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Malucos de Estrada: Cultura, Linguagens e Modos de Produção
Antonio Cláudio da Silva Neto1
Resumo: A configuração do movimento de contracultura hippie, no Brasil, associa-se à quebra de paradigmas e referências do seu surgimento, bem como a uma nova e autônoma roupagem identitária destes sujeitos, uma vez que adotaram um modo de vida comunitário, consideram-se transeuntes, e se autodenominam artesãos seminômades na medida em que extraem seu sustento basilar das contribuições pecuniárias oriundas da produção de artesanato. Entre eles, reconhecem-se como “maluco”, “maluco de estrada” ou “maluco de BR” e são responsáveis por movimentar aspectos culturais, sociais e econômicos dos cenários urbanos em que estabelecem ocupações. Neste sentido, o presente artigo preocupa-se com os modos de produção nas dimensões culturais representadas no documentário “Malucos de Estrada – Parte II: Cultura de BR” sob direção de Rafael Lage, em atenção especial aos alicerces que tomam na linguagem artifícios de luta contra as formas hegemônicas de condução dos traços no tripé arte, cultura e sociedade.
Palavras-chave: malucos de estrada; cultura; linguagens; modos de produção.
Introdução
No panorama das manifestações sociais, a terminologia ‘contracultura’
fora convencionada por veículos de comunicação norte-americanos para se
referir a um coletivo de manifestações culturais ascendentes na década de 60
nos Estados Unidos, na Europa e, ainda que com menor intensidade, na América
Latina. De fato, tal expressão se mostra adequada, tendo em vista que um dos
atributos basilares desse fenômeno corresponde a oposição à cultura em
vigência e institucionalizada por instituições das sociedades do Ocidente.
O documentário “Malucos de Estrada Parte II: Cultura de BR” de Rafael
Lage aponta para a configuração deste movimento contracultural no Brasil,
partindo da ideia de que este se relaciona com a quebra de paradigmas e
referências da sua origem. Preocupados com ecologia e o equilíbrio energético
do ecossistema, seus adeptos reutilizam materiais orgânicos e naturais para
criação de artesanato. Estes adotaram um modo de vida comunitário,
1 Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado
da Bahia – UNEB.
consideram-se transeuntes e se autodenominam artesãos nômades, contudo,
entre eles, se comunicam por “maluco”, “maluco de estrada” ou “maluco de BR”.
Neste intento, preocupa-se, metodologicamente, no que concerne à
delimitação do tema, em abordar como se dá o comportamento e os modos de
produção dos sujeitos que se identificam como malucos de estrada. Para tanto,
toma-se como suporte o documentário “Malucos de Estrada Parte II: Cultura de
BR”, na medida em que este se configura como um acontecimento discursivo,
consequentemente, situado no campo da linguagem. Assim, como gesto de
interpretação capaz de gerar significações diferentes, esta análise parte dos
modos de produção dos sentidos em cultura, determinando o lugar de produção
emergente desses sujeitos como artistas e ativistas contraculturais.
1. Modos de Produção dos Sentidos em Cultura
Ao pensar os modos de produção dos sentidos em cultural, deve-se
atentar para o local desta no panorama social. Na educação, na economia, na
arte, os sentidos culturais se estabelecem por meio das relações de produção.
Assim, é fundamental a percepção de onde a cultura é abordada, para onde ela
está sendo direcionada e quais os seus efeitos naquilo a que se propôs.
Destarte, a cultura, intermeada pelos modos de produção, desempenha a
importante função que une e separa as pessoas, por meio de identidades,
políticas públicas ou subjetividades.
Para Terry Eagleton, o conceito de cultura deriva da natureza, uma vez
que a palavra ‘coulter’, cognata de cultura, denota a lâmina do arado, para o
filósofo e crítico literário tal ideia traduz a “palavra que mais utilizamos para
descrever as mais elevadas atividades humanas, do trabalho e da agricultura,
das colheitas e do cultivo” (2000, p. 11). O que se observa na concepção
terminológica de cultura, é o intrínseco movimento dos modos de produção. Além
disso, o autor aponta para a relação tautológica entre cultura e colonialismo,
ligando aos cultos religiosos e a consequente substituição por um evanescente
conceito de divindade e transcendência.
Raymond Williams afirma que “a ‘prática cultural’ e a ‘produção cultural’
não procedem apenas de uma ordem social diversamente construída, mas são
elementos importantes em sua constituição” (2000, p. 12). Isto implica na
compreensão de que a cultura é agente partícipe da construção social, o que
envolve vínculos afetivos, políticos e econômicos, não tendo esta que ser
analisada isoladamente dos demais fenômenos sociais, nem tão pouco deve-se
limitar aos aspectos artísticos. Dessa forma, os sentidos da cultura são
produzidos a partir das constantes modificações sociais, como um sistema de
significações em que hábitos são comunicados, reproduzidos, vivenciados e
estudados por esferas múltiplas e diversas.
Nas lições de Jonathan Culler acerca dos estudos culturais, é também
possível compreender que a cultura tem seu sentido como construtora de modos
de produção. A sustentação de tal argumento revela-se na cultura popular, a
qual, para o citado autor, se molda em recursos culturais a ela contrapostos.
Assim, o resultado desse processo é uma cultura ativista, de luta, “cuja
criatividade consiste em usar os produtos da cultura de massas” (1999, p. 51).
Culler aponta ainda que os estudos culturais movem-se pela tensão entre o
desejo de ressignificar a cultura popular ou empoderar expressões culturais
periféricas.
Ao atentar para a temporalidade, encontra-se nos estudos culturais
importante liame com os sujeitos trazidos à baila. Dessa forma, Culler (1999, p.
49), ao citar a genealogia dos estudos culturais modernos, aponta que esta vem
a priori do estruturalismo francês dos anos 60. Neste sentido, o autor encontra
em Roland Barthes, através da publicação de “Mitologias”, em 1957, a possível
tentativa de desmistificar o que em cultura passa a ser natural e, ainda na análise
de práticas culturais, perceber as convenções subjacentes e suas implicações
sociais. O tempo é o ponto de encontro, já que no mesmo período histórico o
movimento de contracultura hippie entra em ascensão. O que se percebe é uma
onda mundial de movimentos em diversas áreas sociais e do conhecimento
intuídos em contestar a ordem até então estabelecida.
Dessa maneira, importa contextualizar que, à luz das palavras de Carlos
Alberto M. Pereira, os chamados hippies apresentavam desempenho
inteiramente essencial diante do panorama contracultural. “Com seu mundo
psicodélico, seus cabelos agressivamente compridos, suas roupas coloridas e
exóticas, enfim, com seu ar freak (estranho, extravagante)” (1992, p. 76),
bancaram aglomerações nas avenidas norte-americanas, mais especificamente
na Califórnia, nos anos iniciais da década de 1960. Rapidamente, dessa região,
passaram a propagar-se por todo o mundo. Neste sentido, frisa-se por oportuno
que:
As raízes do movimento de contracultura hippie podem ser detectadas desde os anos 40, após o final da II Guerra Mundial, findo um período de 30 anos com duas guerras altamente destrutivas e uma prolongada depressão econômica, começaram a despontar sinais de um forte movimento de contracultura, contestatória do sistema. (FIALHO; DUARTE, 2012, p. 1).
Esse período caracteriza-se por diversas manifestações pacifistas em
desfavor da guerra e por direitos dos cidadãos. Os autores apontam ainda para
o crescimento, nos Estados Unidos, da resignação quanto à finalidade que o
governo dava as pecúnias advindas de impostos, a saber: armas nucleares,
guerra do Vietnã, etc. Constata-se também o aumento da aversão ao serviço
militar, alistamento e embarques para as frentes de combate, chegando-se, até
mesmo, à queima de cartões de recrutamento, numa clara demonstração do
repúdio dos jovens norte-americanos à guerra do Vietnã (PEREIRA, 1992, p. 76).
Importa situar que os primeiros indícios de habitação hippie em território
nacional, de acordo com resultados encontrados pelo pesquisador Getúlio
Cavalcante de Souza em seus estudos sobre a herança da contracultura,
ocorreram ainda no final década de 1960, “quando mochileiros vindos de
Woodstock chegaram a um território pertencente ao município de Camaçari, no
Estado da Bahia, onde hoje se conhece por Arembepe, última aldeia hippie
legítima” (2013, p. 1). O mesmo estudo preocupou-se com a ressignificação
desses sujeitos ao longo do tempo: “sem dúvida, eles mudaram de
configuração”.
2. A Constituição dos Malucos de Estrada no Campo da Linguagem
“Malucos de Estrada” compreende a constituição de sujeitos que assim
se identificam. Essa perspectiva é extraída de suportes que se situam no campo
da linguagem, tal como relatos e imagens em documentários, fotografias e
análises sociais. Essas narrativas tomam como base a própria experiência,
fenômeno apontado por Giorgio Agamben em Infância e História (2005).
Segundo este, se é por meio da linguagem que o sujeito encontra sua origem e
o seu lugar, na linguagem e apenas na linguagem o homem se constitui como
sujeito. E, ainda, é na linguagem que este vai representar suas percepções sobre
o que se é. Nesta perspectiva:
A concepção de cultura como um conjunto de significados partilhados é a origem do raciocínio de Hall (1997) sobre o funcionamento da linguagem como processo de significação. Se a linguagem atribui sentido, conforme lembra o autor, os significados só podem ser partilhados pelo acesso comum à linguagem, que funciona como sistema de representação. Portanto, a representação através da linguagem é central para os processos pelos quais é produzido o significado (SANTI, SANTI, 2008, p. 2).
As observações aqui apresentadas substanciam-se nas narrativas
culturais que compõem o documentário “Malucos de Estrada – Parte II: Cultura
de BR”. Este se propõe a “uma primeira abertura sobre alguns dos conceitos que
norteiam a cultura da malucada” (LAGE, 2015). Com direção de Rafael Lage,
pesquisador e vivente das práticas que circundam o universo dos “malucos de
estrada”, e produção do Coletivo Beleza da Margem, o documentário participa
das ações de enfrentamento intuídas em trazer à baila discussões sociais sobre
a marginalização desses artistas.
As práticas de deslocamento escancaram as cenas iniciais: trilhos,
estradas, avenidas, asfaltos, mochilas, bicicletas e o artesanato. Nesse cenário,
a atenção é voltada para um elemento marcante dentre os característicos dos
“malucos de estrada”, a condição de transeunte – estar de passagem. Não é à
toa que, ao longo do vídeo, as legendas apontam localizações sempre distintas
e distantes, demostrando que os “malucos” percorrem as estradas de todos os
estados brasileiros, mas não sem exceção, já que há quem escolha fixar
residência.
Ora, na medida em que se trata de autorrepresentações por intermédio
de narrativas sobre o que se é, tentar estabelecer um conceito para “malucos de
estrada” seria castrar o objetivo tanto do documentário quanto desta pesquisa,
tendo em vista ainda que a identificação com a expressão “maluco” nasce do
necessário distanciamento de nomenclaturas que não alcançaram as
transformações desses sujeitos. Posto isso, ao considerar a identidade como
“um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de
referência, quadros esses que podem ser imaginários” (1996, p. 70), Félix
Guattari e Suely Rolnik apontam para uma problemática pertinente a esta
discussão:
Me parece que os conceitos de cultura e identidade cultural são profundamente reacionários; a cada vez que os utilizamos, veiculamos, sem perceber, modos de representação da subjetividade que a reificam e com isso não nos permitem dar conta do seu caráter composto, elaborado, fabricado, da mesma forma que qualquer mercadoria no campo dos mercados capitalistas (1996, p. 70).
Aos doze minutos e quarenta e cinco segundos do documentário, o
maluco Lúcio Carranca manuseia seu tablete. “– São duas coisas que eu uso
mais, né? Acho que é o… Fazer uma pesquisa no Google e trocar ideia com os
amigo… São duas coisas...”. O que se percebe aqui é “um completo de
processos e forças de mudança que, por conveniência, pode ser sintetizado sob
o termo globalização” (HALL, 1992, p. 67). Diante dessa observação, chamar a
atenção para a desconfiguração do movimento de contracultura hippie e,
consequentemente, a formação dos sujeitos que o documentário em comento
representa como “malucos de estrada”, é atentar para as transformações
decorrentes da pós-modernidade.
Para Fredric Jameson, na pós-modernidade encontra-se a lógica cultural
do capitalismo tardio. Este percebe a cultura como aspecto influenciador da
economia. Ao abordar uma concepção histórica da pós-modernidade, o autor
assinala a necessidade da crítica cultural no panorama econômico, bem como
“uma cultura política e pedagógica que busque dotar o sujeito individual de um
sentido mais aguçado de seu lugar no sistema global” (1996, p. 78). A crítica de
Jameson diz respeito, sobretudo, às práticas sociais que constituem a cultura
como culto ao capitalismo, assumindo, assim, postura política necessária nesta
discussão.
Com a contribuição de Carlos Eduardo Fialho e Silvia Borges Duarte é
possível compreender que, a partir da configuração do movimento “hippie” no
Brasil, os sujeitos que carregam em si tal expressão cultural formataram uma
subdivisão, “o micróbio é o que mora nas ruas, é desencanado com a aparência
e geralmente consome mais drogas que os demais” (2012, p. 9), o artesão é
aquele que sobrevive da própria atividade artística e, no entanto, está à
disposição familiar, possuindo residência. Sob outra perspectiva, “os “malucos”
são um misto de “micróbio” e artesão: têm casa, vivem da arte, mas de vez em
quando não resistem à boemia; e o BR é o que fica nas estradas pedindo carona
e viajando” (2012, p. 9).
3. Produção Artesanal e Relações Sociais
À medida que se distancia do conceito de hippie, Gaúcho Celular aponta
para mais uma característica dos malucos de estrada afirmando que “eles não
viviam da arte, na verdade… Eu posso dizer que eu vivo da arte. E se... eles não,
eles faziam pra seu uso próprio, eles não precisavam trabalhar pra viver”
(13’40’’), isto é, têm-se os modos de produção artesanal como meio de
subsistência e elemento de resistência, que conserva sua áurea na singularidade
de cada peça. Tal artifício trata-se do “trampo de maluco”, em sua maioria,
oriundo de elementos naturais que ganham um novo significado por meio do
artesanato.
Para Walter Benjamim, “na época das técnicas de reprodução, o que é
atingido na obra de arte é a sua aura. Esse processo tem valor de sintoma, sua
significação vai além do terreno da arte” (2000, p. 14). Ao tratar da obra de arte
na era da sua reprodutibilidade, o autor enaltece as transformações que esta
técnica é capaz de influir nos contextos culturais. No caso em comento, a
produção artesanal é, além de objetos únicos e que por isso conservam sua
aura, campo de resistência e mecanismo de sobrevivência, ultrapassando o
“terreno da arte”.
As narrativas documentadas costuram significados próprios a termos
cotidianos na vivência desses artesãos – “trampo de maluco”, “pano”, “asa”,
“mangueio”. A “asa”, estrutura artesanal confeccionada em cano PVC e tecido,
é utilizada para expor os “trampos”, tanto em movimento quanto no “pano” do
“maluco”, condição de exposição na ocupação de determinado espaço urbano:
o chão de um praça, calçada ou qualquer lugar público. Nesse contexto, o
“mangueio” é o oferecer, chamar a atenção para o objeto artístico que é colocado
em negociação, bem como a possibilidade de convencimento – a potência da
linguagem em favor da própria representação cultural.
As narrativas pessoais sobre as circunstâncias que levaram esses
sujeitos a adotar os modos de vida aqui representados revelam uma pretensa
fuga ao que eles chamaram de “sociedade normal”. Distante de uma posição
unânime, o que se percebe é uma semelhança com os ideais de insatisfação
que levaram os hippies à realização de protestos pacifistas no período de sua
ascensão. “– A minha família é uma família estável, tal. Minha mãe sempre
sonhou que eu fizesse faculdade, virasse executiva... aquela história, né, de
sociedade normal” (06’50’’).
Nesse aspecto, a aporia está na impossibilidade de figurar fora da
sociedade civil, apontada por Norberto Bobbio (1987, p. 35) como difícil de
definir, por se tratar de fazer um repertório de tudo aquilo que foi
desordenadamente empregado pela exigência de circunscrever o âmbito do
Estado. Destarte, a própria subsistência desses indivíduos está subordinada ao
consumo das peças artesanais que estes confeccionam, processo que figura no
modo de produção, isto é, na maneira como se organizam as atividades
econômicas.
Conscientes do contexto econômico no qual estão inseridos, os malucos
de estrada revelam em seus relatos, a insatisfação com o sistema capitalista
atual ao afirmar que “Quem não se movimenta não sente as cadeias que o
prendem. Então, o pessoal que tá ali naquele sistema regrado, passa a vida toda
ali e não sente que é oprimido, sabe, pelo sistema” (43’44’’). Paul Singer cita que
esta economia “se tornou dominante há tanto tempo que tendemos a tomá-lo
como normal ou natural” (2002, p. 7). O autor atenta aos perigos da competição
no sistema capitalista, na medida em que este tem implicado em altos índices de
desigualdade. Nesse contexto de modelagem econômica, Singer alerta que a
mesma não é natural, ao passo em que propõe uma economia fundada na
propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual.
A resistência desses sujeitos ao modelo de economia capitalista é, sem
dúvida, um ato de resistência. Ainda que, como demonstrado, dependem do
mesmo, a estratégia da apropriação do artesanato como produto capaz de gerar
reflexão, por exemplo, sobre sustentabilidade, é um ato revolucionário. Nesse
sentido, Boaventura de Souza Santos aponta que “os vários séculos de
predomínio do capitalismo não conseguiram diminuir a indignação e a resistência
efetiva aos valores e as práticas que constituem o núcleo central do capitalismo”
(2005, p. 23). Tal argumento reafirma a ideia de que o tempo de exercício do
capitalismo não o torna o regime econômico de comum acordo a todos.
Implica salientar ainda que os malucos de estrada têm resistido a uma
série de ataques institucionalizados no intuito de defender seus modos de
produção. Isto se deve a um histórico de repressão das autoridades pública
contra as suas atividades, postura esta contraposta por práticas de resistência.
Tais reivindicações têm como argumento o fato de estarem habilitados como
atores de uma expressão cultural nacional e, por este motivo, pretendem ter seus
direitos reconhecidos. Uma pequena amostra das lutas cotidianas contra os
abusos estatais finda o documentário, validando-o como uma possível porta de
entrada para uma nova produção.
Um fiscal do município de Campo Formoso/MS, enquanto apreende os
instrumentos de produção dos malucos de estrada, anuncia que estes “têm de
ver uma maneira de vocês trabalhar em outro local, porque ali essa guerra não
vai parar” (60’30’’). Constitucionalmente, a liberdade de expressão artística é
protegida no artigo 5º, inciso IX. Já a repressão artística institucionalizada, é a
instalação de um estado de exceção que, para Giorgio Agamben, trata-se da
suspensão de uma ordem jurídica vigente para a formulação, na maioria das
vezes autoritária, de uma nova ordem jurídica e política (2004, p. 12).
A escolha de Giorgio Agamben por “estado de exceção” “implica uma
tomada de posição quanto à natureza do fenômeno que se propõe a estudar e
quanto à lógica mais adequada à sua compreensão” (2004, p. 15). As
justificativas de implementação do estado de sítio teorizadas por este autor
voltam-se quase sempre para casos de perigo iminente a segurança externa ou
interna. Não diferente acontece com os malucos de estrada, uma vez que as
razões em questão, em sua maioria sem fundamentos, apontam para a
segurança da ordem pública.
Considerações
Cultura e sociedade, em discussões intrínsecas, permitem abordagens
que salientam “tanto a diversidade das relações sociais quanto a multiplicidade
de significados dos códigos culturais, numa perspectiva dinâmica e
historicamente construída pelos sujeitos sociais” (SOUSA, 2013, p. 1). Assim, as
condições de modos de produção apresentadas em um espaço social e as
práticas que compõem um diário envolvido na construção de uma subjetividade,
que é coletiva, definem o quadro de um território social.
Desse modo, sem a intenção de esgotar os debates relacionados aos
malucos de estrada, o que se tem como conclusão jamais poderá findar as
proposituras das práticas de resistência e deslocamento que acompanham as
transformações do espaço e do tempo, bem como suas influências no contexto
dos modos de produção dos malucos de estrada. Além disso, o atraente no
movimento do que é social, é não permanecer intacto. Por tais motivos, o
documentário “Malucos de Estrada” envolve uma pesquisa fluida, na qual a
práxis de um sujeito se posiciona diante do seu universo para se representar
através do outro, que por sua vez, precisou tomar distância de imposições
conceituais para compreender a legitimidade do seu hibridismo cultural.
Por fim, Boaventura de Souza Santos (2005, p. 26) traz a necessidade da
análise crítica dos modos de produção em movimentos periféricos, uma vez que
esta possibilitará pensar alternativas capazes de fortalecer os meios de consumo
e circulação. Assim, ao se garantir e estabelecer de maneira contra hegemônica,
combatendo à crise do sistema normativo liberal-formalista e de propugnação de
mutações nos padrões científicos, ascende-se novas possibilidades, na acepção
de se pensar em alternativas para proporcionar igualdade e liberdade nos
processos de produção marginalizados, de cidadania com justiça social e de
participação democrática dos malucos de estrada.
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