Manuel Maria Barbosa du Bocage (reforço - ENADE 2011)

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CONTEXTO HISTRICOPortugal setecentista: o regime pombalino Em Portugal setecentista, no houve uma revoluo burguesa como ocorreu na Frana ou nos Estados Unidos. Entretanto, os ideais iluministas em contraposio ideologia absolutista tradicional influenciaram o Despotismo Esclarecido1 do governo de D. Jos I, que durou 27 anos (1750-1777). Foi o primeiro-ministro do rei, Marqus de Pombal, quem sustentou este modelo poltico racional e iluminista. No regime pombalino, houve a diminuio dos poderes da nobreza e da Igreja para centraliz-los nas mos da coroa. Nesse sentido, a educao se tornou laica, por meio da extino do ensino jesuta2 Universidade de vora e da implantao de um mtodo de ensino reformista estrangeirado3. ILUMINISMO

Observa-se que, em Portugal, ocorreu um rpido desenvolvimento do comrcio e da indstria, assim como a intensificao da explorao da colnia brasileira. As muitas toneladas do ouro extrado das Minas Gerais permitiram a Pombal reconstruir Lisboa, abalada por um terremoto (1/11/1755), que havia arrasado dois teros da cidade e tirado a vida de 40.000 pessoas8. Essa reconstruo da cidade de Lisboa contou com um planejamento urbanstico geometrizado, aos moldes da ideologia racionalista9. Diante do alto progresso portugus, a poltica de Pombal foi enaltecida, inclusive por muitos poetas rcades. Entretanto, e, apesar do despotismo esclarecido, o regime pombalino era extremamente autoritrio.10 A Real Mesa Censria proibiu autores considerados hereges ou perigosos aos interesses reais. caso de Voltaire, Spinoza e Diderot11. Em 1777, com a morte do rei D. Jos I e com a sucesso de Maria I, o regime pombalino chegou ao fim. Antigos valores voltados ideologia religiosa e antiga aristocracia foram revitalizados12. Assim, os adeptos do iluminismo e os membros da maonaria foram perseguidos por autoridades policiais. Pina Manique, o intendente-geral da polcia, prendeu poetas como a Marquesa de Alorna, Filinto Elsio e Manuel Maria Barbosa du Bocage13.1

No sculo XVIII, tambm denominado o sculo das luzes, o homem se voltou razo, em um movimento conhecido como Iluminismo. Foi um perodo particularmente progressista da Histria, pois instaurou um novo humanismo, orientado pela cincia e pela filosofia4. Entre os grandes representantes do pensamento iluminista e enciclopdico esto Charles de Montesquieu, Voltaire, JeanJacques Rousseau, Denis Diderot5. Eles fundamentam a efervescncia do contexto intelectual que circunscreveu a Revoluo Francesa (1789). Esta, por sua vez, representou a ascenso da classe burguesa. Alm da Revoluo Francesa, o sculo XVIII foi uma poca de grandes transformaes econmicas, polticas e sociais na Europa e na Amrica6. O cosmopolitismo, o incio da Revoluo Industrial, a Independncia dos Estados Unidos (1776) e a Conjurao Mineira (1789) refletem as mudanas scio-histricas ocorridas nesse sculo.7

o Despotismo Esclarecido entendia que as leis (de Deus, as naturais e da nao) deveriam ser interpretadas pelo soberano. Dessa maneira, o despotismo das Luzes tende a nivelar todas as classes sociais perante o poder real, abolir os privilgios baseados na hereditariedade, tradio, etc. (ANDRADE, s/d., p. 118) 2 ANDRADE, op. cit. 3 ANGLO, op. cit. O termo estrangeirado se refere ao retorno de pedagogos portugueses de ideais progressistas que estavam exilados em pases europeus. 4 ANGLO, 2002, p. 39. 5 Gonalves, 2007; ibid. 6 Moiss, 2008. 7 ANGLO, op. cit. 8 Id., ibid., p. 41. 9 ANDRADE, op. cit. 10 ANGLO, op. cit. 11 Id., ibid. 12 Id., ibid. 13 Id., ibid.

CONTEXTO LITERRIO

Caractersticas do ArcadismoA palavra arcadismo relaciona-se, na mitologia clssica, com o pastoreio e a vida buclica14. Esta palavra designava, originalmente, uma regio grega que era imaginada, pelos poetas clssicos, como a morada dos pastores.15 Posteriormente, no Renascimento, o termo Arcdia expressava serenidade e equilbrio. No sculo XVIII, em confluncia com o Neoclassicismo, Arcdia passa a designar agremiaes de poetas, que se reuniam regularmente, visando a restaurar a sobriedade de poesia clssico-renascentista.16 Em contraposio aos excessos barrocos, a poesia rcade visa ao equilbrio, alcanado por meio da imitao (mimesis) das regras formais e temticas da poesia clssica greco-latina17. Por isso, os poetas adotam pseudnimos latinos e encarnam pastores, usando a cloga como um gnero privilegiado. Assim, o arcadismo segue, rigorosamente, certas convenes literrias (clichs)18. Entre elas, destacam-se: Inutilia truncat (cortar o intil): contraposio esttica barroca; Fugere urbem (fugir da cidade): valorizao da vida buclica e pastoril; Aurea mediocritas (dourada mediocridade): valorizao da vida prosaica e simples; Locus amoenus (lugar ameno): predileo pelo equilbrio e pela amenidade (cenrio plcido); Carpe diem (aproveite o dia): conscincia no dramtica da fugacidade do tempo e da efemeridade da vida; convite a pastora (ou amada) a aproveitar o presente.19

As regras formais do arcadismo so: a predileo pela metonmia; a preferncia pela ordem direta das frases e a correo gramatical; o afrouxamento da rima e a presena de versos brancos.20

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Id., ibid., p. 119. Id., ibid. 16 ANGLO, op. cit., p. 39. 17 MATERIAL DE REFORO DO ENADE, 2011. 18 Id., ibid. 19 ANDRADE, op. cit. 20 ANDRADE, op. cit.

Arcadismo em PortugalO Arcadismo em Portugal seguiu as convenes especficas desse movimento literrio. Houve tambm uma retomada s formas e aos temas camonianos e a referncia figura da Virgem Maria. No pas, o estilo de poca esteve vinculado, principalmente, a grupos como a Arcdia Lusitana, o Grupo Ribeira das Naus e a Nova Arcdia.21 A Arcdia Lusitana foi fundada em 1756, durante o regime pombalino. Entre seus membros, os principais so: Antnio Dinis Cruz e Silva (Elpino Nonacriense), Domingos Reis Quita (Alcino Micnio) e Pedro Antnio Correia Garo (Cridon Erimmanteu)22. O ideal do grupo consistia na imitao das obras clssicas. Nesse sentido, em relao poesia, o rigor formal e a imitao quase-literal de modelos grecolatinos foram responsveis pela pouca criatividade temtica. O Grupo Ribeira das Naus, cujo maior representante foi o padre Francisco Manuel do Nascimento (Filinto Elsio), se contraps a repetio formal e temtica da Arcdia Lusitana. Instaurou-se o germe da Nova Arcdia23. A Nova Arcdia (ou Academia das Belas-Artes) foi fundada em 1790 e desapareceu em 179424. O padre Domingos Caldas Barbosa, o padre Jos Agostinho de Macedo e Manuel Maria Barbosa du Bocage (Elmano Sadino) foram os principais integrantes desse grupo que se reunia na casa do conde de Pombeiro25. Assim como a tradio de Filinto Elsio, a Nova Arcdia tambm criticava a arte potica da Arcdia Lusitana. Entretanto, os poetas no concordavam em todas as ideias. o caso de Bocage que, devido a desentendimentos com Macedo, abandonou rapidamente o grupo.26 Por causa dessas divergncias, a Nova Arcdia acabou precocemente. Por fim, a crtica literria romntica de Bocage explica que h uma distino entre elmanistas (seguidores de Bocage/Elmano Sadino) e filintistas (seguidores de Filinto Elsio). Nesse sentido, esse tipo de crtica difunde a ideia de que no possvel falar rigorosamente de escolas literrias, mas antes de distintas concepes poticas, cada uma delas com seus seguidores e admiradores27. Entretanto, curioso observar que tanto Filinto Elsio quanto Bocage apresentam caractersticas pr-romnticas, tais qual o tom pessoal, confessional e emocional28.

MOISS, op. cit. ANGLO, op. cit.; MOISS, op. cit. 23 Id., ibid. 24 Id., ibid; ANGLO, op. cit. Segundo Gonalves apud Chinem (2007), a Nova Arcdia durou at 1801, sendo liderada pelo intendente-geral, Pina Manique, a partir de 1794. 25 MOISS, op. cit. 26 Id., ibid. 27 MARTINS, 2007, p. 111. 28 MOISS, op. cit.21 22

BOCAGE: VIDA E OBRAManuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) foi um dos poetas portugueses mais renomados do sculo XVIII30. Assim como Cames, ele considerado um dos melhores sonetistas portugueses31. O poeta nasceu no dia 15 de setembro de 1765, na cidade de Setbal32. Bocage teve uma infncia infeliz que marcou sua sensibilidade literria33. Ele cresceu longe dos pais: o seu pai foi preso acusado de desviar dinheiro da arrecadao da dcima de 176934 e sua me morreu quando ele tinha apenas 10 anos 35. Aps terminar seus estudos, aos 17 anos, Bocage resolveu seguir os passos do av que era um almirante francs 36. Transferiu-se Academia Real dos Guardas-Marinhas, em Lisboa. Nesta poca, o jovem poeta comeou a frequentar o Rossio, um bairro bomio37. Ali, ele conheceu Gertrudes da Cunha de Ea e se apaixonou por ela, representando-a literariamente como Gertrria. Bocage foi transferido para as ndias a servio militar em 1786. O poeta passou por Goa, Rio de Janeiro 38 e Damo cidade na qual desertou do posto de tenente 39, fugindo para Macau em busca de uma vida bomia e desregrada 40. Em 1790, com ajuda de amigos e admiradores, ele conseguiu dinheiro para voltar a Lisboa41. Quando voltou, decepcionou-se ao ver sua musa inspiradora, Gertrudes, casada com o seu irmo, Gil Francisco du Bocage42. O poeta continuou a levar uma vida bomia, rebelde e desregrada. Ele se dedicava, principalmente, a escrita de improvisos, stiras e anedotas, por vezes obscenas 43. Em 1790, Bocage se integrou Nova Arcdia sob o pseudnimo de Elmano Sadino. Porm, essa participao durou poucos meses. Devido a conflitos com o padre Jos Agostinho de Macedo e com outros membros, Bocage criticou, com versos de teor cido e satrico, o estilo literrio desse grupo 44. A publicao do primeiro volume de suas Rimas, em 1791, provocou polmica por seu contedo ertico, satrico, liberalista e antirreligioso. Por isso, o poeta foi preso, em Limoeiro, na data de 1797, por ordem do Intendente-geral da polcia Pina Manique45. Na priso, foi condenado a receber ensinamentos doutrinais e oratorianos46. Por meio da interferncia de amigos, o crime de Bocage foi amenizado. Ele foi transferido ao Mosteiro de Santo Bento e, depois, ao Hospcio das Necessidades. Depois de sair da priso, do convento e do hospcio, em 1799, Bocage foi considerado curado de seus vcios47. A nova vida de Bocage voltou-se a tradues de Ovdio, Racine, Voltaire e Rousseau. O poeta tambm se reconciliou com antigos rivais e mostrava-se arrependido de sua vida desregrada. Por causa de um aneurisma e diante de uma vida miservel economicamente Bocage faleceu no dia 21 de dezembro de 1805, aos 40 anos, na casa onde vivia com sua irm 48.

CRONOLOGIA DA VIDA E DA OBRA DE BOCAGE1765 - 15 Set. Bocage nasce na vila de Setbal. 1774 Falecimento da me de Bocage. 1783 transferido para a recm-fundada Academia dos GuardasMarinhas. 1784 Deserta da Marinha. 1786 enviado para Goa na qualidade de guarda-marinha. Passa pelo Rio de Janeiro e pela Ilha de Moambique. 1789 promovido a segundo-tenente e colocado em Damo. Abandona este territrio, seguindo para Surate na ndia. Depois de uma breve passagem por Canto encontra-se em Macau, de onde regressa ao reino. 1790 Chega a Lisboa em Agosto deste ano. Adere de imediato recm-fundada Academia das Belas-Letras. 1791 Neste ano publica o primeiro tomo das Rimas. na Academia das Belas 1793 Divergncias Publicao de Eufmia ou o Triunfo da Religio. 1794 expulso da Academia das Belas Letras. 1797 Traduz As Chinelas de Abu-Casem e Histria de Gil Braz de Santilhana de Lesage. Em Agosto, preso e conduzido ao Limoeiro. Em Dezembro, transferido para os crceres do Santo Ofcio. 1798 Em Fevereiro, foi enviado para o Convento de S. Bento, para ser reeducado. No ms seguinte, por ordem do prncipe regente, o futuro D. Joo VI, confinado no Hospcio das Necessidades, onde esto sediados os Oratorianos. Em Abril, vivncia finalmente a liberdade querida e suspirada. 1799 Publica o segundo volume das Rimas. republica o primeiro tomo das Rimas. 1800 Bocage Da sua autoria o Elogio aos Faustissimos Annos do Serenissimo Principe Regente Nosso Senhor. Traduz Os Jardins de Delille, a Elegia ao Ilustrssimo e Excelentssimo Senhor Ministro e Secretrio de Estado dos Negcios Estrangeiros e da Marinha, etc., etc., etc., D. Rodrigo de Sousa Coutinho de Jos Francisco Cardoso, Canto Herico sobre as Faanhas dos Portugueses na Expedio de Tripoli de Jos Francisco Cardoso e Os Jardins ou a Arte de Aformosear as Paisagens. Poema de M. Delille. 1801 Bocage traduz As Plantas de Castel e O Consrcio das Flores. Epstola de Lacroix a seu Irmo. 1802 Responde perante o Santo Ofcio, acusado de pertencer maonaria. Aos Annos Faustissimos do Serenissimo Principe Regente de Portugal, obra dedicada ao futuro D, Joo VI. Traduz Galateia Novela pastoril, imitada de Cervantes por Florian e Rogrio e Victor de Sabran, ou o Trgico Efeito do Cime. 1804 publicado o 3 tomo das Rimas e o Epicdio na Sentida Morte do Ilustrssimo, e Excelentssimo Senhor. D. Pedro Jos de Noronha, Marquez de Angeja. 1805 assolado por um aneurisma na cartida. Convivendo com o espectro da morte, escreve febrilmente numa luta contra o tempo. Falece a 21 de Dezembro de 1805, com 40 anos 29 Letras.

Adaptado de http://purl.pt/1276/1/cronologia.html. Id., ibid. 31 ANDRADE, op. cit. 32 MOISS, op. cit.; MATERIAL DE REFORO DO ENADE, op. cit.; CHINEM, op. cit. Duas curiosidades: 1) a cidade de nascimento influenciou a escolha de seu pseudnimo (Elmano Sadino), baseado no rio Sado; 2) segundo Gonalves apud Chinem, diferentemente do que comenta a biografia romntica de Bocage, ele no nasceu na pouco abastada Rua de So Domingos, mas sim em um bairro nobre da cidade, na Rua das Canas Verdes. 33 ANGLO, op. cit. 34 CHINEM, op. cit. 35 ANGLO, op. cit. 36 AMORA; MOISS; SPINA, 1961. 37 ANGLO, op. cit. 38 AMORA; MOISS; SPINA, op. cit. 39 Id., ibid. 40 MOISS, op. cit. 41 AMORA; MOISS; SPINA, op. cit. 42 ANGLO, op. cit. ; MOISS, op. cit. 43 AMORA; MOISS; SPINA, op. cit. 44 MARTINS, op. cit.; MATERIAL DE REFORO DO ENADE, op. cit.; AMORA; MOISS; SPINA, op. cit. 45 ANGLO, op. cit. 46 MOISS, op. cit. 47 ANDRADE, op. cit. 48 Id., ibid.; MOISS, op. cit.29 30

Tradicionalmente, a poesia de Bocage dividida em: 1. Lrica: - 1 fase: obedincia aos clichs rcades49; - 2 fase: dissidncia com o Arcadismo e aproximao do Romantismo50; h a valorizao da morte e da noite, assim como um tom fatalista e pessimista; percebe-se um subjetivismo prromntico51. 2. Ertico-satrica: linguagem obscena e agressiva52. Os temas recorrentes em suas obras so: o autorretrato, a metapoesia, o amor, a morte, o destino (Fado), a natureza, a stira e o erotismo53. Os principais gneros poticos utilizados por Bocage so: Idlios, odes, epigramas, glosas (improvisos), cantatas, elegias, canes, epstolas, canonetas e, principalmente, sonetos54. Em relao s caractersticas formais, comum o uso de figuras de linguagem como a sinestesia, a alegoria, a hiprbole e aliterao. Percebe-se uma densa musicalidade nas composies bocageanas55. Por fim, observa-se que a obra de Bocage faz constantes referncias a poesia de Cames56.

Bocage publicou trs volumes de suas Rimas em 1791, 1794 e 1804, respectivamente. Isso representa trs quartos de sua produo57. Postumamente, Inocncio Francisco da Silva reuniu poemas inclusive inditos e os compilou em seis tomos58. O editor tambm publicou os poemas erticos e satricos de Bocage59. Entretanto, a impresso e a distribuio destes eram clandestinas. Para no passar pela avaliao da censura, Inocncio Francisco da Silva atribua locais fictcios de impresso, como, por exemplo, Bruxelas60.

MATERIAL DE REFORO DO ENADE, op. cit. Id., op. cit. 51 ANDRADE, op. cit. Apesar das antecipaes de caractersticas temticas romnticas, o soneto, em sua forma clssica, ainda privilegiado como moldura do poema (Id., ibid.). 52 MATERIAL DE REFORO DO ENADE, op. cit. 53 Id., ibid. 54 AMORA; MOISS; SPINA, op. cit. 55 BORRALHO, 2007. 56 MOISS, op. cit. 57 MARTINS, op. cit. 58 Cf. Bocage, 1853. 59 Cf. Bocage, 1853. 60 PIRES, 2007.49 50

1. AUTORRETRATOMagro, de olhos azuis, caro moreno (Verso I) Magro, de olhos azuis, caro moreno, Bem servido de ps, meo na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e no pequeno; Incapaz de assistir* num s terreno, Mais propenso ao furor do que ternura; Bebendo em nveas mos, por taa escura, De zelos infernais letal veneno; Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moas mil) num s momento, E somente no altar amando os frades, Eis Bocage em quem luz algum talento; Saram dele mesmo estas verdades, Num dia em que se achou mais pachorrento. Magro, de olhos azuis, caro moreno (Verso II) Magro, de olhos azuis, caro moreno, Bem servido de ps, meo na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e no pequeno: Incapaz de assistir num s terreno, Mais propenso ao furor do que ternura, Bebendo em nveas mos por taa escura De zelos infernais letal veneno: Devoto incensador de mil deidades, (Digo, de moas mil) num s momento, Inimigo de hipcritas, e frades: Eis Bocage, em quem luz algum talento: Saram dele mesmo estas verdades Num dia, em que se achou cagando ao vento. J Bocage no sou! J Bocage no sou!... cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento... Eu aos Cus ultraje! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura. Conheo agora j quo v figura Em prosa e verso fez meu louco intento. Musa!... Tivera algum merecimento, Se um raio da razo seguisse, pura! Eu me arrependo; a lngua quase fria Brade em alto prego mocidade, Que atrs do som fantstico corria: Outro Aretino fui... A santidade Manchei... Oh!, se me creste, gente impia, Rasga meus versos, cr na Eternidade!

Nos trs sonetos acima, Bocage se retrata de maneiras diversas. No primeiro, observa-se um esprito satrico. O poeta confessa sua vida bomia, seu esprito inquieto, cheio de prazeres e um certo [sic] repdio religio61. Apesar das semelhanas, no segundo soneto possvel notar sutis diferenas como a ofensa religio e o uso de um termo grosseiro (cagando) 62. No terceiro, J Bocage no sou!... cova escura, o eu lrico apresenta um arrependimento em relao a sua incorreo moral. A poesia considerada pr-romntica.

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MATERIAL DE REFORO DO ENADE, op. cit. Cf. Bocage, 1853 e 1860.

2. METAPOESIA Chorosos versos meus desentoados Chorosos versos meus desentoados, Sem arte, sem beleza, e sem brandura, Urdidos pela mo da Desventura, Pela baa Tristeza envenenados: Vede a luz, no busqueis, desesperados, No mudo esquecimento a sepultura; Se os ditosos vos lerem sem ternura, Ler-vos-o com ternura os desgraados: No vos inspire, versos, covardia Da stira mordaz o furor louco, Da maldizente voz a tirania: Desculpa tendes, se valeis to poucos; Que no pode cantar com melodia Um peito, de gemer cansado e rouco.

O poeta, j em sua produo pr-romntica, apresenta uma autocrtica em relao produo de poemas satrico-erticos. Nesta metapoesia, evidencia-se um intuito de descentralizar a concepo de poesia como imitao. Neste ponto, observa-se um forte impulso sentimental.

3. AMOR Eu deliro, Gertrria, eu desespero Eu deliro, Gertrria, eu desespero No inferno de suspeitas e temores. Eu da morte as angstias e os horrores Por mil vezes sem morrer tolero. Pelo Cu, por teus olhos te assevero Que ferve esta alma em cndidos amores; Longe o prazer de ilcitos favores! Quero o teu corao, mais nada quero. Ah! no sejas tambm qual comigo A cega divindade, a Sorte dura, A vria Deusa, que me nega abrigo! Tudo perdi; mas valha-me a ternura Amor me valha, e pague-me contigo Os roubos que me faz a m ventura.

Este poema apresenta caractersticas rcades, como a referncia a divindade Sorte e a Aurea Mediocrita. O poema privilegia o amor puro, mesmo diante dos danos acarretados pela m sorte.

4. MORTE retrato da Morte! noite amiga retrato da Morte! noite amiga, Por cuja escurido suspiro h tanto! Calada testemunha de meu pranto, De meus desgostos secretria antiga! Pois manda Amor que a ti somente os diga, D-lhes pio agasalho no teu manto; Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto Dorme a cruel, que a delirar me obriga. E vs, cortesos da escuridade, Fantasmas vagos, mochos piadores, Inimigos, como eu, da claridade! Em bandos acudi aos meus clamores; Quero a vossa medonha sociedade, Quero fartar meu corao de horrores. O poema possui um clima ttrico, lgubre, noturno, que caracteriza cabalmente o locus horrendus romntico, oposto ao locus amoenus neoclssico63. Apesar da referncia temtica morte, comum no Romantismo, o poema escrito em forma de soneto, seguindo os modelos formais rcades64.

5. DESTINO Aquele, a quem mil bens outorga o Fado Aquele, a quem mil bens outorga o Fado, Desejo com razo da vida amigo Nos anos igualar Nestor, o antigo, De trezentos invernos carregado: Porm eu sempre triste, eu desgraado, Que s nesta caverna encontro abrigo, Porque no busco as sombras do jazigo, Refgio perdurvel, e sagrado? Ah! bebe o sangue meu, tosca morada; Alma, quebra as prises da humanidade, Despe o vil manto, que pertence ao nada! Mas eu tremo!...Que escuto?... a Verdade, ela, ela que do cu me brada: Oh terrvel prego da eternidade!

Este poema apresenta um tom metafsico-filosfico diante do destino. O eu lrico expressa o desejo de morte (libertao da alma) em relao ao corpo (vil manto, que pertence ao nada!).

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ANDRADE, op. cit. Id., ibid.

6. STIRA Vs, Franas, Semedos, Quintanilhas Vs, Franas, Semedos, Quintanilhas, Macedos e outras pestes condenadas, Vs de cujas buzinas penduradas Tremem de Jove as melindrosas filhas; Vs, nscios, que mamais das vis quadrilhas Do baixo vulgo insossas gargalhadas, Por versos maus, por trovas aleijadas, De que engenhais as vossas maravilhas, Deixais Elmano, que, inocente e honrado, Nunca de vs se lembra, meditando Em coisas srias, de mais alto estado. E se quereis, os olhos alongando, Ei-lo! Vede-o no Pindo recostado, De perna erguida sobre vs mijando. A stira se dirige, explicitamente, aos poetas e s poesias rcades de seu tempo. Elmano Sadino, em tom agressivo, afirma que est sobre a regio montanhosa do Olimpo, recostado,/ De perna erguida mijando sobre os poetas.

7. EROTISMO RIBEIRADA: poema em um s canto (Fragmentos) Argumento Quando o preto Ribeiro entregue ao sono Jazia, lhe aparece o deus Prapo; E com uma das mos, por ser fanchono, Lhe agarra na cabea do marsapo: Oferece-lhe depois um belo cono, Como sem cavalete, gordo, e guapo: Casa o preto, e a mulher, por fim de contas, Lhe pe na testa retorcidas pontas. Canto nico I Aes famosas do fodaz Ribeiro, Preto na cara, enorme no mangalho, Eu pretendo cantar em tom grosseiro, Se a Musa me ajudar neste trabalho: Pasme absorto escutando o mundo inteiro A porca descrio do horrendo malho, Que entre as pernas alverga o negro bruto No lascivo apetite dissoluto. II Oh Musa galicada, e fedorenta! Tu, que s fodas dApollo ests sujeita, Anima a minha voz, pois hoje intenta Cantar esse mangaz, que a tudo arreita: Desse vaso carnal, que o membro aquenta, Onde tanta langonha se aproveita, Um chorrilho me d, oh Musa obscena, Que eu com rijo teso pego na pena. Evidencia-se neste poema pornogrfico-satrico uma pardia da epopeia camoniana. O uso de expresses e termos grosseiros caracteriza o humor escatolgico de suas produes erticas.

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