Manifesto Comunista Ontem & Hoje (Org. Osvaldo Coggiola)

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lvaro Bianchi Amarlio Ferreira Jr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira Elias Thom Saliba Giulio Pietranera Fbio Faversani Jorge Grespan Lincoln Secco Marisa Bittar Miguel Urbano Rodrigues Modesto Florenzano Norberto Guarinello Pablo Rieznik Paula Beiguelman Pedro Paulo Funari

Organizao: Osvaldo Coggiola

MANIFESTO COMUNISTA ONTEM & HOJETrabalhos apresentados durante as comemoraes dos 150 anos do Manifesto Comunista Departamento de Histria FFLCH USP 1 a edio 1999

SUMRIO Apresentao, 2 Osvaldo Coggiola Anotaes sobre a Europa em 1848, 3 Modesto Florenzano A revoluo fora do tempo Marx, Engels em 1848, 9 lvaro Bianchi O espectro do comunismo, 19 Giulio Pietranera O Manifesto em 1848 e hoje, 24 Paula Beiguelman O Manifesto Comunista e o mundo de hoje, 26 Miguel Urbano Rodrigues O Manifesto Comunista: um panfleto atual, 29 Marisa Bittare Amarlio Ferreira Jnior O Manifesto Comunista: mtodo do programa e programa do mtodo, 32 Jorge Grespan O Manifesto Comunista e o proletariado no sculo XIX, 36 Lincoln Secco A ditadura do proletariado como um ato de sensatez (e uma referncia ao amor), 40 Pablo Rieznik Humor romntico e utopias: reflexes sobre alguns registros cmicos na poca do Manifesto Comunista (1814-1857), 48 Elias Thom Saliba O Manifesto Comunista e a Antigidade Clssica, 53 Norberto Luiz Guarinello O Manifesto Comunista e a crtica da razo sistmica, 60 Osvaldo Coggiola A Antigidade, o Manifesto e a historiografia crtica sobre o mundo antigo, 75 Pedro Paulo Funari O Manifesto e o classicismo, 79 Fbio Faversani Os 150 anos do Manifesto e a luta pela terra no Brasil, 83 Ariovaldo Umbelino de Oliveira

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APRESENTAOEm 1998, cumpriram-se 150 anos da primeira edio do Manifesto Comunista. Dois marcos fundamentais, estreitamente interligados, da histria geral e da histria das idias contemporneas, estavam em pauta: as revolues de 1848 e a publicao da primeira obra de referncia da corrente poltico-ideolgica mais influente da contemporaneidade, o marxismo. A data, portanto, era um convite, no s para a reflexo acadmica, mas tambm para a reafirmao (e atualizao) de princpios, por parte dos militantes de esquerda e do movimento dos trabalhadores em geral. Atravs da histria e do balano do Manifesto, a prpria histria do sculo e meio mais convulsionado da histria da humanidade o que est em discusso. E, bem alm disso, tambm a questo da validade do mtodo materialista e dialtico (o materialismo histrico) para a anlise da realidade histrica e social. Uma comisso nacional foi constituda, ento, para organizar e tentar centralizar, na medida do possvel, as inmeras iniciativas que, no Brasil todo, nos sindicatos, universidades, associaes de bairro e comunitrias, assentamentos agrrios, se dispunham a comemorar a data. A comisso ficou composta por universitrios e intelectuais, sindicalistas e militantes, estudantes e trabalhadores, e vinculou-se internacionalmente ao coletivo Espaos Marx que programou (e realizou) um encontro mundial sobre o Manifesto, em Paris, durante a segunda semana do ms de maio. A comisso recusou a diviso entre reflexo acadmica ou intelectual, e militante ou poltica. Por isso, em So Paulo, programou uma srie de eventos que se desenvolveram na CUT, na USP, na Unicamp, na Unesp, na PUC/SP, em associaes comunitrias, enfim, suscitando a participao do maior nmero de pessoas, independentemente de sua titulao acadmica ou poltica. O conjunto das atividades culminaram numa grande jornada poltico-acadmica e cultural, realizada no Tuca, em 2 de maio, depois das comemoraes do 1o de maio. Coube-me exercer diversas responsabilidades dentro da comisso, entre elas a de coordenar as atividades realizadas na Universidade de So Paulo. O volume que agora apresentamos ao leitor rene, justamente, os principais trabalhos que foram apresentados nas trs jornadas realizadas na USP, nos Departamentos de Histria e Geografia e na Faculdade de Educao, de 28 a 30 de abril. Algumas palavras sobre os autores. Modesto Florenzano professor de Histria Moderna na FFLCH-USP, autor de As revolues burguesas e doutorado em Histria pela USP. lvaro Bianchi ps-graduando em Cincias Sociais na Unicamp, membro do Instituto de Estudos Socialistas. Giulio Pietranera foi um terico marxista independente, italiano, j falecido, que redigiu o texto aqui reproduzido (e indito) por ocasio do centenrio do Manifesto, em 1948. Paula Beiguelman, historiadora bem conhecida, autora de Os companheiros de So Paulo, professora aposentada da FFLCH-USP. Miguel Urbano Rodrigues um dirigente histrico do Partido Comunista Portugus, por longos anos exilado no Brasil, onde editava o jornal Portugal Democrtico. Marisa Bittar e Amarlio Ferreira Jr. so professores de Histria na UFSCar (Universidade Federal de So Carlos), com longa experincia no movimento sindical docente. Jorge Grespan professor de Histria da Amrica na FFLCH-USP, com doutorado no Instituto de Economia da Unicamp e ps-doutorado na Alemanha. Lincoln Secco mestre em Histria pela USP e membro do corpo editorial da revista Praxis. Pablo Rieznik dirigente do Partido Obrero da Argentina e professor de Economia na Universidade de Buenos Aires. Elias Thom Saliba, autor de As utopias romnticas, professor de Teoria e Metodologia da Histria na FFLCH-USP. Norberto Guarinello professor de Histria Antiga na FFLCH-USP, autor de livros didticos e membro do Conselho Editorial da Revista da Adusp. Pedro Paulo de Abreu Funari professor de Histria da Antigidade no IFCH da Unicamp, com doutorado em Histria pela USP. Fbio Fauersani posgraduando em Histria pela USP e professor no Departamento de Histria da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto). Ariovaldo Umbelino de Oliveira, conhecido especialista na questo agrria, com diversos livros publicados (4 geografia das lutas do campo no Brasil, entre outros) professor de Geografia na FFLCH-USP. A leitura do conjunto dos trabalhos evidencia que em momento algum tratou-se de uma comemorao retrica, ou de uma reflexo puramente acadmica, mas de um momento reflexivo dentro de uma luta mais que secular. Osvaldo Coggiola Professor livre-docente do Departamento de Histria da FFLCH da Universidade de So Paulo. Membro do corpo editorial da revista internacional Em defensa del marxismo (publicada na Argentina).

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ANOTAES SOBRE A EUROPA EM 1848 Modesto Florenzano um lugar comum dizer que se as idias no movem o mundo o mundo no se move sem idias. E a Europa nunca foi to povoada de idias visando mover o mundo como na dcada de 1840. No so poucos os historiadores, das mais diferentes concepes, que chamaram a ateno para esse fato. Para Namier, que era um conservador, a revoluo de 1848 foi precedida por um perodo de florescimento intelectual como a Europa nunca conhecera antes nem conheceria depois; para Godechot, que era um liberal-democrata, entre 1815 e 1848, nunca se tinha visto e nunca se veria a seguir um to vivo florescimento de teorias polticas; e para Hobsbawm, que um marxista-comunista, em 1848, havia trs modelos de revoluo em circulao ao mesmo tempo: o liberal moderado, o democrata radical e o socialista.1 Lembremos, nesse sentido, que, entre as dcadas de 1830 e 1840, Comte, Tocqueville e Marx/Engels j tinham elaborado e formulado suas respectivas filosofias da Histria, constituindo, cada uma delas, como todos sabem, as mais elevadas e influentes teorias sociais deixadas pelo sculo XIX. Ora, essas teorias expressavam o que H. Arendt definiu com perspiccia, mas de maneira negativa e algo exagerada, como a tremenda mudana intelectual que ocorreu em meados do sculo XIX (que) consistiu na recusa de encarar qualquer coisa como e na tentativa de interpretar tudo como simples estgio de algum desenvolvimento ulterior.2 Embora as influncias desses pensadores, sobretudo de Marx e Engels, s se fizessem sentir depois de 1848, a maneira como todos eles interpretaram o papel e a importncia da Histria no poderia expressar melhor a atmosfera intelectual reinante, na Europa, naquele momento. Num lcido comentrio ao Manifesto Comunista, por ocasio do seu centenrio, o historiador Carr, assinala que o famoso panfleto apresenta a metodologia marxista em sua forma completamente desenvolvida: uma interpretao da Histria que , ao mesmo tempo, um chamado ao. E embora outros escritos anteriores e posteriores ao Manifesto, prossegue Carr, parecem insistir nas leis frreas do desenvolvimento histrico, que deixariam pouca margem iniciativa da vontade humana... no alteram a dupla ortodoxia estabelecida no Manifesto Comunista, onde interpretao e ao, predestinao e livre-arbtrio, teoria revolucionria e prtica revolucionria marcham triunfalmente de mos dadas.3 Talvez, no constitua um exagero afirmar que todo o acirrado e rico debate, conhecido como Zusammenbruchstheorie, que se desenvolveu no final do sculo passado e incio deste, no interior do marxismo, sobre a existncia ou no existncia, em O Capital de Marx, de uma teoria do colapso do capitalismo, teve como fundamento precisamente a tenso, e o enigma, entre determinao e liberdade.4 Assim, e voltando a 1848, quando Joseph Proudhon, o fundador do socialismo anarco-sindicalista, escreveu, nas Confisses de um revolucionrio, publicadas em 1849, que o governo provisrio, na Frana, criado pelas jornadas de fevereiro, era um governo sem idias e sem escopo, no estava apenas formulando mais um paradoxo, ele que uma vez chamou a si mesmo de um homem de paradoxos5. Estava, talvez, lamentando no a ausncia de idias, mas o seu excesso (e, naturalmente, a ausncia das idias dele, Proudhon). Na verdade, havia, entre os contemporneos de 1848, tanto por parte dos que queriam (um)a revoluo, quanto dos que a ela se opunham, uma aguda percepo sobre o poder transformador e subversivo das idias, j que todos se lembravam dos precedentes revolucionrios de 1789, de 1792-3 e de 1830. A ao das sociedades secretas, como a dos carbonrios, e o livro de Filippo Buonarroti, A conspirao dos iguais de Graco Babeuf, editado em Bruxelas, em 1828, vieram enriquecer o acervo em matria de revoluo; como se sabe, quando os eventos se materializam, chegam prtica porque antes aconteceram nas mentes. Ningum se expressou melhor sobre isso do que os alemes, dos dois lados da barricada, isto , dos que queriam levar a teoria prtica e dos que queriam impedir que isso ocorresse. No vou lembrar aqui, de Marx e Engels (cujas brilhantes formulaes nesse sentido so conhecidas de todos), mas do rei Guilherme, do pequeno Estado alemo de Wrtemberg, da sua formulao, lapidar, verbalizada a um diplomata, em 9 de maio de 1848, No posso montar a cavalo contra as idias.6 Assim, tanto quanto a presena das muitas idias e dos vrios programas revolucionrios, o que ainda distingue 1848 que, de ambos os lados da barricada, eram muitos os que sabiam que a revoluo estava a caminho. Por isso, tanto Namier, quanto Hobsbawam, comeam e terminam suas interpretaes sobre 1848, com citaes dos contemporneos para enfatizar a conscincia que estes tinham da iminncia da revoluo. Para Namier, a revoluo de 1848 era universalmente esperada, e foi supranacional como nenhuma outra antes ou depois de ento, e, para Hobsbawm, raras vezes a revoluo foi prevista com tamanha certeza, embora no fosse prevista em relao aos pases certos ou s datas certas.7 Assim, quando Tocqueville advertiu no proftico, e muito citado, discurso Cmara dos Deputados, de 27 de janeiro de 1848, sobre a iminncia da revoluo (No ouvis ento... que direi?... Um vento de revolues que paira no ar? Esse vento, no se sabe onde nasce, de onde vem, nem, acreditai, o que carrega...8), ele j havia sido precedido por outros. A comear por Vitor Hugo que, ainda em 1831, escrevia que ouvia por toda parte o barulho surdo que fazem as revolues, ainda encravadas nas entranhas da terra, estendendo sob todos os reinos da Europa suas galerias subterrneas, ramificaes da grande revoluo central cuja cratera Paris. E por Metternich que, em 1832, escrevia: Existe apenas um assunto srio na Europa de 1832, a revoluo (...) a revoluo social (que) ataca os alicerces da sociedade. Ningum percebeu com mais profundidade do que o ministro prussiano, o conde von Galen, que a crise econmica geral, iniciada em 1848, e que iria se agravar o ano seguinte, havia tornado a revoluo impossvel de ser detida. Escrevia o ministro prussiano, em 1847, o ano velho se encerrou em meio carestia, o novo se abre em meio fome. A misria espiritual e fsica percorre a Europa em formas espantosas: uma sem Deus, a outra sem o po. Ai se elas se do as

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mos. E foi, precisamente, o que aconteceu. Nas palavras do historiador Taylor: Os idelogos tinham apelado s massas por 60 anos; em 1848 as massas finalmente responderam ao seu chamado.9 Todos os historiadores esto de acordo em considerar que a revoluo de 1848 foi o resultado da fuso de duas crises: uma crise poltica e uma crise econmica. No tenho espao aqui para tratar desta ltima, lembro apenas que o historiador Labrousse demonstrou, por ocasio do centenrio de 1848 e, salvo engano, foi o primeiro a faz-lo,10 que, entre 1846-1848, a Frana (e o mesmo, mutatis mutandis, vale para boa parte da Europa) passou, simultaneamente, pela ltima crise, aguda, de tipo antigo regime (isto , por uma grave escassez de gneros alimentcios bsicos e que, a partir da agricultura, afetou tambm a indstria txtil e o comrcio a ela vinculados) e pela primeira crise, igualmente aguda, de tipo novo (isto , capitalista, de superproduo, com escassez financeira e paralisao da indstria metalrgica e ferroviria). Se cada uma das duas crises j era suficiente para provocar fome e desemprego e, em conseqncia, agitao social e revolta, as duas somadas, ao deixarem milhes de famintos e desempregados, agravaram a crise social j em curso por causa da industrializao, e em conseqncia, abriram o caminho revoluo. Mas, como notou Labrousse, no texto j citado, embora existam crises econmicas decenais, no h revolues decenais. Tanto verdade que, os dois pases mais industrializados da Europa, a Inglaterra e a Blgica, estiveram entre os mais afetados pela crise, mas escaparam da revoluo. Assim, o curso da crise econmica determina o momento da ecloso da revoluo, mas esta s ocorre onde a crise econmica cruza-se, e funde-se, com uma crise poltica que a antecede. No que na Blgica e na Inglaterra no tenha havido problemas e agitaes polticas em 1848, mas, em ambas, no havia mais, por parte das classes proprietrias, questionamento s instituies polticas bsicas, isto , monarquia e ao parlamento. Por isso, em 1848, na Blgica, bastou ampliar um pouco mais o nmero de eleitores para colocar todos os proprietrios do lado do governo. E na Inglaterra, o governo no sofreu nenhum abalo, apesar do problema irlands; apesar da intensa agitao promovida pela Anti-corn-law League; e, sobretudo, apesar do cartismo. Este ltimo, expressava a questo operria, que se havia tomado aguda precisamente nos 10 anos que antecederam 1848. Os cartistas desenvolveram, a partir de 1838, uma intensa campanha de mobilizao e de agitao, para angariar assinaturas e forar o Parlamento a aprovar seu programa democrtico de seis pontos, a Carta ao Povo, visto como condio indispensvel para dar a todos os trabalhadores a possibilidade de obter sua emancipao poltica e econmica. O ltimo esforo dos cartistas, a realizao de uma manifestao monstro em 10 de abril de 1848, terminou em fracasso. Sobre esse acontecimento, vejamos o testemunho de Fulk-Greville que, em seu dirio do dia anterior, escrevia: Londres inteira est preparada para responder a um levante dos cartistas amanh: o qual ser ou muito sublime ou muito ridculo. Todos os empregados e demais pessoas que se encontram nos diferentes escritrios devem, por ordem do governo, prestar juramento como guardas especiais e formar guarnies (...) Amanh passaremos todo o dia no escritrio, e eu mandarei todos os meus fuzis; em suma, estamos em estado de guerra (...) em Londres, todo gentleman tomou-se um guarda... No dia seguinte comenta: A anunciada tragdia transformou-se rapidamente em uma leve farsa. Mas prevalece a satisfao: todos se alegram pelo fato da demonstrao defensiva ter sido feita, por que proporcionou uma grande e memorvel lio, que no ser esquecida (...) e produzir um grande efeito em todos os pases estrangeiros, mostrando como so slidos os fundamentos sobre os quais nos apoiamos. Mostramos uma grande resoluo e uma grande fora... E, Cantimori, o historiador italiano do qual extramos essa citao, acrescenta: conhecido como os reacionrios, os conservadores e os moderados franceses aprenderam a lio inglesa.11 Na verdade, o que aconteceu na Blgica e na Inglaterra foi que 1848 havia sido decidido em 1831 e 1832. A constituio belga de 1831 reunia tudo o que liberais e burgueses poderiam querer como forma ideal de governo: uma monarquia constitucional, rigidamente limitada, que estabelecia o claro reconhecimento da soberania do povo, um legislativo bicameral (onde as cmaras eram inteiramente eleitas pelo povo), um poder judicirio (completamente independente), um clero pago pelo Estado (mas dele independente), e uma declarao de direitos dos cidados solidamente baseada nos princpios de 1776 e 1789 (e sob muitos aspectos mais avanada do que estes 12). No admira, assim, que, em 1848, a constituio belga tenha exercido uma considervel influncia na Alemanha, Itlia, Escandinvia e outros pases. Quanto Inglaterra, o Ato de Reforma, aprovado em 1832, ao aumentar em 50% o nmero de eleitores (e deve ser dito que mesmo antes da reforma o nmero de votantes na Inglaterra, era o maior da Europa, superior quele estabelecido pela constituio sueca de 1809, espanhola de 1812, norueguesa de 1814, holandesa de 1815, francesa de 1830 e belga de 1831) e ao reformar as circunscries eleitorais com base na populao, abriu caminho legal para a classe mdia, a burguesia empresarial, finalmente, poder ser maioria no Parlamento. A reforma de 1832, eliminava qualquer possibilidade de conflito srio entre o capital agrrio e o industrial e de uma eventual aliana entre este e a classe operria. O historiador Rude colocou em dvida que a Inglaterra tenha estado perto, ou na iminncia, de uma revoluo no s em 1848, como at mesmo em 1830-32, como chegaram a acreditar muitos historiadores. Afirmou Rude, com razo, que no houve revoluo em 1832 no apenas por que os tories ou os lordes cederam s ameaas dos whigs ou dos radicais, como tambm por que ningum importante queria uma revoluo e por que aquela combinao de fatores polticos e materiais, a nica a poder fazer a revoluo possvel, estava conspicuamente ausente.13 Com efeito, examinando-se todas as grandes revolues do Ocidente, da inglesa de 1640 russa de 1917, verifica-se que, em todas elas, ocorreu, previamente, entre outras coisas, uma alienao dos intelectuais com relao ao Estado e uma fratura e uma crise moral no interior das classes ou fraes de classes dominantes. Ora, nenhuma dessas duas condies existia na Inglaterra e na Blgica em 1848, bem como tambm no existia (ou porque tinha acabado de ser

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superada, ou porque estava em refluxo, ou, ainda, porque no havia emergido) na Sua, na Polnia, na Pennsula Ibrica, na Escandinvia e na Rssia (da porque em nenhuma dessas regies houve revoluo). Mas, a alienao dos intelectuais, a fratura e a crise moral no interior das classes dominantes existia na Frana. E existia tambm, agravada ainda pelo problema nacional, em todo o vasto territrio formado pelos 39 Estados alemes, pelos sete Estados italianos e, sobretudo, pelo Imprio Habsburgo. Em outras palavras, e para retomar a formulao de Rude, nesses pases, ao contrrio do que ocorria na Inglaterra, eram numerosas as pessoas importantes que queriam uma revoluo. Comecemos pela Frana. Na Frana, a Revoluo de 1830, fora uma revoluo pela metade, na feliz formulao de Vitor Hugo. Como bem lembrou o historiador Droz, os franceses tinham sonhado com um soberano que os levaria ao sufrgio universal e com uma monarquia que seria, segundo a famosa frase, a melhor das repblicas; mas confrontaram-se com um rei que se ops a toda emancipao poltica e que se negou a reconhecer outra coisa que no fosse o pas legal, desprezando o pas real.14 oposio que reclamava a reforma eleitoral e parlamentar, Guizot, ministro e idelogo do regime, obcecado com sua poltica do juste milieu, respondia enrichessez-vous. Na verdade, mais do que o rei, foram, por um lado, e sobretudo, a grande burguesia orleanista, e os seus grandes porta-vozes e lderes, a comear por Guizot, e, por outro, e em menor escala, a nobreza legitimista, os responsveis pelo fracasso do regime criado em 1830. A nobreza legitimista porque nunca aceitou a nova dinastia, e depois de abandonar, em um primeiro momento, Paris e a poltica, refugiando-se em suas terras e reaproximando-se dos camponeses, quando, em um segundo momento, retornou capital e poltica, ficou na oposio e, no fim, chegou at mesmo a votar com os republicanos contra o governo. E a burguesia orleanista porque, com seu exclusivismo, isolou-se perigosamente no poder. Nas Lembranas de 1848, Tocqueville assim interpretou esse comportamento: todos os poderes polticos, todas as franquias, as prerrogativas, o governo inteiro, encontraram-se encerrados e como que amontoados nos limites estreitos da burguesia, com a excluso (de direito) de tudo o que estava abaixo dela e (de fato) de tudo o que estivera acima. Assim, a burguesia no s se tornou a nica dirigente da sociedade, mas tambm converteu-se em sua arrendatria.15 Se, como bem viu Tocqueville, levarmos em conta os que estavam acima da burguesia, isto , os legitimistas, dir-seia que, na vspera de 1848, a luta de classes que conflagrava a sociedade francesa era quadrangular, e no apenas triangular, entre duas burguesias e as massas, como propuseram os historiadores Labrousse e Droz. conhecida a opinio de Engels, segundo a qual, os romances de Balzac explicam a sociedade francesa de classes, de meados do sculo XIX, melhor do que os livros de Histria. Se a opinio de Engels (que era tambm a de Marx) mais do que justa, cabe acrescentar que nenhum livro de Histria permite compreender melhor o comportamento e a mentalidade da nobreza legitimista e da burguesia orleanista, durante a Monarquia de Julho, do que o romance Lucien Lewen de Stendhal, e o de todas as fraes da burguesia, em 1848, do que a Educao sentimental de Flaubert. Em 1830, Tocqueville, em oposio a seus pais e amigos, todos legitimistas, tinha jurado fidelidade nova dinastia porque, como Guizot e tantos outros liberais, estava convencido que, com o novo regime, o drama iniciado em 1789, tinha, finalmente, acabado. Mas, em algum momento dos anos 1840, deu-se conta de que, como afirma nas Lembranas, tinha confundido o fim de um ato com o fim da pea, ou seja, que a Revoluo Francesa no tinha acabado ainda. Novamente, ele no foi o nico, pois, em 1840, o historiador republicano Edgar Quinet advertia: A burguesia acusou a antiga realeza de ter oposto uma resistncia implacvel ao esprito de seu tempo, e de ter acumulado por isso uma revoluo igualmente implacvel. Que ela se cuide para no cair no mesmo erro....16 Mas, Guizot, ao contrrio de Quinet e Tocqueville, ficou at o fim, isto , at 1848, convencido que o 1830 francs era o perfeito equivalente do 1688 ingls. Como Hegel, tambm Guizot, acreditava no fim da Histria. Por isso, depois de 1830, ele e o liberalismo burgus francs como um todo que havia sido to criativo e rico, durante a Restaurao, no nos esqueamos o quanto o conceito de luta de classes de Marx, como ele prprio reconheceu, devia queles pensadores no tinha mais nada a dizer e face revoluo de 1848 e suas lutas de classes, ficou completamente traumatizado. Em 1853, o historiador liberal Augustin Thierry, assim revelava sua perplexidade: Quando eclodiu sobre ns a catstrofe de 1848, eu senti o golpe de duas maneiras, como cidado e como historiador. Por esta nova Revoluo, a histria da Frana parecia-me to subvertida quanto a prpria Frana.17 Passemos agora, rapidamente, revoluo de 1848 na Itlia, Alemanha e Imprio Austraco, a qual parecia apenas aguardar o sinal vindo de Paris, para comear. As nossas revolues, como as nossas modas, temos que receb-las de Paris, escrevia em 1849, F. D. Bassermann, um dos lderes dos liberais moderados no Parlamento de Frankfurt.18 Em 1848, como lembrou de maneira espirituosa Taylor, foi a ltima vez que a Frana espirrou e o resto da Europa apanhou um resfriado.19 Contudo, deve ser lembrado que a revoluo antes de explodir em Paris, em 24 de fevereiro de 1848, tinha j explodido em Palermo, na Siclia, um ms e meio antes. Deve-se olhar com muita ateno para a conjuntura histrica existente na Itlia a partir de 1846, pois ela permite corrigir a tendncia, herdada dos prprios contemporneos, a superdimensionar o papel desempenhado pela Frana na Revoluo de 1848. Como muito bem notou Godechot: no se pode afirmar que sem a revoluo parisiense funcionando como detonador ela no teria, apesar de tudo, posto fogo na Europa.20 E de acordo com o historiador italiano Candeloro, a onda revolucionria de 1848 teve precisamente na Itlia um dos seus principais centros de irradiao: das agitaes e das reformas de 1846-47 saiu com efeito a revoluo de Palermo de 12 de janeiro de 1848 e, conseqentemente, a concesso de Estatutos (Constituies) em Npoles, em Florena, em Turim e em Roma. O movimento italiano tinha j chegado espontaneamente a um ponto muito avanado quando recebeu um novo e

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poderoso impulso da revoluo parisiense de fevereiro de 1848 e da conseqente revoluo de maro em Viena. Por isso pode-se at mesmo afirmar que o rpido e aberto desenvolvimento do movimento liberal e nacional na Itlia nos 20 meses compreendidos entre a eleio de Pio IX e a revoluo parisiense exerceu um notvel influncia sobre a situao europia.21 Seja como for, decorridas poucas semanas das jornadas de fevereiro, a revoluo explode em Berlim e em Viena, entre 11 e 18 de maro. Para Taylor, a revoluo de Viena foi o evento central de 1848, to significativo quanto a Queda da Bastilha, em 1789 (...) ambas simbolizavam a velha ordem e caram com ela. A autoridade monrquica sobre os sditos perdeu sua sano divina em 14 de julho de 1789; o direito dinstico sobre os povos perdeu sua susteno em 13 de maro de 1848. Os direitos do homem triunfaram nas ruas de Paris; os direitos das naes nas ruas de Viena. Era o fim do governo baseado na tradio. Daqui para a frente os povos poderiam ser governados somente pelo consentimento ou pela fora.22 Mas, o curso da Histria, como se sabe, no linear, entre os momentos de nascimento do novo e da morte do velho e seus, respectivos, triunfos e retiradas do cenrio histrico, o tempo se arrasta e os princpios e as instituies representativas do que arcaico e do que moderno combinam-se de maneira singular, dando lugar a formas compsitas e bizarras. Os princpios e a realidade histrica decorrentes tanto da Revoluo Francesa de 1789, quanto da Revoluo Industrial inglesa, tinham dado um golpe de morte, no antigo regime e em tudo o que o caracterizava, absolutismo poltico, sociedade hierrquica e aristocrtica, relaes ainda feudais no campo, etc. Ora, o que era a ustria de Metternich, entre 1815-1848, seno a encarnao viva, a defensora intransigente, de tudo isso? Os muitos milhes de europeus, de todas as condies e nacionalidades, que viviam sob o domnio do Imprio Habsburgo que anelavam por liberdade, quer fosse somente a liberdade poltica, ou a econmica, ou a social, ou a nacional, ou todas elas juntas, sentiam-se tolhidos, reprimidos e sufocados pela burocracia, pela polcia, pela espionagem e pela censura onipresentes. Por isso, a ustria, juntamente com a Rssia, era o objeto de todos os descontentamentos e de todos os dios. E no entanto, no que, uma vez passada a tempestade revolucionria, o Imprio Habsburgo sobreviveu at a Primeira Guerra Mundial? Pode-se dizer que o fracasso da revoluo de 1848, na Itlia, na Alemanha e no Imprio Habsburgo, deveu-se, fundamentalmente, a trs fatores: a) ao medo que a burguesia tinha da revoluo social, ou democrtica; b) aos vrios e conflitantes nacionalismos e c) habilidade do Imprio Habsburgo em se reformar e lidar com os problemas. No vou aqui tratar do primeiro fator, que me parece bastante conhecido. Lembro apenas que, Camilo Benso di Cavour, o futuro arquiteto da unificao italiana, anteviu, com profundidade, o que iria acontecer, com as vrias burguesias, uma vez iniciada a revoluo. Ainda em 1846, afirmava, profeticamente: Se a ordem social chegar a ser genuinamente ameaada, se os grandes princpios sobre os quais ela repousa vierem a estar diante de um srio risco, ento muitos dos mais decididos oposicionistas, os mais entusisticos republicanos, sero, temos certeza, os primeiros a aliaremse aos flancos do partido conservador. Depois, em 1853, Giuseppe Ferrari, assim se exprimia sobre a situao contraditria vivida pelos burgueses na Itlia (e, tambm na Alemanha e ustria), em 1848: Na Frana pedia-se a revoluo do pobre, na Itlia no tinha ainda chegado a revoluo do rico.23 Nesse sentido, a revoluo de 1848, na Itlia, na Alemanha e no Imprio Austraco foi exemplar; da seu carter confuso, seu curso descombinado e seu resultado contraditrio, pelo menos na aparncia e no curto prazo. Os franceses cunharam a expresso esprit quarante-huitard, para caracterizar o clima, lrico, romntico, reinante em fevereiro de 1848, e os italianos a expresso fare um quarantotto, para designar a confuso e a falta de coordenao que marcaram a revoluo italiana de 1848. Mas, foi na Alemanha, sobretudo, onde se manifestaram com mais intensidade a confuso e o esprito romntico, e irrealista, e onde todos os componentes de 1848 estiveram presentes: o econmico, o social, o poltico e o nacional. Era na Prssia e no Imprio Habsburgo que se localizavam as naes histricas, que lutavam para construir seus respectivos Estados independentes: alemes, italianos, hngaros e poloneses; bem como as chamadas naes nohistricas, como a dos checos, eslovenos, rutenos, croatas e srvios que, precisamente em 1848, queriam ser reconhecidas como naes. Como assinalou Taylor, a surpresa de 1848 foi o aparecimento das naes no-histricas: as naes histricas, desafiando a ordem tradicional da Europa, eram elas mesmas desafiadas pelas naes nohistricas. Eslovenos e croatas disputavam as histricas reivindicaes da Itlia nacional; eslovenos, croatas, srvios e romenos repudiaram a Grande Hungria; os checos questionaram o predomnio alemo na Bomia; os poloneses lutavam nos dois campos resistiram s reivindicaes dos alemes na Posnnia, ainda que no Leste suas prprias reivindicaes histricas eram desafiadas pelos ucranianos.24 Como se sabe, o princpio nacional reivindicado em 1848 tinha uma fundamentao distinta do princpio francs. Enquanto neste havia sido o Estado (portanto, a poltica) o ponto de partida da nacionalidade, naqueles o Estado (portanto, a poltica) era o ponto de chegada, isto , a nacionalidade existe em decorrncia de uma lngua, e/ou de uma etnia prprias e, por causa disso, elas devem ter o direito de se constiturem em uma comunidade poltica independente, em um Estado nacional. Em 1848, foi o italiano Giuseppe Mazzini o grande terico, e a figura emblemtica, do princpio das nacionalidades (A nica idia hoje fecunda e poderosa na Europa a idia da liberdade nacional; o culto do princpio comeou, escrevia em 1832; e, mais tarde, A nao a universalidade dos cidados que falam a mesma lngua; e tambm, e profeticamente, a questo da nacionalidade est destinada a dar o seu nome ao sculo25). Mas, como se sabe, foram os alemes, a comear pelo filsofo Herder, os que antes formularam esse conceito de nacionalidade que lingstico e racial, mais do que poltico e territorial.

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Mas, uma Europa das naes, baseada no princpio da lngua, como a sonhada por Mazzini e tantos outros, era irrealizvel, porque, entre outras coisas, era contraditria: sua realizao, implicava no que Namier chamou de uma grande guerra europia de cada nao contra seus vizinhos. Se at mesmo o sonho mazziniano de uma comunidade universal de naes irms, no estava isento do preconceito de superioridade, pois, Itlia cabia um lugar, uma misso, de liderana (bem como o sonho de Mickiewicz que considerava a Polnia Cristo das naes que ressurgir e libertar da escravido todas as naes da Europa e o de Michelet que escrevia, em 1846, Minha ptria, minha ptria somente pode salvar o mundo26) o que no se poderia esperar do nacionalismo alemo? O filsofo Fichte acreditava que somente os alemes constituam uma verdadeira nao, falando uma lngua viva, ao passo que as outras lnguas mortas na raiz, no eram mais do que ecos. Em 1808, assim exortava os alemes: De todas as naes modernas sois vs que carregais mais claramente a semente da perfeio humana, e vossa misso desenvolv-la. Se ela perecesse em vs, todas as esperanas da humanidade para a cura dos seus males profundos pereceriam tambm.27 Os historiadores Namier e Taylor estavam convencidos que, em 1848, praticamente todos os alemes instrudos, isto , de origem burguesa ou nobre, estavam imbudos de sentimento nacionalista, de crena na superioridade do alemo sobre os demais povos. Esses dois historiadores comprouveram-se em mostrar que at revolucionrios radicais e internacionalistas, como Marx e Engels, eram portadores desse sentimento. Em suas interpretaes sobre 1848 eles exploraram ao mximo esse aspecto e demonstraram, de maneira brilhante diga-se, como a burguesia alem, com poucas excees, esteve disposta a negociar, e at mesmo a renegar, todos os princpios, exceto o princpio de um Estado nacional poderoso. A liberdade atravs do poder: tal o caminho destinado Alemanha, escrevia o acadmico Dahlmanm, um dos lderes das assemblias de Frankfurt, em abril de 1848. Assim, mesmo tendo fracassado, a Revoluo Alem conseguiu assustar outras nacionalidades. Quando em maio de 1848, von Wachter, foi para Praga em misso oficial, para dialogar com os checos, e declarou que ns os alemes queremos tomar os checos em nossos braos. Sim, exclamaram estes, para estrangular-nos. Um ms antes, Palacky, o lder do movimento nacional checo escreveu: Na realidade, se o Imprio Austraco no existisse, no interesse da Europa, ou melhor da humanidade, seria necessrio cri-lo sem demora.28 Cavour, em um discurso, proferido em outubro de 1848, afirmou: O germanismo mal nasceu e j ameaa turvar o equilbrio europeu, j manifesta pensamentos de predomnio e de usurpao. Cavour pareceu entrever o que o poeta Heine profetizou em 1834: A revoluo alem no ser mais nobre e mais suave pelo fato de ser precedida pela crtica de Kant ou pelo eu transcendental de Fichte ou pela prpria filosofia da natureza. Estas doutrinas serviram para liberar foras revolucionrias que esperam apenas pela sua hora para explodir e encher o mundo de temor e de estupor.29 O poder da dinastia Habsburgo, que se caracterizava precisamente por ser supranacional, pde, uma vez refeito do susto e da paralisao inicial, se recompor. E pde se recompor porque, apesar da insurreio vitoriosa em Viena, de maro a outubro, o esteio burocrtico, militar e social, do Estado permaneceu intacto. Depois da queda de Metternich e da abdicao do imperador, os novos dirigentes puderam explorar a fundo as divises e os temores que dominavam as vrias camadas da burguesia e manobrar vontade entre os povos, porque dispunham de um exrcito estruturado e obediente, de um aliado, a Rssia pronto a ajud-los e, sobretudo, porque souberam eliminar, com uma reforma pelo alto a ameaa mais sria: a revoluo camponesa. O imperador da Prssia, Frederico Guilherme IV disse em 23 de maro de 1848, a uma delegao polonesa da Posnnia, que uma das mais altas personalidades austracas tinha-lhe confidenciado o seguinte: As desordens italianas e suas causaram-nos muito dano e a crise financeira causou-nos muitas dificuldades; mas nada tem sido to ruinoso para a nossa monarquia como a insurreio dos camponeses....30 Compreende-se assim, porque em plena crise revolucionria, o Estado austraco aboliu a servido que ainda pesava sobre os camponeses e com isso rompeu uma possvel e irresistvel aliana revolucionria entre campo e cidade. Conta-se que o prncipe Alfred Windischgrtz, um dos arquitetos da reconstruo do domnio Habsburgo, protestou junto ao prprio imperador, em fevereiro de 1850, contra as reformas que haviam prejudicado os interesses dos grandes proprietrios, nos seguintes termos: Nem mesmo o comunista mais avanado ousou pedir as leis que Vossa Majestade decretou.31 Assim, quer pelo medo, hesitao, desunio e fraqueza dos adversrios, quer por sua capacidade de se autoreformar, o Imprio Austraco dos Habsburgo conseguiu uma sobrevida, que antes e durante a tempestade de 1848, parecia impossvel. No prefcio edio italiana de 1893 do Manifesto Comunista. Engels escreveu que os homens que abateram a revoluo de 1848 foram, malgrado seu, os seus executores testamentrios, o que significa dizer que, como bem assinalou Hobsbawm, no que a Europa tenha falhado em mudar em 1848, falhou foi em mudar de uma forma revolucionria.32 NOTAS: 1. Namier, Lewis. II Quarantotto, vivaio di storia. In: La rivoluzione degli intellettuali, Turim, Einaudi, 1957, p. 211. Godechot, Jacques. Le Rivoluzioni del 1848. Novara, Instituto Geogrfico De Agostini, 1973, p. 127. Hobsbawm, Eric J. A era das revolues 1789-1848. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 130. Dos trs historiadores, s Hobsbawm est vivo.

2. Arendt, Hannah. As origens do totalitarismo, Rio de Janeiro, Documento, 1979, p. 230. 3. Carr, Edward Hallet. El Manifiesto Comunista. In: Estdios sobre Ia revolcion, Madri, Alianza Editorial, 1970, p. 24-25. 4. Ver Colletti, Lcio. Il Marxismo e il crollo del capitalismo, Roma-Bari, Laterza, 1977.

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5. Sobre Proudhon, ver o ensaio de Carr, Edward Hallet. Proudhon: El Robinsn Crusoe del socialismo, op. cit., p. 44-60. 6. Citado por Cantimori, Delio. Realt storica e utopia nel 1848 Europeo. In: Studi di storia, Turim, Einaudi, 1976, vol. 3, p. 686. 7. Namier, op. c/t. p. 13 e Hobsbawm, op. cit., p. 332. No entanto, para o historiador Charles Pouthas, j falecido, e tambm especialista no tema, No inicio de 1848 ningum considerava iminente uma exploso revolucionria. Le rivoluzioni del 1848. In: Storia del mondo moderno (ed. italiana da The new Cambridge modern history), Milo, Garzanti, 1970, vol. X, p. 494. 8. O discurso de Alexis de Tocqueville pode ser lido na edio brasileira de sua A democracia na Amrica, Belo Horizonte, Itatiaia, 1977, p. 586. 9. A citao de Vitor Hugo, foi retirada de Bury, J. P T. Nazionalit e nazionalismo. In: Storia del mondo moderno, op. cit., p. 267: a de Metternich, de Talmon, J. L. Romantismo e revolta. Europa 1815-1848, Lisboa, Editorial Verbo, 1967, p. 9; a de von Galen, de Namier, op. cit. p. 15 e a de Taylor, A. J. P historiador conservador ingls, tambm j falecido, do ensaio 1848. In: Europe: grandur and decline, Londres, Penguin Books, 1967, p. 28. 10. Labrousse, Ernest 1848; 1830; 1789: tres fechas en Ia historia de Ia Francia moderna. In: Fluctuaciones economicas e historia social, Madri, Editorial Tecnos, 1973, p. 463-478. 11. Cantimori, Delio. Op. cit., p. 685. 12. Cf Hawgood, J. H. Liberalismo e sviluppi constituzionali. In: Storia del mondo moderno, op. cit., p. 238. 13. Rude, George Why was there no revolution in England in 1830 or 1848?. In: Studies ber Die Revolution, (vrios autores), Berlin, Akademie-Verlag, s/d., p. 243. O historiador Rude tambm j falecido. 14. A citao de Vitor Hugo foi retirada de Hawgood, J. H. Op. cit, p. 236 e a de Droz, Jacques. Europa: Restauracion e revolucion 1815-1848, Mxico, Siglo XXI, 1974, p. 272. 15. Tocqueville, Alexis de. Lembranas de 1848. As jornadas revolucionrias em Paris, So Paulo, Companhia das Letras, 1991, traduo de Modesto Florenzano, p. 35.

16. Avertissement au pays, reproduzido em Fohlen, C. e Suratteau, J. R. Textes dHistoire Contemporaine, Paris, Sedes, 1967, p. 252. 17. Citado por Grard, Alice. La Revolution Franaise, mythes et interprtations 1789-1970, Paris, Flammarion, 1970, p. 51. 18. Citado por Lewis Namier, op. cit., p. 21. 19. Taylor, A. J. P. Op. cit., p. 31. 20. Godechot, Jacques. Op. cit., p. 189. 21. Giorgio Candeloro. Storia dellItalia moderna, Milo, Feltrinelli, 1960, vol. 3, p. 5. 22. Taylor, A. J. P Op. cit., p. 33-34. 23. A citao de Cavour encontra-se em Hobsbawm. A era do capital 1848-1875, p. 35 e a de Ferrari em Salvemini, Gaetano. Scritti sul Risorgimento, Milo, Feltrinelli, 1961, p. 462. 24. Taylor, A. J. P. Op. cit., p. 29-30. Em 1848, das quatro naes histricas, assim chamadas por que em algum momento do passado haviam vivido como unidades polticas independentes, s os alemes no estavam sob dominao estrangeira, embora estivessem politicamente separados e sob dominao absolutista; ao passo que, entre as naes no-histricas, assim chamadas porque nunca haviam, em algum momento do passado, desfrutado de unidade e independncia poltica, todas se encontravam sob dominao estrangeira: ou prussiana, ou austraca, ou russa. 25. Citaes retiradas de Namier, Lewis. Op. cit., p. 165 e 175. 26. Idem, p. 179. 27. Idem, p. 179. 28. As trs citaes foram retiradas de Namier, Lewis. Op. cit., p. 219, 155 e 122, respectivamente. 29. Citado por Bury, J. R T. Introduo, Storia del mondo moderno, op. cit., p.17. 30. Namier, Lewis. Op. cit., p. 30. 31. Idem, p. 36. 32. Hobsbawm, Eric. J. A era do capital 1848-1877, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 30. A frase de Engels foi retirada de Osvaldo Coggiola (org.) Manifesto Comunista de Marx e Engels, So Paulo, Boitempo, 1998, p. 82.

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A REVOLUO FORA DO TEMPO MARX, ENGELS EM 1848 lvaro BianchiNuma obra to vasta e polifactica como a de Marx e de Engels, rgidas tentativas de periodizao costumam ser arbitrrias, quando no inteis. Se uma diviso do conjunto do pensamento de Marx e Engels em fases e subfases costuma ser problemtica, sorte diferente no tiveram aqueles que exerceram seus dotes classificatrios com diferentes aspectos particulares do pensamento de Marx e Engels. Eric J. Hobsbawm um dos autores que tenta fazer uma periodizao do pensamento de Marx e Engels sobre os aspectos polticos da transio do capitalismo para o socialismo. Hobsbawm distingue trs fases: uma que tendo incio na metade dos anos 1840 se encerra no comeo da dcada de 1850, com o fracasso das revolues de 1848; outra nos 25 anos posteriores, perodo de desenvolvimento do capitalismo e de inrcia do movimento operrio; e, por ltimo a fase dos ltimos anos de Engels, quando a construo de partidos operrios de massas colocava novas perspectivas para a luta operria.1 Tal classificao, ao encerrar de forma esquemtica em celas temporais o pensamento de Marx e Engels, no d conta das profundas transformaes pelas quais ele passou no interior de tais celas. As razes do fracasso dessa empreitada no podem ser atribudas forma de trabalho desordenada de Marx e aos incontveis projetos que comeou e deixou inacabados. As tentativas de classificao, herana de um pensamento positivista, so limitadas em si, na medida em que fossilizam seu objeto para melhor enquadr-lo num esquema prestabelecido. Torna-se impossvel proceder a tal enquadramento sem deixar muito a desejar quando se trata de obra da extenso da qual falamos e de pensadores que constantemente submetem suas hipteses e teorias prova da prtica para, a partir das concluses obtidas, reformul-las, num contnuo processo de destruio-reconstruo terica. Devemos ter em mente esta impossibilidade de promover uma periodizao rigorosa quando procuramos reconstituir uma teoria de revoluo em Marx durante o perodo que se inicia com os artigos da Deutsche Brsseler Zeitung at o fim da Neue Rheinische Zeitung, em 1849. Ou seja, desde o momento em que Marx e Engels comeam a trabalhar com a possibilidade de uma revoluo iminente, o que viria a ocorrer no ano de 1848, at o momento da derrota desta. Muito mais frtil do que esse af classificatrio o programa lanado por Karl Korsh em Marxismo e filosofia: a aplicao da concepo materialista da histria prpria histria do marxismo.2 Vincular as sucessivas elaboraes de Marx e Engels aos abalos sociais de ento e as transformaes no pensamento de ambos ao desenrolar da luta de classes do perodo pode esclarecer a aparente inconstncia de seus movimentos polticos e da ttica por eles defendida. A revoluo de 1848 marcou de forma profunda o pensamento de Marx e Engels. Foi a primeira vez em suas vidas conscientes que ambos presenciaram um processo revolucionrio. Quando do ensaio parisiense de 1830, Marx tinha apenas 12 anos e Engels 10. Nos anos posteriores, a derrubada da dinastia dos Bourbon s motivou reflexes ocasionais. At 1848, o grande exemplo revolucionrio sobre o qual Marx e Engels se debruaram para analisar foi a Revoluo Francesa de 1789. sobre a base do estudo dessa revoluo que Marx formular um esboo de teoria da revoluo, impresso nas pginas imortais do Manifesto Comunista. Mas, sem dvida os acontecimentos de 1848, uma revoluo de carter continental, provocaram uma inflexo em seu pensamento. Revolues de carter democrtico e burgus, insurreies operrias, revolues agrrias, lutas pela independncia nacional. O ano de 1848 combinou, no velho continente, uma gama de situaes que lhe valeram a alcunha, bastante imprpria, de 1789 europeu. Praticamente nenhum pas ficou imune ao vendaval revolucionrio que agitou a Europa. A vaga foi prenunciada pela derrota dos cantes da liga clerical (Sunderbund) na Sua em novembro de 1847. No dia 2 de janeiro, os cigarreiros de Milo se insurgiram. No dia 12, a populao de Palermo se ergueu contra a monarquia absolutista de Fernando II. O monarca foi obrigado a ceder e outorgar uma constituio. No dia 14 de fevereiro, foi a vez do papa Pio IX criar uma comisso para promover uma reforma liberal. A revoluo adquiriu impulso com a vitria do povo parisiense, que, no dia 24 de fevereiro, derrubou a monarquia de Lus Felipe e criou um governo provisrio com a participao de dois ministros socialistas, Luis Blanc e Albert (codinome do operrio mecnico Alexandre Martin). Na madrugada do dia 25, o povo invadiu a Cmara dos Deputados e forou o governo provisrio a proclamar a Repblica. Era, segundo Marx a primeira participao do proletariado como classe independente: O proletariado ao impor a Repblica ao Governo Provisrio e, atravs do Governo Provisrio, a toda a Frana, apareceu imediatamente em primeiro plano, como o partido independente, mas, ao mesmo tempo, lanou um desafio a toda Frana burguesa. O que o proletariado conquistava era o terreno para lutar pela sua emancipao revolucionria, mas no, de modo algum, a prpria emancipao.3 A ptria da revoluo havia dado o sinal. Era chegada a hora. Em 5 de maro, o rei Carlos Alberto, do Piemonte, promulgou uma constituio. Dia 1 1 , foi criada uma Assemblia Popular em Praga. Dois dias depois comeou a insurreio em Viena que provocou a fuga de Metternich. Roma ganhou uma constituio dia 14. Em 15 desse ms, comeou a Revoluo Hngara. A insurreio de Veneza contra a dominao austraca teve incio no dia 17. A hora de Berlim chegou um dia depois. A insurreio obrigou o rei da Prssia a formar um governo composto por liberais

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burgueses. Na mesma data, ocorreu um novo levante em Milo contra a ocupao austraca. Dia 19, o rei Lus I, da Baviera, abdicou. As revolues se sucediam numa velocidade superior dos prprios meios de comunicao. De Paris a Viena o servio de comunicao mais rpido, o do banco Rothschild, levava cinco dias. Em menos de um ms a paisagem poltica da Europa se encontrava completamente transfigurada. A ordem instituda depois da derrota de Napoleo e materializada na Santa Aliana havia deixado de existir. Pelo menos por enquanto. J no ano de 1847 a conjuntura europia emitia sinais de que mudanas significativas estavam para acontecer. Engels escrevia em dezembro daquele ano que nada decisivo havia sido levado a cabo durante o ano de 1847, mas durante esses 12 meses os partidos se enfrentaram em todos os lugares de forma ntida e aguerrida, demarcados uns dos outros.4 A proximidade da revoluo era uma perspectiva generalizada em todo o movimento democrtico e mais alm dele. Em 27 de janeiro de 1848, o ento deputado na Cmara francesa Alexis de Tocqueville, alertava o regime: Olhai o que se passa no seio dessas classes operrias, que hoje, eu reconheo, esto tranqilas. verdade que no so atormentadas pelas paixes polticas propriamente ditas, no mesmo grau em que foram por elas atormentadas outrora; mas no vedes que as suas paixes, de polticas se tomaram sociais? No vedes que pouco a pouco se propagam em seu seio opinies, idias, que de modo nenhum iro apenas derrubar tal lei, tal ministro, mesmo tal governo, mas a sociedade e abal-la sobre a bases nas quais hoje repousa? No ouvis que entre elas se repete constantemente que tudo o que se acha acima delas incapaz e indigno de govern-las? Que a diviso dos bens feita at o presente no mundo injusta? Que a propriedade repousa em bases que no so equitveis? E no credes que, quando tais opinies tomam razes, quando se propagam de uma maneira quase geral, quando penetram profundamente nas massas, devem cedo ou tarde, no sei quando, acarretar as mais temveis revolues? Tal , senhores, minha convico profunda; creio que dormimos no momento em que estamos sobre um vulco.5 A crise que Tocqueville previra com tanta lucidez assumia caractersticas diferentes da anteriores. O capitalismo havia colocado em movimento, no dizer do prprio Marx, foras at ento inimaginveis e essas foras estavam fora de controle. Nos primeiros 40 anos do sculo passado a produo de ferro bruto aumentou 475% na Alemanha (Zollverein), como podemos ver abaixo. Somente na dcada de 1840 cerca de 640 milhes de toneladas de carvo foram produzidas no mundo. Ano 1800 1820 1840 Ano 1800 1820 1840 Produo de carvo (milhares de toneladas) Inglaterra Frana Alemanha (Zollverein) 10.100 800 300 12.500 1.100 1.500 30.000 3.000 3.400 Produo de ferro bruto (milhares de toneladas)6 Inglaterra Frana Alemanha (Zollverein) 190 40 60 370 90 140 1.390 190 400

DORMIMOS SOBRE UM VULCO

Mas se a economia se desenvolvia com uma velocidade impressionante as estruturas sociais e polticas de ento evoluam num ritmo consideravelmente menor. A Europa, apesar do crescimento do proletariado urbano, continuava a ser, fundamentalmente, uma Europa rural. Na Prssia, 72% da populao vivia no campo. Na Frana esse ndice chegava a 75% e na Noruega e Sucia a 90%. Em 1850, apenas 47 cidades haviam ultrapassado os 100 mil habitantes, concentrando 5% dos habitantes do continente. Mesmo nas cidades, o peso das antigas classes sociais era predominante. Segundo Theodore S. Hamerow, na dcada de 1840 havia na Prssia, aproximadamente, 2,8 milhes de artesos e 571 mil operrios fabris.7 O declnio dos artesos se deu numa velocidade menor que Marx supunha e assumiu formas que se manifestaram nas revolues de 1848. Nas antigas guildas, status diferentes correspondiam a diferenas geracionais, sendo equivalentes a hierarquia etria ocupacional. Mas as diferenas entre mestres e aprendizes eram aceitas na medida em que os ltimos tinham a perspectiva de se tornarem mestres ou de, at mesmo, se casarem com as filhas dos mestres. Segundo Gouldner, com o declnio das guildas, a possibilidade de ascenso ficou reduzida e ocorreu, progressivamente, o estranhamento entre mestres e aprendizes, tomando estes permeveis propaganda revolucionria.8 Nas cidades a situao era de extrema penria, uma penria muito bem retratada por Engels em A situao da classe trabalhadora na Inglaterra, obra de 1845. O surgimento do proletariado e a decomposio das antigas classes sociais havia modificado profundamente os centros urbanos. Um retrato das condies de vida desses operrios pode ser pintado a partir das sucessivas legislaes raramente aplicadas regulamentando as condies de trabalho. Depois da inveno da iluminao a gs, que possibilitava o trabalho noturno, no eram raros os casos de jornadas dirias superiores a 15 horas. Na Inglaterra, a jornada de 10 horas s foi regulamentada em 1847 e, mesmo assim, somente para mulheres e

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crianas. Legislao proibindo o trabalho de crianas menores de 9 anos e regulamentando o trabalho infantil foi promulgada, na Prssia, em 1839. A legislao francesa de 2 anos depois. A reao a essas condies de vida veio atravs da disseminao do associativismo entre os trabalhadores. Em Paris, no ano de 1823, existiam 160 associaes de ajuda mtua, com 11 mil membros e na Itlia, 38 destas associaes. 9 Os levantes e greves tambm se generalizaram durante os 10 anos que antecederam as Revolues de 1848. A sociedade secreta dirigida por Auguste Blanqui promoveu uma fracassada tentativa insurreicional em Paris, no ano de 1839. Um ano depois houve a primeira greve geral. insatisfao social somava-se a insatisfao poltica. O desejo de liberdade e as aspiraes nacionais confluram num contexto marcado pela crise da poltica e da diviso territorial definida pelo Congresso de Viena. Na Frana a autosuficincia das classe dirigentes contribuiu para aumentar essa insatisfao. Em suas Lembranas de 1848, o escritor e deputado francs Alexis de Tocqueville dizia: Em 1830, o triunfo da classe mdia foi definitivo e to completo, que todos os poderes polticos, todas as franquias, as prerrogativas, o governo inteiro, encontraram-se encerrados e como que amontoados nos limites estreitos da burguesia, com a excluso (de direito) de tudo o que estava abaixo dela e (de fato) de tudo o que estivera acima. Assim, a burguesia no s se tornou a nica dirigente da sociedade, mas tambm converteu-se em sua arrendatria. Alojou-se em todos os cargos, aumentou prodigiosamente seu nmero e habituou-se a viver quase tanto do tesouro poltico quanto de sua prpria indstria.10 estatal: Diagnstico semelhante fez Karl Marx, destacando porm, a frao burguesa que havia se incrustado ao aparelho Quem dominou sob Lus Felipe no foi a burguesia francesa, mas uma frao dela os banqueiros, os reis da Bolsa, os reis das estradas de ferro, os proprietrios das minas de carvo e de ferro e de exploraes florestais e de uma parte da propriedade territorial aliada a ela a chamada aristocracia financeira. Esta ocupava o trono, ditava as leis nas cmaras e distribua os cargos pblicos, dos ministrios s lojas de tabaco.11

Na oposio encontravam-se no s as massas populares como, tambm, as fraes burguesas afastadas do poder, principalmente a industrial, a pequena burguesia e os camponeses. margem do pas legal, o pas real exigia ser ouvido. Na Alemanha, pas de desenvolvimento capitalista retardatrio, as diferentes fraes da burguesia estavam completamente afastadas do poder. Desejava ela assumir no plano poltico o lugar que possua na vida econmica desde a criao da unio alfandegria, o Zollverein. Segundo Engels, com a riqueza crescente e o comrcio em expanso, a burguesia cedo chegou a um estgio em que achou o desenvolvimento dos seus mais importantes interesses refreado pela constituio poltica do pas pela sua diviso fortuita entre 36 prncipes com tendncias e caprichos em conflito; pelos grilhes feudais volta da agricultura e do comrcio com ela relacionado; pela superintendncia bisbilhoteira a que uma burocracia ignorante e presunosa submetia todas as suas transaes.12 Tal situao forou a passagem da burguesia para o campo da oposio. Oposio essa que se fazia sentir de forma cada vez mais intensa medida em que a crise fiscal do Estado havia colocado o rei da Prssia em campanha por um aumento dos impostos. A passagem de camadas sociais cada vez mais amplas para o campo da oposio verificou-se no restante da Europa. Seja sob a bandeira da democracia, seja sob o estandarte da libertao nacional, esses grupos participaram de poderosos movimento ligados destruio de um sistema social vinculado ao absolutismo e ao particularismo.13 a perspectiva de uma revoluo iminente o que explica os passos dados para uma unificao entre o Comit de Correspondncia de Bruxelas, do qual Marx e Engels faziam parte, e a sesso londrina da Liga dos Justos. Os contatos dos dois com o grupo de Londres existiam desde 1846. Em fevereiro daquele ano, propuseram a um dos dirigentes da esquerda do movimento cartista, George Julian Harney, a constituio de um Comit de Correspondncia naquela cidade. Engels conhecia Harney desde 1843 e desde 1845 colaborava em seu jornal, The Northern Star. O lder cartista, que recm havia formado uma organizao chamada Fraternal Democrats, unificando a ala esquerda do cartismo com a Liga dos Justos, respondeu afirmativamente, mas props que os dirigentes da liga fossem consultados antes de qualquer iniciativa. O contato foi realizado em maio e rendeu bons frutos. Numa carta de 6 de junho, o lder da liga, Schapper, comunicou a formao de um Comit de Correspondncia, dirigido por ele mesmo, H. Bauer e Joseph Moll. Schapper tambm deixou claro suas reservas em relao a Marx e Engels que considerava pessoas dispostas a criar uma aristocracia de sbios.14 As relaes entre os dois grupos continuaram por todo o ano de 1846, com ambos os lados mantendo suas mtuas reservas. As de Marx e Engels cresceram com a posio da liga frente luta contra as idias de Kriege no Comit de Bruxelas e com a convocao por parte desta de um congresso comunista sem t-los consultado previamente. As relaes ficaram congeladas, chegando Engels a levantar a hiptese de uma ruptura, at que a Liga dos Justos enviou a Bruxelas o relojoeiro Joseph Moll com a misso de estabelecer contato direto com Marx e, posteriormente, com Engels, que se encontrava em Paris, e convid-los para integrar a liga. Este ltimo resumira dessa forma a misso de Moll: Disse-nos que estava convencido no s da justeza geral de nossa concepo, mas tambm da necessidade de libertar a Liga das velhas tradies e formas conspirativas. Que se quisssemos ingressar, dar-nos-ia, num congresso da liga, a oportunidade de desenvolver nosso comunismo crtico num manifesto que, em seguida, seria publicado

NASCE O PARTIDO DE MARX E ENGELS

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como manifesto da liga; e que poderamos tambm contribuir para a substituio da arcaica organizao da Liga por outra nova, mais adequada poca e aos objetivos visados.15 Marx e Engels, consideravam que a classe operria alem necessitava de uma organizao para a propaganda e aceitaram o convite, embora mantivessem suas reservas. O primeiro congresso, com a participao de Engels representando o Comit de Correspondncia que havia constitudo em Paris, ocorreu em junho de 1847. O congresso modificou o nome da organizao, que passou a se chamar Liga dos Comunistas, e discutiu seus novos estatutos. S depois dos resultados concretos obtidos, nesse congresso, que Marx decidiu participar de forma mais efetiva, constituindo o crculo de Bruxelas da Liga dos Comunistas. O segundo congresso, levado a cabo em Londres nos meses de novembro e dezembro do mesmo ano, durou dez dias. Marx teve nele a oportunidade de expor suas idias e depois de um grande debate elas foram aceitas por unanimidade, segundo narra Engels.16 Na mesma ocasio Marx e Engels receberam a incumbncia de elaborar um programa pormenorizado do partido, ao mesmo tempo terico e prtico.17 O programa, que veio luz em fevereiro de 1848, poucos dias antes da revoluo irromper em Paris, ficou imortalizado com o nome de Manifesto Comunista. No nossa inteno fazer aqui uma anlise detalhada do Manifesto. Interessa-nos, unicamente, aqueles aspectos polticos de uma teoria da revoluo. O texto diz ser o objetivo imediato dos comunistas o mesmo que o de todos os demais partidos proletrios: constituio dos proletrios em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder poltico pelo proletariado.18 A ordem do enunciado pertinente. O objetivo primeiro dos comunistas a constituio do proletariado em classe, em partido poltico.19 poca do Manifesto, Marx e Engels atribuem um carter ambguo ao termo partido. Partido a Liga dos Comunistas, a Associao Operria de Colnia, so os cartistas e todos os movimentos da classe. Mas alm dos movimentos da classe tambm esto se referindo classe em movimento. Para alm do partido-organizao, ambos pensam um partido-conscincia. A transformao do proletariado em partido deve ser entendida como a transformao do proletariado em sujeito autoconsciente e auto-organizado, cuja conscincia desmistificada e desmistificadora, portanto sujeito capaz de operar a mudana social, de derrubar a supremacia burguesa e de assumir o poder poltico tal qual Marx e Engels expressam nos objetivos seguintes dos comunistas. A constituio do proletariado em classe , assim, a realizao de seu devir. Uma vez assentados os objetivos finais, Marx e Engels passam, no Manifesto, a tratar os temas referentes ttica e estratgia, procurando formular os diferentes momentos pelos quais o proletariado dever passar nas revolues que se aproximavam e sua atitude neles. Para Marx e Engels (...) a primeira fase da revoluo operria o advento do proletariado como classe dominante, a conquista da democracia. O proletariado utilizar sua supremacia poltica para arrancar pouco a pouco todo capital burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produo nas mos do Estado, isto , do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possvel, o total de foras produtivas.20 A afirmao coloca um problema interpretativo de primeira grandeza. Qual o exato significado de democracia para ambos? Para alguns intrpretes, a democracia, tal qual aparece nessa passagem do Manifesto, uma democracia operria, em nenhum momento do texto mencionada.21 Enganam-se. Marx e Engels no se referem a um determinado tipo de democracia e sim democracia como ser genrico. O que aqui lhes interessa a conquista de liberdades que retirem os entraves para o desenvolvimento das foras do proletariado. Nos referimos ao sufrgio universal, ao direito de organizao, reunio e imprensa, liberdades estas que se encontravam ausentes em toda a Europa. Para eles a conquista dessas liberdades teria como conseqncia inelutvel a dominao poltica do proletariado. So, portanto, momentos diferentes, embora intimamente vinculados. O primeiro a conquista da democracia que permite ao proletariado aparecer em cena como classe que almeja a conquista do Estado. O segundo a organizao do proletariado como classe dominante, como Estado. Associar a democracia ao domnio poltico do proletariado era comum nos setores mais avanados do movimento democrtico da poca e entre os comunistas. Era, mesmo, a base do movimento cartista na Inglaterra. Em outras ocasies Marx e Engels procedero mesma associao. Em Princpios bsicos do comunismo, escrito em novembro de 1847, Engels coloca que a revoluo estabelecer, antes de mais nada, uma Constituio democrtica do Estado, e com ela, direta ou indiretamente, o domnio poltico do proletariado.22 Engels destaca que na Inglaterra, onde o proletariado constitui a maioria do povo, a democracia levaria diretamente ao poder poltico do proletariado. Na Frana e na Alemanha, onde o proletariado no era a maioria do povo talvez fosse necessria uma segunda luta, mas que terminaria com a vitria do proletariado. Maximilien Rubel, em suas notas ao Manifesto Comunista na edio da Bibliothque de la Pliade, observa que na traduo realizada por Laura Lafargue, a frase citada aparece como la conqute du pouvoir public par la dmocratie, levantando a hiptese de que a traduo tenha sido revista por Engels.23 Dizer que Marx e Engels se referiam a uma democracia operria tem como inconveniente o fato de se antecipar elaborao terica de ambos. Uma democracia operria implica no apenas uma forma de exercer o poder mas a afirmao dos meios pelos quais ele exercido. Em 1848, Marx e Engels no conseguiriam formular uma resposta para o problema da forma e dos meios de exerccio do poder operrio. Sequer a questo do que fazer com a antiga ordem estatal estava para ambos resolvida. Somente com a anlise dos acontecimentos da Comuna de Paris, em 1871, que a questo da forma e dos meios seria plenamente equacionada. No outro o motivo que leva Marx e Engels a afirmarem no prefcio de 1872 que a parte referente s medidas revolucionrias enumeradas ao final do segundo captulo deveriam ser retocadas. As experincias das revolues de 1848 e, principalmente, da Comuna parisiense de 1871 haviam imposto a concluso de que no bastava classe operria apoderarse da mquina estatal. O problema da forma e dos meios comeava, ento, a adquirir um contorno mais ntido.24

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Interpretada dessa forma a conquista da democracia, outros problemas se colocam: como se d a transio da conquista da democracia para a conquista do Estado? Em outras palavras: uma vez conseguidos os meios para o proletariado derrubar a supremacia burguesa e conquistar o poder poltico, como ele o faz? Marx e Engels tomam como ponto de referncia, embora no Manifesto isso no esteja explcito, o desenvolvimento da Revoluo Francesa de 1789 e a chegada ao poder dos jacobinos, o setor extremo do movimento revolucionrio, apoiado nas massas sans-culottes. O ano II do calendrio revolucionrio foi o que permitiu Revoluo Francesa cumprir suas promessas, levar a termo a revoluo burguesa e romper definitivamente com a antiga ordem. Referindo-se ao Terror do ano II, Marx afirmou que ele era o modo plebeu de lutar contra os inimigos da burguesia, contra o absolutismo, o feudalismo e os filisteus.25 Em 1848 Marx e Engels, no vem como limite a conquista de uma democracia representativa por um movimento unnime de todo o povo sob a bandeira da fraternit e sim uma segunda revoluo surgida no corao da primeira, uma revoluo que tenha frente o proletariado, o setor extremo do movimento democrtico inicial. Trata-se de uma revoluo proletria, no mais unnime, para cumprir as promessas que a primeira no havia sido capaz. A referncia Revoluo Francesa de 1789 e ascenso do jacobinismo ao poder restringe-se, entretanto, mecnica da revoluo, ou seja, forma como seus diferentes momentos se encadeiam. Marx e Engels no pretendiam repetir em 1848 o modo jacobino de agir, nem organizar um partido imagem e semelhana dos companheiros de Robespierre. Ambos no duvidam de que os aspectos antiburgueses do Terror serviram para garantir a vitria da nova ordem burguesa. O movimento jacobino possua um iderio, uma prtica e formas organizativas que estavam associados a um projeto de classe e no poderiam ser transpostos ao movimento proletrio. Mais de uma vez os autores do Manifesto denunciaram a f supersticiosa nas tradies de 1793.26 Depois de abordar o problema da transio da democracia ao proletariado organizado como classe dominante, Marx e Engels passavam, no Manifesto, a tratar da transio para o comunismo. O texto enumera dez medidas que constituem o programa do proletariado. Essas medidas embora possam parecer insuficientes e insustentveis advertem os autores, ultrapassaro a si mesmas e sero indispensveis para transformar radicalmente todo o modo de produo.27 As medidas vo desde a expropriao dos latifndios at o ensino pblico e gratuito para todas as crianas. As dez medidas foram muitas vezes interpretadas como um programa de transio, no sentido que Trotski dava expresso.28 No podemos, entretanto, concordar com a afirmao. Elas, no mximo, podem ser consideradas como um programa para a transio. Um programa cujo objetivo no partir das condies atuais e da conscincia atual de largas camadas da classe operria e conduzi-la a uma nica concluso: a conquista do poder do proletariado,29 pelo simples motivo que, como o prprio texto diz um programa para quando o proletariado j estiver constitudo como classe dominante, ou seja, como Estado. A afirmao que fazem da estratgia e dos problemas da transio poltica e da transformao do modo de produo no deixaram, entretanto, Marx e Engels presos de forma esquemtica a ela. Percebem o carter burgus e democrtico da revoluo e apresentam, para essa realidade dada, no prprio Manifesto, uma poltica concreta a ser seguida pelos comunistas nos movimentos revolucionrios que se avizinhavam. Na Frana, afirmam Marx e Engels, os comunistas esto aliados ao partido social-democrata. (No existia tal partido constitudo. O que os autores do Manifesto denominam como tal a frao de Ledru-Rollin, no parlamento; Luis Blanc, no terreno ideolgico; e o jornal La Rforme.) Na Sua, apiam o partido radical, constitudo por democratassocialistas e burgueses radicais. Os defensores da revoluo agrria so apoiados na Polnia.30 Mas para a Alemanha que os olhos dos comunistas esto voltados. Depois de anunciar que lutaro de acordo com a burguesia sempre que esta agir de forma revolucionria contra a monarquia absoluta, a propriedade rural feudal e a pequena burguesia, os autores do manifesto afirmam: a Alemanha se encontra nas vsperas de uma revoluo burguesa; e porque realizar essa revoluo nas condies mais avanadas da civilizao europia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra no sculo XVII e o da Frana no sculo XVIII a revoluo burguesa alem, por conseguinte, s poder ser o preldio imediato de uma revoluo proletria.31 Marx elaborar um programa especfico para a Alemanha, as Reivindicaes do Partido Comunista Alemo. O programa, cujas despesas de impresso dos primeiros exemplares foram custeadas pelo prprio Marx, partia claramente das dez reivindicaes presentes no Manifesto Comunista, mas eram, evidentemente mais moderadas. Apenas quatro delas figuravam no texto das Reivindicaes...: criao de um banco nacional, nacionalizao dos transportes, imposto progressivo e ensino pblico, geral e gratuito. No estavam, sequer colocadas como tarefas para um hipottico governo operrio levar a cabo, eram apenas um programa prtico para a revoluo democrtica que se avizinhava. do interesse do proletariado alemo, da pequena burguesia e da classe camponesa lutar pela implementao destas medidas com todas suas energias, afirmava o texto das Reivindicaes...32 Mas embora tivessem esse carter estavam muito distantes, ainda, de poderem ser admitidas por qualquer democrata radical, como insinuam David McLellan, em sua biografia de Marx, e o conhecido bigrafo de Joseph Weydemeyer, Karl Obermann.33 Este ltimo chega a firmar que o esprito reinante em abril de 1848, no campo democrtico, criava as condies para a aceitao destas. Os cuidados tomados por Marx e Engels na divulgao do texto e o fato de no ser mencionado posteriormente na Neue Rheinische Zeitung, desfazem a idia de fcil aceitao das propostas dos comunistas. Somente o primeiro ponto do programa, para citar apenas um exemplo todo o territrio alemo formar uma repblica una e indivisvel34 , j era um divisor de guas entre o partido do proletariado e os demais, como alerta Engels. O partido democrtico mais esquerdista no ia alm da defesa de uma Repblica Federativa.35 Apesar de uma ampla poltica de alianas, determinada pelo carter das revolues que se aproximavam, Marx e Engels deixavam claro que no esconderiam os antagonismos existentes entre a burguesia e o proletariado. Queriam que os

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operrios transformassem as condies sociais e polticas criadas pela revoluo burguesa em armas contra a prpria burguesia.36 A idia de que a revoluo democrtica e burguesa seria o prolegmeno indispensvel do levante operrio est, portanto, presente nos fundadores do socialismo cientfico. No completamente descabido afirmar que, de certa forma, Marx e Engels pensavam uma revoluo por etapas. Mas da a uma interpretao caricatural como a que foi levada a cabo pelo stalinismo durante dcadas h uma grande distncia. Afirmar a necessidade de uma revoluo burguesa nunca significou para eles admitir a necessidade de um desenvolvimento pacfico das foras proletrias depois de tal revoluo. Consideravam-na necessria porque ela, alm de liquidar as velhas classes dominantes e colocar a nu as contradies sociais fundamentais, daria a liberdade de reunio e imprensa necessrias para tornar mais efetivo o combate proletrio. A melhor forma de governo aquela na qual as contradies sociais abrem caminho livremente e se encaminham assim rumo a sua soluo.37 Embora possa ser analisada a existncia de um Marx e de um Engels etapistas mais produtivo, do ponto de vista interpretativo, compreender a forma como viam a passagem de uma revoluo a outra. As revolues que ento se avizinhavam deveriam nascer como um movimento de todo o povo contra o absolutismo. no desenvolvimento desse movimento unitrio que o proletariado surgiria como uma fora social independente. Depois de 24 de fevereiro e de 18 de maro, eles esperavam por outro levante, dessa vez nitidamente proletrio, que teria como objetivo acabar com as contradies sociais colocadas a nu pelo primeiro. A idia de duas revolues, uma sobreposta a outra, herana da Revoluo Francesa de 1789, est presente em Marx e Engels. A pretensa repblica social na Frana e a realizao de eleies indiretas para as Assemblias Nacional e Constituinte, alm do ministrio Camphausen na Alemanha, caracterizavam a primeira revoluo como limitada e parcial. Pior ainda. As liberdades democrticas parciais, conquistadas pelas revolues, se encontravam constantemente ameaadas pela atitude conciliadora das novas classes governantes. Os autores do Manifesto no se cansavam de alertar que a menos que uma nova revoluo se seguisse de maro de 1848, na Alemanha, as coisas voltariam inevitavelmente ao que eram antes daquele acontecimento.38

A PROVA DOS NOVESLogo a revoluo obrigou Marx a submeter seu esboo de uma teoria da revoluo prova da prtica. Mal comearam os levantes populares e Marx foi expulso de Bruxelas, onde havia chegado 3 anos antes. O governo temia que ele utilizasse os 6 mil francos que herdara de sua me (mais do que sua renda total nos trs anos anteriores) para financiar o movimento revolucionrio. No mesmo dia que foi notificado de sua expulso, 3 de maro, recebeu uma carta de seu conhecido Ferdinand Flocon, membro do governo provisrio da Frana, abrindo-lhe as portas de seu pas. Assim que chegou a Paris, Marx se incorporou ativamente Sociedade dos Direitos Humanos, fundada por LedruRollin e Flocon, um dos maiores clubes polticos de Paris. No dia 10 de maro, o Comit Central da Liga Comunista promoveu uma reunio que elegeu Marx presidente. Schapper, que havia viajado a Paris para entregar uma mensagem da Associao dos Trabalhadores Alemes de Londres ao governo provisrio, foi eleito secretrio. No dia 20, chegaram a Paris notcias da revoluo em Berlim. Marx e seus companheiros decidiram retomar Alemanha imediatamente, levando consigo as mil primeiras cpias do Manifesto Comunista e o folheto Reivindicaes do Partido Comunista na Alemanha, j mencionado. A liga conseguiu fazer com que mais de 400 operrios alemes retornassem a seu pas para se engajarem no movimento revolucionrio. A cidade escolhida por Marx e Engels, que se havia unido ao primeiro em Paris, foi Colnia. A capital da Rennia era a terceira maior da Prssia, com quase 100 mil habitantes, e possua uma grande tradio democrtica. Chegaram no dia 10 de abril, quatro dias depois de Andreas Gottschalk, um militante da Liga Comunista, ter fundado a Associao dos Trabalhadores. A Associao recrutou, em poucos meses, 8 mil trabalhadores, a maioria artesos, um nmero verdadeiramente impressionante. Marx e Engels se recusaram a participar da Associao. Julgavam seus objetivos econmicos estreitos e acusavam seus dirigentes de provocarem o isolamento poltico dos trabalhadores. As diferenas com Gottschalk aumentaram com as eleies para a Assemblia Prussiana e para o Parlamento Nacional de Frankfurt. A Associao afirmava que os trabalhadores no poderiam participar de eleies indiretas os eleitores escolheriam apenas aqueles que definiriam quais seriam os deputados e props o boicote. Marx, que havia ajudado a fundar a Sociedade Democrtica de Colnia, promoveu a candidatura de um democrata, Franz Raveau. Os enfrentamentos levaram Gottschalk a se afastar da Liga. Pouco depois Marx a dissolveu, argumentando que seu objetivo, a propaganda, poderia ser levado a cabo em condies abertas e muito melhores na nova conjuntura. No era mais necessrio recorrer s formas conspirativas da Liga dos Comunistas.39 Ao mesmo tempo em que participavam da Sociedade Democrtica, Marx e Engels deram incio a um projeto h meses acalentado: fundar um jornal nacional, atravs do qual pudessem expressar suas opinies. O jornal, que veio luz sob o nome de Neue Rheinische Zeitung, no dia 1o de junho, seria um rgo da democracia, como anunciava seu subttulo. 0 programa do jornal era muito simples e podia ser resumido a apenas dois pontos: Repblica alem democrtica, una e indivisvel, e guerra com a Rssia, o que trazia implcita a restaurao da Polnia.40 O Apelo para a fundao da Neue Rheinische Zeitung s de passagem mencionava a condio operria. E mesmo assim para, depois de mencionar o desemprego e a misria, dizer que destruir esse estado de coisas, tal o desejo geral, a aspirao unnime.41 O fato de se auto-intitular rgo da democracia, no transformou a Neue Rheinische Zeitung no porta-voz da esquerda parlamentar. Os editores sempre a mantiveram independente, apesar das presses econmicas que sofreram e da perseguio da censura. Atravs da Neue Rheinische Zeitung, Marx e Engels acompanharam o desenvolvimento da revoluo

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europia passo a passo, criticando as vacilaes do partido democrtico e a aliana que a grande burguesia promoveu, desde o primeiro minuto da revoluo, com as classes remanescentes do antigo regime. Essas crticas fizeram com que o jornal perdesse boa parte de seus acionistas logo no primeiro nmero. As baterias do novo jornal estavam dirigidas, desde o primeiro dia s tentativas do governo Camphausen de estabelecer um pacto de governabilidade com a monarquia e as assemblias de Frankfurt e Berlim. J no primeiro nmero Engels denunciou a Assemblia de Frankfurt por no ter tomado nenhuma medida enrgica frente investida do exrcito prussiano sobre os revoltosos de Mongcia. As crticas esquerda tambm so uma constante. Nas eleies para as assemblias de Berlim e Frankfurt havia sido eleito um nmero significativo de democratas. A Neue Rheinische Zeitung acompanhou passo a passo a ao destes. No nmero sete do jornal possvel encontrar uma crtica dos programas do partido democrata-radical e da esquerda de Frankfurt. As palavras so duras: pedimos ao partido denominado democrata radical que no confunda o ponto de partida da luta e do movimento revolucionrio com o ponto de chegada.42 A atitude dos democratas e da burguesia possibilitou o avano da reao. Esse avano se manifestou nas prprias assemblias. Em Berlim, os deputados confiscaram, atravs do voto, a prpria idia da revoluo, negando a sua necessidade e os seus resultados. Hansemmann, lder dos democratas moderados chegou a fazer uso da palavra no parlamento para afirmar que na Alemanha no se produziu uma revoluo, como em Paris, ou como at a Inglaterra chegou a fazer, houve, isso sim, uma transio mediatizada entre a Coroa e o povo.43 A senha para a burguesia havia sido dada pela Inglaterra. A represso a uma manifestao cartista no dia 10 de abril deteve o avano da revoluo. O povo na ma no era mais invencvel. A Inglaterra seguiu-se a Frana, cujo governo reprimiu duas manifestaes semelhantes nos dias 16 de abril e 15 de maio. Na Itlia o poder retornou s mos de Fernando II no dia 15 de maio. Mas os acontecimentos adquiriram grande velocidade com a insurreio parisiense que comeou no dia 23 de junho. Cansado de ver os direitos conquistados em fevereiro sendo usurpados pelo novo governo, o proletariado da capital francesa se ergueu contra o fechamento dos ateliers, criados para dar emprego aos trabalhadores de Paris. Os operrios construram suas barricadas, erguendo bandeiras com a inscrio Po ou morte!. No houve quem ficasse impassvel frente ao acontecido. Ou se estava com os 40 mil trabalhadores insurretos ou do lado dos 200 mil membros do exrcito, da Guarda Mvel e da Guarda Nacional. As regies ocupadas pelos operrios transformaram-se num verdadeiro campo de batalha. O exrcito, chefiado por Cavaignac, respondeu a magnanimidade do proletariado, que se recusou a atear fogo na cidade e promover uma guerra total, bombardeando incessantemente os bairros ocupados pelos trabalhadores. Os combates duraram quatro dias. Inferiorizados numericamente, sem generais,44 e com poucas armas, os operrios resistiram bravamente. Mas foram derrotados. Mais de 3 mil presos foram executados. A revoluo de junho ps um fim era das revolues unnimes. Ela foi a primeira grande batalha entre as duas classes em que se divide a sociedade moderna. Foi uma luta pela conservao ou o aniquilamento da ordem burguesa.45 Os acontecimentos de junho foram acompanhados atentamente por Marx e Engels, que escreveram a respeito algumas das melhores pginas da histria do jornalismo. Suas posies despertaram a ira dos representantes da grande burguesia e dos democratas e o nmero daqueles que apoiavam financeiramente o jornal caiu ainda mais. Nos meses seguintes continuaram a acompanhar o avano da contra-revoluo e a alertar aos democratas honestos dos perigos que estavam por vir. A questo polonesa mereceu da parte de Marx e Engels especial ateno. A Neue Rheinische Zeitung ficou do lado dos polacos, denunciou a diviso da Polnia pela Prssia e pela Rssia e agitou, constantemente, que a nica sada para salvar a revoluo era a guerra contra a Rssia, que viam como um bastio da reao europia. Foi a partir de setembro que a poltica de Marx e Engels comeou a sofrer uma inflexo. Um levante popular ocorreu em Frankfurt, em protesto contra o armistcio com a Dinamarca. A insurreio ecoou em Colnia, onde a Sociedade Democrtica, o Comit de Segurana Pblica e a Associao Operria convocaram uma manifestao de apoio. A anlise que Marx e Engels fazem do levante nas pginas da Neue Rheinische Zeitung adquire contornos marcadamente classistas. Uma prosa vigorosa, semelhante quela utilizada para denunciar o massacre de junho em Paris, e o anncio da revoluo operria que viria ganhavam destaque: (...) todos os partidos sabem que a luta que preparada em todos os pases civilizados uma luta completamente diferente e incomparavelmente mais importante do que todas as revolues anteriores, porque tanto em Viena como em Paris, em Berlim e em Frankfurt, em Londres e em Milo, trata-se de derrocar o poder poltico da burguesia; trata-se de uma revoluo cujas conseqncias imediatas enchem de pavor a todos os burgueses acomodados e especuladores.46 As sucessivas vacilaes da burguesia liberal e dos partidos da esquerda parlamentar levaram Marx a abandonar, progressivamente, o discurso democrtico e a denunciar, com vigor cada vez maior seus antigos aliados, comparando a covardia destes valentia dos trabalhadores nas barricadas. A crtica de Marx burguesia, permanece, entretanto, no terreno definido anteriormente pela Neue Rheinische Zeitung. Marx a critica por ela no conseguir promover sua prpria revoluo e recuar amedrontada. uma crtica levada a cabo, portanto, dentro do ponto de vista do campo democrtico. Somente em 5 de janeiro de 1849 que aparecer o primeiro artigo de Marx denunciando a explorao capitalista.47 O artigo pode ser interpretado como uma ruptura definitiva entre Marx e o movimento democrtico, o que, de fato, deveria ocorrer poucos dias depois. A insurreio de setembro em Frankfurt foi logo sufocada e o governo nomeou o general Pfel para formar um novo gabinete. A represso foi implacvel. No dia 25 de setembro, Becker e Schaper foram presos. Moll, que presidia a Associao Operria a partir da priso de Gottschalk, conseguiu escapar. Os redatores da Neue Rheinische Zeitung tiveram ordens de priso expedidas, acusados de compl contra a ordem estabelecida. A Guarda Civil foi dissolvida e todas as

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organizaes polticas proibidas. O jornal s reapareceu no dia 12 de outubro. Suas pginas relatavam a revoluo ocorrida em Viena no dia 6. Desde o primeiro momento Marx e Engels no duvidaram que Viena seria esmagada. A Assemblia de Frankfurt no fez outra coisa do que patticos chamados a que os governos apoiassem Viena. A vacilao dos democratas, as inteis tentativas das assemblias de Berlim e Frankfurt de fazer um pacto com a Coroa, embora j fosse evidente que ela no aceitaria acordo algum, a hostilidade da burguesia para com a revoluo e o crescente avano da contra-revoluo levaram Marx e Engels a redesenhar sua ttica poltica. As possibilidades de acordo com os democratas eram cada vez mais escassas. Marx decidiu ento aceitar a proposta da Associao Operria e tornar-se seu presidente provisrio, substitudo Moll, que fugira para Londres. Uma assemblia da Associao ratificou a nomeao. Depois de quase um ms de combates as tropas austracas e croatas entraram em Viena e levaram a cabo uma sangrenta represso. No dia seguinte o rei da Prssia substituiu Pfel por um conservador ainda mais enrgico, o conde de Bradenburgo, seu filho ilegtimo. A reao imediatamente lanou a palavra-de-ordem a assemblia a Bradenburgo ou Bradenburgo assemblia, exigindo que a Assemblia Nacional sasse de Berlim e fosse para a pequena cidade de Bradenburgo, onde sua influncia seria bem menor. Caso contrrio o conde poderia intervir com suas tropas. No dia 9, o conde de Bradenburgo ordenou que a assemblia suspendesse suas sesses e que s as retomasse no dia 27, na cidade homnima. A direita parlamentar obedeceu candidamente, mas 263 deputados permaneceram em Berlim. A falta de iniciativa dos parlamentares e o medo destes de que os trabalhadores interviessem na crise, permitiu Coroa dissolver rapidamente a assemblia. Os 180 deputados que resistiram conclamaram o povo a no pagar mais impostos, mas j era tarde demais. No dia 5 de dezembro, Frederico Guilherme dissolveu a assemblia e outorgou uma constituio feita por encomenda. Os acontecimentos motivaram uma detalhada anlise por parte de Marx. Os artigos que publicou na Neue Rheinische Zeitung, com o ttulo A burguesia e a contra-revoluo, expressam a nova postura assumida por Marx. Logo no incio advertia: O terreno que ns pisamos no o terreno jurdico e sim o terreno da revoluo. Tambm a burguesia renunciou hipocrisia do terreno jurdico. Situou-se no terreno revolucionrio, na medida em que o terreno contra-revolucionrio revolucionrio ao seu modo.48 Comparando-a com as revolues inglesa de 1648 e a francesa de 1789, Marx chegava concluso de que a revoluo que teve incio em maro de 1848 em Berlim era uma revoluo anacrnica. Ela no representava a vitria de uma nova ordem social. Sua vitria era como a luz das estrelas que muito tempo depois de haverem se extinguido chega at Terra. A luz da revoluo de 1848 emanava do cadver de uma sociedade que se encontrava h muito tempo putrefata.49 A constituio outorgada por Frederico Guilherme previa novas eleies. Marx e Engels defenderam que a Associao Operria apoiasse os candidatos democratas. Polemizaram com Gottschalk, recm-sado da priso, que propunha que a Associao lanasse candidatos prprios. Marx argumentava que, na medida em que era impossvel a vitria dos operrios era necessrio unir-se aos democratas para impedir a vitria do inimigo comum: a monarquia absolutista.50 Os democratas obtiveram na Rennia uma vitria esmagadora, elegendo 200 dos 344 representantes que participariam da eleio dos deputados. Apesar de sua posio nas eleies, a idia de que a burguesia cumpria um papel cada vez mais contrarevolucionrio e que os democratas eram incapazes de fazer frente de forma conseqente monarquia absolutista adquiria contornos mais ntidos. Ao mesmo tempo, Marx e Engels viam um crescimento considervel do movimento operrio alemo e da ateno que este dedicava aos problemas polticos. No final de janeiro Marx e Engels se reuniram com dirigentes da Irmandade Operria, entre eles Stephen Born, fundador da irmandade e antigo membro da Liga Comunista. A organizao de Bom adquiriu grande influncia entre os operrios e fez parte ativamente da insurreio de Frankfurt. Ao contrrio do que defendia Gottschalk, a Irmandade tinha uma atividade poltica muito forte, tendo participado do congresso dos democratas realizado em Berlim no ms de outubro. A reunio de Marx com os lderes da Irmandade Operria ocorreu pouco depois do congresso que esta realizou em Heidelberg nos dias 28 e 29 de janeiro. O congresso promoveu a unificao da Irmandade, que tinha grande influncia no norte do pas com o Congresso Geral Operrio Alemo, que aglutinava vrias organizaes operrias no sul. As duas organizaes formaram um Comit Central unificado, sediado em Leipzig, que recebeu a incumbncia de convocar um congresso de toda a Alemanha para criar uma Unio Geral dos Operrios da Alemanha. Logo depois da reunio a Associao Operria de Colnia resolveu vincular-se ao Comit de Leipzig. No dia 1 1 de maro a Neue Rheinische Zeitung publicou um documento da Associao Operria propondo a todas as organizaes operrias da regio que estabelecessem ligaes entre si para preparar o congresso. O giro de Marx e Engels ao jovem movimento operrio consolidou-se com a renuncia destes e de seus colaboradores aos postos que ocupavam na Sociedade Democrtica da Rennia. No dia 15, a Neue Rheinische Zeitung publicava uma carta assinada por Marx, Schapper, Annecke, Wolff e Becker: Avaliamos que a organizao atual das associaes democrticas mantm em seu seio elementos por demais heterogneos para que seja possvel uma atividade proveitosa em relao ao objetivo fixado pela causa. Consideramos, entretanto, que um vnculo mais estreito das associaes operrias prefervel porque elas esto compostas por elementos mais homogneos. Esta a razo pela qual nos demitimos, a partir de hoje, do comit regional renano das associaes.51

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Quando encerrou sua curta e atribulada vida, no dia 19 de maio, fechada pelas autoridades, a Neue Rheinische Zeitung j no se dirige a seus leitores como um rgo da democracia e sim como defensora da emancipao do proletariado.52

UMA ERA DE TRANSIOO desligamento do partido democrtico marcou o fim de um perodo da poltica revolucionria de Marx e Engels. A partir da a independncia de classe passou a ser parte integrante do discurso e da prtica de ambos. Engels, por exemplo, recusou-se a participar do governo provisrio de Baden, argumentando que no podi