Author
nguyenquynh
View
214
Download
0
Embed Size (px)
performatus.net
1
Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017
ISSN 2316-8102
Com Dois Riscos, Escrevemos X
Grasiele Sousa a.k.a. Grasiele Cabelódroma e Tales Frey
Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que esta é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um conhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados.1
Pré-risco ou o esboço do X no caderno de caligrafia
Márcia X., Pancake, 2001
1 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capital ismo e Esquizofrenia, Vol. 1 . São Paulo: Editora 34, 1995, p. 11.
performatus.net
2
Como um leve traçado, antes propriamente de ele se tornar um risco,
antes de propagarmos uma arriscada ousadia e antes de tracejarmos uma noção
mais clara do que é pretendido com este escrito, assumimos que a primeira
pessoa do plural admitida aqui neste texto é fatalmente uma conexão de duas
mãos (de diferentes artistas) a riscarem as linhas – mas não esqueçamos que
vários segmentos de reta formam curvas, o que sempre nos agrada – para
atingirem o X da mesma questão: a avaliação de como um dos trabalhos da
artista carioca Márcia X. (1959-2005) está presente em uma criação específica de
cada um(a) de nós.
O X abordado não é uma incógnita; é um X que multiplica, que distribui,
que alastra, que espalha, expande.
Imaginemos Márcia como o centro de um X e as extremidades dessa
letra como disseminações a partir desse mesmo centro. Logo, o nosso trabalho –
cada um(a) formando um risco, uma barra sobreposta a uma contrabarra – é
capaz de resgatar um mesmo cerne existente a partir do cruzamento dos dois;
um ponto em comum. Essa noção é mais eficaz do que se imaginássemos um X
sobre o outro, o que formaria um asterisco e indicaria, assim, uma lacuna ou
omissão de trecho numa citação ou transcrição, afinal o tal X da questão
levantada é delineado por duas pessoas justamente para mencionarmos o X
pertencente ao nome de uma terceira, precisamente a que nos serviu de
inspiração em algum(alguns) aspecto(s).
Com esses nossos dois riscos – cada um(a) riscando do seu próprio jeito
sobre o risco dX outrX e cada risco referindo-se ao(à) outrX em terceira pessoa –,
arriscamos a escrita de um X que merece ser especulado e esmiuçado para que
outros cruzamentos se formem, para que esse nosso X não seja único e que o X
inaugural não culmine num ponto final.
Risco 1
Marquei um X, um X, um X no seu coração Pra você nunca me esquecer
Não vai me esquecer, juro que não2
performatus.net
3
Pancake (2001) é o nome da performance de Márcia X. em que ela se
banhava com diversas latas gigantes de leite condensado e que, por fim, jogava
sobre si, com auxílio de uma peneira enorme, alguns quilos de granulados
coloridos. Essa é a ação específica que motivou Grasiele Sousa a criar uma
intertextualidade com a tal obra através de Cabelódroma X. (2014), performance
pela qual a artista retoma, inclusive, diversos dos seus trabalhos pessoais, mas
que, nessa configuração, são referidos em cruzamento com os de Márcia X.
Para começar o meu risco (que se cruza com o dela), podemos ver o
cabelo de Grasiele Cabelódroma como o “dromo” do seu “não drama”, ou seja,
como o seu lugar de ponderação, como o seu espaço de imaginação, o qual,
indubitavelmente, em aspectos formais, coincide com os longos cabelos
revoltosos de Márcia X. apresentados sempre soltos em suas performances,
sempre volumosos e descabelados, com exceção da sua derradeira performance
A Cadeira Careca (2004) com coautoria de Ricardo Ventura.
Grasiele Sousa, Cabelódroma X., 2014. Fotografia de Tales Frey
2 Canção “Marquei um X”. Do álbum Xou da Xuxa Sete, lançado em 1992.
performatus.net
4
Antes de prosseguirmos, é válido comentar essa última ação da Márcia
X. em que um exemplar da famosa cadeira “Chaise Longue Model Nr. B 306” de
Le Corbusier foi raspada por dois outros performers enquanto a artista
permanecia sentada sobre a tal cadeira em frente ao Palácio Gustavo Capanema
no Rio de Janeiro. Ao se levantar, o que sobrou por debaixo da artista foi
justamente a sua silhueta composta por cabelos, a qual podemos forçosamente
(ou não) relacionar às composições de Grasiele Sousa quando ela usa seus
longuíssimos fios de cabelo para transformar o seu rosto em uma única silhueta
cabeluda, para dar sentido ao seu “cabelódromo”.
Grasiele Sousa, Cabelódroma X., 2014. Fotografias de Tales Frey
Mas retomemos o risco proposto para que ele não faça tantas curvas.
Logo no início da performance Cabelódroma X., as “artes marciais” já são
performatus.net
5
referidas sagazmente sob o propósito de fazer referência ao trabalho da artista
que é o nosso grande X da questão. Do que seria a movimentação que sustenta
o kung fu, o karatê, o judô, o jiu-jitsu, o muay thai, o taekwondo, entre outras
artes marciais, ela retoma – através de movimentos corporais – o texto Noite de
Artes Marciais, divulgado pela Márcia X. na sua ação Academia Performance
(1987) ao mesmo tempo que (des)penteia os cabelos com uma escova.
Não seria forçoso dizer que a leitura de Grasiele para a performance
Pancake é também uma espécie de cover3, só que, em vez de leite condensado,
ela usa potes abissais de condicionadores capilares e, no lugar de granulados
coloridos, usa pequenas escovas de cabelo de brinquedo multicolores que são
lançadas sobre si. A imagem formada é icônica, pois a referência é ultra-
assumida: a bacia (dentro da qual ela se posiciona), a acomodação dos objetos,
enfim, tudo é estrategicamente organizado de forma similar à performance de
X., tudo é taticamente constituído para que voltemos o nosso olhar à referência.
Por fim, depois de Grasiele construir sobre si um aspecto completamente
repugnante e exibir o contrário da ideia de embelezamento fixada nos produtos
capilares, a artista inicia uma série de poses que aludem a certas imagens
iconográficas como a de Monalisa, de Leonardo Da Vinci, a de Vénus de Milo, de
Botticelli, o topete de Elvis Presley, representações clássicas de Jesus Cristo, a
obra O Grito, de Munch e moicano punk que muita gente já fez no cabelo
enquanto tomava um banho com a cabeça lotada de xampu ou condicionador.
De certa forma, o mesmo universo lúdico-acriançado subvertido por meio
da pilhéria é obtido em Cabelódroma X. para infantilizar o mundo adulto e
erotizar o universo infantil e, também, o X que sublinha o “xuxismo” tão
presente na cultura carioca – e que foi disseminado pela Rede Globo por todo o
Brasil (e seus arredores) nos anos 80 e 90 do século XX – e está presente em
quase todas as obras da Márcia X. que ingressam fundo em questões associadas
ao dito “universo feminino”, sendo performances que a artista chamou de
3 Recentemente tomamos contato com a noção de “cover-performático” proposta pelo artista e pesquisador Henrique Saidel, o que achamos interessante e em certa medida nos motivou a pensar – com algumas ressalvas – na sugestão da reperformance Cabelódroma X. como uma espécie de cover. Ver em: SAIDEL, Henrique. “El ‘Cover’: Antropofagia y ‘Performatividad’”. Investigación Teatral, vol. 6, n. 9, 2016. Ver em: <https://goo.gl/ZmMXSk>. Acessado em 20 de
performatus.net
6
obsessões ligadas à limpeza, alimentação, rotina, religião e beleza. Tais
performances são releituras de rituais de purificação com banhos longuíssimos e
dissolutos (de coca-cola, de sabão em pó, de leite condensado) em que Márcia
achincalha uma suposta identidade feminina e um tal papel sexual da mulher
na sociedade ocidental que a subordina a uma visão (machista/heterocentrada)
externa que faz exigência de um padrão comportamental e estético. E o
“xuxismo” está decisivamente impregnado aí; vejam Xuxa como referencial de
beleza e comportamento para adultXs e crianças em um comercial dos anos 90
do hidratante Monange ou em um exagerado banho de leite em uma banheira
no filme Lua de Cristal (1990).
Grasiele Sousa, Cabelódroma X., 2014. Fotografia de Priscilla Davanzo
dezembro de 2016.
performatus.net
7
Grasiele é certeira em fazer essa junção toda do universo da X. na sua
ação que mantém o seu empenho de criar reperformances com nova roupagem,
mas não ignorando as suas fiéis convicções e problematizações ao substituir o
leite condensado por cremes de cabelo justamente para evidenciar o apelo da
indústria de cosméticos tentando induzir certo consumo sinestésico, ou ainda,
ao utilizar imagens icônicas desconstruídas para borrar as referências de
mulheres objetificadas em representações no decorrer da história da arte.
Risco 2
Já deixou de ser novidade a afirmação de que, no vai e vem arte e vida,
encontramos usos diversos para a palavra performance. Predicado para o carro, o
esportista, o desodorante, a barra de cereal, o xampu, a atitude rockstar. Nome
de estabelecimento. Elogio àquelX que realiza algo considerado extraordinário.
Gênero artístico. Performance-arte: expressão daquelXs que precisam de
testemunhas – e não plateias – para uma demonstração. Notar que se está
diante de uma performance parece uma tarefa mais concreta e estimulante que
chegar a um consenso sobre o seu significado. Toda situação em que
performances geram desconfiança sobre o seu “valor artístico” são apreciadas
por nós. Mantê-la assim, “meio entendida”, “mal compreendida”, “não
assimilada” pode garantir que dia a dia se arrisque uma maneira inusitada de
realizar – reivindicar – algo como performance. Não se delineia com facilidade
essa tal performance, todavia facilmente a vemos associada a “qualquer coisa”.
Regra geral da arte-vida contemporânea: tudo pode ser arte, desde que eu a
apresente – segundo Marcel Duchamp – e você a perceba – segundo Richard
Schechner – como tal. Então, com vocês, as performances do aniversário!
A primeira que nos veio à memória foi a comemoração dos quarenta e
cinco anos do falecido e ex-presidente estadunidense John F. Kennedy. Aquele
em que a moça, capa de revista e estrela de Hollywood Marilyn-blonde-sex-
symbol-Monroe cantou “Happy birthday, mr. president” para o próprio e para
uma plateia que ovacionou tal feito. Certamente, o caráter midiático alcançado
com a performance “corpo e voz de veludo” da diva foi almejado por muitXs
outrXs aniversariantes. Resta saber se houve outra ocasião de maior sucesso
performatus.net
8
que esta. Sabemos que JFK não gozou de algo mais espetacular que a festa
brindada com a canção da amante, dado que o ano seguinte foi o de seu último
aniversário em vida.
Passando para a escala da vida comum, lembramos da performance do
aniversário realizado em um buffet que poderia ser visto como um arremedo
desta ocasião de êxito maior que foi a festa do presidenciável norte-americano.
É no Salão de festas que qualquer um(a), “pessoa comum”, tem seu momento
de destaque neste dia tão importante. TodXs lhe aguardam. Ansiosamente.
Com presentes. Sorrisos. Viva você! Independente do desempenho da equipe
contratada para animar a festa (“Marylin cover”, doceirXs, boleirX,
garçons/garçonetes-coquetel-malabaristas, animadorXs, músicXs, DJ,
palhacinhXs, karaokê etc. etc. etc.), há certo consenso de que nesta data querida
deve-se reluzir uma positividade única, oriunda da certeza de que valeu a pena
nascer, estar vivX, ter saúde, orgulhar-se da pessoa que se é. Parece imperativa
a felicidade e satisfação transmitida com a ação-clichê do apagar as velinhas
fincadas no bolo e fazer um pedido. Não para nós...
Com a ajuda de nossos familiares e, posteriormente, por vontade própria,
levamos adiante esse ritual que não cessará de acontecer. Se assim for – pois
não há como abortar todos os papéis e cenas de um teatro social acordado –,
gostaríamos de pedir que, vez por outra, pudéssemos ser liberados de uma
produção forçada de autoestima no dia em que se faz anos. Por que não
“amarrar um bode” no dia do aniversário? Ou sentir um alívio por ver esse dia
passar em branco? Quem sabe, desviar das obrigações que envolvem o ritual-
clichê-festivo e manter-se porosX a afetos “reais”? Partilhar de um silêncio,
apatia, excitação, indiferença, mix de alegria e tristeza tão prováveis à(ao)
aniversariante do dia. Queremos essas possibilidades para nós.
Essa espécie de “festividade às avessas” que apontamos sugere a
realização de outra party. Não desistimos de celebrar o dia do aniversário,
apenas estamos em busca de algo que nos mobilize desde onde estamos: nem
tão “Happy birthday, mr. president”, menos ainda festa de buffet de quinta. A
seguir, conheceremos o caso do aniversariante que ousou trocar a performance
performatus.net
9
do salão (que lhe dava direito a velinhas e à Marilyn cover) por uma outra “arte
do aniversariar”.
Calda de brigadeiro, granulado colorido, balas, doces, pipocas, dois
corpos em ação. Em uma sala, nós, as testemunhas, vimos tudo acontecer na
performance Indestrutível (2015). Diferentemente da popularidade dos outros
aniversários aqui mencionados – quem não sabia deles? –, este necessita de
maiores detalhes.
Tales Frey, Indestrutível, 2015. Fotografias de Grasiele Sousa
Logo que entramos na sala, ao centro, temos duas figuras. Uma está
apoiada na outra, as cabeças se tocam e duas das quatro mãos seguram um dos
corpos. Em poucos minutos, quem está à frente vai ao chão em queda livre. A
brusca separação elimina quaisquer dúvidas sobre a existência desses seres.
Quem ficou em pé é alguém que se move, respira, é bípede, veste calça, blazer e,
curiosamente, cobriu cabeça, mãos e pés com calda de chocolate e granulado
colorido. Deitado, ficou aquele que apelidamos por bolo de aniversário modelo
silhueta do aniversariante. Não demorou muito tempo para que os dois
performatus.net
10
estivessem novamente juntos como no início. Eles estão em pé e parecem
realizar uma espécie de meditação, ou, pelo menos, uma concentração
preparatória das etapas seguintes desse aniversário.
De súbito, o corpo “sem vontade própria” cai mais uma vez. E é
levantado outra vez. E as cabeças se tocam. A situação é repetida algumas
vezes e, com precisão, o posicionamento ocupado por eles: a pessoa semi black
tie pele de chocolate granulado colorido fica atrás da massa corporal enfeitada
como bolo de festa. Vemos a testa de um encostada na nuca do outro. Uma
delicadeza de encontro que parece querer sintonizar esses dois seres para um
rompimento que logo em seguida acontece.
Quando nascemos há um “corte” extremo, o umbilical. Com uma tesoura
separa-se “criador e criatura” e, aqui, anos depois de nascido, vemos alguém
livrar-se festivamente de uma parte de si mesmo. Nomes aos bois: Tales Frey
pele calda de chocolate granulado fez de seu 33º aniversário um evento para
destruir publicamente uma versão de si. Talvez, aquela que concentrava em
peso, tamanho e sabores um espaço que virtualmente precisava ser arejado para
que a vida se atualize, com novos desafios, problemas – nem bom, nem mau – a
serem vividos. O artista, ao criar um modelo de si feito de tantas cores e sabores
próprios das festas de aniversário infantil, não deixava dúvidas aos presentes
que algo ali remetia a uma comemoração, um tanto quanto esquisita, todavia,
aceitável. A audiência ficou até o fim.
Depois de algumas idas e vindas ao chão, o Tales boneco partiu ao meio
e, a essa altura, não havia cabeças que se conectassem como no começo. De
uma prática aparentemente cerebral, contida, programada, passamos à outra
toda gesto, puro movimento externalizado. Tudo assumia uma intensidade que
não tinha volta, o caminho era destruir aquele “modelo de si”. E, assim, depois
do corpo partido ao meio, vieram braços, cabeça e pernas soltas. Aos poucos,
não era mais identificável o corpo humano, conforme a escola nos ensina:
cabeça, tronco e membros, cada parte no seu lugar.
Essa estranha matéria em decomposição, à medida que era rasgada,
batida com certa violência contra o solo, jorrava de dentro de si doces e
guloseimas que se espalhavam por todo o espaço. Envoltos por uma atmosfera
performatus.net
11
literalmente doce, não demorou muito para que xs “convidadXs” dessa festa
começassem a recolher os destroços desse doce corpo para comer. Claro que as
crianças estavam conosco e, quem sabe, Cosme e Damião também!
Tales Frey, Indestrutível, 2015. Fotografias de Grasiele Sousa
performatus.net
12
MuitXs de nós, provavelmente, conhecemos a “pichorra” ou pinhata,
uma típica brincadeira de aniversário mexicana que consiste em ficar de olhos
vendados e, com a ajuda de um bastão, conseguir quebrar uma estrela de cinco
pontas feita de papel e recheada de doces e frutas. No momento em que os
docinhos caem da pichorra as crianças saem em disparada para pegá-los. É uma
aventura! E Tales, performer que é, ao liberar os docinhos daquele “corpo que
não lhe pertencia mais”, desafiou os presentes a canibalizarem essa ação de
aniversariar, assim como acontece com o evento da pichorra. De que maneira?
Quem dali comeu ou levou para casa um docinho, assumiu o compromisso de
testemunhar sobre esse acontecimento.
Em seu livro A Inconstância da Alma Selvagem, o antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro apresenta uma leitura pioneira sobre a “função” do ato de
comer o(a) inimigX para algumas tribos ameríndias tropicais. Alimentar-se do
corpo de um(a) oponente é um ato de reconhecimento de suas qualidades. O(a)
inimigX de “carne e osso” morre, todavia seu “espírito” é incorporado por
seu(s)/sua(s) executor(es)/executora(s) com a prática de canibalização. Ao
contrário de certo horror, ou ainda, percepção desumana, que muitos concluíram
sobre este costume, Viveiros o vê como um elogio à força que possui alguém
estranho a si.4
Buscamos, nesta breve passagem acerca de um detalhado e longo
estudo sobre o que viria a ser um modo de vida bastante original5, em relação ao
que ocidentais e povos ocidentalizados convencionaram para si – na maioria das
vezes por imposição – como humano, uma aproximação com o ato de comer que
realizamos na festa-performance de Tales. AlimentadXs como fomos pelos
pedaços de seu corpo-festa, acabamos por “incorporar” uma certa força – ou
ousadia! – diante do que performar na data do aniversário. Tudo bem se for
qualquer coisa, inclusive uma que decepcione, que seja estranha ou
incomodamente lúdica. É uma escolha e cada um(a) que comeu desta carne-
guloseima carrega consigo alguma sensibilidade para testemunhar o aniversário
4 Ver em: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 5 Em relação ao que ocidentais e povos ocidentalizados, na maioria das vezes por imposição,
performatus.net
13
e a performance de outrXs inusitados seres que desviam com alegria do festejo
“mr. presidente” e do bufê.
Ressaltaria também que o ato de comer o(a) “inimigX”, como propõe
Viveiros de Castro, foi praticado primeiramente pelo aniversariante. Lembro que,
num dos registros da performance Pancake de Márcia X., uma criança é vista
provando do leite condensado misturado aos granulados de bolo que a artista
derrubava sobre si. Era uma situação possível: degustar para deglutir poesia.
Alguns anos depois daquela pequena ter se deliciado com a performance
Pancake, Tales se “maquiou” com a mesma matéria doce para comemorar o seu
33o aniversário. A mistura do granulado com a calda de chocolate e leite
condensado que o performer passou sobre a sua face, mãos, pés e corpo do
boneco pode ser uma ordinária mistura para cobrir um bolo como também uma
extraordinária cobertura para o corpo como propôs Márcia X. na performance
referida. Para levar adiante a “esquisita” força de Márcia X., Tales canibalizou a
sua pele-cobertura presente em Pancake. E o que ele fez com ela, ao meu ver,
foi inventar novas bases para o ato de aniversariar. AquelXs que foram audiência
de Indestrutível (2015), que se lambuzaram com sua poesia, sabem disso.
Ressalto que performar o próprio aniversário é algo que Tales coloca em
prática desde 2013, quando assumiu o compromisso de realizar ações desse tipo
até o final de sua vida. Curiosamente, a primeira performance desta série ainda
sem previsão de término – viva! –, intitulada Proxim(a)idade, aconteceu a partir
da exposição pública do performer coberto por leite condensado e granulados de
festa em um “casulo” montado a partir de fitas trançadas em X. Sim, o X de
Márcia já era citado em 2013 por Tales e “marcado em seu coração” muito tempo
antes; prova disso é o resultado de sua pesquisa de mestrado6 dedicada ao
trabalho dessa artista. Do aniversariante do casulo ao destruidor de uma versão
de si, vejo que este amigo e performer que tanto admiro inventou novas bases
para o ato de aniversariar, algo que considero mais interessante para realizar
durante a vida que a dedicação a um projeto fúnebre de si, tal qual nossa avó da
convencionaram para si como humano. 6 FREY, Tales. Discursos cr ít icos através da poética visual de Márcia X. Jundiaí: Paco Editorial, 2013.
performatus.net
14
performance recentemente nos propôs. Viva a alegria que sempre é a prova dos
nove!
O X da Multiplicação
Aplicado o Pancake de Márcia X. em nosso corpo – seja para retomarmos
os rituais de embelezamento como uso da maquiagem, seja para sugerirmos os
elementos utilizados nos preparativos de doces ou até mesmo do bolo (cake) de
festas infantis – instituímos as inegáveis reverberação de X tanto em um risco
como em outro.
A “maquiagem” fascinante e asquerosa de Márcia tem o poder de ilustrar
tanto o concorrido doce da festa de aniversário quanto a deformação causada pelo
excesso de maquilagem e, nos dois riscos aqui apontados para constituirmos o
nosso X, podemos enxergar construções monstruosas, repugnantes, bem como,
de forma inversa, composições demasiadamente atraentes (no sentido sexual
que se refere à prática intitulada “bukkake” ou no fascínio do doce, cake, ou
ainda, da pintura que auxilia no embelezamento da pele). Em Cabelódroma X. e
em Indestrutível (assim como em Pancake), o jogo é dúbio quando as imagens
das ações são apresentadas: há humor e há terror, há atratividade e repulsa,
prazer e desprazer, entre outros vários antônimos.
Se em Indestrutível, além da própria especulação sobre a imortalidade
por meio da recombinação da matéria, a permanência é acionada, em
Cabelódroma X. a continuidade de um discurso que ainda faz imenso sentido é
incontestavelmente ratificado. Retomar Márcia X. e dilatar a sua obra para
ressignificá-la depois de pouco mais de uma década é prova de que a sua
produção é superabundante de simbologias ainda contemporâneas e, nesse
sentido, perene agora e, provavelmente, será ainda para a posteridade.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FREY, Tales; SOUSA, Grasiele (Grasiele Cabelódroma). “Com Dois Riscos,
Escrevemos X”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017.
ISSN: 2316-8102.
performatus.net
15
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2017 eRevista Performatus e xs autorxs