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M ANUELZˆO E MIGUILIM J OˆO G UIMARˆES R OSA I. BIOGRAFIA ............................................ 2 II. OBRA .................................................... 2 III. MANUELZˆO E MIGUILIM ....................... 2 IV. ENREDOS ............................................... 3 CAMPO GERAL ................................... 3 UMA ESTÓRIA DE AMOR .................... 5 V. ESTRUTURA DA OBRA ............................. 6 DIVISˆO DA OBRA .............................. 6 FOCO NARRATIVO .............................. 6 TEMPO ............................................... 6 ESPA˙O .............................................. 6 PERSONAGENS DE CAMPO GERAL ....... 6 PERSONAGENS DE UMA ESTÓRIA DE AMOR .................... 6 TEMAS FUNDAMENTAIS EM CAMPO GERAL .................................... 7 TEMAS FUNDAMENTAIS EM UMA ESTÓRIA DE AMOR .................... 7 VI. ANTOLOGIA .......................................... 7 VII. A OBRA E A CR˝TICA ............................. 10

Manuelzão e Miguilim

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Page 1: Manuelzão e Miguilim

MANUELZÃO

E MIGUILIMJOÃO GUIMARÃES ROSA

I. BIOGRAFIA ............................................ 2

II. OBRA .................................................... 2

III. MANUELZÃO E MIGUILIM ....................... 2

IV. ENREDOS ............................................... 3� CAMPO GERAL ................................... 3� UMA ESTÓRIA DE AMOR .................... 5

V. ESTRUTURA DA OBRA ............................. 6� DIVISÃO DA OBRA .............................. 6� FOCO NARRATIVO .............................. 6� TEMPO ............................................... 6� ESPAÇO.............................................. 6� PERSONAGENS DE CAMPO GERAL ....... 6� PERSONAGENS DE

UMA ESTÓRIA DE AMOR .................... 6� TEMAS FUNDAMENTAIS EM

CAMPO GERAL .................................... 7� TEMAS FUNDAMENTAIS EM

UMA ESTÓRIA DE AMOR .................... 7

VI. ANTOLOGIA .......................................... 7

VII. A OBRA E A CRÍTICA ............................. 10

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2 � UNICAMP

I. BIOGRAFIAJoão Guimarães Rosa (Cordisburgo,

M.Gerais - 1908 - Rio de Janeiro - 1967). Filho deum pequeno comerciante estabelecido na zonapastoril centro-norte de Minas, aprendeu as pri-meiras letras na cidade natal. Fez o curso se-cundário em Belo Horizonte, revelando-se des-de cedo um apaixonado da Natureza e das lín-guas. Cursou Medicina e, formado, exerceu aprofissão em cidades do interior mineiro(Itaúna, Barbacena). Nesse período, estudou so-zinho alemão e russo. Em 1934, fez concurso parao Ministério do Exterior. Ingressando na carrei-ra diplomática, serviu como cônsul-adjunto emHamburgo, sendo internado em Baden-Badenquando o Brasil declarou guerra à Alemanha.Foi secretário de Embaixada em Bogotá e con-selheiro diplomático em Paris. De volta ao Bra-sil, ascende a ministro (1958). Um dos últimosencargos de profissional foi a chefia do Serviçode Demarcação de Fronteiras, que o levou atratar casos espinhosos como o do Pico da Ne-blina e o das Sete Quedas.

Da sua carreira de escritor, em grandeparte afastado da vida literária, só obteve o re-conhecimento geral a partir de 1956, quandosaíram Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile.

Faleceu de infarto, aos cinqüenta e noveanos, três dias depois de admitido solenementeà Academia Brasileira de Letras.

II. OBRAComo escritor, não posso seguir a receita de

Hollywood, segundo a qual é sempre preciso orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto,torno a repetir: não do ponto de vista filológico e simdo metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe,Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno daeternidade, da solidão (...) No sertão, o homem é o euque ainda não encontrou um tu; por ali os anjos e odiabo ainda manuseiam a língua.

(Entrevista a Günter Lorenz, A literatura e a vida -1965)A grande novidade lingüística introduzida

pelo regionalismo de Guimarães foi a de recri-ar, na literatura, a fala do sertanejo não apenasno nível do vocabulário, mas também no da sin-taxe (a construção das frases) e no da melodiada frase. Explorando as técnicas do foco narra-tivo em primeira pessoa, do discurso direto e doindireto livre, a língua falada do sertão está pre-sente em toda a obra, resultado de inúmerosanos de observação, anotações e pesquisa lin-güística.

(...)Contudo, a linguagem de Guimarães Rosa

não tem uma intenção realista de retratar a lín-gua do sertão mineiro exatamente como ela é.

Sua preocupação vai além: tomando por base alíngua regional, Guimarães recria a própria lín-gua portuguesa, a partir do aproveitamento determos em desuso, da criação de neologismos,do emprego de palavras tomadas de emprésti-mo a outras línguas e da exploração de novasestruturas sintáticas.

Além disso, sua narrativa faz uso de recur-sos mais comuns à poesia, tais como o ritmo, asaliterações, as metáforas, as imagens, obtendoassim uma prosa altamente poética, nos limitesentre a poesia e a prosa.

(...)A propósito de sua linguagem literária, G.

Rosa comenta:

Meus romances e ciclos de romances são na realida-de contos nos quais se unem a ficção poética e a realida-de. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo,mas justamente o autor deve ter um aparelho de contro-le: sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o meu aparelhode controle: o idioma português, tal como o usamos noBrasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo,extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meuslivros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-sededuzir daí que não me submeto à tirania da gramáticae dos dicionários dos outros. A gramática e a chamadafilologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos ini-migos da poesia.

Resumidamente, pode-se dizer que as ca-racterísticas de sua obra são:

� busca de conciliação entre a literatura eru-dita e a oralidade dos narradores antigos;

� regionalismo com abordagem do ser hu-mano em geral, atingindo o universalismo desuas discussões;

� oscilação entre o real e o mágico, com tê-nues fronteiras entre a invenção e a realidade;

� estilo marcado pela inovação e pelainventividade.

III. MANUELZÃO E MIGUILIMAs duas novelas que constituem esse volu-

me foram publicadas pela primeira vez comoparte de Corpo de baile. A partir da 3ª edição, pas-sou a ter edição autônoma, com o títuloManuelzão e Miguilim.

A primeira narrativa leva o título Campo Ge-ral, e a segunda, Uma Estória de Amor. A primeiranarrativa trata do mundo infantil, trazendoMiguilim, uma das mais famosas e amadas per-sonagens rosianas. A segunda narrativa nosconta os preparativos de uma festa e a própriafesta, idealizada por Manuelzão para consagraruma capela por ele construída.

Guimarães apresenta as duas narrativascomo poemas, no sumário da obra. O clima líri-co que se instala na leitura dos textos, à medida

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UNICAMP � 3que nos envolvemos mais e mais, indicia a poe-sia presente no texto rosiano.

IV. ENREDOS

Campo geralCampo Geral é uma novela narrada em ter-

ceira pessoa. A história, entretanto, é filtradapelo ponto de vista de Miguilim, uma criança deseis anos. Por essa razão, a visão de mundoapresentada pelo autor é organizada a partirdesta perspectiva: a vivência de um meninosensível e delicado, empenhado em compreen-der as pessoas e as coisas que o cercam.

É uma narrativa profundamente lírica, quetraduz a habilidade de Guimarães Rosa em re-criar o mundo captado pela perspectiva de umacriança. Se a infância aparece com freqüêncianos textos rosianos, sempre ligada à magia deum mundo em que a sensibilidade, a emoção eo poder das palavras compõem um universopróximo ao dos poetas e dos loucos, é emMiguilim, nome com que passou a ser conheci-da a novela, que essa temática encontra um deseus momentos mais brilhantes e comoventes.

É uma espécie de biografia de infância - quealguns críticos afirmam ter muito de autobio-gráfica -, centrada em Miguilim, um menino quemorava com sua família no Mutum, um remotolugarejo do sertão.

O aprendizado das coisas do mundo é a tra-vessia que se impõe a Miguilim; crescer implicaa perda da ingenuidade e a dor.

Miguilim vive com sua família no Mutum, re-gião isolada e primitiva. O pai - Bernardo - ho-mem rústico, embrutecido e que se autodestrói;a mãe - Nhanina - frágil e insatisfeita; os irmãos- Dito, Tomezinho, Chica e Drelina; - a avó Izidra,o tio Terez; Rosa e Mãitina, ajudantes de suamãe no serviço da casa; os vaqueiros vizinhos,o papagaio Pingo-de-Ouro, o gato, os cachorrose os malvados Liovaldo (irmão da cidade) ePatori são o seu universo, instrumentos de suatravessia pelas veredas do Mutum e pela vida.

No Mutum chovia muito. A mãe - ainda moça,cabelos negros - não gostava da tristeza damata, mas, na viagem, Miguilim encontrou umhomem que tinha falado do Mutum, lá era boni-to.

A mãe quando ouvisse essa certeza, haviade se alegrar, ficava consolada. Era um presen-te; e a idéia de poder trazê-lo desse jeito de cor,como uma salvação, deixava-o febril até nas per-nas.

Miguilim era o mais velho, logo abaixo tinhao amigo Dito, irmão de estimação, menino ma-duro que conseguia refletir sobre todas as situ-

ações com a densidade consciente de um adul-to.

O Dito era menor, mas sabia o sério, pensa-va ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo ojuízo.

O irmão mais novo era o Tomé. Dentre asmeninas, Drelina era a mais velha; bonita, tinhacabelos compridos, louros. O Dito e Tomezinhoeram ruivos. Só Miguilim e a Chica é que tinhamcabelo preto, igual ao da mãe. A Chica era a quemais sabia brinquedos, cantava e dançava. ODito se parecia muito com o pai. Miguilim era oretrato da mãe. Mas ainda havia um irmão, omais velho de todos, Liovaldo, que não moravano Mutum, pois vivia com o tio Osmundo. Nin-guém se lembrava mais das feições dele.

Tio Terez, a quem Miguilim amava muito, temde ir embora. O pai desconfiava de uma relaçãoentre a mulher e seu irmão. O menino fica divi-dido entre o sentimento de lealdade ao pai e aamizade pelo tio, que lhe mostrava novos mun-dos. Sofre por não poder ajudar tio Terez a secomunicar com sua mãe e por ter de se separardele. Sofre por muita coisa: medo de morrer,medo de crescer.

Mas a dor maior veio com a morte de Dito,irmãozinho querido, sábio, cúmplice e compa-nheiro, único ser que realmente o compreen-dia.

Dito morreu de tétano.O Dito sentava na cama, mas não podia fi-

car sentado com as pernas esticadas direito, aspernas só teimavam em ficar dobradas nos joe-lhos. Tudo endurecia, no corpo dele. -�Miguilim,espera, eu estou com a nuca tesa, não tenhocabeça pra abaixar...� De estar pior, o Dito qua-se não se queixava.

-�Miguilim, Vovó Izidra toda hora está xin-gando Mãe, quando elas estão sem mais nin-guém perto?� Miguilim não sabia, Miguilim qua-se nunca sabia as coisas das pessoas grandes.Mas o Dito, de repente, pegava a fazer caretassem querer, parecia que ia dar ataque. Miguilimchamava Vovó Izidra. Não era nada. Era só acara da doença na carinha dele.

Ela agravava os outros medos infantis: dasalmas, dos lobisomens, de ter errado ao devol-ver ao tio Terez o bilhete que devia entregar àsua mãe Nhanina. Tudo parecia uma tristezasem remédio. Como crescera, seu pai exige quetrabalhe; Liovaldo e Patori, filho do vaqueiroDeográcias, fazem maldades com ele. Depoisde uma surra do pai, vive a experiência do ódio.Jura matá-lo. Odeia a quase todos da casa, me-nos Mãitina e Rosa, que o consolava pela mortedo Dito.

Quando tudo parecia irremediável, Miguilimadoece, dolorido de viver. Por causa da magre-

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4 � UNICAMPza, pegou em Miguilim uma apatia muito gran-de. Achava que ia morrer. Só que queria marcaruma data; tinha um prazo, mas o prazo venceue Miguilim não morreu.

Repensava aquele pensamento, de muitasmaneiras amarguras. Era um pensamento enor-me, aí Miguilim tinha de rodear de todos os la-dos, em eira dele. E isso era, era! Ele tinha demorrer? Para pensar, se carecia de agarrar co-ragem - debaixo da exata idéia, coraçãozinhodele anoitecia. Tinha de morrer? Quem sabia,só? Então - ele rezava pedindo: combinava comDeus, um prazo que marcavam... Três dias. Dedentro daqueles três dias, ele podia morrer, sefosse para ser, se Deus quisesse. Se não, pas-sados os três dias, aí então ele não morria mais,nem ficava doente com perigo, mas sarava!

Uma tragédia familiar, paradoxalmente,muda o rumo de sua vida. Seu pai assassina ovaqueiro Luisaltino e, em seguida, suicida-se deremorso. Tio Terez volta e casa com Nhanina.

A predileção de Guimarães Rosa por nomese personagens vai além. No livro são citadosainda Mãitina, uma preta velha que morava comeles. �Diziam que ela era negra fugida, debaixode cativeiro, que acharam caída na enxurrada,num tempo em que mamãe nem num era nasci-da�.

Lá vivem ainda Maria Pretinha, que foge como vaqueiro Jé, voltando para morar na casa,quando da morte de Dito; e Rosa de quem opapagaio Papaco-o-Paco gostava e a quem obe-decia.

Miguilim, quase curado, está pronto paraoutra travessia: a redescoberta do Mutum e adescoberta de um outro mundo. O Dr. José Lou-renço, médico que viera em visita, pressentiu amiopia do menino e cedeu-lhe os óculos.

O narrador, passo a passo, vai delineandosuave e delicadamente o mundo afetivo deMiguilim. Descobrem-se alegrias e tristezas,misturam-se reflexões e deslumbramentoscomo uma revelação mágica do ato de existir.São seqüências que vão sendo extraídas da cap-tação do sentimento infantil que culminam coma descoberta da miopia e da ida de Miguilimcom o doutor José Lourenço, que viera caçar naVereda do Tipã.

Miguilim queria ver se o homem estava mes-mo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.

- Por que você aperta os olhos assim? Vocênão é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é queestá em tua casa?

- É mãe, e os meninos...Estava Mãe, estava Tio Terez, estavam to-

dos. O senhor alto e claro se apeou. O outro,que vinha com ele, era um camarada. O senhor

perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim.Depois perguntava a ele mesmo: �- Miguilim,espia daí: quantos dedos da minha mão vocêestá enxergando? E agora?�

Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chicariam. Tomezinho tinha ido se esconder.

- Este nosso rapazinho tem a vista curta. Es-pera aí, Miguilim...

E o senhor tirava os óculos e punha-os emMiguilim, com todo o jeito.

- Olha, agora!Miguilim olhou. Nem não podia acreditar!

Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e di-ferente, as coisas, as árvores, as caras das pes-soas. Via os grãozinhos de areia, a pele da ter-ra, as pedrinhas menores., as formiguinhas pas-seando no chão de uma distância. E tonteava.Aqui, ali, meu Deus tanta coisa, tudo... O senhortinha retirado dele os óculos, e Miguilim aindaapontava, falava, contava tudo como era, comotinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas osenhor dizia que aquilo era do modo mesmo, sóque Miguilim também carecia de usar óculos,dali por diante. O senhor bebia café com eles.Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudopodia. Coração de Miguilim batia descompasso,ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à MariaPretinha, à Mãitina. A Chica veio correndo atrás,mexeu: �- Miguilim, você é piticego...� E ele res-pondeu: �- Donazinha...�

Quando voltou, o doutor José Lourenço játinha ido embora.

- Você está triste, Miguilim? - Mãe pergun-tou.

Miguilim não sabia. Todos eram maiores doque ele, as coisas reviravam sempre dum modotão diferente, eram grandes demais.

- Pra onde ele foi?- A foi p�ra a Vereda do Tipã, onde os caçado-

res estão. Mas amanhã ele volta, de manhã,antes de ir s�embora para a cidade. Disse que,você querendo, Miguilim, ele junto te leva... - Odoutor era homem muito bom, levava oMiguilim, lá ele comprava uns óculos pequenos,entrava para a escola, depois aprendia ofício. -�Você mesmo quer ir?�

Miguilim não sabia. Fazia peso para não so-luçar. Sua alma, até ao fundo, se esfriava. MasMãe disse:

- Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que sóDeus teve poder para te dar. Vai. Fim do ano, agente puder, faz a viagem também. Um dia to-dos se encontram...

(...)O doutor chegou. �- Miguilim, você está

aprontado? Está animoso?� Miguilim abraçavatodos, um por um, dizia deus até aos cachorros,

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UNICAMP � 5ao Papaco-o-Paco, ao gato Sossõe que lambiaas mãozinhas se asseando. Beijou a mão da mãedo Grivo. - �Dá lembrança a seo Aristeu... Dálembrança a seo Deográcias...� Estava abraça-do com Mãe. Podiam sair..

Mas, então, de repente, Miguilim parou emfrente do doutor. Todo tremia, quase sem cora-gem de dizer o que tinha vontade. Por fim, dis-se. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Ti-rou os óculos, pôs na cara de Miguilim.

E Miguilim olhou para todos, com tanta for-ça. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cimado morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo esão-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhosredondos e os vidros altos da manhã. Olhou,mais longe, o gado pastando perto do brejo, flo-rido de são-josés, como um algodão. O verdedos buritis, na primeira vereda. O Mutum erabonito! Agora ele sabia. Olhou Mãitina, que gos-tava de o ver de óculos, batia palmas-de-mão egritava: �Cena, Corinta!...� Olhou o redondo depedrinhas, debaixo do jenipapeiro.

Por não enxergar direito, Miguilim criou ummundo particular, todo seu, que concebia a rea-lidade de modo mágico, pois não a via nítida. Noentanto, a miopia do menino, embora algumasvezes estivesse indicada na narrativa, só é re-velada, mas não nomeada, no final da novela,só depois de ofertar ao leitor uma gama de en-cantamento.

Uma Estória de AmorÉ a narrativa da festa de fundação da fazen-

da Samarra, organizada por seu capataz Manu-el Jesus Rodrigues, o Manuelzão. Povoado porvelhos contadores de histórias, romeiros, dan-çarinos e tocadores de sanfona, o conto entre-laça no seu tecido narrativo toda uma tradiçãooral oriunda da memória e saber coletivos, in-corporando fragmentos da Donzela Guerreira eromances de boi, quadras e cantigas de viola, eos faz conviver, no espaço da festa, com a per-plexidade e fragilidade de um personagem cen-tral que, já velho, busca um sentido e uma expli-cação para a vida. Ele mistura, portanto, umuniverso ainda profundamente marcado pelaexperiência coletiva e pela tradição oral ao mun-do do indivíduo problemático, que experimentauma solidão tipicamente moderna, no meio dosertão, em sua travessia rumo à morte. Em meioàs quadras e histórias, lundus e som de rabecae viola, Manuelzão interroga-se sobre o signifi-cado de seus atos e empreende uma volta aopassado, na tentativa de revivê-lo e entendê-lo.

Narrativa do aprendizado, por Manuelzão,da arte de morrer, Uma Estória de Amor é tam-bém um mosaico da vida sertaneja, desenhadoa partir da presença, entre seus personagens,

dos contadores de histórias Camilo e JoanaXaviel e de vaqueiros que se reúnem para pre-parar a saída de uma boiada. Marcada por prá-ticas culturais que se constituem em formas dosaber, do agir e do pensar do homem do campo,a festa inclui atos de rotina, como carrear água,tirar leite e reunir a boiada, ao mesmo tempoque transcende o cotidiano, introduzindo o tem-po da distensão, da dança, da música e da histó-ria.

O conto abriga um pequeno rosário de his-tórias: os breves relatos dos vaqueiros mesclan-do notícias trazidas de longe à dura experiênciade tanger boi, fragmentos da Donzela Guerreira,quadrinhas sobre o cotidiano dos homens docampo e, sobretudo, a história da Destemida e aVaca Cumbiquinha e a Décima do Boi e do Cavalo,narradas por Joana e Camilo. Coalhado de reise vaqueiros, princesas e mães-da-lua, fazendase engenhos, e guerreiros vestidos de cetim, oimaginário dessas histórias mescla a velha tra-dição do romanceiro ibérico aos dados da reali-dade do sertão. O conto, ele próprio uma histó-ria de vaqueiro, repete, por um jogo deespelhamento, essas histórias de vaqueiro quea tradição conservou e que intervêm na narrati-va nas vozes de velhos mestres da narração,trançando o imaginário individual e coletivo. Suaimportância na trama, desse modo, não se podemedir apenas pelo que elas referem em si mes-mas, mas pelo papel que assumem no conto, jáque, nelas, Manuelzão reconhece sua própriahistória, vendo ali refletidas muitas das ques-tões que o inquietam - a relação com o patrão,com as mulheres, com o filho, com a terra, comos bois. Através delas, ele passa a limpo seupassado, encontrando a tradução, no nível sim-bólico, de sua situação de vaqueiro, um empre-gado morador em terra alheia, pobre e só.

Do ponto de vista de sua estruturação literá-ria, portanto, o conto recupera fontes orais danarração e opera a mistura de formas narrati-vas tradicionais e modernas, através da pre-sença desse universo da oralidade, constituídopelos cantos, quadras e histórias que ressoampelo texto, em meio a técnicas narrativas queincorporam procedimentos cinematográficospelo uso reiterado, por parte do narrador, dosplanos geral, médio e primeiro plano, de pano-râmicas e close-ups, cortes e fade-outs.

(...)O autor faz a escolha da onisciência seletiva

como ângulo a partir do qual se faz o relato dahistória de Manuelzão, com sua mescla de dis-curso indireto livre e monólogo interior. Isso pos-sibilita ao narrador colar-se ao protagonista eformular uma perspectiva que acaba por cons-

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6 � UNICAMPtituir um olhar único, uma fusão de vozes que,como lembra Rama, encurta a distância entre afala do narrador-escritor e a de seus persona-gens, dentro do que ele considera um dos trêsníveis das operações transculturadoras. É a vi-são de mundo do personagem que se manifes-ta através desse ponto de vista misturado, ex-presso numa língua literária construída a partirdas potencialidades do sistema lingüístico de umacomunidade rural, reelaborado pelo escritor.

Por último, o conto ilustra de forma significa-tiva a abertura, dentro da cultura contemporâ-nea, aos relatos míticos, entendidos aqui na suaacepção forte de histórias verdadeiras, exem-plares e sagradas. É o caso da Décima do Boi e doCavalo, a história do velho Camilo que incorpo-ra, ao universo do conto moderno, essa outraestrutura cognitiva ou forma do pensar mítico.

Também história de boi, a Décima é, na ver-dade, um amálgama de diferentes versões deum mesmo núcleo temático, tendo nos roman-ces de boi o arcabouço formal a partir do qualGuimarães Rosa constrói sua própria história -uma forma rapsódica que se vale dos diferen-tes processos coletivos de criação popular e dajustaposição de romances diversos. Do pontode vista de sua composição, a Décima se consti-tui num trabalho de refusão de muitos dos ro-mances de boi a que Rosa teve acesso, querpela tradição oral ou escrita. Utilizando-se defragmentos retirados de diferentes romances,Rosa cria, à maneira dos rapsodos, sua própriaversão para um tema cujas fontes orais vêm datradição ibérica e cuja tradição escrita, no Bra-sil, remonta a José de Alencar.

De caráter épico-lírico, feito uma canção degesta medieval, a história narrada por Camilotem por núcleo temático as proezas de um va-queiro apelidado de Menino que, com o auxíliode um cavalo encantado, captura um boi indo-mável, bravo e desafiador. Trata-se de umacosmogonia que resgata a linguagem como iden-tidade entre som e sentido, entre signo e objeto,uma fala mitopoética que (...) tenta reviver agrandeza heróica e sagrada dos tempos origi-nários, unindo lenda e poema, mythos e epos.

Narrando uma história de medo e coragem,o relato da demanda do Menino ajudaManuelzão a se defrontar com seu próprio des-tino. Plena de sabedoria, a narrativa de Camiloconstrói-se como um momento epifânico que,reconstituindo o mito, devolve ao vaqueiro suacondição de homem e dono de seu destino, per-mitindo-lhe confrontar-se com o medo da misé-ria e da morte.

Uma Estória de Amor, portanto, é um casoexemplar da incorporação de uma língua e deformas narrativas típicas de uma cultura pecu-

ária, de cuja paisagem e realidade econômicafazem parte bois e vaqueiros. Daí, certamente, ainsistência na comparação entre homens e ani-mais, tão freqüente nesse e em outros contos.

V. ESTRUTURA DA OBRA� Divisão da obra � A obra divide-se em duas

novelas: Campo Geral e Uma Estória de Amor.� Foco narrativo - Em ambas as novelas, o

narrador é onisciente, com o foco narrativo deterceira pessoa, destacando-se o fluxo de cons-ciência e o ponto de vista dos protagonistas:Miguilim em Campo Geral e Manuelzão em UmaEstória de Amor.

� Tempo - Em Campo Geral há o predomíniodo tempo psicológico, no redemoinho dos pen-samentos de Miguilim. Em Uma Estória de Amor,há um tempo cronológico bem marcado - 3 diasde festa -, mas uma evidente contaminação des-se tempo cronológico pelo tempo psicológicofazem com que os 3 dias pareçam uma eterni-dade, um efeito conseguido por três procedi-mentos do autor: o encaixe de outras narrati-vas, a apresentação e os sentimentos do prota-gonista, as descrições detalhadas de pessoas ede elementos da natureza.

� Espaço - Ambos os textos têm ambientaçãorural.

� Personagens da novela Campo GeralAlém de Miguilim, protagonista da história,

o qual se revela um menino sensível, delicado einteligente ao longo da narrativa, o universo danovela Campo Geral é composto de várias outraspersonagens.

1. A família de Miguilim é constituída do pai(Nhô Berno), meio seco e autoritário; da mãe(Nhanina), que �era linda e tinha cabelos pretoscompridos�; dos irmãos Tomezinho e Dito; dasirmãs Chica e Drelina; da avó Izidra e do tioTerez.

2. Fazendo parte da família, como emprega-das da casa, destacam-se: a preta Mãitina, Rosae Maria Pretinha. Ligados à família, mas comalguma independência, destacam-se aqui, tam-bém, os vaqueiros Saluz e Jé.

3. Ainda no universo da família, podemosinserir aqui os cachorros (sempre individualiza-dos com um nome próprio), o gato Sossõe e opapagaio Papaco-o-Paco.

4. Entre os conhecidos e amigos, destacam-se o alegre e simpático seu Aristeu; o meninoPatori, filho de seu Deográcias, que teve mortetrágica; seu Luisaltino, que veio morar com afamília e ajudava o pai no roçado.

� Personagens da novela Uma Estória de AmorManuelzão - Protagonista, velho vaqueiro,

solteirão, que, percebendo os achaques da ida-

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UNICAMP � 7de avançada, tem a vontade de estabelecer-se,conhecendo, também, o medo da morte. Perso-nagem inspirada em Manuel Nardi, mineiro, va-queiro, de quem Guimarães ouviu muitas histó-rias, depois aproveitadas esteticamente por ele.

Adelço - Filho natural de Manuelzão,introvertido, misantropo, trabalhador.

Leonísia - Mulher de Adelço, bonita, bondo-sa, trabalhadeira, é objeto de desejo do prota-gonista.

Promitivo - Irmão de Leonísia, simpático,preguiçoso.

Camilo - Agregado, incorporado ao grupofamiliar de Manuelzão.

Senhor do Vilamão - Homem rico, antiquado,velho, visita prestigiada.

João Urúgem - Homem-bicho, vive no mato,mas vem à festa, acompanhando tudo de umlugar afastado.

Frederico Freyre - Patrão de Manuelzão, sur-ge nos pensamentos do protagonista, jamais fi-sicamente.

� Temas fundamentais em Campo Geral:� infância - a criança é revelada como a cri-

atura em que a hipocrisia e a maldade aindanão criaram raízes;

�amor e a problemática de suas várias ma-nifestações;

�amizade mostrada nos pares Miguilim/Terêz, Miguilim/Dito, Miguilim/Grivo;

�violência apresentada como um sentimen-to natural em situações adversas, manifestan-do-se com mais força e irracionalidade entre osadultos;

�fé apresentada em duas vertentes de ma-nifestação de religiosidade em Vó Izidra eMãitina.

� Temas fundamentais em Uma Estória deAmor:

�temática da velhice com toda sua proble-mática, manifestada em vários aspectos: pro-blemas de saúde; temor da morte; lembranças;balanço do passado; consolidação de crenças evalores; desejo de realização, de recomeçaralgo, corrigindo o que não é satisfatório no vi-ver passado para o presente melhor;

�temática do amor, reprimido por valoressociais, como os de Camilo e Joana Xaviel ou oque Manuelzão sente por Leonísia.

VI. ANTOLOGIA

TEXTO 1(...)

De repente lá vinha um homem a cavalo. Eramdois. Um senhor de fora, o claro da roupa. Miguilim

saudou, pedindo a benção. O homem trouxe o cavalocá bem junto. Ele era de óculos, corado, alto, com umchapéu diferente, mesmo.

- Deus te abençoe, pequeninho. Como é teu nome?- Miguilim. Eu sou irmão do Dito.- E seu irmão Dito é o dono daqui?- Não, meu senhor. O Ditinho está em glória.O homem esbarrava o avanço do cavalo, que era

zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia:- Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guar-

da... Mas, que é que há, Miguilim?Miguilim queria ver se o homem estava mesmo

sorrindo para ele, por isso é que o encarava.- Por que você aperta os olhos assim? Você não é

limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em tuacasa?

- É Mãe, e os meninos...Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. O

senhor alto e claro se apeou. O outro, que vinha comele, era um camarada. O senhor perguntava à Mãemuitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a elemesmo: - �Miguilim, espia daí: quantos dedos da mi-nha mão você está enxergando? E agora?�

Miguilim espremia os olhos. Drelina e Chica riam.Tomezinho tinha ido se esconder.

- Este nosso rapazinho tem a vista curta. Esperaaí, Miguilim...

E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim,com todo o jeito.

- Olha, agora!Miguilim olhou. Nem não podia acreditar. Tudo era

uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas,as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos deareia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formi-guinhas passeando no chão de uma distância. E tonte-ava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O senhortinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda aponta-va, falava, contava tudo como era, como tinha visto.Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia queaquilo era do modo mesmo, só que Miguilim tambémcarecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebiacafé com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvelo.Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompasso,ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à MariaPretinha, à Mãitina. A Chica veio correndo atrás, me-xeu: - �Miguilim, você é piticego...� E ele respondeu: -�Donazinha...�

Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinhaido embora.

- �Você está triste, Miguilim?�- Mãe perguntou.Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que

ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferen-te, eram grandes demais.

- Pra onde ele foi?- A foi p�ra a Vereda do Tipã, onde os caçadores

estão. Mas amanhã ele volta, de manhã, antes de irs�embora para a cidade. Disse que, você querendo,

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8 � UNICAMPMiguilim, ele junto te leva... - O doutor era homemmuito bom, levava Miguilim, lá ele comprava uns ócu-los pequenos, entrava para a escola, depois aprendiaofício. - �Você mesmo quer ir?�

Miguilim não sabia. Fazia peso para não soluçar.Sua alma, até o fundo, se esfriava. Mas Mãe disse:

- Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deusteve poder para te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder,faz a viagem também. Um dia todos se encontram...

E Mãe foi arrumar a roupinha dele. A Rosa matavagalinha, para pôr na capanga, com farofa. Miguilim iano cavalo Diamante - depois era vendido lá na cidade,o dinheiro ficava para ele. - �Mãe, é o mar? Ou é paraa banda do Pau-Roxo, Mãe? É muito longe?��- Maislonge é, meu filhinho. Mas é do lado de Pau-Roxo não.É o contrário...� A Mãe suspirava suave.

- �Mãe, mas por que é, então, para que é, que acon-tece tudo?�

�- Miguilim, me abraça, meu filhinho, que eu tetenho tanto amor...�

Os cachorros latiam lá fora; de cada um, o lati-do, a gente podia reconhecer. E o jeito, tão oferecido,tão animado, de que o Papaco-o-Paco dava o pé.Papaco-o-paco sobrecantava: �Mestre Domingos, quevem fazer aqui? Vim buscar meia-pataca, p�ra bebermeu parati...� Mãe ia lavar o corpo de Miguilim, bemensaboar e esfregar as orelhas, com bucha. - �Vocêpode levar também as alpercatinhas do Dito, elas ser-vem para você...�

No outro dia os galos já cantavam tão cedinho, ospassarinhos que cantavam, os bem-te-vis de lá, os pas-so-pretos: - Que alegre é assim... alegre é assim... En-tão. Todos estavam em casa. Para um em grandes ho-ras, todos: Mãe, os meninos, Tio Terêz, o vaqueiro Salúz,o vaqueiro Jé, o Grivo, a mãe do Grivo, Siarlinda e oBustiquinho, os enxadeiros, outras pessoas. Miguilimcalçou as botinas. Se despediu de todos uma primeiravez, principiando por Mãitina e Maria Pretinha. Asvacas, presas no curral. O cavalo Diamante já estavaarreado, com os estrivos em curto, o pelego melhoracorreado por cima da sela. Tio Terêz deu a Miguilim acabacinha formosa, entrelaçada com cipós. Todos erambons para ele, todos do Mutum.

O doutor chegou. - �Miguilim, você está apronta-do? Está animoso?� Miguilim abraçava todos, um porum, dizia adeus até aos cachorros, ao Papaco-o-Paco,ao gato Sossõe que lambia as mãozinhas se asseando.Beijou a mão da mãe do Grivo. - �Dá lembrança a seoAristeu... Dá lembrança a seo Deográcias...� Estavaabraçado com Mãe. Podiam sair.

Mas, então, de repente, Miguilim parou em frentedo doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer oque tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor en-tendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara deMiguilim.

E Miguilim olhou para todos, com tanta força.Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro,

aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; océu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidrosaltos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastandoperto do brejo, florido de são-josés, como um algodão.O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum erabonito! Agora ele sabia. Olhou Mãitina, que gostavade o ver de óculos, batia palmas-de-mão e gritava: -�Cena, Corinta!...� Olhou o redondo das pedrinhas,debaixo do jenipapeiro.

Olhava mais era para Mãe. Drelina era bonita, aChica, Tomezinho. Sorriu para Tio Terêz: -�Tio Terêz, osenhor parece com Pai...� Todos choravam. O doutorlimpou a goela, disse: - �Não sei, quando eu tiro essesóculos, tão fortes, até meus olhos se enchem de água...�Miguilim entregou a ele os óculos outra vez. Umsoluçozinho veio. Dito e a Cuca Pingo-de-Ouro. E oPai. Sempre alegre, Miguilim... Sempre alegre,Miguilim... Nem sabia o que era alegria e tristeza.Mãe o beijava. A Rosa punha-lhe doces-de-leite nasalgibeiras, para a viagem. Papaco-o-Paco falava, alto,falava.

TEXTO 2(...)- �... Diz que era um Rei, tinha uma filha por ca-

sar...� O senhor do Vilamão, miúdo mansinho de tãocaduco, o pai dele tinha sido o maior de todos os fazen-deiros, no rumo de Paracatu. Um faraó de homem, donode quinhentos escravos, fazenda de toda gala. Aindaele mesmo, o senhor do Vilamão, persistia rico no queherdou, também com fazendão, quantidade de vaquei-ros, enxadeiros, malados e meeiros, e assistia numacasa enorme, com capela por dentro - mas espaçosa,possuindo nobre altar, com douração, com os ornatostodos - onde cabiam bancos de jacarandá, de recosto, ea gente admirava a cruz e os instrumentos do martírio,repintados, em amarelo e azul, no forro branco do teto.Lá, naquela fazenda Atrás-dos-Morros, se servia vi-nho comercial, bebidas de sala; mesmo em dias semfesta se comiam eram iguarias. Só as riquezas queguardavam em arca de roupa! O senhor do Vilamãoainda vestia camisas de holanda, que prendia com bo-tão de brilhante, e aplicava os punhos, duros de goma.E, agora estava ali, hóspede dele, Manuelzão, tinhavindo para a festa! Depois que embora fosse, alguémperguntando, ele por caduquice podia desprezar no di-zer: -�A Samarra? É uma capelinha branca, com tantaparede e janelas nenhumas, tão pequenina cruz, piandode pobre...� Mas tinha vindo. Estava sendo um convi-dado de festa do Manuelzão. O que mal dissesse, nin-guém se importava. Ah, manhã cedo a missa ia sesobressair em azo de fama, com tanta gente no con-templar! Por onde estaria agora recolhida para dormiraquela gentaria, não se escutava mior rumor nenhum,era uma noite como as outras, perpassada. Só o grilolimdos bichinhos do campo, um cachorro vez latia. Todosdevia estar querendo dormir com aferro, por um ama-nhecer mais frescos dispostos. E ele, Manuelzão, não

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UNICAMP � 9pelejava no caminho de poder ficar rico, também, umdia? Deus emprestasse a ele de chegar aos cem anos,com resistida saúde, e ele completava comprando parasi até a fazenda em pompa do senhor do Vilamão, quea todas desafiava. Para teimar e trabalhar, se crescia,numa coragem de morder os ferros. Ah, tanto davabarra no impossível. Supunha a morte? Carecia de umfilho, prosseguinte. Um que levasse tudo levantado,sem deixar o mato rebrotar. Não o Adelço - ele sabiaque o Adelço não tinha esse valor. Doía, de se conhecer:que tinha um filho, e não tinha. Mas esse Adelço saíratriste ao avô, ao pai dele Manuelzão, que lavrava rudemas só de olhos no chão, debaixo do mando de outros,relambendo sempre seu pedacinho de pobreza, privo deréstia de ambição de vontade. Desgosto... Como terum remédio que curasse um erro, mudasse a naturezadas pessoas?

(...)Leonísia era linda sempre, era a bondade formosa.

O Adelço merecia uma mulher assim? Seu cismado,soturno caladão, ele encabruava por ela cobiças de exa-gero, um amuo de amor, a ela com todas as grandesmãos se agarrava. Nem a gente podia aquilo moderar,não se podia repreender, com censuras e indiretas; poisnão era a mulher dele? Mas o Adelço só tinha prazer namulher, afora o trabalho e os filhos só via no mundo amulher; avesgo, lambuzado. Não tinha afeição paramais ninguém. Por conta disso, para não se separar daLeonísia, o prazo de um mês, era que Adelçoremancheara, não declarara firme desejo de conduzir aboiada, não se oferecera insistido para chefiar a comi-tiva da boiada - deixara que a ele mesmo, Manuelzão,competisse aquela ida. O Adelço tinha-se feito peso-mole de melhor não ir: pois queria era ficar, encostelado,aproveitando os gostos de marido, o constante damulher, o bebível, em casa com cama. Nada, não -dei�stá! - ele, homem, ia! Ele, Manuelzão. Quisesse,não ia, isto sim; não era sozinho quem mandava, amo,na Samarra, em tudo?! Era só querer, decidir, e falardeterminado: -�Adelço, eu resolvi, eu fico. Há-de-o,arruma a trouxa, sela o cavalo, e vai!� Ah, e fosse, semrosnar, de boas-vontades. Não me vem com reflagidos!Dito que ele era quem mandava - por ser o pai, o dono,por ter as custas do dinheiro. Mesmo, por um capricholegal, não estava no poder de mandar aumentado?Assim: que, depois da boiada entregue, ainda o Adelçocarecesse de ir mais adiante, mais longe, mais tempo, -levar por exemplo um bilhete, em mão, na Sete-Lago-as, no Belorizonte, no lugarejo do Mim, na Uberaba! -então tinha de passar não era um mês, não, mas dois,três, seis meses, sei lá, longe da Leonísia. Pra ver o queé bom...

(...)Joana Xaviel não terminava nunca de acabar aque-

las estórias? O padre não esbarrava de rezar no quar-to, não se adormecia? Hora de Leonísia e as outrasirem para a cama, tomarem algum repouso, na rompi-

da do dia tudo tornava a começar, aquele movimentode povo, povo. Gente dormindo por aí, homens e mu-lheres. Até onde é que aquele pessoal todo ia, fazersuas necessidades, só se via gente abundando pra de-baixo dos arvoredos, na grota que tinha sido doriachinho. Ali havia plantas que ainda guardavam viçomuito verde, de por águas corridas naquele cavo chão.Joana Xaviel decerto ficava para pernoitar na cozinha.O velho Camilo morava num canto, no quarto dos ar-reios. Mas, por esta vez, tinha demais outras pessoas,também dormindo lá. Joana Xaviel, no dar da meia-noite, não se trasmarcava? Mas não seria verdade queo Adelço aos os olhos bodejasse, querendo com ela. OAdelço só tomava calor com Leonísia... Mas, ele,Manuelzão, que não possuía mulher formosa no cantoda cama, então não estava livre para assim-e-assado,alguém poderia debicar e reprovar? Seguro que ela nãopassava de uma chapadeira feiosa; mas isso era negó-cio pessoal, desde que ele mesmo quisesse, para umvariamento, ninguém não tinha que confrontar, por elenão pôr os pontos altos. E o velho Camilo? Triste deum, soez sujeitado, nesse sertão. Resumo que vivia,por esmola. E logo ali, nos desmandados lugares... Qua-se todo o mundo tinha medo do sertão; sem saberemnem o que o sertão é. Sertanejos sabidos sábios. Mas opovo dali era duro, por demais. Mais, então, as mulhe-res. A gente perguntava: - �Vocês não têm medo deonça?� Essas respondiam: - �A gente tem remorsodelas não...� A que duas mulheres de campeiros esta-vam buscando lenha no cerrado, de tardinha, hora doescurecer, elas tinham levado os cachorros. Em certorepente, os cachorros delas deram de guerra, e acontravulto avançaram num outro cachorro, nosemiscuro elas não podiam notar bem, só ouviram orefunfo, mas baixaram o porrete no outro cachorrão, obicho era mais forte, os cachorrinhos de casa estavam,perigando. Deram de derrubar. Mataram. Daí, então,foram ver, era uma onça-vermelha: uma suaçurana-do-lombo-preto, das que são grandes... O coro da súçuaestava ali, desespichado. Joana Xaviel também era as-sim. Gente experta, remacheada, sem trava no cabo damão. Mas ele, Manuelzão, podia com eles.

(...)A Capelinha estava só de Deus: fazendo parte da

manhã, lambuzada de sol, contra o azul, mel em bran-ca, parecia saída de um gear. Dentro, eram servidas decaber, de joelhos no batido, as pessoas primeiras - opadre, o sancristãozinho, Leonísia e Adelço, o senhordo Vilamão e outros respeitáveis; e a menina mais ve-lha de Leonísia e Adelço, que segurava a fita.Manuelzão no princípio aceitou a honra de entrar, àfrente de todos, admirado por tantos olhos, pompa deir direito ao altar, beijar a Santa, dito um padre-nosso.Mas daí tornava a sair, a capelinha era tão pequena, oaperto dava aflição, ele receava faltas-de-ar. O povoameenchia a chã, sem confusão nenhuma. Mesmo aquelescom os revólveres na cintura, armas, facas. Ao que

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10 � UNICAMPManuelzão, cá bem atrás, ficou, no coice. Gostavatodos aprovassem essa sua simplicidade sem bazófia,e vissem que ele fiscalizava. Ajoelhou no hortelã-do-campo. Queria rezar. Mas o coração crescia. Perto,estava um gado, um touro e as vacas, que pastavam.O que era de Deus, não se enxotava, por ser. O solesquentava, aos tantos; o touro, que coçava a testa eo pescoço num mourão do cemitério, ia-se afastando.Passavam os periquitos, o oscilo dos grilos,emplanados. Joãozinho o vendeiro, do porto do rio de-Janeiro, mandara armar o cômodo de uma latada, comprateleiras, vasilhas, bebidas, comidas, cigarros, fru-tas - de tudo ia vender, até espelhinhos, até vidros decheiro. Trouxeram um carro-de-bois cheio de coisas, emduas viagens. Num cercado, tinha as novilhas, as por-cas, um bode e as cabras, para o leilão. Leilão abasta-do, sortido, com muitas prendas. Os preparos e doces,garrafas de pimenta, enfeitadas com papel-de-seda,garrafas de conhaque e cachaça. Cada lance se prome-tia com instâncias, afrontando. O lucro havia de darpara se comprar um sino, sinozinho, para os ares. Muitagente, de ver, forte rezava. Quando era pelos grandesmomentos, o menino do padre rangia a campainha,três em três vezes, o povo batia nos peitos, tudo igualem igreja mestra. Era um silêncio espalhável. A genteouvia as sariemas, no espinhaço da serra, retinir seucanto emendado. Ouvia o barulho das vacas arrancan-do o capim e dando bufo curto. Saía da gente toda aliuma vontade de respeito, um suor de paz, de roupanova e dia diferente, uma aragem de virtude. O povo -estavam como as árvores do cerrado, respingados desol. Cada um longe de si. (...)

VII. A OBRA E A CRÍTICAÉ da subcultura sertaneja, povoada por tropeiros,

capiaus, boiadeiros, pequenos fazendeiros que trata aobra de Guimarães Rosa. É o mundo da arraia miúda,da roça, o espaço privilegiado por ele, em que �o boi e opovo do boi� ocupam o primeiro plano e se tornamprotagonistas de suas vidas e histórias. O povo emGuimarães Rosa canta, diz versos, conta histórias,dança, reza, expressa suas superstições e crenças, re-pete provérbios. Sua cultura é uma fala, através daqual se revela seu modo de vida. O popular flui, nascedo texto, da boca dos homens, mulheres e crianças dosertão; é fruto de sua experiência e parte de suas vidase cotidiano. A matéria popular vai se entretecendo natrama do texto, borrando as fronteiras entre o populare o erudito. Sua função não é contribuir para a corlocal, nem ela é tratada como um elemento pitoresco.

João Guimarães Rosa, ampliando e aprofundandoo legado de Simões Lopes Neto, transpõe o fosso aber-to entre a voz do narrador culto e a voz do personagemiletrado ou semi-letrado e, através do uso freqüente doindireto livre, elide a distância entre um e outro, mistu-rando pontos de vista e colocando em contato duasesferas diversas de experiência.

(...)Em Rosa, o movimento pendular entre modernidade

urbana e a �palavra-outra� dos �desheredados de lamodernización�, ou entre duas configurações culturaisdiversas, atinge um alto nível de equilíbrio formal, pormeio daquilo que Rama denomina operaçõestransculturadoras, que ele argumenta ocorrerem no ní-vel da língua, da estruturação literária e da cosmovisão.Trata-se, para o crítico uruguaio, da construção de umolhar, de uma resposta criadora ao confronto entre omundo tradicional do sertão e as alterações que vão,gradual mas inexoravelmente, transformando sua facee modos de vida. A consciência de que o sertão vailentamente sendo atingido por mudanças, determina-das por um processo histórico irreversível, subjaz aouniverso rosiano e aparece consubstanciada, por exem-plo, no próprio desejo de alguns personagens de que elese transforme num espaço de �civilização�, como é ocaso de Manuelzão, em Uma Estória de Amor.

(...)Guimarães Rosa dá voz, assim como Simão Lopes

Neto e Euclides da Cunha antes dele, às contradições edilaceramentos de um país, cuja imagem se desenhacomo um espaço em que o processo de modernizaçãonunca se deu de forma homogênea. Essa face contradi-tória do país foi captada por Guimarães Rosa, a partirdo ponto de vista daqueles cujas vozes foram silencia-das pela História. Aqui, essa História é contada �pelolado de baixo� e fala das culturas subordinadas degrupos subordinados, dentro da formação social brasi-leira. O arcaico, portanto, não é apenas uma ruína dopassado, mas sim um dos modos mais efetivos do pre-sente e, como tal, corolário do projeto de moderniza-ção do país, pelo qual a literatura brasileira se empe-nhou praticamente desde seu início. Se o progressopode conter a possibilidade de uma perda irremediável,como a morte do mundo jagunço e de sua subcultura,em Grande Sertão: Veredas, essa perda, por sua vez,tem como contrapartida a morte do arcaísmo do favor,tão arbitrário e violento quanto o Estado que o des-truiu.

Em Guimarães Rosa, o arcaico e o moderno nãovalem em si, ou por si, mesmos, mas estabelecem umarelação complementar e contraditória que superadualismos seja no nível da língua, quando o escritormescla arcaísmos e neologismos, fazendo colidir duastemporalidades diversas, seja no nível da construção,quando articula formas narrativas modernas, que in-corporam a linguagem cinematográfica, a livre associ-ação, o descontínuo, e formas narrativas arcaicas, comsuas tramas e técnicas típicas da oralidade.

A produção desse efeito de indeterminação, ou demisturas estilísticas, poderia conformar o que se podechamar de uma poética rosiana e, assim sendo, subjaza toda a sua obra.

(Sandra G.Vasconcelos)

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UNICAMP � 11

UMA ESTÓRIA DE AMOR

�Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor nãosabe; mas principalmente quero contar é o que eu nãosei se sei o que pode ser que o senhor saiba�.

(João Guimarães Rosa)

Acompanhando a boiada de Manoel Nardy pelointerior de Minas Gerais em maio de 1952, o médico ediplomata João Guimarães Rosa mergulhou no univer-so das histórias que ouvia desde menino. Dez dias mon-tado em lombo de cavalo, caderneta presa ao pescoço,Rosa ia anotando com sua letra miúda observaçõessobre a fauna, flora, costumes e falas, assim como ashistórias, cantos e danças daqueles homens do sertão.

Suas anotações, contidas em dois diários de via-gem chamados de A Boiada 1 e A Boiada 2 , foramaproveitadas na elaboração dos contos e novelas deCorpo de Baile, que Guimarães Rosa publicou quatroanos mais tarde.

Dessa convivência com os vaqueiros, com seu mun-do, seus costumes e imaginário, Rosa criou Uma Es-tória de Amor - a narrativa da festa de fundação dafazenda Samarra, organizada por seu capataz ManuelJesus Rodrigues, o Manuelzão. Povoado por velhoscontadores de histórias, romeiros, dançarinos etocadores de sanfona, o conto entrelaça no seu tecidonarrativo toda uma tradição oral oriunda da memóriae saber coletivos, incorporando fragmentos da DonzelaGuerreira e romances de boi, quadras e cantigas deviola, e os faz conviver, no espaço da festa, com aperplexidade e fragilidade de um personagem centralque, já velho, busca um sentido e uma explicação parasua vida.

Acostumado desde menino a ouvir as narrativasde Juca Bananeira, o negro que lhe contava histórias deboiadeiros e jagunços, Guimarães Rosa formou-se len-ta e gradualmente nas artes da narração. É ele mesmoquem conta:

�Quando menino, no sertão de Minas, onde nasci eme criei, meus pais costumavam pagar a velhascontadeiras de estórias. Elas iam à minha casa só paracontar casos. E as velhas, nas puras misturas, me con-tavam estórias de fadas e de vacas, de bois e reis.Adorava escutá-las.�

Mais tarde, o médico percorreu o interior de Minasa atender doentes e ouvir histórias e o diplomata cor-reu mundo, armazenando �o saber das terras distan-tes�.

O contato e o convívio com os narradores oraiscom os quais topou ao longo de suas andanças deixa-ram rastros na sua formação de narrador erudito. As-sim como sua vida está marcada pelo universo destesnarradores, sua obra está coalhada destes velhos mes-tres da arte da narração.

O entrecruzamento do narrador oral e do narradorerudito em Rosa faz com que ele conserve �a alma, oolho e a mão� do artesão, que fia e tece suas histórias

obedecendo a um tempo e a um ritmo de trabalho quejá desapareceram do cenário urbano mas ainda subsis-tem no espaço do campo, recriado pela sua obra.

Profundamente marcado pelo universo da experi-ência coletiva, Uma Estória de Amor aponta parauma questão que se configura como central para seumodo de ser - trata-se basicamente da maneira pelaqual esta tradição oral é incorporada à história da fes-ta na Samarra. Entretecidos na trama narrativa, en-contram-se as quadras, romances e cantigas - comple-tos ou em fragmentos - que, num gesto de bricoleur,Guimarães Rosa resgata de seu contexto original parareinscrever numa outra ordem, estabelecendo assimnovas possibilidades de significação decorrentes donovo contexto em que foram colocados - peças de ummosaico que, articuladas em novas relações, adquiremum significado particular definido a partir de suareatualização.

(...)Guimarães Rosa coleciona citações, fotos, dese-

nhos, listas de palavras, recortes de jornal - registrosde um trabalho artesanal acumulado em cadernos epastas, fragmentos do real prontos para se articula-rem em novas constelações de significados. É dessegrande baú que saem as histórias, quadras e dançasque entram na composição do tecido narrativo de UmaEstória de Amor. Guimarães Rosa traduz esse mun-do da oralidade, recuperando a fala arcaizante na cons-trução de sua narrativa escrita, e reitera um procedi-mento que é característico de sua obra - a intervençãode narrativas no corpo de seu texto que, reatualizadas,têm a função de abrir as portas para a revelação dosignificado daquilo que se narra.

(...)A festa, gesto coletivo onde cada participante é

ao mesmo tempo ator e espectador, é não só o elemen-to que enfeixa e organiza todos os acontecimentos doconto, mas também o espaço privilegiado que arrancada destruição e da morte o tempo da experiência. Lon-ge de comemorar uma memória imediata, a festa assi-nala um momento acima do tempo e da crise, possibili-tando o resgate do irredimido e do irrealizado. Seucaráter inclusivo tem a propriedade de fazê-la abarcaro todo, transformando-a numa fala coletiva,polifonizada. Instante de absoluta concentração dotempo, a festa pode restaurar as fontes da vida quesecaram, da mesma forma que as águas do riacho secoda Samarra são restauradas na narrativa do velhoCamilo.

No espaço ritual desta festa, contraditório pelamistura que opera com o cotidiano, as histórias e asoferendas dos romeiros - suas �estúrdias alfaias� - seapresentam como cacos descontextualizados que cla-mam por redenção. A festa sagra e presentifica essesfragmentos de outros tempos que, enquanto carregama memória de sua própria temporalidade, engendramum novo significado ao se recomporem numa nova cons-

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12 � UNICAMPtelação que reatualiza seu sentido. Assim, ao mesmotempo em que desmancha o espaço, o tempo e os signi-ficados, a festa recria tudo isso estabelecendo, graçasa esse movimento de desmancho e recriação, um princí-pio que descreve e organiza o próprio modo de ser doconto.

O imaginário resgatado pelo círculo dos contado-res de histórias - velhas narrativas orais portadoras deum significado que espelha a condição do personageme recupera, no universo do conto, o espaço do sagradoe do mito - fala de um mundo onde a experiência aindaconta e, mesmo que fragmentariamente, encerra uminstante de iluminação que desvenda o destino deManuelzão.

Uma Estória de Amor fala, na verdade, da ori-gem da narrativa, ao procurar �a montante do tempo�as fontes arcaicas da literatura que secaram, desentra-nhando histórias de dentro da história. Ou como dizGuimarães Rosa em carta a seu tradutor italianoEdoardo Bizzarri:

Uma Estória de Amor - trata das �estórias�,sua origem, seu poder. Os contos folclóricos comoencerrando verdades sob a forma de parábolas ousímbolos, e realmente contendo uma �revelação�.O papel, quase sacerdotal, dos contadores de es-tórias.

O conto se volta, portanto, para o processo decriação das histórias, para sua nascente. Ao deflagraro imaginário, o passado, as lembranças, a memória e oinconsciente, as histórias encontram no ouvinte acompletude que não possuem no seu estado virtual.Assim, a história fala, mas seu sentido se completa aoencontrar eco no mundo interior daquele que a ouve.

(...)Uma Estória de Amor reflete, de modo muito

particular, um momento de cruzamento da experiênciacoletiva e da experiência individual, (...) Possibilitandoque o universo da narrativa oral, calcada no saber co-munitário, irrompa no mundo do indivíduo solitário,ainda que de modo fragmentário e fugaz, o conto fazdessas aparições um momento de confronto do perso-nagem com sua própria história.

Dessa forma, as narrativas orais que Rosa incor-pora a seu conto provocam uma tomada de consciênciado protagonista, colocam-no frente a frente com aquestão de sua própria identidade e, de certo modo, oreconciliam com seu destino. Ao encerrar a narrativacom a recitação de um mito, quando o mistério con-templa o mistério, o conto aponta para um plano ondeas respostas ainda são possíveis. Para as perguntasque o protagonista nem sempre formula de maneiramuito clara, o imaginário das histórias pode forneceralgumas respostas; por um processo de espelhamento,a experiência individual do personagem encontra econas narrativas orais, na medida em que aí se refletemalgumas das questões fundamentais com queManuelzão se defronta durante sua festa. Embora res-

taure o poder da palavra enquanto resgate da verdadee veículo da experiência do sagrado, a figura donarrador, no entanto, se interpõe entre personagem eleitor, para quem ficam dificultados a contemplação eo acesso ao mistério. Resta-lhe somente perceber umbreve e fugaz lampejo que ilumina e decide o destino deManuelzão.

A tradição e a arte de contar histórias se mantêmvivas em Uma Estória de Amor, principalmente atra-vés da presença marcante de dois velhos mestres danarração. Reatualizando o arcaico no ambiente da fes-ta, enlaçando a matéria oral no tecido narrativo - es-paço da escrita -, ou mostrando que o ritmo do traba-lho no campo ainda permite que se narrem histórias,Uma Estória de Amor coloca em pauta a questãoessencial da permanência das velhas narrativas oraisno imaginário individual e coletivo. História de va-queiro ele mesmo, o conto repete, ampliando, as histó-rias de vaqueiro narradas por Joana Xaviel e Camilo.Assim, trata do mundo das imagens que circulam noespaço do campo e falam de perto a seus habitantes,criando um jogo de espelhos onde se refletem a experi-ência do mundo sensível, a memória e o desejo.

Imagens diversas de um mesmo sentido próprioque, por um processo de ampliação, figuram de mododiferente a cada vez, o episódio do riachinho, as histó-rias de vaqueiro e a narrativa desenham uma estruturafolheada, exigindo que se vá desfolhando cada umadas camadas do conto para atingir seu olho-d�água.

(...)No conjunto da obra de Guimarães Rosa, Uma

Estória de Amor não é, evidentemente, um caso úni-co de narrativa que abriga dentro de si outras narrati-vas. Um exame, ainda que rápido, dos seus contos eromance revela a presença de um tecido de pequenashistórias que se embricam, se entretecem ou fazemcontraponto às histórias principais. Os narradores epersonagens de Rosa estão sempre prontos a contarhistórias, seja para ilustrar um problema, seja para secontrapor a uma opinião; seja para dar um exemplo,seja para esclarecer algum ponto obscuro de sua narra-tiva.

Constituindo-se num traço marcante dentro da obrado autor mineiro, a inserção de narrativas dentro danarrativa é um procedimento que faz conviver o novo eo velho - o imaginário das histórias tradicionais, deextração tanto erudita quanto popular, e a modernidadee refinamento da própria construção do texto.

(...)Elemento condutor da narrativa, a festa é, certa-

mente, o espaço privilegiado do texto, porque é nelaque ele se arma. Ela é o elemento que capta a totalida-de, é o espaço de ruptura do tempo e do cotidiano, é oespaço da criação, no qual Manuelzão vai tecer os acon-tecimentos. Ela é o espaço real, palpável, onde circu-lam o povo, os bichos, os personagens. A festa se fazno pátio, no eirado, na chã da capela, na sala e na

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UNICAMP � 13cozinha. Com esse, convive um outro espaço - o doimaginário das histórias, do devaneio e do sonho, damemória e da desordem - construído por Manuelzão.Aí, o vivido, o imaginado e a fantasia, com suas ânsi-as, mal-estares e palpitações, é deflagrado ora por lem-branças, como a da construção da casa, ora por pesso-as, como o velho Camilo, ora pelas histórias, como asde Joana Xaviel.

(...)Festa, memória e fantasia, presente, passado e fu-

turo, resmungos de consciência - tudo está muito mis-turado. A mãe, a construção da Samarra, Leonísia, asaída da boiada, tudo vai e vem, emerge e submerge, seembricando num jogo de abertura e fechamento. O es-paço físico aberto se fecha ao tomar de assalto o mun-do interior do personagem para abrir-se em seguidapara o espaço ilimitado do fluir da consciência. Os des-locamentos do espaço real para o da memória ou dosonho são deflagrados por elementos externos, condu-zindo Manuelzão numa viagem pelo mundo de sua sub-jetividade.

Este jogo constante de abertura para o exterior - oespaço da festa - e fechamento para a interioridade dopersonagem dá à narrativa um movimento de sanfonaou de fole, um ritmo de respiração que resulta do alar-gamento e estreitamento do foco narrativo, do espaço(físico e psicológico) e do tempo. O movimento de abrire fechar, que se constitui num jogo de fluxo e refluxo danarrativa, fica também muito claro no tratamento dofoco narrativo. O narrador tem um olhar de longe e umolhar de perto, que se amplia e se estreita. Quando esseolhar se afunila, ele toma de assalto o personagem,entrando para dentro dele, num processo dedesnudamento de sua interioridade, com suas vonta-des e motivações, reprimidas mas latentes.

(...)Dessa fina malha, tecida pelo emaranhado do fio

da festa e dos fios das lembranças e das inquietaçõesde Manuelzão, faz parte um pequeno episódio que cons-titui, na verdade, o nervo da estrutura de Uma Estó-ria de Amor. Trata-se do relato acerca do riachinhoque corria pela Samarra e que �estrito ao cabo de umano de lá se estar, e quando menos esperassem� cessoude fluir.

Enigmático, inexplicável, o episódio deixa marcasindeléveis em Manuelzão. Grande ausente do espaçoda fazenda, o riachinho é uma presença inequívoca einescapável na memória do protagonista, no imaginá-rio das histórias e até mesmo no trajeto sinuoso daprocissão, que mimetiza o curso d�água e refaz, naesfera do humano, o movimento do riacho.

Misturado à evocação do protagonista sobre tan-tas outras questões fundamentais - a fundação daSamarra, a família, a velhice, a terra -, o episódio doriachinho poderia até passar despercebido e ser descar-tado como um acontecimento qualquer na vida da fa-zenda, não fossem o mistério que o envolve e as insis-

tentes referências feitas ao riacho ao longo da narrati-va. Assim, embora ocupe pouco mais do que dois pará-grafos, este embrião da história se delineia como umponto nuclear da narrativa na medida em que dá exis-tência ao conto, transformando-se em sua própria ra-zão de ser.

Essa pequena história, regida pela parataxe, comuma linguagem miúda e dividida pela virgulação, en-cerra uma totalidade de significação, pois é uma metá-fora reduzida e concentrada do conto, onde convivem oelemento lírico presente na descrição da natureza, otom trágico contido na idéia de corte de fluxo, e afigura épica de um herói civilizador e fundante, des-manchada na fragilidade e no humano.

Metáfora do curso da existência humana, o riacho,quando pára de fluir, deixa em Manuelzão uma inquie-tante sensação de mal-estar. Não é casual que a idéiade desando, desmancho, morte e mau-olho, que lhe vemà cabeça pela primeira vez após o episódio, seja imedi-atamente associada à morte do riacho, no fluxo derecordações do vaqueiro.

O olho d�água que seca - com sua �boquinha�,�chio�, �soluço� e �lagrimal� - forja a equivalênciaentre riacho e homem e se transfigura em alegoria damorte, transformando o espaço em cenário da vida docorpo sensível. O que se perdeu, e o conto procura recu-perar ao se constituir no avesso do riacho, é o mundoda interioridade do sujeito, o universo do sonho e daslembranças, do imaginário e do inconsciente.

Se, no entanto, a morte do riachinho é sinal dealgum desarranjo, Manuelzão não sabe ler a mensa-gem que a natureza lhe envia. O que permanece é asensação de oco, de vazio que essa ausência do riachoprovoca e o desejo sempre reiterado de que as águas doriozinho voltem a correr pela Samarra. É assim que anarrativa, daí para diante, fica coalhada de referênciasou lembranças do riacho. Estas encontram seu pontomais alto na Décima narrada pelo velho Camilo, quan-do o riachinho aparece como cenário do encontro entreo Vaqueiro Menino e o Boi Bonito e a Samarra aparecetransfigurada na Vargem da Água-Escondida. Cria-se, assim, uma leitura pelo avesso do episódio do ria-cho, em que as fontes que secaram passam a manar,reatando o universo sensível e o fluir do imaginário. Otema do riachinho é recuperado, �em transcendência�.

Ao mesmo tempo que a versão de Camilo encantaseus ouvintes e os enreda na teia mágica da narrativa,ela narra o encontro, no plano do imaginário, deManuelzão consigo mesmo, com o passado morto, ainfância. Essa recuperação sugere que, naquele plano,torna-se possível recuperar a perda, preencher o vaziocom um riacho que nunca seca e transformar o desejode presença em presença. (...)

(...)O conto, portanto, tem sua origem nesse episódio

do riacho seco que pode, nesse sentido, ser descritocomo uma arché, ou princípio de todas as coisas. Co-

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14 � UNICAMPlocando-se sob o signo da falta, a narrativa nasce deum mistério e propõe a imagem do riacho seco comoum enigma, cuja elucidação só terá lugar ao final dafesta. Manuelzão suspeita que, na verdade, a cessaçãodo fluxo do riacho é um sinal que a natureza lhe enviade que algo vai mal; sente que as forças da natureza,incompreensíveis e estranhas, se contrapõem e se so-brepõem a ele. De seu ponto de vista, trata-se de umacontecimento que introduz um fermento de perturba-ção e uma idéia de dano à ordem do mundo. Nessemomento de contato consigo mesmo, quando percebesua profunda fragilidade, Manuelzão forma a idéia dafesta, móvel da própria narrativa. Sem que o vaqueirose dê conta, a festa é a resposta que consegue dar àestranha linguagem da natureza, o que a reveste, por-tanto, do sentido ritual de restaurar as fontes da vidaque secaram.

Marcada por práticas culturais que se constituemem formas do saber, do agir e pensar do homem docampo, a festa de Manuelzão é, antes de tudo, um atoinaugural que incorpora os domínios do sagrado e doprofano, num mesmo sistema simbólico. Combinandoe alternando procissão, rezas e missa de um lado, ecantos, danças e histórias de outro, sua festa se reco-bre de um caráter ao mesmo tempo devocional e festi-vo.

Tudo é festa: as intervenções do mundo da oralidadeem forma de histórias antigas - perdidas no tempo,contadas sem que ninguém saiba quem as produziu oude onde vieram -, em forma de quadras, ou por meio deprovérbios, pequenas ruínas de experiência congeladano tempo; ou ainda o mutirão de mulheres, o leilão deprendas, o lundu, a missa, a procissão e o repenique dasviolas - práticas e manifestações que falam do modo devida dos participantes deste evento que, ao romper arotina de carência e trabalho duro, instaura uma at-mosfera propícia ao advento do novo.

(...)Com efeito, construir e instalar-se na Samarra -

sua morada e lugar de pouso - equivalem, paraManuelzão, a marcar um novo começo, uma vida nova,repetindo, dessa forma, o gesto primordial de �funda-ção do mundo�, uma vez que esse é o lugar que o va-queiro decidiu habitar e tem a responsabilidade de man-ter.

A construção da capela de Nossa Senhora do Per-pétuo Socorro é um compromisso assumido porManuelzão de cumprir o desejo da mãe e homenagear asanta. Assim, a sagração da capela tem o sentido deinaugurar e fundar a Samarra de fato, com �uma festaforte, a primeira missa�, transformando-se, desse modo,num �ritual de tomada de posse�.

Mistura do previsível e do imprevisível, a festa in-clui atos de rotina, como carrear água, tirar leite ereunir a boiada, ao mesmo tempo que transcende ocotidiano ao introduzir um tempo de distensão que seconstitui num �espaço estrutural para o surgimento

do novo�. Assim, embora os homens realizem os mes-mos atos dos tempos não-festivos, eles crêem que vi-vem num tempo de exceção, voltado para o coletivo esimbólico-religioso. Essa mistura possibilita que a fes-ta transgrida a separação entre as esferas do sagradoe do profano, incorporando ambas num mesmo domí-nio. Meio de expressão de uma comunidade, a festatorna possíveis a restauração e a regeneração da pleni-tude da vida ao romper com o cotidiano regrado dotrabalho e com os limites da condição humana e aoreintegrar seus participantes no tempo da liberdadecriadora e da apropriação do mundo por meio do imagi-nário.

O conto encena uma festa de santo - um tempo deinterrupção do trabalho, que possibilita o ócio e a di-versão através das danças, cantos e histórias. Tam-bém encena a festa como um espaço onde trocas sim-bólicas entre o povo devoto e Nossa Senhora do Socor-ro têm lugar. A procissão, a missa e a reza são, assim,gestos coletivos que marcam essa relação de reciproci-dade. Dessa troca de bens fazem parte, sobretudo, asprendas - �estúrdias alfaias� sem nenhum valor comer-cial - que são doadas como agrados à Santa e tambémo dinheiro para a compra de um sino para a capelinha,recolhido no leilão organizado por Joãozim Vendeiro.

Animada pela fé, essa gente caminha em procissãoladeira acima, �parecia até que para o Céu�, refazendodentro da esfera do humano, o movimento sinuoso doriacho que secara. Ritual que coloca os homens emcomunicação com o sagrado, a procissão refaz a expe-riência de criação do mundo e de volta às origens, poisela é �um rito que dá corporeidade à idéia do ciclo etranscurso, como prova seu retorno ao ponto de parti-da�. Este ato de comunhão com o sagrado, repetidodurante a missa, tem o poder de restaurar, ainda queapenas por instantes, a harmonia entre homem e natu-reza, pressentida no canto dos grilos e no céu estreladoe confirmada pela descrição que o narrador faz do ce-nário.

A sucessão de eventos festivos e de situaçõesdevocionais de caráter litúrgico transforma a fazendanum mundo temporariamente outro, mas que faz par-te, ao mesmo tempo, do mundo habitual. É nesse mun-do simultaneamente outro e ele mesmo, em que aexcepcionalidade e a transcendência do cotidiano setornam possíveis, que Manuelzão vive de modoconflituado a experiência da festa. Assim, encontradificuldade em aceitar a mistura que a própria nature-za da festa possibilita e que a outros parece tão sim-ples vivenciar. Escapa-lhe a compreensão de que festa émistura e combinação de opostos - do planejado e doimprevisível, do religioso e do secular, de ritual e impro-viso. É na tensão entre tempo de festa e cotidiano quese cria a fissura por onde se vai instalar a possibilidadeda desordem, do novo e da criação.

Embora possa conter atos de rotina, a festa seregula por normas que diferem daquelas que regem o

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UNICAMP � 15cotidiano das pessoas, e se transforma num períodoexcepcional, que propicia, por meio da diversão, a bus-ca do novo e a fuga do que a vida tem de maçante ecansativo. Entretanto, Manuelzão vê a festa, o arre-batamento dos músicos e dançarinos, o esbanjamentodos peões, com os olhos distantes de quem, esmagadopela banalidade da vida cotidiana e pelo trabalho duroe sem trégua, desaprendeu a fruir do prazer e da ale-gria. Apesar de sua natureza essencialmente coletiva,a festa se configura como uma ocasião que reforça oensimesmamento do personagem, jogando-o nos me-andros de seu passado, e se reveste de um sentido, paraManuelzão, que ele não pode compartilhar com maisninguém.

Ainda que seja assim, o conto, cujo fulcro é a festa,oferece uma oportunidade única de mesclar as reminis-cências do vaqueiro, uma vez que �o que faz com queos dias festivos sejam grandes e importantes é o en-contro com uma vida anterior�, e a memória coletiva,presente nas histórias, quadros e cantos; essa misturaencontra seu ponto máximo no relato do velho Camiloque, ao recitar a Décima do Boi e do Cavalo, deflagraum momento de iluminação súbita, um lampejo queentrelaça, ainda que fugaz e debilmente, o individual eo coletivo. Durante a recitação da Décima, cruzam-seo mundo das imagens que habitam o íntimo deManuelzão e o imaginário coletivo das histórias.

O universo da oralidade intervém de diversas for-mas no espaço dos três dias de festa na Samarra. Eleestá presente nos cantos e quadras - uma espécie decrônica da vida do povo que chega à fazenda; na sabe-doria cristalizada dos aforismos, frases rimadas e pro-vérbios que, repositórios que são do senso comum, co-mentam aspectos e práticas da vida dessas pessoas;ele está presente, sobretudo, na fina rede de históriasque forma o substrato de Uma Estória de Amor.

Tecida por anônimos vaqueiros que, de volta dasviagens, têm muitas histórias para contar ou por aque-les que preservam e propagam as narrativas que o tem-po e a vida lhes ensinaram, essa rede de histórias cruzao saber que vem do �longe espacial das terras estra-nhas� e do �longe temporal contido na tradição�. As-sim, ele se vincula a um mundo que praticamente desa-pareceu do cenário da vida moderna - o mundo da expe-riência compartilhada e do saber comunitário.

Ao resgatar e manter viva a velha arte de contarhistórias, o conto de Guimarães Rosa articula, de modoexemplar, os universos do arcaico e do moderno, do orale do escrito.

É o Brasil rural o espaço privilegiado por Rosa nasua obra. Entretanto, esse mundo do campo não é im-permeável aos ecos que chegam da cidade, (...)

No mundo de Manuelzão, por sua vez, a cidade éum longe e a presença do narrador culto se dilui graçasao recurso do discurso indireto livre que mistura a vozdo narrador à voz do protagonista. Além disso, essenarrador incorpora outras vozes na sua narrativa, abrin-

do espaço para uma espécie de coralidade (ou co-oralidade) que permeia todo o texto.

O universo do conto de Guimarães Rosa preservaas velhas narrativas orais que, segundo Walter Benja-min, se tornam cada vez mais raras no mundo capita-lista moderno, tendo sido substituídas por novas for-mas de narrar, tais como o romance e o conto, maisadequadas aos novos modos de produção. Ainda deacordo com Benjamin, a atividade artesanal, caracte-rística de uma organização pré-capitalista do traba-lho, possibilita ao artesão inscrever voz e mão no atode narrar e garante o ócio e distensão indispensáveispara que se estabeleça uma comunidade entre narradore ouvinte, calcada no desejo de ouvir e contar. Nessesentido, o narrador é aquele �que sabe dar conselhos�porque sua narrativa transmite algo de que se podetirar proveito - uma moral, uma sugestão, umensinamento.

(...)Ao fazer da oralidade um fato de ficção, Guima-

rães Rosa incorpora essas velhas narrativas no univer-so de seu conto e dá voz aos velhos mestres da arte danarração. Tendo como horizonte o universo da experi-ência individual, as histórias de Joana Xaviel e de Camilose configuram como momentos-chave da narrativa,uma vez que lançam luz sobre seus aspectos essenci-ais, metaforizando a situação e o destino de seu perso-nagem principal.

Histórias dentro da história, os relatos de Joana eCamilo são tecidos no fio narrativo que enlaça os even-tos da festa. Compondo, junto com os cantos, danças,procissão, missa, almoço e leilão, a trama da festa, asnarrativas dos velhos contadores estabelecem um jogode espelhamento entre os conteúdos da história passa-da de Manuelzão - sua condição social, seu destino devaqueiro, a construção da fazenda, as relações famili-ares, o riacho seco, o amor e a morte - e o conteúdo dashistórias coletivas.

Assaltado pela sarabanda de imagens que as duashistórias fazem surgir em sua imaginação - vaqueiros,mulheres, bois, patrão, riacho, fazenda, cavalos -, omundo de Manuelzão parece desfilar perante seus olhos,entrelaçando o imaginário do protagonista com o ima-ginário das velhas histórias orais. Dessa forma, essasse apresentam para Manuelzão como uma sucessão deimagens de sua própria vida. Ele é o vaqueiro das his-tórias e vê refletidas nelas muitas das questões que oinquietam. Cria-se, dessa maneira, uma homologia en-tre as constelações de imagens desenhadas pelo contoe pelas narrativas engastadas no seu tecido, entrela-çando os fios da história e os fios da reminiscência efazendo aflorar o universo do desejo e da memória doprotagonista. A cada imagem, reconstituem-se mo-mentos que se perderam no tempo. Estabelecem-se cor-respondências temporais e o presente de Manuelzão secomunica com os diversos passados, por meio dos acon-tecimentos lembrados. As narrativas o deslocam para

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16 � UNICAMPoutras cenas e outros espaços e sua vida de vaqueirolhe volta à lembrança.

Os sinais externos de sua �doença� - a falta de ar,a dor no machucado do pé, as palpitações - passampara segundo plano e Manuelzão se reencontra comseu passado, reintegrando-o a seu presente: resgata otempo da juventude, a chegada na Samarra, o tempode �antigamente�. Com fragmentos, com as lembran-ças que, tal qual um arqueólogo, escava na memória,ele constrói o desenho de sua trajetória, que culmina noabraço de pai com que acolhe seu filho e nora. A deci-são de sair com a boiada e cumprir seu destino lhedevolve a mobilidade e lhe permite, assim como o ria-cho da narrativa de Camilo, sair caminhando e retomara itinerância. Do estado de paralisia e imobilidade, nascea possibilidade de regeneração, ainda que ela signifi-que a ida ao encontro da morte.

Festa e conto se constituem, portanto, num ato dememória, pelo resgate de uma história individual nomomento em que ela entra em conjunção com conteú-dos do passado coletivo. Momento de reencontro dopersonagem com sua humanidade e do escritor, com asfontes arcaicas da literatura.

Nesse seu mergulho no imaginário do mundo ser-tanejo, Rosa vai de fato em busca da poesia. E vaiencontrá-la em meio aos loucos, às crianças, no morroque fala, na voz do sertão, captando, no caso de UmaEstória de Amor, as vozes e imagens de um mundoameaçado de desaparecimento, de um modo de vidaque, marcado por uma organização social comunitá-ria, começa a sofrer alterações profundas no ritmo enas relações de trabalho.

Distante temporal e espacialmente desse mundo,Rosa o narra para preservá-lo do esquecimento. Pormeio do manancial de histórias que sua escrita deixaentrever, ele põe em evidência um mundo e umatemporalidade arcaicos, o que faz de sua obra lugar deencontro entre dois espaços culturais distintos. O ho-mem culto da cidade penetra, através do deslocamentono espaço e no tempo, num outro universo, diferente doseu, para captá-lo pelo lado de dentro. E o que revelasão imagens do sertão, que pinta até mesmo nos pe-quenos detalhes. Desses detalhes, Rosa desenha suacartografia da região. Em meio às histórias, quadras ecantos, vão surgindo os elementos de uma paisagemque adquire forma e ganha contorno e o sertão se dese-nha a partir das minúcias, dos sons, das cores. São asgameleiras, os tinguis, as rolas fogo-apagou, a irara, o

pau-doce e o pacari, os meninos, os vaqueiros, oburitizal.

A aguda percepção das cores, dos sons, dos chei-ros, das formas e a capacidade de estabelecer relaçõesassociativas ou analogias entre diferentes universos,próximos e distantes, são fundamentais para captar aexperiência e redesenhar o mundo através das imagens.Ao sugerir visões, sensações, cheiros e movimento, aspalavras traduzem sensorialmente o real e compõemum espaço poético por meio da transposição metafóri-ca da linguagem.

(...)A descrição que Rosa faz da paisagem sertaneja se

assenta na permanente analogia entre as esferas hu-mana, vegetal e animal. Ele vai trançando essas rela-ções mediante a justaposição de termos, de compara-ções ou de metáforas que se disseminam pelo discursonarrativo: João Urúgem é o �homem-bicho�; Manuelzãoé associado a diferentes espécies de árvore; os partici-pantes da festa são comparados ao gado.

(...)No processo de construção das imagens, Rosa ar-

ticula o real e o simbólico. O conto absorve os dados darealidade, mas os cifra, recobrindo-os de significação.E é justamente ao imprimir a essa faceta maisdocumentária e regional um significado simbólico queo conto acaba por tocar nas questões fundamentais daordem do humano: amor, desejo, sofrimento, perda, vidae morte. No cruzamento do particular e do universal, osertão real se transfigura em espaço mágico (...)

Ao dar dimensão arquetípica ao cenário e persona-gens sertanejos de seu conto, Rosa reatualiza imagensda tradição da cultura ocidental, captando no singularo que ele tem de universal. Ao mesmo tempo, participado processo de constituição do espaço do sertão comopaisagem literária, vinculando-se a outros autores bra-sileiros que fizeram do sertão cenário de suas obras.

Uma Estória de Amor, assim como o conjunto daobra de Rosa, faz parte do esforço de instituição dosertão como paisagem literária. Não a face retardatá-ria do país, mas sim um espaço matricial, onde o encan-tamento do mundo ainda é possível. As imagens queRosa produz desenham o sertão como o lugar das �pu-ras misturas�, onde, no permanente deslocamento desentido, se cruzam particular e universal, real e mítico,fala e escritura, velhas narrativas e conto. O sertão sefixa em imagens. E o olhar que as capta registra.

(Esse texto é uma breve condensação da obra PurasMisturas. Estórias em Guimarães Rosa, de

Sandra G.T. Vasconcelos, publicado em1997, pela Hucitec/Fapesp.)