MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crítico Desde a Subalternidade

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    1/26

    Afro-sia

    ISSN: 0002-0591

    [email protected]

    Universidade Federal da Bahia

    Brasil

    Maldonado-Torres, Nelson

    Pensamento crtico desde a subalteridade: os estudos tnicos como cincias descoloniais ou para a

    transformao das humanidades e das Cincias Sociais no sculo XXIAfro-sia, nm. 34, 2006, pp. 105-129

    Universidade Federal da Bahia

    Baha, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003404

    Como citar este artigo

    Nmero completo

    Mais artigos

    Home da revista no Redalyc

    Sistema de Informao Cientfica

    Rede de Revistas Cientficas da Amrica Latina, Caribe , Espanha e Portugal

    Projeto acadmico sem fins lucrativos desenvolvido no mbito da iniciativa Acesso Aberto

    http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003404http://www.redalyc.org/comocitar.oa?id=77003404http://www.redalyc.org/fasciculo.oa?id=770&numero=6041http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003404http://www.redalyc.org/revista.oa?id=770http://www.redalyc.org/http://www.redalyc.org/revista.oa?id=770http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003404http://www.redalyc.org/fasciculo.oa?id=770&numero=6041http://www.redalyc.org/comocitar.oa?id=77003404http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003404http://www.redalyc.org/revista.oa?id=770
  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    2/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 105

    PENSAMENTO CRTICO DESDE A SUBALTERIDADE:OS ESTUDOS TNICOS COMO CINCIAS DESCOLONIAIS OU

    PARA A TRANSFORMAO DAS HUMANIDADES

    E DAS CINCIAS SOCIAIS NO SCULO XXI*

    Nelson Maldonado-Torres**

    Os Estudos tnicos nos Estados Unidos so vistos como mais umavertente entre os chamados studies ou aproximaes interdisciplinaresque encontram sua unidade no tema que estudam e no em uma discipli-

    na em particular. A noo de que a universidade moderna deve encon-trar um lugar no s para as humanidades, as cincias naturais, as cin-cias sociais e as distintas profisses (como engenharia ou advocacia),mas tambm para estudos interdisciplinares , em certa medida, uma

    * Parte deste trabalho foi apresentado como aula inaugural do Programa de Ps-Graduao emEstudos tnicos e Estudos Africanos, na Universidade Federal da Bahia, Brasil, em 26 deagosto de 2005. Traduzido do espanhol por Monica Santos. O tema dos Estudos tnicos comoagente transformador das humanidades e das cincias sociais tambm tem sido tratado deoutras formas por Johnella Butler e Sylvia Wynter. A noo de cincias descoloniais emana,por um lado, de Aim Csaire, que fala da cincia do anticolonialismo, e de Laura Prez, quetem insistido em vrias conversas na importncia de conceber os Estudos tnicos como estu-dos descolonizadores. Lewis Gordon tambm tem insistido na relevncia dos estudos dadispora africana para as cincias humanas. Ver Johnnella E. Butler, Ethnic Studies as aMatrix for the Humanities, the Social Sciences, and the Common Good, in Johnella E. Butler(org.), Color-Line to Borderlands: The Matrix of American Ethnic Studies(Seattle, Universityof Washington Press, 2001), pp. 18-41; Aim Csaire, Discours sur le colonialisme, Paris,Prsence Africaine, 1955; Lewis R. Gordon, Fanon and the Crisis of European Man: AnEssay on Philosophy and the Human Sciences , Nova Iorque, Routledge, 1995; Sylvia Wynter,On Disenchanting Discourse: Minority Literary Criticism and Beyond, in AbdulJanMohamed e David Lloyd (orgs.), The Nature and Context of Minority Discourse (NovaIorque, Oxford University Press, 1990), pp. 432-69.

    ** University of California, Berkeley.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17105

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    3/26

    106 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    contribuio da academia estadunidense. Alguns vem esta invenocom ceticismo, pois pensam que s a unidade disciplinar e o mtodo decada disciplina podem oferecer um conhecimento rigoroso e coerentesobre a realidade. Outros a vem com menoscabo e a julgam como maisuma expresso de certo kitschestadunidense, que tem mais cores e ador-nos que substncia. Apesar destas crticas, a noo de estudos interdis-ciplinares tem ganhado certa legitimidade e tm-se expandido para re-

    as inusitadas, tais como as cincias naturais (biologia e qumica) e ainformtica. Novas tecnologias e descobertas nas cincias demandamuma aproximao multi ou interdisciplinar.

    A ironia com que os Estudos tnicos se confrontam que a legi-timidade ganha pelos estudos interdisciplinares nos Estados Unidos noos tem beneficiado quase de nenhum modo. De fato, enquanto os estu-dos interdisciplinares continuam expandindo-se pela universidade esta-dunidense, os Estudos tnicos encontram-se cada vez mais encarcera-dos em seus respectivos nichos. Estes tambm se encontram assediadospor uma onda patritica de direita e pseudo-esquerda que se tornaraforte nos anos oitenta, vigorosa nos noventa, e proativa depois dos ata-

    ques de 11 de setembro de 2001. O questionamento dos Estudos tni-cos, ao menos nos Estados Unidos, no tem tanto a ver com suaepistemologia interdisciplinar como por sua agenda de trabalho crticoem torno dos discursos sobre a nao. Outra razo pela qual se duvidadeles sua origem. Os Estudos tnicos nos Estados Unidos foram cria-dos a partir da presso de movimentos sociais em finais da dcada de1960 e so vistos como resultado direto de polticas de afirmao daidentidade e no como uma expresso de problemas epistemolgicosdentro das cincias. Isto , sua criao se remete a foras sociais e pol-ticas e no a mudanas ou questionamentos epistemolgicos genunos.Portanto, o conhecimento e a investigao que produzem so vistos comoum apndice injustificado das cincias humanas e, para piorar, comoincapazes de ultrapassar interesses alegadamente reacionrios, pela afir-mao de uma identidade negada. O interessante que, embora os Estu-dos tnicos sejam vistos de tal forma, o establishment estadunidensemilita contra eles muito fortemente. Ainda que os Estudos tnicos nocontem com recursos como outras reas e que o que eles possam ofere-

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17106

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    4/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 107

    cer tenha sido sempre visto com desdm ou indiferena, ao mesmo tem-po eles se revelam como excessivos. Esta relao com programas aca-dmicos que foram originados pelas intervenes de grupos racializadosnos Estados Unidos tem uma estrutura racial conhecida: por mais quetenham, nunca sero nada, mas o pouco que tm j demasiado. OsEstudos tnicos so vistos ao mesmo tempo como completamenteirrelevantes, porm excessivamente ameaadores.

    Fora dos Estados Unidos os Estudos tnicos tendem a ser vistoscomo mais uma inveno da academia estadunidense e, como a acade-mia estadunidense se tem tornado hegemnica, eles so vistos comomais uma inveno imperial ou como algo que, precisamente por suarelao com o imprio, digno de ser exportado. Poucas vezes se vemos Estudos tnicos como uma conquista de comunidades racializadasque roubaram um espao ao imprio em um momento em que comuni-dades marginalizadas (negros, indgenas, mulheres, jovens, etc.) trans-grediram a ordem mundial e exigiram mudanas. Em vez de serem vis-tos como parte de um esforo global contra dimenses problemticas daepistememoderna, so vistos como uma produo caprichosa do imp-

    rio em sua dinmica interior com suas minorias, de alguma forma tam-bm privilegiadas ou muito particulares ao contexto estadunidense.Gostaria aqui de aclarar a relao dos Estudos tnicos com outras for-mas de estudos interdisciplinares ou studiese delinear a diferenaentre os mesmos. Depois, na segunda parte da exposio, elaborarei aidia dos Estudos tnicos como cincias descoloniais, que exigem nos um espao na universidade, mas uma transformao da mesma e desuas bases epistemolgicas.

    Estudos tnicos, Estudos de rea e Estudos Religiosos

    De acordo com Immanuel Wallerstein, os Estudos tnicos podem servistos como uma conseqncia no intencional dos Estudos de rea. 1

    Tais Estudos (Estudos Latino-americanos, Africanos, Asiticos, etc.)

    1 Immanuel Wallerstein, The Unintended Consequences of Cold War Area Studies, in NoamChomsky et al.(orgs.) The Cold War and the University: Toward an Intellectual History of thePostwar Years(Nova Iorque, The New Press, 1997), pp. 195-232.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17107

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    5/26

    108 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    surgiram nos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial,quando este pas tornou claro que no seria somente um poder hegem-nico nas Amricas, mas no mundo. A partir de sua independncia, em1776, os Estados Unidos se lanaram em uma empresa imperial na qualescravizaram e marginalizaram grandes populaes, sobretudo negras eindgenas. Em 1848, depois de uma guerra com o Mxico, tomaramgrande parte do territrio do norte mexicano. A seguir, em 1898, lana-

    ram-se guerra contra a Espanha e terminaram com vrias colniasespanholas como parte de seus territrios. A partir de ento, numerosossetores da intelectualidade latino-americana, que primeiro viam nosEstados Unidos um modelo de nao e progresso (isto , enquanto es-cravizavam e eliminavam indgenas e afro-descendentes), tornaram-semuito crticos em relao a eles. A participao dos Estados Unidos naSegunda Guerra Mundial colocou o pas no centro de tenses geopolticasque questionavam a hegemonia europia e abriam o mundo a um estadode guerra fria. Foi em tal contexto, quando eles entraram em guerracom pases na Europa e na sia e comeavam a se tornar hegemnicosa nvel mundial, que o exrcito se deu conta da ausncia de scholarsnosEstados Unidos com conhecimento aprofundado sobre as distintas re-as do mundo com as quais a nao entrava agora em contato direto.

    At a Segunda Guerra Mundial, a academia estadunidense seguiao modelo da universidade moderna kantiana-humboldtiana, cujo mode-lo tinha sido preparado na Alemanha, depois do Iluminismo, no inciodo sculo XIX.2 Este modelo universitrio separava definitivamente ateologia dos estudos humansticos e da cincia. As cincias naturais setornaram hegemnicas neste modelo de universidade e serviram de ins-pirao para criar novas cincias, j no da natureza, mas da sociedade.A sociologia, as cincias polticas e a economia foram criadas primordi-almente para estudar a estrutura da sociedade moderna, que j no seregia pela revelao divina ou por ditames da Igreja, mas se percebia asi mesma como um conjunto de esferas autnomas e especializadas queinteragiam: o estado, a economia, a sociedade civil, a cultura, etc. Neste

    2 Walter Mignolo, Globalization and the Geopolitics of Knowledge: The Role of the Humanitiesin the Corporate University,Nepantla: Views from South, vol. 4, no1 (2003), pp. 97-119.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17108

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    6/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 109

    contexto, a religio e particularmente o cristianismo deixou de serum discurso com autoridade pblica que definia e outorgava os critriosde racionalidade em cada uma das esferas do corpo social, e gradual-mente se transformava em um discurso cuja relevncia estava limitada esfera privada da deciso pessoal. Se a cincia natural tinha deixadoclaro que a teologia no tinha os critrios para entender o mundo natu-ral, j no sculo XIX, aps o Iluminismo, pensou-se que a teologia tam-

    bm no podia prover os critrios para entender o mundo social e neleinterferir efetivamente. As cincias se encarregariam de conhecer e aju-dar a administrar o mundo moderno diante da ausncia da autoridadedivina.

    Enquanto a sociologia, as cincias polticas e a economia se en-carregavam de entender a sociedade moderna (tanto como a psicologiase encarregava de entender a psique moderna), a antropologia e oorientalismo se encarregavam de estudar as culturas ou sociedades noeuropias. O orientalismo se encarregava de estudar as grandes civiliza-es do chamado Oriente, enquanto a antropologia estudava principal-mente grupos chamados ento primitivos que ainda existiam no mun-

    do.3

    Estas disciplinas desempenhavam um papel fundamental para omundo europeu moderno. Assim como a sociologia, a economia e ascincias sociais permitiam entender e predizer o moderno estado-naoeuropeu e nele intervir racionalmente, o orientalismo e a antropologiacontribuam com conhecimento fundamental para poder manejar asnovas colnias e para confrontar pases inimigos, principalmente nochamado Oriente e na frica. No sculo XIX, o equivalente dos estudosafro-orientais teria sido uma mescla de orientalismo e antropologia muitofortemente norteada pelo esprito colonizador europeu. No sculo XX,esta formao sofreria uma mudana pelo surgimento dos Estudos derea (em suas origens ao menos, outra forma de estudos colonizado-res), enquanto no sculo XXI ela viria a incorporar mais centralmenteos Estudos tnicos um exemplo disto seria o recm-inaugurado Pro-grama de Ps-graduao em Estudos tnicos e Estudos Africanos daUniversidade Federal da Bahia, no Brasil. Se esta genealogia geral dos

    3 Wallerstein, The Unintended Consequences, p. 198.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17109

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    7/26

    110 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    estudos afro-orientais minimamente correta, ento talvez possamosfalar de uma transformao destes, de cincias colonizadoras em cinci-as descoloniais, muito alm dos estudos interdisciplinares e dos estudosculturais. Pelo menos esta me parece que possa ser a contribuio fun-damental dos Estudos tnicos nesta forma de trabalho. Mas agora meadianto muito em teses que s se entendero por completo mais adiante.

    A genealogia que estamos traando aponta, assim, primeiro para

    transformaes que desafiaram a primazia do conhecimento teolgicono sculo XVIII e que levaram ao predomnio das cincias no novomodelo de universidade fundado no sculo XIX. Neste contexto, as ci-ncias se separaram das humanidades, que estavam dedicadas ao estudoda literatura e ao pensamento clssico, e forneceram o ambiente para osurgimento das cincias sociais, que se dividiram entre, por um lado, oestudo do estado, do mercado e da sociedade moderna e o estudo desociedades pr-modernas, fossem estas gloriosas ou primitivas. Fo-ram sem dvida estas culturas e sociedades chamadas pr-modernas quesofreram o impacto de uma nova onda de imperialismo de sociedadeseuropias, agora chamadas fundamentalmente para civilizar e no tan-

    to, como antes, para cristianizar. Enquanto as cincias naturais permiti-am ao ideal de Homem moderno intervir racionalmente no mundo fsi-co, as cincias sociais serviram, pois, para fazer o mesmo na ordemsocial, mais especificamente no estado moderno e nas colnias. A novaestrutura epistemolgica oferecia simultaneamente a compreenso e ocontrole de: 1) a natureza, 2) a sociedade moderna e 3) o mundo coloni-al. A emergncia dos Estudos de rea representou neste contexto umamudana relativa s cincias europias, a partir do surgimento de umcontexto em que os Estados Unidos ocupariam um papel principal nasdinmicas geopolticas do mundo moderno.

    O problema com as cincias europias, tal como se encontravam

    no sistema universitrio estadunidense, era que estas no forneciam co-nhecimento especializado de sociedades modernas no europias. Opreconceito em relao a culturas e sociedades no europias era tal queas disciplinas que se focavam nas mesmas (o orientalismo e a antropo-logia) se aproximavam delas como se estivessem congeladas no tempo.No orientalismo, este enfoque derivava em parte de uma perspectiva

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17110

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    8/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 111

    crist, que via a evangelizao como parte fundamental da colonizao.E a evangelizao requeria um conhecimento ntimo dos fundamentosculturais das culturas no crists. Da a nfase em valores, idias e pr-ticas, algumas antigas, que regulamentavam a vida do no-europeu.Quanto mais se conhecesse a respeito delas, mais fcil seria a evangeli-zao dos sujeitos que as cultivavam. Tambm existia a idia de que omomento culminante das civilizaes orientais estava no passado, e que

    o presente se entendia melhor como o resultado de um processo de de-cadncia interna.4 Enquanto o orientalismo via o oriental contempo-rneo como um fruto no merecido de sua grande cultura antiga, a an-tropologia se aproximava do primitivo como o passado decadente dacivilizao moderna. Assim, como havia uma linha descendente do pas-sado ao presente decadente dos orientais, da mesma forma se via umalinha ascendente do primitivo ao homem moderno europeu que, iro-nicamente, lhe era contemporneo.

    Os Estados Unidos necessitavam definir uma geografia do co-nhecimento distinta, o que implicava tambm uma nova forma distintade entender o tempo (passado/presente/futuro). Livre de certos precon-

    ceitos europeus e, em certa medida, de antigos preconceitos cristos, osidelogos dos Estudos de rea nos Estados Unidos sentiram a necessi-dade de conhecer o mundo no europeu tal como era no presente. Paraisto, nem o orientalismo nem a antropologia eram de muita ajuda. Poristo, passaram a ser aplicadas as prprias cincias sociais (a sociologia,as cincias polticas e a economia) para o estudo do no-europeu e dono-estadunidense. certo que havia alguma reflexo nas cincias so-ciais sobre as culturas e as sociedades consideradas no modernas, maseste no era seu foco principal. E quando as tomavam em considerao,as ditas cincias reduplicavam a viso geopoltica e temporal com asquais o orientalismo e a antropologia operavam. Todas elas eram guia-das por uma filosofia da histria eurocntrica, que as impedia de ver osno-europeus como contemporneos.

    4 Ver a anlise do trabalho de Max Mller e outros tericos da religio em: John Wolffe (org.),Religion in Victorian England. Volume 5: Culture and Empire(Manchester, ManchesterUniversity Press, 1997).

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17111

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    9/26

    112 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    Os Estudos de rea foram um passo mais adiante das cinciassociais e se anteciparam a elas em conceber a contemporaneidade dassociedades no europias. Certamente, este passo no pode ser exagera-do como tampouco se pode esquecer que o objetivo deste ia muito almdo conhecimento e do controle de pases no europeus pelo poder esta-dunidense. A noo de certa contemporaneidade no estudo das socieda-des no europias e coloniais tambm vinha muito a propsito do pro-

    cesso de descolonizao que comeou a ocorrer pouco depois do fim daguerra mundial. Antigas colnias passavam a ser, agora, estados nacio-nais e, portanto, comeavam a ser administrados com as mesmastecnologias e idias que a Europa utilizou na fabricao de seus esta-dos-nao. Outro fator era a Unio Sovitica, que representava umaameaa neste atual momento para o mundo, tal como era concebidopelo estadunidense e pelo bloco ocidental. Os Estudos de rea, conce-bidos inicialmente antes do comeo da Guerra Fria por funcionrios damilcia estadunidense, propunham de antemo uma nova orientao, queviria muito bem ao confrontar o mundo que lhe caberia conduzir.5

    Outra contribuio dos Estudos de rea s cincias sociais euro-

    pias foi a introduo de uma perspectiva interdisciplinar. Os Estudos derea abandonaram o compromisso com a integridade metodolgica dascincias e enfocaram, sobretudo, a suposta integridade da regio geopol-tica a considerar. Os especialistas em Estudos de rea se apropriavam dediversas disciplinas (sociologia, geografia, cincia poltica, etc.) para lan-ar luz sobre a complexidade do mundo com o qual os Estados Unidosagora se defrontavam. A especializao disciplinar encontrava limites aoconfrontar-se com a nova tarefa de oferecer conhecimento sobre um mun-do concebido como cambiante e desafiante. Os Estudos de rea refletiamesta nova percepo e obedeciam a novos imperativos. Serviam aos pro-psitos no de uma Europa que se pensava como o clmax da civilizaohumana e que concebia os outros como atados ao passado e tradio,mas aos de uma jovem nao que estava muito familiarizada com a possi-bilidade da mudana (de colnia, a estado-nao, a imprio) e que seorientava fundamentalmente para o futuro.

    5 Sobre a relao entre os Estudos de rea e a milcia estadunidense, ver Wallerstein, TheUnintended Consequences, pp. 195-210.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17112

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    10/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 113

    Mesmo que os Estudos de rea tenham superado de alguma for-ma o preconceito cristo sobre as culturas e as sociedades no crists,estavam inspirados, ao menos indiretamente, pelo cristianismo. Os emer-gentes Estudos Religiosos, forjados em grande medida por evanglicosbrancos, serviram de modelo para os Estudos de rea. E hoje em dia aoposio influncia dos Estudos Ps-coloniais nos Estudos de reatem levado a estabelecer um regresso dos Estudos de rea sua relao

    ntima com o militarismo e com a conservadora agenda crist evangli-ca nos Estados Unidos.6 Com efeito, os Estudos Religiosos precederamos Estudos de rea na academia estadunidense e, de fato, foram os pri-meiros tipos de studiesnos Estados Unidos.

    A relao entre Estudos Religiosos e Estudos tnicos relevantepor vrias razes. Em primeiro lugar, tal como indiquei, estudos sobrereligies mundiais serviram de guia para a definio dos Estudos derea. Mesmo que em seu princpio estivessem muito orientados pelateologia crist, os Estudos Religiosos apregoavam um enfoque interdis-ciplinar religio, que em muitos casos era vista como relativa a regi-es. A relao entre Estudos Religiosos e Estudos de rea relevante

    tambm porque ilustra dinmicas interessantes entre o conhecimento eo poder, j no somente entre elites na Europa e nos Estados Unidos,mas entre as elites nos prprios Estados Unidos. Se os Estudos de reaeram a expresso dos interesses cognitivos de elites estadunidenses emum momento de auge e reconhecimento a nvel mundial, a emergnciados Estudos Religiosos obedeceu resposta de elites crists nos Esta-

    6 H apenas dois anos, quando ainda era diretor do Departamento de Estudos Internacionais noTrinity College (Hartford, Connecticut), Vijay Prashad estabeleceu o seguinte: O establishmentquer trazer de volta os programas de Estudos de rea para seus objetivos originais. Os Estu-dos de rea emergiram no comeo deste sculo principalmente como parte do evangelismoestadunidense: K. S. Latourette, em Yale, ajudou a emergncia do East Asian Studies (seulivro de 1929 History of the Christian Missions in China); H. E. Bolton, em Berkeley, foi opioneiro nos Latin American Studies (seu livro de 1936 The Rim of Christendom:A Biographyof Eusebio Francisco Kino, Pacific Coast Pioneer); A. C. Coolidge, em Harvard, definiu oscontornos dos Slavic Studies (seu grande livro de 1908 intitulado The United States as aWorld Power). Em sua infncia, a Igreja e Washington ajudaram a ninar os Estudos de rea.Nossos evanglicos imperialistas de hoje querem retornar a este perodo: Vijay Prashad,Confronting the Evangelical Imperialists, http://www.counterpunch.org/prashad11132003.html, acessado em 17/10/2005.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17113

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    11/26

    114 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    dos Unidos diante do questionamento do controle da educao.7 Quan-do as bases seculares da universidade moderna se fortaleceram nos Es-tados Unidos e as elites religiosas foram marginalizadas, estas tentarammanter sua presena na universidade para, entre outras coisas, continuarfornecendo uma educao religiosa e moral nova gerao da elite es-tadunidense. Porm, a base de tal educao j no podia ser teolgicaou confessional, mas secular. Da o surgimento dos Estudos Religiosos,

    que, em sua maioria, eram controlados pelas mesmas elites brancas pro-testantes que tinham sido deslocadas da universidade. Em alguns casos,a transio foi bvia: o estudo confessional da religio foi-se localizan-do em escolas teolgicas e seminrios fora da universidade, mas as eli-tes, no controle das escolas e dos seminrios, iam formando, paulatina-mente, por sua vez, departamentos ou programas de Religio para, as-sim, assegurar alguma influncia na educao liberal das novas elites.8

    Por conseguinte, as primeiras formas de studies, ou estudos inter-disciplinares nos Estados Unidos, estavam diretamente relacionados aosinteresses das elites. No h nada nos estudos interdisciplinares que osfaam, por exemplo, anti ou ps-positivistas, ou que os faam crticos. Os

    chamados Estudos tnicos (e os Estudos da Mulher) tm uma orientaoe uma origem fundamentalmente distintas. Em vez de darem expressoaos interesses polticos e cognitivos das elites estadunidenses, eles soresultados de protestos de movimentos sociais nos Estados Unidos. Aqui,os protagonistas no eram as elites brancas, mas setores sociais racializadose marginalizados por elas, primeiro com o genocdio indgena e com aescravido negra e, depois, com a colonizao do norte do Mxico a par-tir de 1848, e de Guam e Porto Rico a partir de 1898. Tambm se encon-travam entres estes grupos de imigrantes da China, do Japo, da Coria,do Vietnam e de outros lugares na sia e na Amrica Latina, que tinhamvindo trabalhar na jovem nao e que se identificavam com os sujeitosnela j racializados. A presso e o protesto de indgenas, negros, chicanos,porto-riquenhos, chineses e tantos outros, desde os anos cinqenta e, es-

    7 Para um estudo amplo e detalhado sobre o surgimento dos Estudos Religiosos nos EstadosUnidos e sua afiliao com elites crists brancas, ver D. G. Hart, The University Gets Religion:Religious Studies in American Higher Education, Baltimore, The Johns Hopkins UniversityPress, 1999.

    8 Hart, The University Gets Religion.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17114

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    12/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 115

    pecialmente, nos finais da dcada de sessenta, tiveram como resultado acriao dos Estudos tnicos.9 Mas a pergunta saber qual a sua baseepistemolgica. aqui que a idia de Wallerstein, de que os Estudos tni-cos so uma conseqncia no intencional dos Estudos de rea, se fazrelevante, mas tambm onde se mostra muito problemtica.

    Segundo esse autor, a academia estadunidense em grande medidadeve aos Estudos de rea a legitimao dos estudos interdisciplinares.

    Mesmo que sempre tenham existido seus cticos, estes continuaram pro-pagando-se e hoje em dia claro que no h volta atrs. No final dos anossessenta e princpios dos setenta, os Estudos de rea estavam bem estabe-lecidos na academia estadunidense. E em um contexto onde distintos gru-pos tnicos reclamavam representao acadmica, tanto de professorescomo em termos de matria, estes serviram como modelo para a incorpo-rao de tais demandas universidade secular e moderna estadunidense.Os Estudos tnicos, como os Estudos de rea, eram interdisciplinares,mas em vez de adquirirem coerncia a partir da regio do mundo qual sededicavam, tomavam como objetos de pesquisa as distintas comunidadestnicas de cor nos Estados Unidos, isto , assim como os Estudos de rea

    se aproximavam de distintas regies do mundo (frica, sia, AmricaLatina, etc.), os Estudos tnicos tomam como objeto distintos gruposminoritrios dentro de um estado-nao. No caso dos Estados Unidos,estes grupos so afro-americanos, asitico-americanos, povos indgenas elatinos. A diferena entre Estudos de rea e Estudos tnicos tambm es-tava na natureza de sua origem e, por isto, tambm, de certa maneira, emsua misso: os Estudos de rea se orientavam pela idia de prover conhe-cimento sobre regies estrangeiras para poder avaliar seu perigo e deter-minar qual tipo de resposta e ao haveria por parte dos Estados Unidos(desde econmica at blica), enquanto os Estudos tnicos estavam fun-damentalmente orientados pela tarefa de empoderamento (empowering)das comunidades despojadas de recursos de forma sistemtica. Enfim, ameta do primeiro estava altamente ligada com um projeto neocolonial deuma nao que se tornava hegemnica, enquanto o segundo se orientavapor uma agenda de descolonizao interna.

    9 Wallerstein, The Unintended Consequences, pp. 227-8.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17115

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    13/26

    116 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    No entanto, a diviso do trabalho acadmico dos Estudos tnicoscom base em distintos grupos tnicos na nao encarnava um duplo peri-go: acrscimo de polticas sectrias de identidade e certo compromissocom o que Lisa Lowe denomina de ontologia nacional.10 O primeiro peri-go criava dissenso e luta por recursos por parte dos diferentes programasde estudo ou departamentos vinculados aos Estudos tnicos, e o outroajudava a legitimar a idia de certo excepcionalismo estadunidense, que

    levava a soslaiar o tema do carter amplo da racializao e da colonizaono mundo moderno/colonial.11 Por conseguinte, poder-se-ia dizer que,embora os Estudos de rea tivessem uma origem imperial, podiam tor-nar-se, atravs de reflexes crticas sobre as ambies dos Estados Uni-dos, fonte do pensamento descolonizador; os Estudos tnicos, cuja ori-gem tinha sido inspirada por lutas da descolonizao interna da sociedadeestadunidense, podiam tornar-se ineficazes ou s vezes cmplices, comum ponto de vista no necessariamente colonizador, porm ao menos con-servador. Os Estudos tnicos por vezes se tornavam superparticularistas,ou seja, estabeleciam que o que se aplicava a um grupo tnico no seaplicava a outros. Cada grupo era visto como um bastio a proteger e sum especialista que ao mesmo tempo pertencesse ao grupo em questoteria a autoridade para produzir conhecimento sobre o mesmo. Outrasvezes, os Estudos tnicos esboavam-se em termos da aplicao e expan-so mnima de disciplinas estabelecidas. Existia a idia de que as cinciassociais tinham limitaes, mas ao mesmo tempo se tinha a impresso deque no se podia afastar delas. Isto tinha tanto a ver com a preparaoacadmica de seus professores como com questes de legitimao. Alm

    10 Lisa Lowe, Epistemological Shifts: National Ontology and the New Asian Immigrant, inKandice Chuh e Karen Shimakawa (orgs.), Orientations: Mapping Studies in the Asian Diaspora(Durham, Duke University Press, 2001), pp. 267-76.

    11 Para uma explicao da concepo de mundo moderno/colonial, ver Walter Mignolo, Jos deAcostas Historia Natural y Moral de las Indias: Occidentalism, the Modern/Colonial World,and the Colonial Difference, in Jane E. Mangan (org.), Natural and Moral History of the Indiesby Jos de Acosta(Durham, Duke University Press, 2002), pp. 451-518. A idia de modernida-de/colonialidade inspirada pelo trabalho de Anbal Quijano sobre a colonialidade do poder.Ver, entre outros, Anbal Quijano, Colonialidad del poder y clasificacin social, Journal ofWorld-Systems Research, vol. 6, no2 (2000), pp. 342-386; Idem, Colonialidad del poder, cultu-ra y conocimiento en Amrica Latina, in Santiago Castro-Gmez, Oscar Guardiola-Rivera eCarmen Milln de Benavides (orgs.),Pensar (en) los intersticios: teora y prctica de la crticaposcolonial (Bogot, Centro Editorial Javeriano/Instituto Pensar, 1999), pp. 99-109; Idem,Colonialidad y modernidad/racionalidad, Per indgena, vol. 13, no29 (1991), pp. 11-20.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17116

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    14/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 117

    disto, seria preciso acrescentar que foram certas disciplinas, como a soci-ologia, a histria, a literatura e os estudos culturais, que dominaram ocampo. Hoje em dia, a interdisciplinaridade aumenta e se somam novasdisciplinas, como a filosofia e os estudos religiosos, s ofertas dos Estu-dos tnicos. Mas tal enriquecimento e expanso ainda no calam os cti-cos que consideram os Estudos tnicos como um resultado no intenci-onal dos Estudos de rea ou como um agente meramente poltico dentro

    da academia que, ao mesmo tempo, est obcecado por vises identitriase que participa de uma ontologia nacional.

    A pergunta-chave aqui a seguinte: quais so as problemticas queconfrontam os Estudos tnicos que lhes so intrnsecas e quais emanamde sua afiliao com os Estudos de rea? Mas, se os Estudos tnicos soum resultado no intencional dos Estudos de rea, ento no haveriabase para fazer tal distino. Faltaria, no entanto, explorar outra alternati-va: no que os Estudos tnicos sejam um resultado no intencional dosEstudos de rea, mas que estes tenham servido como modelo parainstitucionalizar, na estrutura acadmica existente, o tipo de demandas eintervenes que os grupos minoritrios tnicos nos Estados Unidos fize-

    ram universidade. Wallerstein no faz esta distino. A idia aqui con-siste em que no foi que os Estudos de rea tivessem um resultado impre-visto, mas que, sem nunca pretend-lo ou t-lo em seu horizonte de possi-bilidades, facilitaram e ao mesmo tempo canalizaram (e, portanto, pude-ram ter limitado) a incorporao de demandas de grupos polticos subal-ternos academia. Wallerstein assinala a origem particular dos Estudostnicos, mas fica satisfeito em identificar uma epistemologia comparti-lhada com os Estudos de rea. Assim, esquece tanto a dimenso episte-molgica das intervenes polticas como aquelas formas de Estudostnicos que precederam os Estudos de rea e se tornaram desde o come-o parte fundamental destes. Da que Wallerstein no possa notar seu po-tencial epistemolgico nem as implicaes para a forma com que o co-nhecimento est estruturado na academia ocidental. Por isto, nos seusescritos sobre des-pensar as cincias sociais e nas suas exploraes so-bre como articular uma cincia social para o sculo XXI, toma as cinciasnaturais como modelo de mudana epistemolgica inovadora, mas nuncalhe ocorre considerar as formas de conhecimento que se tornaram cen-

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17117

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    15/26

    118 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    trais nos Estudos tnicos e que atualmente continuam a evoluir, comofundamentais para um processo de descolonizao epistmica e de trans-formao da diviso do conhecimento na universidade.12

    A subordinao dos Estudos tnicos aos Estudos de rea porparte de Wallerstein, assim como sua fascinao pelas cincias naturaise a impossibilidade de observar inovaes epistemolgicas genunasfora deste mbito, o faz parecer ao mesmo tempo antiquado e inconsis-

    tente. Antiquado porque claro que ainda toma as cincias naturais comomodelo de conhecimento (embora o que toma delas a forma como seadaptaram mudana), e inconsistente porque sua forma preferida deanlise (anlise de sistema-mundo) foi inspirada por mudanasepistmicas que tambm podem ser vinculadas origem dos Estudostnicos: a sociologia da dependncia latino-americana, que nasceu jun-to com os Estudos tnicos na dcada dos sessenta. Em resumo,Wallerstein liga excessivamente os Estudos tnicos com os Estudos derea, quando poderia, ao invs, explorar as bases comuns entre os Estu-dos tnicos e a anlise do sistema-mundo. Com toda a justia devida aWallerstein, preciso assinalar que ele merece todo o crdito por estar

    aberto a este tipo de trabalho e por ajudar a difundi-lo.13

    Outra viso dos Estudos tnicos

    Tentemos ento dar outra perspectiva aos Estudos tnicos, no maisancorados em outras formas de studiesnem distanciados delas somentepor sua origem.

    12 Immanuel Wallerstein, The End of the World as We Know It: Social Science for the Twenty-First Century, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1999; Idem, Unthinking SocialScience: The Limits of Nineteenth-Century Paradigms , Cambridge, Polity Press, 1991. Paraaproximaes crticas desta dimenso do trabalho de Wallerstein, ver: Ramn Grosfoguel,Colonial Difference, Geopolitics of Knowledge, and Global Coloniality in the Modern/Co-lonial World-System, Review, vol. 25, no 3 (2002), pp. 203-24; Idem, Colonial Subjects:Puerto Ricans in a Global Perspective, Berkeley, University of California Press, 2003; Idem,Subaltern Epistemologies, Decolonial Imaginaries and the Redefinition of Global Capitalism,Review, vol. 28, no4 (2005); Nelson Maldonado-Torres, Post-imperial Reflections on Crisis,Knowledge, and Utopia: Transgresstopic Critical Hermeneutics and the Death of EuropeanMan,Review, vol. 25, no3 (2002), pp. 277-315.

    13 Exemplos deste so Grosfoguel, Colonial Subjects; Ramn Grosfoguel, Nelson Maldonado-Torres e Jos David Saldvar (orgs.),Latin@s in the World System: Decolonization Strugglesin the 21st Century U.S. Empire(Boulder, Paradigm Press, 2005).

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17118

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    16/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 119

    1) Os Estudos tnicos esto chamados erroneamente.

    Tomo como partida aqui a idia j discutida sobre o paralelo fundamentalentre os Estudos tnicos e os Estudos de rea. Segundo este ponto devista, a diferena entre eles que, enquanto os Estudos de rea tomamcomo objeto de indagao distintas reas geopolticas dentro de um mbi-to internacional, a rea em questo para os Estudos tnicos estaria com-posta por minorias tnicas dentro de uma nao. O interessante neste caso

    que os Estudos tnicos tm tendido a utilizar em suas anlises mais alinguagem de raa que a linguagem de etnicidade. Isto , apesar do seunome, etnia nunca se converteu na categoria central dos Estudos tni-cos tal como se produzem nos Estados Unidos. Por que tal coisa? Emprimeiro lugar, a razo foi que a mesma onda de movimentos de protestoque deu origem aos chamados Estudos tnicos respondia criticamente auma realidade que estabelecia um carter diferencial entre umas etnicidadese outras. Os europeus tinham sido e continuavam sendo integrados na-o muito mais rpida e efetivamente que grupos provenientes de outrasregies, particularmente no sul e no leste. A integrao era muito maisfcil para sujeitos de pele clara provenientes da Europa, e mais difcil para

    os considerados de cor e que eram provenientes de outros lugares. Entre-tanto, a populao negra e a indgena, que tinham sido constitutivas doestado-nao, continuavam em posio subordinada.

    E, de fato, uma estratgia para legitimar a subordinao era aidentificao com algum destes grupos. Os irlandeses e os chineses, porexemplo, eram chamados nigger, ou eram considerados como negros,mas medida que se diferenciaram da comunidade negra foram reco-nhecidos como brancos ou, no caso dos chineses,Asian-Americans(ouseja, uma identidade parte dos negros, que podiam reclamar sua con-dio de imigrantes).14 O mesmo ocorreu com outros grupos tnicos,isto , mesmo que os Estados Unidos se declarassem um melting pot,

    era claro que existiam grupos aos quais no era permitido dissolver-sena sopa tnica, eram algo assim como elementos indissolveis na parte

    14 Jonathan W. Warren e France Winddance Twine, White Americans, the New Minority?: Non-Blacks and the Ever-Expanding Boundaries of Whiteness,Journal of Black Studies, vol. 28,no2 (1997), pp. 200-18. Grosfoguel tambm fala da afro-americanizao de porto-riquenhosem Nova Iorque. Ver Grosfoguel, Colonial Subjects.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17119

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    17/26

    120 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    de baixo do caldeiro. Tanto a estrutura do poder como o carter dasrazes apontadas indicavam uma continuidade do legado do racismonos Estados Unidos. Isto , havia etnias que eram tratadas e continuamsendo tratadas como raas. A noo de Estudos tnicospode muito bemoferecer universidade uma forma de aceitar e situar os estudos que seencarregam de analisar o racismo na modernidade, mas no corresponde anlise que freqentemente se faz neste espao de trabalho.

    A noo tambm corre o perigo de invisibilizar as relaes depoder que continuam produzindo um mundo estruturado pela idia deraa ou por atitudes raciais. Quando me refiro idia de raa, no digocom isto que estas existam como entidades biologicamente determina-das, e sim como social e politicamente criadas. Ainda que, j raramente,se justifiquem formas de dominao racial utilizando o conceito de raa,no se deve esquecer que, quando uma idia ou conceito tem sido regu-lador em uma sociedade, mostrar sua falsidade no suficiente paraalterar a estrutura de poder nem o comportamento dos sujeitos. PierreBourdieu falava da noo de habituspara referir-se a idias e conceitos

    j incorporados ao nvel corporal, ritual e comportamental dos sujeitos

    e que continuam funcionando mesmo quando o conceito j no legti-mo.15 Quando falamos de racismo, falamos de padres de conduta eatitudes, assim como de uma infra-estrutura social que continua e disse-mina o preconceito racial de distintas formas.

    J Fanon havia falado de mutaes no discurso racial: de um ra-cismo biolgico a um cultural.16 Da mesma maneira, pode-se falar deum racismo epistemolgico, que milita contra a integrao de sujeitosde cor aos sistemas universitrios e ao florescimento de formas de pen-samento que do expresso a suas perguntas, inquietudes e desejos. Emum contexto onde sujeitos racializados mal comeam a encontrar apoiopara ter acesso educao universitria, os Estudos tnicos tm muito a

    oferecer para ajudar a descolonizar as estruturas institucionais e episte-molgicas no modelo universitrio existente. Por isto, seguindo a inte-lectual chicanaLaura Prez, sugiro que sejam denominados Estudos

    15 Pierre Bourdieu, The Logic of Practice, Standford, Stanford University Press, 1990.16 Frantz Fanon, Toward the African Revolution: Political Essays, Nova Iorque, Grove Press, 1988.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17120

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    18/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 121

    Descolonizadores ou Descoloniais. Assim tambm, pode-se referir sperspectivas que trabalham dentro deste espao acadmico como cin-cias descoloniais.

    2) Estudos tnicos ou uma nova instituio e estrutura epistemolgica

    Outro ponto interessante a respeito da origem dos Estudos tnicos queos movimentos sociais que os impulsionaram demandavam no um de-

    partamento ou programa de ensino e pesquisa, mas uma Universidadedo Terceiro Mundo.17 Isto implica em primeiro lugar que estes grupostinham uma viso de transformao epistemolgica e institucional am-pla e que sabiam que tal transformao no podia ocorrer dentro dasinstituies educativas j estabelecidas. Portanto, o problema que osEstudos tnicos enfrentam no s que seu prprio nome milita contrao tipo de interveno que prope, mas tambm que claramente sua adap-tao ao nvel departamental ou de programa na universidade umaexpresso limitada para as ambies que lhes deram origem. As inter-venes polticas e epistemolgicas de grupos sociais demandavam umanova universidade e no s um nicho dentro da universidade existente.

    Por conseguinte, ainda que os Estudos tnicos tenham sido tomadoscomo exemplo por alguns de uma aventura interdisciplinar, suas ori-gens apontam para algo mais radical ainda, que sugere a transgresso ea transcendncia das disciplinas, isto , uma perspectiva transdisciplinarorientada, neste caso, por uma perspectiva descolonizadora e desraci-alizadora. A Universidade do Terceiro Mundo teria de converter-se em

    17 Para uma reviso da histria e das metodologias principais nos Estudos tnicos nos EstadosUnidos, ver Ramon A. Gutierrez, Ethnic Studies: Its Evolution in American Colleges andUniversities, in David Theo Goldberg (org.), Multiculturalism: A Critical Reader(Malden,Blackwell, 1995), pp. 157-67; Evelyn Hu-DeHart, The History, Development, and Future ofEthnic Studies, Phi Delta Kappan, vol. 75, no1 (1993), pp. 50-55; Philip Q. Yang, EthnicStudies: Issues and Approaches, Albany, State University of New York Press, 2000. Para umaanlise da relao entre Estudos (de rea) Latino Americanos e Estudos (tnicos) Latinos,veja-se Agustn Lao Montes, Latin American Area Studies and Latino Ethnic Studies: FromCivilizing Mission to the Barbarians Revenge, Newsletter on Hispanic/Latino Issues inPhilosophy, 2 (2001); Walter Mignolo, The Larger Picture: Hispanics/Latinos (and LatinoStudies) in the Colonial Horizon of Modernity, in Jorge J. E. Gracia e Pablo de Greiff (orgs.),Hispanics/Latinos in the United States (Nova Iorque/London, Routledge, 2000); WalterMignolo, Latin American Social Thought and Latino/as American Studies, Newsletter onHispanic/Latino Issues in Philosophy, 2 (2001).

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17121

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    19/26

    122 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    uma mquina de conhecimento que desmontaria as estruturas epistemo-lgicas postas pelo racismo e pelo colonialismo e por outras formas desubordinao e hegemonia e, ao mesmo tempo, abriria lugar articula-o sistemtica de distintas formas de conhecimento.

    3) Movimento internacional

    Este item est articulado com o anterior. O movimento social que exigia

    a criao de uma Universidade do Terceiro Mundo tambm se denomi-nava um movimento do Terceiro Mundo. Isto significava, por um lado,que sua conscincia era internacionalista e no nacionalista. Esta di-menso internacionalista do movimento vinha, por um lado, de umaexperincia prvia do movimento negro nos Estados Unidos e no Caribe,que j tinha adquirido uma perspectiva ampla do problema racial e ohavia relacionado ao problema colonial na modernidade. Du Bois,Csaire e Fanon foram trs figuras que haviam defendido este ponto devista. A viso internacionalista tambm era prpria a chicanos, porto-riquenhos, descendentes de chineses, japoneses e outros, pois claramentea forma com que estes eram percebidos nos Estados Unidos estava alta-

    mente relacionada posio que seus pases de origem ocupavam noimaginrio moderno e na ordem internacional da guerra fria, isto , aracializao social nos Estados Unidos estava relacionada a uma racia-lizao mais ampla em nvel geopoltico.18 E, em muitos casos, as elitesde alguns pases do Terceiro Mundo que vinham aos Estados Unidoschegavam a experimentar pela primeira vez na prpria carne o estigmaracial associado ao seu pas de origem, que, por sua vez, estava relacio-nado ao racismo que estas mesmas elites sustentavam em relao aossujeitos de cor em seus pases, ou seja, com poucas excees, qualquersujeito do Terceiro Mundo, elite ou no, encontraria racismo nos Esta-dos Unidos. A experincia migratria para o norte no podia deixar de

    fazer referncia a um espao geopoltico mais amplo.Outra razo, ainda mais bvia, para que o movimento de protes-

    to, cujas peties deram origem aos Estudos tnicos nos Estados Uni-

    18 Esta perspectiva tem adquirido mais vigor nos ltimos anos. Ver Kandice Chuh e KarenShimakawa (orgs.), Orientations: Mapping Studies in the Asian Diaspora (Durham, DukeUniversity Press, 2001); Grosfoguel, Maldonado-Torres, e Saldvar,Latin@s in the World System.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17122

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    20/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 123

    dos, tivesse um carter internacionalista que este era um entre tantosoutros movimentos de protesto no mundo, durante a dcada dos sessenta.A experincia do movimento de direitos civis estava muito presente. Emtal luta, alguns de seus representantes, como Martin Luther King Jr., apren-diam do movimento pela descolonizao da ndia, impulsionado porMahatma Gandhi. O chicanoCsar Chvez, dirigente de camponeses nosudoeste dos Estados Unidos, por sua vez, se reunia com Martin Luther

    King e tambm lia vorazmente os escritos de Gandhi. O movimentochicanoe o negro radical leram Fanon. Mesmo que Fanon tenha escritona Martinica e na Arglia, falava-lhes claramente, tal como ainda conti-nua falando a muitos hoje.19 certo que existiam movimentos ultranaci-onalistas nos Estados Unidos ou com vises muito estreitas da identidade.Contudo, faces do movimento negro e do chicano, primordialmente,

    junto com grupos indgenas, porto-riquenhos e minorias racializadas deoutra procedncia, se uniram em um movimento com uma forte tendnciainternacionalista e transtnica, indo alm das polticas da identidade e donacionalismo e, por isto, pediam uma Escola do Terceiro Mundo. Tudoisto indica que, embora haja diferenas entre grupos e descontinuidadesna forma com que se exerce o poder, tambm existem elementos em co-mum e continuidades, cujo reconhecimento tem servido de plataformapara uma interveno poltica e epistemolgica radical.

    As cincias sociais tendem a dividir o mundo em pedaos (o po-ltico, o econmico, o social); estes grupos, no entanto, demandavam aarticulao de tendncias similares e de continuidades nas formas mo-dernas de poder que os continuam oprimindo e marginalizando. As ci-ncias sociais nos tempos da ps-modernidade se recusam a generali-zar: mas, como no aludir a generalidades, quando o que faz o racismo precisamente isto, a saber, impor generalidades? Eliminar a refernciaa generalidades e a padres de poder levaria, por um lado, a tornar oracismo invisvel e, por outro, a eliminar a possibilidade de uma lutaconjunta contra o mesmo. O mundo no to dicotmico como a mo-

    19 Sobre o tema da relevncia de Fanon hoje, ver Lewis R. Gordon, Through the Zone of Nonbeing:A Reading of Black Skin, White Masks in Celebration of Fanons Eightieth Birthday, TheC.L.R. James Journal, vol. 11, no1 (2005), pp. 1-43, e Homi K. Bhabha, Framing Fanon, inFrantz Fanon, Wretched of the Earth, Nova Iorque, Grove/Atlantic, 2004, pp. vii-xii.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17123

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    21/26

    124 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    dernidade o queria fazer ver, mas tambm no to fragmentado comoos ps-modernos o anunciam. O desafio para as cincias descoloniaisconsiste em poder reconhecer a diversidade sem atropelar a unidade,reconhecer a continuidade sem menosprezar a mudana e a desconti-nuidade. Tambm estas tm que reconhecer que a mudana e a unidadeso relativas aos olhos de quem v e que, para sujeitos racializados, omundo, ao fim e ao cabo, no mudou tanto. Aos condenados ao inferno

    da modernidade/colonialidade no lhes toca gozar demasiado de mu-danas na terra ou no cu. As cincias descoloniais so as que tentamdar sentido e preciso a tal impresso.

    Finalmente, cabe perguntar-se por que, se os mal denominadosEstudos tnicos tm uma raiz to profundamente internacionalista, es-tes se consideram nacionalistas, identitrios ou particularistas. Tal opi-nio no deve resultar estranha, pois uma conseqncia peculiar do le-gado racista que sujeitos de cor no podem articular generalidades oupontos de vista que ultrapassem seu contexto ou subjetividade. comoos debates que tm ocorrido em alguns lugares na Amrica do Sul sobrese um indgena pode ter uma posio de liderana em um pas.20 Argu-

    mentos esgrimidos contra este incluem a idia de que um indgena nopode representar todos os setores da sociedade. Um indgena representaos indgenas e s pode expressar seus interesses. Um mestio, no entan-to, visto como algum que pode representar os interesses de todos.

    Por outro lado, certo que os chamados Estudos tnicos, porvezes, tm contribudo para tal concepo. Este padro tambm co-nhecido nas relaes raciais: s vezes o sujeito racializado oferece comoresposta um ponto de vista que, no final das contas, legitima ou reforaa perspectiva dominante sobre grupos racializados. A este respeito preciso dizer que os Estudos tnicos tm mostrado duas limitaes par-ticulares em sua histria (que esto ligadas em parte sua origem e

    sua forma de acomodao na universidade moderna): o imediatismopoltico e a necessidade de reconhecimento da identidade. O problematem sido que as dimenses tericas profundas dos movimentos que de-ram origem aos Estudos tnicos tm sido postas em questo, s vezes

    20 Penso principalmente no caso do Equador nos ltimos anos.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17124

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    22/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 125

    no s por eurocntricos brancos, mas tambm por sujeitos de cor, quedemandavam ingerncia poltica concreta imediata ou que viam os Es-tudos tnicos como um servio teraputico para minorias que busca-vam saber mais de sua identidade. Estes so problemas internos aosEstudos tnicos, que foram exacerbados por sua localizao na estrutu-ra universitria dominante. A universidade dominante abre um espaoaos Estudos tnicos para que haja representao tnica e no para que

    haja revoluo epistmica. O motivo principal para a universidade que os Estudos tnicos se convertam em um espao para acomodar in-telectuais de cor e, depois, que estes a sirvam com conhecimento sobresua histria e cultura para os estudantes de cor.

    Para as cincias descoloniais o assunto central muito diferente,suas preocupaes mais centrais tm a ver com a pergunta sobre o quesignifica que o sujeito racializado se converta em sujeito de conheci-mento, isto , o que ocorre quando algum que considerado objeto setorna sujeito? Que sentido de subjetividade surge desde a experinciade ser objeto? Que se pode dizer sobre estruturas materiais e epistemo-lgicas que legitimaram a produo de uns sujeitos como objetos? Cla-

    ramente da nasce uma nova teoria crtica e um novo sentido do huma-no. Por a vem o quarto e ltimo ponto.

    4) As fontes intelectuais das cincias descoloniais

    J dissemos que a caracterizao que faz Wallerstein dos Estudos tni-cos explica melhor os mecanismos de sua incorporao academia, eno sua inspirao nem bases fundamentais epistemolgicas. Para teruma noo destas, devemos procurar figuras-chave nos Estudos tni-cos, agora denominados, junto com outras perspectivas crticas nas dis-tintas disciplinas acadmicas, de cincias descoloniais. A noo de ci-ncias descoloniais surge quando as formas de conhecimento crtico e

    de construo de alternativas prprias dos Estudos tnicos so entendi-das como centrais a um processo de descolonizao material e epistmica.Enquanto as cincias sociais serviam nao, as cincias descoloniaisservem ao processo de descolonizao, que comeou no exato momen-to em que tambm se iniciou a colonizao moderna. As cinciasdescoloniais encontram sua primordial inspirao no no assombro di-

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17125

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    23/26

    126 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    ante do mundo, mas no grito do colonizado ante uma realidadedesumanizadora. Elas respondem ao escndalo que significa a morte, ogenocdio e a racializao de humanos por outros.

    O escndalo diante do mundo da morte colonial se transforma nogrito e o grito gradualmente se torna pranto, amor, teoria e cincia. 21 Ogrito e o pranto gradualmente se tornam uma atitude crtica, cognitiva eprtica que se pode chamar atitude descolonial.22 Pois bem, a atitude

    descolonial serve de inspirao e orientao a uma forma de conheci-mento que interrompe a estrutura das cincias estabelecidas. Du Boisdeixou isto claro em seu texto The Souls of Black Folk (As almas dagente negra): ele atravessou o vu imposto pelo racismo para, pela pri-meira vez, ter uma idia de como se via o mundo na perspectiva dossujeitos racializados.23 Desde este posicionamento, o que ele identifi-cou como problema no era a gente negra, mas o que chamou a linhade cor ou o racismo. Du Bois tambm percebeu o que denominou dedupla conscincia do negro, que consistia em se ver, em primeiro lu-gar, a partir da perspectiva do branco ou do sujeito em uma posiohegemnica.

    Lewis Gordon tem destacado que tambm h um segundo estadoda dupla conscincia: o momento quando o cientista nota as contradi-es entre as promessas e as afirmaes da viso hegemnica em tornodo humano e a realidade que confrontam os sujeitos racializados.24 Oprimeiro momento o do engano, mas tambm o do escndalo diante darealidade que conduz a tal auto-engano. O segundo momento o dacrise (a chamada a uma deciso) e o da crtica. Parece-me tambm que

    21 Ver Gordon, Through the Zone of Nonbeing; Nelson Maldonado-Torres, The Cry of theSelf as a Call from the Other: The Paradoxical Loving Subjectivity of Frantz Fanon,Listening:Journal of Religion and Culture, vol. 36, no1 (2001), pp. 46-60.

    22 Outras formas de referir-se a ela atitude quilombola, tal como se trabalha no movimentoafro-brasileiro da Bahia, chamado da mesma forma. Outras concepes parecidas, surgidasmais recentemente, incluem a noo da atitude cimarrona trabalhada por Edizon Len, doEquador.

    23 W. E. B. Du Bois, The Souls of Black Folk. Authoritative Text, Contexts. Criticisms, Nova Iorque,W. W. Norton & Co, 1999 (edio crtica de Henry Louis Gates Jr. e Terri Hume Oliver).

    24 Tomo a idia das exposies de Gordon em seus seminrios no Curso Fbrica de Idias, orga-nizado por Livio Sansone no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal daBahia, Salvador, Brasil, de 22 a 26 de agosto de 2005.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17126

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    24/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 127

    se pode somar um terceiro momento a esta dinmica, que fica sugeridoquando Du Bois fala de articular uma nova unidade que supere o enga-no e fornea uma soluo crise. Ele fala de construir uma nova unida-de subjetiva, um novo eu e, definidamente, um novo mundo. Este ter-ceiro momento no um momento hegeliano de sntese. Como em Fanon,Du Bois tambm difere da concepo hegeliana da dialtica entre se-nhor e escravo.25 Em primeiro lugar, o senhor no busca reconhecimen-

    to do escravo, mas lhe impe seu esquema interpretativo para que oescravo aspire a imit-lo. Assim, o senhor no necessita utilizar a forapara domin-lo, pois o escravo se escraviza a si mesmo. Tambm distin-to de Hegel, nesta proposta o escravo no se reconhece no produto deseu trabalho. Na viso de Du Bois, o escravo adentra em sua subjetivi-dade e continua olhando o senhor para articular as contradies no dis-curso deste. O escravo no se contenta em apenas trabalhar, mas se tor-na terico-crtico. O mpeto da teoria crtica descolonial se encontraaqui, e isso a faz distinta das formulaes mais tradicionais de crticaque se remetem mais exclusivamente resistncia do burgus europeufrente ordem absolutista. A teoria crtica descolonial parte, sobretudo,da idia de que a crtica que o burgus fazia ao absolutismo era, elamesma, objeto de indagao crtica por parte do escravo. Finalmente, oescravo supera o momento da crtica e tenta produzir uma nova viso dohumano, onde j no existam nem senhores nem escravos. No se tratade uma sntese de momentos anteriores, mas de um paradoxo, onde oescravo suspende seus prprios interesses identitrios com vistas arti-culao de um novo mundo de significado que permita adentrar-se emum outro mundo, muito alm das dinmicas de colonizao e racializa-o material, epistmica e espiritual.

    este terceiro momento de construo de um novo ideal do hu-mano o que Frantz Fanon prope na concluso dos Condenados da ter-ra.26 Prope a transformao da conscincia nacional em um novo hu-manismo. Quando Fanon fala de um novo humanismo, no se refere aum novo liberalismo, mas sua superao. Tal como Sylvia Wynter tem

    25 O reconto hegeliano da dialctica do senhor e do escravo aparece em G. W. F. Hegel,Phenomenology of Spirit, Oxford, Oxford University Press, 1977.

    26 Frantz Fanon,Los condenados de la tierra, Mxico, D.F., Fondo de Cultura Econmica, 2001.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17127

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    25/26

    128 Afro-sia, 34 (2006), 105-129

    insistido por longo tempo, para entender a interveno fanoniana ne-cessrio remontar-se s origens do discurso humanista nos sculos XIVao XVI.27 Assim, poder-se-ia notar que o problema da linha de cor deque falava Du Bois no era o resultado ou a expresso de uma sociedadenorte-americana em particular, mas se referia a uma dimenso constitutivado humanismo moderno, que marcava suas distintas produes: desde oestado-nao secular at a concepo das prprias cincias sociais.28 O

    discurso de Fanon expressou as contradies do discurso humanista eprops sua superao mediante uma prxis descolonizadora que ia acom-panhada de um novo pensar. Este tipo de perspectiva prov uma orien-tao mais precisa aos chamados Estudos tnicos, propostos aqui comoEstudos e cincias descoloniais.

    Concluso

    Em um painel especial sobre a sociologia pblica de Du Bois, na reu-nio anual da Associao Americana de Sociologia em 2004, a feminis-ta negra Patrcia Hill Coyillas desafiou os presentes a pensar numa re-formulao contempornea da reconhecida opinio de Du Bois: O pro-blema do sculo vinte o problema da linha de cor. Ela mesma ofere-ceu talvez sua melhor verso: o problema do sculo XXI o problemada aparente invisibilidade da linha de cor e da negao de sua existn-cia.29 Tanto como nos tempos de Du Bois, a sociologia e aquilo que sepassa como sendo a cincia social mais avanada tendem a se tornarcmplices de tal invisibilidade. Por isto, necessrio continuar uma

    27 Sylvia Wynter, 1492: A New World View, in Vera Lawrence Hyatt e Rex Nettleford (orgs.),Race, Discourse, and the Origin of the Americas: A New World View (Washington, D.C.,Smithsonian Institution Press, 1995), pp. 5-57; Idem, Columbus and the Poetics of the PropterNos,Annals of Scholarship, vol. 8, no2 (1991), pp. 251-86; Idem, Towards the SociogenicPrinciple: Fanon, Identity, the Puzzle of Conscious Experience, and What it is like to beBlack, in Mercedes F. Durn-Cogan e Antonio Gmez-Moriana (orgs.),National Identitiesand Sociopolitical Changes in Latin America (Nova Iorque, Routledge, 2001), pp. 30-66;Idem, Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, AfterMan, Its Overrepresentation An Argument, The New Centennial Review, vol. 3, no3 (2003),pp. 257-337.

    28 Ver Wynter, Unsettling.29 Parafraseio aqui e traduzo de acordo com o exposto por Collins na reunio anual da Associa-

    o Americana de Sociologa, que teve lugar de 14 a 17 de agosto de 2004, em So Francisco,California.

    nelson.p65 6/9/2006, 18:17128

  • 7/25/2019 MALDONADO-ToRRES, Nelson - Pensamento Crtico Desde a Subalternidade

    26/26

    Afro-sia, 34 (2006), 105-129 129

    prtica incessante de descolonizao das cincias e das perspectivas se-culares, nacionalistas e modernas, que esto quase invariavelmentemarcadas tambm por perspectivas raciais brancas e crioulas, que re-gem nossos exerccios disciplinares e interdisciplinares na universidadeatual. Neste contexto, a tarefa para o intelectual descolonizador e paraos estudantes de Estudos tnicos (ou melhor, Estudos Descolonizadores) clara: trazer luz as novas formas sob as quais a linha de cor se mani-

    festa em nossos dias e abrir caminhos conceituais e institucionais parasua superao. Para isto, h que saber teorizar as continuidades no pa-dro de poder colonial que marca a experincia dos sujeitos modernos,ao mesmo tempo em que necessrio reconhecer as novas formas eexpresses sutis que este toma. Simultaneamente, h que superar as li-mitaes histricas do modelo dos Estudos de rea, assim como pro-blemas internos aos Estudos tnicos, tais como os da exacerbao daidentidade e o imediatismo poltico. necessrio reconhecer a autono-mia relativa dos Estudos Descolonizadores diante dos movimentos po-lticos e de afirmao identitria que lhes deram origem, mas tambmsua relao indispensvel com eles. Da que seja necessrio tambmreformular e reforar a relao entre trabalho acadmico e ativismo so-cial e poltico descolonizador, desracializador e desgenerador.30 Tudoisto se deve fazer tendo um horizonte amplo que inclua referncia necessidade de criar um novo humanismo e aceder a uma realidade trans-moderna.31

    30 Des-gener-ao refere-se ao de transformar as concepes e as relaes de gnero e sexu-alidade. Devo o conceito a Laura Prez.

    31 Sobre a transmodernidade, veja-se Enrique Dussel, Modernity, Eurocentrism, and Trans-Modernity: In Dialogue with Charles Taylor, in Eduardo Mendieta (org.),The Underside ofModernity: Apel, Ricoeur, Rorty, Taylor, and the Philosophy of Liberation(Atlantic Highlands,NJ, Humanities, 1996), pp. 129-59; Idem, Transmodernity and Interculturality: AnInterpretation from the Perspective of Philosophy of Liberation, in Ramn Grosfoguel, Nel-son Maldonado-Torres e Jos David Saldvar (orgs.), Unsettling Postcolonial Studies:Coloniality, Transmodernity, and Border Thinking, (no prelo); Idem, World System andTrans-Modernity,Nepantla: Views from South, vol. 3, no 2 (2002), pp. 221-44.