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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
NÚCLEO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS,
CIDADANIA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Dissertação de Mestrado
O TERRITORIO E A IDENTIDADE ÉTNICA DE PEDRA D’ÁGUA,
INGÁ - PB: história de resistência e memória camponesa
Manoel Felix de Oliveira Júnior
João Pessoa – PB
Dezembro de 2014
2
Manoel Felix de Oliveira Júnior
O TERRITORIO E A IDENTIDADE ÉTNICA DE PEDRA D’ÁGUA,
INGÁ - PB: história de resistência e memória camponesa
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Direitos
Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da
Universidade Federal da Paraíba, junto à Linha
de Pesquisa: Território, Direitos Humanos e
Diversidades Socioculturais, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Mestre
em Direitos Humanos.
Orientadora: Profa. Dra. Maria de Fátima Ferreira Rodrigues
João Pessoa – PB
Dezembro de 2014
3
Manoel Felix de Oliveira Júnior
O TERRITORIO E A IDENTIDADE ÉTNICA DE PEDRA D’ÁGUA,
INGÁ - PB: história de resistência e memória camponesa
Banca Examinadora
Profa. Dra. Maria de Fátima Ferreira Rodrigues (Orientadora)
Prof. Dr. Elio Chaves Flores (Examinador Interno)
Prof. Dr. Josias de Castro Galvão (Examinador Externo)
Prof. Dr. Estêvão Martins Palitot (Suplente do Examinador Interno)
Prafa. Dra. Ivanalda Dantas Di Lorenzo (Suplente do Examinador Externo)
João Pessoa – PB
Dezembro de 2014
4
RESUMO
Esta pesquisa tem como tema central a investigação do território a partir das questões étnico-
raciais e como escala geográfica escolhemos a Comunidade Quilombola de Pedra D'água,
localizada no município do Ingá, situado na Microrregião de Itabaiana, na Mesorregião do
Agreste paraibano. Pedra D’água é uma comunidade rural que apresenta em seu espaço e
cotidiano, características e aspectos que nos remetem a sua história de formação presente no
espaço e na memória de seus moradores. Foi a sexta comunidade quilombola certificada na
Paraíba e possui atualmente aproximadamente de 160 famílias. Localizada a dois quilômetros
do Distrito de Pontina, o povoado mais próximo, encontra-se geograficamente isolada devido
à precariedade do acesso e por situar-se entre serras, sendo cortada pelo rio que dá nome a
comunidade. A sua origem se dá em meados do século XIX, quando na Paraíba aconteceram
dois movimentos sociais, o Quebra-Quilos e o Ronco da Abelha, e alguns relatos sobre esses
movimentos demonstram a participação de antigos habitantes de Pedra D’água nessas
insurgências. Tais informações permeiam a memória coletiva dos moradores dessa localidade.
Este trabalho tem um caráter geográfico, porém buscamos trabalhar na interdisciplinaridade
dialogando com outras diversas áreas do saber, como a História, a Sociologia, a Antropologia
e o Direito. Esperamos com isto oferecer subsídios para a constituição histórica de uma
importante memória local e regional, através da qual a comunidade poderá se apoiar, dando
suporte a suas lutas e reivindicações diárias.
Palavras-chave: Território; Memória; Cidadania; Direitos Humanos.
5
ABSTRACT
This research is focused on investigating of territory from the issues racial-ethnic and the
geographic scale chosen Pedra D'Água Marrom Community, located in the city of Inga,
located in Microregion Itabaiana and in the Agreste Mesoregion of Paraíba. Pedra D'Água is a
rural community that features in your space and everyday features and aspects that are related
to its formation history and this is present in the space and memory of its residents. It was the
sixth marrom community certified in Paraíba and currently has approximately 160 families.
Located two miles from the District of Pontina, the nearest town, is geographically isolated
due to poor access and lie between mountain ranges, being cut by the river that gives name to
the community. Its origin occurs in mid-nineteenth century, when in the Paraíba happened
two social movements, the Quebra-Quilos (Breaking-Kilos) and the Ronco da Abelha (Bee
Buzz), and some reports of these movements show the participation of former inhabitants of
Pedra D'Água in these insurgencies. Such information permeate the collective memory of the
residents of this locality. This paper has a geographical character, but seek to work in
interdisciplinary dialogue with various other disciplines, such as history, sociology,
anthropology and law. We expect this to provide insight to the historical memory of an
important local and regional, through which the community can rely, supporting their daily
struggles and demands.
Keywords: Territory; Memory; Citizenship; Human Rights.
6
Sumário Considerações Preliminares ........................................................................................................ 7
1. PERCEPÇÕES E RELATOS DE CAMPO ......................................................................... 19
1.1 O lugar... ......................................................................................................................... 19
1.2 Um pouco da história da associação... ............................................................................ 24
1.3 Um pouco sobre a educação... ........................................................................................ 31
1.4 As relações de gênero ..................................................................................................... 38
1.5 Políticas Públicas em Pedra D’água ............................................................................... 40
2. RECONHECIMENTO E REPARAÇÃO: instrumentos para a efetivação da cidadania
quilombola ................................................................................................................................ 44
2.1 Conjuntura Política e Direito Quilombola ...................................................................... 47
2.2 Do ser cidadão de um lugar aos direitos territoriais em Pedra D’água ........................... 54
2.3 Da conquista do território à efetivação da cidadania ...................................................... 57
3. DE QUILOMBO À COMUNIDADE QUILOMBOLA: o processo de construção da
identidade étnica ....................................................................................................................... 59
3.1 De Quilombos à Remanescentes de Quilombos ............................................................. 60
3.2 Da emergência étnica à luta pela definição da identidade étnica .................................... 62
3.3 Da estigmatização à autodeterminação ........................................................................... 66
Considerações finais ................................................................................................................. 69
Referências ............................................................................................................................... 77
7
Considerações Preliminares
O texto a seguir apresenta os resultados finais da dissertação de mestrado
intitulada “Território e identidade étnica de Pedra D’água, Ingá - PB: história de
resistência e memória camponesa” desenvolvida junto à Linha de Pesquisa: Território,
Direitos Humanos e Diversidades Socioculturais do Programa de Pós-Graduação em
Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (PPGDH), Núcleo de Cidadania e
Direitos Humanos (NCDH), Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA),
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
O nosso primeiro contato com a história da comunidade Pedra D’água se deu
através do relato familiar acerca de uma reportagem televisionada no noticiário local
sobre uma comunidade rural situada no Ingá, município de nossa origem genealógica,
que passara a ser reconhecida como um remanescente de quilombo.
Em 2006, um trabalho de campo, ao final da disciplina Geografia Agrária1, em
que visitamos as comunidades quilombolas Pitombeira e Talhado Urbano, localizadas
respectivamente nos municípios de Várzea e Santa Luzia na Mesorregião da Borborema
paraibana, nos despertou à ideia da realização do nosso Trabalho de Conclusão do
Curso (TCC) de Geografia sobre a comunidade quilombola Pedra D’água.
No entanto, somente em 2008, ao pagarmos Iniciação a Pesquisa Geográfica, é
que o Projeto de Pesquisa veio a ser elaborado como o trabalho final da disciplina,
iniciando assim a pesquisa bibliográfica. Os primeiros trabalhos de campo começaram a
ser realizados em 2009 e o TCC intitulado “Comunidade Quilombola Pedra D’água,
Ingá - PB: história de resistência e memória camponesa” só veio a ser finalizado e
apresentado em 2012 como trabalho final da disciplina Pesquisa Geográfica.
Pedra D’água é uma comunidade quilombola rural geograficamente isolada o
que representa uma característica comum aos antigos quilombos descrita por Anjos
(2009), devido à precariedade da estrada que lhe dá acesso e por situar-se no vale de
uma região acidentada e entre serras. Dista dois quilômetros do distrito de Pontina,
como é popularmente conhecido, ou Serra dos Pontes, no município do Ingá,
Microrregião de Itabaiana e Mesorregião do Agreste Paraibano, como podemos
visualizar no Mapa 01.
1 Componente curricular obrigatória do curso de Geografia, do Departamento de Geociências da UFPB,
ministrada pela Profa. Dra. Maria de Fátima Ferreira Rodrigues.
9
Pedra D’água possui atualmente cerca de 160 famílias residentes em seu
território, em sua maioria, descendentes do ancestral comum Manoel Paulo Grande que,
segundo Elizabeth Christina de Andrade Lima2, é apontado como o fundador da
comunidade, além disso, os moradores ainda possuem relações de parentesco com
outras três comunidades quilombolas rurais situadas em municípios circunvizinhos. As
comunidades: Grilo, localizada no município de Riachão do Bacamarte, também
representada no Mapa 01; Matias, localizada no município de Serra Redonda; e Matão,
localizada no município de Gurinhém.
Pedra D’água ainda apresenta, em seu espaço e cotidiano, características e
aspectos que nos remetem à sua história de formação e que podem ser observadas tanto
em seu território quanto na memória de seus moradores.
Segundo Cavalcanti (1993) e a história oral coletada por Lima (1992) e contada
através dos relatos de seus moradores mais velhos, a aquisição do território de Pedra
D’água se deu na segunda metade do século XIX, em decorrência da compra de suas
terras por Manuel Paulo Grande a um padre que residia na localidade.
Minha fia eu num sei direito não; quando eu cheguei aqui essa terra já
estava aqui, tinha sido dum padre, a casa dele era aqui nessa janela aí.
Aí o finado Mané Palu comprô. Vêi morreu ele, a muié morreu, ficou
os neto aqui na terra. Agora eu num sei se tem papé, só sei que véve aí
(Zefinha Firmino, 96 anos in LIMA, 1992, p.34).
Foi ele, Mané Paulo, meu bisavô, esse terreno aqui era dele, depois ele
passou pra os fio, dos fio passou pra os neto, depois pra os bisneto,
agora a gente toma conta, cada cá tirou um pedaço, mai foi do meu
bisavô esse terreno todinho (Maria Paulo, 78 anos in LIMA, 1992, p.
35).
Mas segundo Lima (2001, 2004, 2008), Rodrigues (2007) e Maracajá (2010),
também atribuímos a sua origem a dois movimentos sociais – o Ronco da Abelha
(1851-1852) e o Quebra-Quilos (1874-1875) – de rebelião da população pobre e livre e
de escravos da região contra medidas autoritárias do Governo da até então Província da
Parahyba que aconteceram durante o mesmo período do surgimento de Pedra D’água3.
2 Dra. em Sociologia e professora de Antropologia na UFCG, foi a primeira pesquisadora a fazer registros
a partir de relatos orais na comunidade, como resultado obteve a dissertação em Sociologia Rural
intitulada “Os negros de Pedra D’água: um estudo de identidade étnica, história, parentesco e
territorialidade numa comunidade rural” defendida em 1992 pela UFPB – Campus: Campina Grande. 3 Cf. OLIVEIRA JÚNIOR (2012).
10
Com relação ao “papé” que D. Zefinha se refere, isto é, a escritura de compra
das terras de Pedra D’água, uma hipótese que levantamos é que o Registro Eclesiástico,
instituído pela Lei de Terras 601, em 1850, pode ter sido queimado durante as rebeliões,
saqueamentos e incêndios de cartórios durante o Ronco da Abelha e o Quebra-Quilos.
Alguns relatos sobre essas revoltas também demonstram a participação de
antigos habitantes da comunidade nessas insurgências e nos levam a associar tais fatos
ao seu surgimento, essas informações permeiam a memória coletiva dos moradores da
localidade e estão descritas em documentos oficiais e pesquisas acadêmicas4.
P – E Pedra D’água, como foi que surgiu?
I – Tá! Essa história de Pedra D'água eu num sei contá porque isso
num foi no meu tempo. Foi do meu bisavô, agora eu conheci meu avô.
[...] Eu sei que no tempo de... A senhora ouviu falá num tá de quebra-
quilos?
P - Não, o que foi isso?
I - Esse povo era tudo escondido, o meu avô conta essa história de seu
pai; "se não a puliça vem atrai pá levá", mai meu bisavô era muito
sabido; a puliça atrai dele; quando foi um dia entraro aqui na boca da
noite aí minha bisavó chamada Fulozina, [...] diche: "Mané, alí vem
uns trupé", diche que aí quando a puliça chegô na põta, ele virô-se
num gato, sartô pu riba da janela de vexado, de danação, aí o sodado
diche: "Tá! Aqui passô um gato preto"; e era ele, o meu bisavô. Ele
correu puli, puli, puli, naquela loca de mato lá, passô dois dias
escondido naquela grota e a puliça pu todo canto pá levá. Aí ele diche:
"Sabe Fulozina eu vô fazê um negoçu dentro de casa, aí na sala de
janta"; ele passou o resto da noite todinha cavando aquele fosso
quiném tatu; fêi aquele fosso pu debaixo do chão, um buraco bem
grande que desse pra ele passá, tapô tudim, só ficô aquele buraquim da
põta pu povo num vê e, alí, ele comia, bebia, dormia sem, ochêm, sem
ninguém nunca pegá ele (Maria Paulo, 78 anos in LIMA, 1992, p. 34-
35).
relato de Ruzalinha Antunino, 80 anos, nascida em 1912, que o grupo possui
uma declaração de posse de terra emitida na década de 20 do século XX. Segundo ela,
devido a reivindicação das terras da comunidade proprietário de umas terras vizinhas
por Antônio Claudino,
Quando eu nasci, já ouvi dizer essa história que seu Antoin Claudino
queria vim tomar essa terra aqui. Mai essa terra aqui foi do meu
4 Em relação aos movimentos sociais descritos anteriormente, podemos destacar os trabalhos realizados
pelo Grupo de Pesquisa – vinculado ao CNPq (Centro Nacional de Pesquisa) – “Gestar: território,
trabalho e cidadania” – tanto em artigos e relatórios de pesquisa quanto em trabalhos de conclusão de
curso. Cf. RODRIGUES (2007); MARACAJÁ e RODRIGUES (2008); MARACAJÁ (2010).
11
bisavô. Ai eu via meu pai Antunino dizer: “Eu quero ver ele vim
tomar essa terra, se ele vier tomar essa terra ele é ladrão, e ladrão num
tem direito em canto nenhum”. Ele chegava ali em Pontina e dizia:
“Pedra D’água ali é toda minha”, Antoin Claudino só queria vim pra
cá tomar essa terra daqui (Ruzalinha Antunino, 80 anos in LIMA,
1992, p.36).
E segundo Lima (1992), para evitar maiores disputas de proprietários de terras
vizinhas pelo território de Pedra D’água, o Major Honorato Paiva, prefeito do município
de Ingá de 1924 a 1929, emitiu uma declaração de posse coletiva para os descendentes
de Manuel Paulo Grande.
Sobre a história oral transmitida através da memória coletiva dos habitantes de
Pedra D’água, buscamos interpretá-la com base nos argumentos de dois autores, são
eles, Jacques Le Goff (1996) e Maurice Halbwachs (2003). Apoiaremos-nos em relatos
orais ao longo da nossa investigação para tentar elucidar algumas questões importantes
relacionadas ao tema de pesquisa.
Para Halbwachs (2003) a memória é sempre construída em grupo, porém,
também é um trabalho do sujeito, pois quando temos lembranças que formam a
memória, estas estão sempre relacionadas à memória coletiva, ao que um determinado
grupo presenciou e continua a compartilhar.
A nossa memória não é somente nossa, mas também coletiva, pois
utilizamos fragmentos de lembranças que são fornecidos por
indivíduos diversos. Então, o que se imagina ser a memória
individual, na verdade é a união dos fragmentos das lembranças
coletivas (HALBWACHS, 2003).
A memória coletiva tem um lugar de destaque nos processos históricos, pois sem
a memória coletiva não haveria como formar um quadro real e completo dos
acontecimentos e o processo histórico ficaria no mínimo fragmentado (HALBWACHS,
2003).
Já Le Goff (1996), ao destacar a importância da memória, afirma que ela é
essencial para a construção do que se costuma chamar de identidade, individual ou
coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades
de hoje.
Para Le Goff (1996), a memória coletiva não é somente uma conquista, é
também um instrumento e um objeto de poder. Segundo ele,
12
São as sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral, ou que estão
em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que
melhor permitem compreender suas lutas pela apropriação da
recordação e da tradição, que constituem o cerne da memória (LE
GOFF, 1996).
Segundo a Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades
Afrodescendentes (AACADE) e a Coordenação Estadual das Comunidades Negras e
Quilombolas (CECNEQ), o estado da Paraíba possui atualmente 39 (trinta e nove)
comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) – como
podemos visualizar no Quadro 01 – dentre estas, três são urbanas, Paratibe em João
Pessoa, Talhado Urbano em Santa Luzia e Os Daniel em Pombal.
Alguns municípios apresentam mais de uma comunidade quilombola localizada
em seu território, as comunidades quilombolas da Paraíba se encontram distribuídas por
todo o território estadual – como também podemos observar no Mapa 01 – e todas
possuem formações específicas e diferenciadas.
Pedra D’água foi a sexta comunidade quilombola da Paraíba a receber o
certificado de auto reconhecimento pela FCP em 19 de abril de 2005. A Portaria nº 23
foi publicada no Diário Oficial da União em 25 de maio do mesmo ano. O processo de
titulação de suas terras ainda encontra-se em andamento na Superintendência Regional
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA-PB), órgão
responsável na instância federal pela desapropriação, aquisição e emissão do título de
posse territorial em nome dos moradores.
O Engenho Bonfim, localizado no município de Areia, é a única comunidade
quilombola da Paraíba que recebeu o título de posse do seu território no ano de 2009.
Para a titulação é necessário o cumprimento do Decreto nº 4.887, de 20 de
novembro de 2003, reiterado pela Instrução Normativa nº 57, de 20 de outubro de 2009,
que define o procedimento de “regularização para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos”, é o principal instrumento jurídico que
assegura o acesso ao território a partir das questões étnico-raciais, porém dificulta o
processo de titulação devido ao seu caráter altamente burocrático.
13
QUADRO 01 – RELAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DA PARAÍBA
Nº Comunidade
Quilombola
Famílias
(estimado)
Certificação
FCP
Município Mesorregião
01 Paratibe 120 28/07/2006 João Pessoa
Zona da Mata 02 Mituaçú 225 19/08/2005
Conde 03 Ipiranga 50 12/05/2006
04 Gurugí 253 28/07/2006
05 Matão 31 17/11/2004 Gurinhém
Agreste
06 Caiana dos Crioulos 140 08/06/2005 Alagoa Grande
07 Engenho Bonfim 25 25/05/2005 Areia
08 Mundo Novo 24 19/11/2009
09 Cruz da Menina 50 10/04/2008 Dona Inês
10 Grilo 71 12/05/2006 Riachão do
Bacamarte
11 Matias 53 28/07/2006 Serra Redonda
12 Pedra D’água 160 25/05/2005 Ingá
13 Serra do Abreu 28 04/11/2010 Nova Palmeira/
Picuí
14 Areia de Verão 10 09/12/2008
Livramento
Borborema
15 Sussuarana 25 09/12/2008
16 Vila Teimosa 15 09/12/2008
17 Pitombeira 50 28/06/2005 Várzea
18 Serra do Talhado 40 04/06/2004 Santa Luzia
19 Talhado Urbano 200 12/07/2005
20 Lagoa Rasa 36 28/07/2006
Catolé do
Rocha
Sertão
21 Curralinho/Jatobá 50 13/12/2006
22 São Pedro dos
Miguéis
23 13/12/2006
23 Pau de Leite 25 Em processo
24 Santa Tereza 140 07/06/2006
Coremas 25 Barreiras 70 07/06/2006
26 Mãe D’água 125 07/06/2006
27 Umburaninhas 39 07/06/2006 Cajazeirinhas
28 Vinhas 22 20/01/2006
29 Barra de Oitís 150 19/11/2009 Diamante
30 Vaca Morta 48 24/03/2010
31 Contendas 38 07/06/2006 São Bento
32 Sítio Livramento 40 02/03/2007 São José de
Princesa
33 Domingos Ferreira 38 04/08/2008 Tavares
34 Fonseca 30 19/11/2009 Manaíra
35 Serra Feia 140 05/05/2009 Cacimbas
36 Aracatí/Chã 30 Em processo
37 Os Rufinos do Sítio
São João
30 17/06/2011
Pombal
38 Os Daniel 25 17/06/2011
39 Os Quarenta 150 Em processo Triunfo
FONTE: MARACAJÁ (2013, p. 55-56). Dados: FCP, AACADE, CECNEQ, 2014.
Adaptado e atualizado pelo autor em novembro de 2014.
14
O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) de Pedra D’água foi
finalizado no ano de 2009, como podemos observar no relato abaixo, além de ser
levantada a importante questão da contínua falta de terras para o plantio.
Desde 2009 que foi feito aqui o laudo antropológico e... é porque
assim, a terra aqui é muito relativa porque não mudou nada, sabe? E
cada um cuida do seu cada um, no seu território pequeno e mesmo
com a titulação não vai aumentar porque não tem pra onde aumentar...
e vai ficar no mesmo, mas assim, a gente tem que... pra não correr o
risco se alguém chegar e dizer: Não aqui é meu e sai vocês tudinho
[gargalhada] (Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 44 anos, 2014).
No estado da Paraíba, até agora só foram publicadas as portarias de apenas
quatro comunidades quilombolas, são elas: Talhado Urbano em 2011, Pedra D’água em
2012 e Matão e Grilo em 2013, porém como podemos observar, após quase quatro anos
da publicação da primeira portaria no Diário Oficial da União (DOU), nenhuma destas
comunidades possui o título definitivo de posse de suas terras.
Organograma 01: Andamento do processo de titulação de Pedra D’água
Como podemos verificar no organograma a seguir, a comunidade quilombola
Pedra D’água já passou por todo o processo restando apenas a expedição da titulação.
Comunidade Quilombola
Pedra D’água, Ingá,
Paraíba - 160 famílias
(2014)
Certidão de
Reconhecimento da FCP
publicada no DOU
25/05/2005
Relatório Técnico de
Identificação e
Delimitação no DOU
14 e 15/11/2009
Portaria de
reconhecimento
publicada no DOU
11/01/2012
Expedição da titulação
(Aguardando)
15
É importante destacar que a demarcação do território a partir da identidade e da
condição étnica representa para o grupo a apropriação de um território, marcado pelas
relações de poder como estratégia política, e a manutenção da memória, herdada dos
ancestrais, que se materializam nas relações que se processam na paisagem geográfica.
Vale salientar que o debate acerca da questão étnico-racial nas Ciências
Humanas e Sociais, sobretudo na Geografia, tem tido grandes avanços nos últimos anos,
na perspectiva de contribuir com a interpretação sócio-espacial que ajude na construção
de um projeto de nação que comporte a diversidade social e cultural do nosso país, com
suas diferenças e especificidades, na busca pela efetivação de direitos individuais e
coletivos que foram negados ao longo da história.
A pesquisa bibliográfica foi feita em Instituições de Ensino Superior (IES), a
exemplo das Bibliotecas das Universidades Federais da Paraíba (UFPB e UFCG), do
Núcleo e Cidadania e Direitos Humanos (NCDH), do Núcleo de Documentação e
Informação em História Regional (NDIHR) e da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB), em Anais de eventos acadêmicos e em portais especializados em divulgação
científica, a exemplo do Domínio Público, do Scielo e do portal de periódicos da
CAPES/CNPq, com o objetivo de acessar trabalhos que dizem respeito às questões dos
territórios quilombolas.
A pesquisa documental foi realizada na Superintendência Regional do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA-PB) para aquisição de material
cartográfico; e em sítios oficiais, tais como, a Associação de Apoio aos Assentamentos
e Comunidades Afrodescendentes (AACADE), a Coordenação Estadual das
Comunidades Negras e Quilombolas (CECNEQ), a Fundação Cultural Palmares (FCP),
o Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE), a Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e em outras
instituições como o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) e o Ministério da
Educação (MEC).
Também foram realizados trabalhos de campo na comunidade estudada, desde
2009, onde fizemos o levantamento de dados primários, com o registro de conversas
informais, depoimentos e entrevistas semiestruturadas com a população residente na
localidade de estudo e com a liderança política da comunidade, além da aquisição de
material audiovisual e do acompanhamento de reuniões da associação comunitária.
16
Participamos também da pesquisa de campo referente à comunidade Pedra
D’água para a concretização do trabalho de conclusão de curso em geografia de autoria
de Hugo Leonardo Macena, intitulado “Acesso às políticas públicas pelas comunidades
quilombolas na Paraíba: uma análise das comunidades de Paratibe, Mituaçú e Pedra
D’água” em 2010.
Anteriormente a elaboração desta pesquisa, tivemos acesso a materiais de grande
importância que nos subsidiaram e continuam contribuindo para o nosso trabalho, como
a dissertação em Sociologia Rural de Elizabeth Christina de Andrade Lima intitulada
“Os negros de Pedra D’água: um estudo de identidade étnica, história, parentesco e
territorialidade numa comunidade rural” defendida em 1992 pela UFPB.
O material didático “Uma história do Ingá” que possui o capítulo “Pedras
D’água dos negros, Pedras D’água dos brancos...” de autoria de Maria Helena Pereira
Cavalcanti et al. publicado em 1993 pelo NDIHR/UFPB.
O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação intitulado “O Quilombo
Pedra D’água” organizado pelo sociólogo Rogério Humberto Zeferino Nascimento
elaborado por uma parceria entre a UFCG, o ParqTecPB e o INCRA-PB, e finalizado
em 2009.
Subsequentemente, tivemos acesso ao trabalho de conclusão de curso da
historiadora Sandreylza Pereira Medeiros intitulado “Comunidade de Pedra D'água em
Ingá - Paraíba: identidade quilombola autoconstruída ou imposta?” apresentado em
2008 pela UEPB, o artigo de especialização em História do Brasil e da Paraíba
intitulado “Os negros de Pedra D’água: uma discussão sobre o processo de
reconhecimento quilombola” de 2010 pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP), e a
dissertação intitulada “Eu sou Quilombola! Identidade, História e Memória no
Quilombo Pedra D’Água (1989-2012)” defendida em 2012 pela UFCG.
Também tivemos acesso a materiais mais recentes de autoria de Elizabeth
Christina de Andrade Lima como os artigos “Pedra D'água: um território quilombola?”
de 2012 e “Manoel Paulo Grande e os Mitos em torno do Ancestral Comum” de 2013.
Além do artigo de Rogério Humberto Zeferino Nascimento intitulado “Nós
somos outros: apontamentos em torno do exercício da pesquisa antropológica nos
17
quilombos de Pedra D’água e Vaca Morta / PB” publicado no livro Quilombos da
Paraíba5.
Estas pesquisas também nos ajudaram a estabelecer o recorte temporal da
dissertação, que foi escolhido tomando como referência os marcos legais estabelecidos
sobre o tema, como por exemplo, o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal de 1988, e as pautas atuais da comunidade o
período, como por exemplo, o processo de demarcação e titulação do território, as
publicações sobre Pedra D’água e os trabalhos de campo que realizamos e que estamos
realizando na comunidade.
Procuramos trabalhar na interdisciplinaridade buscando estabelecer um diálogo a
partir da Geografia com áreas do conhecimento importantes para subsidiar essa
discussão, como a História, a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia, o Direito e a
Economia.
Apoiados em Santos (2007a, p. 17), buscamos metodologicamente, seguir a
seguinte intenção:
O esforço desenvolvido por economistas dos séculos XVII e XVIII, e
também com o de alguns dos seus colegas contemporâneos que
guardam a antiga tradição da confraria, de abraçar, em um mesmo
esforço de compreensão, o homem, a natureza e os instrumentos de
sua transformação, entre os quais se encontram fatores diversos,
materiais e imateriais, analisados pelas diversas ciências sociais.
Em nome dessa interdisciplinaridade, única a dar conta dos fenômenos ligados à
modernidade, é que sugerimos uma mudança de enfoque no tratamento dos problemas
humanos ligados à recuperação do cidadão (SANTOS, 2007a, p. 17). Ainda segundo
Santos (2007a, p. 17), o modelo cívico forma-se, entre outros, de dois componentes
essenciais: a cultura e o território.
O componente cívico supõe a definição prévia da civilização que se quer, o
modo de vida que se deseja para todos, uma visão comum do mundo e da sociedade, do
indivíduo enquanto ser social e das suas regras de convivência (SANTOS, 2007, p. 17).
O componente territorial supõe, de um lado, uma instrumentalização
do território capaz de atribuir a todos os habitantes aqueles bens e
serviços indispensáveis, não importa onde esteja a pessoa; e, de outro
5 BANAL e FORTES (2013).
18
lado, uma adequada gestão do território, pela qual a distribuição geral
dos bens e serviços públicos seja assegurada (SANTOS, 2007a, p. 18).
Assim sendo, os níveis territoriais-administrativos responderiam aos diversos
níveis da demanda social.
Nessas condições, deve-se falar de um modelo cívico-territorial, a
organização e a gestão do espaço sendo instrumentais a uma política
efetivamente redistributiva, isto é, tendente à atribuição de justiça
social para a totalidade da população, não importa onde esteja cada
indivíduo (SANTOS, 2007a, p. 18).
Para Santos (2007a, p.18), a plena realização do homem, material e imaterial,
[...] deve resultar de um quadro de vida, material e não material, que inclua a economia
e a cultura. Ambos se relacionam com o território e este não tem apenas um papel
passivo, mas constitui um dado ativo, devendo ser considerado com um fator e não
exclusivamente como um reflexo da sociedade.
Pois, é no território, tal como ele atualmente é, que a cidadania se dá
como ela é hoje, isto é, incompleta. Mudanças no uso e na gestão do
território se impõem, se queremos criar um novo tipo de cidadania,
uma cidadania que se ofereça como respeito à cultura e como busca da
liberdade (SANTOS, 2007a, p. 18).
É por isso que destacamos o fato da importância da memória coletiva dos
moradores de Pedra D’água, a terra que eles ocupam e moram, lhes pertence. Desta
forma, o direito a terra é legitimado pela permanência dos descendentes aliado ao
processo de resistência.
19
1. PERCEPÇÕES E RELATOS DE CAMPO
Neste capítulo procuramos trabalhar num caráter retrospectivo desses cinco anos
de pesquisa, para isso, iniciaremos com a descrição e relatos do último trabalho de
campo, assim ligando-os aos anteriores na tentativa de melhor demonstrar as mudanças
e permanências no cenário sócio territorial da comunidade quilombola Pedra D’água.
1.1 O lugar...
No dia 03 de setembro de 2014, em virtude da realização de um trabalho de
campo na comunidade Pedra D’água, nos dirigimos até a localidade em um automóvel
próprio. Logo ao adentrar a porteira que dá acesso a estrada de terra que nos conduz até
a comunidade nos deparamos com um afloramento de rocha no meio da estrada em
decorrência de fatores erosivos devido a retirada da vegetação, tal rocha compromete os
carros que não tem certa altura que devem desviar ou acabam colidindo com a parte
inferior do veículo podendo vir a danificá-lo.
Estrada de acesso à Pedra D’água
Fonte: Acervo de Manoel Felix, 2009.
A estrada de terra, que dá acesso à comunidade, apresenta sulcos é pedregosa,
arenosa, sinuosa e estreita, o que dificulta o tráfego de veículos de médio e grande porte.
Observando a disposição dos cercados que margeiam a estrada delimitam propriedades
circunvizinhas, percebemos o estreitamento da estrada dificultando também o tráfego de
veículos que se deslocam em sentidos opostos, isto é, em mão dupla.
20
Um dos proprietários de terras vizinhas é o vereador Marrisson de Souza e Silva,
mais conhecido na região como Marrinho ou Marrin, que já coleciona vários mandatos
seguidos. A residência desse vereador fica ao lado da porteira que dá acesso a
comunidade, ou seja, a estrada se inicia e segue grande parte cortando as suas terras.
Marrinho também é conhecido por estar sempre disponível e por socorrer a
população nos momentos de necessidade ou precisão. Ele possui um automóvel próprio,
no qual realiza o transporte de urgência de pessoas enfermas do distrito, inclusive da
comunidade Pedra D’água para os hospitais mais próximos, dos municípios de Ingá
para os casos mais leves, e de Campina Grande para os casos mais graves. Tal situação
também é descrita por Rogério Humberto Zeferino Nascimento6 em BRASIL (2009) no
Relatório Territorial de Identificação e Delimitação (RTID) de Pedra D’água.
Figura : Cartaz da eleição 2008 fixado em
janela
Figura: Ao fundo, faixa da eleição 2012 fixado
em fachada de residência
Fonte: BRASIL, 2009. Fonte: Acervo de Alberto Banal, 2012.
Ao nos dirigirmos para a comunidade sempre nos deparamos com
pessoas indo e voltando, seja a pé ou em motocicletas. Neste dia, encontramos no
caminho, também se dirigindo a comunidade, Maria de Lourdes Ferreira da Silva,
presidente da Associação dos Pequenos Agricultores Rurais de Pedra D’água. Maria de
Lourdes também é agente de saúde do município, atuando na comunidade Pedra
D’água, onde nasceu, desde 1991, porém quando ela casou-se, em 1996, foi morar com
o companheiro em um distrito vizinho, denominado Chã dos Pereiras, em busca de um
lugar melhor pra se viver, como podemos observar no depoimento a seguir.
6 Professor Dr. Adjunto do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande.
21
Tinha gente que foi morar lá por falta de estrutura mesmo, porque
assim, quando a gente casa ou quando tem filho, todo mundo quer
uma coisinha melhor, né. E a gente foi por isso, porque aqui quando
eu casei, aqui não tinha energia ainda. Eu casei em novembro de 96, aí
já tava começando, mas aí a casa da gente já tava pronta, já tava
fazendo, aí a gente não tinha como fazer outra aqui. E nessa época
meu esposo era servente de pedreiro, ganhava esse tantinho, do Rio
mandando pra o pai e a mãe fazer a casa, aí a gente não podia fazer
outra, aí eu já trabalhava, aí eu continuei trabalhando aqui e morando
lá. Agora a minha vida sempre foi essa, eu sempre morei lá, mas eu
sempre tô aqui. E tem a casa de mamãe, agora a pouco fez a de papai e
tô vivendo assim até que Deus quiser, quando eu puder. Agora o meu
sonho era morar no sítio, pra que? Criar galinha, plantar, criar e viver
essa vida que eu gosto [risadas] (Maria de Lourdes Ferreira da Silva,
44 anos).
Maria de Lourdes costuma ir sempre à comunidade Pedra D’água tanto a
trabalho quanto por ser o lugar onde a maioria dos seus parentes reside. Ela demonstra
enorme vontade de voltar a estabelecer residência em Pedra D’água, todavia reforça a
importância do que conseguiu construir e obter em outro lugar. No depoimento abaixo,
explica como eram vistas as pessoas que moravam na cidade, ela utiliza a palavra “rua”
se referindo a cidade (meio urbano) em contraposição ao “sítio” se referindo ao campo
(meio rural).
É porque a gente já sabe que morar na rua, era quem podia morar na
rua, quem era do sítio, só podia morar no sítio, por conta de que morar
na rua tinha que pagar água, pagar luz e tinha que ter recurso. E quem
morasse na rua, assim, a gente achava que era quem não trabalhava na
roça, e hoje não, depois disso não, a gente sabe que quem mora na rua
tem dificuldade também igual quem mora no sítio, tem pessoas que
não são empregadas, que não tem emprego, né, e moram lá e
trabalham na roça, são agricultores normais, só moram na rua. E até
porque eu quando me casei que fui morar lá, aí teve uma amiga minha
que perguntou se lá o pessoal ia lá na minha casa olhar minhas coisas,
olhar o que eu tinha, descobrir minha panela que era pra saber o que
eu já comprei, e eu disse: na minha casa mesmo não. Na minha casa
quem manda sou eu [gargalhada] (Maria de Lourdes Ferreira da Silva,
44 anos).
Nessa fala, Maria de Lourdes também demonstra uma mudança na sua visão de
mundo a que ela estava restrita ou acostumada e a coragem de defender seu patrimônio
particular. Ela relata como é a vida na cidade e a compara com a vida no campo.
E na rua não tem porque a gente fica dentro de quatro paredes, né? A
gente não tem espaço, lá eu crio, mas fica dentro do meu quintalzinho
22
fechado, porque se for pro do outro, o outro não gosta, quem é que
quer galinha fazendo sujeira no seu terreiro sem ser sua, até porque na
rua o povo come as galinhas dos outros sem pedir (risadas), aí eu só
tenho pouquinhas, e aqui não, aqui tem a família de mamãe, as
meninas que moram com mamãe, minhas irmãs tudo cria de tudo, cria
gado, galinha, bode, porco, tudo a gente cria, aqui é acostumado a
criar, plantar, tudo a gente planta, aqui não se compra batata, não se
compra inhame, não se compra macaxeira, isso tudo, feijão, milho,
isso tudo a gente tira do sítio. É tanto que meu esposo trabalha em
João Pessoa, mas a gente tem um roçado, a gente vai no roçado de oito
em oito dias lá ver, a gente não compra milho, essas coisas de casa, a
gente não compra feijão, fava, essas coisa a gente não compra (Maria
de Lourdes Ferreira da Silva, 44 anos).
Ao questionarmos sobre a ida de jovens para a cidade ou o processo de migração
para outros centros urbanos, como por exemplo, o Rio de Janeiro, ela nos relata que tem
diminuído bastante em decorrência de mais oportunidades de trabalho.
E aqui tem muitas casas novas, tanto é que os meninos casam e
continuam aqui. E hoje não tem mais essa coisa de ir morar na cidade,
só se for pra o Rio, porque pra morar em Chã, Pontina ou Juarez que é
a mesma coisa de estar aqui em relação a trabalho, não. Os rapazes
ainda continuam indo para o Rio, as moças daqui não vai muito não.
[...] A maioria dos jovens tá trabalhando em João Pessoa, aqui agora
pra ir pro Rio mesmo, vão poucos, há não ser os que já tão lá, é
complicado, né? Meu esposo já faz cinco anos que ele não vai pro
Rio, ele trabalhou cinco anos em Campina e agora tá trabalhando em
João Pessoa, é melhor porque vem em casa toda semana, não fica tão
separado, porque quando vai pro Rio é oito meses, um ano, dois anos,
aí daqui a pouco a mulher arruma outro aqui o homem arruma outra
lá, e começa do outro lado (Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 44
anos).
Ela nos relata um pouco das condições de trabalhos dos homens da comunidade,
citando como exemplo o caso do seu marido. Um trabalho em outro município, distante
da família, em que só se pode voltar pra casa nos finais de semana, quinzenalmente ou
apenas uma vez ao mês, sem carteira assinada, mas que os homens demonstram saber o
lado negativo disso, mas acabam se submetendo por necessidade.
Meu marido trabalha em João Pessoa na construção civil, ele é
pedreiro, vai na segunda e volta na sexta, ele começou em João Pessoa
esse ano, ele não gosta de trabalhar muito em João Pessoa não, porque
a passagem de ônibus é muito cara em vista de Campina, né? Não é
que é cara, é porque João Pessoa é mais longe. Campina é 8 reais pra
ir e vim, pra João Pessoa são 50, aí no mês quando somar quatro
semanas já são 200 reais do salário, fora alimentação, e por enquanto
23
ele tá trabalhando com carteira branca aí sai tudo do bolso dele. Mas
não é falta de opção não, é porque ele quer, assim, o rapaz que ele tá
disse que não vai assinar agora porque ele tem lá os motivos dele e
eles aceitaram, não tão forçados, foram eles que aceitaram, com
promessa que vai assinar e até porque eles acham que trabalhando
assim ganha mais, sem dúvida, mas só que não recompensa, porque
em caso de acidente eles sabem que estão descobertos, ele não gosta
não, ele tá trabalhando de pedreiro civil, mas ele disse que vai sair ou
vai assinar a carteira dele ou ele vai sair pra outro lugar, até dezembro,
ele fica até dezembro porque ele tava com carteira assinada até
fevereiro aí ele ainda fica coberto até dezembro (Maria de Lourdes
Ferreira da Silva, 44 anos).
Maria de Lourdes também nos descreve seu conhecimento sobre o dia-a-dia do
marido, sua preocupação acerca das condições em que o marido se encontra em outra
localidade, nos chama atenção o fato do apego ao lugar de morada, as relações
familiares e de parentesco e do papel da mulher na vida da comunidade. A situação em
que se encontra o marido de Maria de Lourdes nos possibilita observar a precariedade
de não possuir os direitos trabalhistas respeitados que nos remete sobretudo a discussão
dos direitos humanos, pois ele poderia viver com mais dignidade se no seu lugar de
origem houvesse políticas públicas adequadas.
Ele vem toda semana, tem esses alternativos que pegam em casa e
deixam em casa, fica mais caro um pouquinho, mas vale a pena, vai
ficar lá sem parente, vai ficar lá com a roupa suja, sem uma comida
boazinha de casa, aí eles preferem vim do que ficar lá, porque pra eles
ficarem lá, eles gastam mais do que a passagem, porque vindo pra
casa, faz uma feira junto, pra todo mundo em casa, quem tem família
grande, pra todo mundo, faz uma feira e fica em casa descansa, três
noites dorme em casa, do que tá lá jogado (Maria de Lourdes Ferreira
da Silva, 44 anos).
Também nos são relatas as dificuldades de meios de transporte e alguns
benefícios dos transportes alternativos, apesar de ser de nosso conhecimento que muitas
vezes eles significam um risco para a vida dos passageiros em virtude de não serem
regulamentados e circularem na clandestinidade e da falta de fiscalização.
Porque antes, era de quinze em quinze dias, porque era muito difícil
assim transporte, porque só tinha passando na BR e na BR ficava ao
Deus dará lá, sete horas da noite e cadê transporte? Aí os meninos
daqui vinha mais por mês, mas agora não, vem toda sexta, até o
menino daqui mesmo, de Pontina carrega e leva uma turma toda
segunda e toda sexta vai buscar. Nem vai naquele corre-corre com
24
medo de perder transporte porque era uma agonia levantar de
madrugada e quase que já tá na hora, de três e meia da manhã ele saia
de casa, ele pegava uma van e saia... entrava num canto, em Juarez,
em outro canto, aí agora não, tem um menino daqui mesmo, aí ele vai
e só leva quatro pessoa, aí ele sai de quatro e meia, olha aí o quanto
melhorou! Aí ele levanta as quatro, dá tempo tomar banho, tomar o
café aqui aí espera sem pressa e sem medo que não vai ficar, porque o
bom é que sabe que vai passar aí, se não tiver na hora espera dois
minutos, dez minutos, espera né? E esses outros, não, não chegou na
hora perdeu, aí é mais difícil porque se arrisca mais nesses alternativos
por conta disso (Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 44 anos).
As dificuldades no cotidiano dos homens durante a semana de trabalho duro são
sanadas aos finais de semana de descanso em casa junto de seus familiares que nos são
descritos com satisfação.
1.2 Um pouco da história da associação...
Voltando ao relato do campo, ao avistarmos Maria de Lourdes na estrada à
caminho de Pedra D’água, paramos e oferecemos uma carona até a comunidade.
Chegando lá, nos dirigimos ao prédio da atual sede da associação dos moradores, o que
nos fez relembrar a antiga e pequena sede anterior, que observamos nas figuras abaixo e
acompanhamos os relatos da construção do prédio no ano 1984 e o porquê de nunca ter
havido uma reforma, como veremos nas descrições a seguir.
Figura : Frente da antiga sede da associação Figura : Dia de reunião na antiga associação
Fonte: Trabalho de Campo, 2009. Fonte: Trabalho de Campo, 2009.
Foi feito pela igreja né, pela paróquia, e a gente não quer por que
quando ele chegar vai querer botar o nome como foi a prefeitura que
fez, aí pegou já o bonde andando e quer continuar como se tivesse
25
feito isso, ai a gente não aceita, nesse ponto a gente não aceita,
também nós não fomos a eles pedir material, essas coisas de reforma
não, eu sei que tudo a gente tem que pedir, que falar com ele né,
reivindicar, só que eles não, todo mundo vem aqui, isso aqui não é
novo. Isso aqui foi feito em 84, até hoje não chegou um prefeito e nem
um vereador que dissesse assim aquilo tava bom de uma reforma, será
que eles não verem, ai a gente não também não foi atrás. Aqui é salão
comunitário, a associação tá utilizando, porque aqui é utilizado pra
atendimento médico, PSF, quando vem do convênio atende aqui,
vacinação, o peso, quando é pra pesar eu peso aqui, e todo tipo de
reuniões a gente faz aqui, porque a gente não tem outro local de
família, então eu acho que por ter tanta utilidade pra prefeitura não é
(Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 39 anos).
Esse relato nos foi dado por Maria de Lourdes em 2009, no nosso segundo
trabalho de campo, isso demonstra a permanente falta de interesse do poder público
municipal de investir na comunidade assim como o receio que os moradores tinham em
procurar uma ajuda e ter sua história de luta e passado apagada através da apropriação e
nomeação de um lugar que já é seu por direito. Sobre a criação da associação
comunitária ano de 1996 e Maria de Lourdes também nos relata como aconteceu e da
participação de importantes agentes que ainda estão presentes na comunidade até hoje.
Essa associação, ela já é muito antiga, ela é de 96, que foi num projeto
pra colocar energia aqui. Essa associação era meio parada, assim não
existia, mas que num era mobilizada. Então chegou esse padre Luiz,
que ele trabalha com as comunidades quilombolas e os assentamentos,
ele é voluntário, ele é italiano, ai cegou aqui na Paraíba, a história dele
eu não sei bem, eu sei que ele chegou e começou ajudando as
comunidades quilombolas, aí a partir disso aí que a gente foi se
desenvolvendo, aí começou a associação veio ficar mais ativa e
através de Padre Luiz e Francimar que tem uma associação que
trabalha com isso (Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 39 anos).
Duas figuras bastante lembradas pelos moradores de Pedra D’água são Luíz
Zadra e Francimar Fernandes de Souza, representantes da Associação de Apoio aos
Assentamentos e Comunidades Afrodescendentes (AACADE), uma entidade sem fins
lucrativos que iniciou sua atividade em 1997 com um grupo de profissionais voluntários
(professores, educadores populares, assistentes sociais, agentes de saúde),
comprometidos com as populações do campo, em especial com os trabalhadores sem
terra, agricultores familiares e comunidades quilombolas.
26
Figura : Luíz Zadra e Maria de Lourdes Figura : Construção da atual da associação e a
residência de D. Jandira ao fundo
Fonte: Acervo da Associação, 2010. Fonte: Acervo da Associação, 2010.
O atual Centro Comunitário de Pedra D’água foi construído através de um
multirão dos moradores e o serviço dos pedreiros e serventes foi pago com recursos de
parcerias estabelecidas entre a Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades
Afrodescendentes (AACADE), com o apoio da Coordenadoria Ecumênica de Serviço
(CESE), do Projeto Casas de Leitura e financiamento internacional da Reed Business
Information da Itália, da Associação La Goccia Onlus e amigos da Itália que contribuem
com ajudas financeiras, e o prédio foi inaugurado no dia 04 de dezembro de 2010. É
importante destacar que, na época, não houve nenhuma ajuda por parte do poder público
municipal, assim como não acontecia com o antigo salão comunitário.
A chave do prédio da associação fica guardada na casa de Dona Jandira Firmino
Paulo (77 anos) que também é uma importante liderança da comunidade, tendo exercido
a função de parteira durante muito tempo, além de ter sido responsável por algumas
mobilizações da comunidade no passado. Hoje ela é aposentada como trabalhadora rural
e se orgulha de relatar que ajudou a colocar a maioria dos pedradaguenses no mundo. A
sede da associação que fica localizada à esquerda na porção plana do terreno logo na
entrada da comunidade, ao lado da residência de Dona Jandira que foi quem doou o
terreno para a construção do novo centro.
27
Figura : Atual sede da associação Figura : Interior da atual associação
Fonte: Trabalho de Campo, 2014. Fonte: Trabalho de Campo, 2009.
A nova sede da associação possui um salão equipado com mesas e cadeiras,
estante e armário, uma cozinha com um fogão industrial e uma estante de mantimentos,
um frízer, dois quartos com três beliches e um guarda-roupa, um dos quartos está
servindo como um depósito de materiais de trabalho, como instrumentos de trabalho,
como uma carroça de mão, óleo usado armazenado em garrafas pet para a produção de
sabão em barra; ou objetos obsoletos, como o computador antigo, estantes com livros
que nos parecem em desuso, além de possuir um banheiro com uma caixa d’água.
Figura : Atual sede da associação Figura : Interior da atual associação
Fonte: Trabalho de Campo, 2014.
Maria de Lourdes nos relatou que “hoje a gente tem um espaço que serve pra
tudo, um ponto que é da gente e sabe que ninguém vai tirar a gente daqui!” e que Pedra
D’água também já recebeu a visita de cindo estudantes italianas que vieram conhecer a
comunidade e ficaram alguns dias hospedadas na atual sede da associação.
28
Figura : Cozinha Figura : Fogão industrial
Fonte: Trabalho de Campo, 2014.
Figura : Maria de Lourdes nos mostrando
o frízer da associação
Figura : Estante de mantimentos
Fonte: Trabalho de Campo, 2014.
Figura : Materiais depositados no quarto Figura : Máquinas de costura e manequins ao
fundo
Fonte: Trabalho de Campo, 2014.
29
O fogão industrial e o frízer foram conseguidos através de uma doação da
Alpargadas uma fábrica de calçados nacional que tem uma seda no município de Ingá.
Na sede do centro quilombola de Pedra D’água, também funcionou um curso de
corte e costura de 200 horas/aula pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico
e Emprego (PRONATEC) que começou em janeiro e terminou em abril. Nas fotografias
abaixo, podemos visualizar as máquinas de costura da comunidade e algumas das peças
que foram confeccionadas pelas mulheres que participaram dessa capacitação e que
ficam expostas em manequins no salão da associação.
Figura : Roupa confeccionada
na associação e armário
Figura : Banheiro
Fonte: Trabalho de Campo, 2014.
Maria de Lourdes nos contou das atividades realizadas pela associação, como
por exemplo, todo mês ela realiza a pesagem com as crianças de 0 a 7 anos de idade
cujas mães são beneficiárias do Programa Bolsa Família, além da vacinação de crianças
até os 5 anos e destacou a participação que é predominantemente feminina.
Por outro lado temos uma associação que é de agricultores, mas é
mais de agricultoras, tem mais mulheres do que homens associados, e
o corpo da associação, a cabeça, o presidente, a tesoureira, é só
mulheres. Tudo o que a gente vai fazendo na comunidade as mulheres
são de frente porque elas tem mais disposição, tem mais ideias. Quem
faz o trabalho todo da associação, como festas, organizar multirões,
estas coisas, tudo é as mulheres que estão de frente, os homens
ajudam, mas a grande participação é das mulheres. Vez os homens
não querem vir, as mulheres fazem tudo sozinhas, se não tiver
30
homens, as mulheres fazem assim mesmo, não tem problema (Maria
de Lourdes Ferreira da Silva, 43 anos, 2013).
O papel da mulher na comunidade vem ganhando destaque ao longo do tempo,
não que anteriormente elas não tivessem importância, mas devido as mudanças que vem
ocorrendo, a visibilidade do protagonismo feminino e transformações na mentalidade
são claros entre elas, ao falar sobre o curso de corte e costura na comunidade Maria de
Lourdes nos fala sobre essas mudanças que vem ocorrendo nas relações.
Chegou um curso de corte e costura organizado pela AACADE e
amigos da Itália, formamos um grupo de vinte mulheres, então nesse
grupo a gente conversa muito, discute a vivência dentro de casa,
compartilha experiências e isso mudou bastante a cabeça das
mulheres, elas ficam mais independentes, fazem as suas costuras e o
dinheiro é delas, deste jeito se tornam um pouco mais independentes
do marido e por conta disso melhorou bastante a vida das mulheres
(Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 43 anos, 2013).
Então, Maria de Lourdes resgata um pouco da sua história de vida, identificando
as alterações percebidas por ela na vida das mulheres.
Quando comecei a trabalhar aqui em 1991, as coisas eram muito
difíceis, a gente não tinha apoio de ninguém, não era reconhecida nem
nada, a gente era muito discriminada, quando ia pra feira, quando ia
sair, tudo era os homens, as mulheres ficavam em casa, não tinham
direito de sair pra nada. Depois começaram chegando pessoas,
Francimar com os amigos italianos, elas começaram mudar a nossa
mentalidade, fazer reuniões, nos orientar, assim mudou bastante a
mente, a cabeça das mulheres daqui. E hoje elas são já mais abertas ao
diálogo, tem mais conhecimento e vivem bem melhor, mudou bastante
(Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 43 anos, 2013).
Percebemos nesta fala, a importância que ela dá ao reconhecimento que se
possui hoje, a discriminação do gênero masculino com relação ao feminino era e ainda é
bastante acentuada, a falta de direitos iguais para os dois sexos, porém a chegada de
agentes externos que contribuíram para a modificação da mente, da “cabeça” das
mulheres, e mudou o cotidiano da comunidade, pois se a mentalidade das mulheres
muda, o pensamento dos homens também deve mudar. E isto tudo nos é relatado e visto
como algo muito positivo.
31
1.3 Um pouco sobre a educação...
Após visitarmos a nova sede da associação de moradores e conversarmos um
pouco com Maria de Lourdes, partimos para a antiga sede, como podemos observar nas
figuras abaixo, onde hoje funciona um projeto de reforço escolar para as crianças da
comunidade que estava acontecendo e onde observamos e dialogamos um pouco com as
monitoras.
Figura : Josefa em frente ao salão Fig. : Momento de atividade
Fonte: Trabalho de Campo, 2014. Fonte: Trabalho de Campo, 2014.
Ao conversar com Josefa Firmino da Silva, 21 anos, moradora da comunidade e
monitora do Projeto Escrilendo7, a mesma nos relatou que o referido projeto não visa
substituir a escola, tenta ajudá-la com a prática de atividades focadas na leitura com o
objetivo de aprimorar os conhecimentos de português e matemática por serem as
disciplinas de maior dificuldade dos alunos.
Quando terminei o ensino médio eu não pensava que fosse fazer
alguma coisa na vida, pensava só que era pra concluir e pronto. Daí
veio aparecendo algumas oportunidades, assim os meus sonhos de
estudar não deixaram de existir, surgiu aqui na comunidade
quilombola o Projeto Escrilendo e eu fui convidada pra fazer parte
deste projeto. Foi com a chegada deste projeto que eu comecei a pegar
certos rumos da minha vida que eu nunca pensei que fosse tomar
(Rosemary Netto, 21 anos, 2013).
7 Escrilendo é um projeto de leitura e escritura desenvolvido por Casas de Leitura em colaboração com
Casa dos Sonhos. Escrilendo é uma atividade da Associação de Apoio as Comunidades Afrodescendentes
da Paraíba - AACADE.
32
Desta forma, este projeto ajuda não só as crianças da comunidade, mas também
as jovens que desejam se inserir no mercado de trabalho e adquirir uma fonte de renda
para ajudar no orçamento familiar assim como desenvolverem um ofício profissional.
Abaixo, podemos acompanhar o relato de Alberto Banal8 sobre a implantação deste
projeto na comunidade Pedra D’água.
Em 2011 uma ajuda inesperada da associação Uniti per la Vita di
Arese/Itália, permite a instalação do projeto Escrilendo na
comunidade quilombola de Pedra d’Água. Num primeiro momento
fizemos um levantamento sobre a situação da escola da comunidade, a
formação das turmas e o nível de aprendizado dos alunos. O resultado
foi dramático e bem abaixo do esperado. A estrutura da escola é
bastante precária; as duas salas, uma das quais sem janelas, são
totalmente inadequadas para qualquer tipo de didática. Um único
espaço serve como sala de direção, sala dos professores, sala de
reunião e cozinha. A geladeira e o armazém são quase vazios, com a
consequência que a merenda é absolutamente insuficiente, quando não
falta (Alberto Banal, 2011).
Podemos observar um pouco do relato sobre a precariedade da estrutura física e
dos recursos da Escola Municipal de Ensino Fundamental José Pontes da Silva, onde
funciona apenas a primeira fase do ensino fundamental nos turnos da manhã e tarde, e a
noite a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Figura : Alunos merendando na calçada Figura : Antiga sala de aula
Fonte: Trabalho de Campo, 2009.
Podemos perceber através do relado de Alberto em 2011, que a situação de
precariedade da escola não mudou desde que a visitamos em 2009.
8 Italiano, integrante da AACADE, diplomado pelo Liceo Classico Maffai de Verona, doutor em Filosofia
pela Universitá Degli Studi de Milão (Itália), jornalista, historiador e fotógrafo.
33
As turmas são multisseriadas com alunos de idade e conhecimento
muito diferente. Só para dar um exemplo, os 19 alunos do terceiro e
quarto ano, cursam juntos com uma idade de 9 as 16 anos, somente 6
são regulares, os restantes são repetentes de um a sete anos (Alberto
Banal, 2011).
Em Pedra D’água, o Projeto Escrilendo teve início em outubro de 2011, quando
duas jovens moradoras da comunidade foram selecionadas para participar da formação e
receber um treinamento com pedagogas para aprender a lidar com as crianças e como
desenvolver as atividades. Através de oficinas, esta capacitação foi realizada na Casa
dos Sonhos9, uma instituição beneficente e sem fins lucrativos que desenvolve trabalhos
com crianças e adolescentes, localizada no município de Santa Rita.
Alberto nos relata com mais detalhes as etapas da implantação do Projeto
Escrilendo na comunidade.
Concluída a análise e estabelecidos os objetivos, a etapa seguinte foi a
escolha e a formação das futuras monitoras, Rosemary e Josefa, ambas
nascidas e criadas na comunidade. O processo formativo foi
gerenciado por Danielle coordenadora de Escrilendo. Três dias
intensos de trabalho teórico e prático, uma imersão total na
experiência da Casa dos Sonhos. A semana seguinte foi dedicada a
supervisão logística na comunidade e a preparação das primeiras
semanas de trabalho. No dia 12 de outubro foi realizado um encontro
com os pais para apresentar a análise da situação da escola da
comunidade e ilustrar o projeto Escrilendo. As atividades começarão
no dia 25 de outubro com 25 alunos; três dias por semanas para
contribuir na recuperação do tempo perdido (Alberto Banal, 2011).
Durante este curso de formação, estas duas moças de Pedra D’água juntamente
com duas outras da comunidade quilombola Grilo viajaram para João Pessoa onde
ficaram hospedadas durante uma semana na casa do fotógrafo italiano Alberto Banal
responsável pela inserção deste projeto nestas comunidades.
A seguir acompanharemos o relato detalhado de Alberto Banal sobre o objetivo
e a implantação do Projeto Escrilendo na comunidade quilombola Pedra D’água, de um
ano de atividades e da expansão deste projeto para outras comunidade como Grilo e
Matão.
9 A casa dos sonhos é uma instituição criada por Estela e Judith, duas freiras argentinas que a partir de
2004 resolveram comprometer-se com a comunidade de Santo Amaro, no município de Santa Rita,
Paraíba.
34
O projeto Escrilendo se propõe de estimular nas crianças, adolescentes
e jovens o gosto pela leitura e de garantir o acesso á leitura literária
buscando intensificar e qualificar estas práticas de leituras nas
atividades de letramento, vivência da leitura envolvendo-as em várias
atividades lúdico-formativas; como chás poéticos, rodas literárias,
visitas às escolas, tenda da leitura, empréstimos de livros, hora do
conto, e o tradicional reforço escolar para melhorar o desenvolvimento
no processo de aprendizagem das crianças e adolescentes, visando à
diminuição dos índices de repetência escolar (Alberto Banal, 2012).
Fig. Chegada a Casa dos Sonhos Fig. Despedida após a formação das monitoras
Fonte: Acervo Alberto Banal, 2009.
O projeto Escrilendo começou as suas atividades em 2009 na Casa dos
sonhos em colaboração com Casas de leitura. Num segundo momento
ampliou a sua atividade no quilombo de Pedra d’Água (município de
Ingá) no mês de outubro de 2011 com 25 alunos entre 6 e 13 anos,
divididos em duas turmas. As duas monitoras foram escolhidas na
comunidade e tiveram a possibilidade de um período de formação na
Casa dos sonhos. A formação é planejada mensalmente com a
intervenção de uma monitora e mediadora de leitura da Casa dos
sonhos. No mês de julho de 2012 o projeto foi implantado no
quilombo do Grilo (município de Riachão de Bacamarte): duas turmas
por um total de 24 alunos do ensino fundamental. Também neste caso
as duas monitoras pertencem à comunidade (Alberto Banal, 2012).
Até hoje conseguimos sustentar as atividades e a compra do material
didático com recursos próprios e com a ajuda de amigos italianos e da
associação “Uniti per la vita” de Milão (Alberto Banal, 2012).
O público alvo do projeto é formado por alunos do ensino
fundamental, os quais na totalidade dos casos enfrentam grandes
dificuldades na aprendizagem por causa da péssima qualidade das
escolas da comunidade e pelo fato de fazer parte de turmas
multisseriadas de idade bastante diferente. Graças às metodologias
lúdicas didáticas usadas no projeto, muitos alunos estão conseguindo
resultados inesperados na leitura, na escrita, no faz de conta, etc... Na
semana da leitura organizada em Pedra d’Água no final do primeiro
ano de atividade os alunos conseguiram mostrar as novas habilidades
adquiridas lendo em público cordéis, poemas e contos escritos por eles
mesmos. Nesta comunidade, (Pedra d’Água) o relacionamento e a
colaboração com a escola são continuas e positivas (Alberto Banal,
2012).
35
A organização dos trabalhos foi feita com muita paixão pela
coordenadora do projeto Danielle. Análise e avaliação dos últimos
dois meses de atividade e planejamento dos próximos;
compartilhamento de ideias, propostas, dificuldades vivenciadas nas
várias turmas e muita vontade de ir para frente. Um momento muito
legal e empolgante foi a apresentação de quatro contos inventados
pelas crianças do projeto. A ideia surgiu quando, dois meses atrás, o
nosso amigo Marco Antônio, de volta de uma viagem de trabalho ao
Mato Grosso, presenteou as turmas das duas comunidades com dois
belíssimos fantoches: uma arara e um tucano. Logo cedo as crianças
decidiram de “batiza-los”: a arara se chamou de Araragaio
(arara+[papa]gaio) e Marco Colorido (em homenagem a Marco
Antônio); o tucano se chamou de Jubileu e Tuca. A arara e o tucano se
tornaram assim os heróis de quatro contos fruto da fantasia das
crianças. Contos ingênuos, simples, limitados na linguagem e nem
sempre linguisticamente corretos; mas se pensarmos que muitas destas
crianças, depois de dois ou três anos de escola, ainda não sabem ler e
escrever adequadamente parece quase incrível elas conseguirem
escrever estes textos. Num segundo momento as monitoras irão fazer
uma revisão do texto com as crianças enfrentando o estudo da língua
portuguesa num jeito muito mais próximo da vida real. Por final,
superando os medos das monitoras, pedimos-lhes improvisar uma
leitura dos contos; a mesma gravação não tem pretensão profissional
nenhuma: é somente um simpático registro de uma boa experiência
(Alberto Banal, 2012).
Fig. : Atual fachada da Escola Fig. : Mudança na sala de aula
Fonte: Trabalho de Campo, 2014. Fonte: Acervo Alberto Banal, 2014.
Nas imagens anteriores podemos visualizar as mudanças físicas no prédio da
escola com a compra de caixas d’água que a população chaga a recorrer nos períodos do
ano em que as chuvas são escassas, assim como na estrutura da sala de aula, com a
compra de cadeiras e carteiras novas, mesa pra professora, revestimento do piso e das
paredes, mudança na cobertura do telhado, frízer e filtro com água, entre outras coisas.
A seguir acompanhamos o relato sobre a dificuldade na formação de uma das
monitoras e as mudanças em sua mentalidade e hábitos.
36
Tivemos uma formação, mas não foi nada fácil, muita dor de cabeça
pra entrar naquele ritmo, mas ao mesmo tempo posso dizer que a
minha mente se tornou mais aberta. Eu não tinha costume de ler, mas
graças ao hábito do projeto, agora também na sala de aula, fico lendo
muito mais (Josefa, 20 anos, 2013).
Nas figuras abaixo, podemos observar uma das oficinas de formação realizadas
na comunidade no dia 18 de maio de 2014 com as monitoras do projeto Escrilendo.
Participaram Rosângela, Cirleide e Renata do quilombo Matão; Rosemary, Josefa e
Maria José do quilombo Pedra D’água e Marília que será monitora do projeto
Escrilendo no quilombo Matias. Assim como também visualizamos a realização de uma
das atividades dessas oficinas.
Figura : Oficina de Formação na Sede da
Associação de Moradores de Pedra D’água
Figura : Momento de realização de atividade
lúdica
Fonte: Acervo de Alberto Banal, 2014. Fonte: Acervo de Alberto Banal, 2011
Eu já tinha um sonho: ser professora, ser pedagoga, mas graças a este
projeto eu pretendo quando concluir o ensino médio, me formar em
Pedagogia. Eu acredito que os caminhos estão abertos pra mim, meu
futuro vai ser bom! (Josefa, 20 anos, 2013).
Segundo o depoimento da monitora Josefa, no final de 2013, ela conseguiu
concluir o ensino médio na Escola Estadual de Ensino Médio Luiz Gonzaga Burity,
situada no distrito de Pontina, e “graças ao Projeto Escrilendo”, ela conseguiu ingressar
no ensino superior, pois devido aos pais serem trabalhadores rurais, eles não teriam
condições de arcar com esta dispesa, e agora ela é aluna regular do curso de Pedagogia
da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) que funciona aos sábados nos turnos
manhã e tarde no prédio do Colégio Panorama no município de Campina Grande.
37
Aí só agora está acontecendo essa ida pra universidade, porque daqui
a gente só tem um que terminou, as outras estão começando tudo
agora e também por falta de condição, né? Pra manter um filho na
universidade, é como ela disse, um pai agricultor não tem condição,
porque hoje não se planta mais pra vender, só se planta pra comer, pra
os donos da casa. E não dá pra vender, até porque se vender, não dá
pra manter uma terça parte do ano pra manter uma filha, aquelas duas
na universidade (Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 44 anos, 2014).
A entrevistada chegou a relatar dificuldades com relação à falta de computar e
internet na comunidade para a realização de pesquisas para a confecção dos trabalhos do
seu curso, pois devido a UVA não possuir biblioteca nem laboratório de informática,
para ter acesso a este serviço, a mesma precisa ir ao distrito vizinho denominado Chã
dos Pereiras, o deslocamento para a utilização não é fácil e também significa um gasto
monetário a mais, pois o valor da bolsa recebida não dá nem para pagar a mensalidade
do curso, tendo que ser completada, sem contar com os gastos do transporte e da
alimentação que ela precisa dispor para estudar.
Projetos bons, sempre é bem vindo, né? Porque assim, você vê, aqui a
gente não tem internet, esse sítio grande desse jeito, a gente não tem
internet, só tem esse orelhão e pra dar graças a Deus, em sítio o celular
todo mundo tem hoje, né? Mas só que tem hora que você procura um
pingo de crédito ou de bônus, ninguém tem. Aí o pessoal daqui, quem
tem curso de computação, como ela disse que tem, mas não pratica,
com o quê e aonde? Precisa fazer um trabalho, vai fazer em Chã dos
Pereira, precisa de uma informação num tem, uma pesquisa num tem.
Nada tem assim nessa área aqui. Tem cinco nessa situação, na
universidade e precisa mais ainda pra o estudo universitário (Maria de
Lourdes Ferreira da Silva, 44 anos, 2014).
Atualmente, o Projeto Escrilendo conta com três monitoras, são elas: a Josefa
Firmino da Silva; a sua irmã, Maria José Firmino da Silva; e a Rosemary, e funciona
nos períodos da manhã e da tarde, atendendo os alunos da escola local por apresentarem
dificuldade na aprendizagem e acompanhamento do conteúdo ensinado em sala de aula
devido às turmas serem multiseriadas.
Acompanhemos a seguir a descrição do cotidiano da monitora Rosemay e os
desdobramentos do projeto em sua vida.
Meu dia é muito corrido, acordo as cinco e meia da manhã pra ir pra
escola onde ensino, gasto mais ou menos meia hora pra chegar, as
aulas terminam as onze, volto pra casa, almoço e as duas horas tenho
que estar no Projeto Escrilendo onde tenho atividades com as crianças
38
da comunidade. A noite coloco as aulas em dia, faço os meus planos
de aula. Estudo durante a semana toda e o sábado acordo as cinco
horas pra ir pra universidade, meu irmão me leva daqui até Serra
Redonda onde pgo um ônibus pra Campina Grande, passo o dia na
universidade e só volto as sete horas da noite (Rosemary Netto, 21
anos, 2013).
Graças ao projeto ingressei na universidade onde estou cursando o
curso de Pedagogia. Em seguida fui contratada pela prefeitura pra
ensinar no primeiro ano da escola da minha comunidade. Estas são
coisas muito gratificantes pra mim (Rosemary Netto, 21 anos, 2013).
Não quero parar por aqui, quero mais, estudar mais, concluir este
curso, fazer uma pós-graduação e continuar meu trabalho sempre com
o desejo de estar buscando mais coisas, aprofundar meus
conhecimentos. Eu sempre sonhei muito, nunca desisti, e assim as
coisas estão acontecendo no meu dia-a-dia, acho a única coisa que a
gente não deva parar é de sonhar, de lutar pelo que a gente quer.
Agora eu percebi que meus horizontes são mais amplos, tenho certeza
que posso construir a minha vida com as minhas próprias mãos,
aminha cabeça e meu coração (Rosemary Netto, 21 anos, 2013).
1.4 As relações de gênero
O relacionamento entre homens e mulheres aqui é muito diferente, nós
não temos direitos iguais aos homens, porque as mulheres daqui ainda
são de cuidar só da casa e do roçado, na hora de ganhar dinheiro, as
mulheres não têm direito a dinheiro, quem tem direito a dinheiro são
os homens, eles podem sair, se divertirem, não isso não acontece, eles
não deixam (Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 43 anos, 2013).
Em casa quem manda ainda é o homem, mas a mulher não é mais tão
dependente do homem financeiramente por conta do bolsa família que
é no nome das mulheres, então é elas que pegam o dinheiro, é elas
quem fazem a feira. Alguns homens que trabalham fora mandam o
dinheiro pra mulher, mas aqueles que trabalham aqui, eles não dão o
dinheiro pras mulheres, eles vão pra feira, eles decidem tudo, como se
a mulher fosse só uma escrava dentro de casa, ela tem só de lavar,
passar e cozinhar (Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 43 anos, 2013).
Porque aqui tinha gente que não ia nem pra feira, não saia de casa, não
vestia vermelho, porque era roupa de negro, não botava batom. Era
casou da porta do meio pra dentro né, porque mulher casada não pode
ir pro lado de fora não, pra ninguém não ver (Maria de Lourdes
Ferreira da Silva, 43 anos, 2013).
As meninas daqui casam logo, novinhas fica aí. Porque elas começa a
namorar muito novas, aí param de estudar, arrumam um menino
[engravidam]. [...] Essa aí tem 21 anos, já tem um filho com 4, aí fica
dentro de casa, aí o marido sai pra trabalhar, não trabalha e vai
39
levando assim, é um jovem sem expectativa de vida, e acha que o
casamento é o ponto máximo da juventude é o casamento. A maioria
não se preocupa com o estudo ou então trabalha, vai embora trabalhar,
e tá bom (Maria de Lourdes Ferreira da Silva, 44 anos, 2014).
Moro no quilombo de Pedra D’água há 20 anos. A minha infância foi
um pouco sofrida, nunca fui forçada a trabalhar no roçado, mas às
vezes tinha que ir pra ajudar o meu pai e minha mãe. Eu estudava aqui
no colégio do quilombo e ajudava nos afazeres de casa. A vida aqui no
quilombo nunca foi fácil, as pessoas são bastante sofridas e
geralmente trabalham na roça, nunca tiveram a opção de escolher uma
vida melhor. Ainda hoje acontece que os jovens acabam destruindo a
sua vida por não ter opção de escolha, fazer o que eles gostam. E isso
foi o que aconteceu comigo. Quando eu tinha 12 anos, por influência
de amigos e amigas, resolvi viver com uma pessoa que tinha 18 anos.
Então não deu muito certo porque realmente não era o que eu queria,
estava ainda começando a minha adolescência e não tinha uma visão
de vida que estava pela frente. Não deu certo também porque a pessoa
com a qual morei não me respeitava, ele podia sair e eu não podia.
Viver a dois aqui na comunidade é muito difícil porque os homens,
tudo eles podem, podem sair, podem curtir, podem aproveitar, a
mulher não, ela tem que ficar em casa, se tiver filhos, vai cuidar dos
filhos, vai cuidar dos afazeres da casa, enquanto os maridos estão se
divertindo. Infelizmente algumas pessoas ainda não tem noção dos
seus direitos, ainda continuam naquela vida do antepassado porque
acabam indo morar a dois sem noção do que realmente quer, então
ficam sem estudar, ficam sem lazer, arrumam filhos... Eu morei junto
com ele quase cinco anos e finalmente resolvi me separar, decidi
também ter algum plano de vida pra mim, tenho 20 anos e não quero
perder o meu tempo em qualquer coisa ou qualquer pessoa. Mais ou
menos um ano depois de separada novos caminhos começaram a se
abrir pra mim, primeiro apareceu uma vaga de auxiliar de serviços
gerais no colégio, logo em seguida apareceu o Projeto Escrilendo e fui
convidada pra ser monitora (Josefa, 20 anos, 2013).
Aqui muitas meninas casam muito novas, com 12 anos, aos 14 anos
engravidam; pra mim elas não têm futuro nenhum e a vida delas é só
ficar em casa, cuidar do marido, ir pro roçado, cuidar dos filhos,
trabalhar, trabalhar, não existe lazer pra elas, quer dizer, nunca existiu.
Isto tem que mudar, os homens têm que entender que não só eles têm
direitos, e sim nós mulheres também temos direitos, eles têm que
aceitar esta situação, querendo ou não, porque nós mudando, eles têm
que mudar, ou mudam ou se separam porque eles acham que só eles
têm direitos e isto é machismo. Eu acho que isso tem que mudar, e
realmente está mudando porque nós estamos fazendo a diferença
(Maria José, 18 anos, 2013).
Nós mulheres aqui de Pedra D’água, todo ano enfrentamos uma
grande dificuldade no tempo da colheita dos nossos roçados porque é
o tempo da maioria dos nossos homens ir para a usina para o corte da
cana. Nesse tempo as mulheres passam a ser o homem e a mulher da
casa. Tem que cuidar dos filhos, dos animais que criamos e ainda
apanhar milho, catar a fava e fazer a farinhada (Valdicéia Coelho dos
Santos, 2013).
40
1.5 Políticas Públicas em Pedra D’água
Em 2011 foi realizado em Pedra D’água um levantamento e cadastramento de
todas as famílias da comunidade para o Projeto Cooperar Paraíba, as pessoas que
ficaram responsáveis por este trabalho foram Maria de Lourdes e Rosemary. Na época,
elas conseguiram cadastrar 155 famílias, incluindo as do sítio Pinga, vilarejo vizinho
que sempre recebe os benefícios de políticas públicas juntamente com Pedra D’água.
No final de 2013, também foi construída na comunidade uma passagem
molhada, esse equipamento é construído sobre córregos intermitentes que, durante o
período chuvoso, impedem o transporte de pessoas e da produção agrícola, limitando o
desenvolvimento social e econômico dos povoados. Maria de Lourdes nos relata a
utilização da “cadeira ambulância” no período de chuva na região em que nenhum
veículo conseguia descer e ficava na sede da associação e era utilizada pela população
para levar as pessoas enfermas com dificuldades de locomoção até o ponto da estrada
em que os veículos conseguiam chegar.
A comunidade já possuía 42 cisternas de placas e 52 banheiros sépticos
construídos pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) em 2008, porém Maria de
Lourdes nos relata que os banheiros não são adequados para recolher os dejetos.
Figura : Cisterna construída pelo P1MC Figura : Cisterna construída pelo P1+2
Fonte: Trabalho de campo, 2014.
O Serviço Pastoral do Migrante do Nordeste (SPM NE) que desenvolve projetos
de convivência com o semiárido, construiu na comunidade cisternas do Programa Um
Milhão de Cisternas (P1MC) com capacidade de armazenamento de 16 mil litros de
água para o consumo humano que beneficiou todas as famílias com residência e do
41
Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) com capacidade para armazenamento de 52
mil litros de água para utilização na produção do Programa de Formação e Mobilização
Social para Convivência com o Semiárido da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).
Projeto que ofereceu a criação de bodes, galinhas e a construção de hortas, sendo
feitas na comunidade cerca de 12 galinheiros e algumas hortas, duas funcionam com
plantação de coentro, alface, tomate, couve, pimentão, cebolinha, plantas medicinais e
outras produzem menos devido a estiagem ou falta de cuidados constantes.
Figura: Horta da escola
Fonte: Trabalho de campo, 2014.
Desde o início do ano letivo de 2014, o transporte escolar vem sendo realizado
com um ônibus da prefeitura que pega e deixa os alunos que cursam a segunda fase do
ensino fundamental e o ensino médio no distrito de Pontina, como podemos visualizar
na figura abaixo.
Figura : Transorte Escolar
Fonte: Trabalho de campo, 2014.
42
Dirigimo-nos para a residência do Senhor José Firmino dos Santos, conhecido
como Seu Zito para acompanhamos o atendimento médico a sua esposa, Dona Isaura
dos Santos Firmino (80 anos), que sofre de problemas ginecológicos e de dor na coluna
e falta de flexibilidade nas pernas, pela médica do Posto de Saúde da Família (PSF) do
distrito de Pontina, Dra. Maria Raiane, especialista em clínica geral.
A médica veio acompanhada do Antônio, recepcionista do PSF, juntamente com
o motorista da prefeitura. Ao final da consulta, em agradecimento, D. Isaura pede pra
médica esperar e a presenteia com ovos de sua criação de galinhas, um costume e forma
de apreço.
Fig. : Momento do atendimento Fig. : D. Isaura e com a médica Raiane
Fonte: Trabalho de campo, 2014.
Conversando o Antônio, recepcionista do PSF, ele nos relatou que a Unidade de
Saúde da Família de Pontina possui um quadro de funcionários com uma dentista e uma
auxiliar, uma médica, uma enfermeira e duas técnicas de enfermagem, e uma auxiliar de
serviços gerais. Relatou também que o PSF possui os equipamentos básicos e sempre
tem medicação, se não tiver a prefeitura compra, porém como relatado por D. Isaura,
muitas vezes as pessoas preferem comprar do próprio bolso devido à demora, pois
precisam ir duas ou três vezes na Secretaria de Saúde do Município para conseguirem o
medicamento.
As famílias da comunidade que possuem crianças menores de 7 anos, além de
duas idosas recebem 15 pacotes de 500g de fubá (farinha de milho) quinzenalmente. E a
associação recebe 120 cestas básicas durante seis meses ao ano e distribuem entre as
famílias associadas, cerca de 80 famílias, mais algumas famílias do Sítio Pinga.
44
2. RECONHECIMENTO E REPARAÇÃO: instrumentos para a efetivação da
cidadania quilombola
Eu falo de sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas
espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de
religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de
extraordinárias possibilidades suprimidas (CÉSAIRE, 1978, p. 25).
Como bem explicitado por Aimé Césaire10 no livro Discurso sobre o
Colonialismo (1978, p. 25), os povos e os territórios colonizados sofreram perdas
inestimáveis que infelizmente não podem ser corrigidas. Tais atos foram tão cruéis em
sua realização que até hoje estes sujeitos ainda sofrem as consequências dessas
iniquidades citadas anteriormente.
Algumas tentativas de reparação dessas enormes injustiças são poucas para
compensar o incompensável, porém a superação desses entraves em nossa sociedade
vem se mostrando através de iniciativas que pretendem minimizar os danos causados
por tantos séculos de direitos negados, como por exemplo, o Artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988 e a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que serão mais bem
explicitados adiante.
Um fato marcante da negação desses direitos foi a Lei de Terras de 1850 que
antecede a abolição da escravidão e que foi a primeira iniciativa no sentido de organizar
a propriedade privada no Brasil, uma legislação específica para a questão fundiária a
dispor as normas sobre o direito agrário brasileiro. Esta lei estabelecia a compra como
única forma de acesso à terra, excluindo assim quem não tivesse poder aquisitivo para
compra, assegurando a efetivação da propriedade privada no Brasil e excluindo do
acesso a este importante meio de reprodução e sobrevivência, uma enorme parcela da
população, dentre ela, os pobres livres e os escravos.
Posteriormente, surgiu de 1964 que é a forma como legalmente se encontra
disciplinado o uso, a ocupação e as relações fundiárias atuais. Conforme o Estatuto, o
Estado tem a obrigação de garantir o acesso à terra para quem nela vive e trabalha, no
10 Aimé Fernand David Césaire (1913-2008), nascido na Martinica, foi um poeta, dramaturgo, ensaísta e
político afro-caribenho ideólogo do conceito de negritude, sendo a sua obra marcada pela defesa de suas
raízes africanas.
45
entanto, esse estatuto não é posto em prática, visto que várias famílias camponesas são
expulsas do campo, tendo suas propriedades adquiridas por grandes latifúndios11.
O Estatuto da Terra foi inteiramente elaborado pelo Governo Militar como
forma de colocar um freio nos movimentos campesinos que se multiplicaram durante o
Governo de João Goulart (1961-1964). Apesar de trazer importantes peças para o
ordenamento jurídico brasileiro, o seu conteúdo é pouco difundido, embora, traga a
definição de importantes conceitos para a vida no campo, bem como para a relação de
proprietário de terras com seu imóvel, dentre eles, podemos citar: Reforma Agrária,
Módulo Rural, Minifúndio, Latifúndio; conceitos estes que servem para nortear as ações
de órgãos governamentais de fomento agrícola e de reforma agrária, como o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que é o órgão responsável pelo
processo de reconhecimento e titulação das comunidades quilombolas no estado da
Paraíba.
A instituição da escravidão no Brasil toma forma com a grande propriedade
monocultora da década de 1530, utilizando no início com os índios nativos, que logo em
seguida, foram substituídos pelos africanos traficados e se estendeu oficialmente até
1988, sendo o último país do continente americano a aboli-la.
Mesmo após a abolição da escravatura com a Lei Áurea assinada pela princesa
Isabel em 1888, os antigos escravos não tiveram nenhuma oportunidade de reinserção
diferenciada na sociedade, permanecendo em sua antiga posição, subjugados à condição
de excluídos do acesso a bens e serviços, sem acesso a terra, a educação, etc.
Neste contexto de exclusão surgem os quilombos ou mocambos que a nosso ver
foram sociedades alternativas de abrigo para os escravos fugitivos durante o período
escravocrata que em sua maioria foram combatidas e dizimadas ou permaneceram na
invisibilidade como forma de proteção, mas que hoje mesmo que com outra
denominação, ainda permanecem em seu estado de segregação e continuam a ser
atacadas pelos mesmos sujeitos, mas agora como um lugar a ser
recuperado/reconquistado ou reinserido na sociedade capitalista.
E essas populações tradicionais de negros nunca foram completamente
amparadas para sua inserção social, o Estado nacional não dispôs de nenhuma política
que possibilitasse a reparação, a superação e a inclusão desses sujeitos na sociedade.
11 Cf. LIMA; RODRIGUES, 2009.
46
Assim, estes permanecem excluídos, marginalizados e desprovidos de alternativas que
modifique a sua realidade.
Para uma melhor compreensão, vimos a necessidade de conceituar para
diferenciar os termos aqui utilizados: quilombo histórico, “quilombismo” e quilombos
atuais.
Segundo Arruti (2006), a primeira definição de quilombo se encontra no corpo
da legislação colonial e imperial, de uma forma explicitamente indefinida, que buscava
abarcar sob um mesmo instrumento repressivo o maior número de situações, bastando
para a sua caracterização “a reunião de três [imperial] ou cinco [colonial] escravos
fugidos, formassem eles ranchos permanentes [colonial] ou não [imperial]”
(ALMEIDA, 1996 apud ARRUTI, 2006, p. 72).
Deste modo, o termo histórico de quilombo é utilizado para todo agrupamento
humano, visto como uma prática criminosa durante o período de escravidão, formado e
composto principalmente por escravos de descendência africana ou brasileira, sendo que
em muitos desses grupos também eram encontrados indígenas, brancos europeus e
brasileiros, e também por mulatos, cafuzos e mamelucos, representantes da
miscigenação daqueles grupos étnicos.
O termo “quilombismo” surgiu a partir do uso político do termo quilombo que se
dá pela redescoberta do Quilombo dos Palmares em 1971 com a criação do Grupo
Palmares. Em 1978, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial
(mais tarde abreviado para MNU) propôs que o dia 20 de novembro, data de morte de
Zumbi, último líder dos Palmares, marcasse o Dia da Consciência Negra.
Em 1980, Abdias do Nascimento12 publicou o livro O Quilombismo buscando
dar a forma de uma tese “histórico-humanista” ao sentimento e à experiência
quilombola:
Movimento social de resistência física e cultural da população negra
que se estruturou não só na forma de grupos fugidos para o interior
das matas na época da escravidão, mas, também, em um sentido
bastante ampliado, na forma de todo e qualquer grupo tolerado pela
ordem dominante em função de suas declaradas finalidades religiosas,
recreativas, beneficentes, esportivas etc. (ARRUTI, 2006, p. 76).
12 Economista, dramaturgo, jornalista, poeta, político e ativista social brasileiro (1914-2011).
47
A partir daí, Abdias (1980) propôs que o “quilombismo” fosse adotado como um
projeto de “revolução não violenta” dos negros brasileiros, que teria por objetivo a
criação de uma sociedade marcada pela recuperação do “comunitarismo da tradição
africana” [...] com vistas a assegurar a realização completa do ser humano e a
propriedade coletiva de todos os meios de produção (ARRUTI, 2006, p. 77).
A utilização de quilombo atual ou contemporâneo ou comunidade quilombola,
como é mais frequente neste texto, está relacionada aos “remanescentes das
comunidades dos quilombos”, termo escolhido pelos legisladores na formulação do
Artigo 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988, na tentativa de criação de uma
categoria jurídica que abarcasse diversos grupos sociais particulares. Todavia, é de
nosso conhecimento que houve e ainda há divergências quanto à redação e escolha final
do termo mais apropriado.
Segundo Barth (1994), essa “ressemantização” definia os remanescentes de
quilombos como “grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e
reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”, cuja
identidade se define por “uma referência histórica comum, construída a partir de
vivências e valores partilhados”. Neste sentido, eles continuariam a ser “grupos
étnicos”, isto é, “um tipo organizacional que confere pertencimento por meio de normas
e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão”.
Para concluir, retomando a questão da escravidão, no prefácio do livro Discurso
sobre o Colonialismo, Mário Andrade13 considerou que, segundo o autor Aimé Césaire,
aos “povos saqueados pela História” caberia a “reconquista da identidade, materializada
pela luta de libertação nacional” (1978, p. 6). Desta forma, entendemos que a inclusão
dos direitos desses sujeitos sociais no texto constitucional, assegura e promove a
possibilidade de reparação e da efetivação da cidadania desses grupos particulares.
2.1 Conjuntura Política e Direito Quilombola
A reformulação e a inovação da tradição sob a base de ideologias
étnicas é um processo em andamento no mundo moderno (WOLF,
2003, p. 249).
13 Mário Coelho Pinto de Andrade (1928-1990): ensaísta e ativista político angolano.
48
Atualmente, vivemos num período que mesmo após 65 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), ainda encontramos inúmeras barreiras para a
efetiva concretização desses direitos. Acompanhamos diariamente na mídia acirradas
lutas por direitos individuais e coletivos indispensáveis à população, mas que não são
assegurados em decorrência de interesses pessoais pautados por opiniões partidárias que
acabam por interferir em importantes mudanças sociais.
Trazendo esse debate para a questão agrária brasileira, podemos citar a tentativa
de aprovação de projetos que favorecem latifundiários, proprietários de grande
quantidade de terras improdutivas, que degradam o meio ambiente, que lucram à custa
da população, e que lutam contra a reforma agrária e a favor da concentração fundiária.
A exemplo, citamos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 215/2000
tira do Poder Executivo e transfere para o Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar
as demarcações de Terras Indígenas, na prática isso significará a paralização das
demarcações; a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 3.239-9/2004 que
questiona o conteúdo do Decreto nº 4887/2004 como inconstitucional perante o
Supremo Tribunal Federal (STF); e o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 227/2012
busca usar o próprio artigo 231, em seu parágrafo 6º, para impor exceções ao direito de
uso exclusivo das terras tradicionais em caso de “relevante interesse público da União”
e abre as áreas desses territórios à exploração do agronegócio através da instalação de
estradas e empresas de energia e mineração, isto significa legalizar e consumar a
violação contra os direitos e territórios indígenas em benefício dos grandes
latifundiários.
Esses são exemplos na conjuntura política atual de ataques aos direitos das
comunidades tradicionais, iniciativas da atual Bancada Ruralista no Congresso Nacional
contra o processo de demarcação de Terras Indígenas e Quilombolas, um direito das
populações tradicionais assegurados na Constituição Federal de 1988.
Ao nosso entender, o reconhecimento dos direitos dos quilombolas às terras que
ocupam poderá ocorrer com a efetivação da Convenção 169 sobre povos indígenas e
tribais e a Resolução referente à ação da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
de 1989, que determina que “os povos tribais tenham domínio pleno de suas vidas e que
os Estados assegurem espaços para que eles existam na condição de donos e senhores
do seu destino”.
49
Outros importantes tratados internacionais são aplicáveis pelos tribunais
brasileiros ao contexto quilombola, como por exemplo, o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966; a Convenção da Diversidade
Biológica de 1992; a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais de 2005; e a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural de
2001; as duas últimas celebradas no âmbito da Organização das Nações Unidas para a
Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO).
O último tratado citado anteriormente, em seu artigo 4º, vem tratar da relação
entre a liberdade cultural e a dignidade humana, segundo o qual:
A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do
respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar
os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os
direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos
autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar
os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para
limitar seu alcance.
O texto final da Convenção 169 e Resolução da OIT foi ratificado em julho de
2002 e só entrou em vigor no Brasil em julho de 2003. Foram incluídas no texto: a
autoidentidade como critério subjetivo, mas fundamental para a definição; a consulta e a
participação dos interessados e o direito de definir suas próprias prioridades de
desenvolvimento; a relação com a terra ou território que ocupam ou utilizam de alguma
forma, principalmente os aspectos coletivos; a igualdade de tratamento e oportunidades
no pleno exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos ou
discriminação; entre outras medidas.
Nos termos da Constituição e dos tratados internacionais mais
importantes firmados pelo Brasil, todos os seres humanos, incluindo
os descendentes de escravos, têm direitos sociais como a moradia, a
alimentação e o trabalho, os quais compõem aquele patamar mínimo
indispensável à garantia do valor magno da dignidade humana. Sob
esse ponto de vista, as terras quilombolas materializam direitos
universais, se bem que sua feição seja dada por uma clivagem cultural
específica (CAMERINI, 2012, p. 166-167).
A titulação das terras quilombolas se trata de uma das iniciativas concretas
previstas na própria Constituição Federal de ações afirmativas e compensatórias
direcionadas a um grupo social fragilizado, vitimado pela discriminação étnico-racial e
50
historicamente privado de suas terras, cultura, dignidade e do acesso a serviços públicos
básicos de educação e saúde.
A efetiva titulação das terras quilombolas se inicia a partir de 1995, pelo impacto
do Artigo 68, com a mobilização de Organizações Não Governamentais (ONGs),
profissionais da Justiça e aparelhos do Estado, o que percebemos que também aconteceu
em Pedra D’água com a chegada da AACADE, mas nem sempre todos esses agentes
estão em perfeito acordo.
A discussão sobre autoidentidade se mostra necessária devido ao peculiar
processo de emergência étnica que tem marcado uma significativa parcela das
comunidades quilombolas brasileiras, pois neste processo questiona-se a autenticidade
desse autorreconhecimento.
O Artigo 68 tem “como ponto de partida a autodefinição e as práticas dos
próprios interessados ou daqueles que potencialmente podem ser comtemplados pela
ampliação da lei reparadora dos danos históricos” (ALMEIDA, 1996, p. 17 apud
ARRUTI, 2006, p. 92).
Ao contrário das previsões de que a modernização acabaria com a
exclusividade étnica, proliferaram os grupos [...] apaixonadamente
dedicados à política de defesa da etnicidade. Em todos os lugares, a
expansão da cidadania parece que foi acompanhada pela emergência
na esfera pública de entidades sociais e culturais que se definem pelas
reivindicações de ancestralidade diversa e usam essas reivindicações
para demarcar trajetórias sociais distintas (WOLF, 2003, p 243-244).
A essa emergência na esfera pública de entidades sociais e culturais que se
definem pelas reivindicações de ancestralidade diversa e usam essas reivindicações para
demarcar trajetórias sociais distintas denominamos de emergência étnica.
Segundo Arruti (2006, p. 93) O conceito de grupo étnico surge, então, associado
à ideia de uma afirmação de identidade (quilombola) que rapidamente desliza
semanticamente para a adoção da noção de autoatribuição. Esse conceito de identidade
étnica disseminou-se rapidamente e passou a constar na lista dos itens e critérios de
identificação das comunidades remanescentes de quilombos, como podemos observar a
seguir.
Essas comunidade, encontradas em todo o território nacional, podem
ser caracterizadas na medida em que seus habitantes se utilizam de
51
categorias de autodefinição e/ou de autoatribuição, que funcionam
como elemento gerador de identidade a esses grupos sociais,
invariavelmente autodenominados como “pretos” e que se proclamam
pertencentes a um certo território (SILVA, 1997, p. 61 apud ARRUTI,
2006, p. 93).
Para Barth (2000), grupo étnico é um “tipo organizacional, onde uma sociedade
se utilizava de diferenças culturais para fabricar e refabricar sua individualidade diante
de outras com que estava em um processo de interação social permanente [...] cujos
limites seriam sempre construídos situacionalmente pelos próprios membros daquela
sociedade”.
Segundo Oliveira (1998, p. 55), ocorre um deslocamento do foco da análise que
deixa de se posicionar frente a culturas isoladas, e passa a estar dirigido para processos
identitários que devem ser estudados em contextos precisos e percebidos como atos
políticos.
Oliveira (1998, p. 55) ainda acrescenta, a esta formulação de Barth, a
necessidade de se considerar que a interação entre as sociedades seria processada no
interior de um quadro político preciso, cujos parâmetros estão dados pelo Estado-Nação
e procura ressaltar a importância que a “dimensão territorial” teria para a compreensão
da incorporação de diferentes populações étnicas no interior deste Estado-Nação.
Oliveira (1998, p. 55) considera a noção de territorialização como algo
fundamental, para ele, seria através da territorialização, enquanto um ato de natureza
política, que se propiciaria a formação de uma identidade própria, de uma determinada
coletividade, vindo, inclusive, a reestruturar suas formas culturais.
A noção de territorialização [...] É uma intervenção da esfera política
que associa - de forma prescritiva e insofismável - um conjunto de
indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados. [...] O
que estou aqui chamando de processo de territorialização é,
justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo
[... comunidades quilombolas] vem a se transformar em uma
coletividade organizada, formulando uma identidade própria,
instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e
reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam
com o meio ambiente e com o universo religioso). E aí volto a
reencontrar Barth, mas sem restringir-me à dimensão identitária,
vendo a distinção e a individualização como vetores de organização
social. As afinidades culturais ou linguísticas, bem como os vínculos
afetivos e históricos porventura existentes entre os membros dessa
unidade político-administrativa (arbitrária e circunstancial), serão
retrabalhados pelos próprios sujeitos em um contexto histórico
52
determinado e contrastados com características atribuídas aos
membros de outras unidades, deflagrando um processo de
reorganização sociocultural de amplas proporções (OLIVEIRA, 1998,
p.56).
Para Oliveira (1998), a territorialização teria um caráter sociogenético à medida
que sua atuação não se restringiria somente à formação de certos mecanismos de
liderança e de representação, mas, também, seria estruturante da própria cultura dos
grupos envolvidos.
Ainda com relação à autodefinição, para Wolf (2003), as reivindicações de
autonomia e soberania são apresentadas e definidas em termos de um parentesco
atribuído, estipulado.
Essas afirmações de parentesco estipulado, a serviço do que Benedict
Anderson (1983) chamou de “comunidades imaginadas”, fundam-se
na ideologia de uma substância comum que supostamente conecta
todos os que reivindicam uma identidade étnica ou nacional. Imagina-
se que essa substância comum passe de geração em geração, em parte
mediante transferências biológicas, “descendência” e, em parte, e por
meio da transmissão de uma “tradição” valorizada e culturalmente
apreendida (WOLF, 2003, p. 244).
Assim como Wolf (2003), vários estudiosos demonstraram que esse tipo de
ideologia tende a fundir a biologia com herança social adquirida, a estabelecer cada
identidade social separada e distinta de todas as outras. Para ele, a ideologia “naturaliza”
essas distinções e essa visão de senso comum da natureza das coisas é posta a serviço de
reivindicações de exclusividade e prioridade, monopólio e precedência.
Para Wolf (2003), essas reivindicações exigem uma análise, pois como
cientistas, entendemos que essa pretensão à posse de essências eternas se baseia em
ficções.
Sabemos que grupos que afirmam ter atributos em comum graças à
descendência mudam no decorrer do tempo. [...] que ficam salientes
sob determinadas circunstancias e retornam ao seu esquecimento em
outras ocasiões. [...] que tais entidades sempre existiram na presença
de outras etnias, povos, nações; que elas se misturam e se fundem com
outras, tanto biológica quanto culturalmente; e que, portanto,
entidades sociais e culturais e identidades não são dadas, mas
construídas (WOLF, 2003, p 244-245).
53
Sendo assim, nos convém prestar atenção ao modo preciso como elas constroem
e renunciam às reivindicações de identidade sob a pressão de forças complexas,
processos que subscrevem, mantêm, exacerbam ou arrefecem a afirmação étnica
(WOLF, 2003, p 245).
Para Wolf (2003), se quisermos compreender a variedade dos fenômenos,
devemos revisar nossas concepções tradicionais de “cultura”. Precisamos ver a
construção e a reconstrução da cultura em termos de processos particulares,
especificáveis, de organização e comunicação, sempre desenvolvidos em contextos “de
diferentes interesses, oposições e contradições” (FOX, 1985 apud WOLF, 2003, p. 249).
As tradições são frequentemente inventadas como “respostas a situações novas
que assumem a força de referência a situações antigas, ou que criam seu próprio
passado por uma repetição quase obrigatória” (HOBSBAWN; RANGER, 1983 apud
WOLF, 2003, p. 249).
Segundo Wolf (2003), nosso desafio é compreender a cultura sempre “em
formação” (FOX, 1985 apud WOLF, 2003, p. 249), aprender a compreender como, em
meio a uma ação em andamento, os protagonistas combinam práticas velhas e novas em
figurações sempre novas e renovadas.
Quando falamos em autoidentificação, estamos nos preocupando com o processo
de construção do discurso quilombola, isto é, da afirmação de uma cultura, da sua
identidade étnica. Esse discurso tem encontrado oposição, sobretudo na mentalidade
coronelista de setores tradicionais da sociedade brasileira que se renovam e recrudescem
seus ataques às comunidades tradicionais.
Reforçando conforme já destacamos anteriormente, com relação à questão
agrária brasileira, podemos citar como exemplo, a luta entre as comunidades
quilombolas e indígenas, o Movimento dos Sem Terra (MST) em contraposição com a
denominada Frente Parlamentar da Agropecuária do Congresso Nacional, conhecida
popularmente como a Bancada Ruralista, um dos grupos mais antigos e organizados que
vem alcançando grande sucesso em sua atuação em prol dos interesses do agronegócio.
Não é o nosso objetivo aprofundar essa discussão, estamos apenas pontuando para
exemplificar.
Simionatto e Costa (2012, p. 220) falam da origem dessa camada social no texto
“Como os dominantes dominam: o caso da bancada ruralista”, segundo as autoras:
54
Seu surgimento é fruto do debate travado nos anos de 1980 pelo
patronato rural brasileiro, em uma ofensiva ao velho e atrasado
mundo agrário. A modernização agrícola, com a instituição de novos
padrões de produção no campo e a introdução de avanços
tecnológicos, em decorrência do casamento entre a agricultura e a
indústria, foi a base sobre a qual se edificou este pensamento
(SIMIONATTO e COSTA, 2012, p. 220).
Conforme Simionatto e Costa, o discurso predominante buscava construir uma
identidade comum a todos os homens do campo, como se as questões que permeiam o
mundo rural atingissem de forma similar todos os atores [sujeitos] sociais que o
compõem, ocultando, consequentemente, a histórica luta de classes no meio rural
brasileiro e a disputa pela terra e por sua concentração (2012, p. 220).
Na atuação da Bancada Ruralista ocorre a prevalência de um projeto
que beneficia os setores mais capitalizados da sociedade, os quais se
utilizam do Estado como meio de cooptação de lideranças políticas
para fortalecer o poder das classes dominantes, consolidando,
mediante a prática do transformismo, a “hegemonia da pequena
política” e a neutralização das classes subalternas (SIMIONATTO e
COSTA, 2012, p. 215).
2.2 Do ser cidadão de um lugar aos direitos territoriais em Pedra D’água
“É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele
objeto da análise social” (SANTOS, 2005, p 255).
Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, a condição dos
indivíduos como livres e iguais passou a ter um respaldo internacional corroborando
assim a ideia de uma cidadania universal, em que os direitos pessoais devem ser
respeitados e assegurados para todos os cidadãos de todos os lugares.
Essa discussão é levantada pelo geógrafo Milton Santos no livro “Por uma outra
globalização: do pensamento único à consciência universal”, segundo o qual:
O cidadão do lugar passou a ser um cidadão do mundo, mas como o
“mundo” não tem como regular os lugares, essa condição passou a ser
apenas uma possibilidade distante em que sua existência é
condicionada pelas realidades nacionais. Concomitantemente, o
cidadão só o é ou não, enquanto cidadão de um país (SANTOS,
2007b, p. 113).
55
Para Santos (2007b, p. 113), no caso brasileiro, a realização da cidadania
reclama, nas condições atuais, uma revalorização dos lugares e uma adequação de seu
estatuto político.
Assim, a possibilidade de cidadania plena das pessoas depende de soluções a
serem buscadas localmente, desde que, dentro da nação [...] com a indispensável
redistribuição de recursos, prerrogativas e obrigações (SANTOS, 2007b, p. 113).
Trata-se [...] de uma construção de baixo para cima cujo ponto central
é a existência de individualidades fortes e das garantias jurídicas
correspondentes. A base geográfica dessa construção será o lugar,
considerado como espaço de exercício da existência plena (SANTOS,
2007b, p. 113-114).
Embasando-nos nessas assertivas de Santos (2007b), consideramos os territórios
das comunidades quilombolas espaços de construção da cidadania. Pois,
O lugar não é apenas um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto
é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a
reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A
existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo
(SANTOS, 2007b, p. 114).
Quando Santos (2007a) vem discutir os direitos territoriais, ele nos chama
atenção para o conceito de “direito à cidade” de Henri Lefebvre, segundo o qual:
Trata-se, de fato, do inalienável direito a uma vida decente para todos,
não importa o lugar em que se encontre, na cidade ou no campo. Mais
do que um direito à cidade, o que está em jogo é o direito a obter da
sociedade aqueles bens e serviços mínimos, sem os quais a existência
não é digna. Esses bens e serviços constituem um encargo da
sociedade, por meio das instâncias do governo, e são devidos a todos.
Sem isso, não se dirá que existe o cidadão (SANTOS, 2007a, p. 157-
158).
Segundo Santos, devemos partir [...] de uma explícita definição da cidadania
concreta, ou, em outras palavras, da lista efetiva dos direitos que constituem essa
cidadania e poderão ser reclamados por qualquer indivíduo (2007a, p. 158).
Assim, tanto para as populações quanto para o território brasileiro, tão carentes,
ambos, de recursos sociais elementares, a instalação do que Santos (2007a, p. 158)
56
chama de fixos públicos ou fixos sociais ajudaria a mudar, em breve espaço de tempo,
as condições gerais de vida do povo brasileiro em seu conjunto.
Para entendermos melhor ao que o autor se refere, recorremos ao mesmo,
quando nos explicita a seguinte consideração sobre a configuração do espaço.
O espaço pode ser tratado como um conjunto inseparável de fixos e
fluxos. Os fixos são econômicos, sociais, culturais, religiosos etc. Eles
são, entre outros, pontos de serviço, pontos produtivos, casas de
negócios, hospitais, casas de saúde, ambulatórios, escolas, estádios,
piscinas e outros lugares de lazer. Os fixos privados são localizados
segundo a lei da oferta e da procura, que regula também os preços a
cobrar. Já os fixos públicos se instalam segundo princípios sociais, e
funcionam independentemente das exigências do lucro (SANTOS,
2007a, p. 142).
Para exemplificar, Santos (2007a, p. 142) relata que nos países capitalistas
avançados, os serviços são, sobretudo, incumbência do poder público, e sua distribuição
geográfica é consentânea com o provimento geral. As distâncias porventura existentes
são minimizadas por transportes escolares ou hospitais gratuitos. Não se trata de salário
indireto, pois tudo isso é devido a todos os cidadãos, com ou sem emprego, ricos ou
pobres. Trata-se da busca pela equidade social e territorial.
Também para Santos (2007a, p. 142), outros países capitalistas, como o Brasil,
ainda não quiseram definir o que são tais serviços, nem adotar um distributivismo
geográfico que sirva de base à desejada justiça social.
Os fixos sociais de natureza privada (criados, mantidos e operados
pelo mercado) obedecem, como é de natural, à lei do próprio mercado.
Se, em sua proximidade, a população é demograficamente rarefeita e
economicamente fraca, frequentemente não é atingido o limiar
indispensável à sua operação rentável, e tais serviços deixam de se
instalar. Por isso, certas áreas, muitas delas sendo vastas, ficam
desprovidas desses recursos essenciais (SANTOS, 2007a, p. 143).
Para Santos (2007a, p. 143), o raciocínio é válido tanto para os serviços como
para os bens; ele tanto é válido no campo como na periferia das cidades.
Morar na periferia é condenar-se duas vezes à pobreza. À pobreza
gerada pelo modelo econômico, segmentador do mercado de trabalho
e das classes sociais, supõe-se a pobreza gerada pelo modo territorial.
Este, afinal, determina quem deve ser mais ou menos pobre somente
por morar neste ou naquele lugar. Onde os bens sociais existem
57
apenas na forma mercantil, reduz-se o número dos que potencialmente
lhes têm acesso, os quais se tornam ainda mais pobres por terem de
pagar o que, em condições democráticas normais, teria de lhe ser
entregue gratuitamente pelo poder público (SANTOS, 2007a, p. 143-
144).
Trazendo como exemplo a comunidade quilombola Pedra D’água, é de nosso
conhecimento que a aquisição de benefícios através da implantação de políticas
públicas, até pouco tempo ignoradas, como a construção de banheiros sépticos e
cisternas de placas, traz avanços significativos na qualidade de vida e infraestrutura da
comunidade, mas estes ainda são insuficientes e deficitários.
Assim como a pavimentação da estrada que dá acesso a comunidade como a
instalação de um telefone público que são os pedidos mais frequentes dos moradores.
Por isso, não devemos imaginar que o problema se resolva de uma
noite para o dia. Também não se deve prometer vagamente a
atribuição de tais recursos sociais indispensáveis. O que se impõe é,
como dissemos, uma listagem consequente do que há de fazer, para
que toda a população seja atendida e, a partir do que exige até hoje,
estabelecer regiões e estratos sociais, um programa credível e um
cronograma de ações. A acessibilidade compulsória aos bens e
serviços sociais seria uma parte obrigatória dos diversos projetos
nacionais (SANTOS, 2007a, p. 158-159).
2.3 Da conquista do território à efetivação da cidadania
“Ficar prisioneiro do presente ou do passado é a melhor maneira para
não fazer aquele passo adiante, sem o qual nenhum povo se encontra
com o futuro” (SANTOS, 2007a, p. 191).
Tem-se um caminho muito longo a ser percorrido desde a conquista do território
até a efetivação da cidadania, mas a militância por este objetivo também nunca cessará
para os que lutam por um mundo mais justo e igualitário. Concebemos que o resultado
do processo de titulação das terras das comunidades quilombolas, constitui a efetivação
da luta e resistência dessa população para permanecer no território que é o seu principal
bem material e imaterial.
O reconhecimento da população de Pedra D’água enquanto quilombola
representa...
58
A questão do autorreconhecimento possibilita a conscientização, a
autoafirmação e o orgulho da sua identidade social, que representam um processo de
valorização pessoal e coletiva, proporcionando um caminho para a efetivação da
cidadania e para a conquista da dignidade dos sujeitos pautada na justiça social e nos
direitos humanos.
Ratts (2009, p. 19-20), quanto ao processo de dissimulação à identidade negra, é
mais difícil, porém verificável na ideologia do embranquecimento (tentar parecer,
afirmar-se branco quando se é mestiço de origem negra). Permanece na sociedade civil
a imagem de que [...] o negro é primitivo, demoníaco, preguiçoso e vilão.
59
3. DE QUILOMBO À COMUNIDADE QUILOMBOLA: o processo de construção
da identidade étnica
Como dito anteriormente, o surgimento da comunidade quilombola Pedra
D’água é atribuída à fuga e perseguição ao ancestral comum Manoel Paulo Grande,
homem negro livre (não escravo), devido a sua participação nos movimentos sociais
Quebra-Quilos e Ronco da Abelha que aconteceram na segunda metade do século XIX
no estado da Paraíba14.
Ligamos tais insurgências, em decorrência da insatisfação da população pobre
contra medidas governamentais autoritárias, ao movimento social denominado
“Quilombismo”.
Quilombismo foi a tese “histórico-humanista” proposta pelo economista,
dramaturgo, jornalista e ativista social brasileiro Abdias do Nascimento, publicada no
livro homônimo em 1980, que segundo o mesmo, seria “um conceito científico
emergente do processo histórico-cultural das massas afro-brasileiras” (p. 245). Para
Arruti (2006, p. 76) essa denominação se refere
Ao sentimento e à experiência quilombola: movimento social de
resistência física e cultural da população negra que se estruturou não
só na forma de grupos fugidos para o interior das matas na época da
escravidão, mas, também, em um sentido bastante ampliado, na forma
de todo e qualquer grupo tolerado pela ordem dominante em função
de suas declaradas finalidades religiosas, recreativas, beneficentes,
esportivas etc.
De acordo com Arruti (2006, p. 77), o Quilombismo consistiria em
Um projeto de “revolução não violenta” dos negros brasileiros, que
teria por objetivo a criação de uma sociedade (o “Estado Nacional
Quilombista”) marcada pela recuperação do “comunitarismo da
tradição africana”, aí incluída a articulação dos diversos níveis de vida
com vistas a assegurar a realização completa do ser humano e a
propriedade coletiva de todos os meios de produção.
Para Arruti (2006, p, 77), esse era o conteúdo simbólico que deveria ser
atribuído aos quilombos enquanto palavra de ordem, um verdadeiro movimento
revolucionário negro que, apesar de ser anti-imperialista articulado ao pan-africanismo e 14 Ver OLIVEIRA JÚNIOR, 2012.
60
sustentado na radical solidariedade de todos os povos, não poderia se contentar com a
adoção de denominações estrangeiras.
O termo comunidade quilombola é mais empregado ao longo do nosso trabalho
para designar as comunidades remanescentes de quilombos, termo utilizado pela
literatura oficial e texto constitucional, aqui reduzido, tanto para explicar quanto para
normatizar.
3.1 De Quilombos à Remanescentes de Quilombos
“Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião
fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”
(NASCIMENTO, 1980, p. 263).
Ainda estamos no campo das classificações sociais que surge no início
do século 20 como eixo da reflexão sobre a construção social da
realidade (DUARTE, 1986), organizando categorias que perpassariam
pelo discurso antropológico desde então. Um retorno que não busca
voltar a descrever as formas primitivas de classificação, mas as formas
históricas (modernas e variáveis) de classificação das “formas
primitivas” (ARRUTI, 2006, p. 51).
Arruti (2006, p. 51) propõe tomarmos o tema dos remanescentes de quilombos
como um exemplo histórico e espacialmente situado no modo pelo qual a emergência de
novos sujeitos políticos leva à revisão das formas eruditas de descrever o mundo social.
O autor considera que classificar, mais que organizar, é também produzir
alteridades. E se interessa pela produção, ou reprodução, contemporânea desse tipo
específico de alteridade – os remanescentes de quilombos – que é marcada pela
qualidade de “primitivo”, “tradicional” e correlatos.
Estamos interessados por um novo tipo de primitivo que nos é tornado
contemporâneo por meio de reconfigurações classificatórias no plano
dos reordenamentos jurídicos. Atentamos para uma determinada
forma de (re) definição da alteridade, cuja força não está apenas na
sua capacidade de representar e simbolizar o mundo, mas de
transformá-lo (p. 51-52).
O “reconhecimento oficial” das “comunidades remanescentes de quilombo”
coloca em pauta o poder de nomeação de que é instituído o Direito e o seu garantidor, o
61
Estado, detentor da palavra autorizada por excelência (BOURDIEU, 1989 apud
ARRUTI, 2006, p. 52).
É devido a esse poder de nomeação que se atribui uma identidade
garantida aos agentes e grupos, por meio da qual se distribuem
direitos, deveres, atributos, encargos, sanções e compensações. É a
nominação oficial que põe um termo, ou ao menos um limite à luta
travada no mundo social em torno das identidades e, por meio delas,
das qualidades dos grupos – que está na origem desses próprios
grupos (ARRUTI, 2006, p. 52).
O processo de nominação é o movimento de instituição de uma categoria
jurídica ou administrativa que, englobando uma população heterogênea com base em
determinadas características comuns, a institui como um sujeito de direitos e deveres
coletivos e como um objeto de ação do Estado (ARRUTI, 2006, p. 52).
Ao refletirmos sobre os diversos movimentos sociais ocorridos ao longo da
história brasileira, em que a presença do negro se fez marcante, ao localizarmos os
lugares em que habitam e seus topônimos, e correlacionarmos esses movimentos e as
áreas que ocupam, concordamos que a nomeação remanescente de quilombo, atribuída
aos negros pelo Estado brasileiro, busca dialogar com as demandas postas por esses
sujeitos sociais. Entretanto, caberá sempre a eles avançar mais na busca de
reconhecimento a suas demandas identitárias no conjunto das demandas sociais que
reivindicam.
Segundo Arruti (2006, p. 52), a instituição do nome comunidades remanescentes
de quilombo é capaz de evidenciar aspectos importantes das disputas pelas
classificações.
De fato é possível pensar que não tendo sido permitido aos negros o acesso à
terra após a Abolição da Escravatura, o Estado brasileiro ao reconhecer esse direito,
necessitou de uma categoria, uma nomeação geral que incluísse todos os povos que
tiveram seus direitos negados. Denominando-os então de remanescentes de quilombo,
porém, as particularidades de cada grupo/comunidade, só podem ser contempladas nas
lutas cotidianas assumidas por esses povos em busca de reparação.
Portanto, quanto a essa nomeação, concordamos que:
Sua formulação é recente para que a observemos em ato; sua definição
se apropria de uma forma muito particular de categoria histórica
62
(quilombo) e agrega um termo de origem estatal (remanescente),
pouco problematizados; e a apropriação dessa categoria por parte do
movimento social e sua efetividade esteve associada aos antropólogos
nas operações de conversão e tradução de seus significados (ARRUTI,
2006, p. 52).
Para Arruti (2006, p. 52), a nomeação seria uma genealogia que busca descrever
as disputas em torno da palavra (autorizada) ou da interpretação (hegemônica) capaz de
impor um sentido à letra sem sentido da lei, que deve ser aplicada (realizada) pelo
Estado.
E tal atribuição de sentido operou-se por meio de uma sucessão de
agendamentos descontínuos e conflitantes, cujas marcas definem o perfil dos próprios
“remanescentes de quilombo” como uma categoria jurídica, etnológica e política
(ARRUTI, 2006, p. 53).
3.2 Da emergência étnica à luta pela definição da identidade étnica
No Brasil, as comunidades quilombolas passaram a ter uma maior visibilidade a
partir da elaboração do texto final da Constituição Federal de 1988, ao ser incluído no
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o Artigo 68, segundo o qual “aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.
As comunidades rurais negras também emergem de sua invisibilidade histórica
ao ganharem o estatuto de unidades culturais e sociais marcado por índices de autarquia
social relativa, tais como origem e cosmologia comuns, alto índice de endogamia e,
eventualmente, dialetos particulares (os “africanismos” mais ou menos evidentes)
(ARRUTI, 2006, p. 62).
Desde então, a quantidade de emergências étnicas têm sido tão significativas que
qualquer contabilização deve ser encarada como provisória.
Por meio dos “direitos étnicos”, abre-se espaço para o reconhecimento
dos direitos territoriais e/ou de autonomia política e jurídica dos
negros rurais, assim como um tratamento distinto em relação às
políticas públicas. Essa tendência pode ser lida tanto como uma
“política das diferenças”, que surge em reação e como resistência ao
63
avanço neoliberal, quanto como uma ampla adequação a ela
(ARRUTI, 2006, p. 65).
Ao invés de ressurgirem como tentativas de voltar ao passado apresentam-se
como demandas por modernização e inclusão social, pela educação, saúde, apoio à
produção, etc.
Dialogando com Barth (2000, p. 27) segundo o qual grupos étnicos são
categorias atributivas e identificadoras, empregadas pelos próprios atores e têm como
característica organizar as interações entre as pessoas.
Entendemos como grupo étnico um grupo de pessoas que se identificam
mutuamente (se autoidentificam) ou são identificadas por terceiros com base em
semelhanças culturais e/ou biológicas, reais ou presumidas, de acordo com critérios
pessoais.
Para Barth (2000, p.31), as características levadas em conta são apenas aquelas
que os próprios atores consideram significativas.
Ao se enfocar aquilo que é socialmente efetivo, o que é realmente significativo
em suas relações e interações sociais, como por exemplo, no caso das comunidades
quilombolas, vai desde a cor da pele e as relações de parentesco até os simbolismos e as
representações, como o sentimento de pertencimento e as manifestações culturais, a
partir daí, os grupos étnicos passam a ser vistos como uma forma de organização social.
Segundo Bourdieu (2005, p. 112),
A confusão dos debates em torno da noção de etnia e de etnicidade
(eufemismos eruditos para substituir a noção de raça, sempre presente
na prática) resulta da preocupação em submeter à crítica lógica as
categorias do senso comum, emblemas ou estigmas, e de substituir os
princípios práticos do juízo quotidiano pelos critérios logicamente
controlados e empiricamente fundamentados na ciência, faz esquecer
que as classificações práticas estão sempre subordinadas a funções
práticas e orientadas para a produção de efeitos sociais; e que as
representações práticas mais expostas à crítica científica podem
contribuir para produzir aquilo por elas descrito ou designado, quer
dizer, para fazer aparecer as ilusões e incoerências delas.
A noção de raça, por exemplo, que já foi utilizada de forma a estimular o
preconceito racial15, ressurge nos discursos acadêmicos com objetivo de combatê-lo16.
15 GOBINEAU, Joseph Arthur de. Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, 1855. 16 LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História, 1952.
64
A procura dos critérios objetivos de identidade étnica não deve fazer
esquecer que, na prática social, estes critérios são objetos de
representações mentais, de atos de percepção e apreciação de
conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem os
seus interesses e os seus pressupostos, e de representações objetais,
em coisas ou em atos, estratégias interessadas de manipulação
simbólica que têm em vista determinar a representação mental que os
outros podem ter destas propriedades e de seus portadores
(BOURDIEU, 2005, p. 112).
De acordo com Bourdieu (2005, p. 112), as características elencadas funcionam
como sinais, emblemas ou estigmas, logo quando são percebidas e apreciadas como o
são na prática.
E as propriedades (objetivamente) simbólicas, mesmo as mais negativas, podem
ser utilizadas estrategicamente em função dos interesses materiais e também simbólicos
do seu portador (BOURDIEU, 2005, p. 112).
Em relação à luta pela definição de identidade étnica, Bourdieu (2005) no alerta
que:
Só se pode compreender esta forma particular de luta das
classificações que é a luta pela definição de identidade étnica com a
condição de se passar para além da oposição que a ciência deve operar
entre a representação e a realidade, e com a condição de se incluir no
real a representação do real ou a luta das representações, no sentido de
imagens mentais e também de manifestações sociais destinadas a
manipular imagens mentais (p. 113).
A citação acima no leva a dialogar com a nova cartografia social17, uma
proposição metodológica que dá origem a uma forma de mapeamento social, podendo
haver ou não o mapeamento cartográfico, e que está sendo utilizada no mapeamento de
territórios de comunidades tradicionais, como também na elaboração de relatórios
antropológicos para subsidiar a delimitação territorial.
Para o geógrafo Renato Emerson dos Santos (2012, p. 01):
Tais cartografias se distinguem pela representação de aspectos da
realidade (fenômenos, processos, elementos, atores, ações, etc.) pouco
valorizados nas representações espaciais cartográficas hegemônicas –
aspectos transformados em “não-existências”, como nos diz
17 Ver ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; FARIAS JUNIOR, Emmanuel de Almeida. Povos e
comunidades tradicionais: nova cartografia social. Manaus: UEA Edições, 2013.
65
Boaventura de Souza Santos. Elas ganham distinção, também, pela
produção de novas formas de representar, rompendo com as
convenções cartográficas, e por variados processos participativos de
produção – o que contempla distintas relações de poder/saber entre os
tradicionais detentores dos meios de produção cartográfica e grupos
sociais envolvidos nas realidades representadas.
Segundo Bourdieu (2005, p. 113)
As lutas a respeito da identidade étnica, a respeito das propriedades
(estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e
dos sinais duradouros que lhes são correlativos, são um caso particular
das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer
crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição
legítima das divisões do mudo social e, por este meio, de fazer e
desfazer grupos.
Como um exemplo concreto do que foi dito anteriormente, podemos citar o caso
da junção do Sítio Pinga ao território de Pedra D’água na delimitação feita pelo
INCRA-PB. A maioria da população residente no Pinga, como eles denominam esta
comunidade vizinha, possui um genótipo branco e pertence à família Pontes, que em
algum momento já teve algum tipo de conflito com os moradores de Pedra D’água, o
que fez com que alguns destes não concordassem com tal junção. Mesmo assim, ao
final do trabalho, uma porção do Sítio Pinga mais próxima a comunidade Pedra D’água,
foi acrescida ao seu território.
O que está em jogo nas lutas pela identidade étnica é o poder de impor
uma visão do mundo social através dos princípios de di-visão que,
quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o
consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a
unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade
do grupo (BOURDIEU, 2006, p. 113).
Assim, segundo Bourdieu (2006, p. 119) compreende-se melhor a necessidade
de explicitar completamente a relação entre as lutas pelo princípio de di-visão legítima
que se desenrolam no campo científico e as que se situam no campo social.
Toda tomada de posição que aspire à objetividade acerca da existência
atual ou potencial, real ou previsível, de uma região, de uma etnia ou
de uma classe social e, por esse meio, acerca da pretensão à
instituição que se afirma nas representações partidárias, constitui um
certificado de realismo ou um veredito de utopismo o qual contribui
66
para determinar as probabilidades objetivas que tem esta entidade
social de ter acesso à existência (BOURDIEU, 2006, p.119).
Os critérios ditos objetivos são utilizados como armas nas lutas simbólicas pelo
conhecimento e pelo reconhecimento: eles designam características em que pode firmar-
se a ação simbólica de mobilização para produzir a unidade real ou a crença na unidade
[...] que tende a gerar a unidade real (BOURDIEU, 2006, p. 120).
Logo que a questão regional ou nacional é objetivamente posta na realidade
social, embora que seja por uma minoria atuante [...], qualquer enunciado sobre a região
funciona com um argumento que contribui [...] para favorecer ou desfavorecer o acesso
da região ao reconhecimento e, por este meio, à existência (BOURDIEU, 2006, p.120).
A partir de então, Bourdieu (2006, p. 120) nos aparece com o seguinte
questionamento
Se se devem incluir no sistema dos critérios pertinentes não só as
propriedades ditas objetivas (ascendência, território, língua, religião,
atividade econômica), como também as propriedades ditas subjetivas
(sentimento de pertença), as representações que os agentes sociais têm
das divisões da realidade e que contribuem para a realidade das
divisões?
É com a condição do poder de decretar a união ou a separação, que a ciência
pode eleger como objeto o próprio jogo em que se disputa o poder sobre a visão de
mundo, e em que não há outra escolha a não ser mistificar ou desmistificar
(BOURDIEU, 2006, p.123).
Portanto, como se é tratado anteriormente, o jogo de poder para selecionar os
critérios sociais que serão escolhidos para representar a igualdade e/ou a diferenciação
de determinado grupo opera sobre a visão de mundo deste, e sob a forma de como esses
critérios específicos vão contribuir com as demandas pautadas por determinado grupo.
3.3 Da estigmatização à autodeterminação
Ainda segundo Bourdieu (2005, p. 124), o regionalismo é um exemplo das lutas
simbólicas em que os agentes estão envolvidos individual ou coletivamente, e em que
está em jogo a conservação ou a transformação da identidade social.
67
E na luta pelos critérios de avaliação legítima, o que está em jogo é o valor da
pessoa enquanto reduzida socialmente à sua identidade social (BOURDIEU, 2006, p.
124).
Que para Bourdieu (2006, p. 124-125) pode ser uma luta em estado isolado:
aceitação, definição dominante da sua identidade ou busca da assimilação (desaparecer
todos os sinais destinados a lembrar o estigma e propor a imagem de si o menos
afastada possível da identidade legítima); ou uma luta coletiva: um esforço pela
autonomia (poder de definir os princípios de definição do mundo social em
conformidade com os seus próprios interesses).
O que está em jogo é o poder de se apropriar, se não de todas as vantagens
simbólicas associadas à posse de uma identidade legítima [...], pelo menos as vantagens
negativas implicadas no fato de já não se estar sujeito a ser-se avaliado ou a avaliar-se
[...] em função dos critérios mais desfavoráveis (BOURDIEU, 2006, p. 125).
A revolução simbólica contra a dominação simbólica e os efeitos de
intimidação que ela exerce tem em jogo [...] a reapropriação coletiva
deste poder sobre os princípios de construção e de avaliação da sua
própria identidade de que o dominado abdica em proveito do
dominante enquanto aceita ser negado ou negar-se [...] para se fazer
reconhecer (BOURDIEU, 2006, p. 125).
O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação
pública do estigma [...] e que termina na institucionalização do grupo produzido pelos
efeitos econômicos sociais da estigmatização (BOURDIEU, 2006, p. 125).
É o estigma que dá à revolta as suas determinantes simbólicas e os seus
fundamentos econômicos e sociais, princípios de unificação do grupo e pontos de apoio
objetivos a ação de mobilização (BOURDIEU, 2006, p. 125).
É assim que aqueles que foram as primeiras vítimas das ideologias
reacionárias da terra e do sangue, tenham sido obrigados a criar
inteiramente, para realizarem a sua identidade, a terra e a língua que
servem geralmente de justificação objetiva à reivindicação da
identidade (BOURDIEU, 2006, p. 126).
A reivindicação regionalista [...] é também uma resposta à estigmatização que
produz o território de que ela é produto (BOURDIEU, 2006, p. 126).
68
Se a região não existisse como espaço estigmatizado, [...] não teria
que reivindicar a existência: é porque existe como unidade
negativamente definida pela dominação simbólica e econômica que
alguns dos que nela participam podem ser levados a lutar para
alterarem a sua definição, para inverterem o sentido e o valor das
características estigmatizadas (BOURDIEU, 2006, p. 126).
A autodeterminação [auto reconhecimento] é a negação de uma hetero-
determinação, não faz mais do que reproduzir o estigma de forma invertida
(BOURDIEU, 2006, p. 127).
O separatismo aparece como o único meio realista de combater ou de anular os
efeitos de dominação que estão implícitos (BOURDIEU, 2006, p. 128).
Na lógica simbólica da distinção – em que existir não é somente ser
diferente, mas também ser reconhecido legitimamente diferente e em
que a existência real da identidade supõe a possibilidade real, jurídica
e politicamente garantida, de afirmar oficialmente a diferença –
qualquer unificação, que assimile aquilo que é diferente, encerra o
princípio da dominação de uma identidade sobre outra, da negação de
uma identidade por outra (BOURDIEU, 2006, p. 129).
Concluindo tal discussão, Bourdieu finaliza com a seguinte explanação
É preciso, pois, romper com o economismo [...] por não reconhecer a
contribuição dada à construção do real pela representação que os
agentes têm do real, ele não pode compreender a real contribuição que
a transformação coletiva da representação coletiva dá à transformação
da realidade. Mas sem esquecer que há uma economia do simbólico
que é irredutível à economia e que as lutas simbólicas têm
fundamentos e efeitos econômicos efetivamente reais (BOURDIEU,
2006, p. 129).
69
Considerações finais
Como vimos, Pedra D'água se encontra geograficamente isolada, o que
representa uma característica comum dos antigos quilombos. Ao nos dirigirmos à
localidade, verificamos a dificuldade do acesso à comunidade, tanto em relação ao
relevo que é bem acidentado quanto às condições físicas da estrada de terra, que se
encontra em uma situação bastante precária.
No período de chuva da região a estrada fica praticamente intransitável, sendo o
deslocamento dos moradores da comunidade feito principalmente a pé ou através de
veículos inapropriados, como motocicletas particulares ou uma caminhonete fechada
contratada pela prefeitura para fazer o transporte dos estudantes que, de forma precária,
significa um risco para a população da comunidade.
Na comunidade de Pedra D’água existem cerca de 160 famílias, locadas em
domicílios particulares permanentes, os terrenos não são delimitados ou cercados e as
casas estão dispostas de forma irregular no território, ocupando tanto as vertentes dos
morros quanto a porção inferior do terreno.
Essa população sobrevive basicamente da agricultura e de pequenos empregos e
"bicos18", grande parte dos idosos encontra-se aposentada por idade como trabalhadores
rurais, o que exige o tempo mínimo de contribuição previdenciária e a comprovação do
exercício da atividade rural.
A agricultura familiar é uma prática cultural bastante comum para os moradores
da comunidade. Esta atividade é realizada majoritariamente pelos homens, mas também
conta com a participação das mulheres. Os homens são responsáveis pelas etapas mais
pesadas, como a preparação do terreno, já as mulheres se encarregam de ajudar no
plantio e na colheita, além de cuidarem dos filhos e dos afazeres domésticos.
Não há sistema de irrigação, fazendo com que os camponeses dependam da
estação propícia para o plantio e sejam subordinados ao clima, desta forma, quando não
chove, eles estão susceptíveis a perder toda a safra. Quando isso acontece, eles ficam no
prejuízo, pois a maioria não costuma acessar empréstimos, pois têm medo de não
conseguirem pagar os financiamentos de programas do Governo Federal. Poucos
18 Termo utilizado para trabalhos temporários de curta duração.
70
camponeses relatam já terem tido acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (PRONAF).
A maioria das moradias é de alvenaria, construída de tijolos, as fachadas
geralmente são caiadas19, os telhados são cobertos por caibros e ripas, confeccionadas
artesanalmente com a vegetação local, onde as telhas são postas. As portas e janelas são
simples, feitas de madeira e não possuem grades.
Visualizamos a presença de energia elétrica como uma marca recente da
paisagem, implantada apenas na metade da década de 1990. Além de que a maioria das
casas possui antenas parabólicas para captar melhor o sinal da TV, pois sem essas é
quase impossível assistir televisão, principalmente jornais e telenovelas, que nas horas
vagas é uma das atividades mais frequentes dos moradores da comunidade. Também
costumam ouvir rádio e som com músicas regionais, descansar e conversar na área
exterior das casas.
Observamos a importância que os moradores dão ao terreno nos arredores de
suas residências – denominado de terreiro – e o cuidado que eles têm com esses espaços
de socialização, percebidos através da presença de canteiros com flores, plantas
ornamentais e da limpeza, pois estão sempre varridos, sem lixo ou quaisquer tipos de
entulhos.
Também foi constatada a precariedade de algumas residências que foram
construídas de pau a pique conhecidas como casas de taipa, uma técnica de edificação
antiga que consiste no entrelaçamento de madeiras verticais fixadas no solo, com vigas
horizontais, amarradas entre si por cipós, dando origem a um grande painel perfurado
que, após ter os vãos preenchidos com barro, transformavam-se em paredes.
As casas de taipa representam um risco para as pessoas residentes nelas, pois a
sua construção quando mal executada e mal acabada, pode se degradar em pouco
tempo, apresentando rachaduras e fendas, e se tornando alvo de roedores e insetos, que
se instalam nestas aberturas. Durante muitos anos, essa construção foi associada ao
barbeiro (Triatoma infestans), inseto transmissor da Doença de Chagas.
Através do governo Federal, o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR)
podem ser acessados pelos pequenos agricultores que possuem uma renda anual baixa,
incluindo os residentes em comunidades quilombolas para a construção, reforma ou 19 A cal, como é popularmente conhecido o Óxido de Cálcio (CaO), é uma substância largamente
utilizada na indústria da construção civil, um pó que misturado com água é usado para a pintura.
71
melhoria de suas habitações. Porém, não verificamos se tal programa foi utilizado por
moradores de Pedra D'água.
A comunidade quilombola de Pedra D’água sofre de vários problemas com
relação a sua infraestrutura, como por exemplo, a inexistência da coleta do lixo. A
alternativa praticada pelos moradores para suprir essa deficiência é a queima de seus
resíduos domésticos, geralmente atrás do terreno, próximo de suas residências.
Da mesma forma, eles também não possuem água encanada nem rede de
esgotamento sanitário. A água de uso doméstico é captada da chuva por meio de calhas
nos telhados das casas e armazenada em cisternas de placas, reservatórios de água que
ficam ligadas as residências pelo sistema de calhas, para a captação da água da chuva
utilizada primordialmente para o consumo, alimentação e limpeza. Outra forma de
abastecimento dá-se através da retirada da caixa d’água comunitária que é abastecida
por um caminhão pipa contratado pela prefeitura municipal. Após ser consumida, a água
é lançada no solo dos quintais a céu aberto, o que acontece também com a água do
banho.
Na comunidade já foram construídas cistenas de placas e banheiros com
recursos do Governo Federal através da Fundação Nacional da Saúde (FUNASA),
porém este número é insuficiente para atender toda a comunidade.
Os banheiros estão localizados a certa distância e do lado de fora das
dependências das casas, construídos geralmente na parte de trás dos terrenos, associado
a uma pequena caixa d’água e o sistema utilizado é o de fossas sépticas.
Uma cisterna coletiva e caixa d'água comunitária são abastecidas por um
caminhão pipa da prefeitura para a utilização pelos moradores que não possuem
reservatórios em suas residências. Também existem algumas cacimbas e poços de que a
comunidade se utiliza na falta de água durante os períodos de estiagem, como no verão.
A comunidade não possui posto de saúde, os atendimentos para casos de
enfermidade mais complexos são feitos no posto de saúde do distrito de Pontina ou
encaminhados para os hospitais mais próximos, do município de Ingá ou de Campina
Grande, dependendo da gravidade dos casos.
Desde o ano de 1991, Pedra D'água é atendida por agentes de saúde. O Programa
Saúde da Família (PSF) teve início em 2001 e conta uma agente que a atende esta e a
comunidade Pinga. É relatado que tais medidas, ao lado da assistência social e de outros
72
programas sociais como o de cestas básicas, alteraram o quadro de mortalidade infantil
da comunidade.
A migração de moradores da comunidade ocorre de forma destacada,
significando uma expressiva redução da sua população jovem residente apta para o
trabalho agrícola, que sem expectativas de inserção social e econômica, viaja para
trabalhar em grandes centros em busca da melhoria de sua qualidade de vida.
Um dos principais destinos escolhidos pelos moradores de Pedra D'água é a
cidade do Rio de Janeiro, pois além de seu atrativo turístico e financeiro, é nesta cidade
que está a maioria de seus parentes.
A migração para a cidade de São Paulo também é relatada. Geralmente, os
migrantes do sexo masculino trabalham na construção civil e as mulheres como
empregadas domésticas.
O processo migratório é uma característica comum nas comunidades
quilombolas rurais da Paraíba e atinge diretamente o contingente demográfico.
Em relação à Educação, a comunidade não possui nenhuma creche ou pré-escola
para atender as crianças menores. A formação básica, isto é, a primeira fase do ensino
fundamental é realizada na Escola Municipal de Ensino Fundamental José Pontes da
Silva, um prédio antigo, não muito bem conservado, com uma sala de aula, uma cozinha
e dois banheiros.
Os equipamentos escolares também sofrem com este sucateamento estrutural,
encontram-se envelhecidos e desgastados pelo tempo. Constatamos as más condições de
trabalho, de remuneração das professoras e da qualidade dos alimentos da merenda que
além do atraso na entrega, muitas vezes, devido ao não fornecimento, é reposta pela
comunidade.
A escola possui outra sala de aula numa casa em frente. No momento do
trabalho de campo, as duas turmas que estavam presentes eram multisseriadas e de faixa
etária diversa. As professoras que nos atenderam foram Maria Lúcia Barbosa de Moura
e Janaína Barbosa de Moura, mãe e filha, moradoras da comunidade.
Durante o dia a escola atende as crianças e a noite os adultos, quatro professoras
distribuem entre os três turnos. Ao todo estão matriculados 97 alunos, dos quais 16
estudam no período da noite. Concluída a primeira fase do ensino fundamental, as séries
subsequentes são cursadas na escola estadual do distrito de Pontina ou nos municípios
73
circunvizinhos onde os alunos de Pedra D'água e dos sítios Pinga e Canto, concluem os
seus estudos.
Tendo em vista o relato apresentado anteriormente, concluímos que a escola da
comunidade não tem condições de oferecer uma educação que atenda os parâmetros
básicos da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Brasileira. São necessárias
reformas físicas e melhoria na qualidade da merenda escolar.
Difícil é, portanto, incluir no currículo o estabelecido na Lei Nº 10.639, de 09 de
janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira
nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, e dá outras
providências.
Falta aos professores uma formação direcionada à superação das dificuldades
com o tema, bem como o acesso a referências bibliográficas adequadas e material áudio
visual e didático.
Embora caiba ressaltar que a comunidade foi contemplada pelo Programa Arca
das Letras, criado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário do Governo Federal, e
possui esse material disponível para consulta na residência de uma das moradoras.
Este programa promove o acesso à leitura nas comunidades rurais por meio da
implantação de um móvel-biblioteca, denominado arca, com um acervo de 200 livros. E
conta com a atuação de moradores como agentes de leitura voluntários para realizar as
atividades de cuidar do material, emprestar os livros, incentivar a leitura, ampliar o
acervo, entre outras.
A Praça Coração de Estudante é um ambiente de socialização destinado aos
estudantes que cursam a segunda fase do ensino fundamental no distrito de Pontina para
a espera pela caminhonete que realiza o seu transporte de ida e volta até a escola.
Esta praça fica localizada ao lado de uma das primeiras casas na porção inferior
do terreno da comunidade, embaixo de um pé de castanhola, próxima a caixa d'água
comunitária.
Nem sempre este transporte é completo, em épocas de chuva, devido a
precariedade da estrada, o carro não desce até a praça para apanhar os estudantes, e
estes precisam subir a metade do caminho a pé para serem levados à escola.
Uma das questões importantes para a comunidade de Pedra D´água é a sua
organização política, para isso, a comunidade possui uma Associação de Pequenos
74
Produtores Rurais de Pedra D'água, que de acordo com os relatos foi construída no ano
de 1993, antecedendo o reconhecimento enquanto remanescente de quilombo.
Nesse sentido, a associação comunitária cumpre com importante papel no que
diz respeito a representação de seus moradores e na busca por pleitos, cobranças e
seguridade de seus direitos constitucionais.
A associação atende cerca de 100 famílias de Pedra D'água, além de 35 famílias
residentes no sítio Pinga, comunidade vizinha. As reuniões são mensais, e cada família
associada paga uma quantia irrisória mensal para cobrir despesas ou como reserva para
alguma eventual necessidade.
Depois do reconhecimento em 2005 pela Fundação Cultural Palmares - FCP, a
Associação também representa os Quilombolas de Pedra D'água. As pessoas citadas por
Lurdes como importantes, atuando diretamente neste processo junto a comunidade, são
o italiano Luis Gigetto Zadra e sua esposa Francimar Fernandes de Souza Zadra, ambos
membros da Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades Afrodescendentes
(AACADE), pessoas bastante respeitadas pelos moradores de Pedra Dágua.
O exame de concepções alternativas de redistribuição e de reconhecimento para
corrigir a injustiça que atravessa o divisor da redistribuição-reconhecimento, a
“afirmação” e a “transformação” é posto por Fraser (2006, p. 236).
A afirmação e a transformação constitui uma realidade ambígua que marca a
comunidade de Pedra D’água, tema que discutimos neste texto na perspectiva de
interpretar a identidade étnica dessa comunidade e com o seu processo de
reconhecimento e de autorreconhecimento.
No discurso dos moradores, percebemos a importância do reconhecimento para a
garantia e aquisição de políticas públicas, anteriormente não presentes, beneficiando e
trazendo melhorias na qualidade de vida da comunidade. Da mesma forma revelam-se
Os moradores estão muito satisfeitos com autorreconhecimento, devido aos ganhos para
a comunidade de Pedra D’água.
Outro fato interessante é que a partir da visita de outras pessoas vindas de fora
da comunidade, como estudantes e pesquisadores, eles passaram a se sentir queridos,
importantes, dando visibilidade a pessoa humana e ao grupo social.
O cientista social Rogério Humberto Zeferino Nascimento, professor da
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) foi o responsável, em parceria com a
Fundação Parque Tecnológico da Paraíba (ParqTecPB), financiados pelo INCRA para a
75
elaboração do Relatório Antropológico do Quilombo Pedra D'água. Ele esteve presente
na comunidade em várias ocasiões durante o período de um ano da pesquisa que
compreendeu os meses de março de 2008 a março de 2009. Estabelecendo uma relação
de confiança e amizade com os moradores de Pedra D'água que se faz presente até hoje.
Com relação ao significado do termo quilombo, Leite (2000), afirma que há uma
vastidão de significados conceituais e políticos de quilombo. Na sua concepção o
quilombo, é acima de tudo um lugar que torna possível uma política de estratégia para o
grupo, uma vez que é reconhecido.
É importante destacar que os territórios quilombolas é para o grupo não só um
território marcado pelas manifestações das relações de poder com estratégia política,
mas também de ancestralidade, relações de vizinhança, solidariedades costumeiras
dentre outros aspectos que remetem as práticas culturais do grupo, conforme afirma
Haesbaert (2004).
Nesta perspectiva é que enxergamos o reconhecimento de Pedra D'água como
uma comunidade remanescente de um antigo quilombo, como uma política estratégica
para o grupo.
Ao serem reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares em 2005, como um
território quilombola, a população da comunidade de Pedra D'água passou a se sentir
orgulhosa por ser negra, este foi mais um motivo para a sua própria aceitação, pois ao
sentirem o preconceito exercido pelas comunidades circunvizinhas, eles negavam a sua
condição de afrodescendentes e devido à visibilidade que ganharam, começaram a
perceber que as diferenças estavam sendo aceitas, reconhecidas e respeitadas, passaram
a sentir orgulho e assumir sua verdadeira identidade social e assim se
autorreconhecerem.
O território é o objeto de sobrevivência dessa população, pois a maioria dos
moradores pratica a agricultura de subsistência. A luta pela titulação das terras, seu
principal bem material, configura um importante fator para a sua permanência no
campo, além do valor sentimental que possui por constituir uma herança de
antepassados.
A iniciativa do pedido de reconhecimento denota um conhecimento e
conscientização da comunidade e já vem demonstrando alguns avanços na qualidade de
vida dessa população e na melhoria na infraestrutura da comunidade através de algumas
políticas públicas implantadas pelo Governo Federal. Porém, o acesso a alguns serviços
76
básicos, como saneamento, água encanada, coleta de lixo, ainda está muito longe de ser
alcançado.
Uma das maiores dificuldades com relação à infraestrutura da comunidade é a
falta de pavimentação na estrada que a liga as demais localidades, representando um
grande empecilho para o deslocamento da população. Também demandam uma rede de
telefônica fixa, para a comunicação com muitos membros da comunidade que vivem em
outras cidades, esta é outra reivindicação bastante relatada.
Observamos por parte dos moradores da comunidade, o conhecimento e
instrução acerca das políticas públicas, ou seja, dos direitos adquiridos e da existência
de programas sociais do Governo Federal para sanar os vários tipos de problemas por
estes enfrentados. A associação comunitária representa um importante interlocutor nessa
questão.
Esperamos com nosso trabalho oferecer subsídios para a consolidação de uma
importante memória local e regional, através da qual a comunidade poderá se apoiar na
construção de suas lutas e reivindicações diárias.
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