Mal de Arquivo

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    1/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    177

    Volume 4 Nmero 2

    1. Mal de Arquivo

    A proposta deste texto apontar alguns caminhos para se compreender o papel

    da idia de arquivo na construo de projetos artsticos contemporneos. Inicia-

    mos com a denio de arquivo pelo dicionrio Aurlio:

    s.m. 1. Conjunto de documentos manuscritos, grcos, fotogrcos, etc., recebidos ou

    produzidos ocialmente por uma entidade ou por seus funcionrios, e destinados a perma-

    necer sob custdia dessa entidade ou funcionrios. 2. Lugar onde se recolhem e guardam

    estes documentos.

    J nesta denio de dicionrio pode-se observar o duplo aspecto do conceito

    de arquivo explorado por Derrida em seu texto Mal de Arquivo Uma impresso

    freudiana (1994, 2001).1 Percebe-se aqui a presena do desejo de se preservar

    a memria pelo arquivamento de registros, e um sujeito/instituio arquivadora,

    1 Mal de Arquivo Uma impresso freudiana foi uma conferncia de Derrida pronunciada em Lon-dres, no dia 5 de junho de 1994, no colquio internacional Memria, a questo dos arquivos, orga-nizado por iniciativa de Ren Major e Elizabeth Roudinesco e patrocinada pela Sociedade Internacionalde Histria da Psiquiatria e da Psicanlise, do Museu Freud e do Instituto de Arte Courtauld.

    Mal de Arquivo:a dinmica do arquivo na

    Arte ContemporneaSilvana Macdo*

    ENSA

    IO

    Resumo:

    A proposta deste texto explorar o impacto da idia de arquivo na arte contem-

    pornea. Parte-se da perspectiva de Jacques Derrida sobre o conceito de arquivo,

    em Mal de Arquivo Uma impresso freudiana, no qual Derrida explora o duplo

    sentido da raiz da palavra arquivo, como origem e comando ou poder de uma au-

    toridade. Ao relacionar a noo de arquivo com a memria (pessoal e histrica),

    o autor argumenta que h uma constante tenso entre a manuteno e repres-

    so (consciente ou inconsciente) da memria. O mal de arquivo estaria ligado pulso de morte, ao apagamento da memria, cujas conseqncias podem ser

    psquicas, sociais e polticas. Com esse entendimento, identicamos a idia de

    arquivo como um procedimento central nas prticas artsticas contemporneas.

    Diversos artistas desenvolvem projetos em torno de noes de falsicao de

    arquivos; partem da apropriao de arquivos histricos; ou incorporam metodo-

    logias cientcas em seus processos poticos, dando origem a arquivos ctcios e

    estranhas taxionomias.

    Palavras-chave:Arquivo; arte contempornea; memria; fotograa; Derrida

    * PhD Fine Arts, professora da UDESC.

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    2/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    178

    Dezembro de 2009

    com o poder de decidir o que entra e o que ca fora do arquivo, e que tambm

    zela pelo acervo reunido. Estas operaes no se do de maneira ingnua ou neu-

    tra, pois a prpria constituio de um arquivo gera um poder sobre o documento,

    sobre sua deteno, reteno ou interpretao, como explora Derrida neste tex-

    to.Em Mal de Arquivo, Derrida inicia investigando o duplo sentido da raiz da pala-

    vra arquivo, em grego arkh, que signica tanto comeo (origem/autenticidade),

    quanto comando (autoridade/poder):

    De certa maneira, o vocbulo (arquivo) remete bastante bem, como temos razes de acre-

    ditar, ao arkh no sentido fsico, histrico ou ontolgico; isto , ao originrio, ao primeiro, ao

    principal, ao primitivo em suma, ao comeo. Porm, ainda mais, ou antes ainda, arquivo

    remete ao arkh no sentido nomolgico, ao arkh do comando. (DERRIDA, 2001, p. 12)

    O sentido nomolgico de que fala Derrida vem do termo arkheon, que em grego

    refere-se residncia dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que co-

    mandavam, que tinham poder poltico, podendo fazer ou representar a lei. Por-

    tanto este termo tambm se refere ao lugar onde documentos eram guardados,

    ganhando o poder de interpret-los, como argumenta Derrida:

    Os arcontes foram os seus primeiros guardies. No eram responsveis apenas pela se-

    gurana fsica do depsito e do suporte. Cabiam-lhes tambm o direito e a competncia

    hermenuticos. Tinham o poder de interpretar os arquivos. Depositados sob a guarda des-

    ses arcontes, estes documentos diziam, de fato, a lei: eles evocavam a lei e convocavam

    lei. (Idem, p. 12-13)

    Derrida continua nesta anlise do poder arcntico, com suas atribuies de uni-

    cao, identicao, classicao e consignao (reunir signos), evidenciando

    como estes processos podem servir tanto para abrigar quanto para dissimular

    (Ibid., p. 13), de acordo com os interesses de quem detm o poder sobre o arqui-

    vo. Derrida evidencia desta forma, que a constante tenso entre a manuteno e

    represso (consciente ou inconsciente) da memria decorre desta relao entre

    o poder e o arquivo.

    Mais adiante, Derrida busca no conceito freudiano de pulso de morte, suporte

    para as dissimulaes, represses e destruio do arquivo pelo poder, que pode

    ser aplicado tanto memria pessoal quanto a nvel histrico. Observa que a

    pulso de morte, de acordo com Freud, trabalha sempre em silncio, no deixa

    nunca nenhum arquivo que lhe seja prprio... ela trabalha para destruir o arqui-

    vo: com a condio de apagar mas tambm com vistas de apagar seus prprios

    traos. (Ibid., p. 21). Portanto a vocao da pulso de morte tem este carter

    destruidor de maneira sutil e silenciosa.

    Como a pulso de morte aniquila a memria, o arquivo destrudo pela pulso seencontrar reprimido justamente no lugar da falta estrutural da memria. Da

    Derrida elabora seu conceito de mal de arquivo: A pulso de morte no um

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    3/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    179

    Volume 4 Nmero 2

    princpio. Ela ameaa de fato todo o principado, todo primado arcntico, todo de-

    sejo de arquivo. a isto que mais tarde chamaremos de mal de arquivo (Ibid.,

    p. 23).

    Portanto, o mal de arquivo est ligado pulso de morte, ao apagamento da me-

    mria, ao esquecimento, cujas conseqncias podem ser psquicas, no caso dememria individual, ou sociais e polticas, no caso da memria histrica.

    H ainda um outro aspecto que decorre da represso da memria, a busca dos

    arquivos perdidos. Derrida fala desta busca quando discorre sobre a diferena

    entre estar com mal de arquivo e mal de arquivo (esquecimento):

    ...estar com mal de arquivo, pode signicar outra coisa que no sofrer de um mal, de

    uma perturbao ou disso que o nome mal poderia nomear. arder de paixo. no ter

    sossego, incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde.

    correr atrs dele ali onde, mesmo se h bastante, alguma coisa nele se anarquiva. dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostlgico, um desejo irreprimvel

    de retorno origem, uma dor da ptria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno

    ao lugar mais arcaico do comeo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixo, nenhuma

    pulso, nenhuma compulso, nem compulso de repetio, nenhum mal-de, nenhuma

    febre, surgir para aquele que, de um modo ou outro, no est j com mal de arquivo.

    (Ibid., p. 118-119)

    Trago estas consideraes loscas em torno do arquivo elaboradas por Derrida

    para lanar uma luz sobre as dinmicas que se pode observar em diversos proje-

    tos artsticos contemporneos. Na parte seguinte deste texto buscarei identicar

    como a idia de arquivo passou a ser um procedimento central nas prticas arts-

    ticas contemporneas.

    2. A Noo de Arquivo na Arte Contempornea

    Atualmente h uma grande diversidade de artistas trabalhando com as mais di-

    versas mdias em torno de noes de arquivo, como argumentam importantes

    crticos e curadores no cenrio internacional, entre eles, Hal Foster em seu em

    seu artigo An Archival Impulse (2004), e Okwui Enwezor, no seu texto de aber-

    tura do catlogo da exposio Archive Fever: uses of document in contemporary

    art, no International Center of Photography, New York, 2008. Diante da vasta

    amplitude que este tema abarca, no seria possvel abordar todos os artistas e

    discusses crticas deste cenrio neste breve texto. Para dar conta pelo menos

    parcialmente do objetivo de tratar da questo do arquivo na arte contempornea,

    buscarei focar na produo de alguns dos artistas que abordam especicamente

    a noo de arquivo em seus trabalhos em fotograa.

    Talvez pudssemos pensar que qualquer srie de trabalhos de artistas poderia ser

    pensada em termos de arquivo, pertencendo ao grande arquivo da arte. Mas,

    aqui, me aterei a trabalhos que lidam mais diretamente com a questo do registroda memria ou seu apagamento, com as questes de origem e autoridade que

    emergem do arquivo expostas acima por Derrida. Poder-se-ia tambm abordar

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    4/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    180

    Dezembro de 2009

    esta questo com um foco no registro de aes artsticas efmeras, como as per-

    formances e happenings, que geraram inmeros arquivos de grande importncia

    para a arte contempornea. Tais arquivos assumem atualmente um papel que

    extrapola o meramente documental, funcionando como fonte primria de acesso

    a performances que foram feitas especialmente para a cmera, como os trabalhosde Vitor Acconci, Sophie Calle, Bruce Nauman, Ana Mendieta, Hamish Fulton, Ri-

    chard Long, Gabriel Orozco, entre muitos outros. Entretanto, meu foco no ser

    sobre estes trabalhos, deixando este assunto para uma outra oportunidade, para

    que eu possa me ater aqui aos trabalhos que apresentam uma outra dinmica,

    que tambm so fundamentadas na idia de arquivo como rea principal de sig-

    nicao.

    Inicialmente falarei dos artistas que se apropriam de arquivos existentes para a

    construo de seus projetos, acessando tanto arquivos histricos quanto pesso-

    ais. Em seguida, apresentarei alguns trabalhos de artistas que criam falsos arqui-vos; e nalmente aqueles que constroem arquivos pessoais ou sociais assumindo

    a metodologia de arquivamento em seu processo criativo.

    3. Apropriao de arquivos histricos e pessoais: Christian Boltanski, Ro-

    sngela Renn, Rosana Paulino

    3.1.Christian Boltanski

    A srie de instalaes fotogrcas do artista francs Christian Boltanski (1944)

    das dcadas de 1980 e 90 tm como tema central a identidade, morte, a mem-

    ria e o esquecimento. Em diversas instalaes deste perodo, como em Altar para

    Chases High School (Autel Chases), 1987, Monumento Canad, 1988, Monument

    (Odessa), 19892003, e Rserve des Suisses morts, 1990, h um desejo de se

    evidenciar a perda de memria de indivduos judeus, que possivelmente foram

    vtimas do Holocausto.

    O crtico Okwui Enwezor comenta a maneira como Boltanski manipula arquivos

    fotogrcos criando impresses distintas, nos fazendo suspeitar do poder da fo-

    tograa em atuar como receptculo para a memria:

    Por aproximadamente quarenta anos, Boltanski coloca questionamentos conceituais e lo-

    scos sobre a estabilidade do arquivo como meio pelo qual podemos conhecer e entender

    o passado, no de maneira a entrar na lgica de relembrar mas de explorar e expor como

    as imagens fotogrcas perturbam a lembrana, e na sua inconsistncia perfuram a mem-

    brana da memria pblica e privada. Em diversos arranjos aos quais esto sujeitas, Bol-

    tanski frequentemente trata documentos fotogrcos de maneiras contraditrias: s vezes

    so colecionadas em uma estrutura linear formando uma narrativa coerente, ou podem

    ser transformadas em unidades individualizadas fetichizadas, sobre as quais a tenra luz

    de uma luminria (spotlight) xada, conferindo a elas um carter quase devocional, em

    uma armadura de conguraes sentimentais que, marcantemente, so construdas paraevocar santurios. (Enwezor, 2008, p.31)

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    5/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    181

    Volume 4 Nmero 2

    Ilust.1. Christian Boltanski, Monumento Canad, 1988

    Esta atmosfera de santurio pode ser sentida na instalao fotogrca Monumen-

    to Canad (1988), composta por fotograas de retratos de crianas de um arqui-

    vo de uma escola judia. Na instalao, a srie de fotograas em preto e branco

    de rostos de crianas, so dispostas com luminrias parecidas com luzes em salas

    de interrogatrio (Ilust.1), dicultando a identicao dos retratados. As imagensdos rostos adquirem um aspecto de vulnerabilidade a mais sob este tipo de luz.

    Somado a isso, a instalao inclui roupas cuidadosamente dobradas e colocadas

    no cho. Aqui, tanto a fotograa quando as peas de vesturio funcionam como

    relquias, remetendo a uma polaridade de presena e ausncia.

    Ilust. 2. Christian Boltanski, Chases High School (Autel Chases), 1987

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    6/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    182

    Dezembro de 2009

    Morte, memria e infncia so temas recorrentes em seu trabalho. Altar para os

    alunos da Chases High School tambm baseado em fotograas encontradas

    de graduandos de uma escola judia em Viena em 1931. Neste projeto, Boltanski

    tambm re-fotografou o rosto de cada estudante, aumentando suas dimensesat as imagens perderem detalhes. Logo abaixo das fotograas, foram montadas

    pilhas de latas de alumnio remetendo idia de possveis receptculos de per-

    tences, relquias ou memrias de cada vtima.

    Ilust.3. Christian Boltanski, Rserve des Suisses morts, 1990

    Em Rserve des Suisses morts, 1990, o artista parece buscar resgatar memrias

    coletivas annimas, trabalhando tambm a partir de imagens de arquivos exis-

    tentes. Boltanski em todas estas sries de trabalhos, no fotografou pessoas

    diretamente, mas fotografou fotograas de arquivos, num processo de perda de

    detalhes, no qual a imagem sofreu um apagamento parcial.

    Considerando esta srie de trabalhos, poderamos argumentar que Boltanski es-

    taria justamente explorando a dinmica daquilo que Derrida denominou mal de

    arquivo. Ao mesmo tempo que Boltanski busca obsessivamente remexer na me-

    mria histrica de um passado traumtico, talvez com a inteno de restaurar um

    arquivo do esquecimento, h ao mesmo tempo um impulso de destruio do mes-

    mo. A violncia e a destruio da pulso de morte manifestam-se na perda das

    feies individuais dos retratados. O que vemos um acmulo de vultos pouco

    ntidos, em preto e branco, parecendo mais mscaras melanclicas do que rostos.

    A perda da individualidade de cada pessoa retratada, este apagamento da ima-

    gem, nos remete violncia histrica a qual sofreram, sendo esta dor impossvelde ser representada diretamente, mas que reverberam no vazio da superfcie

    impenetrvel de cada imagem.

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    7/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    183

    Volume 4 Nmero 2

    3.2. Rosngela Renn

    Este processo de escavar novos sentidos de arquivos existentes tambm faz parte

    da metodologia de trabalho da artista brasileira Rosngela Renn, que em diver-

    sos projetos ressignica imagens preexistentes. Negando-se a fotografar, Renn

    apropria-se de imagens recolhidas em lbuns e arquivos fotogrcos de famlia,de jornais, revistas, arquivos ociais e fotograas de autores desconhecidos. Ren-

    n fala de sua postura de encontrar novos sentidos em material descartado:

    Sempre me preocupei com o uso social da imagem. Interesso-me pela produo vernacular,

    desprovida da roupagem esttica, que j uma espcie de margem da fotograa. Gosto

    de lidar com esse material, porque me fala da vida cotidiana, do indivduo e do ser humano.

    Acredito que esse tipo de imagem conta muito mais sobre a humanidade do que a chamada

    fotograa de autor. A idia da margem nos meus trabalhos corresponde ao que quase pula

    para fora do circuito dos objetos. O que quase vai para o lixo. Interesso-me por esse materialpois ele me leva a pensar em que medida posso determinar que uma coisa no serve para

    absolutamente mais nada. Trata-se de uma questo de atribuio de valor e meu trabalho

    sempre comea pelo questionamento da atribuio de valor. Em fotograa, pode-se falar

    de valor esttico, valor documental, valor simblico, valor sentimental, e por a vai ento,

    quando se destinou uma imagem ao lixo, signica que ela perdeu muita coisa.2

    Ilust.4. Rosangela Renn, Vulgo, 1998

    Em inmeras sries Renn trabalha com imagens de fotgrafos desconhecidos

    ou amadores, cujo signicado melancolicamente se esvaiu, sendo aqui a morte

    do sentido das imagens descartadas a rea de interesse da artista. H tambm

    sries em que a ligao entre imagem e morte mais explcita, por exemplo, em:

    Duas lies de realismo fantstico, 1991, Imemorial, 1994, na srie cicatriz, 1997

    e vulgo, 1998, entre muitas outras. A pulso de morte, o mal de arquivo, o esque-

    cimento parece ser tambm o mecanismo em operao no processo fotogrco

    de Renn, de maneira similar ao de Boltanski. Sendo que a temtica principal de

    Renn concentra-se muitas vezes, mas no sempre, na tragdia social brasileira

    (ela j armou que deseja retratar os vencidos ao invs dos vencedores). Renn,

    2 Rosngela Renn: depoimento. Coleo Circuito Atelier. Belo Horizonte: C/ Arte, 2003, p. 14-15.

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    8/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    184

    Dezembro de 2009

    parece querer resgatar um sentido aos retratos descartados, mas ao faz-lo pare-

    ce apag-los mais ainda, esvazi-los totalmente de seu sentido original num ges-

    to claramente alegrico no sentido benjaminiano. Na re-contextualizao da ima-

    gem percebemos uma irremedivel perda de identidade do indivduo retratado,

    emergindo talvez uma massa de pessoas, um retrato social do Brasil annimo.

    Ilust.5. Rosangela Renn, Duas lies de realismo fantstico, 1991

    O crtico Paulo Herkenhoff observa este apagamento da memria individual ao se

    referir instalao Realismo Fantstico (1991/94), constituda por apropriao de

    fotos 3x4 de annimos:

    A nova imagem construda por Rosangela Renn explicita uma anulao de milhares de

    imagens por sua repetio, banalidade e acumulao, e nesse esforo parece se esvair

    toda signicao como um enleiramento de retratos sem alma. O arquivo, a cha, o for-

    mato 3 x 4, a conveno so agentes desse oblvio no campo social. (HERKENHOFF apud

    RENN, 1998, p.153)

    3.3. Rosana Paulino

    Ilust.6. Rosana Paulino, Bastidores, 1997

    J a artista Rosana Paulino, em sua belssima srie Bastidores (1997) de retratos

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    9/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    185

    Volume 4 Nmero 2

    de famlia, busca em seus arquivos familiares explorar questes tnicas e de g-

    nero. Aqui o aspecto autobiogrco d uma grande fora ao trabalho. A violncia

    do gesto contra o suporte, o bordado sobre a imagem fotogrca impressa no

    tecido, nos remete a uma violncia psicolgica sofrida por muitas geraes de

    mulheres negras no Brasil, no caso, pelas familiares da artista. O silncio dasagresses muitas vezes reprimidas emerge das memrias (conscientes e incons-

    cientes) nas potentes imagens de Paulino.

    O bordado, uma atividade tradicionalmente feminina, aparece obliterando os olhos

    ou boca das mulheres retratadas. Este procedimento sugere que a vida feminina

    restrita ao mbito domstico causaria um processo de mutilao social, um es-

    treitamento na viso e abafamento da voz da mulher sob a opresso patriarcal.

    O ttulo da srie tambm sugestivo, pois muitas vezes o trabalho das mulheres

    permanece nos bastidores, apesar de fundamental, frequentemente passa des-

    percebido, sem o reconhecimento pblico, ao contrrio de agentes (masculinosem sua maioria) que se mostram e se expressam abertamente no palco social.

    Ilust.7. Rosana Paulino, Parede da Memria, 1994

    Pode-se dizer desta atitude de Paulino, que a mesma esteja com mal de arquivo,

    no sentido que Derrida descreveu, tomada por uma paixo, um desejo de procu-

    rar o arquivo onde ele se esconde, um desejo irreprimvel de retorno origem,

    buscando nesta origem seus arquivos identitrios, as dores de geraes passa-

    das, e tambm a grande fora e beleza que reside nestes arquivos profundos e

    misteriosos da memria.

    4. Criao de falsos arquivos: Joan Fontcuberta

    J o artista catalo Joan Fontcuberta trabalha com a idia de arquivo num outro

    sentido, com a nalidade de desconstruir o discurso da fotograa como evidncia

    do real. Com esta inteno, trabalhou na srie Fauna (1989), em colaborao

    com o fotgrafo Pere Formiguera, construindo imagens fotogrcas sem nenhumamanipulao digital, para criar arquivos cientcos ctcios com grande ironia e

    humor, desmascarando assim a autoridade do discurso cienticista e o papel da

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    10/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    186

    Dezembro de 2009

    fotograa como prova da verdade.

    Fauna (1989) se congurou como uma instalao multidisciplinar centrada em

    um bestirio fantstico: fotografas, radiografas, desenhos de campo, mapas de

    viagens, chas zoolgicas, textos, registros sonoros, vdeos, animais dissecados,

    instrumental de laboratrio, correspondncia, etc. Para articular a proposta, Font-

    cuberta cria a histria de um naturalista alemo, o professor Peter Ameisenhaufen

    e seu ajudante, Hans von Kubert.3

    Os artistas relatam a descoberta dos arquivos do zologo Dr. Peter Ameisenhau-

    fen, nascido em 1895 e que desapareceu misteriosamente em 1955. Ameisenhau-

    fen teria catalogado um grande nmero de animais estranhos, como por exemplo,

    o Ceropithecus icarocornu que se parece com um macaco alado com um chifre de

    unicrnio, e a Solenoglypha polipodida que parece uma cobra com 12 patas.

    Ilust. 8. Joan Fontcuberta, Ceropithecus icarocornu, da srie Fauna, 1989

    Alm de bem humorados estes trabalhos, h um forte ceticismo diante de discur-

    sos autoritrios subjacentes na postura de Fontcuberta, que, segundo o autor,

    conseqncia direta da propaganda ideolgica no perodo da ditadura de Franco

    na Espanha. A criao de falsos arquivos pelo poder de autoridades ilegtimas,

    bem como a supresso e manipulao de arquivos para ns escusos por poderes

    militares so o exemplo mais direto da pulso de morte e destruio do qual nos

    fala Derrida no mal de arquivo, ou seja, o aniquilamento literal de arquivos, me-

    mrias e pessoas.

    5. Criao de arquivos pessoais e urbanos: Susan Hiller, Nara Milioli e

    asikainen&macdo

    3 O trabalho Fauna est on-line, disponvel em: http://zonezero.com/EXPOSICIONES/fotografos/font-cuberta/pg1.html, acesso em 06/12/2009.

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    11/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    187

    Volume 4 Nmero 2

    5.1. Susan Hiller

    A criao de arquivos pessoais em trabalhos contemporneos abundante e

    como exemplo trago aqui a instalao de Susan Hiller, intitulada From the Freud

    Museum (do museu de Freud) 1991-97, feita originalmente para este museu, mas

    depois mostrada em outros espaos. Segundo Hiller, este trabalho evoca as caixase gavetas de um museu antropolgico, apresentando uma coleo heterognea

    de imagens e objetos de sua coleo pessoal, organizadas em caixas, devida-

    mente etiquetadas, como se fossem objetos de alguma importncia histrica.4 A

    artista fala do trabalho: em um nvel minha instalao-vitrine uma coleo de

    coisas que evocam pontos histricos e culturais de derrapagem psquica, tnica,

    sexual, e perturbaes polticas (Hiller, 2000).

    Ilust. 9. Susan Hiller, From the Freud Museum (do museu de Freud) 1991-97

    Aqui o arquivo pessoal ganha o espao pblico do museu, assumindo um carter

    antropolgico, ampliando os complexos nveis de uma memria individual, que

    necessariamente constituda de dimenses histricas, polticas, sociais, culturais

    e subjetivas. Feita especialmente para o museu de Freud, o pai da psicanlise,

    os objetos adquirem naquele contexto um potencial de expandir seus possveis

    signicados, evidenciando a possibilidade de se ler o inconsciente de uma cultura,

    aquilo que estaria reprimido, no explcito no arquivo, mas latente no mesmo,

    aguardando para ser desvendado.

    Hiller conta que, ao visitar o museu, cou impressionada com a rica coleo de

    Freud de arte e artefatos clssicos e etnogrcos, e resolveu criar sua prpria co-

    leo de mementos culturais: so artefatos e materiais sem valor algum lixo,

    fragmentos descartados, coisas triviais, reprodues mas que pareciam carre-

    gar uma aura de memria e apontar para algum signicado (Hiller, 2000). O tra-

    balho de Hiller reete a metfora arqueolgica de Freud, em relao psicanlise,

    escavando arquivos reprimidos nas profundezas do inconsciente, para encontrar

    seu signicado, um processo tambm do comum ao fazer artstico.

    5.2. Arquivos cidatinos: Nara Milioli e asikainen&macdo

    O registro fotogrco em andamento da ocupao do Morro do Horcio (2003-

    4 Susan Hiller, disponvel em: http://www.eaf.asn.au/hillerweb/SHE3.html; acesso em 06/12/2009.

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    12/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    188

    Dezembro de 2009

    2007), localizado no Bairro Agronmica em Florianpolis, o qual vem sendo reali-

    zado pela artista Nara Milioli, est gerando um arquivo que acompanha o cresci-

    mento urbano informal desta rea. O projeto, iniciado em 2003, justape imagens

    do mesmo local, fotografadas num intervalo de aproximadamente dois anos, re-

    velando as transformaes ocorridas na paisagem neste curto perodo.

    Ilust. 10. Nara Milioli, Morro do Horcio, 2003

    Segundo Nara Milioli, o trabalho aponta para a ocupao desordenada e contnua

    do morro pelas pessoas, ao mesmo tempo em que revela o aspecto acolhedor das

    casas, como ninhos ou abrigos.5 Este trabalho foi pensado para ser apresentado

    em dois suportes, uma fotograa (20 x 30 cm) e cartes postais (10 x 15 cm).Nara Milioli pesquisou em sua tese de Doutorado em Poticas Visuais na Escola

    de Comunicao e Artes da USP, os conceitos acerca da paisagem e do corpo, bem

    como as inter-relaes entre esses conceitos, as oscilaes no corpo da paisagem

    e do corpo na paisagem.

    Mais recentemente, Nara criou um segundo anti-postal, como ela denomina estas

    series fotogrcas de vistas no tursticas de Florianpolis, intitulado Via expres-

    sa, 2006. Este trabalho consiste de uma fotograa de um morro habitado, expos-

    ta em um outdoor posicionado em frente ao morro.

    Ilust. 11. Nara Milioli, Via Expressa, 2006

    5 Texto no publicado para proposta de exposio para a Fundao Cultural BADESC, 2008.

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    13/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    189

    Volume 4 Nmero 2

    Estes trabalhos de Nara subvertem o gnero carto-postal, tradicionalmente um

    instrumento de propaganda efetivo na construo da imagem ocial da cidade.

    O poder que esta imagem fotogrca adquire neste contexto a meu ver monu-

    mental. O espao do out-door funciona como uma tela de iluses na qual se de-

    senrolam imagens da sociedade espetacular, com seus sedutores objetos de de-

    sejo, promessas de felicidade e plenitude. precisamente nesta mesma superfcie

    que a imagem de Nara cria uma ssura pela qual emerge o real interrompendo o

    uxo do espetculo, como um grande rudo silencioso. Ao olhar este projeto, senti

    como se o tempo tivesse parado por alguns instantes para podermos contemplar

    o bvio.

    Ao confrontar a imagem do morro da via expressa com sua imagem ampliada

    num out-door, o trabalho funciona como um espelho gigante do qual emerge uma

    memria reprimida, que escapa como um ato falho do inconsciente da cidade.Um arquivo obsessivamente recalcado, suprimido pelas autoridades municipais.

    Sente-se aqui novamente o efeito de um mal de arquivo, o desejo de se esquecer,

    de apagar imagens que jamais fariam parte da imagem ocial do paraso balne-

    rio, mas que insistem em emergir.

    Tambm como parte de um projeto de pensar o espao urbano, uma srie de

    fotograas de asikainen&macdo foram feitas na cidade de Newcastle, no Reino

    Unido, como parte de um evento que ocorreu em 2002, intitulado Capital. Artistas

    participantes realizaram projetos em torno da temtica urbana.

    Esta instalao fotogrca consistiu de seis fotograas e a seguinte citao de umtexto de Michel Serres pintado numa parede:

    Vivemos dentro das muralhas de nossas cidades ou sob a abboda estrelada? Em qual

    dos dois?

    Habitamos mais do que o outro?

    Ilust. 12. Saint Mary Chapel, Newcastle, 2002

    As imagens formam um pequeno arquivo originado a partir de uma visita a um

    stio histrico de Newcastle, as runas da capela Saint Mary do sculo XII. Nos in-

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    14/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    190

    Dezembro de 2009

    trigou o uso atual deste espao pela vizinhana, que o transformou em um tipo de

    santurio particular, trazendo para as runas ores, velas entre outras oferendas.

    Narrativas contemporneas foram adicionadas dimenso histrica e arqueol-

    gica do lugar.

    Este trabalho aborda estas manifestaes no local com uma pergunta. Como sepode compreender a f e a espiritualidade? Seria possvel apreender a intensi-

    dade psicolgica de atos devocionais espontneos atravs de meios racionais?

    O tratamento dado aos objetos remete a uma estratgia cientca usada por ar-

    quelogos, que apresentam ao observador objetos ou artefatos encontrados em

    santurios de uma maneira neutra ou no religiosa, resultando num pequeno

    arquivo de imagens.

    Ilust. 13 e 14. asikainen&macdo, da srie sem titulo (Saint Mary Chapel), 2002

    As trocas com o mundo do alm s vezes se do por meios surpreendentemen -

    te mundanos, como as oferendas em dinheiro. Mas talvez este seja apenas um

    aspecto das formas mais complexas e misteriosas que as pessoas usam para ex-

    pressar suas esperanas e buscar alvio para seus sofrimentos existenciais.

    Ilust. 15 e 16. asikainen&macdo, da srie sem titulo (Saint Mary Chapel), 2002

    A formao de um pequeno arquivo fotogrco destas manifestaes populares

    nas runas da capela lida com a questo da memria de um espao urbano em

    constante transformao. O arquivo aqui busca registrar a camada mais super-cial deste incessante adensamento de signicados que se associam a este lugar

    ao longo dos sculos.

  • 7/30/2019 Mal de Arquivo

    15/15

    CRTICA CULTURALCULTURAL CRITIQUE

    191

    Volume 4 Nmero 2

    Referncias Bibliogrcas:

    DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impresso freudiana. Rio de Janeiro:

    Relume Dumar, 2001.

    ENWEZOR, Okwui. Archive Fever: uses of the document in contemporary art. NewYork: International Center of Photography; Gottingen: Steidl Publishers, 2008.

    FOSTER, Hal. An Archival Impulse. October 110 (Fall 2004). Princeton: MIT Press,

    2004.

    HILLER, Susan. After the Freud Museum. Londres: Book Works, 2000. Catlo-

    go tambm disponvel em: http://www.freud.org.uk/exhibitions/10535/after-

    the-freud-museum/ e em: http://www.moma.org/interactives/exhibitions/1999/

    muse/artist_pages/hiller_freudmuseum.html

    RENN, Rosngela. Rosengela Renn. So Paulo: Editora da Universidade de So

    Paulo, 1998.

    Title:

    Archive fever: the archive dynamics in contemporary art

    Abstract:

    The aim of this text is to explore the impact of the idea of archive in contemporary

    art. In Archive Fever Jacques Derrida explores the double sense of the etymo-

    logical root of the word archive, which means both origin and command or powerof an authority. As the notion of archive is directly related to memory, personal

    and historical, the author reveals the relation of archive and power, arguing that

    there is a constant tension between maintenance and repression (conscious or

    unconscious) of memory. The archive fever would be associated with the death

    drive, loss of memory, which would have psychic, social and political consequen-

    ces. Taking on account this approach, the idea of archive is identied as a central

    procedure in contemporary art practice. Many artists develop projects around

    notions of falsication of archives; appropriate and manipulate historical archive

    material; or use scientic methodology in their poetical processes, creating ctio-

    nal archives and strange taxonomies.

    Keywords:

    Archive; contemporary art; memory; photography; Derrida