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A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL PARA A FORMAÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO THE VALUE OF CULTURAL HERITAGE FOR THE NATION-STATE FORMATION Marcelo Veber Goldani 1 O Estado moderno, surgido a partir das mudanças socioculturais ocorridas na Europa, passou a atribuir ao indivíduo a ideia de pertencimento a uma determinada comunidade ampla, formada por um território definido, idioma oficial, leis nacionais, etc. Esta comunidade foi construída ideologicamente através de uma história cultural que passou a ser comum a todos os cidadãos e organizada pelo estado-nacão. O presente trabalho tem como objetivo elucidar a função do patrimônio cultural nacional como instrumento de valorização da identidade nacional. Nas últimas décadas do século XX, houve um importante processo de mudanças na sociedade brasileira. Momento que também foi utilizado para pensar as políticas culturais nacionais e buscar novos caminhos para as políticas públicas referentes à cultura. Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Política Pública. Estado- Nação. The modern State, which emerged from the cultural changes that occurred in Europe, began to assign to the individual the idea 1 Historiador, mestre em patrimônio cultural pela UFSM. Professor da FADAF e IFMT.

MARCELO - A Valorizacao Do Patrimonio Cultural Para a Formacao Do Estado_nacao

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a valorização do patrimonio é a obsessão da humanidade veja que para viver é necessário ter

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A VALORIZAO DO PATRIMNIO CULTURAL PARA A FORMAO DO ESTADO-NAO

THE VALUE OF CULTURAL HERITAGE FOR THE NATION-STATE FORMATION

Marcelo Veber Goldani

O Estado moderno, surgido a partir das mudanas socioculturais ocorridas na Europa, passou a atribuir ao indivduo a ideia de pertencimento a uma determinada comunidade ampla, formada por um territrio definido, idioma oficial, leis nacionais, etc. Esta comunidade foi construda ideologicamente atravs de uma histria cultural que passou a ser comum a todos os cidados e organizada pelo estado-naco. O presente trabalho tem como objetivo elucidar a funo do patrimnio cultural nacional como instrumento de valorizao da identidade nacional. Nas ltimas dcadas do sculo XX, houve um importante processo de mudanas na sociedade brasileira. Momento que tambm foi utilizado para pensar as polticas culturais nacionais e buscar novos caminhos para as polticas pblicas referentes cultura. Palavras-chave: Patrimnio Cultural. Poltica Pblica. Estado-Nao.The modern State, which emerged from the cultural changes that occurred in Europe, began to assign to the individual the idea of belonging to a particular community wide, formed by a defined territory, official language, national laws, etc. This community was built ideologically through a cultural history that has become common to all citizens and organized by the nation-state. This study aims to elucidate the function of the national cultural heritage as recovery of national identity instrument. In the last decades of the twentieth century there was an important process of change in Brazilian society. Moment that was also used to think the national cultural politics and seek new ways for public politics on the culture.

Keyword: Cultural Heritage. Public Politic. Nation-State

INTRODUOA dcada compreendida entre os anos de 1985 e 1995, foi um importante momento para a sociedade brasileira pensar suas polticas culturais e buscar redefinies e novas diretrizes para as polticas pblicas culturais. Outro momento importante na trajetria das aes culturais brasileiras foi a partir de 2003, quando ocorreram algumas modificaes na organizao estrutural dos Ministrios da Cultura. Aps 2003, este Ministrio resgata antigos planos e diretrizes pensados durante a dcada de 1970, e reformula e implementa as novas diretrizes poltico-culturais. Desta forma, faz-se mister buscar a compreenso das aes poltico-culturais desenvolvidas pelas autoridades e rgos governamentais no tempo passado a fim de compreender as novas polticas pblicas que orientam o trabalho de preservao dos bens culturais no decurso da dcada de 1990.

No incio do sculo XX, o patrimnio histrico-cultural tinha o carter ideolgico de representao do Estado e buscava a identificao entre este e o indivduo. J no final do sculo a ele so atribudas novas funes, como, por exemplo, objeto de desenvolvimento da educao, e do turismo. A partir das aes desenvolvidas no passado necessrio buscar definies para as novas orientaes polticas desenvolvidas pelos poderes pblicos brasileiros aps a Constituio Federal de 1988. importante lembrar que as mesmas instituies pblicas que desenvolvem as polticas culturais atualmente fazem parte da memria das aes polticas brasileiras em defesa dos bens culturais. Tambm necessrio analisar as polticas pblicas desenvolvidas pelos diversos rgos governamentais responsveis pela preservao, valorizao e divulgao dos bens culturais aps a Carta de 1988.

O espao da construo da cidadania permite a produo de uma histria e uma poltica democrtica relativa ao patrimnio cultural trabalhado em torno da memria social criando um reconhecimento do direito ao passado sendo tambm um agente de preservao. Este espao compreende os museus e suas aes educacionais e tambm as aes poltico-sociais na preservao, valorizao e divulgao do patrimnio cultural. Este reconhecimento aceita os riscos da diversidade, arrisca a encontrar as solicitaes por uma memria social baseada em seus valores simblicos, no teme a restaurao e preservao do patrimnio edificado e se orienta por uma cultura que no repudie sua historicidade, mas que se valorize pela participao no sentido de fazer parte.

FUNDAMENTAO TERICA

A formulao, implementao, ativao ou desativao de polticas pblicas voltadas para a rea cultural so definidas conforme as bases da memria da sociedade ou do prprio Estado. O objeto do passado no pode ser depositado nos museus ou esquecido pelas ruas da cidade, tampouco alvejados pela especulao imobiliria e sim, objeto de pesquisa estabelecendo relaes efetivas na busca da apropriao/reapropriao do conhecimento, criao/recriao de novos valores culturais, identificao entre indivduos e patrimnio, etc.

A reflexo sobre o patrimnio cultural e as polticas pblicas desenvolvidas para a preservao e valorizao dos bens culturais conduz ao entendimento das aes do Estado sobre estes assuntos. Considera-se que polticas pblicas o resultado dos recursos do Estado (como poder operante), auxiliado pelas suas instituies como principal referencial, que tem como meta o desenvolvimento de aes para o bem estar social. Assim, o Poder Pblico, representante da sociedade, que tem a responsabilidade de valorizar e enriquecer de sentido o patrimnio.

O bem cultural identifica a sociedade e precisa ser transferido s geraes futuras como forma de representao de sua cultura, histria e memria. Essa herana adquire um valor social e serve de testemunha cultural enriquecendo o coletivo culturalmente. A valorizao do patrimnio cultural amplia a ao cidad a partir do momento que cria condies para que o indivduo pense, perceba e tome conscincia sobre a memria da sociedade colaborando na preservao desses bens.No sculo XVIII, o Estado moderno, passou a atribuir aos indivduos a idia de pertencimento a uma comunidade mais ampla e que foi construda ideologicamente atravs de uma origem histrica e cultural comum de todos os cidados o estado-nao. O desenvolvimento das idias de pertencimento nao ou a um povo foi um processo de apelo ideolgico obtido a partir de transformaes por parte dos cidados na forma de pensar e compreender sua participao na sociedade. O desenvolvimento da conscincia nacional foi um processo gradual desenvolvido a partir das necessidades do Estado de criar elementos de identificao entre indivduo, chamado pelos estados nacionais de cidados e a prpria nao (a ptria do cidado). Assim, foram criados smbolos, mitos fundadores da nao, tradies literrias, adoo ou criao de uma lngua padro e oficial nacional e difundida atravs dos aparelhos estatais. Dentro das necessidades de seleo de smbolos para criar sentimentos de identidade entre indivduo e nao que se desenvolveram ao longo do processo histrico cultural os bens culturais nacionais. Marilena Chaui analisa as idias de Eric Hobsbawm afirmando que em sua obra ele defende que as mudanas nas idias de nao surgem entre 1830 e 1960, e nesse perodo tem-se ainda, trs etapas distintas. Entre 1830 e 1880, a economia poltica liberal, com a expresso princpio da nacionalidade, vincula a nao ao territrio; entre 1880 e 1918, com a nao articulada lngua, religio e raa surge a idia nacional e entre 1918 e 1960, surge a questo nacional, onde nao est referida conscincia nacional e a lealdade poltica e nesse perodo que se desenvolvem os partidos polticos e o Estado.

Algumas das principais caractersticas do Estado moderno o territrio definido e preferencialmente contnuo, delimitado por limites de fronteiras claramente demarcadas, com aes polticas e administrativas soberanas e principalmente com o consentimento de seus cidados vlidos para instituir polticas fiscais e militares.Dois problemas precisam ser resolvidos por esse Estado: o primeiro, a necessidade de incluir todos os habitantes do territrio na esfera administrativa estatal; o segundo, a necessidade de assegurar a lealdade ao sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, as faces polticas e as religiosas disputavam essa lealdade. A idia de nao surge para solucionar os dois problemas. (CHAUI, 2006. p. 49)

O princpio da nacionalidade foi desenvolvido com o objetivo de definir as condies para a existncia de um Estado-nao. Essa definio dependia de um extenso territrio e uma populao numerosa, sendo que essa era a condio para levar a perfeio os vrios ramos da produo. As conseqncias do princpio no se fizeram esperar: a nao entendida como um processo de expanso de fronteiras ou conquistas de novos territrios e o Estado-nao como unificador (CHAUI, 2006, p. 50). O idioma para todo o territrio do Estado e a nao como ponto final da evoluo iniciada com a famlia resultaria na unificao nacional.

A partir de 1880, com o surgimento das lutas sociais e poltica que colocaram as massas de trabalhadores no cenrio poltico surge tambm a necessidade, por parte dos poderes constitudos, de conquistar a lealdade dos populares. Assim, surgem os debates sobre a idia nacional onde o Estado precisava de uma religio cvica mobilizadora. O patriotismo assume esse papel e com o passar do tempo ele se torna o nacionalismo, buscando atravs de smbolos e sentimentos nacionais produzir uma comunidade imaginria.

Foram os intelectuais pequeno-burgueses os responsveis pela transformao do patriotismo em nacionalismo, por meio da idia de esprito do povo, encarnado na raa, na lngua, nos costumes e tradies. Sob o pano de fundo nacionalista, o Estado, a burguesia e a religio se exprimem reciprocamente e no precisam disputar as lealdades populares (CHAUI, 2006, p. 50).A idia nacional foi transformada em questo nacional entre as dcadas de 1918 e 1960. Entre 1919 e 1945, houve a grande arrancada do nacionalismo, ou seja, o fascismo, e o nazismo. O nacionalismo militante permaneceu por vrias partes do mundo, possivelmente, por causa de sua natureza de Estado moderno no qual prticas polticas e sentimentos polticos que formaram a conscincia poltica do cidado esto referidos nao e ao civismo, de maneira que a distino entre classe social e nao deixa de ser clara e se dilui.

O carter nacional uma elaborao ideolgica que oferece uma totalidade de traos coerentes, fechada e sem lacuna, pois oferece a natureza ou a essncia do povo (...), a ideologia da identidade nacional prope um ncleo essencial tomando como referencia um conjunto de diferenas internas nao, de maneira que esta uma totalidade inacabada e lacunar, algo a ser construdo (CHAUI, 2006, p.51)

Dessa forma, percebemos que durante o processo em que Hobsbawm analisa a formao do estado-nao ele est em constante busca por elementos que identifiquem e atribuam uma identidade nacional populao. Esses elementos precisam ter a competncia da unio entre os diferentes indivduos do territrio nacional, identificar a diversidade populacional entre si e respeitar as particularidades. Tambm, esses elementos necessitam representar aquela nao frente s outras naes e resistir s influncias culturais externas. Com isso, surgem os primeiros interesses pela preservao de construes arquitetnicas como elementos de interesse comunitrios denominados de patrimnio arquitetnico. O patrimnio cultural serviu para a unificao da nao e para a elaborao das idias de nao por ser uma forma de atrelar a populao atravs da identificao e apropriao das obras construdas por todos os indivduos, denominados pela idias nacionais de cidados.

Na modernidade tardia a identidade cultural nacional fonte inspiradora da cultura nacional, ou seja, sem o sentimento de identidade cultural nacional o indivduo sentiria um profundo sentimento de perda subjetiva. A cultura nacional composta por smbolos e representaes criando sentimentos de identidade entre indivduo e nao. Esses sentidos esto contidos nas estrias que so contadas sobre a nao, memrias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela so construdas (HALL, 2002, p. 51). A nao moderna imaginada a partir de estratgias e representaes e contada atravs de narrativas da cultura nacional. A nao se utiliza de uma narrativa contada em histrias, lendas, literatura nacional, na mdia e na cultura popular resgatando mitos de um passado distante efetivando seus horizontes apenas nos olhos da mente.

A identidade nacional representada como primordial est l, na verdadeira natureza das coisas, algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser acordada de sua longa, persistente e misteriosa sonolncia, para reassumir sua inquebrantvel existncia. (HALL, 2002, p. 53)

A nao tambm se utiliza da existncia na narrativa da cultura nacional da histria do mito fundacional, ou seja, uma estria que localiza no espao e no tempo a nao, o povo e o carter nacional num passado to distante que se perdem no tempo, mas no no tempo real, um tempo mtico. A identidade nacional tambm muitas vezes simbolicamente baseada na idia de um povo ou folk puro, original. Mas, na realidade do desenvolvimento nacional, raramente esse povo (folk) primordial que persiste ou que exercita o poder (HAll, 2002, p. 56).

Aps analisar os motivos e as formas que fazem da nao uma unidade, vamos em busca de informaes sobre as culturas nacionais e as identidades nacionais que elas constroem se so realmente unificadas. Existem trs aspectos que constituem a nao segundo HALL (2002, p. 58) O princpio espiritual da unidade de uma nao:... a posse em comum de um rico legado de memria..., o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisa, a herana que se recebeu. A identidade nacional o resultado na unio nacional politicamente representada pelo estado-nao e a condio de pertencimento dado ao indivduo.

Para dizer de forma mais simples: no importa quo diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gnero ou raa, uma cultura nacional busca unifica-los numa identidade cultural, para represent-los todos como pertencentes mesma e grande famlia nacional (HALL, 2002, p. 59)

Seria possvel pensar a identidade nacional como uma unidade unificadora que teria a capacidade de anular e insubordinar a diferena cultural. Uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, unio e identificao simblica. Ela tambm uma estrutura de poder cultural(HALL, 2002, p. 59). Considerando trs pontos importantes: a maioria das naes so constitudas por culturas diferentes que foram unificadas aps um longo processo de violentas conquistas. Essas supresses culturais necessitam em primeiro plano serem esquecidas e limpadas da memria da comunidade; segundo, as naes sempre so formadas por uma infinidade de diferenas, como, diferentes classes sociais, grupos tnicos, gneros, etc; e, por ltimo, as naes ocidentais modernas foram centros de imprios de influncias e de hegemonia cultural sobre as culturas colonizadas. As culturas nacionais unificadas so dispositivos discursivos representantes da diferena como unidade ou identidade. As naes so permeadas por divises e diferenas internas marcantes e unificadas somente atravs do exerccio de diferentes formas de poder cultural. Uma forma de unific-las tem sido a de represent-las como a expresso da cultura subjacente de um nico povo(HALL, 2002 p. 62). Tambm no pode se buscar uma unificao da identidade nacional atravs da raa, pois, a raa no uma categoria biolgica com validade cientfica e sim uma categoria discursiva que utiliza um conjunto de caractersticas fsicas (cor da pele, cabelo, olho), como marcas simblicas para a diferenciao de grupos sociais.

Esses elementos mostram a impossibilidade da existncia de uma nao totalmente unificada como identidade cultural, pois, ela no tem poderes suficientes para subordinar todas as formas de manifestaes culturais existentes em seu espao territorial. A nao no est livre do jogo de poderes polticos, das divises e contradies internas e precisa conquistar a lealdade dos habitantes. Tambm, precisa manter sua soberania frente s outras culturas e filtrar as influncias culturais em seu meio social.

O patrimnio cultural constitudo pelos bens que se propem a localiz-lo com suas marcas do tempo no espao. O ato de erigir monumentos edificados com o objetivo de conservar presente e vivo na conscincia de geraes futuras a lembrana de uma ao ou de um destino pode ser identificado nas pocas mais remotas da humanidade. Durante a Antiguidade e a Idade Mdia, esse seria o nico tipo de monumento conhecido, mas a partir do Renascimento teria comeado a perder importncia, sendo atualmente pouco frequente (FONSECA, 1997, p. 51).

A idia de estudar e conservar um edifcio pelas razes de serem testemunhos da histria e/ou uma obra de arte orientam a elaborao das noes modernas de monumento histrico, de patrimnio e de preservao. (...) no final do sculo XVIII, o Estado assumiu, em nome do interesse pblico, a proteo legal de determinados bens a que foi atribuda a capacidade de simbolizarem a nao, que se definiu o conceito de patrimnio histrico e artstico nacional (FONSECA, 1997, p. 49). A ao humana de preservar objetos que constituem um conjunto de valores scio-culturais para um determinado grupo tem um carter ideolgico ligado aos objetivos do grupo que deseja sua conservao. A humanidade busca criar e preservar seus smbolos a fim de deixar de alguma forma registrada na histria sua passagem e suas influncias culturais, pois, como afirma FONSECA:

Em toda sociedade, desde a pr-histria, (...) o sentido do sagrado intervm convidando a tratar certos objetos, certos lugares, certos bens materiais, como escapando lei da utilidade imediata, a existncia dos lares familiares, a do palladium da cidade, provavelmente devem ser recolocadas na origem ou na base do problema do patrimnio. preciso aproximar seu destino do de certos objetos comuns, armas e jias, e mesmo edifcios, que, por diversas razes, escaparam da obsolescncia e da destruio fatal para se verem dotados de um prestgio particular, suscitar uma ligao apaixonada, at mesmo um verdadeiro culto. (FONSECA, 1997, p. 53, apud CHASTEL e BABELON, 1980, p. 1)

A piedade religiosa e a devoo s relquias caractersticas marcantes da civilizao europia originaram o sentido de apego a bens simblicos que evocam a idia de pertencimento a uma comunidade, mesmo que imaginria. A nobreza medieval projetava nos castelos e outras representaes de suas linhagens um sentido de smbolos de sua continuidade e por esses motivos esses bens se tornavam objetos de preservao. Porm, nesses casos, os interessados em manter vivas as manifestaes do passado projetadas em monumentos edificados, objetos de culto religiosos e/ou smbolos de nobreza, como os brases, eram grupos definidos e seus objetivos eram de preservao para seu grupo isolado para fim de dominao ideolgica. As manifestaes para a preservao, mesmo percebida como uma necessidade, se manifesta at o sculo XVIII, atravs de iniciativas de grupos sociais isolados formadores do que chamam de sentido de patrimnio. (...) O que chamamos patrimnio s vai se constituir efetivamente como corpus de bens a serem cultuados, preservados e legados para uma coletividade, em funo de valores leigos, como os valores histricos e artsticos, e enquanto referncias a uma identidade nacional. (FONSECA, 1997, p. 53). As categorias que fundamentam a constituio dos chamados patrimnios histricos e artsticos comeam a ser formuladas e aplicadas a bens desde o Renascimento e a idia de nao garantiu seu estatuto ideolgico segurado pelo Estado nacional atravs de prticas especficas na sua preservao.

No entanto, a preservao dos bens culturais se tornou um fato social realmente quando o Estado assumiu grande parte da responsabilidade de proteger o patrimnio cultural em seu territrio. O movimento para a preservao dos bens culturais atrelados ideologia da identificao de uma comunidade com o objeto preservado passou a ser marcante aps as ondas de vandalismo da Reforma e da Revoluo Francesa. At o sculo XVIII, as aes deliberadas, voltadas para a preservao de monumentos, eram ocasionais, e, quando ocorriam, eram realizadas pelos segmentos sociais dominantes, basicamente a Igreja e a aristocracia, visando a conservar seus bens(FONSECA, 1997, p. 57)

No Brasil, devemos o pioneirismo na luta em defesa do patrimnio arquitetnico ao Conde de Galveias, em meados do sculo XVIII. O Conde de Galveias que em 1742, escreveu uma carta ao Governador de Pernambuco Lus Pereira de Andrade, lamentando a transformao do Palcio das Duas Torres em quartel das tropas locais. Este palcio foi construdo pelo Conde holands Mauricio de Nassau. Galveias defendia a preservao do palcio por se tratar de uma obra remanescente da invaso holandesa em terras de domnio portugus e que foi dominado pelas tropas portuguesas.

...Seria imprescindvel a manuteno da integridade daquela obra holandesa, verdadeiro trofu de guerra a orgulhar o nosso povo, e com as adaptaes previstas estaria arruinada uma memria que mudamente estava recomendando posteridade as ilustres e famosas aes que obraram os Portugueses na Restaurao dessa Capitania. (LEMOS, 1981, p. 34 - 35)

Aps a Segunda Guerra Mundial, as polticas culturais no mundo, ganharam novos rumos. Em, 1948, a Assemblia Geral das Naes Unidas, proclamou a Declarao Universal dos Direitos do homem. Essa declarao ganhou importncia por defender os chamados direitos novos, como por exemplo, o direito ao asilo poltico, da nacionalidade, do casamento, etc. Ainda, esto declarados como direitos sociais do cidado o direito sade, educao e, principalmente, neste caso, o direito vida cultural. Essa nova gerao de direito foi classificada como direitos de terceira gerao. Os direitos de terceira gerao reafirmaram os direitos sociais e individuais e acrescentando ainda, os direitos de solidariedade direito paz, desenvolvimento, meio ambiente e o direito ao patrimnio comum da humanidade. Alm das manifestaes feitas pela Organizao das Naes Unidas ONU, tambm existem as chamadas Cartas Patrimoniais. Essas cartas so recomendaes, manifestos, diretrizes, etc. promulgadas em diversas partes do mundo em vrias pocas, aps convenes e eventos internacionais promovidos para a realizao e discusso de assuntos referentes aos bens culturais.

Naquele momento histrico, a Declarao possua somente um significado moral por no existir nenhum rgo de jurisdio internacional capaz de controlar o uso desses direitos. Os direitos de solidariedade foram aceitos com o passar do tempo e aps as convenes internacionais que comearam a promulgar as Cartas Patrimoniais. Desta forma, as naes participantes da ONU e simpticas s cartas incorporaram s suas constituies as noes de preservao, valorizao, divulgao etc. referentes aos bens culturais.

A necessidade de preservao dos bens culturais brasileiros somente ganhou espao na Constituio Federal de 1934. Nesta Carta, foram institudas as primeiras manifestaes legais para proteo dos bens culturais no art. 148, afirmando que cabia Unio, aos Estados e aos Municpios favorecer e animar o desenvolvimento das cincias, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histrico e artstico do Pas. As atribuies estabelecidas na Carta de 1934 foram repetidas em todas as outras Constituies brasileiras.

Na atual Constituio Federal promulgada em outubro de 1988, o Estado continua com o dever de preservar o patrimnio histrico-cultural, porm, observa-se que: o Estado no detm mais a exclusividade na gesto do patrimnio cultural, mas continua com a obrigao de conduzir as polticas de preservao e criar mecanismos e parcerias com os setores pblicos e da sociedade civil. O art. 23, da Carta Constitucional de 1988, afirma que dever da Unio, dos Estado, do Distrito Federal e dos Municpios a proteo dos documentos, obras e outros bens de valor histrico, artstico e cultural, os monumentos, paisagens naturais e stios arqueolgicos, bem como impedir a evaso, destruio e/ou descaracterizao das obras culturais.

As normas de Quito, no item VIII. O INTERESSE SOCIAL E A AO CVICA, destaca que:Do seio de cada comunidade pode e deve surgir a voz de alarme e a ao vigilante e preventiva. O estmulo a agrupamentos cvicos de defesa do patrimnio, qualquer que seja sua denominao e composio, tem dado excelentes resultados, especialmente em localidades que no dispem ainda de diretrizes urbansticas e onde a ao protetora em nvel nacional dbil ou nem sempre eficaz. (IPHAN, 1995, p. 136)Com base nas Cartas Patrimoniais que aps a Constituio de 1988, o Estado e os rgos ministeriais vem desenvolvendo polticas pblicas para ampliar a ao estatal em parceria com diversas instituies pblicas e privadas para a valorizao e manuteno dos bens culturais brasileiros. A Constituio de 1988 regulamenta e garante o exerccio dos direitos culturais no art. 215 e as orientaes das Normas de Quito esto inseridas no art.216, 1 que afirma: O Poder Pblico, com a colaborao da comunidade, promover e proteger o patrimnio cultural brasileiro, por meio de inventrios, registros, vigilncia, tombamento e desapropriao, e de outras formas de acautelamento e preservao. Essas normas somente foram inseridas na Constituio de 1988 e, apesar da desestruturao do setor pblico na rea cultural ocorrida entre o fim dos anos 80 e o incio dos anos 90, formam as bases das diretrizes que o Estado assumir a partir de 2003, com a reestruturao do Ministrio da Cultura. CONCLUSO

No sculo XVIII, o estado moderno passou a usar o patrimnio cultural como um elemento de identificao entre individuo e nao originando dessa forma os bens culturais. Principalmente a Igreja e o Estado foram os primeiros responsveis pela conservao dos bens culturais nacionais por sentirem a necessidade de escolha de objetos, obras arquitetnicas ou referencias imateriais para legar s novas geraes. No inicio do sculo XX, as naes passaram a observar a rea do patrimnio cultural como uma forma de firmar a identidade cultural nacional estreitando os laos de identidade entre individuo, cultura, sociedade e nao. O Estado assumiu essa responsabilidade de proteger os bens culturais por perceber sua importncia na formao da identidade nacional. At esse momento a nao compreendia o patrimnio como um instrumento de identidade entre nao e indivduo.

No Brasil, durante as duas primeiras dcadas do sculo XX, poucas foram as manifestaes para a preservao dos bens culturais nacionais, salvo pela vontade de alguns intelectuais e polticos apreciadores das artes. J nos inicio dos anos 30, com a nova ordem poltica estabelecida a partir do Estado Novo sob o comando de Getlio Vargas e as influncias culturais dos grupos modernistas que foram institucionalizadas as polticas de preservao do patrimnio cultural. O Estado Novo precisava garantir a nova ordem poltico-social aps o fim da poltica do caf com leite e consolidar o poder. Os polticos aliados ao Presidente Getlio Vargas e os intelectuais ligados ao movimento modernista aproveitaram o momento para criar e/ou reestruturar as instituies estatais responsveis pela preservao da cultura brasileira. A criao do SPHAN em1937, serviu para elaborar as diretrizes das polticas pblicas voltadas para a preservao dos bens culturais nacionais.

Se nos anos 30 e 40, a principal funo do patrimnio cultural era a fundamentao da identidade cultural da nao, agora o patrimnio cultural ganha novos sentidos para sua existncia. O crescente interesse pelo turismo em locais histricos passou a ser percebido como uma possibilidade de investimentos financeiros tanto pelos rgos governamentais, quanto pelas instituies privadas. O turismo tambm incentivou a criao de museus e centros culturais para a guarda e proteo de acervos musicolgicos, documentais, de obras de artes, etc. A atividade turstica um produto da sociedade capitalista industrial que se desenvolveu com o objetivo do consumo de bens culturais. Essa atividade implica em ofertas de espetculos e eventos junto com a existncia e preservao de um patrimnio cultural apresentado pelas instituies responsveis pela preservao do patrimnio cultural, como os museus ou arquivos de documentos e tambm visitas a monumentos significativos da histria ou carregados caractersticas arquitetnicas de pocas passadas. Alm do valor cultural, os bens materiais possuem o valor de constiturem a base da sustentao da atividade do turismo.

Desta forma, a partir de 2003, as polticas culturais brasileiras passaram a observar o patrimnio como uma possibilidade de desenvolvimento auto-sustentvel atravs da aplicao de recursos na atividade do turismo. O Ministrio da Cultura vem organizando as instituies para a gerncia do patrimnio cultural buscando a descentralizao das atividades. O MinC tem o objetivo de criar uma rede de instituies interligadas descentralizando a gesto do patrimnio da figura institucional do IPHAN. Todas essas mudanas nas polticas culturais brasileiras aps a Constituio de 1988, esto resultando na valorizao da cultura no Brasil gerando incentivo participao e interesse por parte da sociedade em comprar/adquirir cultura. O patrimnio cultural que foi objetivo de formao da identidade cultural nacional no inicio do sculo XX, hoje uma possibilidade de renda para famlias carentes atravs do turismo e sinnimo de qualidade na educao brasileira.

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Vinculao do Ministrio da Cultura Presidncia da Repblica como Secretaria e extino de instituies pblicas ligadas ao Ministrio da Cultura.