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1 O Crime Primitivo e sua Punição Bronislaw Malinowski 1 Tradução de Mauro W. B. Almeida I. As violações da lei e a restauração da ordem Faz parte parte da natureza do interesse científico, que não passa de uma curiosidade refinada, voltar-se mais para o extraordinário e sensacional do que para o normal e quotidiano. No início, em uma nova linha de pesquisa ou em um recente campo de estudos, o que desperta a atenção e gradualmente leva à descoberta de novas regularidades universais são as exceções, as quebras aparentes das leis naturais. Pois o estudo sistemático – e aqui reside o paradoxo da paixão científica – só se apodera do miraculoso para transformá-lo no que é natural. A ciência, a longo prazo, constrói um universo bem regulado, baseado em leis válidas com generalidade, movido por forças definidas e onipresentes, e ordenado segundo alguns princípios fundamentais. Não que a ciência deva banir da realidade o maravilhamento e o romantismo do que é extraordinário e misterioso. É o desejo de novos mundos e de novas experiências que mantém a a mente filosófica em seu curso, e 1 Bronislaw Malinowski. Crime and Custom in Savage Society, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1926, Parte II: pp. 71-129. A fotografia de Malinowski está em George W. Stocking, Jr. (org). Functionalism Historicized: Essays on British Social Anthropology, Madison, The University of Wisconsin Press, 1984, p. 159.

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O Crime Primitivo e sua Punição

Bronislaw Malinowski1

Tradução de Mauro W. B. Almeida

I. As violações da lei e a restauração da ordem

Faz parte parte da natureza do interesse científico, que não passa de uma curiosidade refinada, voltar-se mais para o extraordinário e sensacional do que para o normal e quotidiano. No início, em uma nova linha de pesquisa ou em um recente campo de estudos, o que desperta a atenção e gradualmente leva à descoberta de novas regularidades universais são as exceções, as quebras aparentes das leis naturais. Pois o estudo sistemático – e aqui reside o paradoxo da paixão científica – só se apodera do miraculoso para transformá-lo no que é natural. A ciência, a longo prazo, constrói um universo bem regulado, baseado em leis válidas com generalidade, movido por forças definidas e onipresentes, e ordenado segundo alguns princípios fundamentais.

Não que a ciência deva banir da realidade o maravilhamento e o romantismo do que é extraordinário e misterioso. É o desejo de novos mundos e de novas experiências que mantém a a mente filosófica em seu curso, e a metafísica nos atrai com a promessa de uma visão que ultrapassa as fímbrias dos horizontes mais remotos.

...A Antropologia, ciência ainda jovem, está hoje a caminho de libertar-se da

obsessão pelos interesses pré-científicos, embora algumas tentativas recentes de oferecer soluções simples e sensacionalistas a todos os enigmas da Cultura ainda estejam dominadas pela curiosidade grosseira. No estudo da legislação primitiva 2, manifesta-se uma tendência salutar no reconhecimento gradual mas

1 Bronislaw Malinowski. Crime and Custom in Savage Society, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1926, Parte II: pp. 71-129. A fotografia de Malinowski está em George W. Stocking, Jr. (org). Functionalism Historicized: Essays on British Social Anthropology, Madison, The University of Wisconsin Press, 1984, p. 159.

2 [N. do T.] Malinowski utilizará frequentemente o termo law. A denotação de law é aqui um conjunto prescrições ou regras -- mas tem diferentes conotações que em português se expressam por diferente palavras. Assim, em sentido plural, equivale a

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definitivo de que a selvageria não é governada por caprichos, paixões e acidentes, mas sim pela tradição e pela ordem. Mesmo aqui, porém, ainda há um pouco do velho interesse pelo que é chocante, e que é visível na atenção devotada às infrações da lei e ao castigo que elas provocam. A antropologia moderna continua a estudar as leis quase que exclusivamente em suas manipulações singulares e sensacionais, nos casos de crimes horripilantes seguidos de vendettas tribais, em histórias de feitiços criminosos seguidos de retaliação, nos casos de incesto, adultério, quebra de tabu ou assassinato. Em tudo isso, além do caráter dramático e picante dos incidentes, o antropólogo pode, ou pensa que pode, localizar certas características inesperadas, exóticas e surpreendentes do direito primitivo: a solidariedade transcendente do grupo de parentes3 e que exclui qualquer noção de auto-interesse; o Comunismo legal e econômico; a submissão a um direito tribal rígido e indiferenciado. 4

Contra esses métodos e esses princípios acima expostos, procurei abordar os fatos da legislação primitiva nas Ilhas Trobriand a partir da outra ponta. Comecei com a descrição do que é ordinário, e não do que é singular; da lei que é obedecida e não da lei que é quebrada; com os fluxos e marés habituais da vida social, e não com as tempestades ocasionais. Fui levado a concluir que, contrariamente à maioria das concepções vigentes, o direito civil -- ou melhor, seu equivalente selvagem – é extremamente bem organizado, e governa todos os aspectos da organização social. 5 Descobrimos também que pode ser claramente distinguido, e os nativos o distinguem, de outros tipos de norma, como sejam as regras morais ou de etiqueta, as regras estéticas ou ou mandamentos religiosos.

Longe de serem rígidas, absolutas ou exaradas em Nome da Divindade, as regras da lei são mantidas por forças sociais, são compreendidas como racionais e necessárias, e são elásticas e passíveis de ajuste. Longe de serem assunto de interesse exclusivo dos grupos, os direitos e obrigações são em sua

“direito”, “leis” ou “legislação”; em sentido singular, como “lei”. Essa variedade de equivalentes será utilizada na tradução. Assim, assim, sim, “mother law” é direito materno na tradução mais próxima da língua portuguesa. Mas “primitive law” será traduzido como “legislação primitiva”, ou ainda “leis primitivas”. Às vezes, a melhor tradução de “law” é “lei” mesmo, como em “Law of Exogamy” (Lei da Exogamia). 3 [N. do T.] Traduzimos kindred group por “grupo de parentes”, devendo-se entender que se trata-se aqui de parentes consanguíneos (kin), segundo a visão trobriandesa da consanguinidade: são parentes a mãe e seus ascendentes e descendentes por linha materna mas o pai de uma criança (e seus ascendentes e descententes por linha paterna) não pertencem a seu grupo de parentes consanguíneos (kin). Não confundir com o conceito de kindred, introduzido bem depois, por Freeman e outros, para designar um grupo de parentes traçados a partir do Ego, quer através do pai, quer através da mãe. 4 Assim, Rivers fala de um “sentimento grupal do sistema clânico com as práticas comunistas que o acompanham”, e que supostamente existe na Melanésia, acrescentando que para esses nativos “o princípio de ‘cada um por sim’ está além da capacidade de compreensão” (Social Organization, p. 170). Sidney hartland imagina que na selvageria “O mesmo código em nome do mesmo Nome Divino, e com a igual autoridade, pode regular a conduta de transações comerciais e as relações conjugais mais íntimas, bem como uma esplêndida e complexa cerimônia de culto à divindade” (Primitive Law, p. 214). Ambas as asserções são duvidosas. 5 [ N. do T. Cf. com a teoria exposta por Durkheim em A Divisão do Trabalho Social.]

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maioria assunto de interesse do indivíduo, que sabe perfeitamente como defender seus interesses e compreende que precisa cumprir suas obrigações. Com efeito, descobrimos que a atitude do nativo em relação ao dever e ao privilégio é muito parecida com a que existe nas comunidades civilizadas – na medida em que o nativo, assim como o civilizado, não apenas força os limites da lei, mas às vezes a infringe. É esse tema, que até hoje não foi discutido, que exigirá nossa atenção nesses capítulos. De fato, se as regras fossem mostradas apenas quando funcionam bem, e se o sistema fosse descrito apenas quando está em equilíbrio, estaríamos apresentando um quadro muito unilateral do direito nas Ilhas Trobriand! Já indiquei aqui e ali que as leis funcionam apenas de maneira muito imperfeita, e que há muitos problemas e quebras nesse funcionamento, mas torna-se necessária uma descrição completa das questões dramáticas que envolvem o crime, embora, como já disse, não se deva dar uma ênfase exagerada ao tema.

Há uma outra razão para prestarmos atenção à vida nativa nos seus aspectos desequilibrados. Descobrimos que nas Ilhas Trobriand as relações sociais são governada por um conjunto de princípios legais. O mais importante deles é o Direito Materno, segundo o qual uma criança está vinculada corpóreamente e moralmente, por laços de parentesco, a sua mãe e apenas a ela. Esse princípio governa a sucessão à posição social,6 ao poder e a dignidades; governa a herança econômica, os direitos à terra e à cidadania local, bem como o pertencimento ao clã totêmico.7 O status entre irmão e irmã, as relações entre os sexos e a maioria das relações sociais privadas e públicas entre eles são definidos por regras que fazem parte do direito matriarcal8. As obrigações econômicas de um homem em relação à sua irmã casada e à casa dela constituem uma característica estranha e importante desse direito. Todo o sistema baseia-se na mitologia, na teoria nativa da procriação, e em certas crenças mágico-religiosas, e está presente em todas as instituições e costumes da tribo.

Mas, lado a lado com o sistema do Direito Materno, por assim dizer à sua sombra, existem outros sistemas secundários de regras legais. A legislação relativa ao casamento, que define o status de marido e da esposa, impõe o arranjo patrilocal,9 e atribui ao homem uma autoridade limitada clara sobre a esposa, bem como a tutela sobre a mulher e dos filhos em certos assuntos

6 [N. do T.] Traduzi rank por “posição social”; o sentido mais exato é de “posição na hierarquia social, ou posição na hierarquia de subclãs”. O termo em linguagem militar significa “patente”. Malinowski usa ainda expressões como “high rank” (alta posiçao), “low rank” (baixa posição). 7 [N. do T.] O “subclã” é um grupo que se considera ligado efetivamente por laços de consanguinidade (matrilinear); o “clã totêmico” inclui vários subclãs (uns de “alta posição”, e outros de “baixa posiçao”), sem que seus membros se vejam como ligados por laços de consaguinidade. 8 [N. do T.] “Direito Materno” ou “Direito Matriarcal”? Ambos: Malinowski usa tanto “Mother-Law” como “Matriarchal Law”, como sinônimos. 9 [N. do T.] Malinowski chama de “regra de patrilocalidade” a regra que ordena que a mulher, ao casar-se, deve mudar-se da terra do marido, isto é, para a aldeia dos parentes do marido (seus consanguíneos matrilineares portanto). A rigor, o termo apropriado seria aqui virilocalidade, já que a terra do marido não é a terra do pai dele (que não é seu parente), e sim de seu tio materno (segundo a regra do Direito Materno).

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específicos, baseia-se em princípios legais independentes do Direito Materno, embora em alguns pontos entrelaçado a ele e a ele ajustado. A constituição de uma comunidade aldeã, a posição do chefe na sua aldeia e do chefe no seu distrito, os privilégios e deveres do mago público constituem todos eles sistemas legais independentes.

Ora, sabendo que o direito primitivo não é perfeito, surge o problema: como é que esse corpo composto de [vários] sistemas se comporta sob a tensão das circunstâncias? Cada sistema está bem harmonizado internamente? Cada sistema mantém-se dentro de seus limites ou há algum que tenha a tendência a invadir o terreno alheio? Os sistemas entram em conflito? E caso entrem, qual é o caráter desse conflito? Aqui, mais uma vez, temos que recorrer aos aspectos de criminalidade, desordem e deslealdade da comunidade para obter material para respondermos a essas questões.

Nos relatos que passaremos a fazer -- e que serão dados concretamente e com certo detalhamento – teremos em mente os principais problemas não resolvidos: a natureza dos atos e procedimentos criminais e sua relação para com o direito civil; os principais fatores ativos na restituição do equilíbrio perturbado; as relações e possíveis conflitos entre os diversos sistemas do direito nativo.

Quando me dediquei ao trabalho de campo nas Ilhas Trobriand, mantive sempre o hábito de viver no meio dos nativos, armando minha tenda na aldeia, e tornando-se assim forçosamente presente a tudo que se passava, fosse trivial ou solene, sem graça ou dramático. O evento que passo a relatar aconteceu durante minha primeira visita às Ilhas Trobriand, alguns meses depois que que comecei meu trabalho de campo no arquipélago.

Um dia, uma irrupção de choro e uma grande comoção me alertaram de que havia ocorrido uma morte em algum lugar da vizinhança. Informaram-se de que Kima’i, um rapaz meu conhecido, de uns dezesseis anos, havia caído de um coqueiro, encontrando a morte.

Corri para a aldeia vizinha onde isso tinha se passado, mas deparei-me com todo os procedimentos funerários já em andamento. Era o meu primeiro caso de morte, luto e enterro, de modo que, preocupado com os aspectos etnográficos da cerimônia, esqueci as circunstâncias da tragédia, apesar de um ou dois fatos singulares que ocorreram na aldeia na mesma ocasião e que deveriam ter despertado minhas suspeitas. Fiquei sabendo que outro rapaz fora misteriosamente, por uma misteriosa coincidência. E no funeral havia obviamente um sentimento geral de hostilidade entre a aldeia onde o rapaz morrera e a aldeia para onde o corpo fora levado para as exéquias.

Só muito tempo depois consegui descobrir o verdadeiro significado dos acontecimentos: o rapaz havia cometido suicídio. A verdade é que ele havia violado as regras de exogamia com a sua prima, a filha da irmã de sua mãe. Era fato era sabido, e objeto de desaprovação geral, mas nada se fizera até que o outro rapaz apaixonado pela moça, que queria casar com ela e se sentira pessoalmente ofendido, tomou a iniciativa. Esse rival primeiro ameaçou a usar

O funcionamento do sistema social Trobriandês, com descendência matrilinear, patrilocalidade, e casamento preferencial com a prima cruzada patrilateral, é complicado mesmo!

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magia negra contra os dois culpados, mas isso não surtiu muito efeito. Então, certa noite, ele insultou o culpado em público -- acusando-o de incesto para toda a comunidade ouvir, e lançando contra ele certas expressões que são intoleráveis para um nativo.

Para isso só havia um remédio: restava apenas uma saída para o infeliz rapaz. Na manhã seguinte ele vestiu roupas e ornamentos festivos, subiu em um coqueiro e dirigiu-se à comunidade, dando seu adeus por detrás da folhagem da palmeira. Explicou as razões para o seu gesto desesperado e lançou uma acusação velada contra o homem que o levara à morte, fazendo assim com que seus companheiros de clã passassem a ter a obrigação de vingá-lo. Depois disso deu um grande grito, conforme o costume, e saltou da palmeira de uns vinte metros de altura, morrendo na hora. Seguiu-se uma briga na aldeia na qual o rival foi ferido; a querela repetiu-se durante o funeral.

Ora, esse caso abriu uma série de linhas importantes de investigação para mim. Eu estava em presença de um crime qualificado: a quebra da exogamia do clã totêmico. A proibição exogâmica é uma das pedras basilares do totemismo, do direito materno e do sistema classificatório de parentesco. Todas as pessoas do sexo feminino de um clã são chamadas de irmãs por um homem, e como tais interditadas a ele.10 Um axioma da Antropologia diz que nada desperta maior horror do que a quebra dessa proibição, e que além de uma forte reação da opinião pública, há também punições sobrenaturais que recaem sobre esse crime. Se o leitor for investigar o assunto entre os Trobriandeses, descobrirá que todas as afirmações confirmam o axioma, que os nativos demonstram horror antes a idéia de violar as regras de exogamia, e que acreditam que podem sobrevir dores, doenças e até morte em consequência do incesto clânico. Esse é o ideal do direito nativo, e em assuntos morais é fácil e agradável aderir estritamente ao ideal -- quando estamos julgando a conduta dos outros ou expressando nossa opinião sobre as condutas em geral.

Mas quando se trata de aplicar a moralidade e os ideais à vida real, as coisas tomam um aspecto diferente. No caso descrito, era óbvio que os fatos não se encaixavam no ideal de conduta. A opinião pública não estava nem ultrajada pelo conhecimento do crime, nem reagira a ele diretamente -- tendo que ser mobilizada por uma declaração pública do crime e pelos insultos atirados contra o culpado por uma parte interessada. Mesmo então o culpado teve que executar ele mesmo a punição. A ‘reação grupal’ e as ‘sanções sobrenaturais’ não foram portanto os princípios ativos. Investigando o assunto mais a fundo, e reunindo informações concretas, descobri que a quebra da exogamia -- tratando-se de relacionamento sexual e não de casamento – estava longe de ser uma ocorrência rara, e que a opinião pública era leniente, embora decididamente hipócrita. Se o caso fosse conduzido sub rosa com uma certa medida de decoro, e se ninguém criasse problema, então a ‘opinião pública’ fofocaria, mas não exigiria nenhuma punição rigorosa. Mas se, ao contrário, o

10 [N. do T.] Deve-se guardar em mente que se trata aqui de um incesto clãnico, e não de incesto ao nível do sub-clã, e muito menos ao nível da família. Malinowski deixa claro que a “prima” era uma “filha da irmã da mãe” (uma “irmã”) por que pertencia ao mesmo “clã totêmico”. Mas não diz que essa “prima” pertenceria ao mesmo subclã que o rapaz (se pertencesse, seria uma parente consanguínea relacionada efetivamente por descendência com o rapaz em questão).

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escândalo explodisse, então todos se voltariam contra os dois culpados, e, por ostracismo ou insultos, um deles poderia ser levado ao suicídio.

No que concerne à sanção sobrenatural, esse caso levou-me a uma descoberta interessante e importante. Aprendi que há um remédio perfeitamente estabelecido contra todas as consequências patológicas dessa infração, um remédio que é considerado como praticamente infalível se for bem aplicado. Isto é: os nativos possuem um sistema de magia que consiste de orações e ritos realizados com água, ervas e pedras, que quando corretamente realizados são completamente eficazes para desfazer os maus resultados do incesto clânico.

Era a primeira vez no meu trabalho de campo que eu encontrava o que se poderia chamar de um sistema de evasão bem estabelecido, nesse caso a uma das leis mais fundamentais da tribo. Mais tarde descobri que essas excrecências parasitárias nos galhos principais da ordem tribal existem em vários outros casos, e não só na contramedida do incesto. A importância do fato é evidente. Ele mostra claramente que uma sanção sobrenatural não salvaguarda uma regra de conduta com um efeito automático; contra a influência mágica pode haver a contra-magia. Não resta dúvida de que é melhor não correr o risco, já que a contra-magia pode ter sido mal aprendida, ou pode ser mal executada, mas o risco não é tão grande. A sanção sobrenatural mostra então uma considerável elasticidade, sendo conjugada a um antídoto adequado.

Esse antídoto metódico ensina-nos outra lição. Em uma comunidade em que as leis não apenas são ocasionalmente quebradas, mas também sistematicamente evitadas por métodos bem estabelecidos, não se pode falar de obediência ‘espontânea’ à lei, nem de adesão cega à tradição. Pois essa tradição ensina às pessoas como fugir subreptíciamente a alguns de seus mandamentos mais severos -- e é impossível ao mesmo tempo empurrar espontaneamente em uma direção e na direção oposta!

A magia para desfazer as consequências do incesto clânico talvez seja o exemplo mais definitivo de evasão metódica à lei, mas há outros casos além desse. Assim, há um sistema de magia para retirar a afeição da mulher por seu marido e induzi-la a cometer adultério, e que é uma maneira tradicional de desrespeitar a instituição do casamento e a proibição do adultério. Talvez pertençam a uma categoria ligeiramente diferente várias outras formas de magia deletéria e maléfica como destruir colheitas, prejudicar um pescador, afujentar os porcos para a floresta, matar bananeiras, coqueiros ou palmeiras de areca, estragar uma festa ou uma expedição de Kula. Esse tipo de magia, dirigida a instituições e atividades importantes, constitui um instrumento criminoso fornecido pela tradição. Trta-se assim de desvio tradição, que opera contra o direito e com ele se choca diretamente, já que o direito salvaguarda de muitas maneiras as atividades e as instituições. O caso da feitiçaria, que é uma forma especial e muito importante de magia negra, será discutido em breve, bem como certos sistemas não-mágicos de evasão às leis tribais.

A lei da exogamia -- a proibição do casamento e do relacionamento sexual dentro do clã -- é frequentemente citada como um dos mandamentos mais rígidos e gerais do direito primitivo, por proibir as relações sexuais dentro do clã com o mesmo rigor, independentemente do grau de parentesco entre as

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duas pessoas envolvidas. Argumenta-se que a unidade do clã e a realidade do ‘sistema classificatório de parentesco’ são confirmadas da maneira mais plena no tabu do incesto clânico. [Esse tabu] agrupa todos os homens e todas as mulheres do clã como ‘irmãos’ e ‘irmãs’ e exclui absolutamente qualquer intimidade sexual entre eles. Uma análise cuidadosa dos fatos relevantes nas Ilhas Trobriand leva a rejeitar completamente essa concepção. Trata-se novamente de uma dessas invenções imaginárias das tradições nativas, que a antropologia tomou ao pé-da-letra e incorporou integralmente em seus escritos. 11

II. A feitiçaria e o suicídio em sua influência sobre a lei

Na seção anterior descrevi um caso de infração às leis tribais e discuti a natureza das tendências criminosas, bem como as forças que são acionadas para restaurar a ordem e o equilíbrio tribais assim que eles são perturbados.

Aludimos em nosso relato a dois incidentes -- o uso da feitiçaria como meio de coerção e a prática do suicídio como expiação e como desafio. Agora temos que dedicar uma discussão mais detalhada a esses dois temas.

12...Tendo aprendido algo sobre a criminologia Trobriandesa com o estudo da

feitiçaria, passemos agora ao suicídio. O suicídio não é em absoluto uma instituição puramente jurídica, mas possui claramente um aspecto legal. É praticado por meio de dois métodos sérios: lo'u (atirar-se do alto de uma palmeira) e ingerir o veneno fatal do baço do baiacú (soka). Há também o método mais leve de consumir uma porção do veneno vegetal tuva, usado para entorpecer peixes. Uma dose generosa de emético restitui a vida a uma pessoa envenenada por tuva, que portanto é utilizado em brigas de amantes, em diferenças matrimoniais e casos similares, que ocorreram muitas vezes durante minha estadia entre os Trobriandeses, nenhum deles fatal.

As duas formas fatais de suicídio são utilizada como um meio para escapar de situações sem saída e a atitude mental por tras delas é um tanto complexa, incluindo o desejo de auto-punição, vingança, reabilitação e queixa sentimental. Uma série de casos concretos descritos rapidamente ilustrará melhor a psicologia do suicídio.

11 Para dar um exemplo, invertendo o papel de selvagem e de civilizado, de etnógrafo e informante: muitos de meus amigos melanésios, acreditando literalmente na doutrina do ‘amor fraterno’ pregada pelos missionários cristãos e no tabu contra a guerra e contra o assassinato pregado e promulgado pelos funcionários do governo, não conseguiam reconciliar essas idéias com as histórias sobre a Grande Guerra, que atingia -- através das plantações comerciais, dos comerciantes, administradores e trabalhadores de plantações – as aldeias mais remotas da Melanésia ou de Papua. Eles ficavam realmente intrigados ao ouvir que em um único dia os homens brancos matavam mais pessoas de sua própria raça do que a população de muitas tribos da Melanésia. Concluiam necessariamente que o Homem Branco era um tremendo mentiroso, mas não sabiam ao certo se a mentira estava do lado das pretensões moralistas ou das patranhas guerreiras. 12 [N.do T. Por razões de espaço, omitimos a etnografia sobre feitiçaria]

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Um caso mais ou menos parecido com o de Kima'i, descrito acima, foi o da jovem Bomawaku, que estava apaixonada com um jovem de seu próprio clã e tinha um pretendente oficial e aceitável do qual não gostava. Ela morava no seu bukumatula (dormitório de pessoas solteiras), construído para ela por seu pai, e ali recebia seu amante ilegítimo. O pretendente descobriu o caso, insultou-a em público, e ela, vestindo roupas e ornamentação de festas, gritou no alto da palmeira e saltou. Essa era uma velha história, que me contou uma testemunha ocular, que se lembrou dela a propósito do episódio recente de Kima'i. Também aquela jovem tinha buscado uma saída de um impasse intolerável, a que tinham levado sua paixão e as proibições tradicionais. Mas a causa imediata e real do suicídio foi o momento do insulto. Se não fosse por isso, o conflito mais profundo, porém menos urgentes, entre o amor e o tabu nunca a teriam levado a um ato insensato.

...13

Aconteceu um caso semelhante algum tempo atrás, quando o marido acusou a mulher de adultério, esta pulou da palmeira e em seguida o marido jogou-se também. Outro acontecimento de data mais recente foi o suicídio por envenenamento de Isakapu de Sinaketa, acusada pelo marido de adultério. Bogonela, uma das esposas do chefe Koua’uya de Sinaketa, depois que sua má conduta foi denunciada por outra esposa na ausência do marido, cometeu suicídio na hora. Há alguns anos atrás em Sinaketa, um homem atormentado por uma de suas esposas que o acusava de adultério e outras transgressões cometeu suicídio por envenenamento.

Bolubese, esposa de um de um antigo chefe importante de Kiriwina, fugiu do marido e voltou para sua própria aldeia, e quando seus próprios parentes consanguíneos (tio materno e irmãos) 14 ameaçaram mandá-la de volta à força ela se matou com lo’u. Chegaram a meu conhecimento uma série de casos similares, ilustrando as tensões entre marido e mulher, entre amantes, entre parentes consanguíneos.

Devem-se registrar dois motivos na psicologia do suicídio: em primeiro lugar, há sempre algum pecado, crime ou explosão passional a expiar, quer seja uma infração das regras de exogamia, seja adultério, seja calúnia, ou ainda uma tentativa de evadir-se às próprias obrigações; em segundo lugar, há um protesto contra os que tornaram pública a transgressão, que insultaram o culpado em público, que o colocaram numa situação insustentável. Às vezes um desses dois motivos pode ser mais importante do que o outro, mas em geral há uma combinação dos dois em iguais proporções. A pessoa acusada publicamente admite sua culpa, assume todas as consequências, executa a punição sobre sua própria pessoa, mas ao mesmo tempo declara que foi tratada de maneira perversa, apela aos sentimentos dos que a levaram ao ato extremo se são seus amigos ou parentes, ou, no caso de serem inimigos, apela à solidariedade dos seus parentes consanguíneos pedindo vingança (lugwa).

Certamente o suicídio não é um meio de fazer justiça, mas dá ao acusado e ao oprimido -- quer seja culpado ou inocente – uma saída e um meio de

13 [N. do T.] Foram omitidas as páginas 95 e 96 do original. 14 [N. do T.] “Kinsmen” (plural de “kisman”), “parentes consanguíneos”. Cf. Nota 3 acima.

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reabilitar-se. Tem uma grande importância na psicologia dos nativos, e constitui um freio permanente na linguagem e no comportamento, ou em outros desvios do costume ou da tradição que possam ferir ou ofender outrem. O suicídio pois, assim como a feitiçaria, é um meio de manter os nativos na estrita observação das leis, um meio para afastar as pessoas de formas de comportamento extremas e inusitadas. São influências conservadoras bem destacadas e como tal constituem poderosos apoios à lei e à ordem tribais.

Que é que aprendemos dos fatos sobre crime e castigo que registramos neste capítulo e no anterior? Descobrimos que os princípios segundo os quais o crime é punido são muito vagos, que os métodos de efetuar a punição são erráticos, governados pelo acaso e pela paixão pessoal e não por um sistema de instituições fixas. Os métodos mais importantes, de fato, são um subproduto de instituições não legais, de costumes, de arranjos e de eventos como a feitiçaria e o suicídio, o poder do chefe, a magia, as consequências sobrenaturais do tabu e de atos pessoais de vingança. Essas instituições e costumes, longe de serem de natureza legal em sua função principal, apenas servem de maneira parcial e imperfeita ao fim de manter e fazer cumprir as obrigações da tradição. Não encontramos nenhum arranjo ou costume que pudéssemos classficiar como uma forma de “administração da justiça”, conforme um código e segundo métodos fixos. Todas as instituições juridicamente efetivas que encontramos eram mais meios de por fim a uma situação ilegal ou intolerável, de restaurar o equilíbrio da vida social e de dar vasão aos sentimentos de opressão e de injustiça sentidos pelos indivíduos. O crime na sociedade Trobriandesa só pode ser definido de maneira vaga – ora é a explosão da paixão, ora é a violação de determinado tabu, ora é o ataque contra uma pessoa ou sua propriedade (assassinato, roubo, violência), às vezes é o excesso de ambição ou de riqueza sem a sanção da tradição e em conflito com as prerrogativas do chefe ou de algum notável. Vimos também que as proibições mais bem definidas são elásticas, já que existem sistemas metódicos para evadir-se delas.

Passarei agora à discussão de casos em que não há infração da lei por um ato de natureza claramente ilegal, mas onde a lei se choca com sistema de práticas legalizadas quase tão fortes como as próprias leis tradicionais.

III. Sistemas legais em conflito

A legislação primitiva não constitui um corpo de regras homogêneo e perfeitamente unificado, baseado em um princípio desenvolvido na forma de um sistema coerente. Já sabemos disso a partir de nossa investigação anterior sobre os fatos jurídicos nas Ilhas Trobriand. Ao contrário, as leis dos nativos

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consistem de uma série de sistemas mais ou menos independentes, ajustados frouxamente entre si. Cada um desses [sistemas] -- matriarcado, direito paterno, leis de casamento, prerrogativas e deveres do chefe, e assim por diante -- tem um determinado campo que lhe é completamente específico, mas também pode trangredir suas fronteiras legítimas. Isso resulta em um estado de equilíbrio tenso com ocasionais explosões. O estudo do mecanismo dos conflitos entre esses princípios jurídicos, abertos ou mascarados, é extremamente instrutivo e revela-nos a natureza profunda do tecido social de uma tribo primitiva. Passarei portanto a descrever uma ou duas ocorrências, e depois farei a análise delas.

Primeiro descreverei um acontecimento dramático que ilustra o conflito entre o princípio básico do Direito Materno, e um dos sentimentos mais fortes que é o do amor paterno, que reúne em torno de si muitas práticas toleradas pelo costume, embora na realidade sejam contrárias à lei [do Direito Materno].

Os princípios do Direito Materno e do Amor Paterno podem ser vistos de maneira mais precisa na relação de um homem para com o filho da irmã, e para com seu próprio filho respectivamente. O seu sobrinho matrilinear é seu parente mais próximo e o herdeiro legal de todas as suas dignidades e cargos. O seu próprio filho, por outro lado, não é considerado como sendo seu parente; legalmente não se relaciona ao pai, e o único laço entre eles é o status sociológico do casamento com a mãe do filho. 15

Contudo, na realidade da vida concreta o pai é muito mais ligado ao próprio filho do que a seu sobrinho. Entre pai e filho há invariavelmente amizade e apego pessoal; entre tio e sobrinho frequentemente o ideal de perfeita solidariedade é corroído pelas rivalidades e suspeitas inerentes a toda relação de sucessão.

Assim, o poderoso sistema legal do Direito Materno está associado a um sentimento bastante fraco, enquanto o Amor Paterno, muito menos importante na lei, é apoiado por um forte sentimento pessoal. No caso de um chefe cujo poder é considerável, a influência pessoal sobrepuja o domínio da lei e a posição do filho é tão forte como a do sobrinho.

Foi o que aconteceu na aldeia principal de Omarakana, residência do chefe principal, cujo pode extende-se a todo o distrito, cuja influência atinge muitos arquipélagos, e cuja fama espalha-se por toda a extremidade oriental da Nova Guiné. Logo descobri que havia uma antiga rixa entre seus filhos e seus sobrinhos, uma rixa que assumia uma forma realmente aguda nas eternas e repetidas brigas entre seu filho favorito Namwana Guya'u e seu sobrinho Mitakata, que era o segundo sobrinho por ordem de idade.

A explosão final se deu quando o filho do chefe proferiu uma séria acusação contra o sobrinho, em um litígio em presença do funcionário do governo no distrito. Matakata, o sobrinho, foi condenado e passou um mês na prisão.

Quando essas notícias chegaram na aldeia, a breve alegria dos partidários de Manwana Guya'u foi seguida de pânico, por todos sentiram que as 15 Cf. The Father in Primitive Psychology (1926), publicado originalmente em Psyche, vol. iv, N. 2. [N. do T. Malinowski explica detalhadamente essa visão em A Vida Sexual dos Selvagens Trobriandeses, publicado em português. Observe-se que, de acordo com Malinowski, os trobriandeses não distinguem o enteado e o filho, já que ambos têm o “status sociológico” de filhos da esposa. ]

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coisas tinham chegado a um ponto de crise. O chefe trancou-se em sua cabana pessoal, cheio de apreensões pelas consequências que atingiriam o seu favorito, cuja ação era vista como sendo insensata e contrária às leis e sentimentos tribais. Os parentes do jovem prisioneiro, herdeiro da chefia, estavam fervendo de raiva e de indignação reprimida. Quando a noite caiu, a aldeia contida recolheu-se para uma janta silenciosa, cada família comendo sózinha. Não havia ninguém na praça central -- ninguém via Namwana Guya'u, o chefe To'uluwa estava escondido em sua cabana, a suas mulheres permaneciam na maioria trancadas com suas famílias dentro de casa. De repente, uma voz alta ressoou pela aldeia silenciosa. Bagido'u, o herdeiro e irmão mais velho do jovem prisioneiro, em pé na frente de sua casa, dirigiu-se ao ofensor de sua família:

- “Namwana Guya'u, tu trazes problemas. Nós, Tabalu de Omarakana, deixamos que ficasses aqui, morando entre nós. Tiveste comida em abundância em Omarakana, comeste de nossa comida, recebeste tua parte dos porcos que nos deram em tributo, e também dos peixes. Navegaste em nossas canoas. Fizeste casa em nossa terra. Agora, tu nos prejudicas. Contaste mentiras. Mitakata está na cadeia. Não te queremos aqui. Vai embora! Estamos te botando para fora! Nós te expulsamos de Omarakana!”

Essas palavras foram pronunciadas com uma voz alta e cortante, tremendo com a força da emoção, cada curta sentença dita após uma pausa, cada sentença como um míssil cortando o espaço vazio na direção da cabana onde Namwana Guya'u permanecia sentado e pensativo. Depois a irmã mais nova de Mitakata também levantou-se e falou, e em seguida um dos sobrinhos maternos. As palavras foram quase iguais às do primeiro discurso, sendo que o ponto principal era a fórmula para a expulsão yoba. As falas foram recebidas em profundo silêncio. Nada se mexia na aldeia. Mas, antes que a noite tivesse terminado, Namwana Guya'u deixou para sempre Omarakana. Ele fora instalar-se em sua própria aldeia, na aldeia de Osapola de onde sua mãe viera e que ficava a algumas milhas de distância. Durante semanas sua mãe e sua irmã choraram por ele com os lamentos que se gritam em voz alta para chorar os mortos. O chefe permaneceu durante três dias em sua palhoça, e quando saiu tinha a aparência envelhecida e alquebrada de dor. Todos os seus interesses pessoais e todo seu afeto estavam depositados no seu filho favorito, não havia dúvida. E contudo ele nada podia fazer para ajudá-lo. Os parentes tinham agido em completa consonância com seus direitos, e de acordo com as leis tribais o chefe não podia em hipótese alguma agir contra seus parentes. Nenhum poder podia mudar o exílio que havia sido decretado. Uma vez pronunciado o 'Vá embora' (bukula), 'Nós te expulsamos' (kayabaim), o homem tinha de ir-se. Essas palavras, que é muito raro serem pronunciadas a sério, têm força de obrigação, tendo um poder quase ritual quando são pronunciadas pelos cidadãos de um lugar contra um residente estrangeiro. Um homem que tentasse enfrentar o terrível insulto, ficando no local, estaria desonrado para sempre. De

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fato, para o Ilhéu Trobriandês, é impensável qualquer ação que não seja a de obedecer imediatamente a uma ordem ritual.

O ressentimento do chefe contra seus parentes foi profundo e duradouro. No início ele não queria sequer falar com eles. Durante mais ou menos um ano, ninguém teve coragem de pedir para sair com ele nas expedições marítimas, embora tivessem pleno direito ao privilégio. Dois anos depois, quando voltei às Ilhas Trobriand em 1917, Namwana Guya'u ainda morava na outra aldeia e mantinha-se distanciado dos parentes do pai, embora frequentemente visitasse Omarakana para estar com seu pai, especialmente quando To'uluwa estava viajando. A mãe morreu um anos depois da expulsão. Nas palavras dos nativos: " Ela chorou, chorou, não quis mais comer, e morreu". As relações entre os dois inimigos principais foram completamente rompidas e Mitakata, o jovem chefe que tinha sido mandado para a prisão, mandou embora sua esposa que pertencia ao mesmo sub-clã que Namwana Guya'u. Houve uma cisão profunda em toda a vida social de Kiriwina.

O acontecimento foi um dos eventos mais dramáticos de que fui testemunha nas Ilhas Trobriand. Descrevi-o com detalhes porque ele contém uma clara ilustração do Direito Materno, do poder das leis tribais e das paixões que atuam a despeito delas.

Embora excepcionalmente dramático e eloquente, o caso não é de modo algum exepcional. Em toda aldeia em que há um chefe de alta posição, um notável ou um feiticeiro poderoso, ele favore os filhos e lhes concede privilégios que a rigor não lhes pertencem. Muitas vezes isso não gera antagonismos na comunidade, quando o filho e o sobrinho são moderados e prudentes. Kayla’i, filho de M’tabalu, o chefe da categoria máxima de Kasanai, recentemente falecido, continua a morar na aldeia do seu pai, participa da maioria dos ritos mágicos comunitários e mantém excelentes relações com o sucessor de seu pai. No conjunto de aldeias de Sinaketa, onde residem vários chefes de alta posição, alguns dos filhos favoritos são bons amigos dos herdeiros legítimos, enquanto outros são abertamente hostis a eles.

...Assim, mais uma vez nos deparamos com a discrepância entre o ideal da

lei e a realização da lei, entre a versão ortodoxa e a prática da vida real. Já encontramos essa situação na exogamia, no sistema da contra-magia, na relação entre feitiçaria e direito, e na elasticidade de todas as regras do direito civil. Aqui, contudo, vemos os próprios fundamentos da constituição tribal sendo abalados e sistematicamente ameaçados por uma tendência inteiramente incompatível com eles. Como sabemos, o direito materno é o princípio mais importante e mais abrangente das leis, e está na base de todos os costumes e instituições. Esse princípio dita que o parentesco seja contado somente através das mulheres, e que todos os privilégios sociais sigam a linha materna, excluindo portanto toda e qualquer validade legal de vínculos corporais diretos entre pai e filho, assim como qualquer filiação que exista em virtude de tais vínculos.16 Contudo, o pai invariavelmente ama seus filhos, e esse sentimento

16 Os nativos são ignorantes do fato da paternidade fisiológica, e como mostrei em The Father in Primitive Psychology, 1926, possuem uma teoria sobrenatural para as causas do nascimento. Não há

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encontra um reconhecimento limitado na legislação, já que o marido tem o direito e a obrigação de agir como guardião ou tutor dos filhos de sua esposa até a puberdade destes. Naturalmente, essa é a única orientação que a legislação pode tomar em uma cultura com casamento patrilocal. Como as crianças pequenas não podem ser separadas da mãe, como esta precisa estar com o seu marido, muitas vezes longe dos seus próprios parentes, e como tanto ela como seus filhos precisam de um guardião e protetor masculino por perto, é o marido quem necessariamente desempenha esse papel, fazendo-o em estrita conformidade à ortodoxia legal. A mesma legislação, contudo, ordena que o rapaz -- não a moça, que permanece com os pais até o casamento -- deixe a casa do pai na puberdade e se mude para a comunidade de sua mãe, passando para a tutela do tio materno. Isso, de modo geral, contraria os desejos do pai, do filho e do tio -- os três interessados no caso. O resultado é que surgiram uma série de costumes que tendem a prolongar a autoridade paterna e a estabelecer um elo adicional entre o pai e o filho. A legislação estrita declara que o filho é um cidadão da aldeia materna, e que na aldeia de seu pai ele não passa de um estrangeiro (tomakava). Mas o costume permite que permaneça ali e usufrua da maior parte dos privilégios da cidadania. Para fins ceremoniais, em um funeral ou no luto, em uma festa e nas brigas via de regra, ele se alinhará com o tio materno. Na execução diária de nove décimos de todas as empresas e interesses da vida ele está junto do pai.

...O arranjo mais importante através do qual a linha paterna é

contrabandeada para dentro Direito Materno é a instituição do casamento de primos cruzados. Um homem nas ilhas Trobriand que tem um filho e cuja irmã dá à luz uma menina tem o direito de pedir que essa criança seja prometida a seu filho.17 A assim, seus netos serão de seu próprio grupo de parentesco, e seu filho se tornará cunhado do herdeiro à chefia [o filho da irmã]. Este último estará, portanto, na obrigação de abastecer a casa do filho com comida, de ajudar seu cunhado e proteger a família da irmã de modo geral. Assim, justamente o homem cujos interesses o filho provavelmente usurpará fica impedido de reclamar e ainda tem que considerar isso como privilégio. O casamento de primos cruzados nas Ilhas Trobriand é instituição por meio da qual o homem pode conseguir para o filho um direito definitivo, embora tortuoso, de permanecer por tuda a vida na comunidade do pai, através de um casamento

nenhuma continuidade fisiológica entre o homem e os filhos de sua esposa. Contudo, o pai estima seu filho desde o nascimento -- no mínimo, tanto quanto o pai europeu normal. Como isso não pode dever-se à idéia de que o filho é sua progênie, o fato deve resultar de alguma tendência inata à espécie humana de que o macho sinta-se ligado aos filhos tidos por uma mulher com quem se acasalou, com quem vive permanentemente e que protegeu durante a gravidez. Essa me parece ser a única explicação plausível para a ‘voz do sangue’ em sociedades que são ignorantes da paternidade, e também naquelas que são enfaticamente patriarcais, mas onde o pai ama tanto sua criança fisiológica como a que nasceu -- pelo menos desde que ele não saiba disso. A tendência é altamente benéfica para a espécie. [N. do T. Cf. A Vida Sexual dos Selvagens Trobriandeses, do autor. Cf. a Nota 9 acima]17 [N. do T.] O ‘homem’ do exemplo de Malinowski é representado no diagrama abaixo como Ego (isto é, a pessoa em relação à qual as demais posições são designadas).

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matrilocal excepcional, desfrutando quase todos os privilégios da plena cidadania.

[O casamento com a prima cruzada 18]

18 [N.do T.] O diagrama não faz parte do texto. Malinowski apresenta um diagrama explicativo no Capítulo IV (seção 4) da Vida Sexual dos Selvagens na Melanésia do Noroeste (Malinowski, B., The Sexual Life of Savagens in North Western Melanesia, Londres, Routledge & Kegan Paul, p. 83.). O aluno que detesta esses diagramas está em boa companhia: Malinowski quase nunca usa esses diagramas, detestava diagramas de parentesco e desprezava as “análises de parentesco” formais de modo geral. No diagrama acima, a prima cruzada é uma prima cruzada patrilateral.

Cla de Ego

Grupo localo

EsposaIrmão da esposa

Filho

Ego

Netos

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IV. Os fatores de coesão social em uma tribo primitiva

Ao analisar o conflito entre o Direito Materno e o Amor Paterno, focalizamos nossa atençao nas relações pessoais entre o homem, seu filho e seu sobrinho. Mas o problema é também o da unidade do clã. Pois o grupo de dois formado pelo homem que está no poder (seja ele chefe, notável, chefe da aldeia ou feiticeiro) e seu herdeiro é o legítimo núcleo do clã matrilinear. O clã não pode ter mais unidade, homogeneidade e solidariedade do que as que tem o seu núcleo, e, como vemos que esse núcleo apresenta uma fissura, havendo normalmente tensões e antagonismos entre os dois homens, não podemos aceitar o axioma de que o clã é uma unidade perfeitamente soldada. Mas o ‘dogma do clã’, ou o ‘dogma do sib’, para usar a expressão apropriada do Dr. Lowie, não deixa de ter fundamento, e embora tenhamos mostrado que o clã está cindido no seu próprio núcleo, e também que ele não é homogêneo com respeito à exogamia, será bom alvitre mostrar exatamente o quanto de verdade existe na alegação da unidade do clã.

Pode-se afirmar mais uma vez que a Antropologia tomou ao pé-da-letra a doutrina nativa ortodoxa, ou melhor dizendo a ficção legal dos nativos, tendo sido assim levada ao engano de confundir o ideal legal com as realidades sociológicas da vida tribal. A posição do direito nativo a esse respeito é coerente e clara. Aceitando o Direito Materno como o princípio exclusivo de parentesco nos assuntos legais, e aplicando-o até as últimas consequências, o nativo divide todos os seres humanos entre os que são conectados a ele pelo laço matrilinar, os quais ele chama de parentes19 (veyola), e aqueles que não se relacionam a ele dessa maneira e que ele chama de estranhos (tomakava). Essa doutrina é então combinada com o “princípio classificatório de parentesco”, que domina de modo completo apenas o vocabulário, mas que em certa medida também influencia as relações legais. Tanto o Direito Materno como o princípio classificatório associam-se ainda ao sistema totêmico, segundo o qual todos os seres humanos dividem-se em quatro clãs, que são por sua vez subdivididos em um número irregular de sub-clãs. (...) Pertencer a um sub-clã significa ter uma antepassada comum, significa a unidade de parentesco, a unidade de cidadania em uma comunidade local, o direito comum à terra, e a cooperação em muitas atividades econômicas e em todas as atividades cerimoniais.

...Mas há também o outro lado da situação, do qual já tivemos claras

indicações, e que agora precisamos formular concisamente. Em primeiro lugar, embora todas as idéias sobre o parentesco, a divisão totêmica, a unidade de substância, as obrigações sociais, etc., tendam a enfatizar o ‘dogma clânico’, nem todos os sentimentos seguem essa linha. Se por um lado um homem se alinha invariavelmente, em toda contenda de natureza social, política e cerimonial, com o seu grupo de parentes matrilineais (matrilineal kindred), os sentimentos de ternura, a amizade amorosa e a estima fazem com que muitas 19 [N.do T.] “Parentes” traduz aqui kinsmen.

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vezes ele negligencie o clã em benefício da mulher, dos filhos e dos amigos, nas situaçoes ordinárias da vida. Linguísticamente, o termo veyogu (meu parente) tem a conotação emocional de um dever frio, de orgulho, enquanto que o termo lubaygu (meu amigo e minha querida), por outro lado, possui um tom mais íntimo e nitidamente mais caloroso. Também em suas suas crenças post-mortem os laços de amor, afeição conjugal e amizade perduram no mundo dos espíritos -- isso nas crenças menos ortodoxas e mais pessoais -- da mesma maneira que a identidade totêmica perdura.

...20

Todos os fatos citados acima mostram que a unidade do clã não é nem um conto de fadas inventado pela Antropologia, nem é o único e principal princípio real do direito selvagem, a chave de todos os seus enigmas e dificuldades. A situação real, quando é vista em sua plenitude e quando é completamente compreendida, é muito complexa, e cheia de contradições e de conflitos aparentes e também reais, devidos ao jogo que opera entre o Ideal e sua atualização, e ao imperfeito ajuste entre as tendências humanas espontâneas e a rigidez da lei. A unidade do clã é uma ficção legal no sentido de que ela exige -- em toda a doutrina nativa, isto é, em todas as afirmações, provérbios e regras abertas e padrões de conduta -- uma subordinação absoluta de todos os demais interesses e laços às exigências da solidadiredade do clã, ao passo que, de fato, essa solidariedade é quase que constantemente infringida e praticamente inexistente no curso diário da vida ordinária. Por outro lado, em certas ocasiões, nas fases cerimoniais da vida nativa sobretudo, a unidade do clã domina tudo, e nos casos de conflito aberto e de desafio explícito ela predominará sobre as considerações pessoais e sobre as propensões que em condições ordinárias certamente determinariam a conduta do indivíduo. Há portanto dois lados na questão, e a maioria dos eventos importantes da vida nativa, assim como de suas instituições, costumes e tendências, não podem ser compreendidas adequadamente sem a percepção de ambos os lados e de sua interação.

Não é difícil perceber então porque a Antropologia fixou-se em um lado da questão, e porque apresentou a doutrina rígida mas fictícia do direito nativo como sendo toda a verdade. É porque essa doutrina representa o aspecto intelectual, explícito e inteiramente convencionalizado da atitude nativa, aquele que é colocado em forma de afirmações claras e em fórmulas legais definidas. Quando se pergunta ao nativo o que ele faria em tal e tal situação, ele responde o que ele deveria fazer; ele apresenta o padrão da melhor conduta possível. Quando ele age como informante para um antropólogo de campo, não lhe custa nada vender a varejo o Ideal da lei. Seus sentimentos, suas propensões, seus preconceitos, suas auto-concessões e a sua tolerância para com os lapsos alheios, tudo isso ele reserva para seu comportamento na vida real. E mesmo aí, embora aja assim, relutaria a admitir, até para si mesmo, que ele algum dia se comportou abaixo dos ditames da lei. O outro lado, o código da conduta natural e impulsiva, as evasões, os arranjos e usos não-legais, revelam-se sómente para o pesquisador de campo que observa a vida nativa diretamente, registra os

20 [N. do T.] Omitidas as páginas de 115 a 119.

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fatos, e vive em contato tão próximo com o seu ‘material’ que é capaz de entender não apenas sua linguagem e suas frases, mas também os motivos ocultos do comportamento, e a linha de conduta que dificilmente será jamais formlada. A “Antropologia do Ouvi Dizer” constantemente expõe-se ao perigo de ignorar o lado enevoado das leis selvagens. Esse lado, pode-se dizer sem exagero, existe e é tolerado desde que não seja encarado de frente, colocado em palavras, afirmado abertamente e contestado. Isso talvez explique a velha teoria do “selvagem sem freios”, cujos costumes não existem e cujas maneiras são bestiais.21 Pois os administradores que nos forneciam essa versão conheciam muito bem as complicações e as irregularidades do comportamento nativo que não se encaixam absolutamente em uma legalidade estrita, mas ignoravam a estrutura da doutrina legal nativa. Já o moderno pesquisador de campo constrói essa doutrina sem muito esforço a partir das afirmações do seu informante nativo, mas permanece na ignorância dos desvios introduzidos pela natureza humana nesse plano teórico. Portanto, molda o nativo em um modelo de legalidade. A verdade está numa combinação dessas duas versões, e nosso conhecimento dela revela que tanto a velha ficção como a nova invenção são simplificações fúteis de um estado de coisas bem complexo.

Este, como tudo na realidade cultural humana, não é um esquema lógico coerente, e sim uma mistura um tanto fervilhante de princípios conflitantes. Entre estes, o conflito entre os interesses matrilineares e paternos é provavelmente o mais importante.

...O fato mais importante de nosso ponto de vista nessa luta de princípios

sociais é que ele nos força a reformular completamente a concepção tradicional da lei e da ordem nas comunidades selvagens. Temos que abandonar definitivamente a idéia de uma ‘crosta’ ou ‘cobertura’ inerte e sólida dos costumes imprimindo-se rigidamente de fora para dentro sobre toda a superfície da vida tribal. A lei e a ordem surgem do próprio processo que elas governam. Mas elas não são rígidas, nem são devidas a alguma inércia ou a alguma fôrma permanente. Resultam, ao contrário, de uma constante luta não apenas das paixões humanas contra a lei, mas dos princípios legais uns contra os outros. A luta, contudo, não é uma luta livre: é sujeita a condições definidas, pode ocorrer apenas dentro de certos limites e apenas sob a condição de permanecer longe da publicidade. Uma vez que um desafio aberto tenha sido feito, estabelece-se a precedência da lei estrita sobre o costume legalizado, ou sobre um princípio legal intrusivo, e a hierarquia ortodoxa dos sistemas legais toma conta do assunto.

... .Com isso estamos reivindicando uma nova linha de trabalho de campo

antropológico: o estudo por observação direta das regras do costume tal como elas funcionam na vida real. Este tipo de estudo mostra que os mandamentos da lei e do costume são sempre organicamente conectados e não isolados; que sua natureza constitui-se nos vários tentáculos que lançam no contexto da vida social; que só existem na cadeia de transações sociais da qual são um elo.

21 [N. do T.] Em português o equivalente seria: selvagens sem sem fé, nem lei, nem rei.

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Afirmo que o modo fragmentado em que a maioria dos relatos da vida tribal são formulados é incompatível com o caráter geral da vida humana e com as exigências da organização social. Uma tribo nativa que fosse governada por um código de costumes desconexos e inorgânicos se desfaria em pedaços ante nossos olhos.

Não podemos deixar de desejar o rápido e completo desaparecimento da pesquisa de campo registrada em itens fragmentados de informação, em forma de costumes, crenças e regras de conduta soltos no ar, ou melhor, com uma existência achatada no papel e completamente desprovida de terceira dimensão, isto é, de vida. Com isso, os argumentos teóricos da Antropologia poderão abandonar as longas litanias de afirmações que fazem com que nós antropólogos pareçamos tolos e os selvagens, ridículos. O que tenho em mente são as longas enumerações de afirmações taxativas tais como, por exemplo,

“Entre os Brobdignacianos, quando um homem encontra sua sobra, os dois se insultam e cada um se retira para seu lado com um olho roxo”; “Quando um Brodiague encontra um Urso polar, ele sai correndo e às vezes o urso vai atrás”; “na velha Caledônia, quando um nativo acha acidentalmente uma garrafa de uísque na beira da estrada, ele a bebe de um gole só, e em seguida começa imediatamente a procurar outra”; e assim por diante. (Estou citando de memória, de modo que essas sentenças são aproximadas, mas elas soam plausíveis.)...22.

22 [N.do T.] Foram omitidas as páginas de 126 a 129, encerrando essa seleção com esse exemplo do senso de humor um tanto infame de Malinowski, e da sua técnica polêmica de fazer graça com adversários imaginários.