no
Museu” (Ibid., pp. 72-3). Agamben diz, em O homem sem conteúdo, que devido
à instituição Museu, onde quer que a obra de arte seja produzida e exibida, seu
aspecto energéico (o ser-para-o-trabalho) ou princípio criativo ativo, é apagado,
para dar lugar a sua função de estimulante para o sentimento estético,
tornando-se mero suporte desta fruição.
Vejamos então a ironia que cerca Bispo, inerente aos mecanismos de
exclusão e dominação: O mesmo homem diagnosticado portador de doença
mental (institucionalização da loucura) por trazer à presença coisas a título de
inventariar o universo, posteriormente à sua morte, tem estas mesmas coisas
39
legitimadas em obras pela estética vigente, bem como a condição de doente
mental revogada, para que possa ser engolfado pela instituição museu. Assim,
as obras do artista não-artista seguem para o consumo. De “doente mental”
passa a artista contemporâneo, par de Marcel Duchamp. A proximidade entre
ambos se dá, pois além de terem tido o mesmo destino infeliz para suas obras
que – independentemente da própria vontade – foram encaminhadas ao
museu; comungam a utilização, ainda que diferenciada, daquilo (como material
para as obras) que pela mão do homem vem à presença pelo domínio da
técnica.
Para Giorgio Agamben, Duchamp com seus ready-mades é tão somente
a execução em arte de um ato gratuito que faz um objeto comprado numa loja
de departamentos – produto da técnica – entrar na esfera da arte. Um jogo
criativo, que expõe a fratura na unicidade original expondo o duplo status da
atividade criativa humana – a fratura da presença, quando Tekhné e Poíesis
tornaram-se distintas com o advento da indústria. O ready-made seria tão
somente a introdução de um objeto reprodutível na esfera de objetos de
autenticidade e singularidade.
Bispo utiliza para compor suas assemblagens, utensílios cotidianos,
todos destinados a um uso, uma serventia. Serventia esta que o fez elegê-los,
visto que seu trabalho é inventariar a produção do homem sobre a terra, seu
mundificar. Contudo, Bispo não os desloca para evidenciar essa ou aquela
fissura no fazer humano. É fato que com sua ação uma fissura interna inerente
a eles se evidencia – não desconsideramos a fala de Agamben, ao tratar da
sociedade consumista e o contínuo ato de destituir do uso os produtos da
técnica, condenando-os ao consumo e descarte.
40
3. O Risco: Entre o duplo e a dobra - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
O louco é como o beija-flor, vive a dois metros do chão.
Bispo do Rosário
3. 1. A primeira dobra no duplo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - O Início Doença Mental e Loucura No dia 22 de dezembro de 1938 eu vim!
Faz-se escuridão. Cessam luzes num Fiat Lux às avessas. No abismo
de sentidos findam o que supostamente seria clareza e simplicidade. Casa dos
Leone – Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Excessivo clarão: 7 anjos em
nuvens especiais.
O início – vidência, delírio? De caseiro a escolhido: fim do sergipano de
Japaratuba, não mais lembranças, tudo é memória a mover-se no forte
esquecimento. Do corriqueiro humano à perda do vínculo, agora vê o escuro,
distingui sombras, nelas o vulto do labor messiânico. Desse escuro que se
segue ao apagar das luzes de então, emerge Bispo do Rosário artista – aquele
que nos deixaria por legado mais de oitocentas e cinquuenta obras, desafiantes
ostensivas por força e verdade da escrita da arte. É convocado a inventariar o
mundo, catalogar toda produção do homem sobre a terra para apresentá-la ao
Criador; do delírio surge concretamente uma das mais notáveis produções
artísticas contemporâneas.
Louco, gênio, vanguardista, esquizofrênico?
Mesmo entre os que não consideram a biografia do artista como algo
fundamental em sua poética, nenhum texto crítico desconsidera seu primeiro
surto. Esta data inaugura o artista. A partir dela o tempo para ele toma outra
41
dimensão, não é mais aquele que os relógios governam. Uma força estranha
aos seus conhecimentos o toca, colocando-o diante da grandiosidade do
Tempo. Ele, o tempo, mostra-se em sua face mais grandiosa: Tecido de
nossas vidas.
Este o tecido poético com que o artista dá corpo à suas obras
transubstancia os monturos em sua travessia. Ao perceber o sentido maior do
tempo, não mais se entrega às medições abstratas, há agora a concretude do
fio – que destece e tece ao inverso de Penélope. Seu fio – não apenas o azul
destecido do uniforme de interno, mas a própria arte – é como o de Ariadne a
guiar Teseu no labirinto. Através do fio-ampulheta o artista segue, cambiando
razão por invejável lucidez. Penso que supervalorizamos a consciência,
deveríamos lembrar mais vezes que ela é pobre, apenas apara choques e
reage a estímulos, como num jogo de squash23. A riqueza habita o
inconsciente. De lá, chegam-nos os cantos de mnemosýne. A Memória nos é,
no consciente, evanescente, muitas vezes nos foge à lembrança. Em nossa
overdose de racionalidade, confundimos memória com reminiscências.
O ser artista em Bispo provém do estar à margem do óbvio, das regras
estabelecidas pela razão, pela ciência, que busca aprisionar tudo em conceitos
para não perder o suposto leme da vida. Estar à margem é admitir que não
controlamos tal leme, é avistar, mesmo em meio à nevoeiros de confusão, a
terceira margem do rio. O próprio da loucura implica reconhecer a fraqueza das
sínteses racionais e se embrenhar por vezes no prolixo dos sonhos. É o rejeitar
a segurança do modelo (que se tem para cada coisa, cada fazer, cada
pensamento), modelo castrador da capacidade criadora, que segue formatando
homens, em busca (isto sim o insano) de melhor compreendê-lo. Acredito na
loucura e seu vigor a mover o louco artista Bispo do Rosário. Digo louco, mas
esclareço que não me refiro à doença mental, à loucura institucionalizada, mas
sim ao delírio inspirado, aquele que aproxima o homem de algo maior que si
mesmo. Aos aflitos em negar sua loucura, afirmo com tranquilidade uma vez
mais o óbvio: a obra não nasceu deste ou daquele prontuário psiquiátrico.
23
Frase retirada da fala da psicanalista Maria Rita Kehl no programa Café Filosófico da TV Cultura.
42
Devemos olhar a condição de louco, aquela que a psiquiatria não olha, e que
me parece nem mesmo a crítica de arte o faz, com um olhar sem pré-
conceitos, livre de pré-noções, de modo que não a estigmatize nem a
subestime. Sabemos que as produções trazidas como questão no presente
trabalho excedem a condição de objetos, pois são obras. Como tais não podem
ser frutos de arte-terapia, não advêm de oficinas para pacientes mentais e não
configuram lenitivo para males da alma. São a força do real acontecendo, sem
que para isso seja necessária nossa permissão. Obviamente não devem ser
pensadas a partir de classificações restritivas, tampouco submetidas àqueles
que insistem em teorizar de modo estratificado, esquartejando Arte em
“categorias”, tipos e subtipos: arte de loucos, arte marginal, arte popular ou
qualquer uma das inúmeras nomenclaturas criadas e aplicadas pelos que se
dizem aptos a fazê-lo.
Ainda que discorde dos que dizem ser a arte de Bispo um fruto da
doença, devido a sua condição de paciente psiquiátrico, e que por conta da
condição de esquizofrênico depreciam suas obras, tampouco creio que
possamos olhar sua poética do mesmo modo que a de outros artistas. Van
Gogh a exemplo, aproximação tentadora e recorrente, visto que ambos
padeciam de esquizofrenia. O pintor holandês possuía plena consciência
artística, foi estudioso da pintura, vivendo a plenitude deste circuito ainda que
não reconhecido de imediato, estando presencialmente junto à vanguarda de
seu tempo; um entendedor das questões pictóricas e mercado de artes. Sua
poética não se funde com sua condição. Suas obras em nada se relacionam a
seus surtos patológicos. Não podemos esquecer: Vincent Van Gogh foi artista
e esquizofrênico, mas a esquizofrenia não constituiu o motor de sua arte, não
foi a deflagradora. Sofria de esquizofrenia, mas poderia ser outra patologia
qualquer, hipertensão, diabetes..., sem que isso interferisse diretamente em
seu modo de pensar pintura. Em Bispo é diferente. A loucura não pode ser
descartada ao pensarmos sua poética, sua arte não se dá por eruditos meios,
não é calcada em conceitos como alguns textos24 críticos buscam afirmar ao
24
Refiro-me mais particularmente ao excelente texto de Ricardo Aquino “Do pitoresco ao
Pontual: uma a Imagem-Biografia” [do qual discordo em alguns pontos]. In: Bispo do Rosário
43
defenderem sua condição de artista conceitual. A poética em Bispo se dá na
simplicidade complexa do delírio, inegável movimento do real que antecede
sua institucionalização como artista. Loucura, delírio, são partes do que lhe é
próprio, com isso, não podemos e não devemos mutilá-lo nesse aspecto. Ainda
que não seja a condição mental a fazer de Bispo um artista, tampouco será o
aparato conceitual que a todo custo querem agregar às suas obras. Uma crítica
que busque de fato pensar poeticamente deve reconhecer a importância de
olhar cuidadosamente o que fez aflorar suas possibilidades artísticas, seu devir
de artista.
Há sempre mistério e consequentemente temor a circundar a loucura.
Talvez, por nos retirar do confortável território da racionalidade onde se calca o
pensamento ocidental desde Descartes, onde tudo é supostamente passível de
medida. A doença mental pode até vir a ser mensurável, mas a loucura, esta é
imensurável. Pensar Bispo implica em rever certos pontos cruciais que são,
para alguns, suporte da crítica em nosso tempo. Obriga-nos a questionar se a
autonomia da obra não teria sido seguidamente confundida com autonomia do
artista. A obra de Bispo faz ruir também a ideia de erudição como pré-requisito
para a produção artística a ditar regras no contemporâneo. O mais contraditório
é que a condição de louco é um dado importante na constituição de um
indivíduo. Obviamente sabemos que em arte não é a biografia do artista que
deve ser pensada, mas há nesse caso, um ponto muito incômodo para a
crítica: o contemporâneo em artes se firma sobre subjetividades artísticas.
Fala-se constantemente nas escolas de artes sobre a importância do artista na
“defesa da obra”. O que vale é o pensamento conceitual. A ideia do “artista”.
Inegavelmente isto se dá subjetivamente, ou seja, segundo a visão de mundo
daquele indivíduo consciente de sua condição, que passa a ser visto por seus
pares como alguém apto a produzir “obras de arte” calcadas em conceitos
específicos, a serem consumidas por um pequeno grupo de iniciados. Para a
crítica vigente que se calca em subjetividades, a loucura em Bispo constitui
século XX. Rio de Janeiro: Museu Bispo do Rosário e prefeitura da cidade do Rio de Janeiro,
2006.
44
incômodo paradoxo e torna a afirmação de sua obra como conceitual – posição
para nós no mínimo contraditória. Parece-me que o esforço em descartar a
condição de louco, relaciona-se diretamente à necessidade de extirpar algo
que se coloca como entrave a um sistema de análise pré-estabelecido. A crítica
que envereda por este caminho acaba por se trair, perde-se em um amontoado
de contraditos. Basta um breve exercício no campo da suposição para mostrar
o equívoco que a negação da loucura no artista Bispo do Rosário representa
para um pensamento calcado na intencionalidade do artista (recorrente na
crítica e na produção da arte em nosso tempo).
Imaginemos um senhor, funcionário de abastada família, a bordar
toalhas de linho ou até mesmo um manto litúrgico, em um quartinho de fundos
em um casarão em Botafogo, com linha Cléa nº 5. Ainda que seus bordados
tivessem identidade visual com as obras em questão, seria ele inegavelmente
artista? Seria ele Bispo do Rosário? Poderia almejar fazer parte e seria aceito
pelo circuito das artes como um artista conceitual? A meu ver pensar em toda
sua plenitude a poética de Bispo implica percorrer caminhos delicados, quase
tabus, que se cruzam necessariamente, volto a afirmar, com a loucura, o
delírio. Uma vez mais fica também clara a importância da busca por um
caminho que faça a essencial distinção entre loucura e doença mental (que a
meu ver seria sua institucionalização). Essencial, desse modo, épensar a
Loucura como o que liberta dos ditames da razão, loucura inspirada, seja ela
imanente ou transcendente. Esteja ela de acordo com o pensamento de
George Bataille, no qual a loucura é vista como a experiência interior plena,
transposição dos limites do possível, mergulho no impossível; ou com o
pensamento de Heidegger, em que Transcendência é a pro-cura do sentido do
ser no apropriar-se do seu próprio.
Gosto de pensar a loucura como um modo de transcendência, onde
transcender pode ser visto como colocar-se em meio às coisas, estar-em-meio-
a, estar no entre-mundo, ser livre. Liberdade, nos escritos de Martin
Heidegger, é a capacidade de transcendência que o ser-aí (homem) tem de
fundar-se enquanto funda mundo. Pensar a arte de Bispo implica em admitir
45
que, em via de mão dupla, a esquizofrenia, doença mental que o segrega,
condenando-o à vida em colônia psiquiátrica, também é loucura, que o liberta
(dos grilhões da mesmice cotidiana e suas regras) para criar. Loucura que é
delírio criativo e está no diálogo Fedro de Platão. Delírio inspirado por Deuses,
como nos disse Sócrates, ao se referir a profetiza de Delfos e às sacerdotisas
de Dodona, que prestavam grandes serviços às pessoas e à Grécia quando
por ele possuídas. Loucura em Bispo é a fuga da norma, manifestação plena
da arte que através do homem diz o sagrado.
Dizer o sagrado lá onde ele se confronta com a razão é afirmar-se louco
em um mundo regido pela racionalidade. Segregação e reclusão são
implicações da incursão da loucura no âmbito da razão. A loucura culmina na
retirada do homem Bispo do que até então entendia por mundo, por tempo.
Contudo, inaugura o artista. O delírio concede espaço-temporalidade outra, a
da criação, onde pode de fato viver e mundificar. Posto fora da perspectiva do
mundo racional, em ponto de vista deslocado do usual, sua linha do horizonte
se expande. Pôde ver a si e ao tempo. Recluso das fortes luzes projetadas
pelos holofotes da razão, finalmente viu o claro, as trevas e o mundo, e então
se fez seu inventariante. O real, em pleno movimento de velamento e
desvelamento, mostrou-se a ele em nuances de clareza e escuridão. Bispo
aprendeu a ver o e no escuro, desse ver brotou a poética de suas obras.
Esta é apenas uma breve introdução sobre a loucura (a qual retornarei
posteriormente), pequena parte da apresentação do tecido poético sobre o qual
nos debruçaremos ao longo deste estudo. Passo agora à outra extremidade: o
pensamento crítico que busca inserir as obras de Bispo na História da Arte
como produções conceituais. Mais adiante farei a apresentação da outra
questão que me move: o Sagrado. Pois se a loucura constitui o início, creio ser
o princípio. Antes, contudo, considero importante refletir o pensamento dos que
defendem o teor “intelectual racional” do artista contemporâneo Bispo do
Rosário, ou seja, a proximidade entre suas obras e as de Duchamp, enfim, o
conceitual.
Sigo.
46
3. 2. A segunda dobra no duplo: Bispo – Artista contemporâneo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Os atributos do tempo
Como não bastassem todas as questões que povoam o território dos
passos de Bispo sobre a terra das artes – e que persistem desde o primeiro
instante em que avistamos suas obras, algo pelo qual nos movemos, sendo, ao
mesmo tempo, destino e mola propulsora de nosso pensar – outra,
absolutamente intrínseca as demais surge. Não fosse Bispo, como o
pensamento insiste em sugerir, um enjambement25 na História da Arte,
supondo-o agora, segundo crítica vigente, aberto a toda sorte de classificações
(e isto é fato) e a aderência dos múltiplos sentidos, que o faz não apenas
artista contemporâneo mas seu expoente brasileiro, não estaríamos diante de
nova perspectiva de pensamento que se instaura, e se faz urgente? Bispo do
Rosário artista contemporâneo – afirmação que nos conduz à urgência da
questão: o que de fato chamamos, com tal propriedade, contemporâneo? O
que de fato é o contemporâneo?
Muito se tem dito sobre o assunto, conceitos divergentes se acotovelam
em produções teóricas que o cercam. Pensá-lo é versar sobre algo inquietante
e complexo. Há os que digam que contemporâneo é aquilo que divide o mesmo
lugar no tempo, e apenas isto. Mas que tempo seria esse? O cronológico
regido por calendários e relógios? Estaria a arte submetida a um modus vivendi
temporal? Quando falamos de contemporâneo em arte, sempre nos vem a
ideia de modernidade, vanguarda. Mas ser contemporâneo é o mesmo que ser
moderno? Deve o modernismo ser entendido como um movimento em
particular ou como um modo de ver e ser no contemporâneo? O
contemporâneo é essencialmente moderno, tudo que é moderno instaura-se
25
Bispo do Rosário para mim se apresenta como o lugar da arte onde o sentido metafísico se choca com o não-sentido poético. Em livre associação poderíamos divagar sua condição como um Enjambement (um dos institutos poéticos pensados por Giorgio Agamben e que configura pausa entre som e sentido em verso do poema). Bispo: Enjambement na história da arte? Abismo. O inclassificável que estabelece uma pausa no pensamento estético, mantendo-o suspenso sobre o fosso, mostrando-nos a força, o vigor do Nada que é o véu do Ser.
47
como vanguarda ou trata-se de três distintos modos de ser e viver arte e
tempo?
Em ensaio intitulado O Agoral, o poeta e filósofo Antônio Cicero diz do
modernismo não como nome próprio de um movimento particular de
vanguarda, mas sim, designação comum a todos eles. Sendo, em suas
palavras, algo costumeiro tomarmos modernidade por contemporaneidade,
como se o movimento modernista (semana de 22) tivesse tornado o Brasil
contemporâneo da Europa. Cicero, estabelecendo estágio de tensão, busca
aclarar a oposição entre ambos. Em seu pensamento, ser contemporâneo é tão
apenas dividir o mesmo tempo cronológico. Duas pessoas seriam
contemporâneas na medida em que pudessem ser presentificáveis,
comparecíveis entre si, só se for alguma coisa ou alguém. Assim, segundo ele,
ao insistirmos no uso do termo contemporâneo simpliciter, desconectado de
algo específico, estaríamos incidindo em erro do emprego da palavra. A
contemporaneidade seria sempre relativa, uma vez que não se pode ser
contemporâneo de modo absoluto, já que isto nada quer dizer, tampouco se
pode desejar sê-lo (CICERO, 1995, p.172).
Quanto ao moderno, o poeta esclarece que a palavra é um adjetivo
vindo do advérbio latino modo, dizendo agora mesmo; sendo o moderno o que
toma por referência o agora – ou aquilo a que chama agoral. Esclarece ser o
contemporâneo algo contingente, relativo, não passando de uma entre
inúmeras possibilidades; já o agoral, algo definido, pois mesmo que – analogia
ao exemplo do autor – agora não fosse dia 6 de janeiro de 2010, ainda assim,
agora seria agora. Para Antônio Cícero o agora configura espetáculo
insubstancial, pois de certo modo o que nos é contemporâneo hoje, constitui a
negação de algo passado, algo que se dissolveu. Vê a negação como
propulsora de outras realidades, sendo a positividade uma negação da
negatividade. No centro do mundo, como parte essencial do agora, a
negatividade, como possibilidade de mudança, liberdade, imaginação.
Em texto intitulado O que é o Contemporâneo?, Giorgio Agamben expõe
seu pensar sobre o tema e sua posição diverge de Antônio Cicero.
48
Contrariando seus argumentos, utiliza a palavra de modo isolado. Logo nas
primeiras linhas, Agamben busca Nietzsche, (através de Barthes, em um
apontamento dos seus cursos no Collége de France) para quem o
contemporâneo seria o intempestivo, ou seja, aquilo que está fora do tempo, do
próprio tempo. Partindo das palavras do filósofo alemão, Agamben diz consistir
a contemporaneidade uma singular relação com o próprio tempo. Ao homem
verdadeiramente contemporâneo há a possibilidade de aderir ao tempo e
simultaneamente distanciar-se dele, em um perpétuo anacronismo entre aquele
e esse; ele não se adéqua às suas pretensões e é, por isso, nesse sentido,
inatual. No desvio ou anacronismo ao próprio tempo, a extrema aptidão em
percebê-lo em totalidade, em apreendê-lo. Segundo suas palavras, coincidir
plenamente com sua época impede vê-la, torna impossível olhá-la fixamente.
Em Agamben, temos que contemporâneo por excelência o poeta deve manter
fixos os olhos no seu tempo:
[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro. [...] o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpretá-lo, algo que, mais do que todas as luzes, se volta diretamente e singularmente para ele. Contemporâneo é aquele que recebe em plena face o feixe de treva que provém de seu tempo26.
Da neurofisiologia da visão as off-cells27, Agamben conceitua o modo de
pensar o escuro não como simples ausência da luz, mas algo próximo a não-
visão, resultante da atividade das off-cells, produto da nossa retina. Diz que
perceber o escuro da contemporaneidade é uma habilidade específica,
particular, não uma espécie de inércia. No contemporâneo, o hábil neutralizar
das luzes da própria época desvela sua treva, o seu escuro especial, sua
negatividade enquanto latente potência de luzes.
26
GIORGIO, Agamben. O que é o contemporâneo?, p. 3. 27
Segundo o filósofo, série de células periféricas da retina que em ausência de luz entram em atividade e produzem espécie particular de visão a que chamamos escuro.
49
Na densa treva, circunda estrelas avistadas no céu à noite, a promessa
da luminosidade destas que, em distantes galáxias do universo em expansão,
distanciam-se de nós em tão forte velocidade que supera a da própria luz que
emitem. Assim, aquilo que percebemos como escuro, na verdade seria tão
somente a luz destas estrelas que se distanciam, a viajar em nossa direção,
sem jamais poder nos alcançar. Na astrofísica, Agamben busca o modo,
científico e um tanto poético, de dizer o escuro contemporâneo:
Perceber no escuro do presente esta luz que busca nos alcançar e não o pode fazer, é isso o que significa ser contemporâneo [...] luz que sem jamais poder nos alcançar está perenemente viajando em nossa direção28.
O pensamento de Agamben que diz dessa capacidade de ver o escuro
de seu tempo como inerente àquele que é verdadeiramente contemporâneo,
conduz meu olhar uma vez mais à obra de Arthur Bispo do Rosário. Penso que,
o que faz de Bispo artista contemporâneo por excelência em nada se refere ao
amontoado de conceitos que a escrita da arte busca afixar com as constantes
comparações de sua obra a essa ou aquela produção, agrupando-a de modo
díspar a de outros artistas das quais em muito diverge do ponto de vista
poético. Mais à frente pensaremos melhor o tempo como questão e sua
importância (ou ausência de) na palavra contemporâneo. A meu ver, o que faz
de Bispo um contemporâneo por excelência é a habilidade em ver o e no
escuro. É o estar fora das luzes de seu tempo (e aqui emprego à palavra tempo
a conotação de sociedade), e ainda assim senti-lo, vê-lo ao modo de um
oráculo ou mesmo do vidente Tirésias29. Viveu plenamente a escuridão por
estar excluído das luzes sociais. Na reclusão aprendeu a ver o escuro do
28
Ibid. Op.cit. 29
Advinho, filho de Everes e da ninfa Cáriclo. Ainda jovem viu duas serpentes se unirem, separou-as e
transformou-se em mulher. Sete anos depois encontrou as serpentes enlaçadas e interveio do mesmo
modo. Retomou então a forma primitiva. Por sua dupla existência foi tomado por árbitro em discussão
acerca do amor entre júpiter e Juno. Declarando que era a mulher quem sentia mais prazer, desagradou
Juno que encolerizada o cegou. Para compensá-lo, júpiter tornou-o capaz de predizer o futuro e concedeu-
lhe o privilégio de viver longo tempo. São atribuídas a Tirésias numerosas profecias ligadas aos mais
importantes acontecimentos em Tebas. Teria sido ele a revelar a Édipo seu involuntário incesto.
(PESSANHA, 1976, 180).
50
“tempo” que, apesar dos pesares, também era o seu. Escuro esse que abrigou
a criação, oriunda de outro que a gerou. Assim, mesmo estando à margem de
categorias eruditas de produção artística, obrou. Sabemos que sem deixar sua
cela em visita ao mundo das artes plásticas e seu circuito, tampouco tendo
acesso a bibliotecas ou mídia especializada, como disse Frederico Moraes,
ainda na década de 60 criou assemblagens como as de Arman ou Daniel
Spoerri30, expoentes do novo realismo (Apud. HIDALGO, 1996, p. 195); e que
seu manto e demais trajes se afinam aos Parangolés31 de Hélio Oiticica.
Contudo, não é ainda a mera afinidade visual com obras destes artistas, ou
com algumas de Marcel Duchamp, que o fazem um artista “contemporâneo”
conceitual, pois de vanguardas ele nada sabia32.
Não é incomum textos críticos estabelecerem vínculos entre as poéticas
de Bispo e Marcel Duchamp (tido entre muitos como o pai da arte conceitual).
Ainda que nada realmente concreto seja dito, apontam certas convergências,
seja no que se refere aos conceitos ou à “utilização dos ready-mades”. Destas,
algumas primam pela sofisticação, outras caminham entre obviedades, como a
semelhança visual entre a obra Roda de Bicicleta, 1913, de Duchamp e a Roda
da Fortuna, de Bispo33. Não discordo da possibilidade relacional, sobretudo por
ser Duchamp caminho inevitável a qualquer aferimento sobre arte
contemporânea que percorra o caminho da análise. Contudo, a meu ver,
precisamente em Bispo, esta aproximação se dá menos por similitudes que por
oposição.
30
Arman – Pintor e escultor franco americano. Nasceu em Nice a 17 de novembro de 1928 e morreu em Nova Iorque em 22 de outubro de 2005. Foi um dos fundadores do Grupo Noveau Réalisme em 1960. Veja imagens no capítulo Chuleio, p. 144, ilustração 9. Daniel Spoerri (ou Daniel Isaac Feinstein) – artista e escritor suíço, nascido na Romênia em 1930, reconhecido como “a figura central da arte pósguerra européia”. Integrante do Novo Realismo e do Fluxus. Veja imagens no capítulo Chuleio, p. 143, ilustrações 8. 31
Ver ilustração 12, p. 146. 32
Esclarecemos que ao dizer que de vanguardas Bispo nada sabia, referimo-nos ao modo como a academia entende e pensa a vanguarda. Ou seja, academicamente falando Bispo não conheceu vanguardas. 33
Imagens no capítulo Chuleio, Roda da Fortuna, p. 141, ilustração 6.e Duchamp, p. 144, ilustração 10.
51
Vanguarda é geralmente entendida como tradição da ruptura, Bispo não
tinha intenção de romper com nenhum modo de arte instituído, sequer entendia
por arte suas obras; enquanto produzia não se preocupava com a aceitação ou
negação, com avaliações da crítica especializada; produzia obras para levar a
Deus no dia da apresentação. Com relação à vanguarda talvez seja importante
considerar o que nos diz Antônio Cícero, quanto a não deixar de ser um
equívoco o pensamento que a entende como tradição da ruptura, pois em
primeiro lugar, a vanguarda não seria uma, mas muitas, bem diferentes entre
si; em segundo lugar, também as rupturas teriam diferentes naturezas. Se
pensarmos vanguarda como aquilo que pretende revelar a poesia em estado
essencial e selvagem, desmantelando (como nos diz Cícero) as convenções
que a elidem ou domestica, aí sim teremos um paralelo entre Bispo e
Vanguarda. Fora essa possibilidade específica, a proximidade visual entre
Duchamp vanguardista e Bispo do Rosário não se explica racionalmente ou
conceitualmente, posto que, Bispo desconhecia os conceitos que regiam os
ready-mades. O que em nada diminui o valor de suas obras, visto que, como
bem nos disse ainda Cícero acerca da poesia e que aqui estendo às artes
plásticas: “Demonstrou-se na prática que não é a obediência a esta ou àquela
regra particular, a adoção desta ou daquela forma, a pertinência a este ou
aquele gênero o que garante a qualidade artística da obra de arte” (CICERO,
2000, p. 24). Com relação ao mais famoso ready-made de Duchamp, o poeta e
filósofo faz colocação importantíssima. Diz que a partir de Fontaine34 o próprio
conceito de arte foi amplamente discutido. Que ainda que uma obra possua
valor artístico e estético quase insignificante, isso não constitui empecilho para
que possua uma vastíssima importância conceitual. Temos então que o valor
puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensina, e não nela
própria, mas logo que o conhecimento se espalha ela, a coisa-obra, torna-se
mero exemplo, ilustração de conceito. Segundo Cícero, tomar uma obra
importante do ponto de vista conceitual como uma obra necessariamente
importante do ponto de vista artístico, plástico, foi um equívoco da vanguarda e
34
Célebre e polêmica obra de Marcel Duchamp, Fonte - o mictório assinado R.MUTT. Imagem p. 145, ilustração 11.
52
de seus admiradores. Do mesmo modo que não perceber ou negar que uma
obra esteticamente fraca como a Fontaine pode ter uma grande importância
conceitual e histórica, constitui grave erro dos inimigos da vanguarda.
A obra de Bispo é artística, de profunda estesia35, em tudo se opondo
aos ready-mades. A semelhança entre Bispo e Duchamp reside no fato de
ambos serem artistas. A forma de ver e ser que habita todo artista é o que os
aproximam e não algumas semelhanças meramente formais de suas obras
com gestos poéticos tão distintos. Se Duchamp constitui caminho inevitável
para se alcançar a poética de Bispo, há que se reconhecer em Miguel Ângelo
outro par. O aceno, se não por outros motivos, dá-se ao menos por sua crença
no trabalho, na poesia do laborar. Guarnecendo nossa tentativa de estreitar
distâncias entre poéticas, pensemos um pouco o italiano. Miguel Ângelo
testemunhou uma completa mudança na posição do artista, que, guardadas e
feitas todas as ressalvas, passava a ver a arte, após o dardo disparado por
Leonardo da Vinci (que alcançou nosso tempo sublimando a responsabilidade
perceptiva e intelectual do artista), como “coisa mental”. Ainda assim,
solidificou a ideia de criação artística através do labor, pondo-se a serviço da
necessidade de obrar. Alimentou imageticamente a história da criação de
inúmeras gerações, dando forma à imagem de Deus Pai, cultivada por
inúmeras pessoas que ainda hoje, diante de nosso pasmo, desconhecem o
autor e a obra a qual pertence. Homem tempestuoso, de conflitos múltiplos,
doou-se completamente à causa da arte, acreditando acima de tudo na poética
do trabalho, embora tenha negado sua própria condição, dizendo em resposta
35
A palavra estesia a mim soa serena, ainda que vigorosa, e particularmente ligada ao ver. Não ao ver dos olhos (órgãos da visão), mas um outro ver, que requer olhos de ver, que por sua vez não requer qualificação científica, racional, mas apenas entrega. Trata-se de um abrir-se ao ver, ao mistério do ser, aquilo que experienciamos diante da natureza e também da arte. Estesia me diz do sentimento de comunhão com o belo em momentos em que somos capazes de nos perceber no tempo, onde o tempo inventado por nós (o cronológico) é suspenso, toda abstração se dissolve e ficamos diante do real. É nesses momentos de verticalidade poética do tempo em que estamos prontos para assistir uma folha seca que se desprende de uma árvore, que sinto a estesia no mundo, quando percebendo o exato instante de seu desprendimento somos resgatados da “temporalidade” mecânica por algo que em sua simplicidade se revela sagrado. A folha é puro gesto, baila no traçar de sua queda embalada pelo sussurro do encontro do vento com o limite da matéria em seu ser no mundo; dança; música; e a um só tempo, pintura, no matiz que ali se abre ao ver; e poema, na narrativa amarelecida de sua trajetória que diz finitude e renascimento. Estesia.
53
a uma carta recebida certa vez, na qual se referiam a ele como escultor Miguel
Ângelo: “[...] nunca fui pintor ou escultor no sentido de possuir uma loja...
embora tenha servido aos papas, mas fiz isso sob compulsão” (Apud.
GOMBRICH, 1995, p. 312).
Bispo criou sua impressionante obra onde também corporificou a
imagem da criação, ainda que não a divina, mas a humana. Enformou em
réplicas que excederam o mero representar (aproximando-se talvez da
mímesis, se a pensarmos sob a condição do repetir encantadamente) a criação
do homem, o seu mundificar, inventariando-a para levar a Deus no dia da
apresentação. Sua obra não passa pelo crivo da coisa mental, pois é fé
messiânica, fruto do delírio, convocação de sete anjos no dia do surto
esquizofrênico. Entre suas obras, há as que não são propriamente criações,
são reproduções de objetos cotidianos, mas excedem esta cerceadora
possibilidade, são des-criações do real, pois ao inventariar o mundo Bispo obra
e obrando mundifica, re-criando seu universo. Esta é apenas uma edificação
extemporânea entre as poéticas de Bispo e Michelangelo – crença na obra, no
caracter energéico das obras, o ser-para-o-trabalho que em ambas residem.
O que dizer com relação a Marcel Duchamp, aquele que ao contrário de
Miguel Ângelo, dissolveu o objeto artístico, aniquilando a presença, fazendo
com que o objetivo da atividade artística deixasse de ser a arte, para ir em
direção ao seu oposto, a antiarte? A respeito do posicionamento
conceitualístico de Duchamp, Giulio Carlo Argan diz que é algo mais que a
morte da arte em Hegel, por sua condição de não ser apenas uma ausência,
mas uma presença contrária; e algo menos por sempre implicar uma operação
artística, ainda que de sinal contrário. Diz do evidente paradoxo: “se o fazer
antiarte é o único modo de fazer arte, a arte (em Duchamp) destrói-se no modo
de fazer-se a si própria” (ARGAN, 1993, p. 119).
Marcel Duchamp o artista de vanguarda, “pai da arte contemporânea”, é
o que produz objetos de não-arte. Já Bispo, ocupando a posição controversa
de negar a condição de artista (interno em hospital psiquiátrico e inventariante
do mundo eleito ícone da arte contemporânea brasileira mesmo contra sua
54
vontade), produz objetos de arte. Assim temos mais um estranhamento a
habitar o campo das artes no contemporâneo: Duchamp é o artista que faz
antiarte e Bispo o antiartista que faz arte. Se o conceito de ready-made é o de
deslocar um objeto estranho à arte para esfera dela, podemos pensar não a
obra, mas o próprio Bispo como ready-made, obra de críticos que o inseriram
no sistema. Reforçamos que de modo algum duvido do teor artístico das obras
produzidas por Bispo do Rosário naturalmente legitimadas por sua força
poiética, questionamos apenas as questões que envolvem o processo de
institucionalização do artista.
Antiarte – como esclareceu Agamben – é em si pura negatividade.
Bispo, antiartista (na condição de potência, daquilo que é e não-é) torna-se a
presentificação humana do não, ou seja do Nada. Na história de sua poética se
afirma e se firma como tal. Mas a grandiosa obra presentifica-se, legitimada em
seu próprio vir-à-presença. A história clama o artista, Bispo nega-se. Não se
trata apenas de manter-se em relação com a privação para poder a própria
impotência, na poética de Bispo temos o Nada a obrar, ou seja, o sagrado.
Bispo revela a verdade do ser (velamento) e do sendo (desvelamento) em seu
constante movimento de desvelar autovelante. Enquanto louco, nega a loucura
em seu obrar, pois sabemos que onde há obra não há loucura; enquanto
artista, nega-se do mesmo modo, jamais o sendo teoricamente. A verdade nas
obras que através de Bispo vieram à presença não é correta, não é da ordem
da correção, não segue a clareza do pensamento racional, é verdade enquanto
alétheia, a verdade da arte, ou seja, algo que se vela e desvela, havendo
sempre um não visto em tudo o que se mostra. No caso de Bispo em especial,
o próprio artista é obra do sagrado.
Duchamp e as obras mentais, antiarte; Bispo e seu inventário. Como
aproximá-los? Não há proximidade possível que não por oposição.
Encontraremos, é fato, em meio ao inventário do interno da Juliano Moreira,
objetos que, por seu DNA industrial, assemelhem-se aos ready-mades de
Duchamp, sem, contudo, propor-nos as mesmas questões.
55
A poética de Bispo é excessiva, ao contrário da de Duchamp, enxuta,
racional. As obras de Bispo carregam um excesso que nos expõem à falta, à
necessidade. O mesmo excesso que Clarice Lispector derrama em seus
escritos: em G.H. comendo a massa branca da barata ou na necessidade de
Lori em aprender a ser, para só então aprender a amar; no excesso de
desamparo explícito na escassez de vida em Macabéa que luta por aprender
viver-morrer; ou no delírio de um Eu anônimo que expõe suas ânsias a um Tu
indefinido; ou ainda do querer que culmina em felicidade clandestina, um
querer-saber que queima, paixão, que faz prolongar por tempo comprido o
desejo daquilo que é tão somente promessa de prazer. Excesso do antes,
prolongado no sentir o peso do livro fechado sobre o peito, adiando em
promessas o conhecimento – tempo suspenso, como o da espera por
núpcias36. Tudo que cega das luzes de “nosso tempo” e habilita a ver além, a
rasgar o véu do nada que vela o ser. Mesmo excesso que mostra a fome em
ser, que se derrama na poesia verborrágica de Stella do Patrocínio, ela que
compartilhou do mesmo tempo e espaço que Bispo do Rosário, sem que
tivessem se encontrado uma só vez; aquela que em sua antilucidez tanto
entendeu da própria fome e da alheia: Você está me comendo tanto pelos
olhos/ que já não tenho de onde tirar forças/ para te alimentar37. Fome análoga
a que novamente Clarice Lispector empresta voz: [...] A fome, esta é que é em
si mesma a fé – e ter necessidade é a minha garantia de que sempre me será
dado. A necessidade é o meu Guia38. Esta fome, esta necessidade, move o
artista. E a necessidade tem a exata medida de seu difícil espanto, que
chamarei questão, no árduo caminho a ser percorrido rumo à
despersonalização do autor. Bispo, portador da síndrome da alma fendida
sabia disso e disse: Eu preciso dessas palavras – escrita. A necessidade da 36
Obras citadas de Clarice Lispector, respectivamente: A paixão Segundo G.H; Uma Aprendizagem ou do Livro dos Prazeres; A Hora da Estrela; Água-Viva; Felicidade Clandestina. 37
Stela do Patrocínio nasceu no Rio de Janeiro, em 9 de janeiro de 1941. Aos 21 anos, foi internada em um centro psiquiátrico. Em 1966, foi transferida para o Hospital Psiquiátrico Juliana Moreira, onde permaneceu até morrer, em 1992. Foi contemporânea de Bispo do Rosário. Teve seus poemas publicados pela editora Azougue, em 2001, sob o título Reino dos Bichos e dos animais é o meu nome. 38
LISPECTOR, Clarice. A paixão Segundo G.H, p.169.
56
obra, a obra como necessidade, que é excesso e conduz ao limite do possível
rompendo suas barreiras, permitindo o mergulho no impossível, o salto sobre o
abismo. Experienciar o limite é saber não haver fronteira demarcada entre o
riso e o pranto, mas circularidade. Avistar o impossível é arrostar o real, pois no
impossível é que está a realidade39. Cruzar as fronteiras do possível e
mergulhar no supostamente impossível é conhecer a si mesmo, é estar na
fronteira do limite que é a vida e do não-limite que é a morte. Viver a
consciência da morte é habitar o entre, saber fazer a travessia é o que
deveríamos chamar sanidade.
O delírio em Bispo busca suturar o humano do homem. Suturar o
humano é deixar-se Ser. Se Arthur Bispo do Rosário é um artista
“contemporâneo” isso se deve não a conceitos e regras por ele seguidas, ou
por outros atribuídas às suas produções, mas por ter sabido habitar o tempo.
Em seu delírio obrou, e sua obra se firmou nesta atopia conhecida por
“contemporâneo”, habitada por todo artista que, ao achar que seu eu não está
à altura da vida, percebe imediatamente que, ainda assim, sua vida sempre
está à altura da vida, registro de dedicação nas pinceladas do obrar. O não-
lugar onde é sempre possível que se reúnam Safo, Emily Dickinson, Clarice
Lispector, Stela do Patrocínio...; em que Waltércio Caldas dialoga com Rodin;
onde podem estar a um mesmo tempo Leonilson, Caravaggio, Fídias...; ou
seja, lugar de todo artista que, inspirado, trouxe grandiosas obras à presença,
independentemente da suficiência ou insuficiência de conceitos sempre
menores diante da Arte que se firma, quando assim deseja, como misteriosa
doação do Nada.
Acredito mais no escuro do delírio, que nas luzes da razão. O escuro é o
próprio do artista Bispo. Escuro que também é doação da luz, só que de outra,
a luz da criação. A plasticidade dotada de sofisticado pensamento artístico
não-intencional constitui esse escuro inerente, essa fissura. Por ela,
espectadores, fruidores, estudiosos da arte e suas teorias são tragados.
Apenas nós. As inúmeras teorias vão por terra, desaparecendo, insuficientes,
39
Uma Aprendizagem ou do Livro dos prazeres, p. 106.
57
feito gotas d‟água a se esvair no árido solo de conceitos prévios, insuficientes
diante daquilo que se fecha à análise em seus contraditos. Somente as
questões permanecem. Convidando-nos a seguir adiante. Seguimos:
Descalços, desarmados, sem sombreiro sob o calor quase asfixiante das obras
cujo autor ao insistir em seu cunho messiânico, conduz ao não-saber próximo
da angústia. Bispo (o artista-obra) retira tudo que temos e nos deixa nus. Como
classificar um artista que se nega como tal, fazendo-se assim, felizmente,
inclassificável? Por outro lado, como negligenciar obra que se firma como arte
independente da vontade de seu autor? Bispo, por sua especial condição, e
pela inquestionável poesia e força de sua obra, faz-se enigma, desafiando-nos
a pensá-lo.
Inúmeras perguntas perfilam-se entre conceitos e fenômeno. Quanto às
vanguardas, Bispo invalida o suporte conceitual que teoricamente as rege.
Nega a subjetividade artística, até então carro chefe da produção
contemporânea. No reconhecer a força de sua obra, o implicar em aceitá-la
como originária – no desvelar da verdade, a arte que se dá não por eruditos
meios, mas na simplicidade do delírio, inegável movimento do real que
antecede a institucionalização do artista Bispo do Rosário. Seria o gesto mais
forte que a mão ao urdir? Talvez seja o momento de questionar se a autonomia
da obra não estaria seguidamente sendo confundida com autonomia do
artista... E que dizer de toda erudição que vem se instituindo quase como pré-
requisito para a produção artística contemporânea?
58
4. O Corte: Entre o duplo e a Dobra - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - O Princípio Refazendo o percurso ou outra tentativa de pensar o Sagrado.
Retomando o capítulo 2, onde realizamos breve tentativa de pensar o
sagrado na produção poética de Bispo, percebemos um exemplo de condução
do pensamento por via conceitual, que aplica às obras algo externo a elas: o
conceito filosófico de Agamben acerca da sacralização e profanação. Mas a
força destas obras reside em outra esfera, não cabe em conceitos (ainda que
bem elaborados) ditados à priori. Passemos então a pensar uma das
assemblagens e os apetrechos que as compõem por outro viés de
pensamento: segundo trecho de a Origem da Obra de Arte de Martin
Heidegger, pensador que propõe questões em detrimento aos conceitos. Dirijo
mais uma vez meu olhar em direção às obras.
Pensar as obras de Bispo do Rosário é enveredar pelos caminhos do
sagrado, da con-sagração, em sua poética de inventariar o universo as coisas
do cotidiano obram. Inventariar, a saber, re-inventar. Coisas perfeitas ao
desuso, objetos desprezados – sob o olhar encantado do poeta das linhas,
encontram a sagração. Outro revelar poético, quase místico, diz de sua obra
ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados,
coisas apropriadas ao abandono. O poeta outro – da palavra - percebe entre os
objetos um buquê de pedras em flor e desvenda: Esse Arthur Bispo do Rosário
acreditava em nada e em Deus40. Obra – fragmentos de vida que se
potencializam no acúmulo. Corporificar, catalogar: homem, mundo, anseios,
devires. Obrar em arte. No labor, o corpo poético da fé messiânica. Em tudo
que é humano, o nobre habita a criação – em Bispo a sagração da condição
humana – ex-voto à existência e a capacidade do homem de se re-criar. Tantas
obras a ler, todas ali – estandartes que trazem um oceano de emoções no
desejo de além-mar; objetos para a grande viagem – inúmeros quase
incontáveis – presentificam o universo em azul; venda para olhos – no devir da
cegueira a viagem interior do oráculo; faixas de misses: roteiros de viagens;
40 BARROS, Manoel. Livro Sobre Nada. São Paulo: Record, 2002, p. 83.
59
Cama: a viagem do sonho no amor por Rosângela Maria [sua Dulcinea]; o
Manto da Apresentação em toda sua complexidade poiética: traje de gala para
o viajor; capa de Exu: mensageiro entre mundos – o que viaja. Bispo, que
anseia a viagem, antes necessita inventariar41. Assemblagens acolhem sapatos
com desejo de caminho; bolsas para todos os passeios; gravatas para trajes
endomingados; talheres para todos os apetites. No universo-labirinto de Bispo,
encontramos coisas produzidas como utensílio para algo que seriam
destituídas de sua utilidade pelo mundo do consumo e descarte,
transubstanciadas em obras.
Para Martin Heidegger, no utensílio reside um parentesco com a obra de
arte, sendo ele também um produto do trabalho humano. “O utensílio, o sendo
tão familiar em seu ser, ocupa simultaneamente uma posição singular entre a
coisa e a obra” (HEIDEGGER, 2010, § 41, p.77). Os utensílios dos quais Bispo
se apropria são próximos da mera coisa, visto que estão prestes a serem
despojados de seu ser-utensílio, ou seja, o despojamento do caráter da
serventia e da fabricação. Despojamento que se daria pelo desgaste em
sociedade de consumo e descarte. Para Heidegger, o ser utensílio do utensílio
consiste em sua serventia. Tentemos, desse modo, seguir com cautela, para
não incidirmos no erro de que o pensador nos alerta: tomar coisa e obra,
apressadamente como variantes do utensílio.
Bispo usa, em suas obras, utensílios que foram produzidos pela
indústria, ou seja, produtos da técnica. Contudo, seu modo de uso é diferente
do de Duchamp, como dito anteriormente. Lancemo-nos em busca de auxílio
nos escritos de Heidegger, para tentarmos pensar esta questão, relendo o
trecho de densa carga poética, leitura da obra Os Sapatos, de Vincent Van
Gogh, que realizou:
Da escura abertura do gasto interior dos sapatos, a fadiga dos passos do trabalho olha firmemente. No peso denso e firme dos sapatos, se
41
Venda para os olhos, Faixas de miss, Cama e Capa de Exu são obras do artista, ou seja, peças poéticas que compõem seu inventário.
60
acumula a tenacidade do lento caminhar através dos alongados e sempre mesmos sulcos do campo, sobre o qual sopra contínuo um vento áspero. No couro está a umidade e a fartura do solo. Sob as solas insinua-se a solidão do caminho do campo em meio à noite que vem caindo. Nos sapatos vibra o apelo silencioso da Terra, sua calma doação do grão amadurecente e o não esclarecido recusar-se do desolado inculto terreno do campo de inverno. Através deste utensílio perpassa a aflição sem queixa pela certeza do pão, a alegria sem palavras da renovada superação da necessidade, o tremor diante do anúncio do nascimento e o calafrio diante da ameaça de morte. À Terra pertence este utensílio e no Mundo da camponesa está ele abrigado. A partir deste pertencer que abriga, o próprio utensílio surge para seu repousar em si (HEIDEGGER, 2010, p.81).
Heidegger partindo da leitura do par de sapatos chega ao ser-utensílio
do utensílio. Importante assinalar que, não parte dos da camponesa
propriamente, pois para ela que apenas os calça, ali não reside poesia, mas
serventia. Heidegger não lê o utensílio-sapato deixado a um canto de uma
humilde casa no campo. Lê sim, a obra, Os Sapatos de Van Gogh, na obra a
verdade e a poesia do ser-utensílio do utensílio sapatos. Apenas a obra é
capaz de tal fala. Nos da camponesa a verdade que se desvela é a
confiabilidade. Segundo Heidegger, “em virtude dela, (a confiabilidade), e
através deste utensílio a camponesa é admitida no apelo silencioso da Terra”
(Ibid., p. 93). Esta confiabilidade a faz certa de seu mundo.
Nos utensílios por Bispo apropriados não vige propriamente o ser-
utensílio do utensílio caneca, posto que, transformadas em assemblagens não
servem café com leite aos internos. Não estão ali para o uso, ao menos não o
costumeiro uso de sua confiabilidade como caneca. Mas de um outro modo
que não o do serviço cotidiano, pois as canecas ali enfileiradas desvelam a
verdade poética do ser-utensílio exposto na obra.
Passemos então a olhar a assemblagem42: Trinta e duas canecas de
alumínio lustroso desviadas de seus destinos, dispostas quatro a quatro, em
superfície que se espacializa verticalmente, dando corpo à obra. Olhando para
as canecas enfileiradas, percebemos claramente um ordenar o caos. Cada
utensílio que estaria condenado ao descarte, teve seu fluxo de consumo, sua
42
Ver ilustração 5, p.140.
61
circulação nas mesas dos refeitórios da colônia Juliano Moreira, interrompido
pelo interno Bispo do Rosário. Olhando-as enfileiradas, em tão perfeita ordem –
cada qual presa pela respectiva alça – percebemos em cada uma delas uma
história. Seja nas rasuras em forma de ranhuras que se firmaram sobre a
superfície polida do alumínio, ou em suas bordas ligeiramente disformes. São
utensílios calejados pelo uso cotidiano. Podemos perceber em cada uma as
marcas de sua utilidade, da confiabilidade, quando andaram de mão em mão,
de lábios em lábios, saciando fome e sede, na humilde tarefa de servir. A
silenciosa disposição, o repouso ao qual Bispo as impõe, faz-nos ouvir a
melodia composta a partir da memória dos ruídos matinais do trabalho, do
tilintar do alumínio sobre mesas recobertas pelo azul-asséptico de alguma
fórmica; do encontro, do esbarro, quando se anula a distância entre duas ou
mais, no recolher à cozinha. Bispo devolve a estas canecas o vigor poético de
seu trabalho, dando-nos a conhecer, como Van Gogh fez com as botinas, o
que o utensílio-canecas é na verdade. O holandês usou tintas à óleo e a
técnica que dominava, Bispo lançou mão do que tinha, utilizando as canecas
em si, para dizer delas o que são. Propriamente, como nos diz Heidegger, o
ser-utensílio do utensílio vem muito mais para seu aparecer somente através
da obra. Na obra se dá a abertura do ente em seu ser. É isto que na obra está
em obra: o acontecimento da verdade.
Partindo de um conceito prévio, ou seja, a noção de sagrado, construída
pelo pensamento de Giorgio Agamben, buscamos pensar a questão do
sagrado em Bispo. A insuficiência de tais conceitos diante do vigor poiético das
obras nos conduziu às cercanias do pensamento do grande filósofo Martin
Heidegger, aquele que defendeu a autonomia do caminho, onde podemos
aprender que são as questões que nos solicitam, não o contrário. Contudo,
uma vez mais nos desvirtuamos da questão. Em uma atitude claramente
conceitual, lançamos mão dos escritos de Heidegger feito súmula papal.
Estando de posse do molde, traçamos o risco que supostamente nos levaria a
construir um manto sacro para Bispo do Rosário. Como nos disse Alberto
Caeiro, é preciso retirar as tintas com que nos pintaram os sentidos, no
entanto, o processo é lento e árduo. Não é assim tão simples negar a tradição
62
do pensamento que se firmou desde o início do que entendemos por Ocidente.
Martin Heidegger configura um marco do pensamento humano pelo modo
originário como se volta para as questões essenciais. Contudo, aplicar seu
pensamento na leitura de obras de arte, em nada difere de aplicar o de
qualquer outro filósofo, e pouco se distancia também, a meu ver, das tão
criticadas análises formais. Buscar elementos externos que se agreguem às
obras para só assim nos sentirmos confortáveis em olhá-las, implica, a meu
ver, permanecer na sombra do pensamento metafísico, no qual todas as
respostas repousam; caminho que ao nosso intento se configura improfícuo.
Não buscamos respostas, tão pouco as oferecemos. Não as buscando não
julgamos pretensiosa a tarefa de questionar aquelas que se apresentam. Não
acreditamos possível nos aproximarmos pela via da análise e do conceito, da
questão do Sagrado nas obras de Bispo. Se assim cremos, demorarmo-nos
nisto não teria sido então perda de tempo?
Quando escolhemos o percurso mais rápido por simples receio de
perder tempo, estamos desconsiderando algo essencial: não perdemos tempo,
pois ele, o tempo – ao contrário do que julgamos ou imaginamos
displicentemente – não passa. Somos nós quem passamos por ele. Escolher o
percurso mais fácil, abrindo mão do que se crê, implica em algo muito mais
sério que a suposta perda de tempo. Buscar respostas às perguntas que não
são nossas e fechar os olhos aos próprios questionamentos pelo conforto de
estarmos de acordo com regras pré-estabelacidas por outros, implica em
perder-se de si mesmo. Considero salutar o exercício acima, por evidenciar de
certo modo o equívoco de se seguir moldes. Martin Heidegger deixa claro em
seus escritos não haver mapas, regras, apenas caminhos. Haveremos sempre
de nos deixar tomar pelas questões e permitir que elas conduzam o
pensamento. Pela via conceitual sempre poderemos afirmar e negar o que
quisermos sobre o que quer que seja, sem, no entanto, conseguirmos dar um
passo além da fronteira do exercício retórico.
O sagrado que se desvela nas obras que através de Bispo vêm à
presença é de um vigor que não cabe na ordem das análises, sejam elas
63
formais ou filosóficas. O Sagrado que ali se doa ao VER não é da ordem do
complexo, mas do simples. É o desdobrar-se da verdade da arte, verdade
como aléthia, movimento de velamento e desvelamento. Será sempre algo
apenas entre-visto. As obras de Bispo a nosso ver são da ordem do Sagrado
justamente pelos desdobramentos que desvelam sua simplicidade. Pelo
extraordinário que se dá no ordinário. Por constituir obra rica em nuances do
mais elevado pensamento plástico contemporâneo e vir a ser exatamente
através de ingênuas mãos. Ingênuas do ponto de vista da arte acadêmica,
conceitual, contudo, fortes o suficiente para se deixarem tomar pelo delírio
criativo.
A sacralidade da arte em Bispo se dá em nuances de claro-escuro.
Tanto o claro quanto o escuro são possibilidades da luz, potência de toda
criação. Recordemos trecho de Clarice Lispector, onde é dito lindamente algo
muito apropriado:
Mas era como uma pessoa que, tendo nascido cega e não tendo ninguém a seu lado que tivesse tido visão, essa pessoa não pudesse sequer formular uma pergunta sobre a visão: ela não sabia que existia ver. Mas, como na verdade existia a visão, mesmo que essa pessoa em si mesma não a soubesse e nem tivesse ouvido falar, essa pessoa estaria parada, inquieta, atenta, sem saber perguntar sobre o que não sabia que existe – ela sentiria falta do que deveria ser seu43.
Bispo não conheceu a Arte nos moldes dau academia; também não
chegou a ser um estudioso diletante no assunto, nada sabia das inúmeras
poéticas existentes, não as havia visto. Só soube da falta – que talvez fosse
como aquela saudade daquilo que ainda não se conhece, que chega de
manso, vai tomando contornos e se avoluma em algo a que chamamos
Necessidade. Daquela que haveria de Ser. Simples assim.
43
A Paixão segundo G.H, p.. 135, 1º§.
64
5. Alinhavos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - As dobras poéticas no Manto da Apresentação.
Neste percurso tivemos momentos onde nossa caminhada se deu no
que chamamos de duplo, posteriormente entre o duplo e a dobra e finalmente,
a partir deste capítulo, nosso empenho se configura em realizar
encaminhamentos por entre as dobras do poético, estabelecendo diálogo com
a obra que se presentificou através de Bispo do Rosário.
A escrita de Guimarães Rosa sempre nos provoca um despertar.
Rememoremos uma importante frase: “o que é para ser são as palavras”.44 Há,
e disto não há dúvida, um saber que repousa nas palavras e que inúmeras
vezes desconsideramos, especialmente quando nos movemos no duplo. Assim
reconhecendo, antes de seguirmos adiante pela vereda do poético,
buscaremos de modo bastante breve, aclarar o que ouvimos nas expressões
duplo e dobra, bem como no vocábulo diálogo.
No que se refere ao duplo e as dobras, esclarecemos que entendemos por
duplo o horizonte dos conceitos universais e abstratos que dicotomizam o real,
através de jogos de oposições entre “verdades” e “inverdades”, bem como de
todas as “certezas” que se dão no âmbito do racional exacerbado,
hipertrofiado, que cambia em alternadamente, o “correto” e “incorreto”. Já por
dobra, entendemos o pensamento que se dedica às questões. Aquele que não
pretende solucionar enigmas, muito menos os da arte, mas tão somente avistá-
los. Na dobra, quando algo é avistado, há a plena consciência da existência
daquilo que se velou ao ver, de algo ainda não visto, que repousa no velado
aguardo de um sempre inesgotável a-se-pensar. Agora pensemos um pouco a
palavra diálogo. Ela é formada a partir do prefixo grego: dia- e do radical –logo,
de lógos, linguagem. Segundo Manuel de Castro45, Dia- é um prefixo grego que
congrega dois sentidos fundamentais: através de e entre; enquanto Lógos é
44
(Apud. CASTRO, In: A leitura como diálogo poético). 45
CASTRO, In: A leitura como diálogo poético. Disponível em http//www.travessiapoetica.letras.ufrj.br
65
uma palavra grega que se forma do verbo legein, e apresenta dois sentidos
interligados e complementares: reunir e dizer. Estes dois sentidos se fazem
especialmente presentes na palavra diálogo. Castro nos diz ser a palavra
lógos, intraduzível. Diante dessa constatação, podemos rememorar o
fragmento 50 de Heráclito: “Auscultando não a mim, mas ao lógos, é sábio
dizer que tudo é um”. Partindo desta breve definição-reflexão, esclarecemos
que em nosso estudo, o vocábulo diálogo tem o sentido de escuta, ou melhor
dizendo, ausculta. O dialogar com a obra a nosso ver consiste em escutar a
fala da obra que se dá no silêncio do pensamento questionador. Através da
obra, somos conduzidos à ausculta do lógos, e auscultando o lógos,
apreendemos a obra enquanto sentido, mundo, verdade. Dialogar então seria
estar num entre lógos e obra, e avistar através dele a unidade na tríade Arte,
Pensamento, Linguagem.
Após leituras sobre as questões originárias do Ser que constam nos
escritos de Martin Heidegger, percebemos na fala das obras o pronunciamento
de muitas questões. Ainda na tentativa de remover camadas depositadas por
inúmeras teorias estéticas que há muito formatam o pensamento que se ocupa
das artes, buscaremos avistar, ou seja, entre-ver, na circularidade do Manto da
Apresentação um aceno da corporeidade plástica do círculo poético. Não é
nosso intento pensar o Manto a partir das questões que constituem o caminho
sugerido por Heidegger, mas sim o inverso, avistar questões da ordem do
tempo, da memória, da loucura, do sagrado, a partir da plasticidade da obra.
Na realização deste exercício de pensamento, em movimento inverso, também
buscaremos pensar a possibilidade artística que aflorou em Bispo do Rosário,
[um grego intempestivo, como mais adiante teremos oportunidade de entre-
ver]. Aceitando o convite ao pensamento através das questões que o figurar da
obra apresenta, teremos, neste capítulo, registros dos diálogos.
Olhar o Manto da Apresentação é avistar as questões que movem o
pensamento. Olhar o Manto e Vê-lo implica em reconhecer que o olhar é tão
somente uma ferramenta e em muito difere do Ver. Mais importante que o olhar
é o Ver, que não se distingue do ouvir. O ver só é ver se nele se dá também a
66
escuta, ou melhor, ausculta. No Ver não apenas vemos como também
escutamos e dialogamos. Ele deve ser pensado e entendido como um abrir-se
ao dia-logo. Abrir-se ao Ver é acolher-se, é receber a si mesmo, é recolher-se
em autodiálogo, é auscultar o lógos. As possibilidades do ver nos são doadas
por aquilo que se mostra, ou seja, se doa ao e no Ver. Mas o olhar pode
perceber ou não. Para de fato vermos precisamos, por nossa vez, termos
consciência do aberto que somos e no qual também desde sempre estamos
jogados, para assim, e só assim, alcançarmos a plenitude do Ver originário.
Contudo, há ainda outro ver, mais imediato, e que em comum com o Ver
originário tem o diferir do mero olhar. Para este outro ver, usaremos o olhar,
mas o olhar pensante, para tanto há que se cultivar “olhos que vejam”. É mister
despi-lo de tudo que os turvem, ou seja, livrá-los da subjetividade, bem como
dos conceitos, que anexados à ferramenta do olhar como desnecessárias
lentes, tornam baços os olhos, distorcendo aquilo que se mostra no aberto, no
horizonte da visão. Precisamos compreender e ultrapassar o que se interpõe
entre o que se mostra ao ver e o que conseguimos “ver” daquilo que se mostra.
5.1. O Ver - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Olhar difere de ver, e especialmente do Ver.
Repousa em todo ser humano o Ver enquanto possibilidade, Ver este,
que é a um mesmo tempo, mostrar-se. Haveremos antes e primeiro – neste
início de percurso pelas veredas das questões originárias que se apresentam
no figurar do Manto – de (re)buscar o Ver em sua plenitude. Há aqui a
necessidade de esclarecer qual caminho se apresenta primeiramente em
nossa caminhada. Haveremos de nos lançar em exercício de pensamento que
nos desperte a compreensão do essencial ao Ver: o existir. Buscando pensar a
existência humana seremos conduzidos à essência do Ver, pois repousa no
67
homem, no próprio de seu ser, o Ver como potência no enigma do revelar-se.
Na existência a essência do Ver se dá no movimento do que se mostra no
aberto entre homem e mundo.
Os seres (animais e vegetais) existem. Mas só ao homem é dada a
existência. Gilvan Fogel, em ensaio intitulado A respeito de homem, de vida e
de corpo46, tendo por norte uma página de Martin Heidegger em Sobre o
Humanismo, realiza profundo encaminhamento acerca da questão da
existência e do homem. Acompanharemos suas reflexões para que em nós
também se aclare esta questão e seu imbricar na questão do Ver. Heidegger
nos diz que “somente o homem foi introduzido no destino da ek-sistência”. Para
Heidegger o homem é o Dasein, Ser-aí, existência. Diante disso, Fogel
esclarece:
[...] que a essência do homem esteja na ek-sistência quer dizer que o „homem se essencializa de tal modo (West so...) que ele é o lugar (“Da”), isto é, a clareira do ser. Este ser do lugar (“Da”), e ele só, possui o caráter fundamental (“Grundzug”) de ek-sistência, isto é, da in-sistência ek-stática na verdade do ser (Apud. FOGEL, 2010, p. 2).
A partir do pensar de Fogel, temos que, essencializar diz expor, realizar
um modo próprio de ser. Essência então seria: expor-se, fazer-se, vir a ser.
Essência, portanto, não diz de núcleo, ou de pureza, mas de origem, gênese,
diz de movimento-gênese, movimento originário. Essência diz daquilo que
move a si mesmo e determina posição: auto-ex-posição. Como um posicionar-
se fora, um expor-se como e na abertura. É próprio do homem vir a ser si
próprio em seu modo próprio de ser. O homem como clareira do ser mostra-se
no aberto de si ao mesmo tempo que configura o aberto para o mostrar-se dos
demais seres. O homem se essencializa e, ao cumprir sua gênese ontológica,
configura-se lugar, clareira do ser. Mas é preciso que fique claro que isto não
se dá a partir de sua vontade, mas como salto, doação, mistério. É um
acontecimento. Para Heidegger este acontecimento é a “insistência ekstática
46
Mimeo, 2010.
68
na verdade do ser” ou clareira. Mas o que seria esta verdade do ser? Como
compreendê-la?
Precisamos primeiramente entender que verdade na dinâmica do
pensamento originário, não diz correção. Verdade deve ser pensada no modo
grego, como alétheia, que diz de desocultação, desvelamento. Verdade sendo
aquilo que se mostra, desoculta-se, ou seja, trata-se de algo que salta do
velado para o desvelado. Verdade é movimento de desencobrimento, que
desencobre e encobre a origem. Se retirarmos um véu de algo, ao pô-lo de
lado, este algo que repousava sob ele aparece, contudo o véu não desaparece,
apenas se deixa tomar pelo movimento e ao ser posto de lado encobrirá o que
ali estiver. Quando algo é no desencoberto, outro algo é no velado. Esta
verdade do ser, este desencobrimento, deve de ser entendido como liberação
de uma essência, de um modo possível de ser. Liberação nas palavras de
Fogel diz exposição, vida, deste modo concretização, realização.
Tornar-se ou fazer-se visível, aparecer ou mostrar-se para aquele que está na determinação ou na possibilidade desta essência, que então assim se revela se mostra. E assim se revelando ou se mostrando (se descobrindo, se desencobrindo, fazendo-se verdade) essência se faz história (FOGEL, 2010, p. 3).
O estudioso previne que História não deve ser entendida como passado,
como historiografia, mas como acontecimento, onde acontecer e fazer-se
visível se correspondem e se encontram no fazer-se da verdade. Na expressão
fazer-se, tornar-se visível que não devemos ouvir o que se refere ao fenômeno
da materialidade, algo físico, ligado apenas ao órgão da visão, mas sim como o
que se mostra, a saber, revela-se no seu sentido. É tornar-se visível na sua
força de realização, no seu ser. Ser ek-sistência, ek-sistir seria ser no ek, no
ex, no fora, no aberto, ser o que se revela, se mostra. Se se revela é ação
acontecendo, é sendo. O ser sendo é ente. O homem é este modo de ser, é
esse modo de existir. Aqui, ao perceber este tornar-se visível do homem no
69
aberto e como aberto, chegamos à questão que impulsionou este percurso
reflexivo: O Ver.
Apenas ao homem é dado este modo de ser ou estar no viver. Ser na
possibilidade e no sentido. Fogel nos esclarece que na possibilidade e
determinação do aparecer repousa ao mesmo tempo a possibilidade do Ver.
Este ver seria uma espécie de fora (enquanto aparecer) que me joga dentro
(enquanto refletir) na condição de ser, viver, existir. Este Ver faz o homem
consciente do viver, o faz interessado pelos mecanismos da existência. Este
Ver, proveniente da consciência do existir enquanto doação, portanto, não fala
exatamente da capacidade do sentido visão, mas evoca o modo de ser que é
ser no sentido [...] do aparecer ou do fazer-se visível. No fazer-se do visível
funda-se o Ver. O fazer-se visível, a ek-sistência que é abertura, acontece
fechada, dá-se no dentro, no retraimento, na latência, ou seja, concretizada,
realizada ou entificada, ou seja, no ente. Assim, o modo de ser aberto da ek-
sistência, na verdade, no desencobrimento, no exposto, ou apto a aparecer ou
mostrar-se, dá-se dissimuladamente, retraído. O ser é o aberto no velado. Ao
desvelar-se, fecha-se no ente. Por isso o ser homem dá-se em extravio,
desviado de sua essência, de seu modo próprio de ser, o que, ainda segundo
Fogel, a cada passo de seu caminho, de sua travessia, precisa ser
reconquistado, retomado. Contudo, o encobrimento, a entificação não constitui
erro a ser reparado, mas faz parte do destinar-se do homem, constitui sua
errância. A insistente existência humana se dá num aberto-fechado, num entre
abertura e retraimento, escapando-nos à percepção. Segundo o pensamento
de Fogel a guiar nosso percurso nesta reflexão sobre o ver, a verdade da vida,
da existência, é mulher, sempre dissimulada como Capitu. O Manto nos diz em
seu avesso, desta condição feminina da existência.
Precisamos buscar a cada passo de nosso caminho, ver e re-ver este aberto
no fechado. Pensar o ser é vê-lo nele mesmo, o aberto no fechado, a ek-
sistência na insistência. De certo modo assim se configura ver o Ver. Ver é
pensar, é pensar-se no movimento do real. Podemos e devemos entender o
pensar como um ver que é escuta, um pensar desde e como escuta a que
70
Fogel chamará Corpo. O saber ver o ver seria possibilitar “Um diálogo da alma
com ela mesma” 47. Ou seja, autoescuta, ausculta.
Arthur Bispo do Rosário não segredou e inúmeras vezes disse, para os
que quisessem ouvir: Minha obra é para quem enxerga. Certa vez, depois de
diversas tentativas todas sem sucesso de ser recebido pelo artista, o
psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, que à frente de um projeto de pesquisa
para o Ministério da Saúde entrou no manicômio para documentá-lo em fotos e
vídeos, conseguiu finalmente ser recebido para uma visita na cela onde Bispo
trabalhava e abrigava sua produção (aliás, um complexo de celas, para que
pudesse armazenar toda produção). Ao entrar, o fotógrafo foi tomado de
assalto pelo conjunto das obras, viu-se diante de um labirinto em movimento,
algo semelhante às ruas de comércio popular no centro da cidade. Entre outras
coisas era esmagadora a força advinda do acúmulo. A visita se repetiu, mas o
anfitrião permanecia impassível, concentrado, calado, entregue ao trabalho
permanecia sentado a bordar. Hugo Denizart, movido pela curiosidade, certa
vez apontou uma obra e comentou:
– Bispo, não estou entendendo aquilo.
Ao que o artista respondeu:
– Ué, você não enxerga?
– Enxergo.
– Então está visto.48
Bispo sabia que para enxergar, Ver, é preciso mais que apenas olhar. É
preciso desacostumar os olhos, lançar-se no aberto do ver. Gilvan Fogel, em
outro ensaio: O desaprendizado do Símbolo (A poética do Ver Imediato), diz
que o calo é o hábito. O hábito cultural. O hábito é como um uniforme, espécie
de “hábito” com o qual vestimos a alma. O hábito é o mecânico, automático,
que gera apatia e indiferença calcada nos conceitos e fórmulas que tornam
47
(Platão. Apud, FOGEL, p. 4). 48
(Apud. HIDALGO, 1996, p.134).
71
nossos olhos baços. Há o imperar das atitudes que uniformizam. Para tudo há
bulas. Para de fato vermos precisamos nos despir dos trajes que nos
impuseram. Precisamos desaprender o que sabemos, para re-aprender a Ver.
Diante de uma obra de arte somos sempre convocados. Mas quando se
trata de uma obra plástica, é o Ver que nos convoca no aberto do mundo. A
obra se coloca como espelho, na obra enquanto mundo entre-vemos a verdade
do ser, o ser enquanto verdade, a verdade do homem enquanto clareira do ser,
ou seja, aquele que se instala no aberto, para ser desde sempre a própria
abertura, ainda que resguardada no velado, no fechado. Olhar o manto e ver o
Ver é deixar-se convocar pelo sentido do Ser enquanto Verdade,
desencobrimento, movimento do Real, Realidade. É aceitar o convite para
auscutar o diálogo da vida com a própria vida que nos conduz a uma
experiência de quase morte, ou de morte em vida, pois trata-se de buscar no
ver, des-ver a insistência, ou seja, o fechado, o ente. Ou, usando uma
expressão do poeta Manoel de Barros, transver a existência, vendo além do
visto todo o não visto, percebendo que no fechado do ôntico há frestas que
conduzem ao aberto ontológico por onde a vida, não como bios, mas sim
dzoé49, flui.
5. 2. Obra: Mecanismos e Criação - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
49
Esclarecendo Zoé e Bios: Dzoé é a totalidade da vida, que abarca especialmente o silêncio e o vazio, Arkhé, origem. Bios é a vida biológica e se origina a partir de Dzoé. “É importante insistir que a dzoé, como tal, é o surgir para..., é o desabrochar e abrir-se para o aberto. Por isso os gregos chegaram a chamar seus deuses de dzoia, ou seja, originariamente, o que surge e se acha presente em seu surgir [...] Dzoé/physis constituem-se nas duas palavras fundamentais do pensamento originário e constituem o ser, porque o ser é sendo, surgindo. É no surgir e a partir de si mesmo que a physis/Dzoé é o ser”.(CASTRO, 2007) Poética e paixão: o amar, p. 4, como citado na bibliografia.
72
A condição do artista Bispo e a grandiosa obra que se quis Manto da
Apresentação conduzem discussão acerca dos mecanismos, ou seja, os
processos nos quais se cria uma obra, ou melhor, os processos pelos quais
uma obra vem à presença. Emmanuel Carneiro Leão nos diz, no que se refere
aos mecanismos da criação, que devemos desenvolver um questionar acerca
da proveniência da obra. Afinal, uma obra é derivada da ação de mecanismos?
Se assim for de onde vem o princípio criativo, a força criadora de tais
mecanismos?
Poderíamos dizer de imediato, impulsionados pelo hábito que engessa o
pensamento, que a força criadora que os move seria proveniente do autor-
artista. Mas se considerarmos o artista a um mesmo tempo aquele que cria e a
força que move este criar, teremos então a certeza de que o artista ao ver a
obra, detém todo o conhecimento acerca das inesgotáveis possibilidades de
realização desta enquanto obra de arte, abarcando seu sentido em totalidade,
afinal a obra não pode ser enigma para a força que a origina. Ou será que
também ele, o artista, seria um mecanismo? Podemos supor que tomada por
esta questão Clarice Lispector tenha nos dito: [...] Ver o ovo é a promessa de
um dia chegar a ver o ovo [...] – Olhar é o necessário instrumento que, depois
de usado, jogarei fora [...]50.
Este é um trecho do conto O ovo e a galinha que nos concede um
entrever da relação artista-arte-obra. A partir dele, podemos refletir ser o artista
é o guardião da obra tal qual a galinha é do ovo. Contudo, a galinha, ainda que
guardiã, não possui o ovo, não entende a plenitude do ovo. O ovo a ela chega
como um movimento do real, um mistério que eclodirá. Nem toda filosofia ou
ciência explicará o ovo à galinha. O ovo é enigma51.
50
(LISPECTOR:1998, 49) 51
Esse parágrafo é um pequeno trecho de um ensaio de minha autoria acerca da pintura de título O que é isto, a pintura? Alguns apontamentos sobre diálogo com a cor em Van Gogh e Mark Rothko. In: Revista Terceira Margem ano XIV Nº 22 – jan-jun/2010.
73
[...] O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo (LISPECTOR, 1999, p. 46).
Na verdade, ao pensarmos tal questão, descobrimo-nos atados a uma
circularidade que afirma que a obra é ação de mecanismos, e que os
mecanismos por sua vez, são solicitados pela obra. A obra não origina os
mecanismos, tampouco estes originam a obra, ao menos não sozinhos. “Ao
contrário, tanto os mecanismos como as obras são, cada qual à sua maneira e
na reciprocidade diferente de sua proveniência, por um terceiro, pela
originariedade da criação” (LEÃO, 1977, p.189). A necessidade da Obra: Ser
criada. A necessidade do artista: Criar. Ambos, obra e artista, movem-se no
operar de uma força maior: A criação.
Ainda acerca dos mecanismos, Carneiro Leão nos diz que na fabricação
de um instrumento o operário é preso à funcionalidade dos materiais, se
pretende fabricar uma lâmina que tenha corte preciso, elege o aço, que
desaparecerá sob a forma de faca, ao precisarmos utilizar a faca lembraremos
menos do material que lhe deu forma ou de quem o forjou, que de seu corte, de
sua funcionalidade. Quando se pensa em um sapato que ofereça durabilidade
e conforto, escolhe-se o couro, e o mesmo processo se dá. Nem aço nem
couro aparecerão na funcionalidade do uso, estarão transfigurados em faca e
calçado. Já na obra de arte algo distinto acontece, é ela quem determina o
material, e ao inverso do processo de fabricação de objetos, não o faz
desaparecer, mas o eleva a si mesmo na tensão cultura e natureza. Na
criação, obra e mecanismos pertencem ao âmbito das relações. É a criação
quem determina como e em que grau se dará as relações. Sempre haverá a
articulação de cultura e natureza em uma obra e, além disso, destino, ou seja,
aquilo que estabeleceu o próprio de cada artista e determinará a poética de sua
produção artística. Nesta dinâmica da criação, a obra em se dizendo ao artista,
elege o material e através do material eleito e do fazer do artista a obra se abre
ao ver, vindo à presença. Na e através da obra, o material será elevado a si
mesmo, do mesmo modo em que o artista só chegará a ser artista através da
74
obra, do fazer. “Assim é na escultura que a lenha vira madeira, é na pintura que
a tinta se faz cor, é na sinfonia que o som se torna música, é na poesia que a
língua vem a ser linguagem”, (Ibid., Op. cit., p.190) e é a obra quem faz o
artista e não o contrário como alguns supõem.
O erigir em obra sobe sempre a escada de um fazer [...] tudo se cria na criação da obra. Toda criação é original por ser originária. Nos vórtices desta originariedade os mecanismos são como as escadas. Só se chega à obra pela escada dos mecanismos. Mas nunca se chegará à obra, se desde o primeiro degrau não se for jogando a escada fora. É que uma escada só é escada se não for somente escada e por isso deixar de ser escada desde que se tenha sido colhido pela originariedade da obra. Os mecanismos só se tornam veículos da criação de uma obra quando a criação libertar a obra dos veículos. Pois então a obra será veículo da criação (LEÃO, 1977, p. 190).
Os lençóis, cobertores e uniformes da colônia só se mostram como fio
(tecidos e bordados) no Manto, tais materiais não excedem a possibilidade de
base para a escada que o artista, no operar da criação, utilizará a fim de que a
obra seja. Bispo em gesto cadenciado, apropriando-se do material que as
condições oferecem (neste ponto há que se pensar a questão do destino),
destece o tecido vulgar dissolvendo aquela possibilidade ente-objeto; ao final
do processo há o aparecer, o re-vigorar, o devolver ao material sua
possibilidade ser-coisa: o vigor original, o fio. O fio sim será a escada para que
se alcance a realização em obra. A escada-fio por sua vez, tatuando em
bordados o corpo do Manto, desaparecerá, lá apenas haverá o vigorar do fio no
figurar da obra. No dar-se dessa transfiguração: escada-fio (ser-coisa) em fio-
bordados (ser-obra), outra simultânea se dá, dissolvendo o estigma da
condição de paciente mental. No obrar, no lançar-se no agir, na poesia do
laborar, o fundar da condição artista se sobreporá à condição de excluído. Na
tensão entre “razão” e “des-razão” estabelecida pelo sistema social, o fio e a
ação do real são um fundar sanidade – guiam o artista pelo labirinto. Bispo
caminha noo fio a guiá-lo. Na criação todo equilíbrio necessário à travessia.
75
No (con)figurar-se da obra, o cobertor ordinário da base acolhe o fio em
bordados, enquanto o “louco”, apropriando-se de seu próprio, chega a Ser o
que é: artista. Ali, no operar da criação originária, o fio que borda é fio outro, do
Tempo, da Memória, do Destino. Da roca das Moiras aquele que, no
(entre)tecer-se, dá corpo ao essencial da criação: a verdade como
desvelamento. Por tecelã: a Linguagem. Bispo não excede a condição de mão
a urdir, acata seu destino, isto lhe basta. A Linguagem em seu desvelamento é
a Verdade da criação, diante dela toda “subjetividade” não excede a escala de
nanopartícula de lápis em península. Na obra Manto da Apresentação,
percebemos no movimento do real e das questões originárias o desvelar do
Sagrado enquanto realidade e mundo.
5. 3. Poíesis e Tékhne - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Nos bordados que tatuam o corpo do Manto, o gesto cadenciado das
mãos falam em misto de delicadeza e dor, próprios da arte enquanto um fazer
que é a um mesmo tempo in-cisão e sutura. Mas a delicadeza dos bordados
não diz de fragilidade. No bordar, agulha e linha encerram a força da re-união
entre poíesis e tékhne, modos de vir-a-presença que a experiência moderna de
arte separou.
Entre os gregos tanto poíesis quanto tékhne, nomeavam o fazer
artístico. Tékhne inclusive seria o mais amplo entre os termos, designando de
uma forma mais dinâmica e universal do saber. Tékhne se refere ao saber
fazer, uma competência, que como nos diz Carneiro Leão “deixa o real realizar-
se em novos modos de ser” (LEÃO, 2010, p.81). Para um grego não significa
nem arte, nem artesanato “mas um deixar-aparecer algo como nisso ou aquilo,
dessa ou daquela maneira, no âmbito do que já está em vigor. Os gregos
pensam a tekhné, o produzir, a partir do deixar-aparecer” (HEIDEGGER, 2008,
p. 139). Já Poíesis, remete-nos para a produção em geral, no sentido de
76
produzir e deixar aparecer novas relações; mas também, para o tipo mais
completo e importante de produção: a poesia – forma consumada de todas as
artes52. Nos bordados do Manto da Apresentação, percebemos o vigorar de
poíesis e tékhne, na re-união originária entre o saber das mãos e a poesia.
Indo além, vislumbramos também o operar da Phýsis. Para um grego não havia
distinção entre poíesis e tékhne, mas sim entre estas e a phýsis, contudo, esta
distinção nunca foi da ordem da exclusão, mas ao contrário, da inclusão.
Precisamos, como nos diz Carneiro Leão, aprender a ouvir a palavra phýsis
nomear não apenas o natural, ou a natureza, mas também o sobrenatural, ou
seja: a história, a cultura, o saber, o mito.
5.4. O Próprio e a Realidade - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que
fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu
decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza
especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo
neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei
sendo especificamente humana.
Clarice Lispector53
Anteriormente dissemos que Bispo lançando mão do que lhe era próprio
pôs-se a obrar. Procuremos pensar um pouco melhor sobre o que vem a ser o
próprio, para não incidirmos em erro de entendê-lo como o Eu, ou como algo
subjetivo. O próprio não é o Eu. O Eu se constitui a partir da funcionalidade,
das funções que as conjunturas impõem. Já o Próprio é um dar-se do destino e
da história. Manuel de Castro54 nos diz que este dar-se acontece dentro de um
conjunto de relações e referências, mas não se reduz a relação com o meio ou
com a cultura. Ao contrário, vigora na e a partir da essência de si mesmo, ou
seja, vigora no ser, sem, contudo, excluir todas as dimensões de sua essência,
52
Segundo Platão nos ditos de Heidegger (Apud. LEÃO, 2010, p.81). 53
A paixão segundo GH p. 124 2º§.
54 Próprio. In: http://www.travessiapoetica.letras.ufrj.br.
77
ou seja, as genético-familiares, históricas, sociais, psíquicas, religiosas e
criativas. Somos uma amálgama de tudo, mas que ao mesmo tempo resguarda
no centro deste tudo, o Nada. Sabemos ser amálgama uma reunião. Se re-
uniu, antes estava disperso, havia distância entre. Importante considerar não
apenas o espaço que algo amalgamado ocupa, mas também o espaço que
habita e compõe a amálgama enquanto amálgama, ou seja, aquilo que se
reuniu. Há um vigorar de espaços, ainda que não visíveis ou não
compreensíveis, “entre” as partes reunidas. Há o vazio. Por este vazio o fluir de
toda possibilidade; é por estas frestas que o que nos é próprio flui, mas não em
um movimento de dentro para fora, como se houvesse núcleos de
possibilidades encerrados em caixas; tampouco seria um movimento inverso,
como um rio que corre de fora, vazando em reservatório interno. As
possibilidades do que nos é próprio é um vigorar a partir do Nada que habita os
interstícios daquilo que faz de nós o que somos, ou seja: nossa etnia, família,
história, lugar etc., enfim, todas as condições que nos foram doadas pelo
destino. É no vigorar deste Nada, que habita estas trincaduras ou minúsculas
fendas entre os fatores que nos constituem, que repousa todas as
possibilidades de sermos. Um Nada que é Origem e mistério.
O próprio irrompe desta conjuntura, firmando-se num querer poder, e
seu agir se firma na visão de um fim que busca realização, plenificação. O
eclodir do próprio se estabelece na combinação entre possibilidades e
condições. As condições são dadas pelo meio social, cultural, histórico,
familiar etc. Mas não operam isoladamente. Só se fazem férteis dentro das
possibilidades, que já vigem desde sempre vigem no que é próprio a cada ser.
Não basta condições de realizações propiciadas pelo meio, se não vigora no
próprio as possibilidades para o que se deseja realizar.
Nesse movimento de realização do que nos é próprio há o imperar de
necessidades. Castro nos diz que, no convívio e vivências sociais, além da
necessidade de plenificação do próprio, há ainda, na dinâmica de todo existir
humano, as necessidades conjunturais que também estabelecem seus fins. O
movimento do ser em sua travessia histórica-destinal se dá nesta disputa
78
estabelecida entre as necessidades e os fins do próprio e o fins e necessidades
conjunturais, onde sempre há um preço a ser pago por nossas escolhas. O Eu
inúmeras vezes se torna, revela-se, inimigo do próprio, porque em verdade é
um produto de outros. Não há singularidade no eu, pois este se compõe de
camadas sobrepostas, advindas do exterior que moldam sua funcionalidade
para a execução das funções que as conjunturas impõem. Conjunturas que se
ordenam em sistemas e que, por sua vez, impedem que o próprio de cada um
ecloda. O sistema, não raras vezes, impede que cada um chegue-a-ser-o-que-
é em plenitude e realização. Contudo, na obliquidade da presença da realidade
em nossa travessia, o próprio vigora nas frestas, nos interstícios de cada
sistema imposto pela “realidade” na qual estamos inseridos. Devemos estar
atentos ao duplo sentido do vocábulo realidade. Há aquela que conhecemos de
modo mecanizado, de engrenagens hostis, onde somos apenas uma roldana a
mais dentro de um sistema que nos comanda, mas há outra, ou melhor, há o
real que empobrecidamente também chamamos realidade. Haveremos sempre
de lembrar as palavras de Manuel de Castro ao dizer que: “realidade não é
meio natural ou social, não são as conjunturas. Realidade é o vigorar da
Essência do próprio. No e como próprio se dá a Essencialização da
realidade”.55 Não é a realidade que “edifica” o próprio, é no agir do próprio que
se dá o vigor da realidade.
Pensemos um pouco essa questão em Arthur Bispo do Rosário. Ao ser
diagnosticado louco, se torna “incapaz” para a execução de suas funções
dentro do sistema. Por ser considerado improdutivo é segregado, banido do
convívio social. A sociedade o julga e condena. Por sentença: reclusão e
solidão. O sistema que moldou seu “Eu” para o desempenho de funções
específicas – marinheiro, pugilista, servidor doméstico – e reconhece a
falência:aA psiquiatria o diagnostica como esquizofrênico. No entanto, no
movimento do real o aniquilamento do “Eu” pela esquizofrenia (que enquanto
doença, ou melhor, privação da saúde, mostra a perturbação da realização da
liberdade, sobre a qual refletiremos mais adiante) revela-se em Bispo ao
mesmo tempo como cura. Pois deste esfacelamento do eu (que na verdade era
55
CASTRO. In: Próprio. p. 1, 2º§.
79
produto de outros, e por isso “sujeito” paciente de tal ação), emergiu o próprio
em plenitude e realizações.
Bispo em estado de privação, foi arremessado de volta ao Caos, lá onde
vige a origem. Do mergulho em profundas e turbulentas águas, emergiu ao
largo das distorções impostas pelo sistema ou pela razão. À margem, pôde
apropriar-se de seu próprio. No movimento do real que aparentemente
aniquilava seu querer, em verdade se desvelou um querer poder, um querer
ser, e do Ser emergiu a possibilidade, ou devir artista. A possibilidade de
eclosão do artista é a presença do próprio do Ser sendo. Possibilidade que, no
movimento do real, da verdade enquanto alétheia, passa de presença que
repousa no velado, ao desvelado, mostrando-se no aberto do mundo. Diferindo
do eu (mosaico que se constitui de fragmentos de muitos) a presença é
singular. Sua singularidade é o vigor do velado do próprio, do desconhecido,
daquilo que ainda não se mostrara, e em não se mostrando é promessa,
possibilidade. A presença da possibilidade de ser artista, em Bispo do Rosário,
eclodiu da e na solidão do delírio. Dessa presença no velado do próprio eclodiu
a possibilidade do artista, que na força do agir enquanto poíesis e através dela
presentificaram-se inúmeras obras, inclusive o Manto, obra-lugar onde
podemos distinguir entre os bordados o caos e o cosmos, enquanto origem e
possibilidade de mundo.
Bispo do Rosário, já na condição de interno da Colônia, quando era
chegado o momento de sua Transformação56 – como ele mesmo costumava
chamar as “crises” – isolava-se por vontade própria em sua cela e mergulhava
no trabalho. A partir dos supostos surtos, cuidava com solidão e trabalho.
56
O diálogo e o trecho abaixo podem auxiliar no entendimento do modo de Bispo lidar com estas “transformações”: – Estou me transformando e quanto menos comunicação com o lado de fora melhor. -–Mas eu tenho que ver pelo menos se você está vivo – retrucava o guarda José Januário. [...] lá dentro ele ficava [...] funcionários volta e meia apareciam para checar se aquele interno desvanecido pela inapetência sobrevivia. Espreitavam pela fresta, ofereciam-lhe frutas e se iam. A cena era a de um copião com planos renitentes. Bispo estava sempre vivo, aplicado na arte dos bordados, objetos e esculturas minúsculas. O dono do mundo, daquele pedaço de mundo” (HIDALGO, 1996, pp. 88-9).
80
Heidegger, no belíssimo texto Por que ficamos na Província?57, diz que nas
grandes cidades o homem consegue isolar-se como mal consegue em outros
lugares, sem, contudo, experimentar de fato a solidão. O isolamento em Bispo
excedia ao mero estar sozinho, tratava-se de um experienciar a solidão, que
“traz consigo a força primigênia que não nos isola, mas lança toda a existência
na proximidade profunda de todas as coisas” (HEIDEGGER, 1977, p. 325). No
desvelar da loucura enquanto verdade do ser em Bispo e em seu modo
particular de buscar cura, percebemos seu “entendimento de que a solidão
acontecendo é a singularidade de só ser e não de ser só”58.
Bispo desaprendeu o social, o coletivo, o público e o hábito de ver e
interpretar conforme os padrões do sistema. Ao ensozinhar-se, singularizar-se,
fazer-se um, deu-se o restaurar da unidade. Aprendendo a ser só, re-aprendeu
a ser. No encaminhamento da solidão encontrou o lugar e a hora do ver
(FOGEL, 2007). Solidão em Bispo não diz de mórbida interiorização no
recolhimento e miudeza de um eu, isso seria doença. Em Bispo solidão é
escuta, é cura. Refletindo acerca do mito de Cura59 temos que este, como nos
diz Manuel de Castro, se manifesta no Cuidado com que nos lançamos nas
pro-curas. Pro-cura como um ocupar-se, que é o cuidado no mundo, em meio
aos entes, às coisas. Na pro-cura, deu-se a solidão do obrar como cura.
Realizar solidão em sua existência foi desaprender o usual, o vulgar, e atender
à exigência, à necessidade do fazer, re-criando o próprio caminho. Andou e viu
57
(HEIDEGGER, 1977, p. 325). 58
CASTRO, Manuel. In: Próprio. Op.cit. 59
Mito de Cura: “Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe da forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter [Zeus]. Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma da argila, o que ele fez de bom grado. Quando porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra, querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno [Cronos/Tempo] como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu equitativa: “Tu Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi Cuidado quem primeiro o formou, ficará sob seus cuidados enquanto ele viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar Homem, pois foi feito de “húmus” terra fértil)”. In: CASTRO, Manuel. Mito de Cura: O apelo e Escuta da Procura. Disponível em: http//www.travessiapoetica.letras.ufrj.br.
81
através do agir o propiciar do desvelar da verdade enquanto mundo nas obras.
O artista percebeu que só poderia ser, pondo-se a caminho, aceitando a
viagem, a experiência.
No ritmo de trabalho no qual se lançou, ocultava-se uma lei que ele
próprio possivelmente desconhecia, mas que ainda assim obedeceu. A seu
modo percebeu a vida como um jogo de Mando e de Obediência60. Bispo
obedeceu e assim se descobriu capaz de criar para além de si, em dinâmica de
autossuperação. Este jogo de Mando e Obediência está presente não apenas
na vida de Bispo, mas em todas as vidas entregues à criação, na própria vida
enquanto criação. Neste jogo, que atende pelo nome de destino, avistamos
Moira61, a que podemos chamar “nossa medida”. Moira é algo que nos mede
por ser a essência de todo agir. Somos medidos por nossas ações, pela força
do agir e do Ver. Em encontro ao nosso pensamento, o saber do poeta num
dos versos de Caeiro nos esclarece a questão:
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no universo Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer Por que eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho de minha altura (PESSOA, 1997, p. 22).
Por Moira devemos entender:
60
Esta frase é título de um ensaio, In: Assim falou Nietzsche III: Para uma filosofia do futuro. pp.58-62. Todo o desenvolvimento que realizaremos deste tema gira em torno das questões levantadas por Gilvan Fogel no ensaio citado. 61
O Dicionário de Mitologia Greco-romana traz o seguinte verbete acerca das Moiras (ou Parcas, seu nome latino): [...] Parca significa “parte” – de vida, felicidade, de infortúnio. Cada ser humano possuía sua Parca. Depois essa abstração tornou-se uma divindade, assemelhando-se a Quere [...]. Aos poucos, desenvolveu-se a ideia de uma Parca [Moira] universal, dominando o destino de todos os homens. E finalmente, passou-se a conceber três Parcas. Filhas de Júpiter e Têmis, ou segundo outra versão, da Noite, personificavam o Destino, poder incontrolável que regula a sorte de todos os homens, do nascimento até a morte. [...] Seus nomes correspondem a suas funções: Cloto, a fiandeira, tecia o fio da vida de todos os homens, desde o nascimento; Láquesis, a fixadora, determinava-lhe o tamanho e enrolava o fio, estabelecendo a qualidade de vida que cabia a cada um; Átropos, a irremovível, cortava-o, quando a vida que representava chegava ao fim [...].
82
[...] uma medida que nos mede, mas da qual não temos domínio, isto é, não a temos, somos possuídos por ela. E só nela e por ela podemos chegar a ser livres, uma liberdade conquistada a cada dia que a moira se torna nosso destino, livremente vivido e experienciado (CASTRO, 2008 – Moira)62.
Moira não é uma escolha. Não passa pelo crivo da vontade ou da
subjetividade. É, segundo palavras de Castro, um deixar-se tomar pelo
extraordinário, é Obediência. É um deixar-se possuir pelo acontecer poético,
mas não como êxtase É tão somente um amadurecimento do poético tomando
corpo no que nos é próprio. Ser tomado por Moira e deixar-se Ser, e “Ser não é
uma opção, porém, um vigilante e pleno deixar acontecer” (CASTRO, Op.cit.).
Se deixar-se tomar por Moira é Obediência, pensemos então o que esta
palavra nos diz. Voltando nosso olhar nesta direção, encontramos o
pensamento de Gilvan Fogel a nos esclarecer que, tanto em alemão quanto em
português, Obedecer provem do vocábulo “ouvir”. Em alemão “gehorcher”
(obedecer) e “Gehorsam” (obediência) vêm de “hören” e, mais, de “horchen”,
que diz auscultar. O mesmo se dando em português, onde obedecer vem
igualmente de ouvir “audire‟, “ob-audire‟. Portanto, percebemos que obediência
é escuta (FOGEL, 2001, p. 58). Ao ouvirmos as palavras mando e obediência
juntas em uma sentença, errônea e apressadamente, poderíamos entendê-las
como prepotência e subserviência. Busquemos então, na fala do filósofo,
escutar o que cada uma delas nos diz:
Escutar (obedecer) quer dizer recolher-se em si, isto é, no interesse e identidades próprios (e isto quer dizer o “si”) é fazer com que tal interesse, tal identidade venham a ser o que são. Escuta é a via pela qual se dá participação vital, ou seja, o caminho que é o concretizar-se da experiência (FOGEL, 2001, p.59).
62
Disponível em: http// www.travessiapoética.blogspot.com
83
O escutar e obedecer em Bispo não deve ser confundido com a
dinâmica dos delírios, das alucinações, do modo como tem sido pensado pela
psiquiatria clássica, algo com o que dialogaremos mais adiante. Em nosso
estudo, compreendemos a escuta do artista como um mover-se que é
realização. É a escuta do apelo do que lhe é próprio. Do próprio, que conclama,
convoca ao fazer, ao obrar, e ainda que isto se dê em meio ao revolto oceano
do delírio, não é o delírio que convoca. Haveremos de considerar a hipótese
inversa. O delírio, as vozes são o efeito “colateral” dessa convocação. No caso
específico de Bispo, artista e portador de esquizofrenia, há um duplo convocar:
o de seu próprio e o das coisas, que pode tê-lo conduzido ao delírio, como
oportunamente refletiremos ao pensar sua condição de ser esquizofrênico.
Reconhecendo no obrar do artista a obediência, há que se pensar o
mando. Ateremos-nos uma vez mais ao escrito em que Gilvan Fogel cita a
vida segredada à Zaratustra:
[...] mandar é mais difícil que o obedecer. E não só porque quem manda carrega o fardo de quem obedece e porque este fardo facilmente o esmaga. Uma tentativa e um risco mostrou-se-me em todo mando e sempre, ao mandar, o vivente arrisca a si próprio (Apud. FOGEL, 2001, p. 59).
Partindo desta frase o estudioso completa:
[...] Mandar é dar ocupação, definir tarefa e assim, determinar destino ou fazer vida. “Fardo” é peso, é o que pesa e que, quando se precisa carregar é difícil, duro, penoso de suportar. É também o que é de responsabilidade ou de dever próprios. E isto é principalmente e, sobretudo a própria vida e o próprio destino, com todos os afazeres e cargas. Àquele que é mandado é dado, por parte de quem manda, destino e vida. Assim, por isso, quem manda ao mandar, “assume, toma sobre si o destino, a vida do outro – o seu “fardo”! (FOGEL, 2001, p. 59).
Acompanhando o pensamento, temos que, o grande perigo do mandar
consiste em que quem manda toma para si o fardo, o destino do outro,
84
podendo desviar-se (a custa do peso, da sobrecarga) de sua tarefa, ou seja,
seu próprio destino. Enfim, perder-se de si mesmo. E nisso consistiria a
servidão. Assim percebemos ser mais servil quem manda do que quem
obedece. O mando se daria por arrogância, por compaixão, ou ainda
autocompaixão. Se ao mandar desvia-se o mandante de seu caminho ao tomar
para si o fardo do outro, pode estar, por escolha, afastando-se do difícil e
penoso ato de cumprir o próprio destino. Mandando usaria o outro como
pretexto para desviar-se de si mesmo.
Bispo obedece. Mas quem obedece, obedece a algo ou a alguém.
Ouve convocação de sete anjos em nuvens especiais que mandam
inventar toda a sua obra, todo o fazer humano sobre a terra. Escuta
na voz dos anjos a voz do outro e obedece. Em verdade auscu lta o
outro de si mesmo. Capacidade de esquizofrenia artística: Outrar-se.
No outro de si mesmo reconhece seu próprio, soterrado até então na
e pela servilidade ao sistema. No operar da arte e da vida em Bispo,
após o momento inaugural de seu devir artista que eclode em surto
esquizofrênico, o mando e obediência vem de si para si. Todo mando
configura-se como tentativa e risco, pois mandar é arriscar a si
próprio (FOGEL, 2001). Bispo não foge ao jogo, muito menos ao
destino, cumpre-o, ainda que este lhe seja reservado o fardo
dobrado. Não teme em se jogar no fazer que se mostra no horizonte
do delírio como feroz necessidade. Lança-se na direção de um poder-
ser que se revela na urgência de um precisando-ser.
No dia 22 de dezembro de 1938, Bispo foi convocado. No calor do
delírio, no vivenciar daquela experiência, a urgência da decisão: inventariar o
universo. No momento em que tal decisão se mostrou como absolutamente
necessária, seu próprio eclodiu enquanto possibilidade artística e com ela a
certeza de que viver estende-se desde o já feito e conquistado até o por-fazer.
Bispo escutou e decidiu co-responder ao chamado, ao mando e então se deu a
autossuperação. Esta autossuperação que tem origem no jogo de mando e
obediência se determina como decisão. Busquemos o vigor desta palavra.
Ainda segundo Fogel, Decidir vem do latim decido, decidere, que por sua vez é
85
derivado de caedo que quer dizer cortar, separar cortando. “Quem decide
„corta-se‟, „separa-se‟ do que é ou disso em que está, e se lança para o que
será, para o que virá, para o que precisa ser ou vir-a-ser” (FOGEL, 2001, p.
60).
Bispo percebeu haver o feito e o por-fazer em seu destino, e que para de
fato ser, seria preciso fazer. Decidiu e na decisão o corte, a separação de si em
dois, nada mais seria como antes, ele não seria mais como antes. Rompe-se o
eu, e com ele memórias, restando apenas dentre elas, a originária. Do Caos
emergiu o fio, a obra, que promoveria a sutura do humano no homem Bispo,
pois a decisão rompe, mas, também reúne, junta, integra. Na decisão, funda-se
o artista. Descobre no fazer, no criar, a mola propulsora do ser. “O fazer dita o
viver, a hora da vida, o tempo do „Espírito‟”. Esse tomar a decisão trata-se de
um “decidir o que será desde o que é ou o que se é. É um projeto, um
programa de ser, que é a possibilidade ou o poder ser que se mostra. Decidir é
sustentar o vir-a-ser deste poder-ser da possibilidade de possibilidade que é a
vida, o existir” (FOGEL, 2001, p.61). Mandando e obedecendo a si, foi tomado
por seu destino. Entregando o eu em oferenda, acolheu o próprio. Aceitou o
que lhe era próprio e na decisão percebeu o ritmo, a cadência do devir.
Simplesmente sendo, compreendeu em plenitude às possibilidades da
existência humana, redescobriu o tempo na dinâmica do existir, no ciclo viver-
morrer.
5. 5. O figurar do Manto e o Espaço-Tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Na busca por encurtar distâncias o homem traça retas com as quais
loteia o tempo, julgando assim vencer a espaço-temporalidade. Crendo deixar
atrás de si as maiores distâncias, segue, avistando adiante aquelas que se
86
tornam a cada dia mais curtas. Vencendo longitudes julga estar mais próximo.
Mas mais próximo do quê?
Heidegger nos diz que diminuir distanciamentos não traz proximidade.
Afinal, “Proximidade não é pouca distância”.63 Ao buscarmos vencer o espaço,
fomos instrumentalizando o mundo e assim empobrecemos as experiências.
Tal busca culminou com a distorção da percepção de algo essencial como o
tempo, o verdadeiro Tempo, aquele que constitui o tecido de nossas vidas. Na
sede por aproximar os longes, fomos gradativamente nos afastando do outro e
de nós mesmos, e apesar de toda distância vencida o que se cultivou e ainda
se cultiva é uma progressiva ausência de proximidade entre os seres. No
Manto, obra-lugar, haveremos de exercitar o pensamento nos deixando tomar
pela questão Espaço-Tempo.
A relação real, originária, entre o homem e o espaço é um habitar, um
deixar habitar que se dá no construir. O figurar do manto é um deixar-habitar, é
construção poética. Na plasticidade da obra avistamos a comunhão entre
presença e vazio. Na circularidade de sua presença no espaço podemos entre-
ver o Tempo em dobra poética. Ao pensar o Manto no espaço, uma obra
plástica, dizemos de figurar e não de forma. Mas por quê?
O verbo figurar aqui não é escolhido ao acaso, mas sim por ser este, a
nosso ver, mais pleno que a expressão “forma”. No Figurar entrevemos
contornos do inapreensível, nele se estabelece o limite entre o que se doa ao
ver e aquilo que ainda se vela. Toda figura diz do vazio. É o vazio e não o
espaço que possibilita todo figurar. A figura64, em seu acontecer, configura o
espaço, ao mesmo tempo em que remete ao vazio que a possibilitou. Toda
obra nos diz do vazio. O vazio é doação, sem ele não há figura ou forma. No
figurar da figura-questão, ou seja, da obra, o vazio opera, mostra-se como
63
(HEIDEGGER, 2008:143). 64
Para melhor entendimento da palavra figura no âmbito das questões originárias ver:
CASTRO, Manuel Antônio de e outros. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet.
Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br.
87
condição para que a obra seja. É o vazio que possibilita toda presentificação;
sem vazio não há presença.
A circularidade poética do tempo vem à presença no figurar do Manto, o
tecido en-formado traz em si a con-formação do círculo. No desenho que o
figurar delineia no Espaço, um aceno: entrevemos a ciranda, movimento
sagrado da quadratura: Céu, Terra, Mortais e Imortais65. Todo quadrado em
movimento é círculo. Céu e Terra nos dizem do Espaço, Mortais e Imortais do
tempo. No Manto, Tempo e Espaço se fazem um. Os mortais, segundo Martin
Heidegger, habitam, resguardando a quadratura em sua essência. Habitam na
medida em que salvam a terra. O pensador revigora o verbo salvar, resgatando
seu antigo sentido, onde diz não apenas do livrar dos perigos, mas também:
“deixar alguma coisa livre em seu próprio vigor” (HEIDEGGER, 2008, p. 130).
O pensador nos questiona acerca de como os mortais trazem à plenitude este
habitar, neste sentido de resguardar, salvar, deixar ser livre em seu vigor. O
estar do homem jamais seria um habitar se for tão somente estar sobre a terra,
diante dos deuses e junto aos mortais. Habitar diz de um demorar-se junto às
coisas.
O habitar preserva a quadratura naquilo junto a que os mortais se
demoram: nas coisas (Ibidem, p. 131). As coisas abrigam em si a quadratura,
mas apenas quando repousam nelas enquanto coisas, seu vigor. Mas de que
modo, seguindo por este caminho, podemos entender o Manto como um
deixar-habitar? Segundo Heidegger, quando um mortal protege e cuida das
coisas em seu crescimento está habitando. Quando edifica coisas que por si só
não crescem, quando obram, habitam. Para o pensador cultivar e edificar é
construir. Construir é habitar, agir que preserva nas coisas seu vigor enquanto
coisa e assim a quadratura. No Manto entre-vemos o Céu a Terra os Mortais e
os Imortais, pois Bispo, no deixar-se tomar pela obra, preservou nas coisas,
escadas ou mecanismos, seu vigor; preservou a quadratura. Já a condição de
deixar-habitar que vige no Manto, provém da essência da obra enquanto obra,
de sua vigência poética, oferecendo-nos em seu aberto, enquanto mundo, o
65
Acerca da Quadratura, ver ensaio: A Coisa de Martin Heidegger (2008, p. 143-164).
88
que ali foi cuidado, preservado. O Manto-mortalha, pela força das questões
propostas em seu acontecer no espaço, propicia estância ao vigorar da
quadratura. Espaço (Raum, Rum), segundo Heidegger, diz de algo arrumado,
liberado para um povoado. Espaço sendo aqui o que é delimitado, o que está
num limite. Devemos entender limite em seu sentido grego, “O limite não é
onde uma coisa termina, [...] mas de onde alguma coisa dá início à sua
essência” (HEIDEGGER, 2008, p. 134).
Para tecer e circular pelo espaço-obra, Bispo vê no fio azul um Fio-
ampulheta. Diante da obra-lugar Manto, também nós seguimos em direção ao
futuro (in)certo, lá onde experienciaremos a verdade que no Manto se desvela,
no tempo de nossa apresentação. Nos bordados há o operar de tempo outro, é
o tempo da narrativa, aquele que não acompanha o veloz das ruas. Manuel de
Castro nos diz que narrar é sempre especular, colocar um espelho diante do
outro e de si mesmo. Diante da obra de arte estamos sempre diante de um
espelho que nos reflete. Nessa reflexão há bem mais de nós do que supomos
conhecer. Este espelho nos acena a possibilidade de reflexão, pensamento. O
narrar é o especular que faz eclodir em nós o que nos é próprio. O Manto narra
a espera, fala da vida e da finitude. Nele todo um horizonte de experienciações
se abre ao Ver. Castro, em ensaio intitulado Presença e Forma, diz-nos que “a
palavra ex-perienciação forma-se do grego eks-peras. Onde Peras diz do que
no eclodir chega ao limite. Já o eks indicia o que já desde sempre dá o impulso
para fora, para além, isto é, o não-limite”. Assim temos que o narrar carrega a
sabedoria do que é. Bispo narra experienciando e este narrar é saber-se um
acontecer poético. É chegar a ser o que é. Castro esclarece que os gregos
denominaram a isto Morphé, ou seja, eclosão do que é, desvelamento, verdade
e realização. Morphé não é o mesmo que forma, pois forma é algo funcional
que se dá na ordem dos utensílios. Forma diz de finalidade. Morphé se dá
juntamente com o télos e este diz de sentido. A obra de arte tem sentido, não
finalidade. O Manto, ainda que produzido para ser mortalha, uma finalidade,
excedeu-a, transbordando em infindáveis sentidos. O Manto, enquanto veste,
remete-nos aos aparatos dos ritos litúrgicos, ritos que atualizam os mitos. O
Manto, em seu sentido e em sua morphé, diz do sagrado.
89
5. 6. O Tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
As obras que através de Arthur Bispo do Rosário vieram à presença,
especialmente o Manto, revelam uma desconexão com o tempo como é
costumeiramente entendido, ou seja, com a noção apenas cronológica que
dele temos. O manto nos reconduz a uma experienciação do Tempo em sua
essência. Há nessa obra, e de um modo geral em toda obra de Arte, o vigorar
de uma temporalidade outra, originária, na qual estamos imersos, mas que, no
entanto, ignoramos. Possivelmente por conta do condicionamento ao qual
fomos submetidos desde o fundar da modernidade, que gradativamente foi
“transformando” a realidade (ou a ideia que dela temos) em produto de
subjetividades calcadas nos ditames da “Razão”. Olhar o Manto é aceitar o
convite à experiência originária, é reaprender o tempo, deixando-se deslocar do
condicionamento que nos massacra e cambiar na percepção que distorce o
real por outra que busca apreendê-lo não como quem o observa, mas como
parte integrante dele, vivenciando-o em seu sentido essencial. Ver o Manto é
desacostumar o olho pragmático, que fixa o linear e que da circularidade só
conhece à abstração do desenho que o movimento dos ponteiros esboçam nos
inúmeros relógios dos quais dispomos, no desejo vão de controlar aquele que
lutamos para que não se esvaia.
Para pensarmos a Arte manifesta em obra, precisamos pensar o Tempo
de um modo poético. Sobre esta questão, Manuel Antônio de Castro66 nos diz
que, em sua essência, o Tempo nas Artes é mítico-circular. Há uma tensão
que se estabelece entre mito e rito e que instaura todo o movimento de
circularidade. Por mítico podemos entender o poético, cujo mito abriga seu
vigorar inesgotável. Assim, nas artes, a impulsionar as questões temos o mito;
sendo as obras, enquanto ritos, uma busca por responder as questões que se
colocam. O poético, por sua circularidade, recoloca sempre as mesmas
66
In: Época e destinar-se do Ser, 2010.
90
questões, contudo, de diferentes modos. Como o dia e a noite a se repetirem
continuamente, e ainda assim inteiramente distintos entre si. Completando a
ideia da retomada do dia e da noite em eterno retorno (numa aparente, contudo
diferente, sucessão do mesmo) temos as estações, em repetição cíclica, a
remeterem por sua vez à maior dentre todas as questões, aquela que move
todos os seres humanos: a finitude – nascimento e morte. Acompanhando a
agradável certeza de um constante re-nascer de seres sempre genuinamente
diferentes a perpetuarem nossa espécie, há a dolorosa consciência de nossa
morte. “Morrer significa: saber a morte como morte. Somente o homem morre,
o animal finda”. (HEIDEGGER, 2008, p. 156). A cada nascimento uma morte
anunciada. Viver-morrer é a realidade onde desde sempre estamos jogados.
Somos mortais. E somos menos por nossas vidas findarem e mais por que
sabemos da morte como morte. Somos mortais antes de findarem nossas
vidas. Nesta visível circularidade mítico-poética da existência, temos a mola
propulsora de todo criar. Os mortais são assim chamados por serem seres para
a morte. O homem é mortal por experienciar a morte. O homem morre. Morrer
significa saber a morte como morte, ter consciência dela. O animal não tem
consciência da morte ou de sua hora no tempo. Sendo a morte o cofre que
guarda o Nada, ou seja, aquilo que ainda não foi dado, aquilo que de nenhum
modo é ou está sendo, os mortais não são mortais por morrerem suas mortes,
mas por sabê-la como morte, e assim vislumbrarem o mistério que resguarda o
ser.
Uma obra é digna de ser chamada Arte quando tem potência de vida
mesmo ao falar da morte. O manto-mortalha é explosão de vida, vida que ali se
expõe, convidando-nos ao pensamento na unicidade circular do habitar o
espaço-tempo: presentepassadofuturo. No mais, vertigem.
O tempo mítico-poético é o da memória, inteiro, não fragmentado, onde
não há linearidade tripartida em presente, passado e futuro. Esse tempo não
passa, nós passamos por ele. Mas, iludimo-nos com o contrário e buscamos
ajustá-lo à nossa distorcida percepção da realidade. Para pensarmos o mito,
91
precisamos ajustar o pensamento, entendendo que em si todo mito é a
manifestação de diferentes leis da realidade.
Os mitos são a memória operando concretamente nos ritos. Entre mito e rito há uma referência profunda, mas não complementar. Enquanto o rito se completa e termina no ritualizar de cada data e festa e jogo, o mito como que se vela em seu vigorar, jamais deixando de operar numa complementariedade [...]. Todo mito coloca questões ou leis a que tudo está submetido, e jamais explicações de ordem funcional ou complementar, pois para o mito não há um sistema prévio. Só há complementaridade entre conceito, dentro de um sistema operacional da realidade. As leis vigoram por si e não na dependência de relações ou funções, sejam de que ordem for (CASTRO, 2010, Época e destinar-se do Ser)67.
5. 7. Memória
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - (...) Então – ao ter que me entregar ao Nada – o milagre: senti como alimento no gosto da boca o sabor do Tudo
68.
Clarice Lispector
Pela obra-manto passeiam cânticos visuais de memórias – talvez em
ecos da infância perdida em uma das muitas curvas do caminho ou quem sabe
em uma das fendas da alma “esquizofrênica”. Há ainda outra memória, aquela
que convida ao pensar, remetendo a um tempo mítico-originário. O
inventariante não recorda quem foi antes da convocação por sete anjos. Escuta
o apelo e isto lhe basta: No dia 22 de dezembro eu vim.
Da força do esquecimento das lembranças em Bispo emerge o pulsar da
memória originária. Futuro, passado e presente – O Cosmos redescobre sua
origem no Caos, temporalidades implodidas figuram enformando o manto. Da
fonte originária que alimenta o rio das experienciações, vivências e devires
emergem em visualidades múltiplas, que reunidas em obra plasmam a força
67
Disponível em http//travessiapoetica.letras.ufrj.br. 68
LISPECTOR, 1999, p.136.
92
das raízes. Raízes profundas, inalcançáveis, deitadas em abissais regiões.
Mas que ao irromperem no território da obra, fortalecidas em caule e tronco,
abre-se a um lançar-se-aos-céus em frondosos galhos-flor. Bordados que
dizem destas terras profundas. Neles avistamos indistintos pedaços do
Sergipe, um rio de muitas voltas, que em língua Tupi diz Japaratuba, o artista
navega estas águas impulsionado pelo sopro de Mnemosýne.
“Mnemosýne é para um grego palavra e realização criativa”.69 Nome de
uma titânida de mito imemorial recolhido por Hesíodo, filha do céu e da terra.
Por mito imemorial, Carneiro Leão diz que devemos entender uma narrativa do
pensamento que se consolida em nosso modo de ser e estar na Linguagem –
que “arrasta consigo a experiência inaugural de todo relacionamento criador,
que deixa ser, que faz aparecer o real em sua epifania”.70 Em cada mito a força
de um apelo, um princípio de transformação. Na palavra Mnemosýne reside a
concentração da Linguagem, a condensação do pensar, posto que para um
grego, as realizações humanas tem origem no furor do pensamento, furor que
as originam e mantém. Contudo, pensamento como memória ontológica,
originária, não como mera representação da consciência, a operar apenas no
consciente para que respondam ao real com uma imagem pronta. Na memória
ontológica há o dar-se e velar-se. Na dinâmica do pensar há o vir-a-ser e o
retrair-se. Por isso vige na memória, em todos os seus aparentes níveis e
desempenhos, a presença inaugural do esquecimento.
A lição do mito primordial de Mnemosýne, a memória criadora, é, pois, a entrega de uma experiência primigênia, a experiência arcaica dos primórdios. Um grego vive e experimenta no mito da memória a densidade inaugural em que a realidade lhe chega nas realizações históricas de suas vivências, nos cultos, no poder, na ciência, na técnica, na arte, na produção etc. (LEÃO, 2003, p. 144).
Sabemos que no curso de nossa vida, de nossa história, há o operar de
diversas memórias. A esse respeito Carneiro Leão nos diz que entre elas
69
(LEÃO, 2003, p. 144). 70
Ibidem, p.145.
93
temos: uma memória individual que registra percepções; “uma memória
coletiva que aciona possibilidades comunitárias e convoca experiências de
participação” e, uma outra ainda, “a memória histórica, monumental, que
celebra a continuidade das transformações e as consagra para o futuro”
(LEÃO, 2003). Nas palavras do filósofo, é necessário despertar para a questão
de que estas “memórias” nada mais fazem do que reter fatos e conservar
dados a partir de um padrão de combinação e derivação. Ele nos esclarece
que, sendo toda derivada uma dependente, tais memórias seriam, em verdade,
memória mecânica, tal qual a de um computador, que precisa ser
constantemente alimentada, e ainda assim apenas reproduz o já produzido.
Seu operar é da ordem das lembranças, consolidação, para que o passado não
passe. No âmbito de atuação destas memórias o esquecimento seria algo
negativo, denotando falha no processo de armazenar, combinar e repetir.
Contudo, se apenas assim entendermos memória e esquecimento, estaremos
de fato é nos esquecendo o mais importante ao deixar que nos escape a
Memória Criativa, que realiza viagens pelas estâncias da linguagem, sendo
entre as memórias a que possibilita novas conquistas em nosso tempo histórico
e biográfico.
O esquecimento é salutar à condição humana. Esquecendo-se o já
produzido somos impelidos a lançarmo-nos em busca do novo, de novas
possibilidades e realizações. Há presumida em todas as memórias que regem
os fatos, esta outra memória, a originária, que é a fonte a alimentar toda
criação e de onde jorram todas as possibilidades.
Temos, assim, operando na presença de toda realização humana dois mecanismos e duas memórias: a memória do passado que não passa, com o mecanismo de reprodução do já produzido, cuja falha é esquecer fatos, dados e conteúdos, e a memória do futuro com o mecanismo de produção, em cuja falta reina a compulsão da repetição. O esquecimento da memória é tanto negativo quanto positivo. O esquecimento negativo impede a produção interativa da mesma coisa. O esquecimento positivo desencadeia a produção inaugural nas transformações “O esquecimento da memória” (LEÃO, 2003, p. 144).
94
Do esquecimento emerge o berço do artista, num aceno de Rei mouro,
em manto vermelho-encarnado cravejado de sublimes bordados: a Chegança,
folguedo marítimo das terras em que foi menino. O artista, em seu
esquecimento, carrega os primórdios em andor. Do popular, o sagrado e
profano se entrelaçam em arfante dança, e o apelo se corporifica em poesia.
Um manto tecido em estesias e sacralidade. Direito-Avesso.
No direito do traje, a alma-corpo do Manto. Ao dizermos corpo, chega-
nos frase de Nietzsche, no Zaratrusta:
Sou corpo e alma – assim falou a criança. E por que não se deveria falar como as crianças falam? Mas o desperto, o que sabe, diz: sou todo e inteiramente corpo e nada além disso; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo. O Corpo é a grande razão (Apud. FOGEL: 2010, pp. 8-9).
No corpo do Manto muitos fios se entrelaçam. Ao vê-lo, percebemos no
inventariar a vida em bordados e franjas toda experiência em relato: da
abstração matemática da realidade em arábicos números à concretude da
existência nos brinquedos de criança. Bordados vários. Redes: da dor na pá do
mertiolate, do riso na cesta do basquete, do sustento na tarrafa da pesca.
Dado, Dominó e tabuleiro, a vida em jogo. O jogo da criação e o sentido da
existência. E aqui o fragmento 52 de Heráclito se faz presente: “O tempo
criador é uma criança jogando dados, o reino da criação” (Apud. LEÃO, 2003,
p. 146). Jogo criador de Mnemosýne no modo de sermos.
A necessidade, quando no âmbito do jogo do Ser, transubstancia-se em
criação. Bispo é tomado pelo lúdico. A ausculta do apelo, a necessidade de
inventariar o universo da criação humana o separa do que devia ser no
horizonte das funções (homem comum a exercer o ofício de caseiro). Liberto
do “dever”, Bispo passa à simplicidade do Ser. No jogo de ser há diversão e a
diversão em Bispo é liberdade, Cura. Toda diversão não é dever é escolha.
“Divertir-se é separar-se do que se deve ser, porque diversão troca a
necessidade por liberdade” (LEÃO, 2003, p. 146).
95
No jogo de Mnemosýne Bispo é artista. A liberdade que alcança é
também transcendência. Ultrapassa a si mesmo, demorando-se nesta
ultrapassagem. Liberdade, em Heidegger, é a capacidade de transcendência
que o ser-aí tem de fundar-se enquanto funda mundo. No obrar a pintura
eclode o fundar do artista como artista. Na obra, o mundificar. Temos então
que: Liberdade é liberdade para ultrapassagem (transcendência) em direção ao
mundo. Lembrando que o homem só se torna livre estando a caminho,
fazendo-se ouvinte e não escravo do destino. Contudo, devemos ter o cuidado
de não reduzir a liberdade a um mero querer humano, algo próximo da
vontade. A liberdade tem, nas palavras de Heidegger, seu parentesco mais
íntimo com a verdade (não como correção, como nos chega através da
sofística metafísica), verdade como movimento do real em seu
desencobrimento. O que liberta é o mistério do velar-se e desvelar-se, o dar-se
do desencobrimento. Todo desencobrimento provém do que é livre, dirigi-se ao
que é livre e conduz ao que é livre.71
Bispo habita, e aceita o jogo da existência como limite. Na invenção de
ser, re-cria-se, e enquanto joga mantém os olhos no horizonte, esperando que
a morte, o não-limite de todo limite, doe-se ao ver. Borda. Nos bordados,
amores e vícios. Bússolas, trilhos. Muitos barcos e um mundo inteiro num globo
bordado. O globo no manto – Travessia. Todos os anseios e devires no
derradeiro traje. O artista Bispo sabe que viver é morrer e justamente por não
se fechar à questão, espera, Obra. No obrar em arte todo o universo humano
cabe em uma única mortalha. Olho o corpo-direito do manto e penso: “Como
será a primeira primavera após a minha morte?” 72. Vivências tatuadas no
corpo. Nos bordados agulha e fio suturam o humano. Na roca, a existência. A
vida, uma teia. Bispo percebe no fio, em flashes de claro e escuro, a transição
do nascimento à morte. Fio ampulheta na travessia do tempo. Fios. Destinos. O
entrelace. Mesmo sabendo dos muitos nós é impelido a habitar o vazio.
71
HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. In: Ensaios e conferências.
72 (LISPECTOR, 1999, p. 166)
96
Seguindo o fio azul destecido ao inverso de Penélope, poderíamos
avistar Teseu. Mas Bispo não anseia vencer o labirinto, mas vivenciá-lo. No fio
pelo qual se deixa conduzir em jogo de mando e obediência entre-vemos
Crono e Reia. Crono, o Tempo, mostra sua face na linearidade que conduz
adiante, na sucessão dos dias, dos muitos dias, ao longo dos cinquenta anos
de delírio inspirado. Na proveniência do fio temos o algodão, que eclodindo do
ventre da Mãe-Terra se doa ao homem, para no equilíbrio entre tudo que é;
permitir em sua maciez que a possibilidade tecelão do homem vigore. Em sua
saga da roca ao tear, diz-nos das moiras, senhoras de todos os destinos.
Pensar Crono e Reia no fio dos bordados implica perceber que da união entre
Tempo e Terra, além do milagre do algodão, avistamos no horizonte do mito o
nascimento de Zeus – a Luz que é fertilidade. Zeus nasce e, por escolha,
decide não matar o pai Crono, mas castrá-lo. A Luz que tudo reúne castra o
tempo. O faz tempo-circular. Na luz, através da luz , o fundar da circularidade
poética do tempo.
Zeus e Mnemosýne se uniram e desta união nasceram as Musas – a
referência. Da união entre Luz (fonte originária de toda criação) e Memória,
eclode toda Arte. Assim entre-vemos que: na essência da Arte não são as
Musas, mas o amor, Eros, que gera a unidade na presença de Luz e Memória.
Nas Musas a fala de Zeus e Menmosýne acerca do amor.73 No Manto, como
em toda obra de criação, há a tensão entre Eros e Thanatus. Na morte há o
desdobrar-se de Eros (pulsão de vida). Ela, a morte, jamais implica término, fim
de Eros; pois Eros é amor e o amor é força criadora e a força criadora é o que
propulsiona a Arte que é manifestação de vida em cada obra. Em cada obra,
um rito da Arte, funda-se mundo. A obra-Manto: rito a celebrar vida e morte.
73
Acerca da Mitologia: Anotações das aulas do professor doutor Manuel Antônio de Castro titular da área de Poética, na pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ/2010.
97
6. A Costura – ou sutura do ser - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 6.1. Manto da Apresentação - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Veste para um grego intempestivo.
No diálogo Fedro, ao falar do amor e da paixão, Sócrates reflete sobre a
loucura, e diz que esta não é apenas um mal, pois obtemos através da loucura
inspirada pelos deuses grandes bens. Diz que foi ao delírio que se deveu
purificações e ritos misteriosos que preservaram de males o homem realmente
inspirado.
Há sempre um temor a circundar a loucura, talvez por nos retirar do
confortável território da racionalidade onde se calca o pensamento ocidental
desde Descartes, no qual tudo é supostamente passível de medida. Pensar o
Manto da Apresentação, no entanto, implica rever certos pontos que são, para
alguns, suporte da crítica em nosso tempo. Obriga-nos a questionar se a
autonomia da obra, não teria sido seguidamente confundida com autonomia do
artista. Faz ruir a ideia da erudição como pré-requisito para a produção artística
contemporânea. Não devemos negar a loucura, tampouco confundi-la com
doença mental. Seguindo em inspiradas reflexões, Sócrates nos diria ainda
que, quem se aproxima dos umbrais da arte poética sem o delírio que é
provocado pelas Musas, julgando que apenas o intelecto o fará bom poeta,
caminhará pela imperfeição, pois a obra inteligente empalidece diante daquela
nascida do delírio (PLATÃO, 2007, p. 81).
Pensar a arte que eclode em Bispo implica em admitir que em via de
mão dupla, a esquizofrenia – doença mental que o segrega, condenando-o à
vida em colônia psiquiátrica – também é loucura, entendida como fuga da
98
norma, delírio inspirado, Arte. Pela esquizofrenia é condenado à segregação,
reclusão. Retiram-no do “mundo”,exilam-no de “seu tempo”. Por não mais
corresponder ao conjunto de leis “racionais”, razão que a tudo “ilumina” e que
rege o sistema social, dele é banido. Essa é a lógica que rege os sistemas.
Para cada um deles há um conjunto de leis a determinar padrões aceitáveis
para os homens que dele se pretendem integrantes. Tais leis determinam o
comportamento padrão aceitável. Assim, com padrões rígidos a determinar o
aceitável e o inaceitável, um mesmo sistema racional, montado pelos homens
para protegê-los, pode e acaba se voltando contra os próprios homens – como
fica explicitado no caso de Bispo.
Mas o delírio, a Loucura, concedeu-lhe espaço-temporalidade outra, a
da criação. Posto em perspectiva diversa, em ponto de vista deslocado do
usual, sua linha do horizonte se expande. Recebendo em plena face o feixe de
treva que provém de “seu tempo”, banido das “luzes sociais”. Condenado ao
“escuro” pela falta de “Razão”, Bispo pôde de fato ver o Tempo e a Luz advinda
de seu interior, fonte de todo criar. Luz que se dá a partir da re-união da
sombra e da claridade. E assim distinguiu os contornos de Céu, Terra e Mundo.
Desse, o Mundo, tornou-se inventariante, pondo-se a mundificar. Bispo, ao
“surtar”, torna-se aos olhos da sociedade, alguém sem função. “No predomínio
das funções domina a funcionalidade” (LEÃO, 1977, p. 54). Obras de arte não
são do domínio da funcionalidade racional. Se a força advém da funcionalidade
e se esta assegura poder, a condição de artista em Bispo nasce justamente de
um não-poder. É o belo que se manifesta como doação do vazio. Sob a Luz da
criação, no Manto, traje de gala de um “louco”, a consciência da finitude se faz
poema. No Manto a beleza de ser evoca, convoca e provoca o ser da beleza.
“O grego não conhece a sensação do belo, isto é, não conhece o belo como
sensação; o grego só conheceria o belo como manifestação simultânea de
beleza e feiúra, seja na sensação seja fora dela” (LEÃO, 2010, p. 80). Esse
relacionar-se com o belo e o feio, com a luz e a sombra, desloca Bispo e a obra
que através dele veio à presença, para o horizonte grego, onde a experiência
originária com a Arte não está no sentir o que é, mas em ser o que sente. O
artista entrega-se aos mistérios de Ser, onde não há uma estética a reger a
99
Arte ou o belo, há ontologia. Percebe ser o Ser já belo em si, por “reluzir nas
articulações das estruturas, por brilhar na harmonia de uma luminosidade de
claro e escuro” (LEÃO, 2010, p. 81). Em Bispo, a Arte se dá em gradações de
claro-escuro. O viajor-artista Bispo se prepara – em seu delírio é convocado a
inventariar toda a obra do homem sobre a terra, é convocado a inventariar o
mundo e levar ao criador no dia do juízo, ou seja, após sua morte – deseja ser
pontual a um encontro marcado ao qual (dizem) só pode faltar. Enquanto
espera, prepara o traje. Na grandeza deste traje-obra, percebemos um
simbolizar da sobrevivência do humano para além dos sistemas.
6. 2. A Loucura e suas dobras - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Em todo demente há um gênio incompreendido com
uma ideia que lhe luzia na cabeça e meteu medo, e só
no delírio pôde achar uma saída para os
estrangulamentos que a vida lhe tinha preparado.
Artaud
Abertura. Chamam a esquizofrenia curiosamente de “síndrome da alma
fendida”, como se a alma partisse e no centro do eu se instalasse uma
abertura. Apresenta-se neste momento a necessidade em dirigirmos nosso
olhar nessa direção. Acerca da abertura, pensada em sentido outro (no
possibilitar perspectivas e visibilidade do horizonte) temos:
Só nos é acessível o que se pro-sta aberto pela abertura. Só temos acesso àquilo para o que estamos abertos. [...] A abertura não nos abre apenas para o acessível. Também o acesso ao inacessível, como tal, nos é facultado pela abertura, que se exerce na própria diferenciação de aberto e fechado, de acessível e inacessível. Abertura não é assim uma coisa que se pudesse encontrar entre outras coisas. Abertura só se dá no movimento bruxoleante de, abrindo, vedar e, vedando abrir passagem. Neste movimento é que somos presenteados com a verdade
de nossa finitude (LEÃO, 1977p. 53).
100
Deixemos por hora esta questão da abertura ontológica e pensemos um
pouco a questão ôntica que se apresenta, ou seja, a esquizofrenia, para
retomá-la mais adiante. Gostaríamos de esclarecer, contudo, que não
pretendemos apresentar histórico desta patologia na história da psiquiatria,
tampouco nos embrenhar em escritos de diferentes autores acerca do tema.
Nossa tentativa em pensar a esquizofrenia refere-se exclusivamente ao
interesse relativo à questão de privação da liberdade que habitam os escritos
de Martin Heideggger nos seminários de Zollikon, como também os de Menard
Boss, especificamente a partir do estudo realizado pela psicóloga Ida Elizabeth
Cardinalli, que nos parece de extrema relevância para as questões avistadas
nas dobras do tecido que constitui a poética de Bispo. Pesquisa minuciosa
sobre esta patologia nos desvirtuaria de nosso propósito.
6. 3. Daseinsanálise - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Heidegger e os Seminários de Zollikon
A psicóloga Ida Elizabeth Cardinalli, em sua dissertação de mestrado,
posteriormente publicada em livro intitulado Daseinsanalyse e Esquizofrenia,
desenvolve um importante estudo sobre analítica do Dasein e as moléstias
psíquicas, dedicando especial atenção à esquizofrenia. Introduzindo o
pensamento que desenvolverá, esclarece que, ser-no-mundo é
reconhecidamente a fundamental condição do existir humano. O Dasein, no
modo de descrição de Heidegger, existe sempre num mundo de relações com
pessoas e coisas de maior ou menor proximidade (O ser-com). Na analítica do
Dasein a doença não mais será entendida como uma entidade formada por um
conjunto de sintomas que se determine previamente. Passa a ser entendida
como um modo de existir no mundo. Diz-se, na analítica do dasein, que alguém
101
está adoecido quando esta pessoa sofre de uma retração ou redução das
próprias possibilidades de realização. Entre os tipos de redução conhecidas a
mais comprometedora em relação à liberdade é a esquizofrenia. Antes de nos
embrenharmos pela questão da esquizofrenia enquanto privação ou redução
da liberdade, julgamos importante esclarecer, ainda que brevemente, o que
vem a ser analítica do Dasein, e o pensamento de Heidegger sobre o estudo e
tratamento dos descaminhos da mente humana.
Martin Heidegger vai ajustar nosso entendimento acerca das “doenças
da mente” ao definir que “as doenças físicas e psíquicas são privações na
realização do existir humano saudável” (CARDINALLI, 2004, p.21). Sobre este
tema realizou mais de vinte seminários em Zollikon na Suíça, entre os anos
1959 e 1969. Da afinidade intelectual entre ele e o psiquiatra suíço Menard
Boss surge novo modo de se pensar os problemas psiquiátricos ou psíquicos
que afligem o homem. Partindo das concepções desenvolvidas sobre a
constituição fundamental do existir humano como Da-sein, ou ser-no-mundo, o
filósofo irá propor o desenvolvimento de um novo modo de se pensar e tratar
as condições de privação de saúde. Este novo caminho para a psiquiatria
chama-se Daseinsanályse.
Heidegger, ainda no primeiro seminário em Zollikon, esclarece que,
primeiramente, precisamos entender o existir humano em seu fundamento
essencial, sendo necessário que se compreenda que este nunca é apenas um
objeto presente em um lugar qualquer. O existir humano consiste em
possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe falta e o atingem. Isto
constitui algo que não é apreensível pelos sentidos, pela percepção.
Todas as representações encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até hoje na psicologia e na psicopatologia devem desaparecer na visão daseinsanalítica em favor de uma compreensão totalmente diferente (HEIDEGGER, 2009, p.33).
102
Diz-nos que o existir humano enquanto Da-sein é “um manter aberto de
um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se
lhe falta a partir de sua clareira” (Ibidem.). Ao refletir sobre o conjunto de
sintomas das psicopatologias, afirma que o modo como a psiquiatria e
psicologia vem atuando é equivocado, especialmente por ignorar aquilo que
não se apresenta como sintoma. Esclarece que os fenômenos ontológicos
(relativos ao ser) ainda que não perceptíveis sensorialmente, são sempre
primeiros, anteriores aos fenômenos ônticos, ou seja, àqueles que se
apresentam a percepção e estão relacionados ao ente.
Heidegger contesta o que se toma por real e por ente no âmbito dos
estudos psíquicos. Segundo ele, Freud só julgou real e verdadeiro aquilo que
pôde ser subordinado a ininterruptas conexões causais de forças psicológicas.
Contesta também a afirmação do físico Max Planck que afirma que só o que
pode ser medido é real. Argumenta afirmando que há realidades impossíveis
de serem medidas com exatidão. Como exemplo, questiona-nos acerca da
tristeza. Como medi-la?
Na profundidade de uma tristeza falta totalmente qualquer ponto de apoio e ocasião para avaliá-la quantitativamente ou até medi-la. Numa tristeza só é possível mostrar como um homem é solicitado, e como sua relação com o mundo e consigo é modificada (HEIDEGGER, 2009, p. 118).
Isto nos faz pensar sempre acerca do aberto, da clareira. Afirma ser o
homem, abertura; e estar a um mesmo tempo no aberto. Mas esclarece que
abertura não é algo espacial. Diz que o homem ocupa o espaço, mas que o
ocupar o espaço pelo homem se dá no poder referir-se às coisas. Convoca-nos
ao pensamento quando diz que o aberto e o livre não está no espacial, mas
sim o contrário: o espacial que está no aberto e no livre. Esclarece que o
homem é no espaço diferentemente das coisas. O homem é a clareira do ser.
Clareira significa ser aberto.
103
O homem é a clareira do ser. Mas, como discutido anteriormente – no
capítulo que tratamos as questões do ver – o homem se dá em extravio. Sua
condição de abertura ao ser se dá no fechado do ente. Segundo Heidegger, a
palavra clareira vem de leve, tornar livre. Clareira, ao contrário do que
possamos supor, não pressupõe o claro, a claridade. Mesmo na escuridão a
clareira não deixa de ser. Contudo, Luz pressupõe clareira, só podendo haver
claridade onde haja clareira. Só há luz onde há algo livre para ela. Entretanto, o
escuro não invalida a clareira. Na condição de ser Clareira repousa o poder
haver claro e escuro. No entanto, o escuro nos desorienta. Orientação vem de
oriente, que segundo Heidegger, significa o surgir do sol, da luz. Assim, em
exercício de pensamento, entendemos que somos clareira independentemente
da luz, mas ela, a luz, orienta-nos enquanto abertura de mundo.
Com relação ao espaço, temos na fala de Heidegger que: ao mesmo
tempo em que o homem o ordena para si, também deixa o espaço ser.
Sabemos que quando nos movemos em direção ao horizonte, este se afasta.
Movemo-nos sempre dentro de um horizonte, e isso vai muito além de
transportarmos nosso corpo físico. A palavra horizonte vem do verbo grego
horhizo, e diz de estabelecer limites e fins, de-limitar, de-finir. Segundo o
pensamento de Carneiro Leão, delimitando, o horizonte define as
possibilidades de diferenciação de céu e mar, constituindo a própria harmonia
invisível de contrários e oposições. “O horizonte enverga o âmbito do visível.
Tudo que cai dentro desta envergadura pode ser visto”.74 Mas há ainda todo o
não-visto, aquilo que ainda não se doou ao ver no horizonte, aquilo que ainda
não se espacializou. Nesse sentido, o homem saudável admite o espaço como
algo aberto, sem considerá-lo tematicamente, sem ocupar-se particularmente
dele. O mesmo não se dá com o homem em estado de privação, como teremos
oportunidade de constatar mais adiante no que se refere ao esquizofrênico.
O pensador frisa que, a psiquiatria e a psicologia, ao modo das ciências
naturais, ocupa-se do visível, do ôntico, mantendo-se fechada ao não-visível,
74
LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Diana e Heráclito”. In: Revista Tempo Brasileiro, nº 40, 1975, p. 50, 2º§.
104
ao ontológico. Com relação a Freud, vai nos dizer ainda que pretendia transferir
a causalidade das ciências naturais para o psíquico. Afirma que, de um modo
geral, as ciências que se encarregam desta área se perguntam
incansavelmente sobre os processos, pelas mudanças no psíquico, mas não
pelo o que o psíquico é. O grande salto para o pensamento sobre o psíquico
seria reconhecer a falha que se tem cometido até então, de, em tudo o que é,
só se considerar o que pode ser mensurável, quantificável, em que as demais
características das coisas, todas as que não podem ser mensuradas, são
dispensadas. A ciência natural só consegue observar o homem segundo sua
presença na natureza; enquanto a psiquiatria e a psicologia insistir em
equiparar-se a ela, só saberá do homem o que se dá no âmbito do ôntico.
Heidegger, parte desta constatação e nos diz:
Surge a questão: seria possível atingir desta forma o ser homem? Dentro deste projeto científico natural só podemos vê-lo como ente natural, quer dizer, temos a pretensão de determinar o ser homem por meio de um método que absolutamente não foi projetado em relação à sua essência peculiar (HEIDEGGER, 2009, p. 57).
Diante dsso, coloca-se a seguinte questão: Como se mostra o ser
homem e que espécie de acesso e de observação ele exige a partir de sua
singularidade? A analítica que foi proposta, a saber: analítica do Dasein, não se
refere a uma questão de causalidade concernente a uma relação ôntica entre
uma causa e um efeito. A finalidade desta analítica é tão somente evidenciar a
unidade original, procurando mostrar o todo de uma unidade de condições
ontológicas. Não se trata de decompor em elementos, mas sim articular a
unidade de uma estrutura. No exercício desta analítica, sua transposição para
a prática médica, para o ôntico, denomina-se Daseinsanalyse.
A analítica do Dasein, desenvolvida em Ser e Tempo (Daseinsanalytik),
configura-se como uma interpretação ontológica do ser do Dasein. O segundo
sentido apontado por Heidegger, que Ida Elizabath Cardinalli denomina
Daseinsanálise clínica (a título de diferenciá-la das outras significações) é a
105
análise dos fenômenos fatuais, que se mostram em cada caso na relação
analisando/analista (CARDINALLI, 2004). Já em uma terceira definição,
Cardinalli nos dirá que “à daseinsanálise refere-se ao estabelecimento de uma
possível ciência daseinsanalítica do homem”. Como uma “antropologia
daseinsanalítica”, ou seja, um estudo dos fenômenos humanos em um contexto
histórico-social específico, partindo da compreensão do existir humano,
descritos na analítica do Dasein (Ibidem.).
6.4. Daseinsanálise e a Esquizofrenia - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Em seu livro Daseinsanalyse e Esquizofrenia, estudo realizado, como
citado anteriormente, a partir dos escritos de Menard Boss, Cardinalli dedica
um capítulo ao debate do psiquiatra e pensador com a psiquiatria clássica. Da
causalidade que habita este segmento do conhecimento que se ocupa das
moléstias que afligem a mente humana, Boss afirma:
[...] quando a noção de doença pressupõe que ela seja uma entidade circunscrita e isolada da totalidade do existir humano, então ela é explicada com base nela própria. Neste caso, pressupõe-se um modelo de conhecimento em que o esclarecimento do fenômeno do adoecer poderia restringir-se apenas a descobrir a evolução, os mecanismos e as determinações causais específicas de uma dada doença (CARDINALLI, 2004,p. 47).
Especialmente com relação à esquizofrenia, ressalta que a psiquiatria
clássica não consegue aclarar a experiência deste adoecer, tampouco sua
natureza. Cardinalli nos esclarece ainda que o autor questiona também a
concepção psicanalítica do homem, pois a psicanálise pensaria a experiência
humana baseada em uma noção de um psiquismo encapsulado, separado do
mundo. Para Boss, esta noção se apoia na divisão cartesiana, na qual o
106
sujeito é separado das coisas do mundo. Noção problemática ao entendimento
da dinâmica das experiências sadias e patológicas, por não esclarecer como o
homem atinge o mundo e nem como o mundo afeta o homem. Cardinalli
esclarece-nos ainda que, segundo Freud, os esquizofrênicos regridem à
organização libidinal característica do estágio do narcisismo primário: “Através
da libido, os objetos do mundo externo são descatexizados, e o resultado é
uma perda da realidade” (Freud apud CARDINALLI: 2004, p. 50). O psicótico
então, para reparar a perda da realidade, criaria uma nova realidade, por
repúdio à realidade vivenciada tentaria substituí-la. Boss questiona esse
posicionamento de Freud acerca da existência de uma realidade objetiva e
externa cuja existência independe do homem. Do ponto de vista
daseinsanalítico, o que é denominado mundo exterior seria tão somente o
“modo específico pelo qual o que vem à luz da existência humana se apresenta
a qualquer membro desperto de um grupo de pessoas histórica e
geograficamente circunscrito” (Apud. CARDINALLI: 2004, p. 51). Sabendo que
o psicótico sente-se constantemente ameaçado pelo modo como percebe seus
semelhantes e coisas de seu mundo, Boss considera que o mais importante
em qualquer acompanhamento consiste em aclarar “a diferença entre as
formas pelas quais o mundo se descortina para o psicótico e para a maioria
das pessoas de seu entorno” (Ibidem.).
Para Freud, haveria nos esquizofrênicos o predomínio da representação
da palavra em detrimento da representação da coisa, ou seja, no
esquizofrênico haveria a incapacidade de distinção entre percepção e
representação. Menard Boss vai questionar também a concepção de Freud
acerca da Linguagem. Segundo Boss, tal afirmação implica em um pressupor
que na experiência humana a Linguagem se dê separadamente da percepção
das coisas. Para o autor, centro do estudo de Cardinalli, ambas caminham
juntas e só podem ser percebidas separadamente, caso se confunda
Linguagem com língua. Para Boss, o estudo dos fenômenos humanos sadios e
patológicos, solicita de antemão, o esclarecimento de sua natureza existencial,
que irá permitir o deslocar do entendimento mais habitual acerca do homem
que se baseia em conceitos de razão, forças, impulsos, etc. Somente quando o
107
pesquisador conseguir vislumbrar o existir humano como Dasein, ser-no-
mundo, ser-com-o-outro, é que conseguirá distinguir e compreender os
fenômenos específicos no existir de uma pessoa em particular, pois estes
estão diretamente relacionados à maneira como esta pessoa experiência seu
próprio existir (CARDINALLI, 2004).
Cardinalli nos esclarece que segundo a etiologia das patologias
psíquicas, existe uma relação de determinação entre as causas e as
manifestações das doenças. Boss se oporia à noção de determinismo causal,
questionando se uma ideia determinista seria adequada para o entendimento
daquilo que se refere ao humano e suas experiências. Na proposta
dasainsanalítica é sugerida a visão de uma gênese motivacional para as
patologias. Esclarecendo o significado da palavra motivo, Boss diz que,
habitualmente ela é usada no sentido de causa, causalidade, como aquilo que
determina algo. No entanto, ressalta que o termo motivo nos diz também
daquilo que apela ou solicita alguém, ou seja, que é sua motivação. Assim fica
o entendimento de que o comportamento humano, tanto o patológico quanto o
sadio, deva ser compreendido na forma das relações motivacionais, ou
contextos motivacionais. Os motivos e aquilo a que se dirigem são
determinados pela tarefa iminente, reconhecida e aceita de alguma maneira
pelo homem. Estar dirigido a uma tarefa é um apresentar-se antecipado do
futuro e revela-se pelos significados. Mas não é o homem nem o mundo que
determinam os significados de tudo. Estes lhe são revelados conforme a
abertura perceptiva, que faz com que as coisas do mundo sejam mais próximas
ou mais afastadas de si. Para o Boss, quando o comportamento humano é
entendido como motivado, preserva-se um espaço de liberdade na ação
humana, já que os motivos solicitam, mas não obrigam o homem.
Toda ação humana é motivada por conta de algo reconhecido pela pessoa em questão, e este reconhecimento acontece no estar engajado de uma pessoa, por algum fenômeno que é endereçado a ela (BOSS, Apud. CARDINALLI,2004, p. 96).
108
A compreensão da Daseinsanálise nos leva a pensar acerca do modo
equivocado e estigmatizado que a psiquiatria e a sociedade em geral se
dirigem ao esquizofrênico. Ainda que este estudo não tenha cunho biográfico,
ainda que não seja sobre a vida de Bispo do Rosário, mas sim sobre sua
poética, consideramos de extrema relevância – especialmente devido ao fato
de sua produção ter se iniciado a partir da manifestação da esquizofrenia –
olharmos atentamente para o modo de ser do esquizofrênico. O que de certa
forma também nos ajudará na dinâmica do pensamento acerca da proveniência
das obras que através dele vieram à presença. Buscaremos mais adiante
aclarar as tensões: doença/obra; obra/saúde; delírio/obra/arte.
6. 5. A Abertura e os modos de ser do esquizofrênico - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
A partir deste ponto buscaremos entendimento acerca dos modos de ser
esquizofrênico com relação à privação da liberdade, com o intento de melhor
compreender o labirinto pelo qual circulamos ao nos avizinharmos da poética
de Bispo.
Para Cardinalli, no existir de um esquizofrênico, a falta de liberdade
apresenta-se em tal grau, que este não consegue sustentar sua percepção de
mundo, pois esta percepção se dá de um modo hipertrofiado, o que faz com
que não consiga manter-se independente das solicitações externas. O
esquizofrênico não consegue manter-se intacto diante da solicitação de mundo.
As psicopatologias atingem diferentes âmbitos do existir. Boss nos esclarece
que enquanto a psicose orgânica (denominação da psiquiatria clássica)
compromete a espacialidade e a temporalidade, na esquizofrenia o âmbito
mais afetado é a abertura, a liberdade. Esta, como todas as demais
psicopatologias, é entendida por Boss como privação da realização das
possibilidades humanas. Esta privação compromete a condição que caracteriza
109
a humanidade do homem. Boss afirma ainda que o esquizofênico apresenta
uma dupla incapacidade:
Torna-se incapaz de se engajar no que se mostra na abertura do seu existir, não podendo responder aos apelos do que se apresenta no mundo, conforme os significados habituais presentes para as outras pessoas; não consegue manter intacto um ser-si-mesmo capaz de manter uma relação livre com o que aparece (Apud. CARDINALLI, p. 128).
Para Martin Heidegger, o comportamento humano se refere “a maneira
pela qual eu estou em relação com o que me interessa [...] a maneira como se
responde ao ente”.75 Diante do que se apresenta o comportamento do
esquizofrênico é menos capacitado a manter um enfrentamento livre e aberto
ao que se manifesta em seu caminhar, não conseguindo deixar que
permaneçam em seus lugares no mundo tanto as coisas quanto as pessoas. A
percepção do que se apresenta afeta de tal modo seu existir que ele se torna
incapaz de corresponder às coisas que se mostram, ficando a mercê das
exigências do que encontra, sendo absorvido e anulado por elas. Em reação de
autoproteção, ao aniquilamento como ser humano, furta-se às relações com
pessoas e coisas. “Quando seu existir se fecha às exigências daquilo que se
apresenta, reduz-se a realização de sua receptividade em relação ao que lhe é
apresentado do mundo” (CARDINALLI, 2004, p.132).
Segundo Cardinalli, Menard Boss considera que a caracterização da
natureza básica da esquizofrenia deve ser compreendida como privação da
liberdade e da abertura do existir, o que esclarece a própria experiência do
esquizofrênico, o entendimento dos sintomas como atitudes humanas referida
à totalidade do existir. Os fenômenos patológicos compreendidos, então, como
a maneira de alguém corresponder às solicitações de mundo. Com base em
relato de um de seus pacientes – um homem jovem, bastante inteligente e
articulado, capaz de expressar-se com clareza acerca de suas experiências –,
75
(Apud CARDINALLI, p.131).
110
Boss questiona uma vez mais a psiquiatria clássica no que se refere à
esquizofrenia. Ao relato dos sintomas do paciente que dizia ser a todo tempo
convocado pelas coisas, (fossem objetos concretos ou lembranças destes,
como uma garrafa de vinho bebida anos atrás capaz de compeli-lo a descobrir
seu atual paradeiro e tudo o mais a respeito de sua origem) a psiquiatria
diagnosticaria como pensamento obsessivo (coação mental ou pressão do
pensamento). Boss, contudo questiona este parecer, afirmando:
Nosso paciente insistia que ele não estava experimentando incontroláveis processos de pensamento ou associações intrapsíquicas de uma natureza subjetiva; ao contrário, as coisas lhe chamavam desde fora, quer estivessem fisicamente presentes ou tivessem vindo à mente. Elas lhe faziam demandas exageradas, excêntricas, às quais ele não podia resistir (BOSS, Apud. CARDINALLI, 2004, p. 143).
Para Boss a privação da abertura nos esquizofrênicos pode ser
compreendida de dois modos distintos aos quais chama: limitação e des-
limitação. O primeiro refere-se ao fechamento severo diante das coisas e
pessoas no modo de existir esquizofrênico. Nele, o esquizofrênico encontra um
modo de se preservar da ameaça de aniquilamento. Segundo Cardinalli, neste
modo há um aumento da restrição da liberdade de realizar o existir. O segundo,
a nosso ver, seria o modo de ser esquizofrênico que afetou a liberdade de
existir de Bispo do Rosário. Nele, ao inverso da limitação, há a realização
excessiva da abertura ao que se apresenta do mundo. Daí a incapacidade em
se relacionar, se colocar em meio às coisas. O esquizofrênico na des-limitação
fica entregue, sendo tragado pelo que se apresenta. Tudo tem tanta
intensidade que se vivência extrema felicidade ou um grande pavor diante do
perigo que o mundo representa. Cardinalli esclarece que há neste modo de ser
esquizofrênico, um caráter de falta de limite. Para Boss, a experiência da des-
limitação tem duas faces. Numa delas o doente mostra a incapacidade em
manter-se numa relação livre consigo mesmo diante do que se apresenta do
mundo. Na outra há um permear-se de mundo que possibilita “o acesso ao
caráter de „ser o que são‟ próprio de todas as coisas” (apud CARDINALLI, p.
111
133). O psiquiatra e pensador nos dirá que neste modo de existir do
esquizofrênico
é como se lhes tivessem tirado o filtro protetor que livra o homem cotidiano, dito „sadio‟, da invasão do poderoso nada [...] este nada é idêntico ao ser em si. O ser como tal, o nada ou o encoberto reinam numa plenitude que deixa provir de si tudo que terá que ser (Ibidem., p.134).
Bispo se viu à deriva em dado momento de sua travessia, em meio a
todo um oceano de percepções de um mundo “super aberto”. Lembrando a
colocação de Boss acerca de o paciente ficar “entregue, sem saída e sem
sustentação” (Ibidem.), acrescentamos que Bispo iniciou a queda, mas acabou
por aprender a flutuar no abismo. Ao mergulhar no tudo, este revelou sua
essência, ou seja, o Nada. O mergulho neste nada foi um cair para cima, foi um
experimentar a vertigem da verticalidade que aos poucos iria se revelando
poética. Das duas faces que possui, a esquizofrenia ofereceu-lhe a esquerda:
e no ruir do mundo enquanto Cosmo, o mergulho no Caos, e o encontro com a
essência das coisas.
No viver cotidiano loteado em sistemas, o sentido do ser das coisas
encontra-se encoberto pela funcionalidade. Só alguns têm entre suas a
possibilidades a de avistar, experienciar a essência das coisas. Acreditamos
seja esta a principal condição ou possibilidade de Ser, o aproximar o louco, o
artista, (poeta) e o filósofo; ainda que Boss nos diga que a impossibilidade de
suportar a percepção deste manifestar-se nesta dimensão fundamental das
coisas seja justamente o que diferencia o louco dos demais. Segundo Menard
Boss, o esquizofrênico não tem condição de suportar o que é percebido,
ficando a mercê daquilo que se manifesta, sucumbindo. Já o artista, o poeta e
o filósofo teriam esta percepção expandida associada a uma autonomia diante
dela, não se deixando tragar. Seria como um flertar com o abismo, saltando
sobre ele. Já Bispo esteve à deriva, mergulhou, avistou os limites do impossível
112
em um quase afogamento, mas emergiu, com o auxílio de salva-vidas em meio
a todo um oceano de delírios: a Arte.
Agora que compreendemos um pouco melhor a trama dessa cruel
privação denominada esquizofrenia, passemos a exercitar o pensamento no
que se refere ao Bispo e sua produção. Ou seja, ao acontecimento da arte em
Bispo.
Acreditamos que todos os viventes tenham um conjunto de
possibilidades de ser em seu próprio, que podem eclodir ou não, isto
dependendo diretamente das condições em que estará lançado, sejam elas
familiares, geográficas, históricas, entre outras. Possibilidades em seu sentido
existencial, segundo esclarece Heidegger, em Seminários de Zollikon, são
sempre um poder-ser-no-mundo histórico. É um poder-ser que acontece no
mundo e está imbricado no tempo. Para Boss, o estudo das patologias
demonstram sempre uma forte ligação entre as doenças do presente e os
acontecimentos que a antecederam, ou seja, a história anterior daquele que se
encontra em estado de privação. A cada ser humano são dados os modos de
ser como possibilidades da existência, mas os acontecimentos podem restringir
ou favorecer determinados comportamentos.
Boss percebe que o estar doente é caracterizado pelo prejuízo na habilidade de realização das possibilidades, e que com tal prejuízo ocorre a interferência direta na liberdade do ser humano para realizar suas concretas possibilidades nas diferentes situações da vida (CARDINALLI, 2004, p. 109).
Acreditamos que desde sempre o ser artista era uma possibilidade em
Bispo, seu próprio, possibilidade esta que não havia encontrado condições de
vir-a-ser, soterrada sob um Eu inflado pelas funções que as conjunturas da vida
e o sistema social impuseram. As condições sociais o fizeram porteiro, caseiro,
boxer, segurança de político... não artista. A sociedade diz, e talvez o tenha
convencido durante determinado tempo, que arte é para alguns poucos
escolhidos, não pelo destino, mas pela hierarquia econômica. Talvez Bispo
113
nunca tenha sequer cogitado ser artista algum dia. Bem, ao menos até o
momento do surto. Acreditamos que a força de seu próprio quanto mais
sufocada mais se intensificava e ao invés de vazar lentamente conforme as
condições, por entre as fissuras do Eu (como foi desenvolvido anteriormente no
capítulo 5.4. O Próprio e a Realidade) explodiu de uma só vez, e o eu
esfacelou-se subitamente em um grande surto esquizofrênico. “Quando
negamos algo de forma que não o excluímos simplesmente, mas o retemos
justamente no sentido de que algo lhe falta, esta negação chama-se privação”
(HEIDEGGER Apud. CARDINALLI, 2004, p. 108).
Bispo mesmo não conhecendo76 a arte percebia sua ausente presença
como uma necessidade daquilo que haveria de ser. Moira de artista. Havia a
necessidade de Ser. A impossibilidade de realização, o impedimento de uma
de suas possibilidades provavelmente o adoeceu. A Necessidade de arte se
manifesta em convocação ao obrar sob a forma de Surto. No entanto, a doença
em Bispo era um devolvê-lo à saúde. Com a doença, houve o advir das
condições de realização do seu próprio. Ao ser diagnosticado esquizofrênico
foi, como dito anteriormente, banido do sistema e pode entregar-se à obra.
Com relação à alucinação, esclarecemos que em geral a psiquiatria a
define como uma perturbação da percepção onde ocorre uma percepção
sensorial sem a presença de um estímulo adequado. Para Boss, este
entendimento não é satisfatório. Cardinalli afirma que, para ele:
A alucinação é um modo específico de entendimento das coisas e das pessoas, no qual o existir ocorre num entregar-se acentuado a uma certa relação existencial numa determinada situação [...] sempre contém sentidos e significados que correspondem ao entendimento possível do paciente em relação a si mesmo e ao que se apresenta do mundo, que não se dá necessariamente na presença concreta de um “estímulo externo” (CARDINALLI, 2004, p. 154).
76
Esclarecemos que este “não conhecer” refere-se ao conhecimento acadêmico do que vem a ser arte.
114
Especificamente com relação às vozes, Boss dirá que “não conseguindo
assumir as suas possibilidades como efetivamente suas, ele (o esquizo)77
percebe o que é vivenciado como algo estranho e imposto de fora” (Ibidem.).
Na ordem dos anjos, significa o dizer de seu próprio. Podemos em livre
associação de pensamento ver esta questão associada ao jogo de mando e
obediência discutido anteriormente sob a luz do pensamento de Fogel. Bispo
negando inicialmente seu destino, sua moira, experimentou o peso de dois
fardos. Da sobrecarga, o surto. Mas em Bispo tudo se dá na ambiguidade. A
privação da arte eclode em patologia de privação de liberdade num constante e
interminável ser convocado pelas coisas para assim inventariar o universo. Mas
ser artista é o seu próprio e assim ao ser convocado produz obras de arte. A
arte o salva de si mesmo, restaurando sua liberdade. Bispo mesmo confinado é
livre para ser. Na solidão do confinamento, o tempo da obra é Cura.
No capítulo três, referimo-nos à distinção entre o pintor Vincent Van
Gogh e Bispo. Lá afirmamos que o holandês era artista e esquizofrênico. Aqui
reforçamos o dito, apenas frisando que Bispo, ao inverso dele, foi
esquizofrênico e artista. Em Van Gogh, o relacionar-se com a arte se deu em
meio a embasamentos específicos que orbitavam conhecimentos relativos a
consciência deste fazer. Eventualmente sofria surtos patológicos que o
impossibilitavam de criar. Já Bispo nada sabia do circuito das artes e dos
atributos teóricos e institucionais que o circundam. Em dado momento de sua
existência foi diagnosticado esquizofrênico por ser acometido por surto e
delírios. A partir de 22 de dezembro de 1938, sua história apaga-se de sua
lembrança e mergulhado em profundo esquecimento de seu eu funcional aceita
a convocação do delírio e se põem a obrar.
77
Parêntese nosso.
115
6. 6. No dia 22 de dezembro eu vim - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
A Loucura em Bispo e a posição da crítica de arte. O doente mental carrega a
sombra de um morto.
Bispo do Rosário
Para Ricardo Aquino, diretor do Museu de Arte Contemporânea Arthur
Bispo do Rosário, uma das dificuldades em falar sobre o artista Bispo consiste
no permear-se entre vida e obra. Segundo Aquino, o único traço relevante na
vida do artista seria o que ele mesmo bordou em um de seus trabalhos: No dia
22 de dezembro eu vim. Aquino parte desta afirmação em seu estudo crítico-
biográfico sobre Bispo, assim como Patrícia Burrowes e Luciana Hidalgo, que
também a utilizam em seus escritos78 distintamente.. Aquino, a nosso ver,
pensa de modo um tanto quanto “recortado”.
O diretor do museu, no afã de “legitimar” a posição de Bispo como artista
contemporâneo, busca,, de modos diversos,, apartá-lo da privação
esquizofrênica. Reconhecemos que determinados ângulos de sua preocupação
são legítimos e que sua atitude poderia ser até mesmo louvável, se não tivesse
contornos tão estanques. Concordamos com sua posição quando afirma que a
obra que através de Bispo veio à presença não possa ser explicada pela
psiquiatria, pela doença mental. É fato que se torna de suma importância
esclarecer, como já dito anteriormente nos primeiros capítulos deste estudo,
que a obra de Bispo do Rosário não é “arte de louco” no sentido corriqueiro da
expressão que pressupõe produção de oficinas de arte-terapia – ainda que, em
nosso entendimento, a própria obra se encarregue de clarificar este ponto a
quem possivelmente venha se equivocar ao realizar tal juízo de valor.
Ricardo Aquino, não obstante, busca estabelecer cortes, separações,
fronteiras, entre arte e loucura quando em seu texto Do Pitoresco ao Pontual79,
78
HIDALGO, 1996 e BURROWES, 1999. 79
In: Bispo do Rosário século XX. Rio de Janeiro: Museu Bispo do Rosário e Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 2006.
116
já no início de seu escrito, esforça-se por descolar Bispo de seu histórico
esquizofrênico. Reproduz a frase citada anteriormente e que dá nome a este
capítulo, desconsiderando que faz parte de uma oração, de toda uma narrativa
com sentido específico e completo bordado em um estandarte. Transcrevendo
o dito apenas em parte, diz que ao fazer tal afirmação, o artista evidencia o
único traço autobiográfico que lhe era relevante:
o dia do início de seu processo de criação, ou melhor dizendo, o dia que inaugura o seu devir artista [...] o início de sua entrega ao processo de criação artística, onde ele criava suas obras e criava a si mesmo, agindo sobre o mundo. É o dia de seu nascimento, a sua chegada ao mundo da criação. (AQUINO, 2006, p.45)
Na continuidade, o autor cita Fernando Pessoa, no que este (Pessoa),
denominava o seu “dia triunfal” – o 8 de março de 1914 – dia em que escreveu
a um só fôlego os poemas de “O guardador de rebanhos”. Sendo este ato tido
como o inaugural do mestre dos heterônimos, Alberto Caeiro.
Excelente aproximação entre Bispo e Pessoa – poetas da imagem e da
palavra. Contudo, parece-nos que o objetivo de Ricardo Aquino ao fazer tal
aproximação tenha sido minimizar a força do surto esquizofrênico de Bispo.
Não obstante, ainda que seja este o caminho que suas palavras pretendam
firmar [ao menos a nosso ver] a citação conduz em direção diversa.
Ironicamente, o que pretendia enfraquecer a loucura a fortalece. Ao
reportarmo-nos às palavras do próprio Pessoa acerca da gênese dos
heterônimos, em carta endereçada a Adolfo Casais Monteiro, percebemos que
ele próprio insiste em revelar seu fundo traço de histeria, admitindo-se um
histeroneurastênico propriamente; dizendo estar a origem mental de seus
heterônimos na tendência orgânica e constante para a despersonalização e
para a simulação:
117
A origem de meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está em minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior [...] fazem explosão para dentro e vivo-os a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenômenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia (PESSOA, 1989),
Sendo ironia de artista a um crítico ou não, vem reverberar um
questionamento: O conhecimento deste fato (sua suposta histeria) faz com que
o consideremos menos poeta, ou ainda, faz com que sua poesia perca força?
Lisette Lagnado, em texto intitulado Arthur Bispo do Rosário e a
Instituição, faz questionamento acerca de quais seriam as consequências
desse deslocamento do que chama voz xamanística de Bispo, e afirma:
Seu novo responsável sempre diligente, logo condicionou o gênio “da cela” ao ateliê. Primeira consequência importante: o resultado da apropriação dessa obra para o campo artístico acabou afastando o sujeito de seu direito a dar vazão a loucura. O cuidado para em nenhum momento esbarrar no aprisionamento moral implícito no diagnóstico conferido a Bispo corrompe-se em domesticação da loucura. Transferido para o museu Bispo tem sua alteridade glamourizada e reduzida: não sendo trabalhada como surto de saúde e garantia última contra a falência do sujeito (como fizeram Nietzsche, Van Gogh, Artaud) seu teor explosivo é silenciado.80
Sabemos, como nos disse Foucault, que onde há obra não há loucura,
contudo, embora acreditando que as obras que através de Bispo vieram à
80
LAGNADO, 1999, pp. 106-8.
118
presença tenham caráter de surto de saúde, quando Ricardo Aquino nos diz
que a trajetória biográfica de Arthur Bispo do Rosário não tem nenhuma
relevância para a apreciação ou valorização de sua obra, em verdade ele está
logrando ao artista (e não à obra) uma parcela de sua história. Há sem dúvida
em Bispo do Rosário, o devir artista manifesto, contudo, Bispo é o conjunto de
todas as possibilidades de existência do homem Arthur. A condição de esquizo
é uma das possibilidades de seu existir, ainda que constitua, como vimos
anteriormente, uma privação. Negar isto é enfraquecê-lo. Será mesmo tão
relevante negar a esquizofrenia, a loucura? O fato de ter, por principal material
a compor sua obra, a linha que desteceu de seus uniformes de interno na
Juliano Moreira não ressaltariam ainda mais o vigor poético dos bordados?
Acreditamos que não se deva descolar Bispo e loucura, mas sim obra e sujeito.
Defendendo para Bispo uma posição de artista contemporâneo “antenado” às
poéticas vigentes a custo da mutilação, ou seja, da negação de uma parcela do
que é próprio ao seu existir, apenas reforçamos o equívoco da posição que
defende ser o artista anterior à obra. O que “legitima” a possibilidade artística
em Bispo não é a negação de seu prontuário psiquiátrico, mas a arte manifesta
no conjunto de obras que através dele se presentificou.
Ricardo Aquino em seu escrito, diz lamentar os esforços de “pretensas”
biografias sobre o artista que se alimentam do que chama
o anedótico da vida asilar psiquiátrica, do risível empobrecido, alimentando-se de uma pretensa culpa da sociedade travestida de pena, com a valorização do pitoresco. Isso contribui para uma moldura folclórica em torno do artista, o que funciona como um organizador do olhar sobre o mesmo e sua obra (AQUINO, 2006, p.49).
Em sua crítica, o autor diz que se inventa um “artista” (aspas dele), cuja
produção é etiquetada como a manifestação de uma excentricidade. O “artista”
teria vindo com a concessão, ou talvez ressalva de: “um tanto genial, mas
louco, e que não faria arte” (Ibidem.). Ao final de sua colocação diz que o termo
inventar por ele utilizado tem o sentido que Michel Foucault buscou em
119
Nietzsche e que implica a afirmação de que em toda invenção sempre está
presente uma relação de exercício do poder de subjugação (Ibidem. op. cit).
Buscando legitimar seu ponto de vista com relação à irrelevância da condição
esquizofrênica de Bispo, Aquino faz uma citação que uma vez mais irá, nas
estrelinhas, estabelecer um choque, para não dizer provocar um contradito,
evidenciando lacunas entre o que talvez de fato pense e aquilo que julga ser
necessário pensar. Complicando-se ainda mais faz a seguinte afirmação:
Michel Hardt e Antonio Negri (2000) fizeram a demonstração do fato de que na sociedade de controle, a maneira como o poder manipula a diferença mudou. Atualmente, o poder não retira mais de circulação “a diferença” e a recolhe em instituições disciplinares como os velhos asilos psiquiátricos, historicamente condenados ao desaparecimento. Ao contrário, a diferença é recolhida, ela é culturalizada e, dessa forma, ela pode ser melhor controlada” (AQUINO, 2006, p.49).
Acredito não haver nada mais a acrescentar acerca da posição do autor
ao buscar legitimar Bispo como artista após a transcrição acima. A sociedade
de controle tem muitos tentáculos. Os sistemas são tão poderosos ao se
estabelecerem nos mais diversificados segmentos da sociedade, sempre com
súmulas conceituais a serem aplicadas que, por vezes, as máscaras com as
quais pretende uniformizar os membros que pretende absorver, confundem até
os que dele já façam parte, ainda que estes sejam bem intencionados. Torna-
se assim desnecessário e, por que não dizer, prejudicial, que a instituição
museu, no afã de tomar o artista para si, pretenda domá-lo, buscando apagar o
que parece julgar “mácula” em sua história de vida, visto ser este um caminho
que se configura perigoso, especialmente ao dirigir-se à história de Bispo do
Rosário – vida repleta de coisas do não, 81 cuja imagem no mundo é marcada,
além da loucura, por alguns outros estigmas sociais: negro, nordestino, pobre –
vida mais que Severina. Tal caminho pode acabar por conduzir, não agora,
mas quem sabe em futuro próximo, à desconstrução de outras faces de sua
81
Expressão que tomo emprestada, de João Cabral de Mello Neto: Morte Vida Severina.
120
história – onde se firmaria por discurso, a legitimidade (quem poderá saber?)
de embranquecê-lo ou fazê-lo poliglota com formação artística no exterior.
Com relação aos posicionamentos críticos que percebem afinidades
entre sua poética e a de artistas conceituados citados em capítulo anterior
como Duchamp, Daniel Spoerri, Arman, Hélio Oiticica entre outros,
consideramos importante fazer uma colocação acerca do que Menard Boss
pensa sobre a influência da época. O pensador afirma que o comportamento
das pessoas é circunscrito numa época específica. “Cada época concede, para
a humanidade, um Dasein, uma existência, como um âmbito aberto perceptivo,
cujos limites são peculiares a essa época” (Apud. CARDINALLI, p. 100). Como
vem nos esclarecer Cardinalli, cada momento histórico delimita os modos de
existir do homem, desqualificando alguns comportamentos e valorizando
outros. Cada época solicita aos homens a realização de algumas das
possibilidades inerentes ao existir humano. Determinada época histórica
específica pode ser mais favorável ao desenvolvimento e realização de
determinadas possibilidades para algumas pessoas (Ibidem.). Assim podemos
entender como Bispo mesmo fora do circuito, mesmo sem ser conhecedor de
artes e menos ainda, sem reconhecer-se como artista viu emergir em si esta
possibilidade. E mais que isso, teve tamanha afinidade poética às vanguardas
de seu tempo. Contudo, precisamos atentar para a compreensão de que é no
eclodir poético que a época se configura e não o contrário, sem linearidade,
apenas vertigem. O tempo se deixa entrever nesta eclosão das obras,
especialmente nas “intempestivas”. Não são as épocas que produzem as
obras, mas sim as obras que configuram e instauram as épocas. Obras e
época se dão como dobra, instauradas pela Arte desdobram-se sem exclusão.
Retomando a questão discutida anteriormente, queremos crer que, ainda
que as intenções do diretor e curador Ricardo Aquino sejam as melhores
possíveis – afirmação esta mantida livre de toda e qualquer aproximação com
provérbio da sabedoria popular acerca das “boas intenções”. Excetuando as
ressalvas, expostas talvez com excessiva veemência, o escrito do diretor e
curador parece-nos de grande valor para a História da crítica e mesmo da
121
própria Arte Contemporânea. A nosso ver, Bispo era esquizofrênico e artista, e
em nada uma condição invalida a outra. Ambas co-existem em alternância.
Sabemos que onde há arte não há doença, mas saúde. Só que neste caso
específico a saúde foi doença para poder ser de fato saúde. Bispo artista e
não-artista constitui um paradoxo na história da arte. Bispo é artista e, ao
mesmo tempo, nega tal condição. As duas posições guardam parte da
verdade, mas a verdade inteira não é revelada em sua soma. Pois o
movimento poético da verdade se dá à medida que esta se desvela,
autovelando-se. A verdade não habita as afirmações, mas o ranger destas. A
verdade habita o entre. Só mesmo a poesia é capaz de suportar esse ranger.
Em Bispo, a possibilidade de ser artista vige em condições ambíguas,
paradoxais – poéticas. Que se dá num movimento que é da ordem do mistério,
do extraordinário, do Sagrado.
6.7. O Sagrado - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
O que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas
ao vento que na minha antiga prece humana.
Clarice Lispector
Manto da Apresentação: Obra que se quis veste. Há os que defendam
uma marca teológica no vestuário afinal por primeira veste temos as de Adão e
Eva, após o pecado original (AGAMBEN, 2008). Já Baudelaire, em O pintor da
vida moderna, diz que a ideia que o homem tem do belo se imprime em seu
vestuário, retesa e esgarça sua roupa, arredondando ou alinhando seus gestos
até impregnar, com o passar do tempo, os traços de seu rosto. Sempre ouço
com atenção o dizer dos poetas, contudo, o Manto da Apresentação excede
todas as possibilidades previstas, pois não é mero vestuário, é Obra. O delírio
inspira o tecer da vestidura do inventariante Bispo para ocasião do prestar
122
contas ao criador sobre as atividades do homem fora do paraíso. Manto-obra-
presença, veste sagrada.
Ao longo da história humana foram, e continuam sendo, inúmeros os
modos de experienciar o sagrado, causando por vezes, em nosso ocidental e
moderno pensar, certo estranhamento. São vastas as planícies por onde se
espraiam os modos de ser. Mircea Eliade, em Sagrado e Profano, tece
considerações acerca do tema. Para ele este sentimento não se vincula
propriamente às religiões, sendo antes autônomo. Percebemos estreita a
distância entre as experiências com o sagrado e as sensações advindas do
contato com o que entendemos por sublime. O autor defende – recorrendo a
seus pares – que há no homem uma sensação próxima ao pavor diante de
experiências desta ordem, o mysterium tremendum, oriundo de certa sensação
de nulidade que se estabelecesse ao reconhecermos que nossa condição não
excede a de mera criatura diante de esmagador poder. Eliade, no princípio de
seu escrito, esclarece não buscar estabelecer relações entre racional e não-
racional.
Em nós repousa o desejo de pensar o sagrado de modo, se não
inaugural, ao menos que tangencie sua essência, apartando-nos de possíveis
tensões que se instalam ao opormos o sagrado ao profano. Neste ponto,
distanciaremo-nos do autor citado, que conduz seu pensamento de modo hábil
e específico por este caminho, que embora indiscutivelmente rico ao seu
intento, inviabilizaria nosso estudo. Não há no pensamento que buscamos
construir desejo ou interesse em domar, cercear, ou delimitar fronteiras ao
sagrado, muito menos de o relacionarmos ao religioso.
O sagrado a ser pensado no Manto não se opõe ou se justapõe ao
profano. Tampouco se refere ao religioso. Não há ligação com religião, não se
refere a sistemas religiosos ou instituição. A instituição é calcada em
paradigmas, nos quais tudo difere do verdadeiramente humano do homem, que
a nosso ver, é o que está presente em toda manifestação do sagrado. O
sagrado manifesto em obra segue uma lei mais complexa do que aquelas que
regem sistemas. Passemos então a refletir acerca da Lei.
123
O que seja a lei em si já carrega toda uma complexidade misteriosa.
Segundo Manuel Antônio de Castro – em ensaio intitulado A Violência no
Religioso e no Profano82 – há uma dupla possibilidade de leitura da Lei. Há a
Lei como vida, e há a vida como lei. É na Lei como vida que o sagrado se dá.
Esta é a Lei que está a serviço do homem. A outra lei é a que rege as
instituições, os sistemas e acabam por aprisionar o humano, tolhendo-o de sua
humanidade, incapacitando-o para o amar. No segundo caso é o homem quem
está a serviço da lei e não o contrário. O limite entre a “Lei” e a “lei” é muito
sutil, esfumaçado. A lei das instituições e dos sistemas não é menos real que a
Lei do humano, a ideia que a primeira representa também é real, mas nela a
percepção do real é universal e abstrata, enquanto na outra Lei esta percepção
é concreta, pois leva em conta a conjuntura humana (Ibidem.). Muitas são as
leis e sistemas que circundam a obra Manto buscando apreendê-lo em
verdades institucionais. De modo patente, temos o científico e de modo latente
o religioso.
Com relação ao científico temos que a ciência busca trazer para o
sistema uma concepção de verdade que “domestica” o real, moldando-o nas
dimensões que julga confortável. O sistema científico circunda o Manto seja na
Arte institucionalizada em sistema de arte que envolve História e crítica com
suas instituições subjacentes como Museus, galerias, publicações
especializadas etc., que defendem a autonomia, a subjetividade do artista
Bispo; seja na Psiquiatria que defende sua condição de enfermo, portador de
esquizofrenia, doença psiquiatra que o torna incapaz enquanto artista,
afirmando ser sua obra, adoecida, fruto de delírios psicóticos. A ciência e seus
paradigmas agregam ao sistema uma concepção de verdade que reduz o real
à dimensão imposta por ela. Por outro lado, o sistema religioso se coloca
através da fresta do cunho messiânico da obra. Essa característica, advinda do
delírio, fomenta certo borrar de fronteiras entre sagrado e religioso aos menos
atentos. A afirmação de Bispo com relação ao destino da obra – Traje com o
qual apresentaria a Deus toda produção humana sobre a Terra – não cerceia
82
Leitura crítica da peça O Vigário, de Rolf Hochhuth, In: http//:acd.ufrj.br/~travessiapoetic/interpretação.htm.
124
suas possibilidades enquanto obra de Arte. Pois afinal, na verdadeira Arte o
que de fato impera e vigora é a autonomia da obra e não a subjetividade
artística.
O centro nervoso, o ponto em comum a unir o sistema científico e o
religioso, ainda que estes aparentemente estejam em oposição, é o constante
ignorar daquilo que de fato é o mais relevante no que se refere às obras que se
presentificaram através de Bispo: a manifestação do Sagrado. Os que da obra
se aproximam buscam reduzi-la à ação do homem Arthur Bispo do Rosário,
sempre girando em torno da subjetividade seja do louco, do artista ou do
“profeta”. A obra é reduzida à ação do homem.
Todo o arcabouço das crenças institucionais do sistema religioso, bem como o arcabouço das crenças institucionais do sistema científico acabam por se igualar, porque fundadas na crença do poder da ação do homem. E porque fundadas nessa dimensão, acabam por negar o próprio homem e levá-lo ao extermínio e à dor e sofrimento tanto físico como mental e psicológico: o religioso e o profano no fundo se tocam e só aparentemente são opostos (CASTRO, A Violência no Religioso e no Profano, p. 6)83.
Não cremos que o científico ou o religioso sejam arcabouços para a
construção da obra que através de Bispo veio à presença. No entanto,
acreditamos na fé, que em Bispo é concreta e se concreta, como movimento do
real, portanto, manifesta o Sagrado. Bispo foi sem dúvida um homem de fé, e
através dela foi instrumento, mecanismo, na ação do Sagrado. Enquanto poeta
(das linhas) soube que nenhum sistema dá conta do real, portanto não temeu
sucumbir, acreditou em seu trabalho até o último instante de seu existir.
Independentemente da finalidade de sua produção, o Manto possui enquanto
obra, um télos, um sentido que transcende a vontade do artista. Bispo bordou a
mortalha com o esmero de um traje litúrgico, digno de ritual de sacramento.
Mas a obra vai além das intenções de quem a produziu e o traje de gala
passou de mortalha a célebre obra da arte contemporânea. Manto é figura-
83
Disponível em: http//:acd.ufrj.br/travessiapoetic/.interpretacao.htm.
125
questão que nos diz de duração e finitude, habitar e construir, condições e
possibilidades, loucura e sanidade. Ou seja, um poema tridimensional sobre o
humano.
Não cremos que a obra carregue em si questões relativas à
religiosidade de seu autor. Diante dela somos tomados por algo muito maior, é
o sagrado como questão que se presentifica e, em nosso entendimento, é o
que de fato moveu o fazer, o construir e o habitar em Bispo do Rosário.
Importante esclarecermos que não se trata apenas de um cambiar expressões,
mantendo a ideia e mudando apenas o termo, passando a empregar a palavra
Sagrado no lugar da palavra religioso. Em seu significado essencial sagrado
não é religioso. Mas então o que é o Sagrado?
Castro (Op.cit.) esclarece que entender o que seja o Sagrado implica
primeiramente em auscultar o que a palavra sagrado diz, e isto configura árduo
exercício de pensamento. A tarefa é extremamente difícil por sermos, segundo
o autor, reféns de um vocabulário onde as palavras que o circundam já se
encontram impregnadas de significados religiosos. Para Castro, o linguista
Émile Benveniste realiza um estudo bem fundamentado sobre o tema no
Vocabulário dos povos indo-europeus:
Não há na língua destes povos um vocábulo que expresse algo como uma instituição religiosa ao lado de outras instituições. Isso não quer dizer que não haja o sagrado. Muito pelo contrário. Aparece até com mais de um nome, que expressam nuances deste fenômeno onipresente (CASTRO, Ibidem.).
Benveniste destaca dois vocábulos básicos: sacer e sanctus
impregnados de significados e que se dirigem a este mundo de ideias.
Procuremos ouvir o que, segundo o autor, o vocábulo Sanctus nos diz (Ibidem).
Tal vocábulo se refere à tomada de mundo humano em relação ao divino. Diz
da percepção humana do mundo divino. Estrutura-se em mitos e ritos.
Inicialmente os ritos configuravam parte essencial do mito. Mas com o
estabelecimento das tensões e diferenciações entre o mundo religioso e o
126
mundo profano, os ritos tornaram-se mais importantes que o mito. Nos
vocábulos derivados de sanctus temos a verdadeira dimensão desse gradativo
institucionalizar. Este mundo vai se estruturando em leis, que regulam e
estabelecem o que seria o mundo divino e o comportamento adequado para
com ele. Castro nos diz que, pensando as duas palavras que do vocábulo
sanctus se originaram: sancionar e sanções, teremos a noção do que ali se
estabeleceu. Apropriando-nos da questão colocada pelo autor, indagamos:
Mas o que tais palavras têm a ver com o mundo divino?
Retomemos a questão das leis. No cerne da questão está o embrião, a
definição e o alcance da Lei. A depender do contexto, do significado, lei
pressupõe um sistema. Mas o que é um sistema e quem o legitima? Que poder
o gera e o move? Na dimensão em que vigora o sistema em torno de sanctus
há uma única fonte: o homem. Este sistema diz da ordem, do mundo ordenado,
de fato com auxílio do divino. O mundo ordenado e organizado diz do homem e
do Cosmo. Abandona-se com essa ideia o real em sua dimensão de Caos.
Segundo Castro, os mitos nesta concepção dizem respeito ao Cosmos e ao
homem. Ou seja, o mundo divino assim disposto, diz de uma ordem cujo centro
é o homem. Daquela percepção inicial e indefinida da presença do sagrado,
que se denominou no vocábulo fanum, sucedeu-se outra, mais delimitada:
templum.
Esta palavra que não só denomina um espaço limitado, mas também um lugar especial, diferente dos outros espaços. Anteriormente todo espaço era fanum. A progressiva delimitação do espaço ainda passou por um estágio anterior: cada casa de alguma maneira era um fanum. Vemos por aí como a percepção do divino não se fazia a partir de uma instituição particular. A família e seus deuses, seus manes, seus antepassados e sua memória se confundiam com o sagrado (CASTRO, Ibidem.).
Fanum se tornou templum, configurando espaço demarcado e bem
definido, delimitado. Tudo que estivesse diante ou a redor do fanum/templum
era pro-fano. Assim temos que profano e não-profano (depois denominado
127
religioso) em essência são percepções do real restringido a Cosmos, à ordem.
Ou seja, anterior a isto, religioso e profano não se distinguiam. Enquanto
sistemas, apenas aparentemente se opõem, sendo ambos regidos, governados
pelas leis da ordem. O não-profano ou religioso se dirige ao divino visto a partir
do homem; enquanto que o profano se dirige ao mundo do próprio homem.
Com relação às palavras derivadas de sanctus mencionadas anteriormente,
ambas se estabelecem e se aplicam nos dois mundos no estabelecer e
sancionar leis e suas sanções.
De um modo geral o que predomina em relação ao divino é o real
percebido e compreendido a partir dos conceitos advindos de sanctus. No
entanto, tudo pode parecer mais claro se nos dedicarmos a pensar e entender
o que o termo sagrado nomeia. Segundo Benveniste (Apud CASTRO, Op. cit.)
o vocábulo sacer diz da tentativa do homem de se voltar para o real e
compreendê-lo, não a partir de si mesmo, mas do incompreensível, do que por
ele não é compreendido. Sacer diria de um mergulhar no desconhecido,
mergulhar no Caos. Um salto no abismo, no mistério; um lançar-se naquilo que
antecede e ao mesmo tempo ultrapassa toda e qualquer ação do homem.
Refletindo sobre a essência da ação há de se encontrar caminho nas veredas
do real. Através de sua ação o homem ordena o real. É através desta ordem
advinda de suas ações que o homem mapeia a realidade e busca compreendê-
la. Por outro lado percebe com clareza a presença do mistério, daquilo que não
se curva ao ordinário. Há sempre algo que foge à sua ação, que não se deixa
ordenar. Por mais que busque ordenar e ordene, o homem conclui que o real
excede, estando de algum modo acima de seu limitado senso de ordem.
Percebendo a incapacidade de ordená-lo em totalidade, o homem entende que
o próprio real também age. Vemo-nos diante de uma Lei maior que as que
firmamos anteriormente, quando percebemos a ação dessa força
incompreensível, inexplicável. Diante dessa força que configura a ação do real,
não excedemos a condição de espectadores. Quando em nossas vidas somos
conduzidos ao que não podemos ordenar, onde todos os sistemas dos quais
dispomos demonstram sua ineficiência e toda força que conhecemos entrega-
se em tibieza, estamos diante daquilo que se nomeia o Sagrado. O Sagrado
128
rege e é regido por Lei que não segue os parâmetros do mundo em sua ordem,
independe do homem e seu querer, esta Lei não está sujeita a sanções. É o
vigorar de verdadeira força propulsora de todo criar. É vigor do Caos, onde,
como nos afirma Castro, repousa a possibilidade de proveniência de todo
Cosmos. Diante do imensurável desta ação, cabe ao homem apenas silenciar
em reverência. Contudo, não se trata de força aniquiladora, mas de força que
conduz à plenitude da condição humana.
Bispo experienciou esta força sagrada. Na implosão da causalidade, na
não linearidade do tempo narrativo onde presentepassadofuturo são um.
Tatuados em bordados no corpo do Manto, podemos entre-ver a força do
Caos. Diante do desconhecido, do delírio inspirado que se apresentava como
força do extraordinário no ordinário de seus dias de interno, diante do Sagrado,
a Bispo só restou a potência de três verbos: silenciar, jejuar e obrar,
entregando-se à ação que o moveu em sua re-construção de mundo. Bispo
percebeu, enquanto artista-louco, que em essência, desejo e liberdade
caminham juntos, mas são distintos. Bispo percebeu-se mecanismo de uma
força maior, a força da criação, e fez de sua existência uma ode ao trabalho,
pois cria em algo que sabia maior do que si mesmo. Bispo não teve querer,
aquele subjetivo; teve poder. Poder ser. Viveu a vida em jogo de mando e
obediência. Lembrando uma vez mais as palavras de Manuel de Castro,
dizemos que apenas impulsionados por nosso querer somos, como Édipo,
conduzidos mais rapidamente à realização daquilo que não queremos, e o que
queremos não se realiza. Desejo e liberdade são como essência e aparência.
Há em todo construir a possibilidade do operar da ação aparente e/ou da ação
essencial. A ação aparente é movida por nossos desejos, nela realizamos
tendo por suporte nossas leis e sistemas institucionais. Todas as nossas
pseudo-ações, como em Édipo que tenta alterar o curso de seu destino, nada
mais fazem que reafirmar e realizar os desígnios contidos na ação do real.
Quanto à liberdade, esta se move na e pela ação essencial. A essência da
diferença entre desejo e liberdade, ação aparente e ação essencial consiste no
fato de que não somos nós a realizar a segunda, é ela quem nos realiza. É o
sagrado operando em nós.
129
6.8. A Finitude - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Às vezes, só para me sentir vivendo,
penso na morte. A morte me justifica.
Clarice Lispector
Sabemos que o Manto da Apresentação é Sagrado não por sua
presença ser proveniente da necessidade de traje daquele a quem a
alucinação fez messias, mas sim pela beleza do ordinário que ali se faz
extraordinário – em parte pela gênese de pobreza, precariedade dos materiais
que dão corpo à riquíssima peça. E especialmente, pelo que se mostra no
aberto, doando-se ao ver: fim e perenidade caligrafados em mortalha que
celebra a vida e cobre o vazio, desvelando-o. No mostrar o vazio faz o nada
aparecer, o Nada que também é Deus. Neste mostrar, que é um mostrando-se,
temos o vigorar do Sagrado. A Arte manifesta o Sagrado, ao mesmo tempo em
que o Sagrado manifestando-se plenifica o homem-artista Arthur Bispo do
Rosário, ao invalidar as leis da psiquiatria e da sociedade que furtam ao
diagnosticado paciente mental a possibilidade de ação, de poíesis. A ação do
Sagrado revela num “louco” a possibilidade de ser artista. No operar do
Sagrado o fundar-se de um grego intempestivo. Na Grécia, “o maravilhoso não
é o extraordinário, mas o ordinário. O que provoca espanto e admiração é
deixar o Ser ecoar e bruxolear no e através do fazer” (LEÃO, 2010, p. 80).
No Manto há o operar de um empenho que se dedica a re-criar um modo
de ser, e assim re-inventa o perfil de uma fisionomia no transfigurar do paciente
psiquiátrico excluído da sociedade, em artista de renome internacional. Mas
também há questão maior, que se firma no diálogo que o Manto enquanto obra
propõe: a consciência humana da finitude. Limite e não-limite. Morremos desde
o nosso primeiro instante de vida. A grande dor se faz da consciência que
temos disto. Esse é o destino humano. A cada destino entrecruzado, um nó: o
dar-se das relações humanas – familiares, pessoais, sociais. Ao homem o
destino. A cada nó, possibilidades. Redes: menores, maiores. Os fios e os nós
otimizam a tessitura da rede, mas sua condição de existência é o dar-se do e
130
no vazio. Sem vazio não há rede. A toda e cada rede (menor, maior) um
mesmo vazio, ainda que não possamos aferir. Muitas réguas, todas
insuficientes. Santos, loucos, artistas, cientistas, lavradores, poetas: Homens
Humanos: todos doação de um mesmo vazio. No entanto enquanto alguns se
agarram aos nós, outros se lançam, saltam sobre o abismo. Entrega, renúncia.
Aquele que renuncia faz o nada aparecer. O poeta sabe: “perder o nada é
empobrecer” (BARROS, 2002, p.163).
O Manto. No Avesso, o corpo-alma. Talvez a responsabilidade poética
não seja mesmo transmitir ou significar, mas questionar e no questionamento
abrir o caminho da sutura, re-estabelecimento do humano do e no homem. O
que nos difere dos demais animais, além da capacidade de sonhar, é o que
antes já afirmamos inúmeras vezes: a consciência da finitude. Temos mais
certeza da morte que da própria vida e isso, por vezes, nos esmaga. Melhor
pensar ser a vida apenas um afago da morte, e ser. Mas há a fome. Fome em
continuar sendo. Mesmo depois de. Para esta fome não há saciedade. Para
aliviar da consciência da morte, possibilidades: a letárgica alienação ou a
renúncia. Bispo faz sua escolha. Ou teria sido escolhido? Nos bordados
cânticos de renúncia, re-anunciam a origem. No que é próprio ao artista Bispo,
fios de fé e delírio criativo se entretecem em diálogo com o indizível. Cada
bordado uma prece. Tudo de belo e precioso é unido na feitura do traje de gala,
para ocasião de suprema honra, quando face ao criador prestará contas,
apresentando o registro de todo agir. A renúncia toma corpo no manto. Re-
anunciar a vida é fundar mundo. Palavras aliviam da fome insaciável de viver-
morrer-viver. Vida perpetuada no nomear.
Olhar o avesso do manto e convocar a lembrança:
[...] como se eu escrevesse um poema sobre o nada e me visse de
repente encarando frente a frente o próprio nada. Deus é uma palavra?
Se for estou cheio dele: milhares de palavras metidas dentro de um
jarro fechado e que às vezes eu abro – e me deslumbro. Deus palavra é
deslumbrador (LISPECTOR, 1999, p. 127).
131
Bispo ansiava viajem, mas havia a necessidade: EU PRECISO DESTAS
PALAVRAS ESCRITA. Manuel de Barros já nos disse antes: “este Arthur Bispo
do Rosário acreditava em Nada e em Deus”. No avesso do manto o registro:
nomes bordados a serem lembrados diante do Criador. Em todo sistema há o
desfigurar do homem. Neles há a generalidade, a ausência dos nomes. Apenas
sujeitos a desempenharem funções, papéis. Há um quase anonimato daqueles
que os compõem. Bispo, homem-artista, fora dos sistemas – seja os da arte,
seja da sociedade – percebe a essência do ser-com, e nomeia: ... ... Aracy
Rodrigues Arruda, Helena, Dagmar... ... ... ... Cacilda, Heloisa Sampaio, Célia,
Luisa, Josefa, Eugênia, Laura, Antonieta, Maria de Lurdes, Dalmira, Regina...
... ...Afetos.
O Manto, vestindo o sagrado os acolhe no verso. Nos bordados, o
nomear. Se a alma fosse o avesso do corpo, o avesso dos feitos haveria de ser
os afetos. No entanto, sabemos não haver a dicotomia alma-corpo se
pensamos Corpo para além do dar-se da carne, da vida enquanto bios. Não há
alma e corpo, mas sim homem-corpo em um único ato, ou seja, eK-sistência.
No que se refere aos afetos, ouçamos uma vez mais o que nos diz Gilvan
Fogel:
Ao se falar de afeto, costuma-se de imediato representar ou imaginar o homem, assim como o mundo e todas as coisas, como algo já dado, constituído, e que o homem o sujeito, seria dotado do poder ou da capacidade de ter afetos, de ter sentimentos ou humores. Assim, quando se relaciona coisa, algo, enfim, realidade a humor ou afeto, pensa-se, imagina-se subsequentemente o homem, enquanto sujeito, tendo afetos ou humores, os quais somados, acrescentados às coisas, à realidade e, então, as coisas ou a realidade como um todo passam a ter e ser também afetos, humores e sentimentos. Os afetos e os humores seriam projetados, introjetados às coisas pelo homem, pela subjetividade ou pela emocionalidade humana. Esta de modo geral é uma maneira psicológica, antropológica ou antropocêntrica de se entender e de se mal entender humor, afeto, realidade e, sobretudo, o próprio homem (FOGEL, 2010, p. 9).
Na verdade precisamos compreender, com a ajuda do pensamento de
Gilvan Fogel, que a questão do afeto não gira em torno do homem numa
132
relação sujeito-objeto. O homem não tem afetos, o homem é afeto, as coisas
são afeto. A vida, a existência que é desde sempre in-sistência, pois
encarnada, encorpoada, já seria sempre humorada, sempre sob a forma de um
afeto, a que podemos chamar também interesse. Afeto então seria o tônus ou a
determinação da vida, do real. Afeto é corpo, que é antes de mais nada
experiência, história, ação, drama (FOGEL, 2010).
Nos nomes tatuados no corpo-afeto do manto: mulheres. Guardiãs do
mistério da vida. Do experienciar. Do dissimular entre aberto e fechado da
existência. Vida-mãe, morte-amante? No verso-avesso da obra o nomear em
hábeis bordados é um reafirmar da importância do vocábulo tékhne. A palavra
tékhne não nomeia o fazer, mas sim o saber, sendo o saber, um saber ver. “A
visão suporta e guia toda a explosão da vida humana na totalidade do real e no
universo das realizações” (LEÃO, 2010, p. 83).
Na tékhne, acontece assim um esforço do homem por si mesmo e pelos outros. Neste sentido, a tékhne guia e fundamenta toda lida do homem com qualquer real, seja como real que já se dá e oferece por si mesmo, seja como real, que resulta da ação de uso e produção, de cultivo e cuidado de suas mãos. Mas em todos estes modos de ser não é nunca o fazer e operar a manufatura e operação o que, na tékhne, desencadeia e carrega o processo todo de desempenho, mas é a evidência da visão (Ibidem.).
Bispo seria então um visionário? No operar da arte em Bispo temos
esse movimento de vidência que constitui o cenário de existência do homem
que se reconhece imerso em um mundo, cujo sentido é o tempo. Os artistas
não são artistas por obra e graça de sua própria vontade ou de suas mãos,
mas sim, ainda segundo nos diz Carneiro Leão (Op. cit.), pela eclosão
luminosa de aparecer e desaparecer da phýsis nas relações do homem
consigo mesmo e com todos os outros seres. O Ser é destino universal. Mas
cada um de nós é sempre movido por um próprio, um ímpeto de realidade. E
esse ímpeto, ou entusiasmo, ou ainda o que alguns chamam inspiração, é tão
profundo que sua potência é a de Eros, força criadora. Em tudo que é e está
sendo há a presença desta força, que é expansiva e alavanca a superação. É a
133
busca que não cessa, é necessidade de união. Por essa necessidade, que é
movida por esta força expansiva difusora, é que toda união é morte.
Dando voz ao personagem [dos mais intensos: Ângela em Um sopro de
Vida] Clarice Lispector, nessa derradeira obra, talvez pela consciência da
proximidade da própria morte, discute a finitude. Diz escrever como quem tenta
salvar a vida de alguém. “Provavelmente a minha vida”, afirma. Vai mais além
quando diz: “Viver é uma espécie de loucura que a morte faz”.
No Manto da Apresentação, a mais bela poesia manifestada em verso e
anverso, distinguimos muitas questões, entre elas a própria condição de ser do
artista, (consciência?) do fato de que entre as possibilidades que vigem no Ser,
está o reconhecimento de que há na natureza uma sabedoria que o faz, depois
de criado [enquanto aquele que se deixa tomar pelas questões], mover-se
sempre, sem descanso – ainda que desconheça pelo quê. Há apenas uma
vaga intuição. Algo como a insistência de um saber, que em verdade é tão
somente o reconhecimento de um não-saber. A questão que o move e se
apresenta como a mola propulsora de todo criar, constituinte de nossa
humanidade é a consciência de viver-morrer. Vida-morte, suplementares ou
complementares no movimento poético-circular da existência? A morte faz
parte da vida ou seria a vida a fazer parte da morte? Uma imbricando outra.
Contudo, haveremos de experienciá-las cada qual ao seu tempo. No cessar
desta, aquela. À parte isto, o Nada. Nada que é princípio-fim
Da morte ouço dizer...
Vida-Morte é espera. Eks-pera.84
A vida é limite do não-limite que é a morte.
Da vida, buscamos a piedade de um sinônimo:
Viver é Criar.
84
Do grego: “Peras diz em si o que no eclodir chega ao limite. Já o –eks indica o que já desde sempre dá o impulso para fora, para além, isto é, o não-limite” (CASTRO, Presença e Forma. Disponível em http//travessia poética.letras.ufrj.br). A vida é o limite do não-limite, que é a morte.
134
7. Arremate - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Observamos os fios e realizamos análise de nosso percurso. Mas não
aquela análise que rege o horizonte dos conceitos, mas outra, a que Bispo
conheceu e liberta. Heidegger nos diz que o uso mais antigo da palavra análise
data da Grécia de Homero, no segundo livro da Odisseia. Análise nomearia o
fazer noturno de Penélope, ou seja, destecer a trama que tecera durante o dia.
Análise em grego diz do desfazer de uma trama, mas também diz soltar,
libertar, abrir as algemas, podendo significar até o desmontar os pedaços de
uma construção.
No destecer da trama do uniforme para o bordado, a análise o conduzirá
à sanidade de re-conhecer-se como ser-no-mundo. O fio azul a guiá-lo pelo
labirinto escuro em direção a Luz da criação o conduziu à obra, que já é desde
sempre saúde. Neste Madras, muitos fios: de sensações, sentimentos,
crenças, sagrações, sanidade, loucura e fé. Todo um oceano de vivências que
se entrelaçam e tecem o próprio de Bispo, que ao lançar mão sobre o tecido
essencial de sua existência funda mundo. No artista o devir alfaiate: no cortar e
coser, a obra. No conjunto das obras, a poética constitui tecido. Sobre este, em
metacostura, riscamos, cortamos, cosemos e descosemos o pensamento
diante das inúmeras questões.
No arremate não há pretensões de amarras – no avesso da escrita,
linhas que permanecerão soltas, posto que em arte e pensamento toda costura
não excede a condição de alinhavo.
A Arte como enigma. Quanto mais nos aproximamos, mais foge de nós;
tanto mais nos afastamos, mais nos avizinhamos de suas cercanias, em
inesgotável oximoro: “fugir para”. Enquanto Penélope faz sua análise, Ulysses
navega. Assim seguimos, nesse tempestuoso oceano, na condição de
navegantes entre as muitas fragatas bordadas, atraídos por aventura que
somos incapazes de recusar, e que tão pouco poderemos levar a cabo. Não há
135
pretensões de encontrar porto seguro, ilha onde ancorar; seguimos desejosos
apenas de termos sido capazes de avistá-la através do nevoeiro. Saber de sua
existência. No mapa impreciso que nossa torta cartografia insiste em esboçar,
apenas o fantasma de um “X” não assinalado, a garantir a inacessibilidade às
terras vagamente avistadas e novamente perdidas no incansável movimento de
velar-se e desvelar-se da verdade, que constitui a topologia do real.
Seguimos. Quase à deriva. Sempre amantes do vento...
136
8. Bordado - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Fragmentos sagrados e profanos urdiram este Madras – cortar, coser e
descoser. Um traje, um manto – a escrita.
No acúmulo de toda sorte de crenças, por vezes, na descrença – fé,
pensamento, poesia – sacralidades. A Arte, o Sagrado, aproxima-nos menos
de Deus que de nossa humana condição. Sagração dos relatos, vivências
perenes em obra e todas as possibilidades de sermos, em movimento:
angústias, alguma certeza e dúvidas atrozes conduzem a questão que se
estabelece paradoxal: eterna finitude. Seguimos. Santos em nossa
humanidade poética – na errância de vivermos o que julgamos vida, e
morrermos o que entendemos morte. Para cada milagre cotidiano e suas
particularidades – que em Arte se fazem eternos, universais – um ex-voto e
uma prece:
[...] Porque não espero mais voltar Que estas palavras afinal respondam Por tudo o que foi feito e que refeito não será E que a sentença por demais não pese sobre nós
Porque estas asas de voar já se esqueceram
E no ar apenas são andrajos que se arqueiam No ar agora cabalmente exíguo e seco Mais exíguo e mais seco que o desejo Ensinai-nos a estar postos em sossego.
Rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte Rogai por nós agora e na hora de nossa morte.
(Fragmento de Quarta-feira de cinzas - T.S.Eliot)
137
9. Chuleio - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Ilustração 1
Manto da Apresentação (Anverso)
Tecido, linha, papel e metal. 118,5 x 141,2 cm
Detalhe
138
Ilustração 2
Verso (ou avesso) do manto
Bispo trajando o Manto
139
Ilustração 3
ORFAs
Ilustração 4
Bispo trajando o fardão Eu vi Cristo ao lado de uma das vitrines
140
Ilustração 5
Canecas
Assemblagem
Madeira, alumínio, metal, papel, PVa e tecido. 110 x 47 cm.
141
Ilustração 6
Roda da Fortuna, Bispo do Rosário. Madeira, metal, plástico e PVA. 67x 29 x 51 cm.
142
Ilustração 7
Vinte e um Veleiros, Bispo do Rosário
143
Ilustração 8
Daniel Spoerri: Instalação
Daniel Spoerri: Chair
144
Ilustração 9
Obras de Arman
145
Ilustração 10
Roda de Bicicleta 1913/1964 – Marcel Duchamp
Ilustração 11
Fonte 1917/1964 – Marcel Duchamp
146
Ilustração 12
Parangolé – Hélio Oiticica
147
10. Aviamentos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - AGAMBEN, Giorgio, “Elogio da Profanação”. In: Profanações. Trad. Selvino J.
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