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KEN FRANCIS KAIRALLA KUSAYANAGI MADRUGADA DO ESPÍRITO. UMA ANÁLISE DAS CATEGORIAS DO PENSAMENTO DE PLÍNIO SALGADO Monografia apresentada para obtenção do título de bacharelado e licenciatura em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Carlos Alberto Lima CURITIBA 1999

MADRUGADA DO ESPÍRITO. UMA ANÁLISE DAS … · a apresentação de Madrugada do Espírito ...resolvi organizar uma espécie de antologia dos meus escritos, a partir do tempo em que

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KEN FRANCIS KAIRALLA KUSAYANAGI

MADRUGADA DO ESPÍRITO. UMA ANÁLISE DAS CATEGORIAS DO PENSAMENTO DE PLÍNIO SALGADO

Monografia apresentada para obtenção do título de bacharelado

e licenciatura em História, Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Carlos Alberto Lima

CURITIBA

1999

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................1

2 UM PACTO SUICIDA: A SOCIEDADE OCIDENTAL ANTI-CRISTÃ...........................7

2.1 O ESPÍRITO BURGUÊS........................................................................................................9

2.2 CÉLULAS INDEPENDENTES: O INDIVIDUALISMO ENDÊMICO............................10

2.3 CÉLULAS E O ORGANISMO: O IDEAL FAMILIAR DE PLÍNIO SALGADO.............11

3 O RISCO DA MASSIFICAÇÃO INDIVIDUALISTA.......................................................19

3.1 POR QUE NÃO LER O PATO DONALD?........................................................................24

3.2 SANGUE FRESCO: A VERDADEIRA MISSÃO DA JUVENTUDE...............................28

5 CONCLUSÃO........................................................................................................................31

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................36

ii

1

INTRODUÇÃO

A forma de pensamento nacionalista-autoritária, possui aquilo que Marilena Chauí define

como, adaptação de imagens ao discurso. A justaposição de imagens, a evocação de um antigo

ideal de nação, fazem parte do arranjo imagético onde se constrói uma idéia de sofrimento

universal que torna imprescindível uma revolução também universal, que substitua a imagem do

presente por uma anterior, com valores diferentes1.

Uma imagem muito recorrente no discurso pliniano, é a do progresso destruidor, um

exemplo da aplicação de artifícios imagéticos ao discurso, muito usado por Plínio Salgado ao

tratar da evolução científica de sua época, e suas conseqüências sociais, traduzindo um

sentimento contrário dos benefícios da relação entre a “máquina”2e o homem. Como defensor de

uma economia de base rural, P. Salgado acredita numa vocação agrária do Brasil, e num ideal de

sociedade comunitária baseada na família e no município. O progresso tecnológico, bem como a

industrialização, sempre foram vistos com desconfiança ...”a máquina expulsa os homens das

usinas. O homem morre de fome nas ruas. A fome gera a revolta e o ódio”. (Madrugada do

Espírito, p. 20) A ciência e a tecnologia, segundo P. Salgado, não caminharam junto com o

“progresso humano”3, de forma que em lugar de fomentar o desenvolvimento do homem,

contribuíram para a “desumanização”4 deste.

Outro artifício imagético usado por nosso autor, é o da decadência dos costumes e modos

da burguesia cosmopolita. A crítica ao estilo de vida burguês, já era muito comum nos anos 20 e

30, e fazia parte de um discurso nacionalista defendido sobretudo pelos intelectuais da época, que

se encontravam num constante embate com as idéias liberais5. Alcir Lenharo identifica tal

confronto ideológico, ao analisar a Marcha para o Oeste, um programa desenvolvimentista do

Estado Novo, que contou com a participação de inúmeros intelectuais da época, em especial

Cassiano Ricardo. A Marcha, traduz a idéia da nação em movimento, ou seja caminhando em

1 CHAUÍ, Marilena. Ideologia e mobilização Popular. 2a edição. São Paulo: Paz e Terra. 1977. P. 45. 2 P. Salgado ao se referir ao termo “máquina”, faz alusão a uma suposta modernidade científico-tecnológica, caracterizada sobretudo por mudanças sociais, econômicas e culturais, de caráter altamente destrutivo. 3 Este progresso humano, pode ser entendido, enquanto uma grade de valores espirituais e morais. 4 Esta expressão, diz respeito a uma alteração dos hábitos e das relações sociais , por meio do incremento tecnológica na vida do homem 5 PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil. São Paulo: Ática. 1990. P. 44.

2

passo cadenciado (militarização do corpo), revisitando um passado com o intuito de construir um

presente melhor.

A Marcha usa artifícios imagéticos, (uma clara influência fascista) para atingir de forma

mais eficiente o receptor do discurso6. O avanço rumo ao interior, tem um objetivo doutrinário: a

glorificação de uma história de bandeirantismos e desvabramentos, que possa envolver a todos

num sentimento uno de pertencimento a uma nação, com suas tradições e passado comuns, numa

tentativa de conciliar o Brasil Estado e o Brasil Nação. A marcha para o interior enfatiza a

comunhão de sentimentos; a brasilidade almejada pelos intelectuais e por Vargas, estava atrelada

a uma idéia de interiorização do país, que circunscrevia um confronto: o litoral cosmopolita X o

interior puro e selvagem7. Este embate entre interno e externo, entretanto, atua como artifício

imagético, que não alcança o estatuto teórico de análise, sendo apenas uma dimensão descritiva

do discurso nacionalista, usada para obter a cristalização da unidade nacional e conter a oposição

de classes; segundo as palavras de Marilena Chauí: “o papel das imagens é claro: despertar no

destinatário do discurso não só o sentimento da necessidade de agir, mas também a idéia de que

aqueles que direcionam o discurso podem ser os condutores da ação”8.

Além dos arranjos imagéticos, uma outra intrigante característica do discurso pliniano, é a

ênfase dada ao espiritualismo e temas cristãos em seus textos doutrinários; diga-se de passagem,

que o tema espiritualista é citado em praticamente todo o seu discurso antes, durante e após a

AIB. Mas antes de mais nada, é necessário saber as diferentes influências do pensamento

pliniano. Marilena Chauí baseada em Jarbas Medeiros, apresenta 5 períodos do pensamento

pliniano9:

1a fase: nativismo romântico, sob influência da Semana de Arte Moderna de 1922

2a fase: influência fascista ( 1930-1932 )

3a fase: o integralismo torna-se ação partidária ( 1935 )

4a fase: o exílio e o missionarismo cristão ( 1938-1945 )

6 LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. Campinas. SP: UNICAMP. 1987. P. 53-75 7 A Marcha para o Oeste, prioriza o encontro do Brasil com suas origens, numa tentativa de despertar um sentimento de pertencimento à uma nação. Também, e acima de tudo, tem um sentido de mobilização social, objetivando uma suposta conciliação dos diferentes extratos sociais, anulando qualquer espécie de embate entre classes. 8 CHAUÍ, Marilena. Ideologia e Mobilização Popular. 2a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1978. P. 47 9 CHAUÍ, Marilena. Notas sobre o pensamento conservador nos anos 30: Plínio Salgado. In: MORAES, ANTUNES, FERRANTE ( org ). Inteligência Brasileira. Rio de Janeiro: Brasiliense. 1986. P. 41.

3

5a fase: aceitação da institucionalização democrática ( 1946 )

Por meio deste quadro, pode-se ter uma noção de toda uma variedade de idéias que

nortearam o discurso de Plínio Salgado, em diferentes momentos de sua vida. Podemos aplicar

também, para melhor elucidar uma constituição do pensamento pliniano, aquilo que Ricardo

Benzaquen de Araújo chama de “síntese ideológica”10, que seria fruto de uma seleção de idéias

importadas, adaptadas a um nacionalismo peculiar; esta síntese se divide em:

-positivismo

-espiritualismo católico

-pensamento fascista

-nacionalismo modernista

Ao propor esta dissecação das influências ideológicas, e o uso de imagens no discurso de

Plínio Salgado, pretendo colocar em discussão a flexibilidade discursiva, que este demonstrou no

decorrer de sua vida. Basicamente a doutrina integralista, pouco mudou após a AIB cair na

ilegalidade, P. Salgado apenas enfatizou, ora mais, ora menos, determinados aspectos da

doutrina, que poderiam ser mal recebidos naquele momento político pelo qual o Brasil passava (o

fim do Estado Novo, e a democratização após 1946). Com a derrota do Eixo, houve uma

progressiva deterioração das idéias fascistas no Brasil, e o discurso integralista perdeu, ou melhor

precisou de algum modo ocultar o seu conteúdo autoritário, que até então era a sua principal

referência. Isto bastou para que uma grande lacuna ficasse em aberto dentro dos pressupostos

político-doutrinários de P. Salgado, levando-o a enfatizar temas que pudessem substituir ou

esconder, aqueles fundamentos fascistas do integralismo, sem que anulasse por completo toda sua

obra política anterior. Alguns elementos mantidos do integralismo dos anos 30 foram: o combate

ao comunismo, a crítica à sociedade burguesa , o respeito à família e a afirmação de valores

morais e cristãos, em contraposição ao materialismo.

A ocultação dos temas mais cruciais do integralismo dos anos 30, entretanto, não apagou

alguns aspectos fascistas do discurso pliniano, a saber, o uso de artifícios imagéticos, continuou

presente nas obras de Plínio Salgado. Entretanto, o que procuro destacar aqui, é a maior presença

de elementos cristãos nas obras de P. Salgado após o seu retorno do exílio em Portugal. O

10 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e Revolução. O Integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988. P. 25

4

espiritualismo sempre fez parte do corolário integralista dos anos 30, inclusive está entre uma das

motivações (apesar de modesta) de adesão da AIB, analisadas por Hélgio Trindade11. Para

analisar esta mudança de ênfase do discurso pliniano, usei Madrugada do Espírito, uma

coletânea das obras de P. Salgado reunidas enquanto este estava no exílio em Portugal, e que traz

no prefácio a seguinte afirmação ...“de cada um destes livros, escolhi o que me pareceu mais

expressivo do meu pensamento, o qual vem do Cristo e vai para o Cristo”. (Madrugada do

Espírito p. 9)

Madrugada do Espírito foi a princípio, dirigida ao público português, mas também foi

editada no Brasil, e serviu como uma tentativa frustrada de nosso autor, de se retratar com o

público brasileiro, mostrando uma “evolução” nas suas idéias: “... quis dar a conhecer ao público

português como se processou a evolução de meu espírito, até chegar à síntese de toda minha obra,

que é a Vida de Jesus”. (Madrugada do Espírito p. 9). Esta reciclagem das idéias de P. Salgado,

desemboca numa obra religiosa (A Vida de Jesus), que lhe valeu uma medalha de honra dada

pelo Vaticano. A adoção deste livro como fonte, se deve ao fato dele ser um divisor de águas, do

P. Salgado Chefe Nacional da AIB, para um P. Salgado voltado para uma discussão de valores

religiosos e morais, dentro de uma sociedade recém democratizada; mais uma vez, é preciso citar

a apresentação de Madrugada do Espírito

...resolvi organizar uma espécie de antologia dos meus escritos, a partir do tempo em que me principiei a tratar dos problemas sociais, políticos e culturais que afligem a humanidade de hoje... Cheguei assim à plenitude das minhas aspirações, porque vejo agora aberto, evidente, o Caminho, o único Caminho. Vejo porque brilha no céu da minha vida o Sol Verdadeiro, o Salvador do Mundo a quem peço humildemente que nunca deixe de brilhar... (Madrugada do Espírito p. 5)

O outro livro que analisei, foi Reconstrução do Homem, que também pode ser encarada

como uma outra obra de transição, que figura a fase de aceitação da democracia por Plínio

Salgado. Neste livro que data de 1956, nosso autor dá destaque a uma crítica ao sistema

educacional, e a instrução moral e cívica dos jovens. P. Salgado chama a atenção, para a

importância que deve ser dada à educação e instrução da juventude, pois vê nela uma garantia de

11 TRINDADE, Hélgio. Integralismo. O Fascismo Brasileiro na Década de 30. Rio Grande do Sul: URGS. 1974. P. 352. Apesar de ser uma motivação modesta, o espiritualismo ainda sim era um elemento importante do integralismo; isto pode ser percebido nas boas relações da AIB com alguns segmentos da Igreja Católica; além de conceitos espiritualmente atrativos tais como A Revolução Interior e a Trindade Deus, Pátria e Família.

5

futuro para a democracia, e uma forma de perpetuação das tradições nacionais. Em

Reconstrução do Homem, P. Salgado se ocupa também, em criticar a exposição da juventude a

formas de entretenimento fúteis, que não se comprometeriam em divertir, mas sim em destruir a

personalidade do jovem, tornando-o improdutivo e alienado. Nosso autor neste momento, tenta

identificar seu discurso com a democracia, e isto fica evidente quando denuncia um suposto

projeto totalitário em andamento, representado pela tecnocratização, e pelas formas de

entretenimento alienantes, responsáveis por uma “massificação” das opiniões, e pela anulação da

personalidade.

Através do uso destas duas obras, me proponho a analisar algumas categorias de P. Salgado

como a crítica dos costumes, o papel da família na formação do indivíduo, e a instrução moral e

cívica da juventude. Estes aspectos vistos mais de perto, denunciam uma sobrevivência de

elementos fascistas no discurso pliniano pós AIB, mostrando claramente que nosso autor, apenas

realizou a triagem de alguns aspectos de seu discurso, excluindo aqueles mais voltados ao

Fascismo.

A análise destas duas obras, se compromete em avaliar o discurso de P. Salgado por uma

outra ótica, menos voltada a uma História dos Movimentos Sociais, e mais próxima de uma

História das Idéias12, atuando enquanto um estudo do pensamento sistemático de P. Salgado,

enfatizando algumas categorias do seu discurso (especialmente aquelas relativas aos costumes e a

moral), que constituíram a base de seu pensamento após a extinção da AIB.

Durante os anos 30, em que a AIB e as idéias autoritárias estiveram em alta, a discussão

em torno de temas como o comportamento e a moral, recebeu um modesto destaque dentro dos

pressupostos doutrinários da AIB, sendo temas como o corporativismo, a mobilização popular e a

Revolução predominantes. Entretanto após a AIB ser posta na ilegalidade, deixando de atuar

enquanto movimento político, estas categorias antes acanhadas, receberam um destaque maior,

tornando-se parte essencial do discurso de P. Salgado após o seu retorno de Portugal. A realidade

democrática que o Brasil experimentava no momento de seu retorno, obrigou P. Salgado a adotar

12 DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette. São Paulo: Cia das Letras. 1990. P. 265

6

uma posição defensiva, ocultando o seu passado fascista, “reordenando” suas idéias, e por fim

denunciando uma suposta conspiração totalitária que colocaria o futuro da democracia em jogo.

7

UM PACTO SUICIDA: A SOCIEDADE OCIDENTAL ANTI-CRISTÃ

As categorias do pensamento pliniano analisadas neste estudo, apontam para a dimensão

moralista de seu discurso, aonde se sobressai uma crítica do comportamento e da moral. Plínio

Salgado ao apresentar a sua crítica dos costumes, busca demonstrar a existência de uma crise de

âmbito mundial, que se desenvolve paralelamente a uma mentalidade materialista, impulsionada

por uma série de fatores e omissões. Nosso autor desenvolve o seu pensamento, baseado numa

constante: o embate entre o materialismo e o espiritualismo. O materialismo é entendido por P.

Salgado, como uma concepção de Universo e do Homem, aonde apenas as suas manifestações

físicas possuem relevância, excluindo aquelas espirituais, responsáveis pela sua porção

metafísica.

O Homem para Plínio Salgado, é uma amálgama, resultante das manifestações da sua

natureza material e espiritual; estas devem estar harmoniosamente em equilíbrio, para que

possam juntas se desenvolver, e assim guiar o homem em seu progresso; logo,...”o equilíbrio do

Homem e do seu Sentimento de Universo provinha do equilíbrio de duas forças, uma que está

dentro e a outra que está fora de sí”. (Madrugada do Espírito p. 64) O espiritualismo, é

responsável pela consciência do homem, pela sua percepção moral e pela sua crença na

imortalidade. Como parte integrante da natureza humana, a porção espiritual não pode ser

obliterada, pois comprometeria o equilíbrio necessário, que permitiria ao homem desenvolver a

plenitude de sua evolução, chamada por nosso autor de “intangibilidade”13. A natureza espiritual,

garante ao Homem uma superioridade singular no reino animal, pois somente ele compreende e

sabe da existência do sobrenatural, podendo assim, fazer uso de uma faculdade a mais do que

aquelas físicas, comum a todos os seres vivos. A consciência, é o maior atributo do espírito, é ela

que permite ao ser humano, refletir sobre as suas ações, desenvolvendo uma visão holista,

baseada em parâmetros morais, que definem os lineamentos de uma vida regrada em sociedade.

O materialismo é visto por Plínio Salgado, como um fenômeno que delineia a decadência

da humanidade, pois esta estaria regredindo à condição de selvageria, sem o controle que o

espírito outrora exerceu sobre as pulsões, e instintos. Com a adoção de uma percepção

13 A “intangibilidade” a plenitude do homem, possível apenas através do uso conjunto das concepções espiritual e material, esta aplicação conjunta garantiria uma convivência e um desenvolvimento sem igual.

8

unicamente materialista, o homem voltou a ser escravo dos instintos, que são necessários à sua

sobrevivência, mas se usados sozinhos e em todas as ocasiões, tornam-no igual a qualquer outro

animal. Assim, sem o controle que o espírito exerce sobre o homem e as suas ações, a vida passa

a ser regida pelas necessidades dos instintos, pelos vícios e pela promiscuidade,...”tendo este

[homem] se libertado do terror cósmico, que mantinha o equilíbrio contendo a deflagração das

energias interiores, viu-se, subitamente, dominado pelos duendes larvaes dos instintos

desenfreados”. (Madrugada do Espírito p. 58) Isto quer dizer que, ...”o mundo pagão, o mundo

livre, libertado de todos os terrores religiosos, de todos os preconceitos morais, o mundo

opulento, que criou o arranha-céu e o jazz, que proclamou todas as liberdades, caminha soturno e

trágico, como uma marcha fúnebre”... (Madrugada do Espírito p. 65) Livre do “terror

cósmico”, o homem desenvolveu uma civilização baseada no materialismo, no racionalismo e no

individualismo, evoluindo em termos de tecnologia, mas regredindo em termos morais. A

modernidade e os incrementos tecnológicos, são vistos por P. Salgado, como formas de

dominação da matéria sobre o espírito; o preço do conforto da tecnologia, é a infelicidade e a

tristeza que assola a humanidade.

Através da adoção de uma percepção materialista, o homem deixou de se preocupar com as

demandas do espírito, dedicando-se unicamente a saciar seus desejos instintivos e vícios, se

entregando a uma vida de excessos...”uns fogem nos vapores do álcool; outros nos entorpecentes:

a cocaína e a morfina; outros na paixão pelo jogo; outros nos esportes de sensação; outros nos

excessos dos prazeres sexuais”. (Madrugada do Espírito p. 44) Desta forma, o materialismo

cria todo um estilo de vida, aonde...”todos giram em torno de interesses. Os homens não se

amam: toleram-se, para não tornar completamente insuportável a vida”. (Madrugada do

Espírito p. 49) Para nosso autor, o materialismo cria uma sociedade nova, individualista e

pragmática, aonde o homem se torna uma peça descartável, não condizendo com a sua condição

de “intangibilidade”.

O resultado deste “mundo sem Deus”, é uma sociedade com poucos valores morais, sem

respeito à vida humana, aonde...”os suicídios multiplicam-se. Os médicos propõem a eutanásia.

[e] Os eugenistas avançados estudam os homens como simples grãos de feijão conforme as

experiências de Mendel...E este facto só, é o bastante para se provar que a nossa triste

humanidade de hoje não reputa a vida um Dom precioso”. (Madrugada do Espírito p. 44) O

9

materialismo na forma do Liberalismo, se baseia numa “falsa liberdade”, pois aprisiona o homem

em seus próprios instintos. Já o espiritualismo, seria uma força libertadora, que através dos

limites que impõem, garantiria ao homem a sua consciência de dever e de respeito,...”e isto não é

fraqueza: é a mais inexpugnável das fortalezas, porque só a capacidade da renúncia inspira a

verdadeira independência”. (Madrugada do Espírito p. 77)

O Espírito Burguês

A crítica de Plínio Salgado ao materialismo, estabelece um inimigo: o burguês, acusado

por nosso autor, de ser a personificação do materialismo. O sentimento anti-burguês, entretanto,

já era muito difundido no Brasil nos anos 20, especialmente entre aqueles intelectuais que

defendiam idéias autoritárias. O burguês, tal como o Liberalismo, era visto pelos intelectuais da

época, como uma força dissociativa que fomentava o individualismo e a luta de classes. A

“ideologia de Estado”14, elaborada pelos intelectuais dos anos 20, identificava o burguês com

interesses particulares, contrários aos da nação. P. Salgado bebeu muito desta fonte, porém, via

no burguês também um comportamento; para ele, a burguesia é um mal, uma doença contagiosa,

que perverte a todos, e mesmo assim é invejada, inspirando um mimetismo dos mais pobres...”a

filha do operário, que se prostitui levada no carro do burguesote, foi seduzida primeiro pelo luxo

da burguesinha e pela opulência da burguesona. Os homens brutais, que premeditam o assalto às

famílias para saciar a sua lascívia, não fazem mais que copiar de modo violento o rico que

assaltou habilidosamente a casa do pobre, roubando-lhe a mulher ou a filha. (Madrugada do

Espírito p. 141)

O comportamento social, e o estilo de vida opulento do burguês, são os principais alvos da

crítica de nosso autor, que identifica-os com uma realidade de vícios e promiscuidade...”olha-se

para o burguês. Está bem vestido, com o charuto na boca. Acaba de sair do clube onde demorou

duas horas para almoçar numa roda elegante. Daqui a pouco vai ter um encontro com uma mulher

que não é a sua. Esta manhã esteve na praia, semi-nu, dando pasto aos olhos nas arredondadas

14 PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990. P. 43-46. A ideologia de Estado desenvolvida pelos intelectuais da década de 20, era contra os mecanismos de mercado, e a auto-regulação do social. Desconfiava também do funcionamento do capitalismo da época, e da viabilidade do Liberalismo político e

10

formas frinéas familiares que, por sua vez, não perdem a missa mas acham natural o

nudismo”...(Madrugada do Espírito p. 137-138)

Células Independentes: o Individualismo Endêmico

O espírito burguês é fruto do materialismo, mas acima de tudo, se relaciona com uma

lógica individualista. Durante os anos 20, muitos intelectuais se dedicaram em criticar o

individualismo, apontando-o como um obstáculo aos imperativos nacionais.15 Da mesma forma,

na obra de P. Salgado, o individualismo aparece em choque com uma idéia próxima: o “fim

moral”, que pode ser entendido como um esforço, para se obter a harmonização de todos os

atores sociais, através do reconhecimento de uma ação moralisadora ostensiva, centrada na vida

familiar, e na religião, que seria capaz de desenvolver um ponto de convergência, entre os

interesses individuais e aqueles nacionais.

O individualismo é encarado por nosso autor, como uma forma de pensamento induzida

com origens filosóficas, que justifica e dá sentido a uma sociedade de valores liberais. A crítica

de P. Salgado ao individualismo, remete àquela idéia já exposta, do embate entre as forças da

matéria e as do espírito, entretanto, neste caso trata-se de uma luta entre uma forma de

pensamento ateísta e fragmentária, contra uma holista, permeada por conceitos cristãos

(integralismo). Desta forma, o Liberalismo para existir, precisa ter uma estrutura filosófica16 com

valores previamente inculcados e condicionados, que dêem relevância a suas propostas. Assim

sendo, o individualismo se aproxima de um “estilo de pensamento”17, que determina no indivíduo

econômico. Defendia a organização do social, por meio de um Estado Forte e atuante em todas as esferas da vida nacional. 15 PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990. P. 47 O imperativo nacional, é interpretado como uma prática conciliatória, que visa o desenvolvimento da nação, a partir da superação das diferenças entre as classes, estabelecendo uma direção única para os esforços e anseios de todos. 16 P. Salgado atribui as origens filosóficas do Liberalismo, aos pensadores Iluministas, que por sua vez se inspiraram nos filósofos da Antiga Grécia (...toda a obra dos pensadores e filósofos anteriores à Revolução Francesa, está impregnada de orientações do naturalismo helênico. Madrugada do Espírito p. 127) 17 MANHEIM, Karl. O Pensamento Conservador. In: MARTINS, José de Souza (org). Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo: HUCITEC, 1986. O estilo de pensamento abrange diferentes tipos de abordagem de mundo, enraizadas em diversos modos de pensamento; os princípios de um certo grupo social, atuam desta forma no indivíduo, moldando neste diferentes formas de perceber não só a política, mas também a história, a moral, enfim torna-se uma visão de mundo que relaciona as categorias do conhecimento com certos modos de pensar, que são ligados ao sistema econômico e político de certas classes sociais.

11

a sua forma de sentir, agir e responder ao mundo que o cerca. A Liberal-democracia para P.

Salgado, é a institucionalização do individualismo, e responde aos interesses de um grupo: a

burguesia.

A lógica individualista segundo P. Salgado, estabeleceu uma identidade dos fins com as

“vontades instintivas”,...”a ausência de um fim moral teve como conseqüência a generalização de

um epicurismo baseado nos apetites do indivíduo e na liberdade licenciosa”. (Madrugada do

Espírito p. 127-128) Deste modo, o individualismo retira do homem, a sua compreensão

universalista...”o individualismo é o rompimento com todas as disciplinas morais capazes de

compor o equilíbrio na sociedade, de acordo com os interesses do Espírito”. (Madrugada do

Espírito p. 102) O Liberalismo segundo P. Salgado, declarou as liberdades individuais, lançando

o homem numa luta de todos contra todos, numa clara alusão ao struggle for life de Darwin.

Nosso autor declara que a lógica individualista que norteia o Liberalismo, abalou as estruturas

sociais e morais da sociedade, que o espiritualismo anteriormente havia se empenhado em

manter,...”só o Espírito une. A matéria divide, por isso o individualismo e o Liberalismo, filhos

do Materialismo, lançaram as mais tremendas lutas sobre a Terra...”( Madrugada do Espírito p.

105)

Células e o Organismo: o ideal familiar de Plínio Salgado

Antes de concluir este primeiro capítulo, precisaremos compreender mais profundamente o

papel reservado à família dentro da obra pliniana. Aliás, seria um terrível lapso terminar este

exame sobre as categorias de P. Salgado, sem nos aprofundarmos naquele elemento que dá

sustentação, e se revela com a principal base de sua argumentação moralista: a família.

A obra de Plínio Salgado reserva à vida e a estrutura familiar uma atribuição sui generis,

como uma contraposição ao poder desarticulador do individualismo. A família constitui para P.

Salgado, um sentimento e um senso de finalidade e responsabilidade, que atua de forma positiva

na existência do homem, dando sentido e estímulo aos projetos e anseios que emanam de uma

concepção espiritual de vida. O ideal familiar, tem para P. Salgado um duplo significado: como

estilo de vida afeto aos preceitos espirituais, e como meio de regeneração moral. P. Salgado

afirma: “a comunhão do sentimento, que provém da própria disciplina das aspirações que se

12

origina directamente da concepção espiritual de vida, da idéia de uma finalidade superior, cria o

ambiente amável do lar doméstico”. (Madrugada do Espírito p. 77)

Família e lar doméstico, figuram um porto seguro, uma esfera intransponível onde o

homem se encontra acolhido e protegido de toda espécie de excessos e comportamentos lascivos.

É no lar doméstico, segundo P. Salgado, que o homem compreende o valor e a beleza da

simplicidade, do senso de limites e da “renúncia que inspira a verdadeira liberdade”. A família é

a prática da vida cristã, é nela que o homem comunga de fato com o Criador.

“há um lar humilde um trabalhador feliz na sua pobreza, porque se sente cercado de amor e do carinho de sua esposa e dos filhos... ao erguer-se do leito, tem nos lábios a súmula da sabedoria, que é uma pequena prece, em que pede o pão de cada dia, perdoa as ofensas que sofreu na vésperas, submete-se a uma Vontade Superior. À noite, ao regressar do trabalho, não vai aos clubes. Nos teatros só alguma vez aparece e, com isso, tem mais prazer do que se fosse todos os dias. Espera-o depois do labor quotidiano, num ambiente modesto onde existe uma ventura maior, que é a sinceridade do carinho, coisa tão simples e tão grande que os ricos nem sempre possuem” (Madrugada do Espírito p-76)

Mas não só no indivíduo, o poder regenerador da família atua, P. Salgado atribui ao grupo

familiar uma papel estruturador dentro do Estado (mais precisamente no projeto de Estado

Integral). A família está associada à formação moral, espiritual e até certo ponto intelectual do

homem, sendo a primeira instância articuladora de valores porque “...ela (a família) é, ainda o

meio de cultura da dignidade física e espiritual da criatura humana. É a limitação do horizonte

para que os olhos dominem os pormenores. É a paisagem que nos dá a compreensão do panorama

social” (Madrugada do Espírito p. 121)

O lar doméstico atua desta forma, como indicador de uma formação moral, cívica e

espiritual, que permite ao indivíduo, oferecer ao Estado “os lineamentos exactos”. Mas o que de

fato são estes lineamentos? Nosso autor crê numa fonte de moralidade, e a família seria a reserva

daquilo que define como “Princípios Eternos”. Por “Princípios Eternos”, P. Salgado entende

todos aqueles valores que se mantém numa posição de legitimidade, ou seja, que se atém a uma

percepção moral e espiritual, baseadas numa idéia de “verdades incontestáveis”. Estes “Princípios

Eternos”, pressupõe aquilo que Dumont define como construção holista.18P. Salgado, faz extenso

18 DUMONT, Louis. O individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. P. 234. Dumont ao se referir ao totalitarismo, afirma haver uma construção holista no conceito de Estado, dotada pela doutrina de qualidades intangíveis e legítimas, que espelham os anseios e necessidades do povo, como verdades supremas. Desta forma, evidencia-se um

13

uso deste tipo de construção, para definir aqueles valores que considera como legítimos, capazes

de assegurar a harmonia e o bom funcionamento da sociedade, já que...“hoje, pensamos em

restaurar o equilíbrio social, criando um Estado que, orientado por Princípios Eternos, vá buscar a

sua força política numa fonte moral. Esta fonte de moralidade do Estado é família. Sem a família

não há dignidade no Estado”. (Madrugada do Espírito p-121)

O embate com o individualismo, circunscreve esta oposição entre valores individualistas, e

aqueles resultantes de uma construção holista. Plínio Salgado como vimos anteriormente, acusa o

individualismo de promover a superação dos valores familiares, espirituais e morais, em prol de

uma satisfação de instintos e vontades individuais, sem qualquer nexo com um fim comum. O

individualismo, promove a clivagem destes “Princípios Eternos”, e o fortalecimento de valores

individualistas. A modernidade, segundo P. Salgado, é individualista, pois ela representa a

superação dos valores tradicionais, que outrora foram verdades absolutas. Sobre isto, seria

interessante fazer uso novamente da leitura de Dumont, no que se refere aos valores e suas

percepções. Para Dumomt, há duas percepções de valores: uma hierarquizada e outra

segmentada. A primeira pressupõe a existência de valores “superiores”, que devem ser aceitos

por todos como verdades incontestáveis; estes, se caracterizam por representar um padrão à ser

seguido e respeitado como “ideal”. Num outro sentido, há uma percepção segmentada, a qual

Dumont atribui ao pensamento moderno, que desenvolve uma percepção individual de valores

dominantes, um caráter segmentado, que não leva em conta uma ótica universalista, dando maior

ênfase à uma avaliação segmentada no que diz respeito a valores.

Esta referência à Dumont, pode nos ajudar a elucidar com maior precisão, a importância

que P. Salgado atribui à categoria familiar. A moral familiar e o seu papel numa concepção de

vida regrada e espiritual, perpassa por uma construção holista, de valores característicos de uma

configuração hierárquica. É essencial termos em mente, que P. Salgado atribui à família uma

função de bastião da moralidade. O lar doméstico figura, como o primeiro e mais importante

local de aprendizado da cidadania, pois estaria encarregado de inculcar valores morais,

intelectuais e espirituais, seguindo os “Princípios Eternos”. O lar, seria não só uma barreira

caráter fortemente estruturador de uma hierarquia de valores legítimos e ilegítimos, onde o Estado seria o responsável pela propagação e garantia dos primeiros.

14

moral, mas também um local de assimilação, aonde o indivíduo aprende a aceitar tais valores

como sendo “superiores” e a condicionar a sua existência de acordo com eles.

A família e o lar doméstico, existem enquanto instrumento de manutenção da harmonia

social, funcionando como modelo e catalisador do Estado Integralista, já que...“o Estado

Espiritualista e cristão é o que se propõe a manter o equilíbrio entre os grupos, a fim de assegurar

a intangibilidade do Homem. A família é o Grupo Síntese, que oferece ao Estado o sentido dos

lineamentos exactos”. (Madrugada do Espírito p-121)

Ora, sendo a família responsável pelas primeiras e mais importantes lições na formação do

indivíduo, cabe a ela também a função de modelo de harmonia e equilíbrio. Assim, a família e o

lar doméstico se comportariam como forças apaziguadoras dos conflitos sociais, pois se

relacionam com uma lógica conciliadora. Assim sendo, a família está profundamente sintonizada

com o “fim moral”, ou seja ela é o meio através do qual o homem se identifica com os mais

profundos e corretos anseios. O lar doméstico se impõe, como o local onde o homem é instruído

sobre seus verdadeiros fins; é através do exemplo familiar, que o homem consegue pensar a

Nação, e contribuir para o Estado engrandecer-se. Como grupo síntese, a família permite ao

indivíduo reconhecer no Estado o seu lar, contribuindo desta forma na manutenção da ordem; e

na Nação a sua família, esforçando-se assim para manter a harmonia e o amor de um lar cristão.

O grupo familiar, é analisado de uma forma atípica por nosso autor. Isto pode ser melhor

compreendido, se observarmos a atenção que é dedicada à organização familiar pelos intelectuais

da primeira metade do século XX, como um importante fator constitutivo da “civilização

brasileira”. A família, funcionou como pedra de toque para inúmeras obras, que se

comprometiam em realizar uma releitura das “raízes do Brasil”, e desta forma poder justificar a

configuração sócio-cultural que a época demandava.

Dentre as obras que atribuem um importante papel à organização familiar, talvez a mais

conhecida seja Casa-Grande e Senzala de Gilberto Freyre. A obra freyriana da década de 30, se

caracterizou pela ênfase dada ao sistema patriarcal, e suas conseqüências durante e após o

período colonial. G. Freyre ao analisar o patriarcalismo, tentou demonstrar a importância e a

atuação deste sistema de base familiar, na vida social, cultural e econômica do Brasil colonial.

15

A família patriarcal de Freyre, está diretamente ligada a uma relação baseada nos excessos

(hybris),19aonde o senhor da Casa-Grande, é o epicentro de toda uma relação vertical com seus

dependentes. Gilberto Freyre revela uma formação familiar extensa, que além do núcleo familiar

do senhor, compreende ainda filhos ilegítimos com escravas, agregados e escravos domésticos,

todos em constante relacionamento entre si.

A reflexão freyriana, evidencia a relevância dada por alguns intelectuais, da formação de

tipo familiar na constituição da identidade nacional. G. Freyre entretanto, não estava sozinho em

sua análise; inúmeros intelectuais de sua geração, compartilhavam deste mesmo tipo de

raciocínio, e com o mesmo objetivo: decifrar o enigma da formação da nação brasileira.

Plínio Salgado tal como Gilberto Freyre, creditava à formação familiar, um importante

papel no desenvolvimento social, cultural e político do Brasil. P. Salgado, entretanto, não nos

oferece uma proposta de estudo, tal como faz G. Freyre. Se preocupa o nosso autor, em

apresentar um ideal familiar cristão com fins doutrinários, e não um modelo teórico. Isto fica

evidente, na inexistência de uma análise histórica, que tenha por objetivo localizar o processo de

formação e evolução de seu modelo familiar. Esta família pliniana, é antes de tudo uma “solução”

para os problemas apresentados pelo autor. Se por um lado, G. Freyre procura desenvolver um

modelo teórico de grupo familiar, tendo em mente encontrar respostas para questões em torno de

nossa formação sócio-cultural, P. Salgado por outro lado, parte de uma lógica moralista, em que a

família seria a principal força de manutenção, de um ideal cristão.

No modelo familiar de P. Salgado, a família é uma fonte inesgotável de moralidade, e de

respeito à autoridade do pai e de Deus. A família pliniana, tem um caráter de “sentimento”, de

resistência à forte tendência materialista e individualista, que nosso autor denuncia em suas obras.

Sendo uma força contrária às “doutrinas da matéria”, a família pliniana age enquanto sentimento

de renovação moral e espiritual, capaz de reverter no ambiente do lar doméstico, os vícios e

lascívias da “sociedade anti-cristã”.

Apesar da grande diferença de propósitos e estilos, as obras de Gilberto Freyre e de Plínio

Salgado, partem de um mesmo pressuposto: a formação familiar enquanto embrião de uma

consciência nacional. Como já vimos anteriormente, P. Salgado vê no lar doméstico, o primeiro e

19 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz. A obra de Gilberto Freyre na década de 30. Rio de Janeiro: Ed 34. 1994. A hybris é uma definição grega para excesso, usada para melhor definir o clima de excessos sexuais, de

16

maior local de instrução moral e cívica do indivíduo. Assim, sendo um lugar de aprendizado, o

lar doméstico exige um ambiente de respeito, e harmonia entre seus moradores, pois só a

inexistência de conflitos internos garante a prosperidade da família pliniana.

Esta idéia de hierarquia e autoridade, dentro do lar doméstico de P. Salgado, ganha formas

diferentes daquela descrita por G. Freyre. A Casa-Grande de G. Freyre, é o império dos excessos;

reflete uma autoridade baseada na violência física, e no poder que o senhor tem sobre os corpos

de seus dependentes, garantida pelo uso da força da sua autoridade.

Já a autoridade do pai de família pliniano, provém do respeito dos filhos e da esposa, que

confiam no caráter e na experiência do chefe familiar. Este exerce um direito natural de ser o

centro das decisões; possui uma autoridade benéfica, conciliadora, que conta ou deve contar com

a aprovação de todos. A esposa/mãe, dá relevância às palavras do pai, e instrui os filhos no

respeito a autoridade paterna, impondo os limites, e ensinando os jovens a serem “bons

brasileiros”. Aos filhos, cabe obedecer e assimilar aquilo que os pais falam; seguir o exemplo

deles e não envergonhá-los ou desrespeitá-los jamais.

A vivência no lar doméstico, dá segundo Plínio Salgado, uma noção de limites necessária

para a boa convivência em sociedade, pois a vida familiar garante o respeito à ordem e a

hierarquia. Cabe aqui relembrarmos, que P. Salgado vê no respeito aos limites, a chave para uma

vida harmoniosa e sem conflitos: a “verdadeira liberdade”. Esta noção de limites, torna o lar

doméstico um simulador da vida em sociedade. O jovem aprende com a família, a respeitar a

hierarquia e a ordem, e desta forma pode se tornar um cidadão decente, um “bom brasileiro”.

Desta forma, somente o lar doméstico pode garantir “...o ambiente onde o homem encontra

a verdadeira felicidade na Terra: o afago de uma mãe, as palavras de um pai, a ternura de uma

esposa, o carinho dos filhos, o abraço dos irmãos, a dedicação de parentes e amigos”.20

Seria relevante ainda, confrontarmos o modelo familiar pliniano com o clã descrito por

Oliveira Viana. Na obra de P. Salgado, encontramos um elogio à família enquanto estrutura de

moralização, responsável por uma instrução cívica e disciplinadora. Oliveira Viana entretanto,

percebe determinadas formações familiares, (especialmente aquelas relacionadas às famílias mais

abastadas) enquanto um obstáculo histórico ao processo de formação da Nação. Oliveira Viana,

violência e de autoridade do senhor da Casa-Grande. P. 58-73 20 SALGADO, Plínio. Direitos e deveres do homem. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1950. P. 86-87

17

caracteriza as formações de tipo familiar, como um fator “gregário” responsável pela sustentação

e manutenção do caudilhismo, e de uma mentalidade refratária no brasileiro, que desenvolveu

toda uma deturpação no entendimento, e aceitação da autoridade. Além disto, Oliveira Viana,

também acusa esta mentalidade retrógrada de atrofiar todo o tipo de solidariedade em torno de

um “imperativo nacional”, que seria para ele, a chave para o desenvolvimento de uma verdadeira

consciência nacional.

Oliveira Viana descreve o clã como uma formação de tipo familiar, caracterizada por

relações de clientelismo e gregarismo, que em muitos aspectos lembra o feudalismo europeu da

Idade Média. No clã Oliveira Viana vê, o grande fator degenerativo da sociedade brasileira,

sendo este o “grupo social que se constituiu, desde o primeiro século em torno e sob a direção

suprema do grande proprietário de terras”.21

O clã tem sua existência justificada, por uma série de fatores históricos, em especial a

busca por proteção contra os abusos da justiça da época colonial e do recrutamento compulsivo.

Oliveira Viana atribui ao clã, toda uma “consciência social”, circunscrita entretanto aos limites

deste. Desta forma,...“fora da pequena solidariedade do clã rural, a solidariedade dos moradores,

especialmente a solidariedade dos grandes chefes do mundo rural – os fazendeiros- jamais se faz

necessária”.22

Ao contrário de P. Salgado que vê o grupo familiar, enquanto uma formação nuclear,

Oliveira Viana vê o clã, enquanto fomentador de um gregarismo irresponsável e interesseiro,

aonde os mais fracos e desprotegidos, são explorados pelo grande fazendeiro. Estas atitudes,

desenvolveram um espírito de facção, altamente nocivo ao desenvolvimento de uma consciência

nacional, pois...“cada núcleo fazendeiro é um microcosmos social, um pequeno organismo

coletivo, com aptidões cabais para uma vida isolada e autônoma”.23

Para Oliveira Viana, a inexistência de um perigo comum, disseminou na sociedade a lógica

individualista do fazendeiro. É nesta afirmação, que se encontra o mais importante antagonismo

entre os modelos familiares de P. Salgado e Oliveira Viana. Enquanto que para o último, o clã

desenvolve o individualismo, clivando e direcionando suas facções para uma “anarquia branca”,

P. Salgado encontra na família a redenção contra a lógica individualista e materialista. O

21 VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973. P. 138 22 VIANA, Oliveira. Idem. P. 158

18

individualismo ao qual Oliveira Viana faz alusão, se refere à formação de facções rivais entre si,

e com profundo caráter dissociativo. P. Salgado entretanto encara o individualismo de forma

diferente, observando-o mais como um fruto de uma visão de mundo dissociativa, do que como

um entrave social, decorrente de um passado histórico.

A família pliniana, é pensada enquanto suporte necessário para a apropriação da sociedade

nacional para um projeto novo de Estado. A idéia de uma sociedade de base familiar para

Oliveira Viana, é impensável pois está associada a “fase patriarcal da solidariedade parental e

gentílica”. Oliveira Viana vê o clã como um câncer à ser combatido; como pensador autoritário e

acima de tudo corporativista, a estrutura familiar que desenvolve o gregarismo do clã , é algo

impraticável.

Como na análise de Freyre, é bem visível os diferentes propósitos dos autores ao avaliar o

grupo familiar. Oliveira Viana desenvolve uma percepção negativa do grupo familiar, pensando-o

como um entrave ao seu projeto corporativista. P. Salgado pelo contrário, na sua visão religiosa e

moralista, prevê um importante papel da família como base de uma formação moral e cívica dos

cidadãos, priorizando a construção de um “novo homem” (homem integral) ao qual é

fundamental a existência de laços familiares fortes, para que este possa identificar no

procedimento familiar, aqueles mesmos que ele deve tomar em relação à Nação, ou seja pensar a

Nação da mesma forma que pensaria e agiria com a sua própria família.

Para concluir, fica-se claro que lar doméstico e família se completam na obra plinaina.

Nosso autor busca através do ideal familiar, e do exemplo do lar doméstico, criar meios que dêem

relevância à sua proposta autoritária, e que venham a reforçar seu discurso moralisador. P.

Salgado tenta com isto, justificar o papel que a autoridade e a disciplina devem ter sobre a

sociedade, e desta forma garantir a inexistência de conflitos internos. O filho obediente e

devotado ao pai, deve ser o exemplo a ser seguido por todos, ele é o protótipo do novo homem,

do futuro homem integral. O respeito à autoridade do pai, e o senso de limites que garante a

felicidade do lar doméstico, deve ser aplicado em relação à Nação, obedecendo e ajudando a

manter a ordem e a disciplina, essenciais para a existência harmônica, e a boa convivência.

23 Ibidem. P. 161

19

O RISCO DA MASSIFICAÇÃO INDIVIDUALISTA

Neste segundo capítulo, me dedicarei a analisar algumas propostas apontadas por P.

Salgado, para solucionar o “colapso moral” analisado em nosso capítulo anterior. Iniciarei agora,

um debate em torno dos projetos de reestruturação cultural, propostos por nosso autor, os quais

incluem uma reflexão em torno da “Reconstrução do Homem”, uma renovação espiritual e

moral do ser humano, que seria imprescindível para se solucionar o problema da “massificação

individualista”24, e a crescente crise educacional denunciada por P. Salgado, que estaria

desqualificando o homem enquanto ser espiritual, e preparando o mundo para um futuro

totalitário25.

P. Salgado, como vimos anteriormente, denuncia uma perda de sentido das finalidades

temporais e eternas dos homens, fomentadas sobretudo por uma forte tendência materialista e

individualista presentes na sociedade Ocidental, responsáveis por uma decomposição moral sem

precedentes. “Sendo uma civilização individualista, prepara o mundo para o coletivismo26, isto é,

para a anulação total da personalidade humana. O coletivismo só é possível quando tem, para

utilizar, a sua matéria prima. E a matéria prima do coletivismo é a massa, e não o povo”.

(Reconstrução do Homem p. 11) Esta massificação à qual P. Salgado alude, é o resultado de um

processo totalitário, o qual edificaria no futuro uma sociedade aonde o elemento humano viria a

ter a sua personalidade anulada

Pois do mesmo modo como não se pode fabricar bolo sem a massa do cereal, nem se pode produzir a massa sem a destruição dos grãos que, pulverizados, já não podem germinar, nem compor a espiga que forma a touceira, a qual, por sua vez, junto a outras, constitui o trigal, também o coletivismo não consegue erigir o seu Estado despótico, sem substituir o povo pela massa popular, pulverizando as personalidades humanas na mó do individualismo. (Reconstrução do Homem p. 12-13)

Para P. Salgado, o objetivo do individualismo seria uma dissociação da personalidade

humana, sendo este o primeiro estágio da construção da “massa”. P. Salgado chama este

24 O termo “massificação individualista”, denota um estágio de preparação da sociedade para um suposto projeto totalitário , o qual segundo P. Salgado seria garantido através da completa anulação da personalidade humana. 25 O totalitarismo para P. Salgado, quase sempre é marxista, mas o Liberalismo seria o primeiro passo nesta direção. 26 O termo coletivismo, se refere a um futuro “totalitarismo marxista”, que seria o produto final da democracia e do Liberalismo, que transformaria o ser humano em um “sub-homem” através do individualismo, para depois padroniza-lo e destituir este de personalidade.

20

fenômeno de “massificação individualista”, e atribui a uma progressiva “tecnocratização” da

sociedade, a responsabilidade pela anulação das virtudes morais e intelectuais, que torna os

...“homens incompletos, talvez profissionalmente capazes, mas humanamente atrofiados”.

(Reconstrução do Homem p. 13). A massificação, é a fase inicial de um projeto que prevê a

desintegração do elemento humano e sua personalidade, para facilitar assim a introdução futura

de um modelo totalitário de sociedade (coletivismo), aonde o homem se tornará parte de uma

amálgama indiferenciada e manipulável. Tal processo, vai contra os “grupos naturais”, em

especial a família e o município ou comunidade local, aonde o Homem (na concepção pliniana) é

parte constituinte de unidades maiores e mais complexas:

Cada grão se integra na espiga a que pertence, como cada homem nos seus grupos naturais. O conjunto das espigas forma a touceira, como o conjunto dos grupos naturais forma a sociedade local. Multiplicam-se as touceiras e formam o trigal, do mesmo modo como a multiplicidade dos grupos naturais forma a Nação, ou a comunidade humana diferenciada de outras comunidades humanas. E o conjunto de todas essas comunidades humanas nacionais constitui a sociedade internacional, ou a Humanidade. (Reconstrução do Homem p. 11-12)

A tecnocratização é vista por P. Salgado, como uma força responsável pela transformação

da “pessoa” dotada de sua personalidade, em um “indivíduo”, uma clivagem do homem que

compreende apenas a sua porção intelectual e técnica. A civilização tecnocrata, seria o resultado

imediato de uma educação defeituosa, agnóstica e utilitária, que produz...“os bonecos de carne

dos períodos históricos do desespero, a edificar automaticamente uma civilização a-finalista, ...

fazendo de si mesma o seu fim, não passa [ndo] bem considerada de um totalitarismo mais feroz

do que o próprio totalitarismo político que se exprime no Estado absorvente”27.(Reconstrução do

Homem p. 16 )

A tecnocratização para nosso autor não é um fenômeno isolado, mas sim um processo em

andamento, que domina nações inteiras, fragmentando os homens e reduzindo-os ...“multidões

...de indivíduos, ou apenas parte do homem, sombras e espectros do homem. Acima destes

fantasmas delirantes, domina a Economia sem finalidade ética, a Ciência sem alma, a Arte sem

beleza, a Política sem deveres, a Liberdade sem freios, o Dinheiro sem contraste, a Sociedade

27 P. Salgado usa este termo para se referir de forma superficial, aos regimes totalitários, mas especialmente ao socialismo, enquanto políticas centralizadoras e despersonalizadoras.

21

sem ordem”. (Reconstrução do Homem p. 15). A sociedade tecnocrata para, só pode ser

combatida através da “Reconstrução do Homem”, processo que visa uma profunda

transformação espiritual, e que acima de tudo fomenta um imediato avatar nas instituições de

educação porque “...o grande movimento terá que partir da verdadeira Universidade28. E quando

digo verdadeira, quero dizer a Universidade que veja no Homem aquela unidade substancial de

uma dualidade consubstancial, aquela síntese de necessidades e aspirações consoantes à natureza

física, à sensibilidade estética, ao poder da razão, à força imaginativa, à capacidade volitiva, à

índole social, à vocação divina”. (Reconstrução do Homem p. 16)

Plínio Salgado acredita que a tecnocratização, é propiciada por um ensino superficial, de

alcance limitado, preocupado apenas em instruir os jovens nos aspectos técnicos, sem garantir o

reconhecimento destes enquanto seres humanos, dotados de qualidades não só intelectuais, mas

também espirituais e morais. Como já foi visto antes, Plínio Salgado critica a “modernidade” por

desvirilizar o Homem, retirando deste a sua essência espiritual e humana, que lhe garante a sua

“intangibilidade”. Assim a tecnocratização, seria o resultado de uma educação baseada em

conceitos e experiências puramente materialistas, de aplicabilidade intensiva em uma sociedade

uniformemente individualista, aonde “...o dinheiro vale tudo, a virtude vale nada e o homem

ainda menos vale. Processa-se a destruição das personalidades de maneira tão veloz que dentro

em breve não haverá mais resistências possíveis a contrapor-se à catástrofe socialista

[coletivismo] em que sucumbe, definitivamente, o orgulhoso homo sapiens”. (Reconstrução do

Homem p. 25)

Combater a “massificação individualista” para Plínio Salgado, é a “grande cruzada dos

tempos modernos”, é uma tarefa que levará o homem a se descobrir novamente, e...“reconduzir

[este] àquele explendor das Harmonias Divinas, em que ele exerce a sua integral soberania,

impondo a força dos valores morais onde pretendam imperar as forças bárbaras e desconexas dos

valores materiais em conflituosa desordem”. (Reconstrução do Homem p. 17).

Como vimos anteriormente, P. Salgado acredita que o homem só alcança a sua condição

de “intangibilidade” se estiver em consonância com o seu desenvolvimento humano. É

28 A Universidade à qual nosso autor se refere, não são as instituições de ensino superior, mas sim um modelo educacional que objetiva juntamente com a formação científica e técnica, a construção moral e cívica do indivíduo, garantindo a este não só conhecimentos científicos que o tornarão um bom profissional, mas também aqueles que farão dele um bom cidadão.

22

interessante perceber, que o autor para reforçar esta argumentação em torno da tecnocratização,

recorre inclusive à uma defesa dos “instintos naturais”, encarando-os como algo inerente à

natureza humana, e necessária à sobrevivência do homem. Os “instintos” para Plínio Salgado,

são ...“forças permanentes a sustentar e a defender a integridade do ser vivo e a continuidade da

espécie”. (Reconstrução do Homem p. 42) P. Salgado declara que o instinto é algo puro, se

usado de forma irracional como os animais, entretanto, se associado à inteligência, pode ganhar o

seu teor de maldade. Esta defesa dos “instintos” tem por objetivo mostrar, que a opção do ser

humano pela inteligência e pela técnica, enquanto garantias de desenvolvimento e felicidade, é

falsa, pois ...”os pecados, os crimes do Homem são pecados da inteligência. Os instintos no

Homem são meros instrumentos que ele utiliza para o Bem ou para o Mal. O agente responsável

é a sua inteligência”. (Reconstrução do Homem p. 44)

Ao fazer a defesa dos “instintos”, Plínio Salgado afirma que estes são parte constituinte da

natureza humana, necessários à sua sobrevivência, não devendo ser obliterados. A idéia da

“intangibilidade”, norteia esta “ânsia pela totalidade”29de P. Salgado, num complexo de

sentimentos e reações contra uma modernidade desarticuladora. A crítica cultural veiculada por

P. Salgado neste momento, associa uma lógica semelhante àquela usada em sua crítica dos

costumes: a necessidade da associação de preceitos morais e espirituais, àqueles técnicos e

materiais, como a única forma de se prover o homem de sua totalidade harmônica, e garantir uma

evolução tanto científica quanto espiritual, respeitando a natureza dual do ser humano. Através

desta defesa dos “instintos”, nosso autor reafirma aquela idéia já defendida anteriormente, em que

o maior malefício é aquele em que ...”o Homem, sendo inteligente e livre, utiliza-se dos dotes da

imaginação e do poder da vontade para entregar-se aos condenáveis excessos”. (Reconstrução

do Homem p. 45)

Este excesso ao qual nosso autor alude, é relativo ao uso exclusivo da inteligência, pois o

“Homem peca pela Inteligência”, cabendo a esta o domínio dos instintos, que devem ser na

medida do possível subjugados ao seu controle. Os instintos para P. Salgado podem ser usados

para o Bem, ou seja ...” [devem] ser aproveitados, num sentido de virtude ou num sentido de

29 GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978. P. 112-113. A “ânsia pela totalidade”, é traduzida como uma idéia paranóica de mundo com seus inimigos declarados: a máquina desumanizante, o materialismo capitalista, o racionalismo sem Deus, a sociedade sem raízes, os judeus cosmopolitas e a cidade.

23

vício, pois eles constituem a matéria prima da personalidade e sobre assa matéria prima é que

trabalha a Inteligência criadora, optativa e ordenadora”. (Reconstrução do Homem p. 46)

A alusão feita por nosso autor à respeito dos instintos, procura desenvolver um nexo com

sua crítica à tecnocratização; Plínio Salgado ao afirmar que os instintos são parte integrante da

personalidade, e que são necessários tal como a inteligência, procura mostrar que ...”pela

Inteligência o Homem se liberta da desordem dos instintos e sobre estes impondo seu domínio,

atinge pouco a pouco os graus mais altos da perfeição; mas se levar consigo o sentimento da

própria suficiência, o Homem, pelas suas próprias faculdades intelectivas, recunduz-se à

escravidão dos instintos”. (Reconstrução do Homem p. 48)

A tecnocratização para Plínio Salgado, é parte de um fenômeno totalitário, que prevê

uma dissolução de princípios morais e espirituais, dando origem a uma sociedade padronizada,

baseada no materialismo e no individualismo, que seria contrária a uma visão de mundo já

agonizante, que o seu discurso tentava edificar. Desta forma, como alguém que se encontra num

ponto alto do relevo, nosso autor procura através de um olhar panorâmico, descrever algo que

acredita ser um projeto em andamento, planejado e estudado, que se desenvolve perante seus

olhos proscritos e afetos à uma visão de mundo enferma.

Plínio Salgado atribuiu a si mesmo a imagem da proscrição, enquanto forma de

resistência; vestir esta máscara, foi talvez o seu único meio de atribuir uma aura de consciência, e

talvez de rebeldia ao seu discurso “reformador”, depois do fim do Estado Novo e com a

democratização. Excluir-se e denunciar este novo mundo, para o qual suas idéias eram um

anacronismo, foi a melhor forma de se identificar com alguma bandeira que não trouxesse à tona

a imagem do sigma, com a qual tentava não mais se identificar. Seus “novos” ideais,

pressupunham uma ocultação de seu passado fascista, e uma aproximação com temas religiosos e

morais, que caracterizaram a sua fase de “missionarismo cristão”30 após seu exílio em Portugal

(1946). Isto parecia menos anacrônico que as passeatas e comícios, abarrotados de camisas

verdes da década de 30 (um momento de boa aceitação de idéias autoritárias), e quem sabe mais

de acordo com a democracia que o Brasil experimentava, e com a qual tentava agora se

identificar.

30 CHAUÍ, Marilena. Notas sobre o pensamento conservador nos anos 30: Plínio Salgado. In: MORAES, ANTUNES, FERRANTE (org). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. P. 27-42

24

POR QUE NÃO LER O PATO DONALD?

A crítica cultural pliniana, denuncia também a massificação cultural, responsável pela

elaboração de um padrão de entretenimento que objetiva a instrução de ...”homens e mulheres

[que] formarão a massa amorfa, como coletividades standartizadas, que se moverão, como

aparelhos mecânicos, ao arbítrio de alguns indivíduos conhecedores da técnica de formação da

opinião pública”. (Reconstrução do Homem p. 53) A cultura e as formas de entretenimento para

Plínio Salgado, tal como a educação, sofreram um processo de desintegração que objetiva

...”atrofiar as faculdades criadoras das crianças e do adulto”.(Reconstrução do Homem p. 53)

A degeneração cultural, é representada sobretudo pelo amplo consumo de revistas e jornais

sensacionalistas, quadrinhos, cinema americano e na difusão da TV. Para Plínio Salgado estes

meios de entretenimento, são responsáveis pela propagação de uma realidade fútil e superficial,

de pouca relevância e esforços intelectuais mínimos. Nosso autor tenta demonstrar, que há um

propósito totalitário nestas formas de entretenimento e lazer, que somados a uma educação

deficiente, acostumam uma geração a subordinar-se a idéias feitas.

A preparação de uma sociedade massificada para P. Salgado, perpassa por um estágio de

anulação das faculdades criativas e intelectivas, através da obliteração do poder imaginativo

inerente em cada um, com uma “idéia pronta”, uma imagem pré concebida com a qual todos

devem se identificar e consumir. As revistas em quadrinhos para Plínio Salgado, impõem um

conteúdo nada instrutivo, que acompanhado de imagens e desenhos, anula as capacidades

criativas e imaginativas do leitor pois

...”a unidade de concepção de objeto descrito é diferenciada pelo poder imaginativo de cada leitor. Isto é cada leitor colabora com o autor, trazendo o contingente de seu próprio temperamento, dando caráter pessoal à efabulação, que não perde o que tem de essencial e ganha em universalidade. Significa isto que cada leitor tem a sua personalidade; mas como a preocupação moderna é destruir totalitariamente a personalidade humana, engendrou-se um processo de transmitir narrativas: é o uso de figurinhas em quadrinhos sucessivos e uma ou outra palavra elucidativa, o que é raro”. (Reconstrução do Homem p. 54)

25

O propósito totalitário que P. Salgado vê nos gibis, está ligado ao desenvolvimento de uma

percepção comum, sem contrastes de imagens ou mensagens, vistas através dos olhos de outra

pessoa que impõem ao leitor o seu ponto de vista, roubando deste o seu poder de imaginar e

concluir as coisas ao seu modo; em suma, anulando a subjetividade que a leitura deve ter. Desta

forma, com a submissão de todos à um único ponto de vista, a pessoa ...”no fim de algum

tempo...não sabe mais imaginar, pensar, refletir, deduzir, concluir por conta própria; mas entrega-

se à imaginação, ao pensamento, à reflexão, à dedução e à conclusão alheias”. (Reconstrução do

Homem p. 55) O termo totalitarismo, amplamente empregado por Plínio Salgado, com a intenção

de localizar no âmbito dos quadrinhos e do cinema, uma atitude crítica e ao mesmo tempo

defensiva, que identifique este tipo de entretenimento, com aquele processo de massificação, e ao

mesmo tempo afaste para longe de si, qualquer associação de sua pessoa com o Fascismo, um

estigma de seu passado. O impulso totalitário traduzido nos quadrinhos, consiste para P. Salgado

em subordinar o leitor (em especial o jovem), a uma lógica simplista e sem contrastes, que

subordine a sua imaginação e personalidade, a idéias pré-concebidas de outra pessoa.

Condicionando a pessoa a uma idéia pré-concebida e visualizada,...”que do começo ao fim

só traga figurinhas, corta pela raiz todo o poder criador do menino ou adulto que folheia as suas

páginas e ao mesmo tempo, desabituando-os da leitura, atrofia [ndo] a faculdade da atenção,

tornando-os preguiçosos mentais”. (Reconstrução do Homem p. 54-55) Os quadrinhos são para

P. Salgado, mecanismos de padronização de idéias e imagens, que desarticulam a personalidade e

a vontade da pessoa, tornando-a refratária e limitada, preparando o terreno para o projeto de

massificação.

De forma semelhante aos quadrinhos, o cinema também exerce para Plínio Salgado, o seu

conteúdo totalitário. Nosso autor, vê o cinema como uma ameaça alienadora pois

Os tipos de vida, de costumes, de pessoas que ali aparecem são feitos à maneira de formas, onde se devem despejar as disponibilidades humanas fundindo-se os caracteres e tornando todos os habitués, todos os vassalos de Hollywood, em indivíduos iguais uns aos outros...A propaganda que se faz dos artigos é ainda mais impositiva na desconformação dos caracteres. Menina ou menino cinemeiro é um ser que perde cada dia mais personalidade. Não são eles que vivem, são os artistas que vivem neles. (Reconstrução do Homem p. 56)

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O cinema americano ganha uma conotação totalitária, por estabelecer modas e

comportamentos aos jovens, que absorvem o seu conteúdo supérfluo e fútil, baseado num mundo

de “faz de conta”, aonde o espetáculo e a realidade se misturam. O cinema é visto por Plínio

Salgado, como um desvio de comportamento, já que estabelece modismos e gírias usadas pelos

jovens, que deixam de fazer leituras importantes para comparecer às matinés. Outra coisa à ser

analisada, é a forma pela qual a cultura americana se insere na juventuda brasileira através do

cinema; nosso autor acredita que aquele modo de vida opulento ao qual a juventude assiste nos

cinemas, não condiz com a realidade nacional. O jovem cinéfilo para o autor, torna-se

gradativamente um alienado em relação às questões políticas, culturais e sociais de seu país, para

viver os devaneios de um estilo de vida fantasioso, que o desvia dos verdadeiros interesses aos

quais deveria se dedicar; roubando-lhe o tempo que poderia ser gasto com leituras construtivas.

Além do cinema e dos quadrinhos, a TV que se encontra nesta época em seus primórdios31,

também não escapa da crítica de nosso autor. Entretanto, a TV além do caráter alienador e

supérfluo, semelhante aquele atribuído aos quadrinhos e ao cinema americano, desenvolve no

telespectador um comportamento antisocial, característico de um tipo de entretenimento que

dispensa a conversa e a companhia do outros, pois torna ...”as visitas aos amigos...a coisa mais

enfadonha do mundo. Os visitantes chegaram, a família está no escuro, diante do aparelho

televisor. Passam desenhos animados, passam anúncios sobre anúncios, passam comediasinhas

pifias, e visitantes e visitados guardam profundo silêncio. Corre assim uma hora, corre outra, não

raro mais outra. Finalmente, os visitantes se levantam, despedem-se. E nada se falou”.

(Reconstrução do Homem p. 58)

Nosso autor observa, que não só as diversões e os entretenimentos como os quadrinhos e o

cinema são supérfluos; o próprio ambiente da escola, não oferece maiores fomentos culturais aos

jovens, deixando-os à mercê de divertimentos de pouca substância cultural e cívica. A escola, e

mais diretamente os professores, não se conscientizaram da importância de se preparar de

maneira adequada a juventude, priorizando não só o caráter técnico, mas também aquele humano

e espiritual. Os professores segundo Plínio Salgado, não conseguem despertar nos alunos o

interesse e a vontade de saber, de forma que

27

Paralelamente à escola agnóstica, circula uma literatura sensacional e imoral, e difundem-se pela imprensa e pelo livro, histórias em quadrinhos, que não apenas conduzem as inteligências infantis a uma forma de preguiça mental, pela abolição de legendas, mas ainda oferecem imagens e cenas criminosas ou luxuriosas, que bem cedo despertam apetites inferiores...os jovens e as jovens, nos cursos secundários, não ouvem jamais o nome de Deus e convivem num meio em tudo nocivo à sua função moral; e como complemento, o cinema atua com seu impositivo poder de sedução, mostrando à juventude uma vida imoral ou amoral, até mesmo em filmes de suposto fundo educativo, mas onde certas passagens, de uma sexualidade exasperante, perturbam os espíritos destruindo neles as raízes das virtudes cristãs.32 A questão cultural tem para Plínio Salgado profundas raízes, é um problema relacionado

acima de tudo a um vazio na esfera educacional, que se encontra desprovida de grandes mentes,

bons professores e incentivos atraentes para o jovem, que sejam capazes de fazer frente a

...”massa coletiva, a decadência intelectual cada vez mais acentuada em todos os países e a

desordem do mundo, onde imperam os agentes espertíssimos, implantadores de uma nova forma

de vida social constituída de homens Franksteins, bonecos sem vontade, sem imaginação, sem

raciocínio”. (Reconstrução do Homem p. 60) Uma educação parcial e impotente, reforça a

argumentação do autor em torno da necessidade de uma reforma urgente no sistema escolar, que

admita apenas professores capazes, que não sejam ...”idealistas, que se desesperam diante da

inacessibilidade dos alunos às solicitações superiores, [nem] comercialisadores do ensino,

vendedores de aulas, sem amor à profissão que deveria ser por todos os mestres tomada como um

sacerdócio”. (Reconstrução do Homem p. 59) O professor tem uma missão sagrada, que vai

além daquela de passar o conteúdo à ser estudado, que inclui ainda uma capacidade de instruir o

jovem naqueles aspectos humanos, se firmando como um referencial dentro e fora da sala de

aula, capaz também de “semear idéias”33.

Nosso autor tenta se identificar com uma “resistência democrática”, denunciando uma

suposta conspiração totalitária, aonde a massificação cultural é um instrumento de manipulação

que...”a meu ver constitui a pior das ameaças à democracia, que é o estilo de vida onde mais se

exige o poder expressivo do indivíduo, como agente autônomo e consciente, insubordinável à

opinião fabricada para o uso dos ignaros”. (Reconstrução do Homem p. 55)

31 A obra é de mais ou menos final dos anos 50, mais especificamente de 1956. 32 SALGADO, Plínio. Direitos e Deveres do Homem. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1950. P. 90 33 P. Salgado usa este termo no intuito de atribuir à profissão de professor, um sentido ideológico de liderança cívica e moral, de exemplo à ser seguido pelos alunos na sua instrução de cidadania.

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SANGUE FRESCO: A VERDADEIRA MISSÃO DA JUVENTUDE

A crítica cultural e educacional de Plínio Salgado, objetiva identificar um receptor da

mensagem: o jovem. Ao afirmar que a juventude é o vetor da verdadeira mudança, e que é a

única força capaz de promover a conscientização e a comoção geral, P. Salgado tenta aproximar

seus pressupostos doutrinários, de uma postura de consciência cívica. Assim, a juventude deve

ser preparada para que ...”produza os valores humanos, de que a comunidade nacional precisa,

deve ser toda a nossa aspiração e o nosso esforço”. (Reconstrução do Homem p. 106) P.

Salgado encara o jovem como a principal garantia de mudanças, por ainda estar privado dos

vícios e limitações de todo o tipo a que os mais velhos estão sujeitos; é nele que reside o

idealismo e a força, capazes de reafirmar e reconstruir valores humanos e as tradições, que as

gerações anteriores foram incapazes de preservar, e desenvolver paralelamente aos avanços

científicos da humanidade.

Nosso autor, acredita estar presenciando uma crise de autoridade e responsabilidade,

aonde...”o brasileiro de hoje transformou-se num utilitário grosseiro, interpretando tudo e tudo

resolvendo de acordo com seus interesses particulares e suas mesquinhas

ambições”.(Reconstrução do Homem p. 137) A juventude figura a mudança, mas para que esta

possa ser levada a cabo, é preciso antes garantir meios para que o jovem possa ...”construir-se

primeiro, para depois pensar em construir a sociedade. A auto-construção não se faz nas praças

públicas, nem no fragor das manifestações coletivas; pelo contrário, forja-se no estudo, na

meditação, na discussão, na troca de idéias”. (Reconstrução do Homem p. 107) Para P. Salgado,

a juventude carrega a bandeira das mudanças (um claro delírio fascista), pois ainda não pertence

completamente ao mundo dos adultos, que se encontra embebido na cultura burguesa,

contaminado pelo materialismo e pelo individualismo; a personalidade e o caráter do jovem,

corretamente trabalhados poderão ...”reeducar o Homem, restaurar-lhe a dignidade, reacender

nele a chama da juventude criadora. Essa reeducação terá por base estes dois termos: autoridade e

responsabilidade”. (Reconstrução do Homem p. 134)

Plínio Salgado conclama os jovens, para uma conscientização geral de sua importância para

o futuro da Nação e do mundo. A juventude tem para nosso autor ...”a capacidade de manutenção

do estilo próprio através do processo da renovação constante. Por conseguinte quando um povo

29

começa a viver de imitação, quando um indivíduo principia a submeter-se às formas sociais e ao

teor de vida engendrados por outros, esse povo ou este indivíduo perderam a energia vital e, por

conseguinte, envelheceram”. (Reconstrução do Homem p. 133) A juventude mais do que uma

fase da vida, é um estado de espírito responsável pela ...”recuperação de...indivíduos e povos.

Será essa juventude que poderá restaurar o sentido da autoridade e da responsabilidade, a

hierarquia dos valores, a ordem nos espíritos como fundamento de toda ordem social e

internacional”. (Reconstrução do Homem p. 133) Esta missão à qual P. Salgado delega aos

jovens, é uma espécie de reação conservadora do jovem contra o despotismo inconseqüente dos

adultos, um elemento muito presente no pensamento fascista. Os jovens para P. Salgado possuem

o vigor do espírito, o equilíbrio, capaz de enfrentar e vencer o ceticismo materialista dos adultos,

e restabelecer a ordem e a hierarquia que os mais velhos invalidaram.

É interessante perceber, que Plínio Salgado convoca os jovens para aquilo que Peter Gay

chama de “Revolução Conservadora”34, que no caso da Alemanha entre guerras, serviu como

uma ideologia que identifiacava alguns grupos jovens alemães descontentes com a República,

com uma tradição e um passado glorioso, o qual deveriam se esforçar para manter vivo; para

tanto, esta ideologia da juventude alemã, se voltava contra a modernidade que destruia suas

raízes, e se julgava defensora da tradição e do espírito germânico, abalado pela ação dos mais

velhos já corrompidos e sem ideais. A juventude para P. Salgado, é uma ideologia salvadora de

valores e de uma ordem que se esboroa nas mãos dos adultos, ou seja, o jovem assume a função

de protetor da tradição e dos valores nacionais. A insistência de nosso autor na questão

educacional e na formação do jovem, procura desenvolver uma identidade comum de objetivos e

deveres para com a sociedade, identificando o jovem com uma missão: salvaguardar a cultura e

os valores nacionais, antes que estes se percam. O jovem para P. Salgado, é o meio através do

qual as tradições nacionais se perpetuam; é a força regeneradora e moralisadora, capaz de

restabelecer a ordem e a disciplina ignorada pelos mais velhos.

Nosso autor tenta desta forma, aproximar os seus pressupostos doutrinários daquela

postura de transformação e inovação, que normalmente se credita à juventude; busca identificar

os jovens com uma defesa da tradição e dos valores nacionais, ao mesmo tempo que delega a

eles, uma função de regeneração daquele mundo de adultos corrompidos e indisciplinados. Ao

30

desacreditar a juventude, e promovê-la a porta-voz das mudanças, P. Salgado constrói um

paradoxo de construção de um “novo” mundo, através de jovens com ideais velhas, conclamando

estes para uma cruzada conservadora.

34 GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. P. 85-119.

31

CONCLUSÃO

Para concluir o nosso estudo, acredito que seja necessário, observarmos a visão histórica

que norteia as categorias do pensamento de Plínio Salgado O discurso pliniano, possui duas

categorias básicas a saber: o espiritualismo e o materialismo; estas, se encontram presentes em

todos os lugares e em todas as épocas, estando sempre num constante embate hegemônico. O

discurso pliniano, tem nestas duas chaves da história35, a base de sua argumentação, sendo este

confronto a força motriz da história. Tal como a luta de classes no marxismo, o discurso de P.

Salgado oferece uma interpretação da história baseada numa constante: o confronto entre os

preceitos espirituais e os materiais. Este choque, definiu três etapas históricas, ou melhor três

civilizações: a 1a politeísta, que vigorou na antigüidade, aonde o espiritualismo e o materialismo,

existiam paralelamente e em igualdade de condições, a 2a a monoteísta, que se caracterizou pelo

domínio do espiritualismo, e pela fusão de elementos espirituais e morais, sendo mais

diretamente relacionada a Idade Média e a 3a que seria a ateísta, caracterizada pelo abandono

progressivo do espiritualismo, e pela adoção de preceitos materialistas; ela se inicia após o

Renascimento, e vai até os nossos dias.36

A construção histórica de Plínio Salgado, define a história da humanidade através de uma

luta eterna entre duas forças antagônicas, que representam a consciência (espiritualismo) e o caos

interior (materialismo). Cada uma das etapas vistas acima, revela o predomínio de uma destas

forças, que delineiam uma trajetória oscilante. Esta interpretação dicotômica da história, nos

permite compreender a ânsia de P. Salgado em particularizar o Brasil, mais especificamente a

“índole” do povo brasileiro, resultado de uma amálgama de preceitos espirituais, oriundos do

período colonial. Esta visão histórica, privilegia a construção espiritual e étnica do brasileiro,

feita segundo o nosso autor, através de uma dura batalha do homem contra a natureza hostil dos

trópicos. As dificuldades do período colonial, teriam unido diferentes raças e crenças em torno de

um propósito comum: vencer os obstáculos que a natureza impunha e ocupar a terra.

A concepção de História do Brasil, elaborada por Plínio Salgado durante os anos 20 e 30,

privilegia a construção moral, espiritual, e as aptidões raciais, responsáveis pela singularidade do

35 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e Revolução. O Integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988. P. 27-39

32

caráter do povo brasileiro. Nosso autor através da mitificação do passado colonial, determina uma

natureza espiritual muito forte no brasileiro, em especial naquele que vive no interior. Esta

espiritualidade à flor da pele que o interior respira, destoa completamente da atmosfera

materialista do litoral, que se encontra em constante contato com uma cultura materialista

estrangeira. O interior puro e onírico, conseguiu manter viva e forte, a espiritualidade do

passado, graças não só à distância do litoral, mas também à índole do povo que lá vive, fruto da

mistura de raças com forte conteúdo espiritual.37

O caboclo que habita o interior, é visto por Plínio Salgado como um híbrido, resultado do

melhor das três que aqui se estabeleceram. O mito das três raças, é usado para justificar uma

aptidão racial do brasileiro: a forte espiritualidade herdada dos portugueses, dos índios e dos

africanos, que seria uma garantia de resistência contra a civilização ateísta, que se desenvolve no

litoral.38 O elemento racial detectado, sobretudo, no discurso integralista dos anos 30, está

fortemente associado a uma idéia de singularidade do brasileiro, bem como, do confronto com o

litoral cosmopolita. O caboclo, dono de uma forte espiritualidade, representa a continuação do

passado colonial, ao contrário do habitante do litoral, ateu e materialista, afeto aos vícios e

hábitos estrangeiros. A discussão em torno da raça, entretanto, perdeu força, ou melhor

desapareceu nas obras de P. Salgado após a extinção da AIB, isto porque o pensamento centrado

na questão racial (e também o anti-semitismo de Gustavo Barroso)39, era muito associado aos

conceitos racistas defendidos pelos regimes fascistas, os quais o Brasil havia combatido durante a

Segunda Guerra Mundial.

Esta análise da concepção histórica de P. Salgado, serve para elucidar a existência de uma

constante em seu pensamento pré, durante e pós AIB: o confronto entre materialismo e

espiritualismo, bem como, a adaptabilidade deste conceito universal para definir um caso

particular, a realidade brasileira. As chaves da história do pensamento pliniano, traduzem

claramente um intuito de particularizar o povo brasileiro, através das suas “virtudes espirituais”,

entendidas como uma singularidade. Nosso autor, como já foi visto antes, depois do fim da AIB,

36 SALGADO, Plínio. A Quarta humanidade. 5 ed. São Paulo: GRD, 1995. P. 3-53. 37 SALGADO, idem. P. 87-89 38 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e revolução. O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Jorge Zahar editor, 1988. P. 50-55. 39 Gustavo Barroso, foi um dos expoentes da AIB, escreveu diversos livros durante os anos 30, eram obras que defendiam o anti-semitismo, e debatia conceitos racistas.

33

se exilou em Portugal, e lá iniciou uma “nova fase” de seu pensamento, mais voltada a uma

crítica moral e a temas religiosos. A ocultação dos elementos fascistas de sua doutrina, não

significou, entretanto, o fim da sua concepção dicotômica de História; o embate entre

materialismo e espiritualismo continuou presente em sua obra, entretanto enfatizando outros

aspectos.

Os livros analisados neste estudo, revelam permanências e mudanças do discurso

pliniano dos anos 30, em relação às suas obras pós exílio. Em Madrugada do Espírito (visto no

1o capítulo), temos um Plínio Salgado obcecado com a questão moral, e ainda muito preso ao uso

de conceitos e imagens fascistas. O autor desenvolve nesta obra, um debate crítico em torno do

comportamento burguês, do materialismo, e da família como garantia de uma instrução moral e

cívica. Aponta também, causas e conseqüências de uma eminente catástrofe moral, denunciando

uma ruptura dos princípios espirituais, o que comprometeria a harmonia resultante do equilíbrio

necessário, entre os pressupostos de ordem espiritual e material. A família, é apresentada como

uma garantia de instrução moral e cívica, materializada no lar doméstico, um local de

aprendizado e de conciliação, responsável pela formação do caráter do cidadão. A mudança de

ênfase no discurso pliniano, vem acompanhada do desaparecimento de elementos que tiveram

relevância nos anos 30, tal como a discussão sobre a raça, e a relação desta com a sua

interpretação histórica, que particularizava e mitificava, o passado colonial e as aptidões raciais

do brasileiro.

Na outra obra analisada, chamada Reconstrução do Homem, a questão moral é deslocada

para uma discussão em torno da educação, e do surgimento de uma sociedade tecnocrata que

desvaloriza progressivamente o Homem, reduzindo-o a um fragmento meramente materialista e

prático, inadequado e indigno de sua condição de “intangibilidade”. Nosso autor entende o

problema educacional, como um catalisador da tecnocratização da sociedade. A crítica

educacional, tem dois objetivos para Plínio Salgado: denunciar um futuro projeto “totalitário” em

gestação, e preparar a juventude moral e civicamente, para que esteja consciente de suas

obrigações para com a Nação, e os princípios e tradições brasileiros.

Em Reconstrução do Homem, nosso autor delega ao professor, a tarefa de influenciar

moral e civicamente a juventude, exercendo uma influência humana, servindo como exemplo de

cidadania, além daquele representado pela família. Nesta obra, é o ambiente escolar, e não tanto o

34

familiar, que está associado à tarefa de formação moral e cívica dos cidadãos. Tal como o pai, o

professor possui a autoridade e a experiência, suficientes para dar o exemplo e instruir o jovem de

forma correta. P. Salgado é categórico, ao afirmar que o professor exerce um sacerdócio, que

deve ser tomado com dedicação e amor. Assim como o pai de família em Madrugada do

Espírito, o professor é a voz conciliadora da experiência e da sabedoria, que todos devem

respeitar e copiar o exemplo.

O ponto de convergência destas duas obras, fica por conta da continuidade de uma crítica

baseada no comportamento, entretanto, com alguns contrastes. Se em Madrugada do Espírito,

Plínio Salgado aponta para o cosmopolitismo burguês, enquanto um comportamento nocivo, que

influencia e revolta os mais pobres, em Reconstrução do Homem, procura debater a questão do

jovem, que desprovido de divertimentos e de uma educação adequada, acaba consumindo uma

cultura de baixa qualidade, que apenas torna-o improdutivo culturalmente, desenvolvendo neste

uma personalidade superficial e fútil. Nosso autor denuncia, um objetivo totalitário por trás das

formas de entretenimento: a destruição das personalidades para melhor dominar. Esta idéia

alimenta uma fobia, que passa a identificar no cinema, nos quadrinhos e na recém implantada TV

um fenômeno mundial, que busca implantar uma sociedade despersonalizada, que seria a ponta

de lança, de uma suposta conspiração totalitária.

A análise destas duas obras, revelou fissuras em relação ao discurso integralista dos anos

30, que se apresentava mais voltado a abordagens como a mobilização popular e o

corporativismo, temas cruciais do pensamento fascista. As questões de âmbito espiritual,

ganharam uma projeção maior, após a volta de P. Salgado do exílio, e foram menos associadas à

“Revolução Interior”40, tema que remetia à idéia de mobilização popular, característico do

integralismo dos anos 30. Esta exclusão dos elementos fascistas mais relevantes, corrobora uma

opção por temas menos afetos ao Fascismo, como o espiritualismo e temas cristãos. Após o

naufrágio dos regimes fascistas pelo mundo, nosso autor tentou se identificar com um

pensamento católico, que já era um elemento expressivo em seu pensamento, mas que foi

exacerbado durante as décadas de 40 e 50, período de publicação das duas obras usadas. Os

40 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e revolução. O integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1988. P. 67-72. A Revolução Interior, é uma campanha pedagógica e evangelisadora, que através da propaganda e da disseminação de valores espirituais, conscientizaria as pessoas libertando-as do despotismo materialista.

35

elementos fascistas continuaram a ser empregados em seu discurso, entretanto, foram mantidos

somente aqueles mais amenos, que pudessem se aproximar ou se confundir com um pensamento

conservador ou católico, sem levantar o véu que ocultava a verdadeira origem de tais idéias. Estes

temas foram suavizados e mascarados, a fim de dar uma nova identidade ao discurso de P.

Salgado, numa realidade diferente daquela dos anos 30, aonde havia uma boa aceitação e defesa

de idéias autoritárias.

Acredito ter de alguma forma contribuído, para elucidar um pouco mais sobre o

pensamento desta personalidade singular de nossa história que foi Plínio Salgado; talvez este

estudo ajude a desvendar um pouco, desta parte pouco conhecida e estudada de sua vida. Apesar

do estudo ter sido pouco extenso, me sinto satisfeito em ter podido de alguma forma manifestar o

meu interesse por esta “história oculta”, e dialogar diretamente com nosso autor cuja ...” vida

interior foi, pouco a pouco, clarificando-se, mas essa é uma história tão íntima que só Aquele por

Quem sou e escrevo a sabe inteiramente melhor do que eu”. (Madrugada do Espírito p. 11)

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