Magistrad.. corrigido

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IntroduoA pesquisa aqui apresentada buscou compreender por meio das aes de liberdade (processos judiciais movidos por escravos), os mecanismos que os cativos utilizavam para obterem a sua liberdade por meio legal; e como tais mecanismos serviram ora para reforar o principio liberal do direito de propriedade, ora para se contrapor ao poder moral dos senhores, tal ambigidade permeou todo o perodo do imprio 1. A utilizao de jornais como fontes que dialoguem com os processos judiciais possibilitou a analise desses processos para alm dos tribunais. Foram recorrentes nos jornais pesquisados notas referentes a aes de arbitramento impetradas por escravos, tambm possibilitando a averiguao de alguns agentes desses processos como os advogados e os magistrados. Tambm com uma analise mais extensiva dessa documentao (aes de liberdade) verifiquei padres como, sexo, idade (dado no muito recorrente), estado, alegaes para impetrar a ao e no caso de arbitramentos verifiquei o valor avaliado e as formas de obteno desse peclio. Tambm pude constatar certa mobilidade dos cativos que vinham do interior para capital ou ento casos em que o domnio do senhor sobre o cativo no era exercido plenamente, influenciando na deslegitimao da situao de escravido. preciso perceber que as praticas individuais freqentemente revelam aspectos importantes da trama social 2. Durante o processo de levantamento das fontes, notei a presena de agentes especficos que me chamaro a ateno: os advogados e magistrados envolvidos nas aes de liberdade. E me pareceu bastante pertinente compreender o papel destes agentes nestes processos, e se haveria ou no uma ligao destes com o movimento abolicionista da capital. Ao verificar as participaes dos escravos na justia requerendo a liberdade, pude notar que as leis eram ressignificadas por estes, e assim a partir de uma historiografia que relaciona direito e historia questionar certas percepes1 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silncio; os significados de liberdade no sudeste escravagista sculo XIX. Ed., Nova Fronteira, 2000. P 136-142. 2 XAVIER, Regina Clia Lima. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na segunda metade do sculo XIX. UNICAMP, 1996.,,

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historiogrficas que afirmavam a lei enquanto espao to somente de legitimao do poder de determinada classe. Assim foi construdo o primeiro capitulo. No segundo captulo apresento uma serie de casos onde as representaes presentes nos aproximam do universo do cativo e dos senhores. A grande freqncia com que os escravos aparecem solicitando a liberdade atravs do peclio demonstra a capacidade destes de estabelecerem relaes pessoais prprias no meio urbano. Assim como a mobilidade espacial, pois, vrios cativos fugiam do interior para capital e pleiteavam na justia a liberdade. As argumentaes presentes nas aes de liberdade estiveram extremamente relacionadas com a lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como a Lei do Ventre Livre. As brechas surgidas em virtude de tal lei e suas regulamentaes propiciaram espaos de deslegitimao do poder senhorial. Outro aspecto a constante presena de famlias escravas, e como o acesso a relaes familiares potencializava o acesso a justia e a liberdade. Nesta pesquisa demonstro a capacidade do cativo de agir dentro da legalidade, onde os espaos ai criados com as leis emancipacionistas, tambm surgiram a partir da luta cotidiana onde os direitos consuetudinrios e cannicos aos poucos ganhavam estatus de direito positivo. Assim tambm apresento a discusso acerca do direito positivo e do direito natural to utilizado nos discursos dos abolicionistas na dcada de 1880.

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Capitulo I. Magistrados, advogados, escravos e as discusses sobre direito e liberdade escrava em Belm (1870-1888)o negro na sociedade escravocrata estava sob a tutela de duas foras coatoras principais: a lei e o senhor. (Vicente Salles)

O objetivo deste captulo tratar de como se davam as relaes entre escravos e advogados em Belm e os discursos a respeito do direito liberdade e propriedade, mximas do liberalismo. As transformaes que ocorreram ao longo do imprio implicaram em novos dispositivos legais e as aes desses agentes (advogados, juzes e escravos) construram, de maneira conflituosa, os caminhos para liberdade.

Escravido e liberalismo.O Brasil, a partir do sculo XIX, com sua emancipao poltica de Portugal, passa por certas reformas na sua estrutura jurdico-administrativa. Busca-se um processo de normatizao das medidas e decises tomadas pelos juzes nas diversas disputas legais que ocorrem por todas as provncias. O liberalismo passa a fazer parte do modelo ideolgico poltico e administrativo, porem, no o mesmo liberalismo burgus europeu, no Brasil esse modelo ideolgico adquire seu carter peculiar inerente aos processos internos de disputas polticas e econmicas, tendo como eixo central o principio liberal do direito propriedade. A historiografia destaca a relao das elites e o iderio liberal enquanto grupos polticos locais que buscavam livrar-se da tutela portuguesa e diminuir o poder do imperador. Assim ao optar pelo liberalismo como modelo terico-poltico, mantinhamse as hierarquias e as estruturas de poder estabelecidas entre as elites agrrias em uma sociedade de carter escravocrata, um liberalismo dito moderado, pois foi lido atravs de um filtro de interesses dessas elites. Segundo Emilia Viotti da Costa 3 o liberalismo brasileiro estaria extremamente associado a uma estrutura social de patronagem.3 VIOTTI, Emilia. Da monarquia a Republica, momentos decisivos. 8 edio, So Paulo, Ed. UNESP, 2007.

4As estruturas sociais e econmicas que as elites brasileiras desejavam conservar significam a sobrevivncia de uma clientela e patronagem e de valores que representavam a verdadeira essncia do que aos liberais europeus pretendiam destruir, encontra uma maneira de ter que lidar com a contradio (entre liberalismo, de um lado, e escravido e patronagem do outro) foi o maior desafio que os liberais brasileiros tiveram de enfrentar.4

Para entender a questo da pretensa contradio entre liberalismo e escravido necessrio levantar as concepes que cercam a doutrina liberal. O liberalismo enquanto modelo terico-poltico est vigente at hoje no Ocidente e para Antonio Carlos Peixoto o atual neoliberalismo de neo s tem o prefixo, no que seja o mesmo, mas somente se revestiu para combater o marxismo: a matriz liberal clara, a primazia do ponto de partida a ao individual que cria o ordenamento social 5. O iderio liberal representa uma ruptura como o modo de pensar medievalesco. Se antes a outorga do poder central (monarquia, por exemplo) era legitimada por um poder divino, absoluto. A partir de tericos como Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Lock e Smith a existncia de um poder centralizador passa necessariamente pelo aval (para que se legitime) da sociedade, a qual esse poder representa. obvio que os indivduos que constituiro juridicamente essas sociedades se compem e recompem ao longo do tempo. O iderio liberal esta extremante relacionada constituio dos Estados modernos, e a esse Estado mesmo na figura de um monarca competiria zelar e preservar um conjunto de elementos centrais que possibilitassem a ao do individuo, o conjunto destes trs elementos denominado Property: vida, liberdade e patrimnio.Sintetizamos ento as principais questes acerca do liberalismo. Em primeiro lugar a ordem liberal esta centrada na ao humana, a ao humana determinante na construo do mundo. Para que a ao humana possa se desenvolver preciso que exista liberdade. Por outro lado, o individuo deve ser capaz de definir os seus interesses, efetuando o clculo para que esses interesses sejam atingidos. E se ele sozinho no capaz de atingi-lo, ele , no entanto, apto para estabelecer a cooperao com outros indivduos com os quais ira definir seus objetivos comuns. 6

4 IBID, p 136. 5 PEIXOTO, Antonio Carlos. O Liberalismo no Brasil Imperial: origens, conceitos e prtica . Rio de Janeiro: Revan, 2001.

6 Ibid.

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Depois desta breve pincelada acerca das concepes que constituem o iderio liberal, convm retornarmos a questo: como entender as estruturas sociais existentes no imprio e o discurso liberal utilizado pelos grupos polticos que buscavam legitimar o novo governo? Qual a relao que se pode estabelecer entre o liberalismo e a escravido? Como j foi mencionado anteriormente, para Emilia Viotti o liberalismo brasileiro estaria extremamente atrelado as estruturas sociais da patronagem, assim corroborando tambm com a idia apresentada por Alfredo Bosi, o qual destaca a existncia de dois liberalismos durante o imprio. Aps a independncia, no perodo de consolidao do imprio, um liberalismo de carter conservador, liberalismo oligrquico, que se estende at aproximadamente a dcada de 1860 quando houve uma certa mudana no discurso liberal tornado-o mais radical, se extremando na dcada de 1880. Segundo Bosi, ao longo da primeira metade do sculo XIX, o liberalismo brasileiro nada mais foi do que um complexo de normas jurdico-politicas capazes de garantir a propriedade fundiria e escrava at o seu limite possvel. Para Bosi no se trata de uma contradio entre liberalismo e escravido, e sim de um processo de filtragem e adequao dos iderios liberaisO par, formalmente dissonante, escravismo-liberalismo, foi no caso brasileiro pelo menos, apenas um paradoxo verbal. O seu consorcio s se poria como contradio real se se atribui-se ao segundo termo, liberalismo, um contedo pleno e concreto, equivalente a ideologia burguesa de trabalho livre que se afirmou ao longo da revoluo industrial europia. Ora, esse liberalismo ativo e desenvolto simplesmente no existiu, enquanto ideologia dominante, no perodo que se segue a independncia e vai ate os anos centrais do segundo reinado.7

Assim, a conotao liberal poderia estar atrelada liberdade de vender, produzir e comprar; ou representar-se politicamente, de eleger e ser eleito, ser cidado; ou conservar a liberdade de submeter o trabalhador escravo mediante coao jurdica; ou enfim, significar, ser capaz de adquirir novas terras em regime de livre concorrncia. Gorender8 tambm corrobora com tal concepo.

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BOSI, Alfredo. A escravido entre dois liberalismos. http://www.scielo.br. Estud. av. vol.2 no. 3 So Paulo, Set./Dez. 1988

8 GORENDER, Jacob. Liberalismo e Escravido. Revista Estudos avanados, 2002.

6No posso considerar que as ideais estivessem fora do lugar. Pareceme que elas estavam no lugar certo. E evidente que o liberalismo no Brasil no podia ter a mesma feio que tinha na Inglaterra. E no poderia se pensar que essas idias nascessem de autores brasileiros, evidentemente apreenderam tais idias formatadas fora do Brasil. Mas eles as escolheram, elas no vieram aleatoriamente ao Brasil e no tiveram efeitos inexplicveis, arbitrrios e deslocados. Estavam no local apropriado, reproduziam o que seus defensores produziam.9

Pois bem, at aqui venho apresentando uma corrente de pensamento historiogrfico que aponta para uma no contradio entre o discurso e pratica liberal aplicado no imprio brasileiro. Segundo tal corrente de pensamento os grupos polticos locais utilizaram filtros de leitura da teoria liberal. No entanto, ao se ater as prticas cotidianas, busco compreender quais eram os limites desse processo de filtragem ideolgica. Sendo assim, at que ponto um discurso liberal feito por escravagistas poderia se legitimar na sociedade? O discurso liberal mesmo na segunda metade do XIX, no pode ser caracterizado como homogneo. O(s) discurso(s) liberais implicavam em praticas distintas e at conflitantes e acredito que no teria sido to diferente na primeira metade do sculo XIX.

Liberalismo, propriedade escrava e liberdade.O liberalismo esteve presente no s nos discursos polticos como tambm foi penetrando nos cdigos jurdicos produzidos durante o imprio. A variedade de grupos e indivduos que se apropriaram de elementos prprios do discurso liberal, se no implicavam em praticas contraditrias (liberalismo X escravido) pelo menos s vezes geravam discursos que se chocavam. Nesse sentido, a leitura das aes de liberdade nos possibilita o acesso aos conflitos prprio do liberalismo brasileiro. Segundo Emilia Prado, os princpios liberais construdos ao longo dos anos setecentos (retomando a idia de natureza) erigiam a liberdade em direito e assim, a escravido deixava de ser vista sob o ponto de vista religioso, para ser discutida como atentado ao direito liberdade 10, e continua:Dessa maneira, o pensamento liberal, ao retomar a idia de natureza e ao construir o axioma de que os homens nascem livres e iguais, tornava o

9 Ibid. 10 PRADO, Emilia. Ordem liberal, escravido e Patriarcalismo: as ambigidades do imprio! In: O Liberalismo no Brasil Imperial, origens, conceitos e pratica. PEIXOTO,Antonio Carlos e GUIMARES, Lucia Paschoal (org.). Rio de Janeiro; REVAN: UERJ, 2001.

7direito a liberdade bandeira revolucionria. Apesar do crescimento da onda contra-revolucionaria de que foi palco a primeira parte dos anos oitocentos, pouco a pouco foi possvel a vitoria do principio da liberdade, acrescentado pelo da igualdade perante as leis. evidente que esta igualdade ocultaria as desigualdades reais, cotidianamente recriadas. Mas, os tratados de direito internacional no reconheciam legitimidade na posse de escravos, seja por parte de particulares ou de Estados.11

Logo necessrio entender como o liberalismo esteve presente no cotidiano atravs dos cdigos jurdicos e ideolgicos que tratavam da escravido. Assim, a participao dos magistrados no estabelecimento e manuteno de uma ordem social durante o regime Imperial no Brasil, como objeto aqui discutido, e principalmente a participao dessa camada letrada em relao s discusses e prticas a respeito da escravido, nos possibilita perceber como um determinado grupo Profissional, altamente influente e fruto em grande parte dos ideais positivos surgidos no sculo XIX, agiam diante dos conflitos surgidos nos tribunais e como o discurso destes ora beneficiavam os proprietrios, ora aos escravos, tenses presentes nas aes de liberdade, e a repercusso dessas tenses dos tribunais nos jornais da capital. O discurso liberal est de certa forma presente nos tribunais. Agora compreender que leituras esses agentes fazem acerca do liberalismo bem difcil. Na seguinte ao temos um exemplo disso:A parda Maria da Conceio escrava dos rfos filhos de Pedro Antonio Comovar, tendo quem por humanidade lhe de a importncia por que foi avaliada para se libertar e tendo ele ido a praa e no tendo quem a arrematasse, vem recorrer a V.S.a se digne nomear-lhe um curador para tratar da liberdade apresentado o sue valor a qual espera.12 Sentencia Raulino de Sousa Uchoa curador nomeado da escrava Lourena Maria da Conceio pertencente ao casal de Pedro Antonio Comovar, que tendo ela quem por esmola lhe de a quantia de setecentos mil reis por que foi avaliada para sua liberdade, vem oferec-la e requer a V.S.a se digne mandar ouvir os interessados e o curador de rfos afim de que depositado a referida importncia nos cofres pblicos ou em poder de quem V.S.a julgar se lhe passe a referida carta de liberdade. Espera que V.S.a presando como presa os sentimentos do liberalismo, defira a supplte. na forma requerida.

11 Ibid. P 97-115 12 Ao de liberdade da escrava Maria Lourena da Conceio, 1867. Fundo: escravos, caixa juiz de rfos da capital, 1860-1870. Arquivo Publico do Estado do Par.

8Antonio Raulino de Sousa Uchoa.

Assim, prezando como preza os sentimentos do liberalismo, o curador lana mo em seu discurso dos ditos sentimentos do liberalismo. Ele no faria isso se tal discurso no tivesse alguma legitimidade ao menos entre os magistrados. Seria esse o mesmo liberalismo de carter concervador-escravocrata? Acredito que a idia de favorecer a liberdade em causas cveis seja parte desse sentimento a qual Raulino fala. Obviamente o caso acima ilustra no uma ao de ruptura com o domnio senhorial, pois a autorizao do senhor torna-se fundamental, a indenizao no basta, veja que estamos no ano de 1867 quatro anos antes da lei do ventre livre e de seus dispositivos. Como indica Robert Conrad: em 1855, o Conselho de Estado decidiu que um escravo no poderia compelir seu dono a libert-lo da escravido atravs de uma oferta de seu valor 13, no havendo excees. Mesmo assim a utilizao no argumento do advogado des tais sentimentos liberais o indicativo de que a leitura do discurso liberal talvez fosse alm do conservadorismo, seriam choques entre o(s) liberalismo(s). Ele aparece em outras aes.Diz Raimundo nonato, que ele constituiu um peclio por doao, que fez a sua mulher escrava de Jose Joaquim Pimenta Magalhes da quantia de seiscentos mil reis (600$00) como consta do documento junto, e pois vem requerer a vs. que se sirva convidando o dito senhor para um acordo, e no caso este no se realizar, proceder-se nos termos da lei um arbitramento com a preliminar do deposito e a nomeao de um curador, pedindo licena para indicar o Dr. Antonio Raulino de Sousa Uchoa.14

A indicao que o cativo faz do curador a ser nomeado nos d a percepo que as relaes entre advogados e escravos eram fundamentais para se obter a liberdade, afinal escolher um curador com certas disposies (ou princpios) em favor da liberdade lhes aumentariam as chances nos tribunais, como mostra a petio seguinte referente a ao da escrava Vicncia.Diz o bacharel Antonio Raulino de Sousa Uchoa que na ao de arbitramento que promove em favor da escrava Vicncia contra seu senhor Jose Joaquim Pimenta de Magalhes, foi por desempate do 3 arbitro avaliada em um conto de reis, porem tendo ela somente recolhida na thesouraria da

13 CONRAD, Robert Edgar. Os ltimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978. 14 Ao de liberdade da escrava Vicncia, 1875, serie liberdade, caixa 1870-1879. Centro de Memria da Amaznia.

9fasenda a quantia de 600$000. vem oferecera mais a de 337$000 que com 33$ de juros, e o capital de 600$000 perfaz um conto de reis, preo do desempate. requer a VSa se mandar que entregue a importncia referida ao senhor de sua curatelada ou seu procurador e passe carta de liberdade em favor dela. Illm. Jose Lencio Braga

A atuao de magistrados na cmara do imprio comeou por incomodar os demais grupos polticos, que comearam a alegar a excessiva participao destes na vida poltica do Imprio. Segundo Jose Murilo de Carvalho 15, em 1855, foi proposto na cmara do senado um projeto que visava proibir a elegibilidade de magistrados, tal projeto veio a ser aprovado em 1871. Pode-se aventar a possibilidade de que a influncia poltica dos magistrados em relao s questes a cerca do elemento servil foram em grande parte contrrias s elites agrrias conservadoras, o que levou a essa atitude por parte dos demais grupos polticos. A noo da ilegitimidade moral do regime escravista j vinha se firmando, principalmente a partir das dcadas de 1850 e 186016. A partir das prticas jurdicas vividas nos tribunais, muitos desses magistrados levavam essas discusses para o parlamento, criando normas jurdicas que viessem ao mesmo tempo proteger o direito de propriedade (o caso da lei de 1871) amenizar as tenses das relaes escravistas. Tais normas serviram para (de forma no proposital em muitos casos) o questionamento do poder moral dos senhores sobre os cativos, que passaram a ter leis que regessem as relaes entre senhor escravo. Agora no era somente o principio costumeiro que servia de balize para essa relao. Segundo Clia Marinho Azevedo:Preocupados com a possibilidade de que a obra da abolio no escapasse dos quadros estritamente parlamentares, fazendo-se cegamente e a margem da estrada larga da experincia dos povos e do direito positivo, eles procurava manter o movimento dentro da legalidade institucional, muito embora s vezes tivesse de transgredi - l por fora das circunstancias de seu tempo de conflitos de classe e interclasse generalizados.17

15. CARVALHO, Jos Murilo. juzes, padres e soldados: os matizes da ordem. In: A construo da ordem/ Teatro das Sombras. Rio de Janeiro: UFRJ: Relume-Dumra, 1996. PP155-180. 16 PENNA, Eduardo Espiller. Pajens da Casa Imperial; jurisconsultos, escravido e a lei de 1871. Campinas. Ed. da UNICAMP. 2001. 17 AZEVEDO, Clia Marinho. Onda negra Medo branco; o negro no imaginrio das elites no sculo XIX, 2 ed. So - Paulo; Annablume, 2004. P76.

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A partir da segunda metade do sculo XIX um surto mais expressivo de aes de liberdade aconteceu, sendo reflexo dos escravos lei de 28 de setembro de 1871.18 Grinberg19 tambm destaca a relao entre os bacharis e a elite brasileira, pondo em xeque a tese de que a justia brasileira estaria tendenciosamente a favor dos proprietrios, assim a justia no estaria seguindo nem uma lgica classicista, onde deveria se arbitratada to somente a favor dos proprietrios o que confirmado pela documentao. Segundo a autora, a anlise da atitude dos escravos que recorreram justia para lutar por prerrogativas entendidas como direitos, contribui para questionar essa acepo. Segundo Elciene Azevedo:Nas ultimas dcadas alguns estudos sobre a escravido no Brasil tem apontado para a participao de advogados e juzes simpticos causa da liberdade no processo de abolio. Ao atuarem em aes civis de liberdade impetradas pelos escravos contra seus senhores, esses profissionais ajudaram a desestruturar a poltica de domnio senhorial, minando a base das ideologias que sustentaram o cativeiro20.

Ao trabalhar com fontes judiciais e com discurso de figuras representantes do mundo poltico de Belm, as problematizaes cercam questes que relacionam Historia(s) e Direito(s), analisando as normas jurdicas como um produto social, pois sabido que as normas jurdicas esto diretamente relacionadas com o ritmo dos processos sociais. Tal documentao (processos cveis e jornais) e abordagem historiogrfica em uma escala mais reduzida permitem o acesso a representaes que os

18Chalhoub colocou pioneiramente em relevo a importncia das aes de liberdade para compreenso do papel do estado imperial e dos prprios cativos no comprometimento na poltica de domnio que ate ento conferia legitimidade a dominao escravagista. CHALHOUB, Sidney. Vises da Liberdade: uma historia das ultimas dcadas da escravido na corte. So Paulo, companhia das letras; 1990. 19 As aes de liberdade mostram muitas vezes que os escravos se movem nos espaos estreitos abertos pelas brigas sem trguas entre herdeiros avarentos e trambiqueiros. Grinberg, Keila. Reescrarvizao; Direitos e Justias. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONA, Joseli Maria Nunes (Org.). Direitos e justias no Brasil: ensaios de histria social. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, c2006. 20AZEVEDO, Elciene. Para alm dos tribunais; in: LARA, Silvia Hunold; MENDONA, Joseli Maria Nunes (Org.). Direitos e justias no Brasil: ensaios de histria social. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, c2006.

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escravos possuam a respeito do seu cativeiro e da prpria escravido, assim como as perspectivas dos demais agentes desses processos.Deixando de ser entendido como algo decorrente de idias filosficas, ou quase configura como simples instrumento de dominao, o direito passa a ser concebido como um campo simblico, e como prticas discursivas e ou como objetivos de poder. Suas instituies, prticas e discursos passam a ser estudados na interao com processos sociais e a partir de uma perspectiva francamente relacionada a questes historiogrficas mais amplas21.

Claudia Mrcia Dias da Silva em trabalho monogrfico a respeito da primeira sociedade de emancipao de escravos de Belm22, aponta a pouca participao dos membros dessa sociedade em aes de liberdade, uma associao que visava emancipar gradualmente o elemento servil, sem prejuzo ao direito de propriedade. Apenas dois nomes de membros constituintes dessa sociedade aparecem nos jornais pesquisados por ela, Jos Ernesto Par-Ass (como curador de uma escrava chamada Maria) e o Senhor Castelo Branco (atuando em mais de um caso, ora em favor do escravo, ora contra), tambm aparece em alguns autos de liberdade o nome de Samuel Wallace Mac-Dowell, presidente da mesma associao. O jornal liberal do Par noticiou durante a dcada de 1870, alguns casos de aes de escravos na justia pleiteando a liberdade No jornal O Liberal do Par em fevereiro de 1872 sai uma nota referente ao caso de um escravo que teve sua petio indeferida pelo juiz municipal substituto da primeira vara cvel da capital, Joaquim Antonio Francisco Pinheiro23. Este acusado de arbitrar segundo seus interesses polticos, contra um escravo de nome Manuel Duarte que intentava uma ao de liberdade alegando possuir peclio para comprar sua alforria. A nota no jornal alegava ainda, que o exerccio do cargo no competisse ao Dr. Joaquim Pinheiro, pois no estava de acordo com a lei de n 2033 de 20 de setembro de 1871 que diz em seu Art.1-Nas capites que forem sede das relaes e nas comarcas (...), a jurisdio ser exclusivamente exercida pelos juzes de direito.24

Acusando o juiz

21 MENDONA, Joseli e Lara, Silvia. Direitos e Justias no Brasil; Ensaio histrico jurdico e social. Introduo. Op. cit. 22 SILVA. Claudia Mrcia Dias. Op.cit. 23 O liberal do Par, 18/02/1872.

24 O Liberal do Par. 28/02/1872.

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substituto de estar ocupando um cargo que no lhe compete: O juiz municipal ocupa uma vara de direito, havendo, no entanto na comarca um juiz de direito efectivo, em exerccio, por isso, porque convm ao senhor Antonio Francisco Pinheiro, suplente do juiz municipal. Segundo o jornal, tal situao s se mantinha com a conivncia do presidente de provncia o Sr. Abel Graa 25. Voltando ao caso do escravo Manoel, seu sobrinho Eduardo Antonio Rodrigues Martins, que ao tentar entrar em acordo com o senhor do seu tio, o tenente coronel Lima, sobre o valor de sua manumisso, no obteve xito, pois ele pediu o valor de 2:500$$000 (dois contos e quinhentos mil reis) pela sua liberdade. No entrando em acordo, intentou uma ao de liberdade, com a petio abaixo transcrita:Illm. Sr. Dr. Juiz municipal. Eduardo Antonio Rodrigues Martins, sobrinho de Manuel Duarte, maior de 45 anos, escravo do tenente coronel Raimundo Pereira Lima, quer libertar o dito seo tio, mas no lhe tem sido possvel por no querer o referido tenente coronel Lima, crear um acordo razovel, em relao ao preo da liberdade; por isso vem o suplicante requerer autorizado pelo artigo 4 da lei de n2040 de 28 de setembro de 1871, que haja V.S. ordenar que seja arbitrado o preo da liberdade do dito seo tio, conforme dispe o 2 do artigo citado. Belm, 12 de fevereiro de 1872.

Novamente o peridico Liberal do Par acusa ao juiz de estar agindo de maneira desptica. Martins ao confiar nas leis buscou a liberdade de seu tio, porm, enganouse redondamente, porque acima da lei esto os conservadores e o juiz municipal o Sr. Pinheiro 26. O juiz deferiu o pedido de Martins, alegando segundo o jornal: o S.r. juiz tem o desfalecimento de declarar que a lei de n2040 de 28 de setembro de 1871 no ser executada quando o escravo que se quiser libertar, em virtude do . 2 do art.4 da referida lei pertencer a algum membro do seo partido. O mesmo Pinheiro fora deputado estadual e participou de uma polemica com o cnego Siqueira Mendes no ano de 1872, sendo ele parte de uma dissidncia do partido concervador naquele ano, eles trocaram ofensas nos jornais Dirio de Belm e Dirio do Gro-Par. O que

25 Ibidem. 26 Ibid.

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refora a acusao do jornal de que o juiz arbitraria em beneficio de seus correligionrios. Outras aes que foram arbitradas pelo mesmo juiz com alegaes semelhante tiveram fim diferente ao de Manoel, como o escravo Raimundo Jos ao qual o juiz mandou nomear-lhe um curador. Mesmo como advogado, em 1876, atuou em uma causa como curador de uma cativa de nome Jesuna:Diz Antonio Francisco Pinheiro, curador nomeado da escrava Jesuna, da propriedade da rf pbere Emigidia, filha de Antonio Domingues (...), que possuindo essa escrava um peclio de oitocentos mil reis, depositados na thesouraria da fasenda, como prova o documento junto, peclio que equivalente ao seu valor provvel, tem o direito a alforria nos termo do art. 4 2 da lei de 28 de setembro de 1871 e 6 do reg que garipou com o decreto n. 5135 de 13 de setembro de 1872. Requer por isso o suplicante, com a devida vnia, que seja citado a sua senhora e seu tutor o coronel Procpio Rola Sobrinho para acordo de que trata o 2 do citado art. 6 do reg. sendo no caso de desacordo julgada por arbitramento seu valor.27

Jesuna, avaliada em arbitramento teve a ajuda de seu curador para obter a quantia necessria. Foi avaliada em 900$$000 de comum acordo entre os avaliadores, logo o curador da escrava pediu licena ao juiz para doar a quantia restante necessria para atingir o valor arbitrado. Nosso ilustre advogado aparece novamente como advogado do ro Luis Calandrim da Silva Pacheco, em uma ao movida por seu escravo, Cesaltino de 22 anos, servente e criado de quarto, em 1879, que pedia arbitramento do seu valor e alegava possuir por doao a quantia de um conto e quinhentos mil reis. Encontrar as motivaes que levavam a essas atitudes ambguas de magistrados e advogados, que atuavam e proferiram sentenas ora favor ora contra os cativos, mesmo em casos aparentemente semelhantes, nos leva a tentar entender essa relao entre juzes, senhores, escravos e advogados, includo a forma como eram lidas as leis se a partir de um prisma conservador ou mais radical. Como indica Luiz Gustavo Santos Cota: A atuao dos advogados brasileiros no que diz respeito discusso sobre a extino do elemento servil, desde meados do sculo XIX, foi repleta de contradies e ambigidades 28

27 Ao de liberdade, 1876, Jesuna. CMA, fundo; liberdade 1870-1879.

28 COTA, Luis Gustavo S. Um Direito Sagrado- Os Advogados de Mariana e sua Atuao nas Aes de Liberdade (1871-1888)

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Outro caso envolvendo advogados que tambm fora noticiado nos jornais da capital faz referencia a Emilio de Moraes Dias, genro de Joo Loureno Paes e Sousa scio da casa comercial S e Cia. Ele recebeu de vrios escravos, valores referentes a seus peclios que somaram ao todo 31.246$$000(trinta e um contos duzentos e quarenta e seis mil reis), e causou certo impacto na imprensa. Segue abaixo a ordem do juiz de despachos:Manda a Jos Gonalves Nogueira para mandar intimar aos senhores Joo Loureno Paes e Sousa, Emilio de Moraes Dias e comerciantes S e Cia; para que declarem se tem ou no recebidos quantias pertencentes peclio dos escravos, que pretendem libertar-se pelo fundo de emancipao; no caso afirmativo, em que carter tem eles procedido: de que conta tem eles a recebido; quaes as quantias que formavam os peclios parciais desses escravos ; quaes os nomes destes e de seus senhores; finalmente que aplicao ou destino tem lhes dado a essas quantias. Depois de feito e cumprido pelo mesmo escrivo autue e faa os autos conclusos. Par 1 de julho de 1873. Joo Maria de Moraes, juiz de despachos da capital.29

Pode-se constatar que os cativos pertenciam a vrios senhores. Entretanto o que pretendo destacar a participao de Emilio de Moraes Dias . Mrcia Dias ao questionar os motivos que levaram os escravos a depositarem seus peclios na firma de S e Cia levanta a hiptese sobre a percepo que os cativos possuam a respeito da figura de Paes e Sousa, segundo Mrcia Dias: A hiptese que vem a cabea a de que os escravos estavam crentes de que um contato direto com o senhor manda-chuva da junta de classificao de lhes garantiria uma rpida classificao e emancipao 30 Outro fator que destaco e que poderia ter levado aos cativos depositarem seus peclios na firma de Paes e Sousa, a participao de Emilio de Moraes Dias em algumas aes de liberdade ao longo do ano de 1872, pois, este aparece como curador de escravos em duas aes de liberdade. Segue a petio do Dr. Moraes em favor da escrava Condolina: Emilio de Moraes dias faz doao a Condolina, escrava de Jorge Miguel da Silva Frade Lisboa a quantia que foi levantada para a manumisso (art.4 da lei 2040 de 28 de setembro de 1871) e, portanto tem a mesma escrava o direito a liberdade29 Autos cveis de exame, averiguao e providencias para por em segurana o peclio dos escravos a serem libertos pelo fundo de emancipao, 1873. APEP. 30 Op. j cit.

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2art. ant. a leia qual no se quer acordar o senhor. Portanto pede a V. Sa. Que autorizada intitulada seja nomeado um curador que promovera o arbitramento e a ao respectiva procedendo-se antes de tudo deposito preliminar da libertanda.31 Assim, pode-se aventar a possibilidade de que as relaes estabelecidas pelo senhor Emilio de Moraes Dias com os escravos, nos tribunais da capital, tenham influenciado aos demais escravos, ou seja, na percepo desses cativos a figura do Dr. Emilio enquanto algum que advogava as causa da liberdade. S ressaltando mais um detalhe, o Dr. Moraes e o Dr. Paes e Sousa foram nomeados juzes municipais substitutos no inicio do ano de 1873, o que mostra todo um emaranhado de relaes, pois, estes atuaram tanto como advogados como juzes na capital. Foram 162 escravos que depositaram seus peclios na firma do genro do Dr. Moraes, no ano de 1873, podem-se constatar alguns destes cativos em aes de liberdade no ano de 1880, como no caso das escravas.

Um advogado abolicionista... E certa mudana.Em 1884, no Dirio de Noticias sai uma nota referente a uma ao de liberdade que seria impetrada em favor de setenta escravos pertencentes a um portugus Joaquim Martins da silva, que estavam sob o poder do senhor Joaquim da Matta, como segue a nota:Nos disse o senhor Francisco de Almeida Bastos que vai intentar aco de liberdade em favor de setenta escravos que existiam na fazenda Bom-intento - em uso fructo do senhor Joaquim Martins da silva hoje em poder do Sr Joaquim da Matta. Elle, Almeida Bastos pretende discutir a questo da liberdade desses infelizes buscando como ponto de partida - a preveno do cdigo civil de Portugal. que reprime esse abuso (posse do escravo) praticados por indivduos de nacionalidade portugueza; e firmandose na circunstancia de terem sido esses infelizes ficado pro indiviso e usufructo de estrangeiro no residente no Brasil32

O advogado que moveu a respectiva ao de liberdade escreveu outro artigo no mesmo jornal em resposta a acusaes sofridas por ele, onde deixa claro suas motivaes:

31 Autos cveis de liberdade da escrava condolina, 1872. Fundo: liberdade. CMA. 32 Dirio de Noticias, 09/04/1884.

16A questo que vou propor em a favor da liberdade de setenta e tantos indivduos, que dizem escravos do subdito portugus Joaquim Martins da silva, j me vae produzindo a necessria odiosidade e contra mim j comearam a ferir cobardemente a calunia: - movido por interesses inconfessveis - Esta procurando um meio de vida - Quer saldar dvidas contradas na vadiagem - um esperto! ... Os escravocratas so frteis em inventar, ainda mais quando encontram a energia e a fora de vontade pela frente... Aceitei o patrocnio a causa desses setenta e tantos infelizes como aceitarei a de tantos outros, que esto em captiveiro indevido, porque, como liberal e abolicionista de todos os tempos no admito, porque reputo, e no sou eu s , um roubo a escravido, absurdo e brbaro, ignomioso e ilegal esse direito de propriedade de um individuo sobre a liberdade de outro individuo...33

No pude ter em mos tal processo para verificar qual a relao do senhor Almeida Bastos com o referido suplicado, no entanto, pode-se constatar como um dos poucos casos em que o discurso sobre direito natural e o abolicionismo foram evidenciados no discurso de um advogado diante de uma ao cvel de liberdade. Em geral as causas cveis de liberdade sugerem mais uma ao emancipacionista do que abolicionista, buscando estabelecer uma mediao entre a liberdade e o direito de propriedade, no entanto, o Dr. Almeida Bastos deixa claro em seu discurso sua ligao com as idias abolicionistas. Almeida Bastos foi vice-presidente da associao abolicionista Club Abolicionista dos Patriotas uma agremiao abolicionista de cunho popular, fundada em maio de 1884. A repercusso de aes desse tipo na imprensa de Belm pode de alguma maneira ter infludo na deslegitimao do domnio senhorial e na expanso do ideal abolicionista. Os argumentos jurdicos utilizados por ele no processo tambm fora muito peculiar, alegando o fato de que os escravos pertenceriam a um portugus e segundo a legislao de sua nao (Portuguesa) a escravido estava abolida no seu territrio e para os seus sditos. Embora trs membros da sociedade de emancipao de escravos apaream em algumas aes de liberdade, no pude constatar nem uma ao organizada dessa sociedade com o fim de emancipar escravos via justia (fora via o fundo de33 Dirio de Noticias, 17/04/1884.

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emancipao). Os casos em que tais membros aparecem indicam que eles sempre buscavam proteger o principio liberal do direito a propriedade mesmo buscando a liberdade de seu curatelado. Ser emancimpancionista ou atuar em causas de liberdade no significava no possuir escravos. A respeito da Sociedade Filantrpica de Emancipao de escravos e demais agremiaes do gnero Bezerra Neto aponta para pratica de evitar questes de liberdade; quando muito ento parece que as ditas agremiaes buscavam mediar o conflito entre senhor e escravo, buscando uma sada negociada junto aos primeiros, se evitando a disputa judicial com o arbitramento, sempre que possvel 34. Em 1883 foi constitudo a Comisso Central de Emancipao, porm, vrios membros das associaes abolicionistas se recusaram a participar da Comisso ou aturam de forma incua muito em virtude de seus laos polticos como Manoel Moraes Bittencourt e Jos Henrique Cordeiro de Castro. Dentro do programa da Comisso Central, foram estipuladas dez proposies 35 entre elas destaco a oitava e a nona na qual declaravam que a Comisso utilizar-se-ia dos meios possveis para a causa da emancipao dos escravos, diante dos senhores e dos tribunais. Convocando advogados para promoverem as causas a favor da liberdade e se recusarem a defenderem os senhores. Acredito que a partir da dcada de 1880 mais precisamente nos anos de 1883/1884 a ao abolicionista tenha ganhado um novo flego, repensando as sua formas de atuao, se as associaes evitavam as causas de liberdade nos tribunais, a busca atravs destas novas agremiaes abolicionistas de meios de presso mesmo nos34 Bezerra neto, Jos Maia. Por todos os meios Legais e Legtimos: as lutas contra a escravido e os limites da abolio (Brasil, Gro-Par: 1850-1888). PUC-SP, 2009. 35 Bezerra Neto, Jos Maia. Op. j cit.p 350. assim que, em suas proposies, definia meios de presso j em uso, tal qual como foi definida a quarta proposio que declarava propor pela imprensa e por conferencias as idias abolicionistas. Ou formas mais diretas e compreensivas de presso como na proposio sexta que previa reunies populares nos pontos que a comisso deliberar libertar, nomeando comisso que se encarregue desse servio. bem como medidas mais prticas em defesa do direito escravo a liberdade, mesmo que afrontando a fora moral dos senhores, quando em sua oitava proposio ficou estabelecido que a comisso tomasse a defesa dos escravos tanto diante dos senhores, quanto dos tribunais; a quanto a nona proposio ficou expressa a deciso de convidar os advogados a no tomarem causa contra a liberdade dos cativos e a promoverem a sua defesa, sempre que se trate de sua liberdade, para que seria convencido que organizassem uma sociedade com essa bases.

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tribunais indica algo de novo no carter do movimento emancipacionista e abolicionista de Belm. Em 15 de maio de 1884 o Dirio de Noticias passa a seguinte nota: constamos que as escravas Joanna e Fortunata, do Sr. Antonio Jose de Queiroz no esto matriculadas, chamasse para o fato as associaes abolicionistas. A nota indicada nos remete a uma tentativa de chamar a ateno de grupos abolicionista para atuarem em favor da liberdade das escravas mencionadas utilizado dos dispositivos da lei, como a liberdade por falta de matricula, e como j foi aqui indicado, levar os senhores aos tribunais implica em deslegitim-los moralmente. Outra nota no mesmo peridico noticiada que a escrava Adelaide36

teve seu

pedido de arbitramento indeferido pelo juiz Ernesto Par-Ass devido ao fato da quantia oferecida estar longe de seu valor razovel. O Sr. Par-Ass foi presidente da Comisso Central de Emancipao, a mesma associao que buscava novos meios de pressionar os senhores para libertarem seus escravos; ento como entender essa posio do Senhor Par-Ass? A liberdade por meio legal deveria respeitar o direito de propriedade, por tanto a indenizao deveria estar de acordo com o valor da referida propriedade. Assim podemos traar os limites do emancipancionismo paraense. Tal leque de atitudes demonstra que a causa da liberdade tinha nos advogados e juzes, quando no afetavam seus interes polticos, elementos importantes para a sua legitimao. A ao dos escravos nos tribunais dependia alm de um bom argumento que tivesse legitimidade diante do juiz, da dedicao de seu advogado e das relaes que esses agentes envolvidos no processo tivessem com os demais membros da sociedade.

A lei enquanto espao de ao - conquista ou engodo?Entender os espaos criados a partir de lei do ventre livre implica em perceb-la como uma estratgia dos grupos polticos conservadores para a questo da emancipao36 Dirio de Noticias 05/04/1884. POBRES ESCRAVOS! A escrava Adelaide Maria da Conceio martirizada por um tal de Maciel, requereu arbitramento para o Sr. Dr. Par-Ass, afim de libertar-se visto, ther na thesouraria um peclio de 20$. o Sr. juiz , no seu despacho, diz no ter lugar requerer a suplicante, em razo do seu peclio no equivaler ao seu preo razovel. que importa isso, quando a escrava esta pronta para entrar com a quantia que for avaliada em juzo?

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escrava; se as idias em torno do ideal abolicionista vinham sendo discutidas, a lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 aplacou os nimos dos abolicionistas mais radicais, e mesmo com certos dispositivos que muitos conservadores foram contrrios (como a possibilidade de resgate da liberdade via peclio), tal mecanismo (a lei de 1871) se adequou ao ideal de emancipao gradual que respeitasse o direito de propriedade, como exemplo dessa conteno da ao abolicionista na capital paraense temos o adormecimento da Associao Filantrpica de Emancipao de Escravos, ainda no inicio da dcada de 1870, que segundo Bezerra Neto, se da por conta de certo marasmo, em virtude da lei, alm das disputas partidria entre liberais e conservadores.Havia uma mentalidade conservadora que perpassava os estratos sociais e se acomodava face ao reformismo conservador moderado da lei emancipadora de 1871, ainda que alguns pudessem crer que a dita lei houvesse ido longe demais para tanto. Isto porque o perigo da lei de 1871, como dizia ento, estava no fato de que permitia novas expectativas e atitudes dos escravos em busca da liberdade, embora o fizesse para conter o abolicionismo radical e, principalmente, a rebeldia escrava e conformar seu desejo de ser livre a perspectiva gradualista da emancipao; que, por sua vez no visava manter indefinidamente a instituio legal da escravido sob ataque, mas ser poltica publica impeditiva da imancipao imediata, como de fato foi37

Ainda segundo Bezerra Neto, no se pode pensar essa ao escrava por via legal enquanto renuncia as formas mais radicais de ruptura com a escravido, inclusive da simplificadora dicotomia escravido versus resistncia, pois tal mecanismo no eliminou as tenses existentes como exemplo disto temos os dados acerca do numero de escravos detidos na cadeia municipal de Belm em 1883, que no total foram detidos 219 cativos38. Acerca dos espaos criados com a lei de 1871 para a ao cativa por meio legal interessante repensar essas perspectivas dicotmicas de rebeldia e acomodao ou conquista escrava e engodo senhorial em torno da dita lei; tais possibilidades foram conquistas ou um engodo? Para tal inflexo corroboro com a idia apresentada por37 BEZERRA NETO, Jos Maia. Por todos os meios Legais e Legtimos: as lutas contra a escravido e os limites da abolio (Brasil, Gro-Par: 1850-1888). PUC-SP, 2009.

38 Relatrio da policia publicado no jornal dirio de noticias de 1884.

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Roberto Guedes39 em torno da dicotomia conquista ou engodo; se os espaos criados a partir da lei de 1871 aumentaram as possibilidades de estratgias dos cativos, tais possibilidades no podem ser consideradas simples conquistas - resistncia, pois como j foi dito aqui, o mesmo dispositivo legal que foi utilizado pelo escravo, foi utilizado pelos senhores para manterem a ordem na questo da emancipao do elemento servil, assim as possibilidades e, por conseguinte a liberdade alcanada no deve ser vistas como engodo, se contrapondo a idia apresentada por Laura de Mello e Souza,De fato, aqui residia o engodo a contradio de uma ordem social que aceitava alforria, promovia at, mas continuava considerando os forros como sditos subalternos, incapazes de governar vilas ou integrar irmandades mais prestigiadas que seguiam sendo pelo menos de direito, espao privilegiados de homens brancos (Souza, 1999, pp156-158; 2000, pp279289.)40

Por mais que essa liberdade possusse certos limites em vrios aspectos jurdicos, os limites da liberdade no podem ser traados somente a partir da perspectiva senhorial; se a liberdade um engodo ele no pode ser uma conquista. Como nos indica Chalhoub, os negros no concebiam a vida em liberdade como a velha vida de roupa nova41, a idia de que Roberto Guedes :A meu ver, a estabilidade, que no elimina tenses, se d pela troca equitativa entre escravos e senhores, expressa na alforria , basicamente, uma concesso senhorial (...). No limite um acordo desigual em que uma parte d e a outra aceita (...). assim porque a relao vertical entre senhores e escravos era, bvio, calcada na desigualdade, na assimetria, mas sem deixar de ser uma relao de troca, assentada na reciprocidade.42

Assim ao indenizar o seu senhor, pagando pela liberdade, o escravo legitima o domnio senhorial, essa ao pode ser considerada olhando de modo raso como uma

39 GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, famlia, aliana e mobilidade social. Porto - Feliz 2008. 40 Apud, Guedes. 41 Chalhoub, op. j cit. 42 Op. J cit. Guedes.

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forma de sujeio, porm na verdade implica em um primeiro passo para a sua reinsero social.

Direito contra Direito.Pode-se perceber a maior atuao do Estado nas relaes escravistas atravs das leis, visando manter controle sobre as chamadas classes perigosas 43. Entretanto tais mecanismos possibilitaram maior ao dos escravos para obter a liberdade, pois, as leis que deveriam reforar as relaes escravistas, foram utilizadas pelos cativos de maneira que comprometera o poder senhorial, principalmente no caso do resgate da liberdade via peclio44. Portanto, segundo Grinberg45, a lei era ao mesmo tempo base de sustentao da escravido moderna e o espao onde a mesma base poderia ser quebrada. Segundo E. P. Thompson, mais do que legitimar o domnio de uma classe, a lei (no que esse carter no fosse verdadeiro) era um meio de mediao entre os grupos sociais, entre classes, assim a lei pode ser um instrumento de mediao, para proveito dos dominantes, mas ao decorrer do tempo, na prtica, fora transformando os significados sobre a noo de propriedade46. A importncia de se pesquisar as aes de liberdade, e os discursos sobre o direito de propriedade consistem na possibilidade de leituras, tanto da teoria presente nos discursos a respeito do direito positivo da propriedade, quanto da prtica presente nos autos de liberdades. uma forma de construir a partir de pedaos do cotidiano, dos senhores e escravos presente nesses autos, as percepes que estes possuam a respeito da escravido. E tambm auxilia a compreender os reflexos do movimento abolicionista

43 Cunha, Manuela Carneiro. Sobre os silncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do sculo XIX. In: Revista de Antropologia do Brasil, 1986. 44 Essa uma questo muito pertinente ao trabalho devido ao grande numero de aes em que buscada a liberdade por meio do pagamento de peclio, mesmo anteriormente a lei do ventre livre.

45 GRINBERG, keila. Liberata - A lei da ambigidade: as aes de liberdade na corte de apelao994. 46 THOMPSON. Edward Palmer. Senhores e Caadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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dentro dos tribunais da Capital. O principal efeito do recurso judicirio era minar a autoridade dos proprietrios. Levar os grandes proprietrios justia, a um poder maior, implicava em enfraquecer a dominao que os senhores eram capazes de exercer; relativizando como senhores absolutos, ao mesmo tempo em que ao indenizarem seus senhores atravs do peclio legitimavam o direito de propriedade. Situao ambgua, mas que permeava a lgica da sociedade escravista do sculo XIX. Como exemplificao dessa lgica, temos o discurso de um membro ilustre da sociedade belenense que atuou como curador em algumas aes de liberdade e foi presidente da Sociedade Filantrpica de Emancipao de Escravos, o deputado Dr. Samuel Wallace Mac-Dowell, no seu discurso proferido no parlamento brasileiro em sesso de 10 de agosto de 1885:(...) fala-se tambm no direito natural; tem-se suspendido a sociedade que no h domnio do homem sobre o homem, mas j Ulpiano havia escrito em duas leis que existem no digesto: que por direito natural todos os homens so iguais, todos nascem livres. As institudas de Justiniano respondem as suas objees de hoje de modo irrefutvel: si a escravido no existe, no haveria ocasio de tratar da manumisso, porque todos segundo direito natural teriam nascidos livres (...) esqueceis na vossa argumentao um elemento imprescindvel, que o facto da escravido que existe consignada em nossa lei escrita(...).47

Para Mac-Dowell se tratava de uma questo mais prtica, afinal a escravido existia e era legitimada pelo direito positivo, ao mesmo tempo esse direito a partir da segunda metade do sculo XIX corroeu cada vez mais o controle dos escravos pelos senhores. Como pudemos observar atravs dos jornais e Belm , a toda uma discusso a respeito do direito positivo e do direito natural. Segundo Grinberg 48, as aes dos advogados estavam em boa parte influenciadas pelo Direito Natural. Tal corrente terica se contrapunha a doutrina de que s h direito elaborado pelo Estado, declara a existncia de leis universais, como o da liberdade natural do homem, o princpio da equidade base da argumentao naturalista, foi adotado em Portugal a partir da reforma pombalina, sendo essencial para a interpretao do direito ate meados do sculo XIX.

47 Dr. Samuel Wallace Mac-Dowell no parlamento brasileiro em sesso de 10 de agosto de 1885, pordeciso da discusso do projeto da extino gradual do elemento servil, Par, Typ. de F de Costa Junior, P 36.

48 GRINBERG, Keila. Op. cit.

23O direito natural era dividido em duas correntes: a primeira representada por Heineccius, jurisconsulto alemo do sculo XVIII, e a outra representada por Hugo Grotius, considerado o pai da moderna concepo do direito natural. Para Heineccius, o direito natural era uma espcie de conjunto de leis divinas (...), enquanto Grotius acreditava que o direito e a justia deveriam ter bases laicas, totalmente apartadas da religio. 49

O prprio Perdigo Malheiros faz referncia ao direito natural em sua obra, quando fala das concesses de alforrias outorgadas pelos senhores de escravos:Com efeito semelhante, em semelhante ato o senhor nada mais faz do que demitir de si o domnio e o poder que tinha (contra direito) sobre o escravo, restituindo-o ao seu estado natural e livre, em que todos os homens nascem, a alforria , portanto, em sua nica e verdadeira e expresso mais do que as renuncias dos direitos do senhor sobre os escravos, e a conseqente reintegrao deste no gozo de sua liberdade, suspenso pelo fato de que foi vitima; o escravo no adquiri, pois rigorosamente a liberdade, pois sempre a conservou pela natureza, embora latente ante o arbtrio da lei positiva ( Malheiro, vol. I , p 118.)50

Assim as idias que cercam a doutrina jurdica positiva foram bastante discutidas pelos jornais da capital, buscando deslegitimar o direito positivo diante do natural, exemplificado por um extenso artigo intitulado Direito contra Direito publicado no Dirio de Noticias em 1884. Como segue abaixo trechos do artigo do dia 30/04/1884:Assim aqueles que revoltam-se pela forma pelo que foi adquirida no Cera a total emancipao dos escravos esquecem precisamente que no h direito algum que autorise o domnio do homem sobre o homem (...). O vicio de nossa constituio poltica j deveria estar extirpado. Constitui ele um direito legal? Que seja mas garantida assim a propriedade, que inviolvel perante o governo, queixem-se os senhores ao governo, se , que no recordam assistir ao escravo a maioria de razo, para queixar-se da espoliao que recebeu em sua liberdade (...). A lei a lei; mais diante do direito a lei paralisa. O direito originado da lei dez vezes menos que alei originada do direito. O que a lei pode constituir o direito pode derrogar (...). ns brasileiros do norte , devemo-nos queixar da centralizao, que uma trave colocada no carro do nosso progresso; os senhores que se queixem do governo (...) oponhamos por isso direito contra direito, a propaganda propaganda.51

49 COTA, Luiz Gustavo Santos. Um Direito Sagrado- Os Advogados de Mariana e sua Atuao nas Aes de Liberdade (1871-1888) 50 Apud: EISENBERG, Peter L. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil sculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Ed. UNICAMP.

51 Dirio de noticias 30/04/1884.

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Destaca-se a idia de centralizao como elemento que contribui para o atraso do progresso e da civilizao associando-se ao ideal abolicionista, discursos semelhantes foram bastante comuns nos peridico pesquisados, tambm so mencionadas figuras como Antnio Garibaldi estabelecendo um carter revolucionrio ao movimento de emancipao, no entanto, o cunho poltico dessas representaes cerca questes partidrias entre federalistas e centralizadores. Acredito que tal discurso sobre o direito natural possa ter permeado nos tribunais, no entanto, sem a mesma fora argumentativa que aparece nos peridicos mencionados, e sim, mais como um aspecto moral que vinha se firmando diante de um liberalismo mais radical, resgatando a idia de natureza, ao longo das ultimas dcadas do sculo XIX.

Certas consideraes.Ao utilizar de casos especficos que foram noticiados nos peridicos mencionados acima e nas aes de liberdade tentei entender como se dava a relao entre escravos e advogados em Belm, como constado no fora algo fechado no sentido de seguir somente uma perspectiva, no era to somente aos senhores que a lei servia e to pouco os magistrados e advogados. As relaes pessoais, as concepes ideolgicas, interesses pecunirios e porque no, certo rancor entre os agentes permeava essas relaes. Durante a dcada de 1870, as aes se davam em nvel de respeito irrestrito ao direito de propriedade, no foram evidentes discursos que atacavam a escravido em si, o movimento era de carter emancimpancionista. J a partir da dcada de 1880 com o crescimento do movimento abolicionista as agremiaes abolicionistas j pensavam em levar aos tribunais se necessrio as questes de liberdade, toda a discusso em torno do jurisnaturalismo do direito natural a liberdade e o direito de propriedade alimentaram a discusso, sendo que considerar a escravido como um roubo coisa da dcada de 1880. No existiu uma nica lgica que pautava as aes dos advogados, no entanto notria a necessidade de se respeitar a propriedade. Essa classe de membros da magistratura discutia cotidianamente a questo do elemento servil a partir da pratica muitas vezes ambgua.

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Capitulo II Entre a Escravido e a Liberdade: estratgias e relaes pessoais.Neste capitulo fao uma analise dos dados quantitativos apresentados pela documentao e busco atravs de uma analise qualitativa verificar certas representaes sobre a vivncia da escravido. O processo pelo qual o cativo buscava viabilizar a sua alforria diante dos meios legais, as chamadas aes de liberdade, esto presentes no Brasil ao longo de todo sculo XIX, no entanto o arcabouo jurdico que servisse de baliza para as decises proferidas pelos juzes somente se firmaram ao longo do perodo imperial e esto extremamente relacionadas com as discusses parlamentares, principalmente durante o Segundo Reinado. A grande freqncia que os cativos vinham questionando a legitimidade de seu

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cativeiro buscando a liberdade por via legal tivera seus reflexos no parlamento, pois, muitos dos polticos tambm eram juzes e advogados e estavam cotidianamente envolvidos com a questes atinentes a escravido52. Isso nos remete a seguinte questo, quais eram as fronteiras legitimadas pela sociedade, incluindo o prprio escravo, entre a escravido e a liberdade? Para Vicente Salles, na sociedade escravocrata o controle dos grupos sociais que compunham a populao da capital seria fruto das vontades senhoriais:o negro na sociedade escravocrata estava sob a tutela de duas foras coatoras principais: a lei e o senhor. A lei era o resultado da opinio geral dos senhores, elaborada por eles e para eles. Era, portanto, a expresso de sua vontade transformada em certos princpios jurdicos. (...) na vida de cada um, os senhores se guiavam muitas vezes por certos princpios absolutamente individuais ou segundo os costumes. A lei, em conseqncia, era publica, regulava a vida do cidado e do escravo; no ingressava no lar de cada um. Ai imperava absoluto e desptico, o Senhor, e a vida domestica estava sujeita aos seus caprichos. 53

Ao contraio do que indica Salles, mais do que compostas por vontades senhoriais, as leis que regularam a escravido foram frutos tambm das prticas dos escravos, quando pensamos que atitudes individuais de questionamento da legitimidade do cativeiro resultaram em debates nos diversos extratos sociais. As leis emancipacionistas que objetivavam manter o controle do movimento em prol da abolio e dar conta das presses acerca da questo do elemento servil, surgiram de intensos debates, gerando dispositivos legais que em parte surgiram das experincias cotidianas entre senhores e escravos54. Fao um rpido quadro sobre essas leis, Cronologicamente coloca-se o seguinte quadro; 1831, com a lei do fim do trfico que no obteve xito, em 1850 a ratificao da lei do fim do trafico com a lei de Eusbio de Queiroz sendo efetivamente cumprida. E em 1871 sancionada a lei do ventre livre, a partir de ento se criou a idia por parte dos conservadores de que haveria a extino

52 A esse respeito ver: Penna, Eduardo Espiller. Pajens da casa imperial. 53 SALLES, Vicente. O Negro no Par sob o regime da Escravido. 3ed. IAP; programa razes, 2005. P 139. 54 Como o caso do resgate da liberdade via pagamento do peclio ao senhor, um princpio costumeiro que se firmou na lei de 28 de setembro de 1871.

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gradual do elemento servil, em 1885 com a lei do sexagenrio ou Saraiva e Cotegipe, e finalmente com a lei de 13 de maio de 1888. Obviamente que cada lei acima mencionada corresponde a um perodo especifico de discusses e problemticas longe de estar dentro de uma lgica cronolgica simplista, afinal no havia uma percepo de que a abolio ocorreria em 1888, como exemplo temos aes de liberdade impetradas as vsperas da abolio da escravatura. O que quero aqui chamar ateno que esses dispositivos legais que surgiram durante o imprio mais do que fruto de discusses de grupos de pessoa livres, polticos e escravocratas, surgiram tambm em virtude de aes individuais de cativos que ao buscarem a sua liberdade questionavam o sistema escravista (no se trata de rebeldia escrava) e criavam novas fronteiras para a escravido. Trabalhos como o de Sidney Chalhoub, Keila Grinberg, Joseli Mendona, Maria Regina Xavier, buscam nos mostrar como essas disputas individuais revelam prticas e representaes que os cativos possuam a respeito de seu prprio estado. Pretendo demonstrar s argumentaes e atitudes dos escravos que buscavam a sua liberdade na capital do Gro-Par, a partir de 1871 com a lei do ventre livre, e assim entender como funcionva a sociedade belemense. O escravo que buscava judicialmente sua alforria estava entre a escravido e a liberdade, suas aes e seus argumentos e dos envolvidos no processo definiriam sua condio.As aes de liberdade impetradas aps a vigncia da Lei do Ventre Livre pertencem a uma poca de crescente agitao abolicionista e de leis e decises judicirias indicativas da necessidade de reformas no sistema. Movidos pelo desejo, e, muitas vezes, pela necessidade de criar uma situao mais justa, os cativos exploravam com inteligncia o espao institucional disponvel na busca de alternativas inexistentes na relao pessoal com seu proprietrio. Atualmente, a historiografia reconhece a submisso e a subservincia como estratgias utilizadas pelos escravos para arrancar do senhor alguma vantagem.55

Assim ao analisar certos casos especficos de aes de liberdade impetradas nos tribunais de Belm tentaremos compreender suas estratgias e percepes acerca da liberdade e do seu cativeiro, como traar um perfil dos escravos envolvidos nas aes de liberdade da capital e as dos demais agentes envolvidos. Os libertos atravs da justia55 CAMPOS, Adriana Pereira. Escravido e Liberdade nas barras dos tribunais. Histria. Revista Eletrnica do Arquivo Pblico de So - Paulo, ed. N9, abril de 2006.

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podem ser os que mais se adequaram ao espao local, pois para pleitearem a liberdade deveriam possuir meios, peclio, relaes pessoais, trabalho e certa autonomia em relao ao seu proprietrio, talvez isso nos permita questionar de que forma a conjuntura econmica local contribuiu para a ao desses escravos. A fuga para a capital em certos casos outro indicativo de que a noo por parte dos cativos de que as chances de obteno da alforria longe das reas de influncia do seu senhor lhe permitiriam obter a liberdade.

Historias de escravido e liberdade.Em 27 de abril de 1875 feita uma petio ao juiz de direito da capital em favor da escrava Quitria da Conceio alegando que a mesma seria levada a fora para Muan a fim de ser escravizada e seviciada pelo seu pretenso senhor Domingues Calandrim de Azevedo. A petio foi feita por Leocdia Laura Cordeiro de Jesus, alegando que Quitria fora sua escrava a mais de vinte anos atrs e que fora roubada de sua posse junto com outros escravos, e em virtude disso a mesma concedeu a liberdade a esses escravos. O que temos aqui uma cativa que alega ser livre e que buscou na sua antiga senhora proteo para conseguir se livrar do seu senhor. Ao que tudo indica Calandrim comprou Quitria do pretenso ladro dos escravos de Leocdia. Segue a abaixo a petio inicial do processo:Diz Leocdia Laura de Jesus Cordeiro, residente nesta capital, que foi possuidora de uma escrava por titulo de herana, e que dos mesmos foi a supplicante desapossada por motivos violentos e porque j tinha-os como perdidos a supplicante preferio perdel-os em favor da liberdade do que continuar em posse de terceiro, pelo que deo-lhes plena liberdade. E um desses escravos a de nome Quitria da Conceio que faz objecto da carta de manumisso que a esta se junta, cuja escrava existe actualmente nesta capital e seo suposto senhor de nome Domingues Calandrim de Azevedo em Muan. E porque haja presuno nesta ciadade para levarem a dita libertada para seo suposto senhor Domingues Calandrim em Muan. concenso noticia que o dito Calandrim quer a dita libertada para o fim brbaro de castigar e dar um fim eterno, e a supplicante sabendo que o dito Calandrim capaz [ilegvel] isso, receando assim a vida da referida libertada..56

Leocdia era residente na capital e Calandrim em Muan, ao que tudo indica Quitria se deslocou para capital em virtude de conseguir ajuda de sua ex-senhora o que56 Autos cveis de liberdade da escrava Quitria,Serie: liberdade, fundo 1870-1889.CMA.

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nos permite verificar certos laos estabelecidos entre Quitria e Leocdia. Uma situao bem inusitada, pois ao ser roubada junto como outros escravos, Quitria obteve a liberdade jurdica com a concesso da carta de manumisso feita por Leocdia, no entanto, foi mantida em cativeiro ao ser comprada. Continuando a petio:A supplicante Exm. Senhor pondera que em Muan tem authoridade judiciria a quem o supplicante neste termo deveria requerer a garantia da carta de liberdade que passou a dita sua senhora a escrava, porem a supplicante no foi porque j fes e nada conseguio por ser essa authoridade de todo di comum acordo com o suposto senhor da referida libertada: e como achando-se a mencionada libertada nesta cidade; vem por isso a supplicante respeitosamente a bem da humanidade requerer a V.Ex. se digne mandar depositar afim de no ser violentamente levada para Muan , para o fim que a supplicante j exps. At que seo intitulado senhor apresente seus ttulos de propriedade neste juzo no prazo legal: nomeando V.Exc. Um curador para a dita libertada, isso Exc. Senhor que seja com maior urgncia, por que o vapor que segue para Muan sahi hoje e de supor que querem levar a dita libertada hoje mesmo.

Leocdia deixa claro que j havia tentado recorrer s autoridades de Muan, porm nada conseguio por ser autoridade de todo comum acordo com Calandrim, vem tona questo da fora das leis nos distritos distantes dos centros urbanos, a medida que se afastam dos grandes centros urbanos a leis perdem sua eficcia. A ser notificado da respectiva ao na capital o senhor Calandrim responde ao juiz da capital, falando que a escrava Quitria fora comprada a mais de vinte anos atrs e declara; A liberta Quitria tendo sido primeiramente escrava de D. Leocadia Laura de Jesus Cordeiro, foi por esta a mais de vinte anos vendida a Antonio Pereira Lima, que por sua vez a vendeu mais tarde a Jos Abraham Levi, e este finalmente ao suplicante, que ateve por escravido por mais de vinte annos 57. Na seguinte resposta ficamos sabendo de que maneira Quitria teria sado de Muan, segundo Calandrim, estava sendo processada a ao de liberdade da escrava Quitria no termo de Muan:Diz Domingues Calandrim de Azevedo domilicirio no districto de Muan, e por este juzo apresentado pelo escrivo Vasconcellos, se acha depositada uma escrava do suplicante de nome Quitria, em conseqncia de ter fugido do distrito de Muan para esta capital, e como pelo foro de Muan j fora proposto pelo curador da escrava Quitria uma ao de liberdade que se acha a ponto de ser decidida, (...) e requer a remoo do deposito desta capital para a Villa de Muan visto ser o foro do domicilio do suplicante.58

57 Ibid.

58 Ibidem.

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Pode-se aventar a hiptese de que Quitria j esperava ser julgada improcedente a sua ao de liberdade no foro de Muan, o que na verdade deveria ser uma ao de manuteno de liberdade, e ao ser depositada aproveitou estar fora do domnio de seu pretenso senhor e fugiu para a capital onde acreditava ter maiores possibilidades de obter a liberdade. Quitria poderia ter tentado desaparecer. No entanto, recorreu a Leocdia e buscou a liberdade por meio legal. Qual o significado dessa liberdade institucional para ela? Somos postos a frente da perspectiva de que a liberdade significa mais do que estar longe do domnio senhorial, era ser reconhecida como livre perante a lei e a sociedade. Quitria acreditava na possibilidade de obter a liberdade por via legal. Outra ao de liberdade envolvendo Leocdia, dessa vez da escrava Florinda nos refora a afirmao de Leocdia manumitiu seus escravos.Diz Leocdia de Jesus Cordeiro que teria ela uma escrava de nome Florinda da Conceio, por amor de creao e outros motivos, que no importa diser aqui passar-lhe a carta de liberdade o traslado de registro a qual junta a sulpp. Achando-se a referida Florinda da conceio em companhia D. Graa Levy, viva de Jose Levy, residente em Muan, no tem por isso a dita Florinda entrado no gozo de sua liberdade. E porque tenha vindo de Muan para esta capital a referida viva de Jose Levy e aqui se ache morando a Rua dos Mrtires canto da travessa das Gaivotas e com ela a libertada, vem por isso a suplicante requerer a VS.a se digne mandar passar mandado para ser a libertada posta em deposito, para raso de duvidas e contestao que a detentora da mesma libertada dis ter a opor a sua liberdade. Se assim a deferir a suplicatnte.

O caso de Florinda to cheio de detalhes quanto o de Quitria, incluindo a transcrio da carta de alforria, onde so usados argumentos como pelo amor a deus e por merecimento. A questo que se lana a validade ou no da posse das escravas mencionadas diante de seus pretensos senhores. Caso fossem comprovadas legais tais propriedades a alforria dada por Leocdia no teria validade jurdica. Assim se manifesta David Namias em relao pretensa questo de liberdade:David Namias casado com D. Graa Pinto Namias, viva de Jose Levy, vem expor a vs. um fato pelo qual aventa-lhe uma doao de liberdade da escrava Florinda legitima propriedade do supplicante, assim como pede a VS. desculpa de a mais tempo no ter vindo a juzo, por que quando sua senhora foi intimada, achava o suplicante ausente em Camet eis o facto. Leocdia Luiza de Jesus, requereu o deposito da escrava Florinda sob o falso pretexto de ter passado a ella carta de liberdade, e apresentou certido de

31registro da mencionada carta, a qual se acha junta aos autos, VS. servio-se mandar depositar a escrava, e que fez o escrivo Vasconcelos,em poder de Manoel Rodrigues de Mattos onde se acha desde maro do ano corrente. Apresentao de Leocdia falta de o menor fundamento, e se ela deo esse passo, no soube o que fez e creio mesmo que ella tendo amor, pois uma mulher que tanto tem de velha quanto de ingnua, por que a verdade o seguinte. O antecessor do suplicante em Muan comprou a Manoel Antonio Cordeiro em 02 de Maro de 1842 uma escrava de nome Isabel com mais dous escravos menores por um conto e cem mil reis. Isabel deu a luz como escrava e j em poder do antecessor do suplicante a Florinda, pois como apareceu Leocdia passando carta de liberdade a Florinda em 1874, quando esta filha de Isabel, nascida e criada em casa de antecessor do suplicante a mais de 30 anos? Eis a carta referida falsa, ou foi mandada passar por conselho absurdo. De tudo tem o suplicante documentos que se aguarda para exibi-los e tempo oportuno. Requereu portanto o suplicante a VS.a se sirva mandar intimar ao curador da suplicante de Florinda para no prazo de 15 dias propor a competente ao, sob pena de levantamento de deposito, visto como o curador requereo e fez o deposito em Maro deste ano, e so decorrido perto de cinco meses sem dar principio a ao. Outro sim, que seja intimado o depositrio Mattos para ser reponsabilizado pelos jornais de escrava, tanto das j decorridas como das de hoje em diante. juntando-se estes ao autos.59

Florinda era filha de Isabel umas das escravas antes pertencentes Leocdia e nascera depois da perda da escrava. O processo inquiriu algumas testemunhas, que aos poucos vai remontado a historia do ocorrido. Segundo Felizardo Antonio de Salles, 2 testemunha, morador de Abaet, 48 anos de idade, lavrador, declarou que vinte anos pouco mais ou menos o marido de dona Leocdia se retirou da companhia desta para Portel; demorou trs anos pouco mais ou menos, na sua ausncia apareceu na casa de dona Leocdia, Jose Luis conhecido como marroquino marido com primeiras npcias com dona Graa, mulher hoje de David Namias, acompanhado de muitas pessoas cercando a casa de Dona Leocdia dai levaram os escravos seguintes: Isabel, Gregrio e Hilria e depois ele testemunha viu esses escravos na casa e poder do referido marroquino em Muan. Disse tambm que Leocdia e seu marido no sabiam ler nem escrever e que no sabia se o marido de Leocdia vendera ou no os escravos. O depoimento de terceira testemunha esclarecedor:3 testemunha: Manoel da conceio Sarges, idade trinta anos pouco mais ou menos, brasileiro, casado, lavrador, morador no Abaet (...). Disse mais que

59 Autos cveis de liberdade da escrava Florinda, 1875; fundo liberdade. Centro de Memria da Amaznia

32Jose Luis conhecido como marroquino fora numa madrugada na casa de Leocdia no lugar denominado garuru distrito de Muan em ocasio em que seu marido Manoel Antonio Cordeiro no se achava em casa mas sim no districto de Portel, e lhe levara violentamente trs escravos: sendo Isabel, Gregrio e Hilario conduzindo-os para sua casa em Muan onde os conservou pro muitos anos, mas que h muito tempo no existem esses escravos com Jose Luis, porque Leocdia passou a todos os trs cartas de liberdade. disse que o marido de Leocdia nunca teve sciencia da tirada desses escravos, porem depois que Jose Levi os levou de sua casa Leocdia foi a Portel a procura do seu marido para saber se por acaso ele os tinha vendido a Jose Luis mas que nada soube porque antes de chegar a portel seu marido faleceo.

Como indicado anteriormente pela segunda testemunha e corroborado pela terceira, Jose Luis foi de madrugada a casa de Leocdia, o que indica a no legitimidade o ato de pegar os escravos.Disse ainda que Florinda filha da escrava Isabel e nasceo em casa do dito Jose Levi marroquino e que hoje ele poder ter dezessete a dezoito anos de idade. disse ainda a testemunha, que no tempo que ele era pequeno de douze annos pouco mais ou menos , ouvio Jose Luis marroquino ao avo dele em sua presena que o marido de Leocdia lhe devia uma quantia de uns gneros que lhe tinha comprado e que em virtude disto elle foi buscar os ditos trs escravos, mas que quando ele cordeiro chegasse de portel lhos entregaria ( ilegvel) que lhe pagasse sua divida, suas que no entregou esses escravos e sendo reclamado por Leocdia as autoridades no tomaro conhecimento de sua reclamao disendo-lhe que ella no tinha qualidadi visto ser casada pelo o que ento ela foi procurar o seo marido para saber se os tinha vendido como dito fica. disse mais que nem Leocdia nem seu marido sabiam ler e escrever.

O advogado de David Namias e sua esposa tenta desvalidar o relato da testemunha, porm o discurso da mesma continua bastante coerente.dada a palavra ao procurador do senhor da libertanda requereo as perguntas seguintes : se ele testemunha estava presente quando marroquino foi a casa de Leocdia conduzir os escravos? Respondeo que estava. perguntado como explica o fato de Leocdia passar carta de liberdade a Isabel e ter depois passado tambm a visto como sendo Isabel j livre Florinda no necessitaria de carta por que nascera de ventre livre em poder de Jose Luis marroquino? Respondeu que tendo primeiro passado carta de liberdade a Isabel digo, que Leocdia passou carta de liberdade e a outros depois do nascimento de Florinda a quem depois tambm passou carta. Perguntado que idade tinha ele testemunha ao tempo que Leocdia passara carta de liberdade a Florinda e aos outros em que lugar morava Leocdia e elle testemunha ? Respondeo que no se recordava da idade que tinha mas que j era homem e uqe ele morava no distrito de Abaet e Leocdia no distrito de Macap mas que quando Leocdia lhe disse que tinha libertado os escravos, elle testemuhna se achava tambm no distrito de Macap . perguntado quanto tempo florinda existia no poder de Jose Luis bem como os outroe escravos comotabem onde se acho? respondeo que existiram a desenove a vinte annos e que presentimente Florinda existia em poder de Leocdia ; Isabel morreu, Gregrio e Jose Luis vendeo e hilrio existe nas ilhas dos Anajs.

33Contestando disse que a testemunha tudo quanto afirma porque tudo lhe foi referido por Leocdia alem de que em tudo oculta a verdade, e um depoimento no tem a verissimilhana por que no acreditvel que Leocdia senhora desses escravos os deixasse ficar em poder de Jose Luis marroquino por espao de vinte anos se por acaso fosse sua legitima dona ao ponto de deixar estar Isabel parindo e consentindo que Jose Luis os possuise contestando isso nas reparties competentes o comente de no anno passado se lembrar de fazer carta a Florinda quando h muitos anos nem esta nem os outros lhe pertenciam por ter seu marido vendido-os ou dado em pagamento a divida.60

A grande questo do processo a validade ou no das cartas de alforrias dadas por Leocdia, caso seu marido realmente tivesse vendido os escravos, tais cartas no teriam legitimidade; mas ao que tudo indica Jose Levy, realmente se apossou dos escravos em virtude de uma divida e portanto sua posse sobre os cativos era ilegal, mas no ilegtima j que as autoridades de Muan nada fizeram a respeito.

Fugindo e agindo, as leis manipuladas.A lei no era manipulada to somente pelos proprietrios de escravos como tambm pelos prprios escravos, a partir de certo momento os cativos tambm criavam estratgias para se beneficiarem das leis, este o caso do escravo Manoel. A lei de 1871 tinha o seguinte dispositivo em seu artigo 8 O governo mandara proceder a matricula geral dos escravos existentes no Imprio, com a declarao do nome, sexo, estado, aptido para o trabalho e filiao de cada um, se for conhecida 61 e o seguinte no 2 Os escravos que, por culpa ou omisso dos interessados, no forem dado a matricula ate um ano depois do encerramento desta, sero por este fato considerados libertos. Utilizando-se de tais dispositivos Manoel criou uma estratgia para obter a liberdade via justia, seu processo teve inicio em 1874.O preto Manoel, escravo de Igncio Cardoso da Fonseca diz que no tendo seu senhor o matriculado conforme determina a lei; achase por isso na causa de receber sua carta de liberdade e por isso requer em vista do documento junto V.Sa lhe mandar passar a referida carta. Par 25 de agosto de 1874.62

60 Autos cveis de liberdade da escrava Florinda, 1875; fundo liberdade. Centro de Memria da Amaznia 61 Apud. NEQUETE, Lenine. Escravos & Magistrados no segundo Reinado; a aplicao da lei 2040, de 28 de setembro de 1871. Braslia: Fundao Petrnio Portella, 1988.

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Nos autos do processo o escrivo diz ao juiz responsvel pelo caso que ao ser notificado o senhor Igncio Cardoso da Fonseca se recusou a aceitar tal notificao. O que, a princpio, pode parecer uma simples reusa de ser questionado moralmente pelo escravo, se desdobra em uma estratgia elaborada por Manoel. O prximo documento s faz referencia a partir de 1877, quase trs anos depois da petio inicial.Diz o preto Manoel, escravo de Igncio Cardoso da Fonseca que achando-se injustamente e ilegalmente preso, sob [ilegvel]de ser escravo de D. Mathilda de tal e achando-se em fuga, e achando-se o supplicante litigiando por este juzo a sua liberdade. Vem requerer a V.S.a se digne mandar soltar o supplicante. Par 17 de maro de 187763.

difcil explicar o porqu desse espao de tempo to largo entre os documentos do processo, talvez o fato do escravo ter sido preso o impossibilitasse temporariamente de dar continuidade a ao de liberdade, no entanto no temos a noo exata de quando ocorreu a priso do mesmo. A priso de cativos era uma forma de controle dos escravos na capital. Muitas vezes quando os senhores viam sua autoridade ameaada recorriam a policia para manter seus escravos presos por determinado perodo, j que as relaes de domnio em reas urbanas se dava de maneira diferenciada das reas agrcolas. Retornado ao caso, em maro de 1877 uma petio de Mathilda Alexandrina da Fonseca deixa claro o porqu da recusa de Igncio aceitar a notificao da ao de liberdade.Diz Matilde Alexandrina da Fonseca residente em Gurup, que por morte de seu pae Pedro alexandrino da Fonseca lhe coube um quinho nas partilhas o escravo preto de nome Manoel como se v da doc N 3, a qual foi devidamente matriculado doc n 2. Este escravo ausentou-se de gurup do poder da supplicante para esta cidade em 1874 aqui de m f requereo sua certido de matricula na alfndega que obtendo-a nella no constava que o dito escravo estivesse matriculado, e de outro modo no podia ser desde que ele residia em gurup com sua senhora onde foi devidamente matriculado. Com tal certido requereo a citao do irmo da supplicante Igncio Jos Cardoso da Fonseca, vinda de m f, por quanto elle sabia que sua senhora era a supplicante no obstante isto Fonseca reclamou apresentando a matricula doc. N 1, em vista do que o dito escravo retirou os papeis e os guardou em si, at poucos dias, que os apresentou no cartrio por ter sido recolhido a cadea a requisio do procurador da supplicante. Agora porem constando a supplicante que seu escravo sob fundamento de no estar matriculado promove uma aco de liberdade pelo expediente de vm. Escrivo Vasconcellos, vem a supplicante

62 Ao cvel de liberdade em que requerente o escravo Manoel, 1874. Srie: liberdade, caixa 1870-1879. Centro de Memria da Amaznia.

63 Idem.

35a V.S.a apresenta a matricula delle e mais papeis inclusos, para que se servindo V.S.a mandar juntal-os aos autos, e ordenar a concluso do senhor Dr. Juiz de direito para julgar improcedente a petio do escravo baseado em falso fundamento. Outro sim requer que o escravo seja conservado na priso para evitar a continuao da fulga.

Pois bem, o trecho acima declara que Manoel fugiu de sua pretensa senhora na cidade de Gurup para capital, Belm, e que sabendo no estar matriculado nesta comarca solicitou atravs de terceiros uma ao de liberdade alegando falta de matricula. Das afirmaes acima posso aventar duas possibilidades; 1, que, com a morte de Pedro alexandrino da Fonseca (patriarca da famlia) Manoel acreditava ter sido passada a sua posse para o senhor Igncio Cardoso da Fonseca e fugindo para capital solicitou a alfndega desta comarca a sua matricula e ao constatar que no estava matriculado requereu a liberdade, ou; 2, realmente elaborou uma estratgia se utilizado do dispositivo da lei de 1871. Segunda possibilidade demonstraria a percepo que um cativo possua da lei afinal ento a lei poderia ser manipulada para seu bem, e como j foi dito aqui, a lei entendida tambm enquanto espao de mediao e representao de conflitos. Manoel teve sua ao indeferida, mesmo assim a sua tentativa de libertar-se legalmente pode nos trazer questes acerca da leitura que os cativos faziam das leis; como caso do escravo Sebastio que alegando ser o nico de sua famlia a continuar na condio de escravo, reclamando contra a classificao de escravos para serem libertos pelo fundo de emancipao da quota da capital. Sebastio Paes, preto, escravo do doutor Joo Loureno Paes e Sousa, nos termos do artigo 34 do regulamento de 13 de setembro de 1872, vem reclamar a V.Sa. contra a preterio que acaba sofrer na pendente classificao dos escravos desse municpio que tem de serem libertos pelo fundo de emancipao.64 E continua:Do documento junto se v que o suplicante o nico escravo de sua famlia que composta por sua me e trs irmos todos libertos. O suplicante esta pois em primeiro lugar ( famlia) na preferncia dada por lei, art. 27 do citado regimento- do suplicante s tem preferncia os escravos que tendo tambm a razo da famlia-genero, lhe acusasem qualquer das espcies do 5.1 do citado artigo 27 do citado regimento isto cnjuges e mes. A libertao do suplicante completa uma famlia inteira na qual o suplicante e o nico della separado e a aspirao de todos os membros.

64 Auto cvel de uma reclamao do escravo Sebastio Paes, sobre a classificao dos escravos que tem de ser libertos pelo fundo de emancipao, 1877. Serie: escravos. Caixa juiz de rfo da capital, 1870-1879, Arquivo Pblico do Estado do Par.

36Tem tambm o suplicante a seu favor saber ler (ainda que mal) e assinar seu nome. (afirma?) se liberto o suplicante ter tempo e gosto para continuar na aprendizagem que to pouca para quem escravo de vergonha e portanto quer cumprir os seus deveres. Vem afim o suplicante alem de fazer a observncia de seu caridoso senhor que apenas exige do fundo de emancipao a quantia de 900$$000 pela alforria do suplicante, moo, sabido e com dois ofcios quais de pedreiro e cosinheiro. O suplicante espera pois de VSa. Se autorizar dandose lugar na atual classificao entre os libertos. Atento que o preto Sebastio, vinte seis anos de idade pouco mais ou menos, solteiro, escravo de meu sogro o Dr. Joo Loureno Paes e Sousa, de tima conducta, sabe ler ainda que mal, sabe assinar seu nome e o nico membro de sua famlia escravo, porque sua me e nicos irmos so libertos moradores no Tocantins donde por vezes tem vindo a esta capital. julgo=o portanto no caso de ser liberto pelo fundo de emancipao tanto mais quanto seu senhor, meu sogro, oferece exigindo apenas do dito fundo de emancipao a quantia de 900$$000 (novecentos mil reis) para dar lhe carta de alforria. O referido verdade o que afirmo por mim ser passado para documento em favor da dita liberdade e pro isso no (ilegvel) para o juiz de direito e rfos. Par 22 de janeiro de 1877. Emilio de Moraes Dias.65

A citao acima, traz uma srie de elementos em seu discurso muito pertinentes para analise. Primeiramente, necessrio deixar claro que com a lei de 1871 ficou regulamentada a criao de um fundo a ser distribudo proporcionalmente entre as provncias onde ocorreria a classificao dos escravos a serem libertos pela referida quota. Pois bem, utilizando-se desse fundo que Sebastio buscou a liberdade, questionando a classificao de escravos. O mais interessante o discurso que buscou legitimar sua posio adequada para ser classificado pelo dito fundo, e Paes e Sousa foi presidente da junta de classificao de escravos no ano de 1873 e talvez ai resida construo do argumento em favor do escravo Sebastio, pois seu advogado e seu senhor conheciam bem os mecanismos pelo qual o fundo de classificao funcionava, assim montaram um discurso onde o escravo se tornava apto a liberdade, talvez um iderio prprio do mundo senhorial. O interesse do senhor Paes e Sousa talvez fosse simplesmente beneficiar-se do Fundo de Emancipao, ai temos mais uma perspectiva da liberdade enquanto negcio lucrativo. Bezerra Neto j aponta em sua tese a prtica de anunciar escravos para serem65 Idem.

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vendidos com o fim de serem libertos, e mesmo a utilizao do fundo de emancipao com objetivo do lucro por parte de certos proprietrios, a liberdade poderia ser muito lucrativa. Mas melhor no nos afastarmos do caso de Sebastio, alm de ser o nico membro de sua famlia a permanecer em estado de cativeiro ele sabia ler e escrever: ser liberto o suplicante ter tempo e gosto para continuar na aprendizagem que to pouca para quem escravo de vergonha e portanto quer cumprir os seus deveres. o fato do escravo querer se dedicar a aprendizagem o tornava o mais adequado possvel para liberdade, isso remete ao tipo de liberto que o estado buscava, sendo aquele que maior condies tivesse de se adaptar ao mundo civilizado sem os vcios oriundos de seu anterior estado e a inaptido para o trabalho. Tambm destaco o fato de sua famlia morar no distrito de Tocantins e continuar vindo ate a capital para v-lo tais relaes horizontais realmente possibilitam um maior acesso a mecanismos de obteno da liberdade. Dentre as aes de liberdade encontradas no Centro de Memria da Amaznia e no do Arquivo Publico do Estado do Par correspondente as dcadas de 1870 e 1880 a maioria declara ou falta de matricula ou peclio. No caso do peclio, a legislao determina que os escravos pudessem constituir peclio a partir de doaes, legados e heranas e ainda atravs do seu trabalho desde que com o consentimento do seu senhor. Com o peclio em mos os cativos podiam pleitear a liberdade, em caso de no acordo sobre o valor requereriam o arbitramento deste em juzo. A partir da obra de Nequete 66, pode-se notar a variedade de leituras desse dispositivo nos tribunais. Para muitos senhores que se recusavam a perder seus escravos restava alternativa de ou tentar fixar um valor no qual o cativo no poderia resgatar a sua liberdade, ou deslegitimar o peclio do libertando alegando m procedncia ou liberalidades. A esse respeito Nequete nos apresenta um caso julgado na relao de Belm em 1876, Arbitrara-se em 1.000.$000 para que se passasse a carta de liberdade a Lidia, escrava do visconde do Arari, o qual, contestando a ao, alegava, mas sem qualquer prova contundente, a m origem do peclio67, e assim segue nos autos do processo: o visconde apelou e alegou que o peclio tinha m origem, que a escrava era de m66 NEQUETE, Lenine. Op. j cit. 67 Idem. PP 96-97.

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conduta, tanto que ele havia desterrado para seu engenho no Arari e que o precedente seria de maus efeitos por causa de seus outros escravos. Lidia ganhou ao ordinria, porm perdeu no tribunal da relao de Belm, teve seu pedido deferido pelo juiz de rfos e pelo tribunal da relao, o desembargador Paulo Pessoa se manifestou da seguinte maneira em relao sentena: nossa opinio sempre constante, que desde que o escravo apresente o seu justo valor, deve ser libertado, e isto no repugna ao preceito do art. 4 da lei de n 2040, de 28 de setembro e 1871, e arts. 48 e 56 do regulamento n 5.135, de 13 de novembro de 1872, e assim a consignamos em a nota 50 in fine de nosso trabalho sobre a dita lei, desde que se no prova que no a um crime na aquisio do peclio ou a fim de desacato a pessoa do senhor68

Desde que respeitasse a autoridade senhorial a utilizao do peclio teria muita fora para alcanar a liberdade, pois a partir de 1871, tornara-se lei.

Das habilidades de adquirir peclio.Dentre as formas de obteno da alforria uma que fora legitimada pela Lei do Ventre Livre fora a do resgate da liberdade atravs do peclio. Prtica recorrente e costumeira no sistema escravagista brasileiro, tanto que o viajante ingls Henry Koster, que se firmou em Pernambuco nas primeiras dcadas do sculo XIX descreveu tal pratica como um direito institudo em lei (o que no se comprova) costumeiro s se firmou com a lei de 28 de setembro de 1871.A lei n 2040 de 28 de setembro de 1871, art. 4, permit