Maquiavel e o trágico

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA

    Maquiavel e o trgico

    Jean Gabriel Castro da Costa

    Orientador: Prof. Dr. Ccero Romo Resende de Arajo

    So Paulo

    2010

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Cincia Poltica do

    Departamento de Cincia Poltica da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo,

    para obteno do ttulo de Doutor em

    Cincia Poltica

  • CORO [Sobre Dionsio]:

    () Ao demo-deus,

    filho de Zeus,

    alegra a flor da festa,

    apraz a Paz,

    doadora-de-riqueza,

    deusa nutriz de jovens.

    Equnime,

    ele concede ao rico a ao pobre

    o jbilo antimgoa do vinho!

    Mas odeia quem insiste,

    luz do dia

    e noite amiga,

    no estar de mal com a vida.

    Sbio manter

    o corao e a mente

    longe do cerco de arrogantes.

    O que o vulgo,

    a massa mais depauperada

    recolhe e acolhe

    para mim ddiva!

    (Eurpides. As Bacantes, 416-433)

    Mas como poderia a lngua alem, mesmo na prosa de um Lessing, imitar o tempo de Maquiavel, que

    no seu Prncipe nos faz respirar o ar fino e seco de Florena, e s consegue expor o assunto mais

    srio num indomvel allegrissimo talvez com maliciosa percepo artstica do contraste que ousa: os

    pensamentos, difceis, prolongados, duros, perigosos, e um tempo de galope e do bom humor mais

    caprichoso (Nietzsche, Alm do Bem e do Mal, aforismo 28)

    2

  • Agradecimentos

    Agradeo ao Professor Cicero Arajo, por sua orientao atenta e estimulante e pela

    inspirao para percorrer os caminhos da teoria poltica, inspirao despertada ainda na

    graduao, por seus cursos instigantes e seu domnio da arte de ser professor.

    Professora Eunice Ostrensky e ao Professor Modesto Florenzano, pela leitura

    cuidadosa, as crticas e sugestes durante o exame de qualificao, fundamentais para a

    concluso deste trabalho.

    Ao Professor Fernando Limongi, por sua orientao valiosa durante a disciplina

    Seminrio de Pesquisa e Tese. Ao Professor Adrian Gurza Lavalle, pelas ricas discusses

    surgidas em seu curso Teoria e Metodologia em Cincia Poltica e suas observaes sobre o

    projeto deste trabalho. Ao Professor Rubem Barboza Filho, por sua leitura e comentrios do

    paper relacionado a este trabalho, que foi apresentado no Encontro da ABCP de 2010.

    Aos funcionrios do Departamento de Cincia Poltica da USP, Rai, Mrcia, Ana Maria,

    Vivian e Leonardo, por todo apoio prestado, sempre com competncia e boa vontade.

    Aos meus pais, Jos Castro e Maria Lenilce, pelo apoio, amor e formao, Samara, pelo

    nosso amor constante, minha querida filha Sophia, aos meus queridos irmos, Carlos Eduardo e

    Ana Carolina. Agradeo a todos eles pelo apoio, formao, estmulos intelectuais e comunidade

    feliz. Agradeo aos meus grandes amigos, entre eles, Alex, Poline, Ceclia, Tiago, Z Csar,

    Tatiana, Luciano, Xande, Rodrigo, Clayton, Flvio, Manduco, Andra, Akamine. Todos

    contriburam para minha formao, para que eu conseguisse terminar este trabalho e para a

    alegria compartilhada.

    CAPES, pela bolsa de estudos concedida durante o doutorado.

    3

  • RESUMO

    No Renascimento, o surgimento de um senso histrico que pensava os antigos em seus termos

    prprios, e a ideia de que seria preciso imitar os antigos, no resultaram em apenas uma posio

    humanista, qual seja, aquela tendncia que foi predominante e que enfatizava o poder da

    liberdade humana sobre os caprichos da Fortuna. Tambm surgiu um ponto de vista trgico, no

    qual se insere Maquiavel e que possuir importantes aspectos comuns com a recuperao do

    trgico entre os alemes do sculo XIX. O ponto de vista trgico levou Maquiavel a pensar a

    repblica como arena institucional-legal que permite um equilbrio tenso e criativo entre foras

    sociais opostas, capaz de canalizar as ambies para o bem comum, fazendo com que a

    vitalidade expansiva dos cidados colabore para a vitalidade expansiva da repblica.

    Palavras-chave: liberdade, Maquiavel, republicanismo, trgico

    ABSTRACT

    In the Renaissance, the emergence both of a historical sense that made it possible to regard the

    Ancients according to their own standards, and of the notion that it would be necessary to

    emulate them resulted not only in a humanist attitude, i.e. the predominant disposition at that

    time, which emphasized the power of human freedom over the whims of Fortune. It also brought

    to light a tragic point of view, in which Machiavelli partakes, which will have important common

    traits with the retrieval of the tragic among the XIX century Germans. The tragic point of view

    lead Machiavelli to think the Republic as a legal-institutional arena which allows a taut and

    creative equilibrium between opposite social forces, capable of directing the aspirations for the

    common good, making the expansive vitality of the citizens collaborate with the expansive

    vitality of the Republic.

    Keywords: freedom, Machiavelli, republicanism, tragic

    4

  • SUMRIO

    INTRODUO p. 6

    CAPTULO 1 Teorias sobre as tragdias e o trgico p. 10

    CAPTULO 2 Fontes do ponto de vista trgico na cultura antiga p. 80

    CAPTULO 3 A disputa por Maquiavel p. 137

    CAPTULO 4 Maquiavel e o ponto de vista trgico p. 172

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS p. 227

    5

  • INTRODUO

    Um Maquiavel trgico? Trgico em que sentido? Se for mesmo um autor trgico, em que

    isto contribui para a nossa compreenso de sua teoria poltica? Adicionemos ainda o tamanho do

    desafio, em se tratando de Maquiavel, autor com uma obra suficientemente aberta e instigante

    para produzir um intenso debate acadmico entre diferentes, e por vezes opostas, correntes de

    interpretao. Para alguns, como Croce e Cassirer, Maquiavel seria, acima de tudo, um realista,

    um autor do pensamento estratgico, um tcnico da poltica. Para os straussianos, Maquiavel

    seria mais bem caracterizado como um professor do mal, um autor anti-cristo que pretendia

    demolir a grande tradio ocidental. Para os seguidores da Cambridge School e associados,

    Maquiavel seria um republicano, restando ainda saber se esse republicanismo era de origem

    aristotlica, como queria Pocock, ou neo-romano, como preferia Skinner. As pretenses

    normativas e preferncias polticas dos intrpretes influem em suas escolhas e as diferentes

    interpretaes reforam uma ou outra alternativa terico-poltica contempornea, contribuindo

    para esquentar o debate, fazendo com que ele no seja de interesse apenas daqueles que se

    dedicam a produo de um conhecimento de antiqurio, como pejorativamente dito por

    aqueles que so demasiado ansiosos para se interessar pelas nossas ligaes com o passado.

    O presente trabalho resultou da confluncia de duas reas de interesse: o pensamento

    trgico e a obra de Maquiavel. Nossa curiosidade inicial sobre a obra do florentino se deu por

    meio dos estudos sobre o republicanismo, especialmente, dos trabalhos de J.G.A Pocock e

    Quentin Skinner. A medida que prosseguia nas leituras, encontrava um Maquiavel mais original e

    intrigante, que no se enquadrava facilmente no nosso modo habitual de pensar. Tampouco

    parecia inserir-se de modo ortodoxo em seu prprio meio intelectual, o que j era percebido por

    Skinner. Mais leve em relao posies anteriores, retornei aos trabalhos de Isaiah Berlin e Leo

    Strauss e encontrei interpretaes que enfatizavam a originalidade de Maquiavel em relao ao

    6

  • seu prprio contexto e levantavam problemas que, para mim, aproximavam o florentino das

    questes que apareciam nas minhas leituras sobre as tragdias e o trgico, especialmente a partir

    da perspectiva de Nietzsche. A partir de ento, resolvi investigar mais a obra do prprio

    Maquiavel e minhas suspeitas pareciam se confirmar: Maquiavel aparecia cada vez mais como

    um autntico pensador trgico. Neste trabalho, procuro expor as ligaes que encontrei entre

    Maquiavel e o trgico e tento mostrar que essa dimenso trgica do pensamento de Maquiavel

    pode nos ajudar a iluminar alguns impasses acerca da interpretao da obra do florentino.

    No primeiro captulo do presente trabalho, Teorias sobre a tragdia e sobre o trgico, o

    surgimento de um ponto de vista trgico, no Renascimento, apresentado como um dos

    resultados intelectuais da intensificao do contato com as obras dos antigos, pensados em

    termos prprios, separados do contexto cristo, e pelo surgimento da ideia de que seria preciso

    imitar os antigos. Em seguida, procuramos expor as teorias sobre a tragdia e a filosofia trgica

    que surgem na Alemanha a partir de fins do sculo XVIII, movidas por uma nostalgia da

    Grcia e pela ideia de imitar os antigos. Dedicamos ateno especial ao trgico de Nietzsche,

    em razo de ter sido ele um leitor e admirador da obra de Maquiavel e de havermos encontrado

    proximidade entre suas posies.

    O segundo captulo procura as Fontes do ponto de vista trgico na cultura antiga,

    expondo aspectos dessa cultura que foram lidos pelos modernos em contextos de crise dos

    pressupostos da tradio judaico-crist e os levaram a um ponto de vista trgico. A primeira parte

    deste captulo trata da cosmologia trgica, da ideia de Caos, da compreenso trgica acerca dos

    limites do conhecimento humano, do agonismo antigo, do naturalismo, elementos da liberdade

    trgica e a ideia de enfrentamento com o destino. Em seguida, procuramos contextualizar esses

    elementos que foram apresentados na histria das cidades-estado gregas no momento em que

    comearam as encenaes de tragdias. Nesse momento, a tragdia pensada como uma terceira

    7

  • via entre a tica heroica da poesia pica e o racionalismo moral. Por fim, apresentamos as

    crticas de Plato ao trgico e a anlise de Aristteles sobre as tragdias.

    No terceiro captulo, A disputa por Maquiavel, procuramos expor algumas posies do

    debate contemporneo em torno da obra de Maquiavel. Apresentamos em linhas gerais as

    interpretaes de Pocock, Hans Baron, Najemy, Hirschmann, Skinner, McCormick e Leo

    Strauss. Tentamos mostrar aspectos relevantes dessas posies e como elas nos permitem negar

    ou defender a existncia da dimenso trgica do pensamento de Maquiavel. Expusemos o debate

    entre Pocock, Skinner e McCormick sobre o conceito de liberdade do florentino e levantamos

    problemas que acreditamos que podem ser iluminados pela explicitao do trgico em

    Maquiavel, especialmente em relao ao conceito de liberdade, visto que no estamos satisfeitos

    com a incluso, sem mais, do florentino na concepo de liberdade como no-dominao e

    tampouco com sua insero no paradigma de uma teoria da liberdade ligada a uma concepo

    desinteressada de vida boa. Por fim, resolvemos tentar tirar Leo Strauss do ostracismo, por

    acreditarmos que ele um grande adversrio, e sua leitura ainda tem muito a nos ensinar, desde

    que afastemos nossas pr-noes e procuremos desvendar sua inteno, por meio da anlise do

    entrelaamento entre os nveis esotricos e exotricos de seu discurso.

    O quarto captulo, Maquiavel e o ponto de vista trgico, comea com uma apresentao

    de alguns trabalhos que relacionaram Maquiavel com o trgico, em seguida apontamos os

    mritos e limitaes deles. Depois, procuramos mostrar os aspectos trgicos do pensamento de

    Maquiavel, com destaque para: seus juzos no utilitrios e no morais sobre a performance dos

    agentes e sua simpatia pelo lado derrotado em alguns conflitos; sua cosmologia trgica, segundo

    a qual nada permanente no mundo, que move-se por uma luta entre foras e marcado pela

    combinao entre necessidade e acaso; sua valorizao positiva da grandeza, que aparece na sua

    preferncia pelo modelo popular e expansivo da repblica romana, considerado melhor mesmo

    8

  • sendo definido por ele como menos duradouro que os modelos aristocrticos e contidos de

    Esparta e Veneza; o dionisismo na vida de Maquiavel, que aparece em suas biografias; sua

    preferncia pela moralidade pag; o conflito trgico entre bem e bem, visvel no conflito entre

    virtude republicana e virtude moral, entre bem comum e virtudes crists; seu naturalismo e sua

    distncia em relao teoria do livre-arbtrio; sua noo das limitaes trgicas da ao humana;

    seu vitalismo trgico e agonismo, que aparece em sua ideia de que a virt precisa ser testada, na

    necessidade da refundao contnua e de seus efeitos catrticos, na viso da repblica como

    equilbrio tenso entre foras sociais opostas e na ideia de liberdade como vitalidade expansiva,

    expanso que sempre positiva e que requer a liberdade negativa como o seu instrumento, e, por

    fim, a ideia de que necessria uma bela iluso, uma religio cvica, como estimulante para a

    ao e para estilizar as vontades de um modo favorvel ao bem comum.

    Longe de pretender ter esgotado o assunto, nosso propsito foi levantar questes, tentar

    pensar em sadas para alguns problemas nas interpretaes contemporneas da obra do florentino

    e apresentar um Maquiavel que tem sido escondido, numa tentativa, talvez, de amansar seu

    pensamento subversivo, alegre e instigante.

    9

  • CAPTULO 1 - TEORIAS SOBRE AS TRAGDIAS E O

    TRGICO

    Uma filosofia trgica obra dos modernos.1 Para os antigos, a tragdia era um gnero

    teatral, distinto da comdia, da poesia pica e da lrica. O trgico no era uma posio a se

    defender contra outra. No era uma bandeira existencial, terica, poltica, como se tornou no

    mundo moderno, especialmente a partir de Nietzsche, quando o trgico passou a representar

    uma alternativa viso judaico-crist do mundo religiosa ou laica e metafsica que

    dominou a filosofia ocidental desde Plato. Tentaremos mostrar que Maquiavel foi um autor

    trgico nesse sentido moderno. A ruptura de Maquiavel com a filosofia metafsica e com o

    cristianismo, tambm sofreu influncia de uma determinada leitura dos antigos, e tambm, como

    em Nietzsche, trata-se da leitura dos antigos desvinculados do platonismo, especialmente os

    poetas, como Homero, Hesodo e os poetas trgicos, que eram os representantes por excelncia

    da tradio cultural hegemnica nas cidades-estado gregas. Tambm profundamente enraizados

    neste universo cultural estavam os filsofos pr-socrticos, com destaque para Herclito, e os

    historiadores Herdoto, Tucdides e Xenofonte. Os valores centrais desta cultura (pag, heroica,

    trgica) tambm eram hegemnicos em Roma e aparecem nas obras de Virglio, Ovdio e

    Horcio, assim como em historiadores como Salstio.

    A filosofia de Plato expressava uma posio minoritria em relao tradio cultural

    hegemnica em seu mundo. As posies de Plato e da Academia eram as posies de uma

    pequena elite intelectual, no eram amplamente partilhadas em seu tempo (FINLEY, 1983, p. 41; 1 H algo, sem dvida, que podemos afirmar com inteira segurana: os gregos criaram a grande arte trgica e, com isso, realizaram uma das maiores faanhas no campo do esprito, mas no desenvolveram nenhuma teoria do trgico que tentasse ir alm da plasmao deste no drama e chegasse a envolver a concepo do mundo como um todo. (LESKY, 2006, p. 27). Ver tambm: Since Aristotle we have a poetics of tragedy, only since Schelling a philosophy of the tragic. (GOLDHILL, 2008, p. 52). A mesma avaliao encontramos em Szondi: Desde Aristteles, h uma potica da tragdia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trgico (SZONDI, 1961, p. 23). Ver tambm: (MACHADO, 2006).

    10

  • MOMIGLIANO, 2004, p. 54). Isto deve ser levado em conta quando ns modernos pensamos no

    que seria mais representativo dos antigos. Destoavam do que era hegemnico na cultura

    popular antiga caractersticas que ns modernos em geral atribumos como tpicas dos antigos,

    como a teleologia, a busca pelo governo ideal, a subordinao da poltica ao mundo supra-

    poltico de uma moral transcendental, a defesa categrica da moderao, a sobrevalorizao da

    alma e da razo, em detrimento do corpo e das paixes, a distino entre essncia e aparncia,

    entre outros pontos mais prprios de alguns filsofos antigos do que da tradio antiga.

    Se para os antigos a tragdia era apenas um gnero artstico e no uma filosofia a se

    defender contra outra, apenas porque este gnero estava firmemente fundado na tradio

    cultural hegemnica de seu tempo. Portanto, no havia necessidade, para os poetas trgicos, de

    assumir uma posio polmica, j que eram amplamente partilhados os pressupostos

    cosmolgicos e normativos centrais e no-conscientes (no questionados) desta cultura,

    pressupostos que se manifestavam no teatro trgico. Plato, por defender posies minoritrias e

    novas, que precisou assumir estilo polmico e construir sua filosofia contra a tradio, embora

    utilizando, como no poderia deixar de ser, caractersticas da prpria tradio que estava

    atacando, pois Plato tambm foi um homem de seu tempo, conhecia e citava Homero e tambm

    elaborava mitos, como a alegoria da caverna2.

    O inverso ocorre entre os trgicos modernos, pois estes esto em posio minoritria no

    interior da cultura judaico-crist, cujos pressupostos cosmolgicos e normativos possuem mais

    afinidade com Plato e sua escola do que com a tradio cultural hegemnica do mundo antigo,

    que era pag, heroica e trgica. Por isso os trgicos modernos so frequentemente polmicos e

    performticos, pois se movem contra a cultura que hegemnica em seu mundo. de se 2 H controvrsias a respeito da crena de Plato na sua teoria da alma e no modo como usava os mitos. Alguns comentadores defendem que Plato no acreditava nesses mitos, mas os considerava teis para a boa ordem da cidade. Quer dizer, tratavam-se de ensinamentos exotricos destinados aos leigos, enquanto aos iniciados poderiam ser dispensveis os mitos. (KAUFMANN, 1968, p. 10 e 22-23; GOLDHILL, 2008, p. 48). No toda mmesis que condenada por Plato, a prpria Politeia, constituio perfeita, descrita por Plato como o drama mais belo e mais excelente por ser a mmesis da existncia mais bela e excelente (PLATO. As Leis, VII, 603c)

    11

  • considerar tambm que, quando estes trgicos modernos buscam inspirao na tradio do

    mundo antigo, eles esto fazendo uma escolha consciente por determinados valores em

    detrimento de outros, enquanto os antigos seguiam estes valores de modo natural, e nesta escolha

    e apropriao dos antigos se produz algo novo, e no a simples retomada quixotesca de valores e

    ideais que morreram.

    por a que podemos encontrar pistas para entender o aparente paradoxo de que autores

    tidos como os mais modernos sejam, ao mesmo tempo, autores que valorizam uma tradio mais

    antiga do que a de Plato, como o caso de Maquiavel e Nietzsche. Mais modernos porque

    teriam rompido com aquilo que Leo Strauss chamou de grande tradio, quer dizer, com os

    filsofos, em especial Plato, Aristteles e os estoicos, e com a tradio bblica judaico-crist.

    Nos momentos de crise desta tradio, os trgicos modernos buscaram em uma tradio ainda

    mais antiga fontes de inspirao para uma alternativa3.

    Foi em perodos de transformao social e cultural que as tragdias e o trgico

    apareceram com mais intensidade no mundo moderno. Como notou Raymond Williams, As

    eras de crenas relativamente estveis no produzem tragdias de intensidade, ao contrrio,

    seu solo comum um perodo de quebra ou transformao de uma cultura importante

    (WILLIAMS, 2001, p. 54). No Renascimento, perodo em que, procuraremos mostrar,

    Maquiavel assume um ponto de vista trgico, as cidades-estado italianas viviam grave crise em

    virtude dos intensos conflitos civis e da dificuldade de concorrer com os Estados territoriais

    centralizados que se formavam na poca. No plano cultural, a viso crist tradicional,

    agostiniana, experimentava um abalo, acompanhado de um interesse pelas obras antigas,

    3 Na introduo dos Discorsi, Maquiavel se pergunta porque os modernos no imitam a antiga virt, e, depois de ironicamente dizer que isso no se deve fraqueza qual a atual religio conduziu o mundo, afirma que o motivo deve ser o desconhecimento das coisas antigas, ento Maquiavel afirma que resolveu escrever os Discorsi para afastar os homens desse erro, que consistia em desconhecer as coisas antigas e no imitar a antiga virt. (MAQUIAVEL, 1519a, pp. 5-7). O trecho comentado por Strauss como mais uma demonstrao de antagonismo de Maquiavel com a grande tradio. Strauss diz que Maquiavel recorreu a mais antiga das antiguidades contra os modernos, identificados por Maquiavel com os homens da moderna religio (cristianismo). STRAUSS, 1958, p. 37.

    12

  • pensadas, pela primeira vez, em seus termos prprios, isto , entendidas como obras de um

    tempo cortado do presente, separado do contexto cristo.

    A Alemanha do sculo XIX onde o trgico ser recuperado e surgir, pela primeira vez,

    uma filosofia do trgico tambm vivia um perodo de transformaes sociais e de retomada no

    interesse pelas obras dos antigos. As origens do trgico na Alemanha remontam ao sculo XVIII,

    quando os alemes j viviam um considervel desenvolvimento da vida burguesa, mas as

    formaes sociais anteriores ainda estavam presentes e o pas estava longe de se unificar

    politicamente. Foi um perodo de efervescncia artstica e cultural e de uma busca pela

    identidade nacional. Nesse contexto, artistas e intelectuais se voltaram para os antigos,

    especialmente os gregos, procurando inspirao para a construo dessa identidade e de um novo

    ideal esttico. Winckelmann, considerado o pai da histria da arte, foi o primeiro grande

    expoente desse movimento, com a publicao de seu livro Reflexes sobre a imitao da arte

    grega na pintura e na escultura, em 1755.

    O ponto de vista trgico e o renascimento italiano

    importante, para os nossos propsitos, situar melhor estes dois momentos em que um

    ponto de vista trgico aparece: o Renascimento italiano e a Alemanha do sculo XIX. Skinner

    nos fornece a chave para compreendermos em que consistiu a retomada dos clssicos no

    Renascimento italiano. Ele procura corrigir os exageros dos estudos anteriores sobre o

    Renascimento, que estabeleciam uma ruptura radical entre a Idade Mdia e a Renascena e

    consideravam a escolstica como sendo exclusivamente ligada viso medieval do mundo.

    Skinner, seguindo a perspectiva inaugurada por Kristeller, nos mostra como a escolstica, ao

    descobrir as obras ticas e polticas de Aristteles, traduzidas para o latim no sculo XIII, j

    comea um processo de distanciamento em relao ao agostinismo.

    13

  • Segundo Skinner, logo se notou que a filosofia moral e poltica de Aristteles

    questionava a fundo o agostinismo que ento predominava na concepo do que seria uma vida

    poltica crist, pois se Agostinho representava a sociedade poltica como uma ordem

    determinada por Deus e imposta aos homens, decados, como remdio para seus pecados, a

    Poltica de Aristteles, por sua vez, trata a plis como uma criao puramente humana,

    destinada a atender a fins estritamente mundanos, e, em Agostinho, a sociedade poltica est

    subordinada a uma escatologia, que considera a vida do peregrino na Terra pouco mais que uma

    preparao para a vida por vir, enquanto Aristteles ao contrrio, afirma no livro I da Poltica

    que a arte de 'viver e viver bem' na plis um ideal auto-suficiente, que no necessita de

    qualquer finalidade ulterior para adquirir sua plena significao (SKINNER, 2000, p. 71).

    Para Skinner, foi da maior importncia para o desenvolvimento da concepo moderna,

    leiga e naturalista da vida poltica que no tivessem prosperado os sentimentos iniciais de

    hostilidade com que foi acolhida a redescoberta dos escritos morais e polticos de Aristteles.

    Skinner enfatiza que, em vez dessa hostilidade inicial, fizeram-se esforos para reconciliar a

    concepo aristotlica com as preocupaes mais voltadas para o outro mundo, tpicas do

    cristianismo agostiniano, esforo intelectual que teve como seu maior expoente, Santo Toms de

    Aquino, com sua obra Suma Teolgica, que pretendia oferecer uma completa filosofia crist

    fundada em uma integral aceitao do pensamento moral e poltico de Aristteles (SKINNER,

    2000, p. 71).

    Esse movimento intelectual provocado pela redescoberta das obras de Aristteles se

    disseminou entre os escolsticos, nas novas ordens da Igreja (em especial entre os dominicanos),

    nos currculos escolsticos de algumas universidades como a de Paris, e nas escolas de direito e

    retrica. Skinner destaca o papel de Marslio de Pdua na difuso do aristotelismo na Itlia e

    defende que a escolstica j formulava ento um discurso da liberdade para as cidades-estado

    14

  • italianas e j prepara o terreno para a concepo de liberdade do humanismo cvico, entendida

    como independncia e o autogoverno e igual oportunidade para participar ativamente dos

    negcios do governo (SKINNER, 2000, p. 98-99).

    O que queremos destacar nessa abordagem de Skinner que o incio do pensamento

    poltico moderno se deve a um afastamento da viso crist tradicional, que era a agostiniana,

    ocorrido por meio da intensificao do contato dos europeus com as obras da cultura antiga. Esse

    contato j existia na Idade Mdia, entretanto, houve uma rpida expanso da informao material

    sobre o mundo antigo com as descobertas de textos que haviam permanecido no esquecimento

    durante sculos e com a traduo de obras gregas para o latim.

    Seguindo os estudos de Panofsky, Skinner considera que o resultado mais importante da

    aquisio de tantos textos novos, que haviam sido escritos em uma sociedade to diferente, foi

    que os humanistas gradualmente comearam a adotar uma nova atitude em face do mundo

    antigo, pois, defende Skinner citando Panofsky, na Idade Mdia nunca encontramos tentativa

    alguma de se abordar a cultura do mundo antigo em seus termos prprios, em vez disso ocorria

    o que Panofsky chamou de princpio da disjuno, que consistia na mistura ecltica e

    anacrnica entre elementos antigos e medievais-cristos, que aparecia, por exemplo, na

    arquitetura e decorao, quando elementos gregos e romanos apareciam misturados e figurados

    como bares e donzelas em paisagens medievais e muitas vezes praticando rituais cristos

    (SKINNER, 2000, p. 106).

    No fim do Trezentos, a atitude em relao ao mundo antigo j era totalmente diferente,

    pois o passado clssico era considerado, pela primeira vez, uma totalidade cortada do presente

    (PANOFSKY, citado em SKINNER, 2000, p. 107) Para Skinner, um novo senso de

    distanciamento histrico foi assim alcanado, dele resultando que a civilizao da Roma antiga

    comeou a ser vista como uma cultura completamente distinta, merecendo e mesmo exigindo

    15

  • ser reconstruda e apreciada, sempre que possvel, em seus termos prprios. (SKINNER, 2000,

    p. 107). Skinner destaca o papel de Petrarca nessa mudana, que foi o primeiro que conseguiu

    superar a disjuno entre as fundaes clssicas da Ars Dictaminis e os propsitos prticos que

    era seu principal intuito atender. Repelindo todas as tentativas de enquadrar as obras de Cicero

    nas tradies vigentes de instruo nas tradies vigentes de instruo nas artes retricas

    (SKINNER, 2000, P. 108). Petrarca foi, segundo Skinner, o primeiro a redescobrir o senso que

    Cicero tinha do papel da educao, cujo principal objetivo seria produzir o vir virtutis, o homem

    verdadeiramente viril, por meio do estudo de filosofia moral e da retrica antigas.

    Para os humanistas, esses estudos clssicos constituiriam no apenas a nica forma de

    escolaridade considerada adequada a um cavalheiro, mas tambm a melhor preparao possvel

    para o seu ingresso na vida pblica. Comea a se formar a concepo renascentista de homem,

    que, ao contrrio da concepo agostiniana de homem decado, afirmava que, por meio da

    educao adequada, o homem era capaz de alcanar a virtus e desenvolver seus talentos de modo

    universal de modo a tornar-se um bom corteso, letrado, guerreiro e artista em vez de se

    restringir ao desenvolvimento de apenas uma especialidade tcnica. Ainda que essa viso mais

    otimista do homem no significasse que os humanistas tivessem abandonado o cristianismo,

    segundo Skinner, no pairam dvidas de que, ao restaurar o ideal clssico, eles efetuavam uma

    rejeio completa da tese agostiniana, ento dominante, da natureza decada do homem

    (SKINNER, 2000, p. 114).

    O otimismo renascentista acerca da liberdade e das capacidades do homem no deve,

    entretanto, ser exagerado, pois, ao mesmo tempo em que os humanistas recuperam a concepo

    clssica da virtus, e defendem a capacidade do homem de alcan-la, recuperam tambm a noo

    clssica dos limites da ao humana, que aparece na importncia que se atribua ao papel da

    Fortuna entre os antigos. Apesar da dominao da Fortuna no ser considerada como

    16

  • inexorvel, pois a Fortuna poderia se deixar seduzir pelo homem de autntica virtus, no

    haveria, entretanto, nenhuma garantia a priori de sucesso nessa empreitada, de modo que a

    arbitrariedade da Fortuna no poderia ser de todo eliminada ou controlada. Essa recuperao do

    papel da Fortuna, do arbitrrio na vida humana, representou mais uma ruptura com o

    cristianismo agostiniano, pois, em seu ataque ao politesmo, Santo Agostinho havia defendido

    que a deificao da Fortuna implicava uma negao do carter benfazejo da providncia

    divina. Alm disso, para Agostinho, o mundo inteiro era governado pela Providncia, no tendo

    cabimento a pretenso do homem de pretender esculpir o seu prprio destino (SKINNER,

    2000, p. 116). Os humanistas, por sua vez, recuperam a crena na capacidade do homem alcanar

    a virt, desenvolvem a noo de que o homem capaz de esculpir o seu destino, e tambm a

    ideia de que o limite a esta pretenso no nenhuma Providncia, mas o poder caprichoso da

    Fortuna (SKINNER, 2000, P. 117).

    Outra ruptura importante com o cristianismo agostiniano a ideia, com origem na antiga

    cultura pag, de que o mais alto bem que um homem de virtude (vir virtutis) pode alcanar a

    honra, glria e fama mundanas. Como se sabe, a busca de glria foi considerada por Santo

    Agostinho como um pecado, pois o amor ao louvor um vcio e a busca de honra uma ideia

    pestilenta, e no h genuna virtude quando a virtude est subordinada glria humana

    (Agostinho citado em SKINNER, 2000, p. 121). A glria para Agostinho estava reservada apenas

    a Deus. O homem decado deveria, com humildade, se preocupar com a salvao da alma e no

    com a busca de glria neste mundo.

    Skinner afirma que a ideia de um poder caprichoso da Fortuna levou alguns humanistas a

    um extremo pessimismo (SKINNER, 2000, p. 117), e cita como exemplo a obra de Poggio, A

    misria da condio humana, na qual Poggio, lamentava a licena e poder da Fortuna sobre as

    coisas humanas. Mas, ao mesmo tempo, prossegue Skinner, o retorno imagem clssica dos

    17

  • predicados humanos tambm teve o efeito de produzir nos humanistas uma noo nova e

    instigante das capacidades do homem para lutar contra a mar da fortuna, para canalizar e

    dominar seu poder, e dessa maneira se tornar, pelo menos em certa medida, senhor do prprio

    destino (SKINNER, Id). Essa tendncia se tornou dominante entre os humanistas, pois o

    motivo que melhor distingue a renascena, defende Skinner citando Garin, a convico de

    que os homens podem utilizar sua virtus de modo a triunfar sobre os poderes da Fortuna

    (SKINNER, 2000, p. 119).

    Queremos destacar o fato de que Skinner notou que, embora a tendncia predominante

    entre os humanistas fosse otimista a respeito do alcance da liberdade humana frente aos

    poderes da Fortuna, houve tambm um desenvolvimento mais pessimista a respeito da

    condio humana, tendncia que apareceu, por exemplo, na obra de Poggio. Skinner tambm cita

    Maquiavel entre os que seriam cticos em relao concepo mais otimista de homem

    predominante no Renascimento:

    A figura arrogante do gentil-homem renascentista continuou a valer como ideal, em que pese o ceticismo

    de Maquiavel, pelo menos at o final do sculo XVI Grifos nossos. (SKINNER, 2000, p. 122)

    O que queremos sugerir que o aprofundamento do contato com as obras dos antigos e o

    desenvolvimento de um senso histrico que procurou pensar os antigos em seus termos prprios,

    separados do contexto cristo, no resultaram em apenas uma posio humanista, qual seja,

    aquela tendncia que foi predominante, a otimista, que enfatizava o poder da liberdade humana

    sobre os caprichos da Fortuna. Tambm surgiu uma tendncia mais pessimista ou ctica, que

    Skinner identificou em Poggio e Maquiavel. Esse outro desenvolvimento intelectual relaciona-se

    ao que chamamos de ponto de vista trgico, que consideramos estar presente em Maquiavel e

    que possuir importantes aspectos comuns com a recuperao do trgico entre os alemes do

    sculo XIX. Estas semelhanas so possveis em virtude do ponto de vista trgico surgir, em

    ambos os casos, em conjunturas sociais crticas associadas a um abalo ou crise nos pressupostos 18

  • da viso judaico-crist tradicional do cosmos e do homem, abalo que vem acompanhado, tanto

    no Renascimento como entre os alemes, por uma retomada do contato com as obras dos antigos,

    pensadas em termos prprios, e pela ideia de que seria preciso imitar os antigos.

    A diferena na seleo de autores antigos ajuda a explicar os desenvolvimentos

    intelectuais diferentes. Se os humanistas cvicos em geral selecionaram como mais

    representativos daquilo que deveria ser imitado nos antigos os ensinamentos de Aristteles,

    Cicero, os moralistas romanos e os retores, Maquiavel, por sua vez, preferir os historiadores e

    poetas antigos, em detrimento dos filsofos e de Ccero, que seriam mais facilmente

    incorporveis dentro da viso judaico-crist do mundo. Esta diferena na seleo semelhante

    quela que encontraremos entre Hegel e Nietzsche, por exemplo, o primeiro preferindo entre os

    antigos Plato e Aristteles, e o segundo preferindo Homero, Hesodo, Herclito, squilo, os

    sofistas e Tucdides.

    As tragdias e o trgico no pensamento alemo

    Na Alemanha, a reflexo sobre o trgico teve sua origem com a obra de Winckelmann,

    que havia lanado aos seus contemporneos, em 1755, a exigncia: O nico meio de nos

    tornarmos grandes e, se possvel, inimitveis imitar os antigos. (Winckelmann, citado em

    MACHADO, 2006, p. 13). Machado aponta que Winckelmann foi o primeiro de uma srie de

    alemes dominados pela nostalgia da Grcia. Segundo Machado:

    na sequncia desse movimento cultural de valorizao do ideal grego de beleza e da necessidade de sua

    retomada pela arte alem movimento que se inicia com Winckelmann e tem Goethe como principal expoente que

    nasce, principalmente a partir de Schelling, Hlderlin, e Hegel, colegas no seminrio de Tbingen, uma reflexo

    sobre a essncia do trgico, relativamente independente da forma da tragdia (MACHADO, 2006, P. 22)

    Essa reflexo sobre a essncia do trgico, dar origem a uma filosofia do trgico, que

    ser uma novidade dos alemes modernos. Entretanto, isso no significa que a filosofia do

    19

  • trgico no tenha nenhuma ligao com o gnero trgico ou com a potica da tragdia. Entre

    os alemes, a filosofia do trgico comea a partir de uma reflexo sobre a Potica de

    Aristteles, obra que j vinha balizando o debate europeu sobre as tragdias desde o

    Renascimento, ao lado da Arte Potica, de Horcio4. A primeira traduo latina da Potica de

    Aristteles foi feita por Lorenzo Valla, em 1498, e impressa pela primeira vez em 1503

    (MACHADO, 2006, p. 30). A partir do Renascimento tem incio um longo debate sobre a

    Potica, sobre as tragdias e sobre o significado da catarse em Aristteles5. Szondi tambm

    destaca que, embora distintas, a potica trgica e a filosofia do trgico estavam ligadas, e a

    filosofia do trgico sobressai como uma ilha, nessa poderosa zona de influncia de

    Aristteles, que no possui fronteiras nacionais ou temporais (SZONDI, 1961, 24)

    No Renascimento, surgiram tragdias modernas, algumas delas escritas e encenadas na

    Itlia, mas sem grande repercusso. Na Inglaterra, com Shakespeare (1564-1616), que a

    tragdia moderna assume maior importncia. Na Frana do sculo XVII, destacaram-se

    Corneille (1606-1684) e Racine (1639-1699) como autores de tragdias. Entretanto, os franceses

    tendiam a produzir tragdias a partir de uma interpretao moral da anlise aristotlica da

    tragdia leitura que na verdade estava mais prxima posio de Horcio e interpretavam a

    catarse produzida pela tragdia como purgao moral. Para estes autores franceses do sculo

    XVII, a finalidade da tragdia era melhorar os homens, livrando-os das paixes, finalidade

    muito diferente daquela pensada pelos poetas trgicos gregos ou mesmo da interpretao que

    Aristteles fez das tragdias6.4 Essas duas obras eram bem diferentes a respeito das tragdias, pois para Horcio a tragdia tinha uma finalidade moral e a queda do heri seria fruto de uma falha moral, enquanto Aristteles entendia a queda do heri como fruto de um erro (hamartia) que no possua um sentido moral (discutiremos melhor este ponto na parte especfica sobre Aristteles).5 Machado menciona que em 1928 foi publicada uma Bibliografia da Potica, por Cooper e Gudeman, que catalogou 150 posies a respeito da catarse, do sculo XVI at 1928. MACHADO, 2006, p. 248.6 Sobre a tragdia moderna francesa escreve Machado: Acontece que j podemos discernir na sua formulao ao menos duas diferenas em relao aristotlica. Primeiro, uma concepo das paixes profundamente diversa do que so as emoes. Pois, na perspectiva crist, que a do classicismo francs, so as prprias paixes, e no apenas o seu excesso, que so consideradas ms. Traduzindo pathos por passion, Corneille est transformando as emoes, pensadas por Aristteles sem significado moral, em sentimentos irracionais que encarnam no amor profano e cegam

    20

  • Quando os alemes do sculo XVIII comeam a elaborar uma dramaturgia nacional e

    moderna, j existiam os modelos ingls e francs de tragdia. Entretanto, como os alemes

    estavam fortemente vinculados ao projeto de Winckelmann, de imitar os gregos, tornaram-se

    crticos do modelo excessivamente moralizante dos franceses e reabilitaram Shakespeare.

    Lessing, crtico e dramaturgo que teve um papel fundamental na elaborao da moderna

    dramaturgia alem, foi o primeiro a dar esse direcionamento. Segundo Machado, o texto mais

    esclarecedor sobre essa mudana de direo a Dramaturgia de Hamburgo, livro publicado por

    Lessing em 1769. Lessing critica os franceses por haverem distorcido as ideias de Aristteles e

    serem por natureza profundamente no-clssicos e no-gregos (MACHADO, 2006, p. 38).

    Para Lessing, Aristteles no pensava que a catarse produzida pela tragdia tivesse a

    funo de nos livrar das paixes e emoes. A tragdia deveria suscitar a compaixo e o temor

    para nos purificar dessas emoes. Segundo Lessing, Aristteles no escreve sobre outras

    emoes a serem purificadas e no diz que purificar ou purgar signifique eliminar essas

    emoes. Machado cita a Dramaturgia de Hamburgo:

    Visto que, para diz-lo concisamente, esta purificao no consiste em nada mais do que na transformao

    das paixes em qualidades virtuosas havendo porm em cada virtude, segundo o nosso filsofo, de um lado e de

    outro um extremo entre o qual a virtude se situa , a tragdia, se que deve transformar a nossa compaixo em

    virtude, precisa ser capaz de nos depurar de ambos os extremos da compaixo, o que tambm se refere ao

    temor. A compaixo trgica no deve, com respeito compaixo, purificar apenas a alma daquele que sente

    compaixo demais, mas tambm daquele que sente de menos. O temor trgico no deve, com respeito ao temor,

    purificar apenas a alma daquele que no teme nenhum infortnio, mas tambm a daquele ao qual todo infortnio, at

    o mais remoto, at o mais improvvel, deixa a alma angustiada. Do mesmo modo, a compaixo trgica,

    relativamente ao temor, deve remediar o que demais e o que de menos; assim como, por sua vez, o temor

    quando no so dominados. Pensado como paixo amorosa o pathos aristotlico torna-se em Corneille desregramento, uma paixo irracional perigosa ou imoral na medida em que ofusca a razo. Segundo, a ideia de que no se trata mais de purificar as paixes, mas de se purificar ou, para usar seu termo, se purgar das paixes. Mudana na maneira de conceber tanto o objeto da catarse quanto o seu prprio conceito, que um bom exemplo de como a influncia exercida pela Potica de Aristteles sobre a teoria francesa do poema dramtico retomada de uma temtica antiga em funo de novos problemas, profundamente distanciada da teoria e da prtica do teatro grego. (MACHADO, 2006, p. 33)

    21

  • trgico no que diz respeito compaixo. (Lessing, citado em: MACHADO, 2006, p. 42) Grifos nossos.

    Portanto, segundo Lessing, a catarse para Aristteles no visava eliminao das

    emoes, mas nos purgar do excesso, dos extremos, e assim transformar as emoes e paixes

    em qualidades virtuosas. A partir das reflexes de Lessing e dos problemas postos pela filosofia

    de Kant, tem incio uma reflexo sobre o trgico como viso de mundo. Essa nova abordagem

    ganha autonomia em relao discusso sobre o gnero trgico (finalidade da tragdia e efeitos

    da catarse), e, nessa busca pela essncia do trgico, de certa forma, se retoma a abordagem de

    Plato sobre as tragdias, que estava mais preocupada com o contedo do trgico do que com a

    discusso esttica sobre o gnero trgico propriamente dito.

    No contexto alemo do fim do sculo XVIII e incio do XIX, a reflexo sobre o trgico

    apareceu como uma chave para resolver problemas colocados pela filosofia de Kant. Segundo

    Machado,

    em primeiro lugar, que a tragdia foi vista como modelo de uma soluo ao que Kant chamou de

    'antinomia', no segundo captulo, 'A antinomia da razo pura', do Livro II da 'Dialtica transcendental', da Crtica da

    razo pura; em segundo lugar, que o conflito trgico apresentado pela tragdia foi pensado a partir da teoria

    kantiana do sublime, exposta na 'Analtica do sublime' da Crtica da faculdade do juzo, por um deslocamento do

    privilgio que Kant concede natureza, quando trata dos juzos de beleza e de sublime para o campo da arte

    (MACHADO, 2006, p. 49)7.

    A partir desse enquadramento surgiram as teorias do trgico de Schiller, Schelling,

    Hlderlin, Goethe, Hegel, Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Para Schiller, o essencial do

    trgico era o conflito entre liberdade e necessidade que aparecia no sofrimento trgico e na

    representao da resistncia ao sofrimento, para chamar a ateno conscincia da liberdade 7 Terry Eagleton tambm considera que o trgico entre os alemes foi pensado como uma soluo para as antinomias kantianas, como, por exemplo, a antinomia entre liberdade e necessidade, e cita como exemplo a reflexo que Hegel fez sobre as tragdias: It can be claimed that it is tragedy, rather than Kant, which supplies the solution. It is a solution which Hegel finds physically incarnate in Greek theatre, as the free activity of Spirit is distanced by masks, ritual, dance and Chorus into the anonymous image of destiny. Fate is just the outer garb of freedom, the expressionless features it turns to the world. If tragedy reconciles freedom and necessity, then it bridges the gap between pure and practical reason which the critical philosophy itself could never span. (EAGLETON, 2003, p. 119)

    22

  • interior de nimo. Por esse motivo, Schiller preferia tragdias modernas como El Cid. A tragdia

    grega, para ele, deixava sempre a desejar em virtude da importncia que concede ao destino,

    isto , por apresentar uma sujeio cega do homem fatalidade, o que humilhante para a

    liberdade e incompreensvel para a razo (MACHADO, 2006, p. 73).

    Schiller recorrer teoria kantiana do sublime para entender o trgico. Tanto o belo como

    o sublime seriam expresses da liberdade, mas no belo o sentimento de liberdade provm da

    harmonia, da consonncia, entre os impulsos sensveis e a lei da razo, entre a determinao

    natural e a determinao moral, j no caso do sublime, o sentimento de liberdade se deve a

    que, havendo contradio entre os impulsos e a razo, os impulsos perdem toda influncia sobre

    a legislao da razo: o carter sublime se revela na adversidade. Como no caso de J, o

    personagem bblico que, mesmo perdendo tudo, no perde a dignidade (Schiller, citado em

    MACHADO, 2006, p. 66). Machado cita texto de Schiller em que o sublime caracterizado em

    distino com o grande: Grande quem vence o que pavoroso. Sublime quem no o teme,

    mesmo vencido por ele... Grande foi Hrcules, que realizou os 12 trabalhos. Sublime foi

    Prometeu, que, acorrentado no Cucaso, no se arrependeu do seu ato e no admitiu o seu erro

    (Schiller, citado em MACHADO, 2006, p. 70)

    Enquanto Schiller preferia as tragdias modernas, pelo peso excessivo do destino nas

    tragdias antigas, Schelling, por sua vez, enxerga a importncia dada ao destino nas tragdias

    gregas como uma homenagem liberdade, pois, o que a tragdia apresentaria no seria uma

    aceitao do destino, mas um conflito entre liberdade e destino, pois o heri no sucumbe sem

    combate. O heri, atingido pelo destino, suporta voluntariamente a punio por um crime

    inevitvel e quando morre prova essa liberdade com uma declarao de vontade livre. O heri

    enfrenta o destino e ao morrer perde a liberdade, mas ele escolheu o enfrentamento. O destino e a

    liberdade aparecem como vencedores e como vencidos. Segundo Szondi, o trgico est no centro

    23

  • do sistema de Schelling, cuja essncia a identidade entre liberdade e necessidade:

    Assim, todo o sistema de Schelling, cuja essncia a identidade de liberdade e necessidade, culmina em

    sua concepo do processo trgico como o restabelecimento dessa indiferena no conflito. Com isso o trgico

    compreendido, mais uma vez, como um fenmeno dialtico, pois a indiferena entre liberdade e necessidade s

    possvel pagando-se o preo de o vencedor ser ao mesmo tempo o vencido, e vice-versa. (SZONDI, 1961, p. 32)

    Para Hegel, Schelling caminha rpido demais para a harmonia, como sugeriu em

    prefcio da Fenomenologia do Esprito. Em Schelling j apareceria de modo imediato o

    elemento dialtico do trgico, mas, para Hegel, era necessrio elucid-lo melhor. Para Szondi,

    justamente esse fator dialtico que expe o denominador comum das diversas definies

    idealistas e ps-idealistas do trgico e, com isso, constitui uma possvel base para o seu conceito

    geral (SZONDI, 1961, p. 81). Segundo Szondi, o elemento dialtico j estava presente de modo

    implcito na discusso pr-filosfica sobre as tragdias, na Potica de Aristteles e nas obras de

    seus discpulos, o que se manifestaria na caracterizao do conflito trgico como um conflito

    no em consequncia de erros morais, mas de um erro cometido por pessoa de qualidade

    mediana, quer dizer, no se tratava de um conflito entre o bem e o mal, mas j se sugeria um

    conflito/contradio entre bem e bem e aparecia a ideia de que o bem pode se inverter, que o bem

    tambm deve causar algum dano (SZONDI, 1961, p. 81), quer dizer, o antagonismo, a

    contradio, estariam no centro das tragdias.

    Hegel possui uma anlise do gnero trgico, entendido como um gnero da poesia

    dramtica (dividida em tragdia, comdia e drama), e esta era entendida como a sntese da poesia

    pica e da poesia lrica, quer dizer, a reunio do princpio pico da ao, considerada como uma

    totalidade substancial de um esprito nacional tal como aparece na poesia pica com a

    subjetividade, os sentimentos interiores da poesia lrica (Hegel, citado em: MACHADO, 2006,

    p. 125). No gnero trgico, especificamente, Hegel enxerga duas caractersticas

    principais: o conflito entre bem e bem e o conflito entre o que o heri faz com conscincia e o

    24

  • que faz sem saber. Mas o primeiro conflito, entre bem e bem, que recebe destaque nas anlises

    de Hegel sobre as tragdias.

    A pea Antgona, de Sfocles, seria um exemplo tpico deste conflito entre dois direitos,

    ambos justos8. Antgona, de acordo com o direito familiar e religioso, queria enterrar o seu irmo

    Polinices, morto na guerra. Entretanto, o rei Creonte, de acordo com o direito da cidade, havia

    ditado um decreto que proibia o enterro com honras de Polinices, pois ele havia trado a ptria,

    juntando-se ao inimigo na guerra contra sua prpria terra natal. Direito contra direito. Duas

    potncias ticas se enfrentam, famlia e religio por um lado, contra Estado e ptria por outro.

    Um conflito tenso, por serem duas dimenses importantes para um grego. trgico o conflito

    entre duas opes boas, porque no tem soluo simples ou no tem soluo onde os dois lados

    saiam ganhando, todo ganho envolveria uma perda. Antgona e Creonte esto certos, cada um

    representando uma potncia tica diferente, mas ambos esto equivocados em virtude de sua

    unilateralidade. Esta unilateralidade no superada preservando os dois lados, mas pela

    destruio mtua das unilateralidades. Antgona morre. Creonte punido com a morte do filho e

    da mulher. Os indivduos agindo por um pathos nico tiveram que ser sacrificados para que a

    unilateralidade fosse abolida e se produzisse uma reconciliao, um retorno das foras ticas

    harmonia. Mas at que ponto a destruio mtua significa reconciliao? Sempre o antagonismo

    superado em uma unidade superior? Nesse aspecto, Goethe tinha avaliao diferente. Para ele,

    no h reconciliao no trgico: Todo o trgico baseia-se em uma oposio irreconcilivel

    [unausgleichbar]. Assim que surge ou se torna possvel uma reconciliao [Ausgleichung],

    desaparece o trgico. (Goethe, citado em SZONDI, 1961, p. 48).

    Para Hegel, o princpio da poesia dramtica era o da contradio e reconciliao.

    8 Lesky e Kaufmann discordam da interpretao hegeliana de Antgona. Para eles, a pea seria claramente favorvel a Antgona, e Creonte teria sido apresentado como tirano. Kaufmann considera que o conflito entre bem e bem destacado por Hegel como caracterstico da tragdia se aplica melhor a outras peas trgicas como Orstia, Prometeus, Hippolito e As Bacantes. Apenas em menor grau ajudaria a compreender a Antgona, dipo Tirano e Filoctetes. KAUFMANN,1992, p. 204.

    25

  • Entretanto, como se sabe, esse no apenas o princpio da poesia dramtica, mas o princpio do

    prprio real. O real em processo entendido como autodiviso e autoconciliao do esprito,

    passando pelo movimento da eticidade, tambm ele um processo dialtico de autodiviso e

    autoconciliao. Na Esttica, Hegel expe este processo:

    Nessa forma, a substncia espiritual da vontade e da realizao o elemento tico... Portanto, tudo o que

    se exterioriza na objetividade real est submetido ao princpio da particularizao; sendo assim, tanto os poderes

    ticos quanto o carter ativo so diferenciados em relao a seu contedo e sua manifestao individual. Mas se,

    como reivindica a poesia dramtica, essas potncias particulares so incitadas a aparecer em atividade e se realizam

    como a meta determinada de um pathos humano que age, ento sua harmonia suprimida [aufgehoben] e elas

    aparecem em isolamento recproco, umas contra as outras. A ao individual pretende ento, sob determinadas

    circunstncias, realizar uma meta ou um carter que unilateralmente isolado em sua completa determinao. De

    acordo com tais pressupostos, esse carter necessariamente incitar o pathos oposto contra si, provocando conflitos

    inevitveis. Assim, o trgico consiste originalmente no fato de que, em tal coliso, cada um dos lados opostos se

    justifica, e no entanto cada lado s capaz de estabelecer o verdadeiro contedo positivo de sua meta e de seu

    carter ao negar e violar o outro poder, igualmente justificado. Portanto, cada lado se torna culpado em sua

    eticidade (Hegel na Esttica, citado em SZONDI, 1961, p. 42)

    O esprito se exterioriza na objetividade real, e ao fazer isso necessariamente se

    particulariza. O universal nunca aparece em si na objetividade, mas sempre por meio do

    particular. O particular sempre unilateral e incitar o pathos oposto contra si, a harmonia se

    quebra, surgem conflitos inevitveis entre os particulares, e cada um dos opostos se justifica,

    mas, ao mesmo tempo, cada um dos opostos, por sua unilateralidade, est errado. As

    unilateralidades no superam a situao preservando sua identidade, mas destruindo-se

    mutuamente, por meio da contradio que leva a superao da unilateralidade numa unidade

    superior. O processo se reinicia, contudo, caminha progressivamente para a reconciliao final

    do esprito consigo mesmo.

    Quer dizer, a trgica autodiviso do esprito e os choques entre unilateralidades foram

    26

  • momentos necessrios que serviam a um fim maior e se resolvem no tempo. Na fenomenologia

    do esprito os momentos da conscincia so: certeza sensvel ou saber imediato, a percepo,

    o discernimento ou entendimento (Verstand), a autoconscincia, a razo (Vernunft) e o

    esprito (HEGEL, 2002). No plano do esprito objetivo, a autodiviso e reconciliao

    ocorrem por meio do movimento da eticidade que comporta trs momentos: a famlia (princpio

    da unio, comunidade, eticidade substancial), a sociedade civil-burguesa (princpio da

    desunio, da diferenciao individual, atomismo e liberdade subjetiva) e o Estado, que realizaria

    a unio da unio com a desunio, a reconciliao do indivduo com a comunidade, no mximo

    nvel possvel no plano do esprito objetivo (HEGEL, 1942). Esse movimento da eticidade

    corresponde a diferentes momentos histricos na Filosofia da Histria: O mundo oriental, o

    mundo grego, o mundo romano e o mundo germnico, e este realizaria a reconciliao

    final, pois seu fim seria a realizao da verdade absoluta como a infinita autodeterminao da

    liberdade, que tem por contedo a sua prpria forma absoluta (HEGEL, 1999, p. 291).

    O sentido desse processo histrico a progressiva realizao da liberdade desde o

    despotismo oriental at o mundo germnico protestante. Os choques entre particulares, as

    guerras, as mortes, o sofrimento, foram necessrios para a realizao de um fim maior: a

    liberdade. Quer dizer, a liberdade no o oposto abstrato da necessidade, mas se realiza por meio

    da necessidade (um hegeliano de esquerda dir mais tarde a liberdade contm a necessidade

    enquanto superada). Para Hegel, a posio de Kant era abstrata por pressupor que a liberdade

    exigiria um completo domnio da razo sobre os impulsos, interesses, paixes e determinaes

    sociais (vida tica, costumes). Como isso impossvel, a liberdade permanecia inefetiva. Hegel

    quer tornar efetiva a ideia tica, quer realizar a liberdade no mundo, para tanto precisa reconciliar

    liberdade com necessidade, razo com sensibilidade (Nada de grande se fez no mundo sem

    paixo), de modo que as paixes e interesses particulares sirvam de instrumento para realizar o

    27

  • universal. Esse processo de realizao do universal, da liberdade, da reconciliao do esprito

    consigo mesmo, realizado de modo trgico, pois a liberdade no se apresenta por si e de

    imediato, mas se realiza de modo progressivo por meio da contradio entre particulares, o que

    ocorre frequentemente de modo violento. Essas contradies e sua necessidade constituem o

    elemento trgico do processo. Mas a ideia de uma reconciliao final, por sua vez, deve sua

    origem ao cristianismo, o que constantemente reconhecido por Hegel desde suas obras de

    juventude at os seus ltimos escritos. No apenas a ideia de um fim tem origens na escatologia

    crist, mas, em Hegel, a prpria religio crist associada ao fim da histria. Na Filosofia da

    Histria diz Hegel: Essa relao para fora , portanto, bem diversa da dos gregos e dos

    romanos, pois o mundo cristo o mundo da perfeio; o princpio est cumprido, e com isso

    completou-se o fim dos tempos: a ideia no pode ver nada insatisfeito no cristianismo9 Grifos

    nossos (HEGEL, 1999, p. 291).

    Se retiramos o cristianismo de Hegel, retornamos a Herclito: o fluxo eterno e inocente

    do devir por meio da luta de contrrios, luta que exibe a mais bela harmonia. Isto seria pago

    demais para Hegel. No que o trgico seja incompatvel com qualquer reconciliao ou

    consolao metafsica, muitos mencionam as peas de squilo onde as colises trgicas servem a

    um fim maior, a uma justia divina. Algumas tragdias tinham final feliz. A pica era em grande

    medida otimista, a Odissia tinha final feliz. O que incompatvel com o trgico a ideia de

    um fim, de uma interrupo final do fluxo, uma reconciliao definitiva.

    Schopenhauer tambm pensou o trgico, mas j estava distante do idealismo de Schiller,

    Fichte, Schelling e Hegel. Schopenhauer rompe com a teologia e com a imortalidade da alma e

    comea uma denncia da metafsica pela prioridade que atribui razo, defendendo uma

    9 H uma divergncia entre a posio de Szondi e Deleuze. A dialtica vista por Szondi como caracterstica do trgico. Para Deleuze, a dialtica oposta ao trgico em virtude da ideia de reconciliao final e do peso do negativo: A dialtica em geral no uma viso trgica do mundo, mas ao contrrio da morte da tragdia, a substituio da viso trgica por uma concepo terica (com Scrates), ou melhor ainda por uma concepo crist (com Hegel). (DELEUZE, 2001, p. 30)

    28

  • subordinao da razo intuio e uma subordinao da representao vontade

    (MACHADO, 2006, p. 170-1). Nesse movimento, Schopenhauer inicia um processo de

    naturalizao da existncia, pois a alma e o consciente perdem o status que possuam entre os

    filsofos idealistas, que estavam empenhados no velhssimo erro de procurar o ser verdadeiro

    do homem no conhecimento consciente, com o objetivo de tornar o homem o mais distinto

    possvel do animal (Schopenhauer, citado em: MACHADO, 2006, p. 171). O animal, o corpo10,

    assume um papel que no tinha a partir dessa maneira de ver a representao como fundada na

    vontade (abre-se o caminho para o modo de pensar da psicanlise). Nesse afastamento do

    idealismo, o trgico assume papel de destaque em sua filosofia. Para Schopenhauer, a prpria

    vida que trgica:

    A vida de cada um de ns, se a abarcarmos no seu conjunto com um s olhar, se apenas considerarmos os

    traos marcantes, uma verdadeira tragdia; mas quando preciso, passo a passo, esgot-la em pormenor, ela toma

    a aparncia de uma comdia. Cada dia traz o seu trabalho, a sua preocupao; cada instante, o seu novo engano,

    cada semana o seu desejo, o seu temor; cada hora os seus desapontamentos, visto que o acaso est l, sempre

    espreita para fazer qualquer maldade: tudo isto so puras cenas cmicas. Mas os desejos nunca atendidos, a dor

    sempre gasta em vo, as esperanas quebradas por um destino impiedoso, os desenganos cruis que compem a vida

    inteira, o sofrimento que vai aumentando, e, na extremidade de tudo, a morte, eis o bastante para fazer uma tragdia.

    Dir-se- que a fatalidade quer, na nossa existncia, completar a tortura com o escrnio: ela coloca-lhe todas as dores

    da tragdia, mas, para no nos deixar ao menos a dignidade da personagem trgica, reduz-nos, nos pormenores da

    vida ao papel de bobo (SCHOPENHAUER, 2001, pargrafo 58, p. 338).

    Para Schopenhauer, o homem vive governado pela vontade, mas enquanto viver

    governado pela vontade no poder ter felicidade duradoura, pois a vontade, entendida sem

    relao com o conceito racionalista de vontade, o querer, o desejo. O desejo almeja um objeto,

    10 A importncia causal do corpo j havia sido notada por Espinosa (conatus). Segundo Deleuze: Espinosa abriu s cincias e filosofia uma nova via: no sabemos sequer o que pode um corpo, dizia ele; falamos da conscincia, e do esprito, tagarelamos sobre tudo isso, mas no sabemos do que um corpo capaz, quais so as suas foras nem o que que elas preparam. Nietzsche sabe que chegada a hora: 'Estamos na fase em que a conscincia se torna modesta'. Chamar a conscincia modstia necessria, tom-la por aquilo que ela : um sintoma (DELEUZE, 2001, p. 61-2)

    29

  • a satisfao de uma necessidade, para com isso obter prazer, mas assim que alcana a satisfao,

    o desejo satisfeito cede lugar a outro desejo. A totalidade dos desejos nunca satisfeita e a

    vontade mais contrariada do que satisfeita. O que leva Schopenhauer a concluir que a vontade

    uma fonte inesgotvel de sofrimento. Quando o desejo alcanado vem em seguida o tdio ou

    aborrecimento, quando no alcanado tem-se sofrimento11. O conhecimento dessa essncia

    das coisas, que a vontade e o sofrimento produzido por ela, leva a prpria vontade a se negar,

    a nada querer ou a querer desligar-se do mundo fenomenal. Por isso Schopenhauer admira o

    asceta, seja ele hindu, budista ou cristo. O sofrimento visto por Schopenhauer como

    necessrio para se alcanar esse conhecimento que leva negao da vontade. Por esse motivo,

    Schopenhauer considera que o papel da catarse produzida pelas encenaes trgicas levar o

    espectador a esse conhecimento que concluir pela negao da vontade:

    o antagonismo da vontade consigo mesma que entra em cena aqui [na tragdia], desdobrado da maneira

    mais completa, com todo o pavor desse conflito, no mais alto grau de sua objetividade [Objektitt]. Esse

    antagonismo torna-se visvel no sofrimento da humanidade que produzido, em parte, pelo acaso e pelo erro, que

    aparecem como dominadores do mundo, personificados como o destino em sua perfdia, quase com a aparncia de

    uma vontade deliberada. Por outro lado, esse antagonismo tambm produzido pela prpria humanidade, pelo

    entrecruzamento dos esforos voluntrios dos indivduos, por meio da maldade e da tolice da maioria. uma nica

    vontade que vive a aparece em todos eles, mas as suas manifestaes lutam entre si e se despedaam mutuamente...

    Tudo o que trgico, no importa a forma como aparea, recebe o seu caracterstico impulso para o sublime com o

    despontar do conhecimento de que o mundo e a vida no podem oferecer nenhum prazer verdadeiro, portanto no

    so dignos de nossa afeio. Nisso consiste o esprito trgico: ele nos leva, assim, resignao. (Schopenhauer,

    citado em SZONDI, 1961, p. 52)

    As tragdias so estimadas por Schopenhauer porque levariam resignao, nada

    querer, ao niilismo. Essa posio de Schopenhauer ser duramente criticada por Nietzsche.

    sintomtico que Schopenhauer tivesse preferncia pelas tragdias modernas, porque nas

    11 Portanto, a vida oscila, como um pndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o aborrecimento: estes so os dois elementos de que ela feita, em suma (SCHOPENHAUER, 2001, p. 327)

    30

  • tragdias gregas antigas dificilmente se encontrava o esprito de resignao, pois seus heris em

    geral morriam desafiando o destino, os deuses, ou mesmo no caso de dipo em colono, onde

    dipo morre serenamente, no h propriamente resignao. Machado cita texto de Schopenhauer

    defendendo sua preferncia pelas tragdias modernas:

    Enquanto os heris trgicos da Antiguidade se submetiam com constncia aos golpes inevitveis do

    destino, a tragdia crist nos d o espetculo da renncia total vontade de viver, do abandono alegre do mundo, na

    conscincia de sua ausncia de valor e de sua nulidade. Estimo a tragdia moderna bem superior dos antigos.

    Shakespeare bem maior do que Sfocles. Perto da Ifignia de Goethe, poder-se-ia considerar a de Eurpides quase

    grosseira e comum. As Bacantes de Eurpides uma obra medocre e revoltante em favor dos padres pagos

    (SCHOPENHAUER, A. Citado em: MACHADO, 2006, p. 185)

    O objetivo de Nietzsche ser reabilitar o mundo, a vontade e a alegria de viver12, que

    Schopenhauer provavelmente consideraria algo revoltante e em favor dos padres pagos.

    Como conhecido, Nietzsche comea sua reflexo sob forte influncia da filosofia de

    Schopenhauer o que marcar suas primeiras anlises sobre o trgico , entretanto, Nietzsche

    afasta-se de Schopenhauer, especialmente a partir de Humano, Demasiado Humano, obra de

    1878. Mas mesmo em O Nascimento da Tragdia, de 1872, j havia uma crtica interpretao

    de Schopenhauer sobre finalidade da tragdia como sendo produzir resignao. Desde o

    princpio, Nietzsche posiciona-se contra a doutrina da negao da vontade. Segundo Szondi, j

    nas primeiras obras de Nietzsche possvel perceber que em contraposio dialtica negativa

    de Schopenhauer, encontra-se em Nietzsche uma dialtica positiva, que lembra a interpretao de

    Schelling nas Cartas (SZONDI, 1961, p. 69). Para compreendermos o significado do trgico

    em Nietzsche, e as alteraes e continuidades do trgico em sua filosofia, precisamos antes

    enfrentar alguns equvocos comuns a respeito de seu pensamento: 1) Nietzsche pessimista. 2)

    Nietzsche niilista 3) Nietzsche um defensor da desmedida (hybris) dionisaca e de uma viso

    12 No aforismo 338, de Gaia Cincia: Eu quero faz-los mais corajosos, mais resistentes, mais simples, mais alegres! Eu quero ensinar-lhes o que agora to poucos entendem, e os pregadores da compaixo menos que todos: a partilha da alegria! (NIETZSCHE, 1882, p. 228)

    31

  • libertria, de matiz individualista. Tentemos primeiro nos desfazer dessas interpretaes para

    entendermos o trgico em Nietzsche.

    Nietzsche no um pessimista maneira de Schopenhauer, nem um otimista ao modo

    socrtico. O seu pessimismo algo bem distinto do que normalmente se entende pelo termo.

    Na Gaia Cincia, Nietzsche denomina sua posio como pessimismo dionisaco. Toda arte ou

    filosofia poderia ser vista como um remdio para o sofrimento, mas existiriam dois gneros de

    sofrimento:

    Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remdio e socorro, a servio da vida que cresce e que luta:

    elas pressupem sempre sofrimento e sofredores. Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de

    abundncia de vida, que querem uma arte dionisaca e tambm uma viso e compreenso trgica da vida e depois

    os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silncio, quietude, mar liso, redeno de si, mediante a arte e

    o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulso, a loucura (NIETZSCHE, 1882, aforismo 370, p.

    272)

    Para Nietzsche, este ltimo tipo de sofrimento levaria ao pessimismo romntico,

    entendido por ele como o ltimo grande acontecimento no destino de nossa cultura e que

    estaria expresso na filosofia de Schopenhauer e na msica de Wagner. Entretanto, prossegue

    Nietzsche, ainda pode haver um outro pessimismo, derivado do sofrimento provocado pela

    abundncia de vida, mas que no move uma acusao contra a vida:

    A este pessimismo do futuro pois ele vir! J o vejo vindo! eu chamo de pessimismo dionisaco

    (NIETZSCHE, 1882, aforismo 370, p. 274)

    At que ponto um tal gnero de pessimismo, por abundncia de vida, que no acusa a

    vida, que no nega a vontade, ainda um pessimismo? Certamente no se trata do pessimismo

    em seu significado habitual. Mas por que utilizar ainda o termo pessimismo? Talvez para se

    contrapor ao otimismo socrtico, que tambm levar condenao deste mundo e da vida,

    tambm levar, segundo Nietzsche, ao niilismo. Quer dizer, a manuteno do termo

    pessimismo no Nietzsche ps-schopenhaueriano carrega uma importncia retrica, serve para 32

  • reforar um antagonismo em relao a uma posio otimista que vista como inimiga, na

    verdade vista como inimiga da vida.

    No texto O que devo aos antigos, do Crepsculo dos dolos, de 1888, Nietzsche afirma

    que o trgico no tem nada a ver com pessimismo, algo que nem Aristteles nem Schopenhauer

    teriam compreendido:

    A psicologia do orgistico como sentimento transbordante de vida e fora, no interior do qual mesmo a dor

    age como estimulante, deu-me a chave para o conceito do sentimento trgico, que foi mal compreendido tanto por

    Aristteles como, sobretudo, por nossos pessimistas. A tragdia est to longe de provar algo sobre o pessimismo

    dos helenos, no sentido de Schopenhauer, que deve ser considerada, isto sim, a decisiva rejeio e instncia

    contrria dele. O dizer Sim vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida,

    alegrando-se da prpria inesgotabilidade no sacrifcio de seus mais elevados tipos a isso chamei dionisaco,

    nisso vislumbrei a ponte para a psicologia do poeta trgico. No para livrar-se do pavor e da compaixo, no

    para purificar-se de um perigoso afeto mediante sua veemente descarga assim o compreendeu Aristteles : mas

    para, alm do pavor e da compaixo, ser em si mesmo o eterno prazer do vir a ser esse prazer que traz em si

    tambm o prazer no destruir... (NIETZSCHE, 1888, p. 106) Grifos nossos.

    Ao invs de ser expresso de um pessimismo que nega a vida em virtude de seus

    sofrimentos, o trgico estaria ligado a um dionisaco dizer Sim vida, mesmo em seus

    problemas mais duros e estranhos. Portanto, a questo do pessimismo/otimismo gira em torno

    do sofrimento e de como interpretar e tratar o sofrimento. Os desejos no satisfeitos, os revezes

    de todos os tipos, os acidentes, as doenas, a passagem do tempo e a mortalidade, em suma, o

    sofrimento na vida, pode levar a uma acusao contra a vida. Este modo de reagir ao sofrimento

    seria mais comum nos sbios13 do que entre os populares14 e seria um sintoma de decadncia, de

    13 Em todos os tempos os grandes sbios sempre fizeram o mesmo juzo sobre a vida: ela no vale nada (NIETZSCHE, 1888, p. 17)14 Nietzsche reconhece a origem popular do dionisismo e das tragdias: O ditirambo canto popular e, na verdade, principalmente das camadas inferiores. A tragdia sempre conservou um carter puramente democrtico, pois ela surgiu do povo (NIETZSCHE, 1870, p. 56). Frequentemente Nietzsche contrasta a alegria inocente e corajosa do popular, da gente mida, com o niilismo cansado do sbio, como no aforismo 434 da Vontade de Poder: Na prxis da vida, na pacincia, na bondade e no mtuo encorajamento a gente mida superior a eles: esse aproximadamente o juzo que Dostoivski ou Tolsti reivindicam para seus mujiques: eles so mais filsofos na prxis, tm uma maneira mais corajosa de safar-se no necessrio (NIETZSCHE, 1906, p. 235)

    33

  • um enfraquecimento, de cansao da vida. O cansao leva busca, a todo custo, da ausncia de

    sofrimento. Para alcanar essa meta, seria necessrio eliminar os riscos e neutralizar tudo aquilo

    que pode provocar sofrimento como a disputa, os instintos, as paixes, os desejos. Quer dizer, a

    ausncia de sofrimento s poderia ser alcanada atacando as mesmas causas que produzem

    tambm alegria. Para Nietzsche, teria sido esse o remdio radical que Scrates ofereceu contra o

    sofrimento: condenar este mundo do devir como mera aparncia e afirmar que existe um outro

    mundo, o mundo verdadeiro, eterno e perfeito, que podemos contemplar por meio da razo, e

    que, aqui, no mundo da aparncia, seria preciso que a razo dominasse os instintos, paixes,

    desejos, pois estes provocam dor. Esse seria o sentido do otimismo socrtico: o sofrimento tem

    soluo definitiva, pode ser extirpado pela razo.

    Para Nietzsche, o maior problema de Scrates no que o mundo verdadeiro seja

    uma fbula, mas sim que seja uma fbula nociva vida, porque o remdio oferecido por

    Scrates foi um remdio radical, representou uma hybris: a tirania da razo, em vez de um

    equilbrio entre os instintos. A busca pelo mundo verdadeiro, a fantica vontade de

    verdade, deu incio ao niilismo, entendido como o processo progressivo de destruio dos mitos

    que culmina na concluso de que o prprio mundo verdadeiro seria um mito15. A busca

    15 Tomando a linguagem do nietzcheano Max Weber, o desencantamento do mundo no uma preferncia, mas o resultado do processo de racionalizao: E em nossos dias? Quem continua a acreditar salvo algumas crianas grandes que encontramos justamente entre os especialistas que os conhecimentos astronmicos, biolgicos, fsicos ou qumicos poderiam ensinar-nos algo a propsito do sentido do mundo ou poderiam ajudar-nos a encontrar sinais de tal sentido, se que ele existe? Se existem conhecimentos capazes de extirpar, at s razes, a crena na existncia de seja l o que for que se parea a uma significao do mundo, esses conhecimentos so exatamente os que se traduzem pelas cincias. (WEBER, 1997, p. 34.). O processo de racionalizao era movido pela vontade de verdade. Para Nietzsche, a vontade de verdade, por sua vez, movia-se por uma tentativa de negar o vir a ser em virtude de seus sofrimentos, do acaso, da morte. Quer dizer, a vontade de verdade movia-se pelo instinto do medo. Tema com o qual Adorno e Horkheimer abriram a sua Dialtica do Esclarecimento: No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posio de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginao pelo saber. . (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 19) Parece-nos que estes frankfurtianos se inspiraram no aforismo 355 de Gaia Cincia: No mais que isto: algo estranho deve ser remetido a algo conhecido. E ns, filsofos j entendemos mais do que isso, ao falar de conhecimento? () No seria o instinto do medo que nos faz conhecer? E o jbilo dos que conhecem no seria o jbilo do sentimento de segurana reconquistado? Eis um filsofo que deu o mundo por 'conhecido', tendo-o remetido 'ideia': no seria porque a 'ideia' lhe era to familiar, to habitual? Porque ele j a receava to pouco? Oh, que fcil satisfao a dos homens de conhecimento! (NIETZSCHE, 1882, p. 250)

    34

  • fantica pela verdade chegou ao nada. Aqui nos aproximamos do segundo erro comum que

    mencionamos sobre Nietzsche: o de que ele seria niilista, quando, em verdade, trata-se do

    oposto, pois Nietzsche pretendia superar o niilismo. O niilismo no uma alternativa que

    Nietzsche escolhe, mas o resultado de um longo processo iniciado pelo otimismo socrtico

    em sua pela busca pela Verdade, pelo fundamento, busca que culminou, entre os europeus

    modernos, com a morte do fundamento, a morte do velho Deus (NIETZSCHE, 1882,

    aforismo 343, p. 233).

    No mundo dos europeus modernos esse processo atingiu seu pice, mas isso no significa

    que o niilismo s tenha aparecido a, que seja um fenmeno exclusivamente moderno. Nesse

    ponto concordamos com Rossi, quando escreve: Rejeito a viso que faz do niilismo uma

    ancoragem exclusiva no mundo contemporneo, pois o niilismo tambm teria aparecido em

    determinadas pocas de crises estruturais, como so os casos da fragmentao da polis grega, da

    queda do Imprio Romano, da transio do Medievo ao Renascimento (ROSSI, 2006, p. 330).

    O niilismo o resultado do projeto racionalista quando levado s suas ltimas consequncias. Os

    sofistas j haviam chegado ao nada16. Protgoras dizia que nunca saberamos a verdade sobre

    os deuses e que o homem a medida de todas as coisas. Eurpides, influenciado pela

    sofstica, foi acusado pelos religiosos atenienses de ser ateu.

    Quais so os efeitos da descoberta do nada, do abismo e a permanncia nele? A partir

    dessa questo, Nietzsche passa da anlise do niilismo entendido como processo movido pela

    vontade de verdade para os efeitos do niilismo como fenmeno psicolgico, e passa a tratar do

    16 Apesar de terem chegado ao nada, para Nietzsche os sofistas no fizeram uma acusao contra a vida e nisto eles teriam permanecido helenos, enquanto Scrates e Plato teriam sido uma reao contra a sofstica e contra toda a tradio helnica: A cultura grega dos sofistas havia medrado a partir de todos os instintos gregos: pertence cultura do tempo de Pricles, de modo to necessrio como Plato no pertence a ela: tem seus precursores em Herclito e em Demcrito, nos tipos cientficos da filosofia antiga; tem a sua expresso na alta cultura de Tucdides, por exemplo e afinal, ela teve razo: cada progresso do conhecimento epistemolgico e moral restituiu os sofistas... () Os sofistas no so nada mais do que realistas: formulam todos os valores e prticas usuais para hierarquizao dos valores, tm a coragem, prpria a todos os espritos fortes, de saber de sua imoralidade... (NIETZSCHE, 1906, aforismo 428 e 429, p. 239-230)

    35

  • niilismo passivo, o niilismo ativo e o niilismo perfeito. Mas no de modo algum nosso objetivo

    neste momento, e nem no restante deste trabalho, apresentar uma viso do conjunto da filosofia

    de Nietzsche, e nem mesmo sobre o problema do niilismo, mas apenas tentar elucidar aquilo

    pode nos ajudar a compreender o significado do trgico em seu pensamento. Nesse sentido,

    precisamos saber mais sobre porque a posio socrtica representou uma hybris para Nietzsche.

    Para tanto, precisamos nos distanciar da terceira interpretao equivocada sobre a obra de

    Nietzsche, aquela que v na crtica de Nietzsche tirania da razo socrtica uma defesa da

    hybris dionisaca, leitura que transforma Nietzsche num libertrio individualista. Sobre este

    ponto, diz Moura:

    Guardemo-nos, antes de tudo, dos lugares comuns jornalsticos. Scrates censurado por promover a

    razo como tirano em face dos demais instintos. Mas ser que Nietzsche estaria insinuando, como cura para a

    doena socrtica, que nos filiemos ao partido oposto, e faamos a apologia das paixes e dos instintos contra a

    razo, o elogio do corpo contra o esprito? Agora, a palavra de ordem de Nietzsche seria mais ou menos assim:

    faamos das paixes o tirano da razo e com tal terapia daremos adeus 'decadncia'. Mas isso seria desconhecer

    inteiramente o pensamento de Nietzsche, significaria transform-lo em idelogo parisiense e opor, ao platonismo,

    uma caricatura de Clicles. No. No se subverte o platonismo apenas trocando os sinais, torcendo pela 'paixo'

    contra a 'razo', como se estivssemos diante de uma pelada entre rivais. Razo e paixo no so adversrias e j

    conceder em demasia ao platonismo encar-las sob o prisma da mtua excluso. Paremos com a mania de

    transformar Nietzsche em precursor de Wilhelm Reich esse platnico a mais da histria do pensamento

    (MOURA, 2005, p. 222).

    Para Nietzsche, o problema no a razo, a razo como tirano. A soluo no est no

    partido oposto, na apologia das paixes e dos instintos sem medida. H muitas demonstraes

    disso na obra de Nietzsche. No Crepsculo dos dolos, Nietzsche afirma que o remdio oferecido

    pelo cristianismo foi ainda mais radical que o de Scrates em sua condenao aos instintos e

    vida, pois o cristianismo no era capaz de querer a sublimao ou espiritualizao dos instintos e

    paixes, mas queria a sua extirpao:

    36

  • Por outro lado, preciso confessar com alguma equidade que, sobre o solo de crescimento do

    Cristianismo, o conceito de 'Espiritualizao da paixo' no podia ser concebido de forma alguma. Como de fato

    reconhecido, a igreja primitiva lutou contra os 'Inteligentes' em favor dos 'Pobres de esprito': como seria possvel

    esperar dela uma guerra inteligente contra a paixo? A igreja combate o sofrimento atravs da extirpao em

    todos os sentidos: sua prtica, seu 'tratamento' o da castrao. Ela nunca pergunta: 'como se espiritualiza, se

    embeleza, se diviniza um desejo?' Em todos os tempos, ela ps a nfase da disciplina na supresso (da sensibilidade,

    do orgulho, do desejo de domnio, de posse e de vingana). Mas atacar os sofrimentos na raiz o mesmo que

    atacar a vida na raiz: a prxis da igreja inimiga da vida... (NIETZSCHE, 1888, p. 34) Grifos nossos.

    Portanto, para Nietzsche, a Igreja no fez uma guerra inteligente contra as paixes,

    porque pretendeu extirpar os instintos e paixes em vez de espiritualizar, embelezar ou

    divinizar os instintos. Ocorre que os instintos, desejos e paixes no podem ser eliminados, e,

    no podendo ser canalizados para fora, eles se voltam para dentro, contra o prprio indivduo,

    dando origem m conscincia, como diz Nietzsche na Genealogia da moral:

    Vejo a m conscincia como a profunda doena que o homem teve de contrair sob presso da mais radical

    das mudanas que viveu a mudana que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no mbito da

    sociedade e da paz () Todos os instintos que no se descarregam para fora voltam-se para dentro isto o que

    chamo de interiorizao do homem: assim que no homem cresce o que depois se denomina sua 'alma'. Todo

    mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e estendendo,

    adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora.

    Aqueles terrveis basties com que a organizao do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade os

    castigos, sobretudo, esto entre esses basties fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre

    e errante se voltassem para trs, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguio, no

    assalto, na mudana, na destruio tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta a origem da

    m conscincia (Nietzsche, 1887, II, 16, p. 73)

    O remdio no inteligente oferecido pelo cristianismo aprofundou a doena17. Para

    17 Como conhecido, o tema dos impulsos que no podem ser descarregados e se voltam contra o indivduo ser desenvolvido por Freud. Souza escreve que em 1908, em uma reunio da Sociedade Psicanaltica de Viena na casa de Freud, o tema proposto para discusso foi o livro Ecce Homo, de Nietzsche. Freud disse que ningum havia alcanado, e dificilmente tornaria a alcanar, o grau de introspeco alcanado por Nietzsche e que evitava estudar Nietzsche para preservar a independncia de esprito e devido riqueza de ideias daquelas obras que o impediriam de ler mais que metade de uma pgina. Para Freud, haveria muita semelhana entre as investigaes

    37

  • Nietzsche, no se trata de eliminar esses instintos, mas de, em primeiro lugar, reconhecer que

    eles existem em ns, mesmo os mais terrveis, e em seguida pensar em produzir uma hierarquia

    de instintos, um equilbrio tenso de instintos, mais favorvel vida. Acreditamos que a

    abordagem de Moura ajuda bastante a compreenso do problema quando enfatiza os conceitos de

    cultura e civilizao na obra de Nietzsche. Nessa chave, a hierarquia/equilbrio entre

    instintos produzida pela Cultura, enquanto a Civilizao entendida por Nietzsche como uma

    hybris18: a tirania da razo, tirania do apolneo sobre o dionisaco. Para Moura, o que Nietzsche

    chama de cultura uma estilizao da natureza, o contrrio, portanto, do laisser-aller

    (MOURA, 2005, p. 233). Moura encontra nas anlises de Nietzsche sobre a disputa no mundo

    homrico a chave para compreender a noo de cultura de Nietzsche.

    No texto A disputa em Homero, de 1872, Nietzsche afirma que o mundo pr-homrico era

    um mundo cruel de guerras constantes e desejo de aniquilamento, era o mundo dominado pelos

    filhos da noite, mundo da disputa funesta (na linguagem de Hesodo em Os trabalhos e os

    dias, citado por Nietzsche). A partir do perodo homrico teria havido uma espiritualizao

    destes impulsos agressivos, e mesmo que a disputa no tenha sido extirpada, recebeu medida. De

    acordo com o esprito do agonismo, todas as instituies principais dos gregos estariam

    organizadas em torno da disputa. Nietzsche observou que, para os gregos, todo talento deve

    desdobrar-se lutando (NIETZSCHE, 1872a, p. 70). A disputa permitiria que o talento

    aparecesse, que a virtude fosse testada, que a vida se desenvolvesse. Consideravam os gregos

    que, com a eliminao da disputa, a prpria vitalidade se esvairia, as virtudes se enfraqueceriam

    do filsofo e as da psicanlise. (Souza, P. C. Citado no Posfcio de NIETZSCHE, 1908, p. 123)18 Na terceira dissertao da Genealogia da Moral, Nietzsche novamente critica a hybris dos modernos: Ainda que medido com o metro dos antigos gregos, todo o nosso ser moderno, enquanto no fraqueza, mas poder e conscincia de poder aprese