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performatus.net 1 Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017 ISSN 2316-8102 Com Dois Riscos, Escrevemos X Grasiele Sousa a.k.a. Grasiele Cabelódroma e Tales Frey Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que esta é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um conhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados. 1 Pré-risco ou o esboço do X no caderno de caligrafia Márcia X., Pancake , 2001 1 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia , Vol. 1 . São Paulo: Editora 34, 1995, p. 11.

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Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017

ISSN 2316-8102

Com Dois Riscos, Escrevemos X

Grasiele Sousa a.k.a. Grasiele Cabelódroma e Tales Frey

Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que esta é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um conhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados.1

Pré-risco ou o esboço do X no caderno de caligrafia

Márcia X., Pancake, 2001

1 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capital ismo e Esquizofrenia, Vol. 1 . São Paulo: Editora 34, 1995, p. 11.

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Como um leve traçado, antes propriamente de ele se tornar um risco,

antes de propagarmos uma arriscada ousadia e antes de tracejarmos uma noção

mais clara do que é pretendido com este escrito, assumimos que a primeira

pessoa do plural admitida aqui neste texto é fatalmente uma conexão de duas

mãos (de diferentes artistas) a riscarem as linhas – mas não esqueçamos que

vários segmentos de reta formam curvas, o que sempre nos agrada – para

atingirem o X da mesma questão: a avaliação de como um dos trabalhos da

artista carioca Márcia X. (1959-2005) está presente em uma criação específica de

cada um(a) de nós.

O X abordado não é uma incógnita; é um X que multiplica, que distribui,

que alastra, que espalha, expande.

Imaginemos Márcia como o centro de um X e as extremidades dessa

letra como disseminações a partir desse mesmo centro. Logo, o nosso trabalho –

cada um(a) formando um risco, uma barra sobreposta a uma contrabarra – é

capaz de resgatar um mesmo cerne existente a partir do cruzamento dos dois;

um ponto em comum. Essa noção é mais eficaz do que se imaginássemos um X

sobre o outro, o que formaria um asterisco e indicaria, assim, uma lacuna ou

omissão de trecho numa citação ou transcrição, afinal o tal X da questão

levantada é delineado por duas pessoas justamente para mencionarmos o X

pertencente ao nome de uma terceira, precisamente a que nos serviu de

inspiração em algum(alguns) aspecto(s).

Com esses nossos dois riscos – cada um(a) riscando do seu próprio jeito

sobre o risco dX outrX e cada risco referindo-se ao(à) outrX em terceira pessoa –,

arriscamos a escrita de um X que merece ser especulado e esmiuçado para que

outros cruzamentos se formem, para que esse nosso X não seja único e que o X

inaugural não culmine num ponto final.

Risco 1

Marquei um X, um X, um X no seu coração Pra você nunca me esquecer

Não vai me esquecer, juro que não2

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Pancake (2001) é o nome da performance de Márcia X. em que ela se

banhava com diversas latas gigantes de leite condensado e que, por fim, jogava

sobre si, com auxílio de uma peneira enorme, alguns quilos de granulados

coloridos. Essa é a ação específica que motivou Grasiele Sousa a criar uma

intertextualidade com a tal obra através de Cabelódroma X. (2014), performance

pela qual a artista retoma, inclusive, diversos dos seus trabalhos pessoais, mas

que, nessa configuração, são referidos em cruzamento com os de Márcia X.

Para começar o meu risco (que se cruza com o dela), podemos ver o

cabelo de Grasiele Cabelódroma como o “dromo” do seu “não drama”, ou seja,

como o seu lugar de ponderação, como o seu espaço de imaginação, o qual,

indubitavelmente, em aspectos formais, coincide com os longos cabelos

revoltosos de Márcia X. apresentados sempre soltos em suas performances,

sempre volumosos e descabelados, com exceção da sua derradeira performance

A Cadeira Careca (2004) com coautoria de Ricardo Ventura.

Grasiele Sousa, Cabelódroma X., 2014. Fotografia de Tales Frey

2 Canção “Marquei um X”. Do álbum Xou da Xuxa Sete, lançado em 1992.

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Antes de prosseguirmos, é válido comentar essa última ação da Márcia

X. em que um exemplar da famosa cadeira “Chaise Longue Model Nr. B 306” de

Le Corbusier foi raspada por dois outros performers enquanto a artista

permanecia sentada sobre a tal cadeira em frente ao Palácio Gustavo Capanema

no Rio de Janeiro. Ao se levantar, o que sobrou por debaixo da artista foi

justamente a sua silhueta composta por cabelos, a qual podemos forçosamente

(ou não) relacionar às composições de Grasiele Sousa quando ela usa seus

longuíssimos fios de cabelo para transformar o seu rosto em uma única silhueta

cabeluda, para dar sentido ao seu “cabelódromo”.

Grasiele Sousa, Cabelódroma X., 2014. Fotografias de Tales Frey

Mas retomemos o risco proposto para que ele não faça tantas curvas.

Logo no início da performance Cabelódroma X., as “artes marciais” já são

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referidas sagazmente sob o propósito de fazer referência ao trabalho da artista

que é o nosso grande X da questão. Do que seria a movimentação que sustenta

o kung fu, o karatê, o judô, o jiu-jitsu, o muay thai, o taekwondo, entre outras

artes marciais, ela retoma – através de movimentos corporais – o texto Noite de

Artes Marciais, divulgado pela Márcia X. na sua ação Academia Performance

(1987) ao mesmo tempo que (des)penteia os cabelos com uma escova.

Não seria forçoso dizer que a leitura de Grasiele para a performance

Pancake é também uma espécie de cover3, só que, em vez de leite condensado,

ela usa potes abissais de condicionadores capilares e, no lugar de granulados

coloridos, usa pequenas escovas de cabelo de brinquedo multicolores que são

lançadas sobre si. A imagem formada é icônica, pois a referência é ultra-

assumida: a bacia (dentro da qual ela se posiciona), a acomodação dos objetos,

enfim, tudo é estrategicamente organizado de forma similar à performance de

X., tudo é taticamente constituído para que voltemos o nosso olhar à referência.

Por fim, depois de Grasiele construir sobre si um aspecto completamente

repugnante e exibir o contrário da ideia de embelezamento fixada nos produtos

capilares, a artista inicia uma série de poses que aludem a certas imagens

iconográficas como a de Monalisa, de Leonardo Da Vinci, a de Vénus de Milo, de

Botticelli, o topete de Elvis Presley, representações clássicas de Jesus Cristo, a

obra O Grito, de Munch e moicano punk que muita gente já fez no cabelo

enquanto tomava um banho com a cabeça lotada de xampu ou condicionador.

De certa forma, o mesmo universo lúdico-acriançado subvertido por meio

da pilhéria é obtido em Cabelódroma X. para infantilizar o mundo adulto e

erotizar o universo infantil e, também, o X que sublinha o “xuxismo” tão

presente na cultura carioca – e que foi disseminado pela Rede Globo por todo o

Brasil (e seus arredores) nos anos 80 e 90 do século XX – e está presente em

quase todas as obras da Márcia X. que ingressam fundo em questões associadas

ao dito “universo feminino”, sendo performances que a artista chamou de

3 Recentemente tomamos contato com a noção de “cover-performático” proposta pelo artista e pesquisador Henrique Saidel, o que achamos interessante e em certa medida nos motivou a pensar – com algumas ressalvas – na sugestão da reperformance Cabelódroma X. como uma espécie de cover. Ver em: SAIDEL, Henrique. “El ‘Cover’: Antropofagia y ‘Performatividad’”. Investigación Teatral, vol. 6, n. 9, 2016. Ver em: <https://goo.gl/ZmMXSk>. Acessado em 20 de

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obsessões ligadas à limpeza, alimentação, rotina, religião e beleza. Tais

performances são releituras de rituais de purificação com banhos longuíssimos e

dissolutos (de coca-cola, de sabão em pó, de leite condensado) em que Márcia

achincalha uma suposta identidade feminina e um tal papel sexual da mulher

na sociedade ocidental que a subordina a uma visão (machista/heterocentrada)

externa que faz exigência de um padrão comportamental e estético. E o

“xuxismo” está decisivamente impregnado aí; vejam Xuxa como referencial de

beleza e comportamento para adultXs e crianças em um comercial dos anos 90

do hidratante Monange ou em um exagerado banho de leite em uma banheira

no filme Lua de Cristal (1990).

Grasiele Sousa, Cabelódroma X., 2014. Fotografia de Priscilla Davanzo

dezembro de 2016.

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Grasiele é certeira em fazer essa junção toda do universo da X. na sua

ação que mantém o seu empenho de criar reperformances com nova roupagem,

mas não ignorando as suas fiéis convicções e problematizações ao substituir o

leite condensado por cremes de cabelo justamente para evidenciar o apelo da

indústria de cosméticos tentando induzir certo consumo sinestésico, ou ainda,

ao utilizar imagens icônicas desconstruídas para borrar as referências de

mulheres objetificadas em representações no decorrer da história da arte.

Risco 2

Já deixou de ser novidade a afirmação de que, no vai e vem arte e vida,

encontramos usos diversos para a palavra performance. Predicado para o carro, o

esportista, o desodorante, a barra de cereal, o xampu, a atitude rockstar. Nome

de estabelecimento. Elogio àquelX que realiza algo considerado extraordinário.

Gênero artístico. Performance-arte: expressão daquelXs que precisam de

testemunhas – e não plateias – para uma demonstração. Notar que se está

diante de uma performance parece uma tarefa mais concreta e estimulante que

chegar a um consenso sobre o seu significado. Toda situação em que

performances geram desconfiança sobre o seu “valor artístico” são apreciadas

por nós. Mantê-la assim, “meio entendida”, “mal compreendida”, “não

assimilada” pode garantir que dia a dia se arrisque uma maneira inusitada de

realizar – reivindicar – algo como performance. Não se delineia com facilidade

essa tal performance, todavia facilmente a vemos associada a “qualquer coisa”.

Regra geral da arte-vida contemporânea: tudo pode ser arte, desde que eu a

apresente – segundo Marcel Duchamp – e você a perceba – segundo Richard

Schechner – como tal. Então, com vocês, as performances do aniversário!

A primeira que nos veio à memória foi a comemoração dos quarenta e

cinco anos do falecido e ex-presidente estadunidense John F. Kennedy. Aquele

em que a moça, capa de revista e estrela de Hollywood Marilyn-blonde-sex-

symbol-Monroe cantou “Happy birthday, mr. president” para o próprio e para

uma plateia que ovacionou tal feito. Certamente, o caráter midiático alcançado

com a performance “corpo e voz de veludo” da diva foi almejado por muitXs

outrXs aniversariantes. Resta saber se houve outra ocasião de maior sucesso

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que esta. Sabemos que JFK não gozou de algo mais espetacular que a festa

brindada com a canção da amante, dado que o ano seguinte foi o de seu último

aniversário em vida.

Passando para a escala da vida comum, lembramos da performance do

aniversário realizado em um buffet que poderia ser visto como um arremedo

desta ocasião de êxito maior que foi a festa do presidenciável norte-americano.

É no Salão de festas que qualquer um(a), “pessoa comum”, tem seu momento

de destaque neste dia tão importante. TodXs lhe aguardam. Ansiosamente.

Com presentes. Sorrisos. Viva você! Independente do desempenho da equipe

contratada para animar a festa (“Marylin cover”, doceirXs, boleirX,

garçons/garçonetes-coquetel-malabaristas, animadorXs, músicXs, DJ,

palhacinhXs, karaokê etc. etc. etc.), há certo consenso de que nesta data querida

deve-se reluzir uma positividade única, oriunda da certeza de que valeu a pena

nascer, estar vivX, ter saúde, orgulhar-se da pessoa que se é. Parece imperativa

a felicidade e satisfação transmitida com a ação-clichê do apagar as velinhas

fincadas no bolo e fazer um pedido. Não para nós...

Com a ajuda de nossos familiares e, posteriormente, por vontade própria,

levamos adiante esse ritual que não cessará de acontecer. Se assim for – pois

não há como abortar todos os papéis e cenas de um teatro social acordado –,

gostaríamos de pedir que, vez por outra, pudéssemos ser liberados de uma

produção forçada de autoestima no dia em que se faz anos. Por que não

“amarrar um bode” no dia do aniversário? Ou sentir um alívio por ver esse dia

passar em branco? Quem sabe, desviar das obrigações que envolvem o ritual-

clichê-festivo e manter-se porosX a afetos “reais”? Partilhar de um silêncio,

apatia, excitação, indiferença, mix de alegria e tristeza tão prováveis à(ao)

aniversariante do dia. Queremos essas possibilidades para nós.

Essa espécie de “festividade às avessas” que apontamos sugere a

realização de outra party. Não desistimos de celebrar o dia do aniversário,

apenas estamos em busca de algo que nos mobilize desde onde estamos: nem

tão “Happy birthday, mr. president”, menos ainda festa de buffet de quinta. A

seguir, conheceremos o caso do aniversariante que ousou trocar a performance

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do salão (que lhe dava direito a velinhas e à Marilyn cover) por uma outra “arte

do aniversariar”.

Calda de brigadeiro, granulado colorido, balas, doces, pipocas, dois

corpos em ação. Em uma sala, nós, as testemunhas, vimos tudo acontecer na

performance Indestrutível (2015). Diferentemente da popularidade dos outros

aniversários aqui mencionados – quem não sabia deles? –, este necessita de

maiores detalhes.

Tales Frey, Indestrutível, 2015. Fotografias de Grasiele Sousa

Logo que entramos na sala, ao centro, temos duas figuras. Uma está

apoiada na outra, as cabeças se tocam e duas das quatro mãos seguram um dos

corpos. Em poucos minutos, quem está à frente vai ao chão em queda livre. A

brusca separação elimina quaisquer dúvidas sobre a existência desses seres.

Quem ficou em pé é alguém que se move, respira, é bípede, veste calça, blazer e,

curiosamente, cobriu cabeça, mãos e pés com calda de chocolate e granulado

colorido. Deitado, ficou aquele que apelidamos por bolo de aniversário modelo

silhueta do aniversariante. Não demorou muito tempo para que os dois

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estivessem novamente juntos como no início. Eles estão em pé e parecem

realizar uma espécie de meditação, ou, pelo menos, uma concentração

preparatória das etapas seguintes desse aniversário.

De súbito, o corpo “sem vontade própria” cai mais uma vez. E é

levantado outra vez. E as cabeças se tocam. A situação é repetida algumas

vezes e, com precisão, o posicionamento ocupado por eles: a pessoa semi black

tie pele de chocolate granulado colorido fica atrás da massa corporal enfeitada

como bolo de festa. Vemos a testa de um encostada na nuca do outro. Uma

delicadeza de encontro que parece querer sintonizar esses dois seres para um

rompimento que logo em seguida acontece.

Quando nascemos há um “corte” extremo, o umbilical. Com uma tesoura

separa-se “criador e criatura” e, aqui, anos depois de nascido, vemos alguém

livrar-se festivamente de uma parte de si mesmo. Nomes aos bois: Tales Frey

pele calda de chocolate granulado fez de seu 33º aniversário um evento para

destruir publicamente uma versão de si. Talvez, aquela que concentrava em

peso, tamanho e sabores um espaço que virtualmente precisava ser arejado para

que a vida se atualize, com novos desafios, problemas – nem bom, nem mau – a

serem vividos. O artista, ao criar um modelo de si feito de tantas cores e sabores

próprios das festas de aniversário infantil, não deixava dúvidas aos presentes

que algo ali remetia a uma comemoração, um tanto quanto esquisita, todavia,

aceitável. A audiência ficou até o fim.

Depois de algumas idas e vindas ao chão, o Tales boneco partiu ao meio

e, a essa altura, não havia cabeças que se conectassem como no começo. De

uma prática aparentemente cerebral, contida, programada, passamos à outra

toda gesto, puro movimento externalizado. Tudo assumia uma intensidade que

não tinha volta, o caminho era destruir aquele “modelo de si”. E, assim, depois

do corpo partido ao meio, vieram braços, cabeça e pernas soltas. Aos poucos,

não era mais identificável o corpo humano, conforme a escola nos ensina:

cabeça, tronco e membros, cada parte no seu lugar.

Essa estranha matéria em decomposição, à medida que era rasgada,

batida com certa violência contra o solo, jorrava de dentro de si doces e

guloseimas que se espalhavam por todo o espaço. Envoltos por uma atmosfera

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literalmente doce, não demorou muito para que xs “convidadXs” dessa festa

começassem a recolher os destroços desse doce corpo para comer. Claro que as

crianças estavam conosco e, quem sabe, Cosme e Damião também!

Tales Frey, Indestrutível, 2015. Fotografias de Grasiele Sousa

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MuitXs de nós, provavelmente, conhecemos a “pichorra” ou pinhata,

uma típica brincadeira de aniversário mexicana que consiste em ficar de olhos

vendados e, com a ajuda de um bastão, conseguir quebrar uma estrela de cinco

pontas feita de papel e recheada de doces e frutas. No momento em que os

docinhos caem da pichorra as crianças saem em disparada para pegá-los. É uma

aventura! E Tales, performer que é, ao liberar os docinhos daquele “corpo que

não lhe pertencia mais”, desafiou os presentes a canibalizarem essa ação de

aniversariar, assim como acontece com o evento da pichorra. De que maneira?

Quem dali comeu ou levou para casa um docinho, assumiu o compromisso de

testemunhar sobre esse acontecimento.

Em seu livro A Inconstância da Alma Selvagem, o antropólogo Eduardo

Viveiros de Castro apresenta uma leitura pioneira sobre a “função” do ato de

comer o(a) inimigX para algumas tribos ameríndias tropicais. Alimentar-se do

corpo de um(a) oponente é um ato de reconhecimento de suas qualidades. O(a)

inimigX de “carne e osso” morre, todavia seu “espírito” é incorporado por

seu(s)/sua(s) executor(es)/executora(s) com a prática de canibalização. Ao

contrário de certo horror, ou ainda, percepção desumana, que muitos concluíram

sobre este costume, Viveiros o vê como um elogio à força que possui alguém

estranho a si.4

Buscamos, nesta breve passagem acerca de um detalhado e longo

estudo sobre o que viria a ser um modo de vida bastante original5, em relação ao

que ocidentais e povos ocidentalizados convencionaram para si – na maioria das

vezes por imposição – como humano, uma aproximação com o ato de comer que

realizamos na festa-performance de Tales. AlimentadXs como fomos pelos

pedaços de seu corpo-festa, acabamos por “incorporar” uma certa força – ou

ousadia! – diante do que performar na data do aniversário. Tudo bem se for

qualquer coisa, inclusive uma que decepcione, que seja estranha ou

incomodamente lúdica. É uma escolha e cada um(a) que comeu desta carne-

guloseima carrega consigo alguma sensibilidade para testemunhar o aniversário

4 Ver em: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 5 Em relação ao que ocidentais e povos ocidentalizados, na maioria das vezes por imposição,

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e a performance de outrXs inusitados seres que desviam com alegria do festejo

“mr. presidente” e do bufê.

Ressaltaria também que o ato de comer o(a) “inimigX”, como propõe

Viveiros de Castro, foi praticado primeiramente pelo aniversariante. Lembro que,

num dos registros da performance Pancake de Márcia X., uma criança é vista

provando do leite condensado misturado aos granulados de bolo que a artista

derrubava sobre si. Era uma situação possível: degustar para deglutir poesia.

Alguns anos depois daquela pequena ter se deliciado com a performance

Pancake, Tales se “maquiou” com a mesma matéria doce para comemorar o seu

33o aniversário. A mistura do granulado com a calda de chocolate e leite

condensado que o performer passou sobre a sua face, mãos, pés e corpo do

boneco pode ser uma ordinária mistura para cobrir um bolo como também uma

extraordinária cobertura para o corpo como propôs Márcia X. na performance

referida. Para levar adiante a “esquisita” força de Márcia X., Tales canibalizou a

sua pele-cobertura presente em Pancake. E o que ele fez com ela, ao meu ver,

foi inventar novas bases para o ato de aniversariar. AquelXs que foram audiência

de Indestrutível (2015), que se lambuzaram com sua poesia, sabem disso.

Ressalto que performar o próprio aniversário é algo que Tales coloca em

prática desde 2013, quando assumiu o compromisso de realizar ações desse tipo

até o final de sua vida. Curiosamente, a primeira performance desta série ainda

sem previsão de término – viva! –, intitulada Proxim(a)idade, aconteceu a partir

da exposição pública do performer coberto por leite condensado e granulados de

festa em um “casulo” montado a partir de fitas trançadas em X. Sim, o X de

Márcia já era citado em 2013 por Tales e “marcado em seu coração” muito tempo

antes; prova disso é o resultado de sua pesquisa de mestrado6 dedicada ao

trabalho dessa artista. Do aniversariante do casulo ao destruidor de uma versão

de si, vejo que este amigo e performer que tanto admiro inventou novas bases

para o ato de aniversariar, algo que considero mais interessante para realizar

durante a vida que a dedicação a um projeto fúnebre de si, tal qual nossa avó da

convencionaram para si como humano. 6 FREY, Tales. Discursos cr ít icos através da poética visual de Márcia X. Jundiaí: Paco Editorial, 2013.

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performance recentemente nos propôs. Viva a alegria que sempre é a prova dos

nove!

O X da Multiplicação

Aplicado o Pancake de Márcia X. em nosso corpo – seja para retomarmos

os rituais de embelezamento como uso da maquiagem, seja para sugerirmos os

elementos utilizados nos preparativos de doces ou até mesmo do bolo (cake) de

festas infantis – instituímos as inegáveis reverberação de X tanto em um risco

como em outro.

A “maquiagem” fascinante e asquerosa de Márcia tem o poder de ilustrar

tanto o concorrido doce da festa de aniversário quanto a deformação causada pelo

excesso de maquilagem e, nos dois riscos aqui apontados para constituirmos o

nosso X, podemos enxergar construções monstruosas, repugnantes, bem como,

de forma inversa, composições demasiadamente atraentes (no sentido sexual

que se refere à prática intitulada “bukkake” ou no fascínio do doce, cake, ou

ainda, da pintura que auxilia no embelezamento da pele). Em Cabelódroma X. e

em Indestrutível (assim como em Pancake), o jogo é dúbio quando as imagens

das ações são apresentadas: há humor e há terror, há atratividade e repulsa,

prazer e desprazer, entre outros vários antônimos.

Se em Indestrutível, além da própria especulação sobre a imortalidade

por meio da recombinação da matéria, a permanência é acionada, em

Cabelódroma X. a continuidade de um discurso que ainda faz imenso sentido é

incontestavelmente ratificado. Retomar Márcia X. e dilatar a sua obra para

ressignificá-la depois de pouco mais de uma década é prova de que a sua

produção é superabundante de simbologias ainda contemporâneas e, nesse

sentido, perene agora e, provavelmente, será ainda para a posteridade.

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales; SOUSA, Grasiele (Grasiele Cabelódroma). “Com Dois Riscos,

Escrevemos X”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017.

ISSN: 2316-8102.

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Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e xs autorxs