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Marco Antonio Gusmão Bonelli A LIBERDADE CRISTÃ EM SANTO AGOSTINHO E JUAN LUIS SEGUNDO: confronto entre duas visões da liberdade e suas implicações para a vida cristã nos dias de hoje Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teologia do Departamento de Teologia da PUC-Rio, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia. Orientador: Professor Dr. Alfonso García Rubio Rio de Janeiro, março de 2008

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Marco Antonio Gusmão Bonelli

A LIBERDADE CRISTÃ EM SANTO AGOSTINHO E JUAN

LUIS SEGUNDO: confronto entre duas visões da liberdade e

suas implicações para a vida cristã nos dias de hoje

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teologia do Departamento de Teologia da PUC-Rio, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia.

Orientador: Professor Dr. Alfonso García Rubio

Rio de Janeiro, março de 2008

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Marco Antonio Gusmão Bonelli

A Liberdade Cristã em Santo Agostinho e Juan Luis

Segundo: confronto entre duas visões da liberdade e suas

implicações para a vida cristã nos dias de hoje

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Alfonso García Rubio Orientador

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Mário de França Miranda Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Paulo Cezar Costa Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Francisco Evaristo Marcos Instituto Teológico-Pastoral do Ceará

Prof. Afonso Tadeu Murad Instituto Santo Tomás de Aquino-MG

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa

do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 12 de março de 2008

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor e do orientador.

Marco Antonio Gusmão Bonelli

Graduou-se em Ciências Sociais pela UFRJ. Concluiu os cursos de bacharelado, mestrado e doutorado em Teologia, todos pela PUC-Rio. Leciona disciplinas na área de cultura religiosa na PUC-Rio. Atua também em assessorias, aulas e seminários nos cursos de teologia do Centro Loyola de Fé e Cultura e no Curso de Teologia à Distância da PUC-Rio.

Ficha Catalográfica CDD: 200

Bonelli, Marco Antonio Gusmão A liberdade cristã em Santo Agostinho e Juan Luis Segundo : confronto entre duas visões da liberdade e suas implicações para a vida cristã nos dias de hoje / Marco Antonio Gusmão Bonelli ; orientador: Alfonso García Rubio. – 2008. 279 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Liberdade. 3. Santo Agostinho. 4. Segundo, Juan Luis. 5. Antropologia teológica. 6. Salvação. 7. Fé cristã. I. García Rubio, Alfonso. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

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Agradecimentos

- A Deus pelo dom da minha vida e por tudo que ela me proporcionou.

- Ao professor Alfonso García Rubio pela orientação diligente e qualificada.

- A meu pai, Juarez e a sua esposa, Arlete, por todo o “apoio logístico”, na

aquisição de livros, na impressão do texto e, sobretudo, pelo apoio afetivo.

- A minha mãe, Isa, que além de ajudar na digitação e na tradução de alguns

textos em língua estrangeira, rezou tantas vezes pelo meu êxito.

- A meus irmãos José Juarez, Maria da Glória, Maria Cristina, Ricardo e Carlos

Henrique pelo carinho e pela amizade.

- A Tarcísia Gomes de Freitas que com muito amor me apoiou nos momentos

difíceis e soube suportar os momentos em que tive que me isolar para estudar,

privando-a da companhia que um bom namorado deve oferecer a sua amada.

- A Noemia Real pela colaboração com as traduções em língua francesa

- Aos amigos Carlos Henrique Menditti, André Botelho, Maria Carmen Avelar,

Lúcio Cirne, Cássia Tavares e Maria Jandira Lima pela troca de idéias e correções

que ajudaram a melhorar o texto.

- Aos professores do Departamento de Teologia da PUC-Rio por todo o

aprendizado da teologia e da vida que me possibilitaram

- Aos professores membros da banca examinadora pela análise atenta do texto.

- Às secretárias do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que com seu trabalho

apoiaram minha vida acadêmica na universidade.

- À FAPERJ, pela bolsa de estudos imprescindível à realização da tese.

- À PUC-Rio, pelo valioso apoio institucional.

- Aos meus alunos no Curso de Teologia a Distância da PUC-Rio e no Curso de

Teologia do Centro Loyola de Fé e Cultura, pela oportunidade que me dão de

aprender e ensinar ao mesmo tempo, num ambiente fraterno e de oração.

- A Deise F. H. Costabile, Maria Luiza Amarante e Virgínia Taketani, que depois

de terem sido minhas alunas se tornaram companheiras de estudo com quem

discuti alguns dos temas tratados na tese.

- A todos os amigos que me apoiaram e rezaram pelo meu êxito na tese.

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Resumo

Bonelli, Marco Antonio Gusmão; Rubio, Alfonso García (orientador). A Liberdade Cristã em Santo Agostinho e Juan Luis Segundo: confronto entre duas visões da liberdade e suas implicações para a vida cristã nos dias de hoje. Rio de Janeiro, 2008. 279 p. Tese de Doutorado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O objetivo desta tese é fazer uma análise comparativa entre as concepções

da liberdade presentes nos pensamentos teológicos de santo Agostinho e Juan

Luis Segundo. Ao abordar esse tema, Agostinho o relaciona com a necessidade de

superar o pecado, com o auxílio da graça divina estimulando o livre arbítrio. Já

Juan Luis Segundo enfatiza as mediações históricas, sociais, políticas e culturais,

necessárias para a vivência da liberdade. Em sua opinião, é através da interação

com estas mediações, que o ser humano constrói a si mesmo como ser livre, num

diálogo sincero consigo mesmo e com Deus. Por isso, é oportuno estudar

comparativamente as obras desses autores, pois os resultados da pesquisa poderão

oferecer orientações muito úteis para a vivência da fé cristã nos dias de hoje.

Palavras-chave

Liberdade; fé cristã; santo Agostinho, Juan Luis Segundo; antropologia

teológica;

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Résumé

Bonelli, Marco Antonio Gusmão; Rubio, Alfonso García (orientation), La Liberté Chrétienne chez Saint Augustin et Juan Luis Segundo: confrontation entre deux conceptions de la liberté et leurs implications dans la vie chrétienne de nos jours , Rio de Janeiro, 2008. 279 p. Thèse du Doctotrat – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Le but de cette thèse est de faire une analyse comparative entre les

conceptions de la liberté qui se présentent dans la pensée théologique de s.

Augustin et dans celle de Juan Luis Segundo. En analysant ce thème, Augustin en

fait un rapport au besoin de dépasser le péché, à l’aide de la grâce de Dieu en

stimulant le libre arbitre. D’autre part, J. L. Segundo s’appuye sur les médiations

historiques, sociales, politiques et culturales nécessaire pour que l’on puisse vivre

la liberté. À son avis, c’est à travers l’interaction avec ces médiations que l’être

humain, lui-même, se costruit comme un être libre, en pratiquant un dialogue

sincère avec lui memme et avec Dieu. C’est pour ça que c’est opportun d’étudier

les ouvrages de ces auteurs en les comparant, puisque les résultats de la recherche

pourront offrir des orientations très utiles à l’expérience quotidienne de la foi

chrétienne dans nos jours.

Mots clefs

Liberté; foi chrétienne; saint Augustin; Juan Luis Segundo; antropologie

théologique.

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Sumário

INTRODUÇÃO GERAL 12

PARTE I : A TRAJETÓRIA PESSOAL DE SANTO AGOSTINHO E

OS FUNDAMENTOS DE SUA ABORDAGEM SOBRE A LIBERDADE 16

Introdução à parte I 16

Capítulo 1 : Contexto histórico de santo Agostinho 18

Introdução 18

1.1 A África 19

1.2 A família 20

1.3 Trajetória pessoal e formação intelectual de santo Agostinho 21

1.3.1 A 1ª fase: sob o influxo do maniqueísmo 21

1.3.1.1 Adesão e posterior rejeição ao maniqueísmo 22

1.3.2 A 2ª fase: o neoplatonismo, a influência de santo Ambrósio

e a conversão 24

1.3.2.1 O influxo do neoplatonismo sobre santo Agostinho 25

1.3.2.2 Santo Ambrósio e a conversão de Agostinho ao Cristianismo 28

1.3.3 A 3ª fase: o zelo pastoral e os embates teológicos do bispo

de Hipona 30

1.4 O contexto eclesial da África nos séculos IV e V d.C. 30

1.4.1 A crise donatista 32

1.4.1.1 Reação de Agostinho para a superação do donatismo 36

1.4.2 A crise pelagiana 37

1.4.2.1 A reação de Agostinho e a condenação do pelagianismo 42

1.5 Noções básicas da reflexão de Agostinho sobre a liberdade 43

1.5.1 Abordagem da liberdade a partir das obras de combate

ao maniqueísmo 45

1.5.1.1 A liberdade dentro da ordem natural criada por Deus 46

a) A busca da verdade como experiência da liberdade 47

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b) A graça é que sustenta e conduz a busca pela verdade 49

c) Deus como fundamento absoluto necessário 50

d) O domínio das paixões sobre o ser humano como causa

do mal 52

e) A estrutura interna do ser humano como parte da ordem

natural do universo criada por Deus 54

1.5.1.2 O livre arbítrio como instrumento da liberdade 56

1.5.2 A liberdade a partir das obras de combate ao pelagianismo 59

1.5.2.1 A liberdade como escolha e como superação do pecado 59

1.5.2.2 Distinção entre querer (velle) e poder (posse) 62

1.5.2.3 A “necessidade” da graça não anula o livre arbítrio 64

Conclusão 66

Capítulo 2. Liberdade em Jesus Cristo: a vida humana dinamizada

pela graça 69

Introdução 69

2.1 O ser humano diante da realidade do pecado 70

2.2 A tomada de consciência e iniciativa por parte do ser humano 76

2.3 A renovação interior 78

2.4 A primazia absoluta da graça seria um determinismo teológico? 81

2.5 A liberdade ativa pela práxis da justiça 88

2.6 A antiga e a nova aliança: os dois tempos da economia da

salvação 91

2.7 A superação da lei 97

2.8 A experiência do amor 102

2.9 A liberdade cristã 107

Conclusão 110

Conclusão da parte I 112

PARTE II : PRESSUPOSTOS DA TEOLOGIA DE JUAN LUIS

SEGUNDO E FUNDAMENTOS DA ABORDAGEM SEGUNDIANA

SOBRE O TEMA DA LIBERDADE 114

Introdução à parte II 114

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Capítulo 3. Contexto histórico-teológico de Juan Luis Segundo 116

Introdução 116

3.1 Dados sobre a história pessoal de Juan Luis Segundo 117

3.2 Pontos estruturantes da teologia segundiana 118

3.2.1 Juan Luis Segundo e a Teologia da Libertação 118

3.2.2 As reflexões bíblico-teológicas de G. Lambert e L. Malevez 121

3.2.3 O método hermenêutico usado por Juan Luis Segundo 123

3.2.4 A influência de Gregory Bateson 125

3.2.5 A contribuição de Teilhard de Chardin 130

3.2.6 A influência de Nicolas Berdiaeff 132

3.3 Conceitos básicos da teologia segundiana 134

3.3.1 Estrutura de valores 135

3.3.2 Fé antropológica 138

3.3.3 Fé religiosa 140

3.3.4 Ideologias 147

3.3.5 Dados transcendentes 149

3.3.6 Aprendizagem em 2º grau, aprender a aprender ou dêutero-

Aprendizagem 155

3.3.7 Ecologia social 160

3.3.8 Flexibilidade histórica 166

3.3.9 Evolução cultural 169

Conclusão 176

Capítulo 4. Determinismos, acasos, evolução e sentido: a liberdade

nas múltiplas interações humanas 178

Introdução 178

4.1 Liberdade e determinismo são termos antagônicos? 179

4.1.1 Teologia cristã e determinismo 179

4.1.2 Condicionamentos naturais do ser humano 183

4.1.3 A formação social do homem seria um determinismo

antropológico? 184

4.1.4 A lida “psicológica” com instintos e paixões 186

4.2 Indeterminismos, acasos, e articulação entre os diferentes

determinismos na formação da liberdade 188

4.2.1 Determinismo, indeterminismo e evolução 190

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4.2.2 Impacto da reflexão sobre o acaso na teologia 193

4.2.3 Os “acasos” e o “telos” presentes na evolução podem ser

vistos como sinais providenciais? 195

4.2.4 O ser humano dotado de liberdade é uma “pessoa” 200

4.2.4.1 Ser pessoa como liberdade para agir 201

4.2.4.2 Ser pessoa como liberdade de interpretar a própria história 208

4.2.5 Conseqüências decorrentes do caráter pessoal da liberdade

Humana 211

a) conseqüências éticas 212

b) conseqüências ecológicas 213

c) conseqüências sociais 214

Conclusão 215

Conclusão da parte II 219

a) Liberdade como enraizamento histórico do ser humano 220

b) Liberdade como processo de humanização pessoal e social 220

PARTE III : ANÁLISE COMPARATIVA : CONTRAPONTOS E

APROXIMAÇÕES ENTRE AS CONCEPÇÕES DE LIBERDADE

DE SANTO AGOSTINHO E JUAN LUIS SEGUNDO 223

Introdução à parte III 223

Capítulo 5. Confrontos e complementações entre as concepções da

liberdade cristã em santo Agostinho e J. L. Segundo 225

Introdução 225

5.1 Convergências e distinções entre as concepções de liberdade

de santo Agostinho e Juan Luis Segundo 226

5.1.1 A liberdade pensada a partir das demandas do contexto

em que os autores estavam situados 226

5.1.2 As imagens de Deus e a liberdade humana 229

5.1.3 A liberdade articulada à noção de ordem natural 236

5.1.4 A liberdade como cooperação entre o ser humano e Deus 241

a) Espiritualidade e práxis cristã 242

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b) Aprendizagem dos valores coerentes com o projeto de Deus 246

c) Relações sociais e processos culturais humanizantes 250

5.2 Breves indicações a respeito das conseqüências do debate

sobre a liberdade cristã para a vida da Igreja 257

a) O esmero na apresentação de Deus 257

b) Por uma nova concepção sobre o agir de Deus no interior

de um mundo em evolução 258

c) O ser humano como interlocutor livre diante de Deus 260

Conclusão 262

Conclusão da parte III 266

CONCLUSÃO FINAL 268

6. Referências Bibliográficas 270

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12

INTRODUÇÃO GERAL

Desde a mensagem de libertação do pecado anunciada por Jesus, até as

abordagens contemporâneas feitas no âmbito da teologia, a liberdade tem sido um

tema central para a fé Cristã. No entanto, nem sempre a liberdade com seus riscos

e possibilidades foi um tema bem refletido na Igreja. Não raro, nos grupos de

pastoral e movimentos nas paróquias e dioceses a experiência prática se mostra

contraditória com uma autêntica liberdade cristã. Por isso, um estudo acadêmico

pode ser muito proveitoso para aprofundar o debate e indicar caminhos para o

amadurecimento da consciência da comunidade eclesial sobre esse assunto.

A presente tese deve ser vista como uma modesta contribuição neste

debate. Seu objetivo é estudar o tema na obra de dois teólogos de primeira

grandeza: nas obras de santo Agostinho e Juan Luis Segundo, posto que

constituem duas abordagens profundas sobre a questão da liberdade.

Articulando o livre arbítrio humano, com a superação do pecado produzida

pela graça divina, Agostinho formulou idéias esclarecedoras, que se tornaram

fundamento da doutrina da Igreja sobre o tema da liberdade, em sua relação com a

salvação proposta por Deus e consumada na obra redentora de Jesus Cristo.

Já Juan Luis Segundo analisa a questão dentro do contexto histórico e

social em que vive o ser humano. Assim, a sua abordagem situa a liberdade como

uma experiência que é vivida nas relações políticas, econômicas e culturais que se

estabelecem na sociedade. É a partir daí que o homem “constrói sua própria

liberdade”, descobrindo as interpelações de Deus no interior de sua própria

história.

O confronto dessas duas perspectivas de abordagem será bastante

interessante, para mostrar a amplitude da experiência da liberdade cristã, ajudando

a indicar as sérias conseqüências que uma reflexão profunda sobre este tema deve

trazer para a prática cristã e para a vida da Igreja.

a) Hipótese

A hipótese que norteou toda a pesquisa pode ser expressa nas seguintes

perguntas: Será possível fazer descobertas teologicamente relevantes, mediante o

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confronto entre as respectivas concepções de liberdade presentes nas obras de

santo Agostinho e Juan Luis Segundo? A partir desse confronto surgirão

elementos para uma nova visão sobre a liberdade humana, que seja enriquecedora

para a prática eclesial e a vivência da fé cristã nos dias atuais?

Esta foi a questão motivadora que orientou a análise das obras dos dois

autores, visando colocar em “diálogo” as concepções de liberdade construídas por

santo Agostinho e Juan Luis Segundo. Assim o objetivo foi o de evidenciar as

semelhanças e diferenças entre essas perspectivas de abordagem, verificando suas

mútuas interpelações e as possíveis contribuições que esta pesquisa pode trazer

para o debate teológico e para a prática pastoral.

b) Metodologia

O método de investigação empregado foi o método de pesquisa

bibliográfica, de acordo com os procedimentos usuais de análise de fontes

primárias. Portanto, a partir de um conjunto de obras de cada autor procurei

verificar as características básicas do pensamento de cada um deles sobre o tema

da liberdade. Foram selecionadas as seguintes obras:

- De santo Agostinho: De libero arbitrio, De spiritu et littera, De gratia et

libero arbitrio, De correptione et gratia, De praedestinatione sanctorum e De

dono perseverantiae.

- De J. L. Segundo: Teología Abierta para el Laico Adulto, volumen 2:

gracia y condición humana, e também o volume 3 da mesma obra : Nuestra idea

de Dios; El Hombre de Hoy ante Jesus de Nazaret, volumen. 1: Fe y Ideología, e

por fim Que Mundo? Que Hombre? Que Dios?

Os dados bibliográficos destas obras encontram-se no final da tese no item

“referências bibliográficas”. Durante a pesquisa, levei em consideração as obras

de santo Agostinho publicadas na coleção da Biblioteca de Auctores Cristianos

(BAC) sob o título Obras de San Agustín, que embora seja considerada “antiga”

por muitos estudiosos, conserva ainda seu valor e tem a vantagem de ser uma

edição bilíngüe (latim/espanhol). Foi usada também no estudo, a coleção

brasileira “Patrística” da editora Paulus, que além de disponibilizar algumas obras

de santo Agostinho em português, conta com introduções e notas de comentários

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feitas pelos tradutores. Além disso, houve também oportunidade para consultas à

edição francesa da Bibliothéque Augustinienne, Paris, (BA), e à edição italiana da

Nuova Biblioteca Agostiniana, Roma, (NBA). No que diz respeito à obra de Juan

Luis Segundo, foram consultadas as edições originais em espanhol, mas

cotejando-as com as edições em português.

Como já foi mencionado antes, tanto as obras de Agostinho como as de J.

L. Segundo constam na relação das obras indicadas na referência bibliográfica ao

final da tese. No entanto, só indiquei as obras efetivamente consultadas no

processo da pesquisa, sabedor de que muitas outras obras poderiam ser

acrescentadas. O mesmo tema da liberdade poderia ser pesquisado em outras

obras de Agostinho (por exemplo na Cidade de Deus, ou nas Epístolas) como

também em outras obras de Segundo (como por exemplo A História Perdida e

Recuperada de Jesus de Nazaré). Entretanto, dados os limites da apresentação

escrita dentro dos parâmetros de uma tese, que não pode nem pretende ser uma

“obra completa e definitiva sobre o assunto” e também dado o limite do tempo

disponível para a pesquisa, todo pesquisador precisa fazer um “recorte do objeto

da pesquisa”, sabendo que outros “recortes” são possíveis e igualmente legítimos.

Assim sendo, selecionei as obras aqui indicadas, por considerá-las obras de

referência sobre o tema da liberdade nos dois autores pesquisados.

No que diz respeito ao estilo do texto, procurei usar uma linguagem clara e

acessível, pois creio que isso é uma forma de valorizar e explicitar melhor a

argumentação feita. Por uma escolha pessoal, optei por fazer, sempre em

português, as citações dos trechos das obras de Agostinho e Segundo usadas na

tese. Deste modo, pude me comunicar melhor no próprio idioma falado no Brasil,

procurando sempre guardar fidelidade aos textos originais.

Assim, a partir da análise das referidas obras, foram construídos os dados

apresentados na tese, explicitando os conceitos fundamentais usados por cada

autor, fazendo emergir claramente as respectivas concepções de liberdade de

Agostinho e Segundo. Ao final da exposição destes dados, foi feito o confronto

entre as duas abordagens, visando ressaltar os pontos de contato e os pontos de

divergência entre elas.

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15

c) Estrutura da apresentação do texto da tese

A tese está organizada em três partes. Na primeira, é abordada a reflexão

agostiniana sobre o tema da liberdade. A análise foi feita, levando-se em conta o

contexto histórico de santo Agostinho e a perspectiva própria pela qual ele reflete

sobre o tema da liberdade (capítulo 1). Neste ponto, a pesquisa foi realizada a

partir de algumas obras do contexto da luta anti-pelagiana, como também a partir

de algumas outras obras, próprias do debate contra o maniqueísmo. Isso

possibilitou uma visão de conjunto acerca da abordagem agostiniana sobre o tema

da liberdade, indicando seus principais temas e conceitos (capítulo 2).

A 2ª parte da tese é dedicada ao contexto histórico de J. L. Segundo,

seguindo-se a apresentação dos conceitos básicos de seu pensamento teológico

(capítulo 3). Somente depois dessa “ambientação” da obra e do pensamento do

autor, é que passo à exposição sobre suas reflexões específicas sobre a concepção

segundiana da liberdade (capítulo 4).

Por fim, na 3ª parte da tese, é chegado o momento conclusivo do trabalho

(capítulo 5). Ali são recolhidas as principais características do pensamento de

cada autor sobre o tema da liberdade (conforme as indicações feitas em cada

capítulo). Na seqüência, são indicadas as semelhanças e diferenças entre as visões

de cada autor, sempre respeitando seus respectivos contextos. Assim, é que vão

surgindo os limites próprios de cada abordagem, mas, sobretudo, as riquezas que

elas fornecem quando comparadas uma à outra.

A partir deste confronto, a tese é concluída com a apresentação de algumas

orientações para a reflexão e a ação no âmbito das comunidades eclesiais. Ao

completar a apresentação das concepções de liberdade de cada autor e da

confrontação entre elas, espero oferecer ao leitor uma humilde contribuição para o

debate sobre a liberdade cristã. Trata-se de um tema inesgotável, sempre atual e

que merece continuar sendo desenvolvido e aprofundado. Assim sendo, é do

desejo do autor desta tese, que as perspectivas aqui apontadas possam ser

aprimoradas por outros pesquisadores, para que sejam somados os esforços

necessários para instruir e aprofundar a vivência da fé em Jesus Cristo, tornando-

a uma fé preparada para as exigências da atualidade.

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16

PARTE I

A TRAJETÓRIA PESSOAL DE AGOSTINHO E OS

FUNDAMENTOS DE SUA ABORDAGEM SOBRE A

LIBERDADE

Introdução à parte I

Ao iniciar o estudo sobre a concepção de liberdade formulada por santo

Agostinho, é importante apresentar bem o autor e sua obra. Por isso mesmo, as

informações sobre o contexto histórico de santo Agostinho, suas principais

referências familiares, filosóficas e teológicas foram colocadas no primeiro

capítulo da tese. Isso ajudará o leitor a compreender melhor os posicionamentos

assumidos por Agostinho em sua obra teológica. Aliás, ainda neste primeiro

capítulo, encontram-se os fundamentos principais da liberdade de acordo com a

visão agostiniana. Então se poderá ver o modo como Agostinho reflete sobre o

livre arbítrio, sobre a necessidade de o ser humano se libertar do pecado, sobre o

ser humano dotado de vontade livre, tudo isso dentro do contexto das polêmicas

da época nas quais Agostinho formou sua concepção acerca da liberdade (seja no

enfrentamento do maniqueísmo, seja no enfrentamento do pelagianismo).

Esta temática se prolonga com mais detalhes no capítulo 2, quando abordo

o tema da liberdade já como um processo dinâmico que integra simultaneamente

vários elementos. Entre estes elementos destacam-se:

a) A tomada de consciência por parte do ser humano a respeito dos

condicionamentos gerados pelo pecado;

b) A necessidade da ação da graça divina para libertar o ser humano do

pecado;

c) O modo de operar da graça no interior do ser humano;

d) A primazia absoluta da graça;

e) A liberdade humana como práxis da justiça;

f) A passagem da antiga à nova aliança.

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17

Nesta etapa da tese, o objetivo é mostrar os desdobramentos dos

pressupostos colocados no capítulo 1. Desse modo, são apresentados os elementos

constitutivos da liberdade como “processo” ou como um “modo de vida”, no qual

se dá a interação entre o ser humano e a graça divina, modo de vida este que se

configura como libertação do ser humano, para participar da salvação oferecida

por Deus mediante Jesus Cristo. Aí então é que se constituirá a liberdade em seu

nível mais profundo aqui denominado de “liberdade cristã”.

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18

Capítulo 1

Contexto histórico de santo Agostinho

Introdução

Analisar a obra de um autor tão importante como santo Agostinho

constitui grande desafio. Os matizes de seu pensamento, as múltiplas significações

embutidas em suas palavras e a diversidade de motivações que o levaram ao

registro escrito de sua teologia oferecem campo fértil para o estudo crítico, bem

como para a diversidade de interpretações. Entretanto, para que a análise da obra

possa guardar fidelidade ao espírito e ao pensamento do autor, é necessário que se

conheça as condições nas quais ele vivia, bem como o ambiente sócio-cultural no

qual se situam sua vida e sua obra.

Foi com o objetivo de obter esta contextualização do autor e da obra, que

elaborei este primeiro capítulo. Nele procuro apresentar as principais correntes de

idéias que influenciaram Agostinho, constituindo o processo de sua formação

intelectual. Paralelamente, vai sendo contada, em linhas gerais, a própria história

de sua vida e os embates pessoais que teve como bispo de Hipona, empenhado na

lida teológica e nas tarefas necessárias ao desenvolvimento da Igreja na África.

Partindo desses dados básicos do contexto histórico no qual viveu santo

Agostinho, fica mais fácil compreender as linhas mestras de sua obra. Estas serão

apresentadas brevemente, no intuito de informar o leitor sobre os pontos

fundamentais do pensamento de Agostinho. Outros temas do pensamento

agostiniano poderiam, sem dúvida, ser acrescentados, mas não o serão devido ao

escopo da tese. Sendo o tema da liberdade o foco central da pesquisa, torna-se

imperativo analisar as idéias agostinianas que digam respeito ao tema da

liberdade. Por isso, será dentro desta perspectiva, que serão analisadas as idéias

básicas do bispo de Hipona, a fim de formar uma exposição articulada sobre o

modo como estes conceitos mais fundamentais de sua obra configuram a

concepção agostiniana acerca da liberdade.

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19

1.1

A África:

Nos séculos IV e V d.C., a África era farta em trigo a ponto de A.

Hamman caracterizá-la como “maior celeiro de Roma”. Afirma o autor que a

“África alimentava a Urbe permitindo-lhe que se entregasse sem preocupações

aos prazeres do teatro e do circo”1. O cenário descrito parece o de uma colônia do

Império Romano social e culturalmente diversificada. Uma região em que se

impunha a língua (o latim)2, os costumes e os valores do conquistador, mas que

conservava também antigas tradições. Mesclavam-se, assim, diferentes religiões,

classes sociais, a riqueza e imponência dos monumentos erigidos em honra dos

governantes, juntamente com teatros, fortalezas, basílicas e sistemas para

irrigação. Por outro lado, o mesmo continente contava com aldeias e regiões

menos desenvolvidas, com costumes rurais e idiomas ancestrais.

“No século IV, Roma havia dividido a África em sete províncias, da Líbia à Mauritânia, de Cartago à Cesaréia. Nessa época, cada cidade possuía um bispo - e até mesmo dois, no tempo do cisma donatista. Os pastores das cidades frequentemente irradiavam suas atividades numa ‘diocese’ de trinta a quarenta quilômetros de raio”, isso contando com uma população, à época, em torno de “6 milhões de habitantes”3.

Tagaste, cidade natal de Agostinho, situada na Numídia, região norte da

África produzia trigo, oliva, além de exportar mármore e peles. Cartago (a capital)

assumia as feições de grande centro administrativo e de cidade estratégica para os

colonizadores. Tais características tornavam a cidade cobiçada pelos que

almejavam ascender profissional e economicamente, como parece ter sido, a certa

altura, a aspiração do próprio Agostinho antes de sua conversão4.

1 HAMMAN, A. G. Santo Agostinho e seu Tempo, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 9. 2 Entretanto, isto não representava um abandono completo dos idiomas locais. Como nos mostra Hamman, em Hipona, cidade em que Agostinho atuava como bispo, falava-se o idioma púnico e particularmente na região rural daquela diocese, “um sacerdote que falasse só latim não podia se fazer compreender, tendo que recorrer a um intérprete” (ibid., p. 13). 3 Cf. ibid., p. 10. 4 Cf. Confessiones 6, 11,19.

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20

1.2

A família:

Consta que Patrício, Mônica e Agostinho eram de origem berbere. Patrício

(pai de Agostinho) “era curialis, ou seja, conselheiro municipal do ordo

splendissimus”5 de Tagaste, ao passo que Agostinho viria a tornar-se professor de

retórica em Cartago. Talvez por influência do pai, desenvolveu certa ambição por

notabilidade pessoal, econômica e política. Chegou a ter pretensões de se tornar

governador de província6, no entanto, em sua passagem por Milão, o contato com

a pregação de santo Ambrósio mudou decisivamente sua trajetória pessoal. Em

387 d.C., o então bispo de Milão instruiu e batizou Agostinho, que abraçou a fé,

buscando ser-lhe fiel até o fim da vida.

Certamente o ambiente familiar formou muito do caráter e da vida pessoal

de Agostinho especialmente através do influxo de sua mãe. Reza a tradição que

Mônica tinha destaque na educação e no cuidado do filho. Embora não haja

muitos registros históricos sobre a participação de Mônica na formação de

Agostinho, é possível atribuir a ela um papel importante, pois o próprio Agostinho

o admite no livro das Confissões.

Nascida em 332 ou 333 d.C., Mônica vivia, em Tagaste, num contraste

entre a sua opção pessoal de fé e a vida pagã do marido e do filho. Tal situação

haveria de provocar-lhe preocupações e dissabores em seu coração de mãe e

esposa. Aflita com a adesão do filho ao maniqueísmo e com sua decisão de sair da

África em direção a Roma, ela tentaria demover Agostinho destas escolhas.

“Mônica tentou impedir que ele deixasse a África por Roma, ele a ludibriou, mas

ela foi em seu seguimento. Chegando a Roma, o filho já havia se mudado para

Milão; ela seguiu em seu encalço. Em Milão ia terminar o sofrimento da mãe

aflita. Agostinho converteu-se, recebeu a instrução e foi batizado por S. Ambrósio

em 387. Mônica colhia os frutos de suas lágrimas. Podia voltar à sua África

descansada. Agostinho acompanhou-a somente até Óstia, perto de Roma, onde

chorou a morte da mãe aí ocorrida em 387”7. Estas informações nos permitem

dizer que Agostinho não foi imune ao influxo de sua mãe. De certo ela deixou sua

5 HAMMAN, A. ibid., p. 13. 6 Cf. ibid., p. 13. 7 SCHLESINGER, H. e PORTO, H., Dicionário Enciclopédico das Religiões, vol.2 , Petrópolis, Vozes, 1995, p. 1799 (verbete “Mônica”).

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21

marca no temperamento de Agostinho, nos valores cristãos que ele assumiu e na

tenacidade com que ele perseguiu seus objetivos e ideais.

1.3

Trajetória pessoal e formação intelectual de santo Agostinho

Seria necessário muito tempo e muitas páginas para examinar

detalhadamente a história pessoal de Agostinho. Impedido, aqui, de fazê-lo,

apenas acenarei brevemente, para alguns elementos mais significativos de sua

formação, tendo em vista a problemática abordada na tese8.

1.3.1

A 1a fase: sob influxo do maniqueísmo

Filho de Mônica (conhecida, segundo a tradição, como fervorosa cristã que

muito rezava pela conversão do filho) e de Patrício (funcionário municipal de

origem e costumes pagãos), Agostinho nasceu em Tagaste, na Numídia (Norte da

África), em 354 d.C. Os anos da juventude foram dedicados ao estudo e à

formação filosófica. De 375 a 383 fixou-se em Cartago como professor de

Retórica, exercendo em seguida, o mesmo ofício em Milão. Por um lado, os anos

desta “primeira fase” foram marcados profundamente por um senso de

aprimoramento intelectual, de busca da verdade e de ânsia por experimentar,

conhecer e saber. Por outro lado, com este mesmo ímpeto com que se empenhava

na formação acadêmica, dedicava-se também a uma vida desregrada e

desequilibrada moral e afetivamente. Neste período nasceu o filho, Adeodato,

fruto da união de Agostinho com uma jovem africana. Nesta fase inicial, sua

principal referência teórica era, sem dúvida, o maniqueísmo.

8 Os livros das Confessiones e das Retractationes escritos pelo próprio Agostinho; juntamente com a Vida de Santo Agostinho, (São Paulo, Paulinas, 1997) escrita por Possídio fornecem muitos dados sobre a vida de Agostinho; Há também muitos trabalhos modernos sobre o assunto. BARDY, G. Saint Augustin, l’Homme et l’Ouvre (1930), Paris, [7a ed.] 1948, BROWN, P. Santo Agostinho, uma Biografia, Rio de Janeiro, Record, 2005 (com indicação de farta bibliografia) e HAMMAN, A. , obra citada.

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22

1.3.1.1

Adesão e posterior rejeição ao maniqueísmo

Em 374, lendo o Hortensius de Cícero, Agostinho se sentiu atraído à busca

da verdade e da sabedoria. Naqueles anos que se seguiram, freqüentou muito

provavelmente sessões de reflexão e estudos junto aos maniqueus, que lhe

pareciam apresentar uma visão mais coerente do Cristianismo, bem distinta da

doutrina oficial da Igreja à qual foi, em princípio, bastante refratário9. Atraía-lhe a

convicção dos maniqueus e sua visão dualista de mundo que, ao menos de início,

lhe serviu como primeira resposta ou tentativa de resposta ao problema do mal.

“Unde malum?”10 Qual a origem do mal? Queria saber Agostinho. Os maniqueus

afirmavam a existência dos dois princípios opostos entre si, (um fonte do bem e

outro do mal), dos quais derivariam, em última instância, as experiências de bem e

mal sobre a terra. Inicialmente, Agostinho viu nesta teoria uma resposta lógica

para seus questionamentos. No entanto, tal explicação mostrar-se-ía mais tarde

insuficiente, levando Agostinho não apenas a abandonar, mas também a refutar e

combater o ideário maniqueísta.

O maniqueísmo primava por uma percepção estritamente material e

racional da realidade, além de conter, em alguns pontos de sua doutrina uma

crítica e um antagonismo em relação ao cristianismo e aos cristãos. Os maniqueus

consideravam o comum dos crentes como portadores de uma fé sem erudição e de

uma superficialidade reflexiva por eles considerada repugnante. Em contrapartida,

os líderes maniqueus “prometiam aos seus adeptos um saber de ordem superior,

bem como a prova cabal da verdade: ‘et dicebam, ‘veritas et veritas’, et multum

dicebant eam mihi...’ ” 11. Foi exatamente esta promessa de conhecimento

9 Agostinho bem que tentou saber mais sobre o cristianismo e a Bíblia. No entanto, este primeiro contato com a tradição cristã “revelou-se pouco menos que catastrófico, para o jovem professor de retórica. O estilo e a linguagem dos livros sagrados pareceram-lhe extremamente ordinários e toscos; não chegavam a corresponder ao ideal e às idéias ciceronianas. Agostinho sentiu-se desorientado: saíra em busca da sabedoria a conselho de Cícero, mas não a encontrara na Escritura; desejava ser cristão, mas desagradava-lhe a forma externa do Cristianismo (...)” . (GILSON, E. e BOEHNER, P., História da Filosofia Cristã desde as Origens até Nicolau de Cusa, Petrópolis, Vozes, 1970, p. 143.). 10 De libero arbitrio 1, 2, 4; cf. também, Confessiones 3, 7, 12; 7, 3, 4-5, 7. 11 Cf. GILSON, E. e BOEHNER, P. , História da Filosofia Cristã desde as Origens até Nicolau de Cusa, Petrópolis, Vozes, 1970, p. 143, citando Confessiones 3, 6,10.: “Diziam: ‘Verdade e mais verdade!’ Incessantemente me falavam dela...”.

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23

definitivo da verdade por meio de uma reflexão estritamente racional que seduziu

o jovem Agostinho. Familiarizou-se, então, com a concepção maniquéia que via

Deus, como luz, ou seja, como um ente corpóreo e os homens como partículas da

luz divina desterradas para corpos visíveis.

Tendo em consideração estes elementos, pode-se perceber que as noções

materialistas presentes nesta etapa inicial da formação intelectual de Agostinho

decorriam, na verdade, do materialismo maniqueu. Por outro lado, o dualismo

maniqueu entre bem e mal resultava numa visão negativa da corporalidade

humana e numa separação entre seres bons e maus guiados respectivamente pelo

deus do bem e pelo deus do mal. Estas idéias davam a falsa impressão de explicar

logicamente a difícil questão do mal e do sofrimento. Associadas à veemência

com que os maniqueus rejeitavam o dogmatismo cristão12, estas idéias

convenceram Agostinho e conquistaram por quase uma década13 a sua adesão. No

entanto, as críticas posteriormente feitas pelo próprio Agostinho às idéias

maniqueístas e a autocrítica a respeito de sua própria adesão ao maniqueísmo14,

revelam que Agostinho reviu sua posição.

No De natura boni (405 d.C.), por exemplo, Agostinho já tematizava de

modo diferente a questão da origem e da explicação do mal. Ali ele se refere a

Deus como “causalidade universal”, como fonte da ordem do universo e do ser

próprio (“modo”, “espécie” e “forma”)15 de cada criatura. Nesta reflexão,

Agostinho vê Deus como autor de todo bem e consequentemente da bondade

ontológica de suas criaturas. Refuta, assim, o dualismo maniqueu que separava as

criaturas em boas e más. De outro lado, a interpretação alegórica da Bíblia,

desenvolvida de modo vigoroso e quase pioneiro por santo Ambrósio, ajudou

Agostinho a perceber que por detrás da “letra” da Sagrada Escritura se revelava

um sentido espiritual. Com o auxílio da exegese e da pregação do então bispo de

Milão, Agostinho pôde superar a concepção maniquéia que via os textos do

Antigo Testamento como uma lei má produto de um deus mau e vingativo,

contraposta à “lei boa” do Novo Testamento fruto de um deus bom e amoroso.

Graças às descobertas possibilitadas pela convivência com santo Ambrósio,

12 Cf. santo Agostinho, De utilitate credendi 1, 2. 13 Cf. GILSON, E. e BOEHNER, P., obra citada, p. 143. 14 Cf. Confessiones 3, 6,10; 50,15. 15 Cf. De natura boni 3, 3.

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Agostinho conseguiu identificar tanto no Antigo como no Novo Testamento a lei

de Deus, refutando o antagonismo entre os dois testamentos.

Por fim, a ocasião para o definitivo afastamento surge a partir da

percepção dos limites do racionalismo materialista maniqueu. Outrora a busca

pela sabedoria conduziu Agostinho à fé absoluta no conhecimento racional.

Agora, o aprendizado com os próprios erros e a descoberta, por vezes dolorosa,

dos limites da própria razão humana o levava a cogitar a possibilidade de um

conhecimento e de uma aprendizagem no campo da espiritualidade. As realidades

da infinitude e do mistério de Deus ultrapassam o entendimento humano e não se

deixam reter confinadas na finitude das categorias racionais criadas pelo homem.

Constatando que a racionalidade empírica não lhe conduzira à plenitude da

verdade prometida pelos maniqueus, Agostinho começa então a considerar

plausível um novo caminho rumo à sabedoria. Um caminho que não recusa a

razão, mas que se abre à transcendência pela fé. Para isso a adoção de elementos

da tradição filosófica platônica, relidos à luz da fé Cristã, forneceram vigoroso

auxílio.

1.3.2

A 2a fase: o neoplatonismo, a influência de santo Ambrósio e a

conversão

À mudança para Milão, parece corresponder também uma mudança de

perspectiva intelectual, a qual se faria acompanhar por uma mudança ainda mais

profunda ao nível dos afetos, da orientação de vida, e dos valores éticos e

religiosos. Estas transformações se fariam sentir no processo de conversão vivido

por Agostinho. Tudo indica que nesta 2a fase, as teses maniquéias já não

satisfaziam às indagações e inquietações próprias ao aguçado sentido de busca de

Agostinho. Ele queria algo mais, procurava por um sentido de vida mais elevado,

necessitava de um sistema de pensamento mais elaborado e completo. É neste

momento que duas vigorosas matrizes de pensamento começam a se aproximar e

se articular dentro da mente e do coração de Agostinho: o neoplatonismo e o

Cristianismo.

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25

1.3.2.1

Influxo do neoplatonismo sobre santo Agostinho16

Em Milão, Agostinho pôde desfrutar da convivência com um círculo de

pensadores neoplatônicos. Nas suas Confissões, ele admite ter lido obras daquela

corrente filosófica17. Isto vem confirmar uma importante e reconhecida influência

dos ensinamentos de Platão na vida e na obra de Agostinho. Tal influência pode

ser notada, por exemplo, na teoria do conhecimento e na metafísica agostinianas18.

Os estudiosos da obra agostiniana nos mostram que o influxo do platonismo e do

neoplatonismo deram a Agostinho a noção de que a razão, conhecendo a si

mesma, pode elevar-se até o conhecimento de Deus. Daí o itinerário agostiniano

do autoconhecimento como meio para o conhecimento da verdade divina inscrita

na alma humana, o qual conduz o homem à busca, ao conhecimento e ao amor de

Deus19.

No entanto, a via da interioridade não é o único acesso para Deus. Sua

afirmação não impediu Agostinho de defender a possibilidade de conhecimento

do Deus Criador pela contemplação e análise da ordem composta pelas criaturas.

Neste processo, ele constrói uma concepção hierárquica do universo,

compreendendo que na multiplicidade dos seres, há uma hierarquia dos menos

para os mais evoluídos, cujo ápice é o ser humano. Para Platão este universo é

estruturado pelo Deus da filosofia grega, nos movimentos de “processão” e de

“eterno retorno”. Já para Agostinho esta ordem criada é prova da sabedoria do

Deus Criador segundo a tradição bíblico-cristã20. Não obstante esta significativa

diferença, pode-se notar que Agostinho se inspira no topos neoplatônico,

desenvolvendo a concepção de um caminho de ascensão para Deus passando

16 Sobre este tema ver: ARNOUD, R., “Platonisme des Pères”, Dictionaire de Théologie Catholique, 6, Paris, p. 2258-2392.; ALFARIC, P. L’évolution Intellectuelle de Saint Augustin, vol.1, Paris, 1918; BOYER, C. Christianisme et Néo-platonisme dans la Formation de Saint Augustin, Paris, 1920. MANDOUZE, A., Saint Augustin: l’Aventure de la Raison et de la Grâce, Paris, 1968, p. 457-536.; GILSON, E. e BOEHNER, P., obra citada, p. 144-147; MADEC, G., Petites Études Augustiniennes, Paris, 1994, p.51-69. 17 São os “Platonicorum libros”, mencionados em Confessiones 7, 9,13. 18 VAZ, H. C. de Lima, Escritos de Filosofia IV, São Paulo, 1999, p. 183. 19 Tal itinerário que leva o homem a voltar-se para seu interior, para lá deparar-se com a verdade da presença divina é descrito por H. C. de Lima Vaz como “uma metafísica da interioridade” e mostra como a verdade de Deus e a verdade do homem estão intrinsecamente articuladas, de tal modo que o homem não precisa renunciar à si ou à sua razão para buscar a Deus. No empenho da própria vontade, na busca de fidelidade a si mesmo encontra o homem um caminho de acesso e de fidelidade ao próprio Deus. Cf. Ontologia e História, São Paulo, Duas Cidades, 1968, p. 93-106. 20 VAZ, H. C. de Lima Escritos de Filosofia IV, São Paulo, Loyola, 1999, p. 186-187.

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26

pelos degraus dos seres criados, afirmando assim a diversidade e a existência

mesma das criaturas como procedentes da bondade e da sabedoria divinas21.

Assim, ressaltando a relação intrínseca entre as realidades inteligíveis do

mundo criado e o Deus transcendente, Agostinho vai ampliando sua análise da

tradição platônica e simultaneamente aprofundando mais os argumentos que o

levavam a refutar o materialismo maniqueu. Por outro lado, um outro aspecto do

neoplatonismo que colaborou na superação do materialismo foi, sem dúvida o

desenvolvimento de uma filosofia do espírito e da afirmação da transcendência.

Ao que tudo indica, a leitura dos “livros platônicos” marcou profundamente

Agostinho, movendo-o a uma percepção mais aguda da própria espiritualidade,

que chegou mesmo até a conduzi-lo aos albores da experiência mística22.

Esta afirmação da espiritualidade foi sendo elaborada progressivamente.

Primeiro na noção da luz divina, incorporal, invisível, puramente espiritual,

sublime e inefável; e depois na noção da radical distinção entre “o ser absoluto -

único verdadeiramente digno do nome de ser - e o ser meramente participado”23.

Deus é o único ser absoluto. Todos os demais seres criados são relativos e tem

nEle a origem do seu ser e o fundamento de sua existência. Assim, Deus é

totalmente transcendente e, (embora sua presença possa ser sentida no interior do

mundo imanente), só pode ser experienciada em profundidade por um exercício

de elevação do homem ao contato com as realidades que o transcendem. “Pois

Deus é a luz que está acima do espírito e que só pode ser atingida se

transcendermos o que há de mais elevado em nós”24.

Como conseqüência destas reflexões, Agostinho afirmará a irrefutável

bondade de Deus. Ele confirma que de Deus só procede o bem e que, portanto,

todas as suas criaturas são boas em si mesmas. Chega, assim, às conclusões de

que de Deus não procede o mal e de que este não é senão a privação do bem25.

Todos estes elementos nos dão uma idéia aproximativa da extensão e da

profundidade do influxo do neoplatonismo na obra agostiniana. Entretanto,

mesmo reconhecendo tal influência, não devemos esquecer que Agostinho critica

também pontos que considera como limitações e equívocos da tradição platônica.

21 Cf. De libero arbitrio 2, 3,7-15, 39. 22 Cf. Confessiones 7, 10,16. 23 GILSON, E. e BOEHNER, P., obra citada, p. 146. 24 Ibid. 25 Cf. ibid., p. 147.

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Para ele, a supremacia absoluta de Deus, constituído como princípio e fim de toda

a ordem criada, nos é revelada pelo Cristo. A ausência de referência a esta

mediação cristológica na ordem da criação e da revelação constitui, para

Agostinho, uma grave lacuna da teoria neoplatônica da ascensão para Deus26.

Dentre os pontos que distinguem o ideário agostiniano do neoplatônico,

dois merecem destaque por tocarem mais diretamente a problemática da liberdade.

O primeiro é o aspecto ético. O platonismo e suas derivações seguiam a tradição

filosófica grega da construção do “homem virtuoso” pelo empenho da vontade a

partir do uso da reta razão. Agostinho também valoriza a virtude (não há dúvida),

mas entende ser esta um empenho da liberdade humana a partir do ideal

evangélico do amor cristão. A perfeição no amor é sempre mais e maior do que a

perfeição na virtude. Aliás, no fundo, aquela é a fonte e a condição de

possibilidade desta.

O segundo aspecto diz respeito ao próprio processo de elevação do homem

para Deus. Na tradição platônica este processo se dá pelo empenho da razão no

entendimento progressivo das realidades espirituais da alma. Para Agostinho este

processo não chega a êxito sem a experiência do amor. Somente com tal

experiência pode o homem amar a ordem natural, que constitui um bem

concedido pelo Deus Criador às suas criaturas. É nessa mesma experiência do

amor de Deus, que o homem aprende a “amar ordenadamente”, sem deixar que o

amor ao que é provisório e efêmero (na ordem criada) desvie a atenção e o amor

que o homem deve dirigir ao que é definitivo e eterno (Deus). Assim, ele deve

amar, amando o próprio amor; Amar, amando amar27. Para tal empreendimento,

Agostinho afirma não ser suficiente o esforço racional do homem, por mais

sincero e vigoroso que seja. A ação divina em favor do homem (a graça)28 é

totalmente necessária. Para Agostinho, o fim (e a finalidade) desse processo há de

ser a própria beatitude em Deus, sendo no interior mesmo desse processo, que o

homem descobre a si mesmo como ser de liberdade e necessitado de libertação.

É importante dizer, contudo, que esta descoberta do neoplatonismo e dos

aportes que ele fornece para o desenvolvimento da espiritualidade e para a

26 Ver Confessiones 7, 9, 13-14. Cf. VAZ, H. C. de L. Escritos de Filosofia IV, São Paulo, Loyola, 1999, p. 192; ver também, GILSON, E. e BOEHNER, P. obra citada, p. 184. 27 Cf. GILSON, E. BOEHNER, P. ibid., p. 169-171 e particularmente p. 186-191. 28 Aqui é que se situa a longa polêmica e o vigoroso enfrentamento com o pelagianismo, (do qual tratarei mais adiante).

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28

afirmação da transcendência não se deve ao mérito exclusivo de Agostinho.

Certamente ele obteve amparo e colaboração de outros intelectuais apreciadores

daquelas “idéias neoplatônicas”. É provável que entre estes possa ser contado o

próprio bispo de Milão, santo Ambrósio, o qual exerceu também importante papel

na formação de Agostinho.

1.3.2.2

Santo Ambrósio e a conversão de Agostinho ao Cristianismo

Santo Ambrósio (340-397 d.C.), nasceu em Treveros. Aos 31 anos já tinha

se tornado governador das províncias da Emília e da Ligúria em Milão. Ao vagar

a sede episcopal, o povo o elegeu bispo da cidade embora fosse ainda simples

catecúmeno. Isto exigiu que em curto espaço de tempo fosse batizado, ordenado

sacerdote, para então poder receber a sagração episcopal. Adquiriu vigorosa

formação filosófica e teológica, tendo lido autores importantes à época, tais como

Orígenes e são Basílio. Conselheiro de vários imperadores e influente interlocutor

do próprio Agostinho, deixou à posteridade algumas obras escritas dentre as quais

se destacam seus comentários ao Gênesis e ao Evangelho de Lucas, o tratado

sobre os deveres dos ministros eclesiásticos (De oficiis) e o tratado sobre os

sacramentos29.

Exímio na arte da pregação, homem de elevada sabedoria e fraseado

eloqüente, Ambrósio ajudou Agostinho a formar uma compreensão do

Cristianismo mais madura e consistente. Sua influência colaborou eficazmente

para a reaproximação de Agostinho com a fé cristã e impulsionou, em bases

novas, o seu contato com a doutrina e os textos cristãos. Estimulado, então, à

meditação sobre a Sagrada Escritura, Agostinho certa vez teve uma experiência

pessoal com a leitura da Bíblia, que ficou para ele como um marco da guinada em

sua trajetória pessoal30.

29 Cf. SCHLESINGER, H e PORTO, H., obra citada, vol.1, p. 143, (verbete “Ambrosio de Milão”). 30 A conversão constituiu uma experiência marcante e decisiva para a vida de Agostinho. Ele parece tê-la vivido como uma experiência integradora de suas diversas vivências pessoais. Segundo H. C. de Lima Vaz, a conversão é “um movimento total da alma que se arranca ao pecado para dar-se à fé, à inteligência e ao amor”. Trata-se de uma experiência existencial em sentido íntimo e profundo, “que envolve justamente a passagem do ‘profano’, da região da ‘dissemelhança’ (Conf. 7,10; P.L. 32, 742) ou do pecado que é uma ‘fuga de Deus’ (Conf. 5,2; P.L. 32, 706-707), ao ‘interior’ como lugar privilegiado da Verdade”. Entretanto é preciso notar

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29

Certa ocasião, julgando ouvir a voz de uma criança a dizer “Tolle, legge”

(“toma, lê”), Agostinho pegou de súbito um exemplar da Escritura que tinha à

mão e abrindo-o ao acaso, deparou-se com o texto de Rm 13,13. Lendo-o, sentiu

que “todas as trevas da dúvida se dissipavam”31. Após algum tempo de reflexão e

maturação da experiência vivida, Agostinho fez-se batizar na vigília pascal de 387

d.C., juntamente com seu filho Adeodato.

Tendo bebido da sabedoria das pregações e da exegese bíblica de santo

Ambrósio, Agostinho pôde “colocar em ordem” as informações adquiridas no

longo percurso que havia feito. O apreço pelo saber, herdado na fase maniquéia e

a descoberta da transcendência com a conseqüente abertura à vida espiritual,

alcançados na fase neoplatônica, parecem ter se adequado e ajustado

harmoniosamente sob a direção de uma vida cristã, conseguida após a conversão

ao cristianismo. A valorização positiva da Sagrada Escritura e a vivência explícita

da fé possibilitaram a construção de um sólido alicerce sobre o qual Agostinho

firmou toda a sua doutrina e seus pensamentos. Estava assim, consolidada a

“virada radical e definitiva” de sua vida. Abriu-se, então, um novo horizonte e um

caminho de debates, posicionamentos eclesiais, de aprofundamento e correções de

alguns aspectos de sua própria doutrina; caminho este, que passou a ter sempre a

mesma referência à fé adquirida , agora formalmente defendida e abertamente

professada; caminho que trilhou daquele instante em diante até o fim de sua vida.

que este ato pelo qual o homem volta-se para o interior de si mesmo “assume imediatamente um caráter sacral , porque o encontro da verdade na ‘mens’ é um encontro de Deus (Conf. 7,10; P.L. 32; 742)”. Uma vez encontrando a Verdade e a presença de Deus no mais íntimo de si mesmo, o homem dá um passo à frente no processo de conversão. Estabelece um diálogo, elevando-se a uma relação direta e pessoal com Deus. Assim, “se a conversão de Agostinho é uma conversão ao ‘interior’, é ainda, na unidade de um mesmo movimento, conversão ao superior” (“superior summo meo”, cf. Conf. 3,6; P.L. 32, 688). Trata-se, portanto, de uma experiência dada no interior de coordenadas imanentes, mas que serve de mediação para o contato com a realidade transcendente de Deus (cf. VAZ, H. C. de Lima , Ontologia e História, São Paulo, Duas Cidades, 1968, p. 95). 31 Cf. Cf. SCHLESINGER, H. e PORTO, H. obra citada, vol.1, p. 91 (verbete “Agostinho de Hipona”).

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30

1.3.3

A 3a fase: o zelo pastoral e os embates teológicos do bispo de

Hipona

Retornando à África, Agostinho inicia uma terceira (e digamos decisiva)

fase de sua história pessoal, empenhando-se com mais vigor na formação

teológica. Batizado em 387 d.C., em apenas oito anos foi ordenado padre e bispo.

Dedicou-se intensamente às atribuições de seu ministério pastoral, empenhando-

se, não apenas na orientação dos fiéis, mas também no enfrentamento contra

heresias e distorções da fé ortodoxa da Igreja. A maioria dos principais escritos de

Agostinho situa-se nesta terceira fase, quando a necessidade de lutar para

preservar a Igreja Católica dos desvios doutrinais motivou, o agora bispo de

Hipona, a refutar e combater tenazmente doutrinas e movimentos dissidentes,

particularmente o donatismo e o pelagianismo. Agostinho morreu a 28 de agosto

de 430, deixando uma extensa obra de enorme valor para a Igreja, como também

para todo o pensar humano social e cultural de nossa civilização.

Vistos os vetores principais, que articulados resultaram na formação do

espírito e do gênio de Agostinho, passo agora à análise do contexto eclesial no

qual Agostinho estava inserido. Tal contexto explica em grande parte o perfil da

atuação eclesial do bispo de Hipona e certamente influenciou a elaboração de suas

idéias teológicas.

1.4

O contexto eclesial da África nos séculos IV e V d.C.

Para compreender o contexto eclesial em que Agostinho redigiu suas

principais obras teológicas, faz-se mister recordar que as relações entre Igreja e

Estado, nos séculos IV e V d.C., se davam sob o “regime de cristandade”. Neste

sistema, os limites e autonomias respectivas entre as duas instituições não eram

claramente definidos, gerando “intromissões” da Igreja em questões que hoje

consideraríamos civis, bem como “interferências” do Estado em problemas e

discussões hoje consideradas como de âmbito propriamente eclesial. Tal situação

gerava conflitos sempre que as concepções e interesses da Igreja e do Estado

entravam em choque. Daí decorreram perseguições a líderes cristãos insubmissos

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31

à política do Império Romano, a convocação de assembléias eclesiais por

autoridades civis, decisões e litígios eclesiásticos julgados e resolvidos por

tribunos designados pelo império, etc. É neste contexto que se situa a relação da

igreja africana com o “poder secular”, contexto este que influenciou tanto a vida

civil, como também a vida eclesiástica.

Isto pode ser percebido no dinamismo da colonização romana na África e

nas reações que este processo colonizador provocou no povo africano. Por um

lado, o Império Romano alcançara êxito em implantar suas principais instituições

em solo africano. Mas, por outro lado, uma parte do povo também criticava,

reagia e era em muitas ocasiões insubmissa, fazendo valer a lógica e os valores de

sua própria cultura, opondo não raro resistência ao modelo sócio-cultural imposto.

Daí que autores como Hamman consideram que “a África foi romanizada

desigualmente . A Tunísia oriental foi a mais atingida. A Numídia e sobretudo a

Mauritânia foram claramente mais indóceis”32. Assim, a história da África

registrou revoltas camponesas e rebeliões com forte componente anti-romano33.

Na medida em que a Igreja Católica estava e era vista como associada ao

poder imperial, isto gerava conflitos e insatisfações. Se por um lado havia mártires

que contestavam a autoridade do império para serem coerentes com a fé cristã, por

outro, havia também ocasiões em que a própria Igreja recorria ao amparo do

império para resolver disputas e conflitos em que se via envolvida. Esta

ambigüidade da relação da Igreja com a o poder imperial, juntamente com o

sentimento de independência e autonomia do povo africano estarão na base da

grande crise donatista, que cindiu internamente o clero africano e gerou

conseqüências drásticas para a Igreja durante todo o século IV d.C., repercutindo-

se até o início do século V d.C.

Podemos dizer que todo este contexto acabou por produzir e extremar o

confronto entre facções e a tendência à divisão no interior da Igreja na África.

Havia uma crescente insatisfação de parte do clero e do povo cristão, que reagiu

com certo sentimento crítico com relação às intervenções do império nos conflitos

religiosos e eclesiais. Este pensamento crítico e “independente” foi sendo

ampliado, de modo a produzir um sentido de autonomia e autodeterminação que

veio a se tornar causa de tensões para o clero africano, não apenas em sua relação

32 HAMMAN, A. obra citada, p. 13. 33 Cf. ibid., p. 14.

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32

com o imperador, mas até mesmo nas relações com o papa. No pólo oposto existia

um outro bloco, mais moderado, fiel à união eclesial e política com Roma, que em

alguns aspectos contrastava e até antagonizava com o primeiro grupo. Tal

confronto de posições e concepções conturbava a dinâmica interna da vida da

Igreja, tornando mais complexo o já delicado e difícil jogo da política e da

diplomacia eclesiásticas.

Os conflitos não tardaram a surgir, mas custaram a ser superados. Por um

lado, havia um legítimo anseio por respeito à identidade própria da igreja africana,

bem como por uma certa autonomia frente à igreja de Roma e principalmente

frente ao Império Romano. Por outro lado, a defesa intransigente destas

reivindicações acabou por gerar um conflito de grandes proporções, que fez

romper a unidade da Igreja.

Associados a divergências e dificuldades de compreensão acerca de

algumas questões doutrinais, os problemas de relacionamento com o papa e com o

Império Romano tornaram-se o componente explosivo que acabou provocando a

crise donatista, a qual se constitui num dos fatores que interpelaram Agostinho a

procurar respostas para as polêmicas e soluções para as dificuldades das

comunidades eclesiais africanas.

1.4.1

A crise donatista

No estudo do donatismo é interessante ir além dos fatos isoladamente

considerados, buscando integrá-los às motivações de fundo que estavam na base

da estruturação do conflito. Assim, para Hamman

“antes mesmo de se dividir entre Cartago e Roma, entre o donatismo e a Igreja Católica, a alma africana já se apresentava em si mesma dividida por um maniqueísmo que a dilacerava.

O donatismo representava a projeção sobre o terreno religioso de uma divisão interior que a repartia em duas: a necessidade de julgar os outros de fazer a separação entre bons e maus, dispensando-se assim de fazer sua autocrítica e interrogar-se sobre a pureza de suas crenças e a sobrevivência de superstições e de práticas pagãs. Quantas vezes Agostinho censurou seus fiéis a esse respeito! Filhos da intransigência, os bispos donatistas eram ao mesmo tempo cúmplices do compromisso. Eles censuravam os católicos por sua vinculação ao poder romano, mas, por seu turno, não deixavam de recorrer a ele. Pretendendo-se filhos dos mártires, levaram o culto às relíquias ao ponto da

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33

superstição, tolerando os prazeres que chegavam até à má conduta. Não é difícil descobrir ‘sobrevivências pagãs’ nos ritos funerários donatistas”34.

Entretanto, é na defesa da autonomia da igreja africana que este

temperamento forte e altivo irá se mostrar mais nitidamente. Deita raízes neste

temperamento a coragem da defesa da fé até o martírio, coragem demonstrada,

por exemplo, pelas santas Perpétua e Felicidade (martirizadas sob o imperador

Sétimo Severo, já no século II d.C.), bem como por São Cipriano (martirizado em

258 d.C.) que, como as referidas santas, preferiu a morte a atender aos que lhe

ordenavam para que renunciasse à sua fé.

O testemunho destes “mártires africanos”, animava o vigor da fé da Igreja,

mas ao mesmo tempo inflamava a defesa da autonomia da igreja local diante do

império e da igreja de Roma. O martírio de São Cipriano, por exemplo, era

invocado pelos donatistas como ícone de sua causa. Assim, Cipriano acabava

sendo visto não apenas como mártir da fé, mas também como mártir da resistência

africana. Sob o ideal da pureza e da fidelidade à coerência dos mártires, os

donatistas iniciaram uma organização eclesial dissidente. Tal situação resultou

num conflito em meados do século IV, todo ele marcado pelas disputas que deram

origem à cisão na Igreja35.

“O ponto de partida deste cisma foi o debate em torno da indulgência de uns e a intransigência de outros frente aos ‘lapsi’. Os lapsi eram aqueles que por ocasião da perseguição de Diocleciano, 303-305, tinham entregue às autoridades policiais do império os vasos sagrados, os livros litúrgicos e as próprias Escrituras ou, então, tinham fugido. Passada a perseguição, começaram a retornar às comunidades. Cristãos de tendências rigoristas, influenciados talvez de longa data pelos montanistas, especialmente por Tertuliano, julgavam os ‘traditores’ (os que tinham traído a fé) apóstatas e indignos. Se se tratava de leigos, necessitavam ser rebatizados. Se fossem membros do clero, não podiam administrar os sacramentos por que estes seriam inválidos em suas mãos. Defendiam que a eficácia dos sacramentos dependia do estado de graça do ministro. A Igreja devia ser inteiramente pura e limpa, o que certamente não era aquele que concedia o perdão aos que cometiam pecados abomináveis. Estes ou

34 HAMMAN, A. , obra citada, p. 15. 35 Sobre o donatismo ver: MONCEAUX, P. Les Africains, les Paiens, Paris, 1894, (volumes 4 a 7); FREND, W. H. C. The Donatist Church. A Mouvement of Protest in Roman North Africa, Oxford, 1971; BRISSON, J. B. Autonomisme et Christianisme dans l’Afrique Romaine de Septime Sévère à l’Invasion Arabe, Paris, 1958; MANDOUZE, A. “Encore le Donatisme”, in Antiquité Classique 29 (1960), p. 61-107; BAUS, K. e EWIG, E. “La Polémica Donatista”, in JEDIN, H. (org.), Manual de Historia de la Iglesia, tomo 2, Barcelona, 1975, p. 200-233.

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34

se rebatizavam ou seriam excluídos definitivamente da Igreja. O próprio primaz de Cartago, Mensúrio, era tido pelos rigoristas como um ‘traditor’. ” 36

Estes cristãos de índole radical e intransigente julgavam-se autênticos e

virtuosos, fiéis à verdadeira fé cristã, criticando abertamente os que

“fraquejavam” ou se “protegiam” nos períodos de perseguição. Estes eram vistos

pelos donatistas como apóstatas e traidores da fé.

Desejosa de mudanças sociais, econômicas e culturais e também de

renovação do fervor religioso, a facção rigorista cresceu conquistando novos

adeptos. O conflito tomou vulto e já começava a esgarçar as relações internas na

comunidade cristã. Mensúrio tentou intervir, mas a situação já escapava ao seu

controle. Com sua morte em 311 d.C., seu arquidiácono, Ceciliano, o substituiu.

Fora eleito e ordenado às pressas, num processo que não contou com a presença

dos bispos da Numídia37. Para piorar ainda mais o ambiente, Ceciliano era

detestado pelos rigoristas que o acusavam de premeditadamente deixar morrer no

cárcere, alguns cristãos presos durante um período de perseguição imperial e de

ter, entre os que o ordenaram, a presença de Félix, bispo que eles (os rigoristas)

consideravam apóstata.

Os descontentes reagiram e se reuniram no sínodo de Citra convocado pelo

primaz da Numídia. Em 312 d.C. depuseram Ceciliano e em seu lugar elegeram

Majorino, capelão de Lucila, rica e influente mulher que teria, (com seus recursos

financeiros e poder de influência), patrocinado a manobra38. O contexto já estava

bastante tumultuado quando o imperador interveio. Possivelmente seguindo

conselhos de Ósio, seu assessor eclesiástico, Constantino decidiu apoiar

Ceciliano39, tendo além disso, por meio de um decreto, isentado o clero seguidor

de Ceciliano de todos os encargos financeiros. Os dissidentes se inflamaram ainda

mais após a intervenção do imperador. Com a morte de Majorino, elegeram

Donato para seu lugar e a ruptura se tornou inevitável.

De fato, Donato, cuja vida pessoal nos é em grande parte desconhecida40,

tinha sido bispo primeiro em Casae Nigrae, posteriormente transferido para

36 FRANGIOTTI. R. História das Heresias (séculos I-VII): Conflitos Ideológicos Dentro do Cristianismo, São Paulo, 1995, p. 64. 37 Cf. santo Agostinho, Psalmus contra partem Donati 11,44-46. 38 Cf. HAMMAN, A obra citada, p. 19-20. 39 Cf. santo Agostinho Contra Epist. Parmeniani I, 4,6 e 5,10. 40 Cf. FRANGIOTTI, R. obra citada, p. 66.

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35

Cartago. Iniciou o movimento dissidente que se espalhou por várias sedes

episcopais na África. Ora protegido, ora perseguido pelos imperadores, Donato foi

condenado várias vezes por sínodos regionais, tendo sido duramente combatido

(entre outros) por santo Agostinho. Entretanto, os efeitos e a influência de seu

movimento só cessaram em definitivo a partir de 429 d.C., com a invasão dos

Vândalos. Estimulado por Donato, o grupo de oposição a Ceciliano partiu para a

ofensiva, dirigindo-se primeiro ao bispo de Roma, depois ao imperador

Constantino. Como tiveram seus pleitos indeferidos em ambas as partes, os

dissidentes prosseguiram sua agitação na África. As autoridades tentaram a

persuasão, mas diante de uma dura reação, tomaram as igrejas rebeldes com

amparo militar. Foi como se caíssem numa armadilha, cedendo aos donatistas a

fama que reivindicavam. “Os campeões dos mártires teriam, então, a

oportunidade de tornarem-se mártires eles próprios”41, recrudescendo cada vez

mais o conflito.

Daquele momento em diante as partes envolvidas, (o imperador, a Igreja

Católica e os dissidentes donatistas) passavam a interagir, ora aproximando-se do

diálogo e da busca de entendimento, ora afastando-se dele e retomando o caminho

da separação. Sucediam-se alternadamente períodos de maior tolerância e

períodos de intransigência, perseguição, mútua acusação e até de atentados e

violência.

Assim, o conflito se prolongou durante décadas. Primeiro, pela

inexistência na Igreja católica africana de um representante com o carisma e a

capacidade diplomática que a situação exigia. Segundo, porque, até o início do

século V d.C., a própria reflexão teológica ainda não tinha avançado o suficiente,

para responder às questões doutrinais que estavam subjacentes ao cisma donatista.

Faltava um adequado enfrentamento da polêmica justamente no campo teológico-

doutrinal. Necessitava-se notória e urgentemente de uma reflexão intra-eclesial

que esclarecesse pontos como a natureza da Igreja, o modo de operar dos

sacramentos, e também o papel dos ministros que os presidem. Estas lacunas só

começaram a ser sanadas quando Agostinho entrou em ação.

41 DUCHESNE, L. Histoire de l’Église Ancienne, t. 2., Paris, p. 120, em HAMMAN, A. obra citada, p. 19.

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36

1.4.1.1

Reação de Agostinho para a superação do donatismo42

Karl Baus e Eugen Ewig afirmam que Agostinho dedicou quase trinta anos

de sua vida à questão donatista43. Segundo os autores, o combate de Agostinho às

correntes cismáticas e heréticas não se dava sob a motivação de um gosto

obsessivo por polêmicas intelectuais. Antes era o apurado senso do dever de

pastor, de zelar pela unidade e pela coerência na fé da comunidade sob seus

cuidados, que movia o bispo de Hipona a um combate tanto pastoral como

teológico, que consumia o melhor de suas energias mentais e físicas às vezes até o

esgotamento44. De fato, as dimensões e a duração do conflito exigiam do bispo de

Hipona, um grande trabalho ao mesmo tempo de refutação e convencimento.

Refutação no campo da argumentação teológica contra os pressupostos donatistas

acerca da Igreja e dos sacramentos. E convencimento, na exortação ao retorno à

unidade.

Estas duas vertentes do empreendimento de Agostinho para superação da

crise podem ser percebidas, tanto nas obras por ele escritas sobre a questão, como

também em sua atuação durante a conferência episcopal de 411 d.C. em Cartago.

As obras antidonatistas de Agostinho começam já em 394 d.C. com o Psalmus

contra partem Donati, escrito em forma de salmo ordenado e ritimado com refrão,

no qual se canta a história do donatismo e se exorta os cismáticos a recompor a

união eclesial rompida. Já no Contra epistolam Parmeniani libri III, composto no

ano 400 d.C., (considerado sua primeira grande obra sobre a controvérsia

donatista), são desenvolvidos os temas da unidade constitutiva da Igreja Católica e

o tema da comunhão eclesial nos sacramentos. No De batismo libri 7, defende a

validade do batismo presidido pelos hereges, mostrando que a eficácia

sacramental reside na graça de Cristo e não na pureza do celebrante. Por fim, no

De unitate ecclesiae liber I, também denominado Epistola ad catholicos de secta

donatistarum, Agostinho desenvolve o sentido da “catolicidade”, ou seja da 42 Sobre este ponto ver: WILLIS, G. G., Saint Augustine and the Donatist Controversy, Londres, 1950; CRESPIN, R. Ministère et Sainteté. Pastorale du Clergé et Solution de la Crise Donatiste dans la Vie et la Doctrine de Saint Augustin, Paris, 1965; MANDOUZE, A., Saint Augustin, Paris, 1968; LAMIRANDE, E., La Situation Ecclésiologique des Donatistes d’apres Saint Augustin, Ottawa, 1972. 43 BAUS, K. e EWIG, E. “La Polémica Donatista”, in JEDIN, H. (org.), Manual de Historia de la Iglesia, tomo 2, Barcelona, 1975, p. 206. 44 Cf. ibid., p. 217.

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37

universalidade da Igreja, afirmando categoricamente que a verdadeira Igreja de

Cristo é a Igreja universal45.

Vemos assim, que a reação de Agostinho contra o donatismo baseava-se

numa sólida reflexão teológica sobre o mistério e a unidade da Igreja (sempre em

conexão com o mistério do próprio Cristo) e sobre os sacramentos cuja eficácia

deriva da graça de Cristo e não da perfeição do ministro que os preside. Neste

vigoroso trabalho de aprofundamento teológico, Agostinho forneceu valiosos

argumentos que os bispos católicos puderam usar na Conferência de Cartago (411

d.C.), na qual os donatistas foram derrotados. Veremos, a seguir, que o mesmo

gênio e dedicação Agostinho empregou no combate ao pelagianismo .

1.4.2

A crise pelagiana46

A historiografia, nem sempre guarda informações precisas sobre o

conjunto da vida e da obra de Pelágio. As principais fontes designam a Grã-

Bretanha como local de seu nascimento no ano de 354 d.C. e apontam 437 d.C.

como ano provável de sua morte. Não se sabe com certeza quais foram as

circunstâncias que levaram Pelágio a partir de sua pátria para Roma47, onde desde

390 d.C. vivia como asceta cristão embora não pertencesse a nenhuma

comunidade monástica formal48. É certo, contudo, que ele se propunha um ideal

de vida elevado pelo cultivo das virtudes, pela austeridade nos costumes e pela

retidão ética. Seu notório e reconhecido talento como orador e escritor lhe rendeu

fama, além de muitos simpatizantes e adeptos fervorosos em Roma, na Sicilia e

posteriormente na África setentrional. Seus principais escritos eram o seu

comentário às epístolas de São Paulo, um tratado sobre a natureza humana e uma

45 A obra ant-idonatista de Agostinho é evidentemente muito mais extensa do que os escritos aqui mencionados. Para maiores informações além da bibliografia indicada nas notas 35 e 42, pode-se consultar na internet o site http://www.augustinus.it onde encontrei muitos dos dados aqui apresentados. 46 Cf. PLINVAL, G. de., Pélage, ses Écrits, sa Vie et sa Réforme, Lausanne, 1943; BAUS, K. e EWIG, E., “Pelagio y sus Consecuencias”, in JEDIN, H. (org.), ob. cit., p. 233-255; FRANGIOTTI, R., ob. cit., p. 113-121. 47 Algumas hipóteses são apresentadas em MARAFIOTI, Domenico, L’Uomo tra Legge e Grazia. Analisi Teologica del De Spiritu et Littera , Brescia, Morcelliana, 1983, p. 31. 48 Cf. BAUS, K., e EWIG, E., in JEDIN, H., (org.) obra citada, p. 235.

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38

carta escrita para uma jovem da nobreza romana, de nome Demetríade, que

desejava viver os ideais da espiritualidade pelagiana (Epistula ad Demetriadem)49.

Nestes textos, Pelágio desenvolve de modo sistemático seus princípios de

vida e suas concepções sobre a graça, o pecado e a natureza humana. Esta não é

(segundo ele) tão afetada pelo pecado a ponto de ser radicalmente debilitada,

como sustenta a doutrina da Igreja sobre o pecado original. Pelágio exaltava a

perfeição da natureza humana a ponto de crer piamente que ela era capaz, por suas

próprias forças, de evitar o pecado. O homem foi criado e dotado por Deus de

uma natureza perfeita (imagem e semelhança do próprio Criador) e com um

arbítrio livre, pelo qual pode escolher livremente o bem ou o mal. Baseado nestes

pressupostos, Pelágio sustentava a total capacidade de o homem praticar o bem

sem uma ajuda intrínseca da graça divina pois, para ele, a realidade do pecado

presente na origem da humanidade (“pecado de Adão”) não havia afetado as

gerações subseqüentes a Adão e Eva. Notamos assim, as bases do pensamento

pelagiano: uma antropologia otimista, uma subestimação do alcance e dos efeitos

do pecado original, uma compreensão extrínseca da graça (concebida como ação

corretiva de Deus, necessária apenas em determinados momentos da vida do

homem) e a atribuição de auto-suficiência ao homem no processo de salvação.

Estes traços do pensamento pelagiano podem ser notados na passagem seguinte:

“Toda vez que devo falar sobre a reforma dos costumes e do empenho por uma vida santa, eu começo por mostrar a força e o valor da natureza humana, fazendo ver as coisas que ela é capaz de realizar; exorto, assim, os ânimos a auscultarem os ideais da virtude. Pois de nada adiantaria convocar alguém para coisas que se tem por impossíveis. De fato, não poderíamos nos encaminhar na via da virtude se não fôssemos dotados de esperança. Pois cada esforço por atingi-la fracassaria se lhe faltasse a esperança de alcançá-la. São estes, portanto, os primeiros fundamentos de uma vida santa e espiritual: a pura tomada de consciência acerca das próprias forças.” 50

Como se pode ver, o ideal pelagiano era marcado pela ética, pela exortação

à virtude e pela busca sincera de uma vida santa e reta. Pelágio estava convicto de

que este ideal era possível e estava ao alcance do homem. Confiante nesta sua 49 Muito pouco do que foi escrito por Pelágio se conservou para a posteridade. Boa parte do que se sabe a respeito de suas obras provém da contra-argumentação nas obras de Agostinho. Para maiores detalhes sobre o reconhecimento da autoria nas obras pelagianas ver PLAGNIEUX, J. “Pélage et la Paternité de sés écrits”, in BA 22, p. 677-680 e as demais obras indicadas por MARAFIOTTI, D. obra citada, p. 34. 50 Pelágio, Ad Demetriadem 2 (PL 30,16). Encontra-se o texto em latim acompanhado de tradução ao italiano em MARAFIOTI, D. obra citada, p. 32-33.

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convicção interior, pregava até mesmo contra os ricos e a riqueza e em favor da

pobreza e da castidade51. A felicidade e a santidade deveriam ser cultivadas pela

virtude e obtidas pelo empenho da vontade.

Devemos, contudo, ter a devida cautela para não estigmatizar a figura de

Pelágio, pelo fato de sua doutrina ter sido refutada e rejeitada pela Igreja. Há que

se ter presente as correntes com as quais ele debatia quando elaborou sua doutrina.

De um lado, Pelágio reagia contra um certo laxismo e uma moral permissiva

difundida na Itália. Ao que parece, este relaxamento moral poderia estar

relacionado com a pregação anti-ascética de Joviniano que, entre outras coisas,

sustentava que o batismo era suficiente para se obter o estado de impecabilidade

(inpeccantia)52. Estas idéias se difundiam rapidamente, gerando distorções na vida

cristã, como se a mera recepção do batismo fosse já garantia de salvação.

Por outro lado, Pelágio reagia também contra grupos que viam na retidão

moral e na vida sem pecado um ideal impossível para o ser humano, ou quando

muito, um ideal restrito a uma minoria seleta de santos e santas. Tais concepções

geravam tanto um rigorismo moral enlouquecedor, como o extremo oposto, ou

seja, um “minimalismo moral”53 de cristãos que se escusavam de sua má conduta,

usando como argumento justamente a noção de uma natural debilidade da

natureza humana, argumento este que fazia notar o influxo do pessimismo e do

determinismo antropológico dos maniqueus54. Foi, então, para refutar tais

posições que Pelágio iniciou sua pregação, exaltando o valor da natureza humana

e o empenho sincero da vontade em prol da virtude. Pretendia, assim, mostrar que

a santidade não é um privilégio para poucos, mas uma possibilidade real para

todos os que efetivamente se dispuserem a cultivá-la e a vivê-la. Seu

empreendimento, contudo, embora com motivações justas e honestas, teria

conseqüências negativas e até mesmo equívocos nos planos teológico e doutrinal.

Estes erros foram percebidos de modo mais evidente quando dois

discípulos de Pelágio, (Celestio e Juliano de Eclano) se puseram a divulgar

abertamente os conceitos e as idéias de seu mestre. Celestio é considerado o mais

inteligente, devoto e aguerrido discípulo de Pelágio. Dos seus estudos de retórica

51 MARAFIOTI, D., ibid., p. 31. 52 Para mais informações sobre Joviniano e o laxismo criticado por Pelágio ver a já mencionada obra de MARAFIOTI, D., (ibid., p. 32) e a bibliografia ali indicada. 53 Cf. BAUS, K. e EWIG, E., in JEDIN, H. (org.) obra citada, p. 236. 54 MARAFIOTI, D., obra citada, p. 33.

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lhe advinha uma habilidade dialética que o tornava talentoso debatedor e vibrante

polemista. Por mérito seu, o ideário pelagiano foi rapidamente divulgado por todo

o Mediterrâneo, conquistando adeptos, formando grupos difusores e mantendo

vivo o pelagianismo por pelo menos 20 anos (de 411 a 431 d.C.)55. Assim, estas

características pessoais fizeram de Celestio o grande divulgador do pensamento

pelagiano, cujos argumentos básicos, por ele sistematizados, podem ser

condensados em 6 proposições56.

1) Adão era mortal e assim foi criado por Deus. De qualquer modo iria

sofrer a morte, tivesse pecado ou não.

2) O pecado de Adão prejudicou unicamente a ele mesmo.

Consequentemente, não afetou a totalidade do gênero humano.

3) A lei (expressa no Antigo Testamento e condensada exemplarmente no

Decálogo) é suficiente para se alcançar o Reino dos Céus. Tem, neste sentido,

valor equivalente ao Evangelho.

4) Mesmo antes da vinda de Cristo, existiram homens que viviam sem

pecado.

5) As crianças recém-nascidas encontram-se na mesma condição de Adão

antes da queda.

6) O pecado e a morte de Adão não provocaram em conseqüência a morte

de todo o gênero humano, assim como a ressurreição de Cristo não gerou em

conseqüência a ressurreição para toda a humanidade.

Estes pressupostos, com suas conseqüências lógicas afetavam diretamente

alguns pontos centrais da doutrina católica, gerando a necessidade de

esclarecimentos e de um posicionamento oficial da Igreja a seu respeito. De fato, a

primeira, a segunda e a sexta proposições distorciam a concepção católica do

pecado original como realidade que se projeta para além de Adão e que atinge

cada ser humano, posto que todos nascemos, por assim dizer, “num ambiente” que

sofreu a influência do pecado57. A terceira proposição toca a questão da salvação

55 Cf. ibid., p. 35-36. 56 Cf. ibid., p. 36-37. 57 Neste ponto, as afirmações pelagianas contrastavam com o texto de Rm 5,12, que atesta que devido ao “pecado de Adão” a morte entrou no mundo e atingiu a todos. Não por acaso, Agostinho recordará este texto em diferentes ocasiões nas suas obras de combate ao pelagianismo. Vide De

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pela graça (e não pelo cumprimento estrito dos preceitos legais) e,

simultaneamente, a questão da relação entre Antigo e Novo Testamento. A quarta

proposição, além de guardar certa relação com a questão do pecado original, diz

respeito mais diretamente ao problema da impecabilidade. Por fim, a quinta

proposição recoloca a discussão sobre os efeitos do pecado original sobre as

crianças, tendo consequentemente reflexos sobre a teologia dos sacramentos,

particularmente sobre a legitimidade e a validade do batismo infantil.

Podemos notar que o pelagianismo, sob a pena de Celestio, adquiria maior

clareza e nitidez em seu conteúdo e em suas formulações. Já é possível agora

antever os pontos teológicos que precisarão ser mais bem explicados, uma vez

que, sob influxo daquelas idéias, temas como a realidade do pecado e a atuação da

graça no processo de salvação permaneciam obscuros ou ganhavam formulações

dúbias e equivocadas. Estas incertezas e equívocos teológicos ganharam uma

versão provocativa e até insólita na versão de Juliano de Eclano.

Juliano era integrante da nobreza rural da Itália meridional. Sua ascensão

na carreira eclesiástica foi rápida. Em breve espaço de tempo fora feito padre e

depois bispo de Eclano. Familiarizou-se com noções da filosofia grega,

especialmente do estoicismo e da lógica aristotélica. No entanto, não seria

notabilizado na história pela profundidade intelectual, mas ao contrário, pelo

modo debochado e sarcástico com que desferia suas críticas aos opositores do

pelagianismo58. Suas invectivas contra Agostinho não conheciam limites, “nem os

da justiça, nem os do decoro”59. Não conseguindo vencer o bispo de Hipona no

campo teológico, tentava desqualificá-lo como “maniqueu não convertido”,

chegando até a chamá-lo de “patronus asinorum”60.

Atingido pessoalmente por tais ataques, Agostinho reagiu de modo mais

enérgico do que com qualquer outro de seus adversários. De fato, redigiu várias

obras contra Juliano, sempre procurando refutar um a um seus principais

argumentos. Juliano, com efeito, exaltava a condição humana nos célebres “cinco spiritu et littera 27, 47. Cabe, entretanto, notar que a vulgata traduz equivocadamente o referido texto, ao empregar a expressão “in quo” que sujere que a morte atingiu a todos devido ao pecado pessoal de Adão “no qual” todos teriam pecado. As traduções críticas da Bíblia de Jerusalém e da TEB, mais fiéis ao original grego, apontam que o sentido de Rm 5,12 é o de que a morte atingiu a todos não apenas devido ao pecado de Adão, mas “porque” todos pecaram, ratificando pessoalmente o mal iniciado pelo primeiro homem (Adão). 58 Sobre Juliano de Eclano ver BAUS, K. e EWIG, E., in JEDIN, H. (org.) obra citada, p. 246-251. 59 Ibid., p. 247. 60 Ibid.; citando Santo Agostinho, Opus Imperfectum 4,46.

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louvores”: da criatura, do matrimônio, da lei, da vontade livre e dos santos61.

Enaltecia, assim, o valor da natureza humana, a positividade e a capacidade

operativa do livre arbítrio, e a importância da lei como instrumento de salvação,

opondo-se, assim, radicalmente às concepções agostinianas do pecado original e

da concupiscência.

1.4.2.1

A reação de Agostinho e a condenação do pelagianismo

Em 412 d.C., Agostinho escreveu e enviou a Flávio Marcelino o De

peccatorum meritis et remissione et de batismo parvulorum, obra em três livros,

na qual aborda precisamente a remissão dos pecados pela graça e não pelos

méritos e a questão da utilidade do batismo para redenção das crianças. Em 415

d.C., em resposta à exacerbada exaltação da natureza humana no De Natura de

Pelágio, Agostinho escrevia o seu De Natura et Gratia, mostrando que a graça

cura e liberta a natureza dos efeitos deformadores do pecado. Já em 418 d.C., o

bispo de Hipona redigia De Gratia Christi et de peccato originali, reafirmando a

doutrina católica sobre o pecado original e expressando a real necessidade para o

homem, da ação salvífica de Deus, não externamente mediante os preceitos da lei,

mas internamente mediante a graça62.

A oposição doutrinal ao pelagianismo, que teve em Agostinho seu mestre

maior, foi sendo acompanhada, por outro lado, de um processo formal de

condenação nos sínodos e concílios da Igreja. Assim, Aurélio, bispo de Cartago,

em 411 d.C. já havia convocado um sínodo para interrogar Celestio sobre suas

concepções acerca do pecado original e do batismo das crianças, as quais foram

rejeitadas. Em 415 d.C., Pelágio precisou se explicar junto à assembléia de

Jerusalém e no sínodo de Dióspole nos quais, embora absolvido, não conseguiu

senão adiar a condenação de suas teses. No ano seguinte, as proposições de 61 Cf. BAUS, K. e EWIG, E., in JEDIN, H. (org.) obra citada, p.248, citando o chamado “Manifesto de Aquilea” (PL 48, 509-526) e também Agostinho, Contra duas ep. Pel., 4,1. 62 Ao refletir aqui sobre a reação de Agostinho ao pelagianismo, não há necessidade de expor em ordem cronológica toda a longa série de escritos do bispo de Hipona sobre o assunto. Creio que basta citar algumas obras chave no enfrentamento da controvérsia pelagiana. Uma abordagem minuciosa sobre este ponto fugiria ao objetivo desta tese. Para uma apreciação mais detalhada acerca da reação anti-pelagiana de Agostinho em sua evolução histórica, (além da bibliografia anteriormente indicada na nota 46), existem as obras de GUZO, A., Agostino contro Pelagio, Turim, 1958; BONNER, G., Augustine and Modern Research on Pelagianism, Villanova, 1972; DANIELOU, J. e MARROU, H., Nova História da Igreja, vol. 1, Petrópolis, 1973, p. 405-413.

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Celestio eram novamente condenadas nos sínodos do episcopado africano em

Cartago e Mileve. Confirmando as críticas e refutações já empreendidas, o papa

Inocêncio I, em 417 d.C., pronunciou-se declarando que Pelágio e Celestio

deveriam ser afastados da comunhão eclesiástica, caso permanecessem renitentes

em sustentar as proposições já condenadas pelo episcopado africano. No ano

seguinte, num edito de 30 de abril de 418, o imperador Onório determinava a

expulsão de Pelágio e Celestio de Roma e a proibição da divulgação de suas

doutrinas. Ainda naquele mesmo ano, um novo sínodo em Cartago elaborou oito

cânones, nos quais reprovava os principais argumentos pelagianos, vindo em

seguida a encíclica Epistula Tractoria do papa Zózimo, confirmando

expressamente a posição do episcopado africano e apresentando a condenação

definitiva do pelagianismo, a qual deveria ser subscrita por todos os bispos e

publicada em todo o império.

Todo este contexto eclesial que envolveu os embates contra o donatismo e

contra o pelagianismo marcou profundamente a obra de Agostinho. A construção

de seu pensamento a respeito da questão da liberdade não ficou imune a estas

influências. Como pretendo demonstrar, as diversas nuances da abordagem

agostiniana sobre o tema da liberdade foram elaboradas dentro deste itinerário

pessoal feito por Agostinho. Apresentar os pontos fundamentais da reflexão

agostiniana sobre a liberdade será, então, o próximo passo deste estudo.

1.5

Noções básicas da reflexão de Agostinho sobre a liberdade

Depois de apresentar o contexto no qual santo Agostinho elaborou sua

vasta obra, mostrarei a seguir, como a vida pessoal dele exerceu uma forte

influência na maneira como ele refletiu sobre o tema da liberdade. Não há dúvida

de que este constitui um ponto importante da obra teológica agostiniana. No

entanto, deve ser ressaltado que esta obra não foi escrita toda de uma só vez. Cada

livro representa um momento da trajetória de Agostinho, o que provoca nuances e

matizações distintas no modo como ele reflete sobre o tema da liberdade.

Por isso mesmo, os estudiosos da obra de Agostinho alertam para o fato de

que seria um erro tratar a reflexão agostiniana sobre a liberdade como um

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pensamento linear e homogêneo63. Construído ao longo da vida de Agostinho, nas

diversas fases de sua produção intelectual, este pensamento sobre a liberdade foi

sendo elaborado progressivamente, assumindo formulações próprias para os

debates nos quais Agostinho se empenhava.

Assim, se cairmos no equívoco de tomar isoladamente uma obra, ou uma

formulação específica de Agostinho sobre a liberdade, certamente chegaremos a

resultados parciais incorretos que não expressam fielmente o pensamento

agostiniano. Este deve ser abordado a partir de uma visão de conjunto sobre a

obra e a vida de Agostinho, pois só assim faremos justiça à dialética histórica e

pessoal dentro da qual foram produzidas as idéias que Agostinho formulou acerca

da liberdade.

Por estas razões é que me proponho agora, a abordar as noções básicas

construídas por Agostinho acerca da liberdade, situando-as dentro dessa trajetória

pessoal e intelectual descrita nos itens anteriores. Creio que podemos situar o

pensamento agostiniano sobre a liberdade dentro de dois pólos em certo sentido

“opostos” que são, respectivamente, o debate com o maniqueísmo e o debate com

o pelagianismo. Há, sem dúvida nuances comuns entre os escritos anti-maniqueus

e os escritos anti-pelagianos. Assim como há também nuances muito distintas

entre estes dois pólos da produção literária agostiniana, de tal sorte que, por vezes,

certas expressões das obras anti-pelagianas parecem antagônicas às afirmações

básicas da concepção de liberdade formulada nas obras anti-maniquéias.

É justamente essa dinâmica que torna o estudo da obra de santo Agostinho

uma tarefa simultaneamente fascinante e complexa. Não faz parte do objetivo

desta tese fazer uma análise detalhada das diversas correntes de interpretação

entre os especialistas que pesquisam a obra de santo Agostinho, nem expor os

argumentos de cada um deles em favor de suas respectivas perspectivas de

abordagem. Importa muito mais, de acordo com o objetivo desta tese, mostrar

essa dialética do pensamento de Agostinho sobre a liberdade, captando suas

principais nuances, sem criar falsos antagonismos entre elas. Assim, creio que

estarei sendo fiel ao pensamento agostiniano sem deixar de apontar suas riquezas

e suas imperfeições.

63 Sobre os critérios para a interpretação da obra de Agostinho ver TRAPÈ, A., S. Agostino: Introduzione alla Dottrina della Grazia, v. 1, Roma, Città Nuova Editrice, 1987, p. 7-41; e Ibid., v. 2, p. 11-42; ver também THONNARD, F-J., “Les méthodes d’ interpretation de la pensée augustinienne”, Revue des Études Augustiniennes 5 (1959), p. 103-120.

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Será nesta perspectiva de uma análise de conjunto, que vou abordar a obra

agostiniana, visando destacar a concepção de liberdade que emerge tanto no

combate ao maniqueísmo, como no combate ao pelagianismo. Creio que a

articulação entre estes dois momentos da produção agostiniana será muito mais

enriquecedora do que uma abordagem que se limitasse a um ou outro desses dois

momentos. Assim sendo, começarei pela abordagem da primeira fase, que é

justamente esta caracterizada pelos escritos anti-maniqueus.

1.5.1

Abordagem da liberdade a partir das obras de combate ao

maniqueísmo

Como é sabido, Agostinho escreveu muitas obras contra o maniqueísmo.

Sua atuação neste debate possui um tom especial devido ao fato de ele mesmo ter

aderido às idéias maniquéias durante a fase inicial de sua busca intelectual pela

verdade. Como já apontei anteriormente, a explicação dada pelos maniqueus para

o problema do mal satisfez por algum tempo a Agostinho em seu desejo de

compreender bem aquela questão que o inquietava. Tal explicação estava fundada

sobre um radical dualismo antropológico, que por sua vez se apoiava no dualismo

metafísico da concepção dos dois princípios (bem x mal) co-eternos e contrários.

Em conseqüência o maniqueísmo concebia a existência, no interior do homem, de

dois princípios vitais (duas almas) um bom e outro mau, sempre em conflito.

Segundo esta concepção, o princípio vencedor determinava o caráter e o agir

moral da pessoa. Assim a liberdade humana era anulada.

Contra tais idéias, Agostinho escreveu diversas obras entre as quais o De

duabus animabus contra Manichaeos e o De libero arbitrio. Esta última tornou-se

a obra clássica de Agostinho em termos de fundamentação lógico-filosófica da

liberdade humana. Por isso mesmo, muito do que aqui será dito a respeito do

pensamento de Agostinho sobre a liberdade baseia-se nesta obra. Nela encontram-

se os elementos básicos da liberdade humana apresentados por Agostinho como

resposta aos argumentos maniqueus.

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46

1.5.1.1

A Liberdade dentro da “ordem natural” criada por Deus

Constatando a insuficiência do raciocínio maniqueu, Agostinho chega à

conclusão de que o mal é uma imperfeição presente na existência do ser humano,

imperfeição esta que se situa no âmbito da própria liberdade, no âmbito do próprio

agir moral do homem. Assim, o mal não é algo pré-determinado a priori, é uma

situação gerada pela falta de sabedoria na própria vida do homem. O mal é

suscitado no âmbito do agir humano e é no âmbito desse mesmo agir que ele deve

ser combatido e superado. Daí vem toda a ênfase de Agostinho na busca do

conhecimento. O homem deve “instruir-se” bem para poder agir bem. Este

processo de “instrução” e de combate ao mal, para santo Agostinho, corresponde

ao empenho do homem na busca da verdade. Compreender o mundo, perceber que

cada criatura é parte integrante do universo considerado em seu conjunto,

entender o desenvolvimento humano de acordo com a ordem natural instituída

pelo Criador e colaborar espontaneamente com esta “ordem” equivale a coadunar-

se com a verdade do próprio homem e do mundo.

Daí a importância de se ter a compreensão (tanto quanto nos seja possível)

acerca da fonte do mal e também acerca da natureza e das capacidades de nossa

liberdade. Assim, no De libero arbitrio, Evódio (amigo e interlocutor no debate

filosófico), propõe a questão: “qual a causa de praticarmos o mal?” Dá, assim, o

ensejo para que santo Agostinho construa sua argumentação. Nela encontramos:

a) a noção da própria busca da verdade como experiência de liberdade

b) a afirmação de que a graça é que propicia a possibilidade de êxito neste

empenho para encontrar a verdade.

c) o necessário reconhecimento do Deus da revelação bíblico-cristã, como

fundamento primeiro dessa busca pela verdade.

d) o domínio das “paixões” sobre o homem como causa do mal

e) A estrutura interna do ser humano como parte da ordem natural do

universo, ordem esta que fora criada pelo próprio Deus

Cada um desses pontos merece uma apreciação atenta, a fim de se indicar

o modo como se constitui a liberdade, de acordo com a visão de santo Agostinho.

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a) A busca da verdade como experiência de liberdade

“Agostinho: Suscitas precisamente uma questão que me atormentou por demais desde quando era ainda muito jovem. Após ter-me cansado inutilmente de resolvê-la, levou a precipitar-me na heresia [dos maniqueus], com tal violência que fiquei prostrado. Tão ferido sob o peso de tamanhas e tão inconsistentes fábulas, que se não fosse meu ardente desejo de encontrar a verdade e se não tivesse conseguido o auxílio divino, não teria podido emergir de lá nem aspirar à primeira das liberdades - a de poder buscar a verdade. (...) Seja-nos, pois, Deus propício e faça-nos chegar a entender aquilo em que acreditamos.” 64.

A “primeira das liberdades” é “poder buscar a verdade”. Agostinho parece

atribuir a essa busca um valor inestimável. Ser livre não é fazer o que se quer sem

precisar pensar nas conseqüências. Ser livre, para santo Agostinho, é estar liberto

o suficiente para poder ser sábio, estar ciente da realidade, ter o conhecimento da

verdade acerca de si mesmo e de sua própria condição de estar no mundo. Ser

livre é compreender a própria existência, é desprender-se de concepções

equivocadas. É um acercar-se da verdade sobre si mesmo, sobre o mundo, sobre a

criação e o Criador. Chegar a este “entendimento” é, nesse sentido, um passo

decisivo para encontrar a verdadeira liberdade. Viver de acordo com a verdade é

próprio do homem sábio, o homem que se deixou ser “instruído” pela Sabedoria.

Ou seja, ser livre é agir com inteligência. É encontrar-se com a fonte dessa

liberdade que, para santo Agostinho, é o próprio Deus. Contemplar sabiamente a

criação leva o homem a deparar-se com a presença do Criador. Santo Agostinho

acredita nessa relação entre o Criador e as criaturas, de tal sorte que crê que

podemos ver na criação os sinais da ação do Criador. Como quem descobre o

nexo entre a causa e o efeito, assim é aquele que se torna capaz de contemplar, na

ordem natural da criação, a presença do Criador.

Isto se dá numa escala ascendente dos bens e seres inferiores para os

superiores. Os primeiros devem ser menos valorizados, enquanto que os últimos

devem ser mais valorizados pelo ser humano. Desse modo, as realidades eternas

são superiores às temporais, os bens celestes são superiores aos terrestres, pois

assim foi disposto pelo próprio Deus criador eterno e todo poderoso. Quando a

vontade humana se inclina inversamente dando preferência aos bens inferiores

isso é que induz o homem a pecar a gerar o ato moralmente mau. Aí é que o

64 De libero arbitrio 1, 2,4.

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homem entra em contradição com a ordem naturalmente estabelecida por Deus.

Trata-se de um “desejo culpável” que expressa “esse amor desordenado por

aquelas coisas terrenas que se podem perder”65, distintas daquelas outras

realidades eternas das dádivas divinas, que uma vez obtidas não se desfazem e das

quais o homem só se afasta se assim o quiser.

Liberdade é poder dispor inteligentemente desses bens, dando a cada qual

o valor que merece e mantendo um certo distanciamento necessário, para que os

bens não se sobreponham ao homem de modo a torná-lo dependente deles. A

autonomia e o discernimento do ser humano diante dos bens e criaturas terrestres

parece ser o critério fundamental para averiguar se o homem está sendo

efetivamente livre ou não.

“Agostinho: Assim, as mesmas coisas podem ser usadas diferentemente: de modo bom ou mal. E quem se serve mal é aquele que se apega a tais bens de maneira a se embaraçar com eles, amando-os demasiadamente. Com efeito, submete-se àqueles mesmos bens que lhe deveriam estar submissos. Faz dessas coisas bens aos quais ele mesmo deveria ser um bem ordenando-as e fazendo delas bom uso.

Assim, quem se serve dessas coisas de modo ordenado mostra que elas são boas, não para si, pois elas não o tornam nem bom nem melhor, mas antes é ele mesmo que as torna melhores. Por isso ele não as ama até se deixar prender e não faz delas como se fossem membros de sua própria alma - o que seria feito caso as amasse a ponto de recear que elas vindo a lhe faltar, lhe fossem como cruéis e dolorosos ferimentos. Mas [isso ocorrerá deste modo, mantendo a natural hierarquia dos bens terrenos] se ele se mantiver acima dessas coisas, pronto a possuí-las e governá-las caso seja preciso e, mais ainda, pronto a perdê-las ou a se passar delas. Visto que assim é, crês que seria preciso condenar o ouro e a prata por causa dos avarentos; ou o vinho por causa dos que se embriagam; ou o encanto das mulheres por causa dos libertinos e dos adúlteros, e assim em relação a tudo mais? Especialmente quando podes ver um médico fazer bom uso do fogo e um envenenador mau uso até do pão?

Evódio: Isso é bem verdade não se pode considerar as coisas por elas mesmas, mas sim os homens que podem fazer mau uso delas.”66

A correção do uso é definida pela capacidade do homem de se desapegar

dos bens. Assim rege a “lei eterna”67, segundo a opinião de santo Agostinho. É o

homem que deve direcionar as coisas e não o contrário. Os bens naturais e

terrenos, e mesmo as criações do engenho humano como o vinho, não são

passíveis de uma avaliação moral. Os “objetos” não são bons nem ruins em si

mesmos. O homem sim é que pode ser avaliado segundo o uso salutar ou nocivo 65 Cf. De libero arbitrio 1, 4,10. 66 De libero arbitrio 1, 15,33. 67 Ibid., 1, 6.

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49

que dá às coisas. A uva de que é feito o vinho, o ouro e a prata usados para fazer

moedas e jóias a própria mulher com sua beleza feminina, enquanto criaturas de

Deus são todos bons. Fazem parte daquele universo criado que o livro do Gênesis

classifica como “bom”, aos olhos de Deus68. No entanto, enquanto objetos

submetidos ao manuseio do ser humano, enquanto matérias submetidas ao livre

arbítrio humano esses mesmos seres e elementos da natureza criados bons podem

ser destinados a finalidades ruins.

Assim, a perda da liberdade consiste justamente na inversão da lógica

natural das coisas. Ou seja, o ato moralmente mau ocorre quando, ao invés de

utilizar das coisas com bom senso, o homem é que se deixa instrumentalizar por

elas se apegando demasiadamente e fazendo delas mau uso.

Nota-se, portanto, que há, na base da argumentação agostiniana, a noção

de que existe uma “lei eterna e divina” que rege o universo. Há, de acordo com

essa lei, uma verdade sobre o mundo e também uma verdade sobre o ser humano;

uma verdade “natural” sobre a “ordem” do universo criado, produto da ação

dAquele que o criou. É na busca e na descoberta dessa verdade que o ser humano

experimenta sua liberdade.

b) A Graça é que sustenta e conduz a busca pela verdade

Tal descoberta da verdade, porém, não é mero produto do engenho

humano. Recordando os equívocos sofridos quando pensava ter encontrado no

maniqueísmo a resposta certa, Agostinho formula sutilmente alguns princípios

que se tornarão verdadeiros axiomas de sua linha de pensamento. Julgando ter

acertado depois de muito errar69, ele crê que a verdade que ele agora contempla é

fruto da ação da própria Verdade sobre ele. A Verdade encontrou Agostinho e se

deixou ser por ele encontrada. A Verdade se revelou. A graça agiu e o fez ver.

Possibilitou-lhe atingir o entendimento, fazendo-o perceber os erros por onde ele

próprio divagou até encontrar a direção acertada para prosseguir em sua busca. A

palavra “graça” não foi formalmente dita, (é a polêmica pelagiana

cronologicamente posterior ao De libero arbitrio que o exigirá). No entanto,

68 Cf. Gn 1. 69 Tal como em De libero arbitrio 1, 2,4 também em Confessiones 5, 18,10 e 8, 10,22 Agostinho reconhece sua adesão ao maniqueísmo como um erro próprio de quem ainda não encontrou a verdade; como opção própria de alguém que anda perdido, fora do caminho que conduz à verdade.

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50

podemos reconhecer uma referência à graça divina na expressão equivalente,

(“auxílio divino”), por ele empregada no texto supracitado. Agostinho está

querendo afirmar que, não fosse a ação providente da graça, ele não teria

descoberto a insuficiência da resposta maniquéia à questão da origem do mal e

não teria percebido a negação da liberdade humana, decorrente da lógica dualista

e determinista do pensamento maniqueu. Não fosse o “auxílio” por Deus

concedido, Agostinho ainda viveria no erro, afastado da verdade, aprisionado em

falsas concepções, que ensejavam práticas igualmente equivocadas, que o

afastavam da verdade que ele almejava encontrar. Nota-se como graça e liberdade

se articulam de forma coerente no pensamento agostiniano70, mesmo antes das

obras anti-pelagianas.

c) Deus como fundamento absoluto necessário

O movimento pessoal de busca pela verdade é conduzido pelo próprio

homem, mediante sua livre vontade. No entanto, pelo que foi indicado no item

anterior, Agostinho não concebe esse movimento sem a afirmação de Deus como

pressuposto e fundamento absoluto da própria busca e do acesso à verdade. Santo

Agostinho quer levar a sério a fé cristã na qual se engajara de corpo e alma. Quer

levá-la a termo, extraindo dela todos os seus desdobramentos, suas conseqüências

70 Ao longo do livro há outras referências indiretas à graça como “auxílio divino” que atua em socorro da fragilidade humana. Além do texto de De libero arbitrio 1, 2,4 e 2, 20,54 podemos notar esta articulação entre graça divina e liberdade humana também em 1, 6,14 : “Agostinho: Pois bem, coragem! Envereda pelos caminhos da razão, confiando-te na piedade. Na verdade, nada existe que seja tão árduo e difícil que não se torne com a ajuda divina bem simples e fácil. E assim, orientados para Deus e implorando-lhe o auxílio divino, havemos de investigar o tema que nos propusemos” (grifo meu). Além deste, há um outro texto que explicita ainda mais a articulação entre graça e liberdade. Notemos: “Ora todo bem procede de Deus. Não há de fato, realidade alguma que não proceda de Deus. Considera agora, de onde pode proceder aquele movimento de aversão [ao plano divino] que nós reconhecemos constituir o pecado - sendo ele movimento defeituoso e todo defeito vindo do não-ser, não duvides de afirmar, sem hesitação, que ele não procede de Deus. Tal defeito porém, sendo voluntário, está posto sob nosso poder. Porque se de fato o temeres, é preciso não o querer; e se não o quiseres, ele não existirá. Haverá pois segurança maior do que te encontrares em uma vida onde nada pode te acontecer quando não o queiras? Mas é verdade que o homem que cai por si mesmo, não pode igualmente se reerguer por si mesmo, tão espontaneamente. É por que do céu Deus estende sua mão direita, isto é, nosso Senhor Jesus Cristo. Peguemos essa mão, com fé firme, esperemos sua ajuda com esperança confiante e desejemo-la com ardente caridade” (De libero arbitrio 2, 20,54; grifo meu). A primeira parte deste texto exaltando a liberdade do homem era usada como argumento pelos pelagianos em defesa de sua tese. Mas eles espertamente ocultavam a segunda parte do texto que fala da necessidade do auxílio divino da graça, advindo de Jesus Cristo, para que o homem decaído possa se re-erguer do pecado (cf. Retractationes 1, 9,1-6).

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lógicas, compreendendo claramente as afirmações e as práticas de vida

decorrentes da coerência com os princípios assumidos.

Crer não impede compreender. Ao contrário, podemos crer melhor na

medida em que compreendermos melhor a verdade na qual cremos. Seguindo esta

perspectiva, Agostinho quer afirmar formalmente a inteligibilidade da própria

revelação cristã, visto estar ela subentendida no ponto de partida e nos

pressupostos do sistema de pensamento por ele construído. Assim sendo, “o nó a

ser desatado” é a suposta incompatibilidade entre a afirmação de um Deus único,

infinitamente bom, do qual provém tudo quanto existe e a existência do mal e do

pecado na vida do homem criado à imagem e semelhança desse Deus. Aqui

Agostinho preocupa-se em demonstrar que a elaboração de uma concepção

correta e coerente acerca de Deus, constitui um ponto importante no próprio

projeto de busca da verdade e da liberdade que lhe é correspondente.

Vale a pena lembrar aqui, que o próprio Agostinho afirma ter feito

pessoalmente esta experiência de poder descobrir a verdade, porque também a

Verdade o descobriu e a ele se revelou. Suscitou nele a fé o crer naquilo que então

se revelou. Ele deseja com sua argumentação ajudar seus leitores a “entender

aquilo em que acreditamos”71, ou seja, a comprovar a correção da perspectiva

cristã na apresentação da verdade sobre Deus e sobre o próprio homem. Este

objetivo é reafirmado, quando Agostinho exorta Evódio a se lançar neste mesmo

caminho para ter acesso à verdade.

“Agostinho: Tem coragem, e conserva a fé naquilo que crês. Nada é mais recomendável do que crer, até no caso de estar oculta a razão de por que isso ser assim e não de outro modo. Com efeito, conceber de Deus a opinião mais excelente possível é o começo mais autêntico da piedade. E ninguém terá de Deus um alto conceito se não crer que ele é todo-poderoso e que não possui parte alguma de sua natureza submissa a qualquer mudança. Crer ainda que ele é o Criador de todos os bens, aos quais é infinitamente superior; assim como ser ele aquele que governa com perfeita justiça tudo quanto criou, sem sentir necessidade de criar qualquer ser que seja, como se não fosse auto-suficiente. Isso porque tirou tudo do nada.

Entretanto ele gerou, (não o criou), de sua própria essência aquele que lhe é igual, o qual é como professamos, o Filho único de Deus. E aquele a quem nós denominamos, procurando as expressões mais acessíveis: ‘Força de Deus e Sabedoria de Deus (1 Cor 1,24). Por meio dele, Deus fez tudo o que tirou do nada.

71 De libero arbitrio 1, 2,4.

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Tudo isso tendo sido estabelecido, contando com a ajuda de Deus, procuremos agora, com empenho, compreender a questão por ti proposta, (...)”72.

Nota-se no texto citado que santo Agostinho tem uma rota, um caminho a

ser percorrido na reflexão, com etapas de fundamentação. É este caminho que ele

seguiu em sua descoberta e é esta mesma estratégia que ele quer recomendar para

todos os seus futuros leitores. Nesta rota de reflexão estabelecida por santo

Agostinho, vemos que os dados da concepção cristã de Deus vão sendo

confirmados um a um, como sendo a base sólida que dará a segurança e o impulso

necessários para percorrer as etapas seguintes. A adequada compreensão sobre

Deus é o alicerce sobre o qual irá se construir todo o edifício do pensamento

agostiniano sobre a liberdade e sobre a questão do mal e do pecado. E assim os

principais atributos de Deus estão ali colocados, como uma espécie de premissa

básica e como ponto de partida para o início de conversa.

Deus é onipotente, imutável, Criador, perfeitamente justo, auto-suficiente,

o Pai gerador de Jesus Cristo como Filho unigênito e verbo eterno de Deus, por

meio de quem todas as coisas foram criadas. Santo Agostinho parece estar

afirmando que sem tais atributos não teremos “um alto conceito de Deus”. Sem

tais pressupostos não estaremos “concebendo de Deus a idéia mais excelente

possível”. E conclui, confirmando que somente depois de estabelecer tal

concepção de Deus é que teremos as condições de dar os passos seguintes.

d) O domínio das “paixões” sobre o homem como causa do mal

De acordo com o itinerário proposto, Agostinho se dedica à problemática

da existência do mal, num mundo criado por um Deus único, sumamente bom e

criador de todas as coisas, relacionando-o com o tema da liberdade. Na verdade o

mal moral, (que o Cristianismo caracteriza como pecado) é produto de uma

motivação interior. Aqui santo Agostinho recorre ao conceito de “paixão” para

explicar o mal como manifestação de um desequilíbrio, de uma desorientação, de

uma falha ou erro que transcorre primeiramente no interior do próprio homem.

Partindo do adultério como exemplo, Agostinho argumenta, (citando Mt

5,28), que vive o mal não apenas quem o pratica, mas também quem o deseja na 72 De libero arbitrio 1, 2,5.

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intenção. A malícia mora na paixão e é ela que desencadeia o processo interior

que leva até o ato mau. Então, Evódio se dá por convencido “...é claro que em

todas as espécies de ações más é a paixão quem domina”, logo pecado é deixar-

se dominar pelas paixões73.

“Sabes que essa paixão é também denominada concupiscência?” 74.

Concupiscência aqui é entendida como inclinação para o mal. Representa

as más tendências de comportamento, as vontades negativas, o desejo de provocar

o mal, transgredir, prejudicar, dominar, praticar arbitrariedades impunemente e,

sobretudo, o desejo de contrariar o que é naturalmente estabelecido por Deus.

Através dessa concepção das “paixões” como “concupiscência”,

Agostinho fornece uma explicação para a questão do mal; ao menos, no que se

refere à experiência humana do mal enquanto pecado pessoal. Este parece ser o

ponto focal da análise de Agostinho. A paixão que leva ao ato moralmente mau é

o apego exagerado às coisas que equivocadamente julgamos ser um bem de

primeira necessidade. Com a noção de “paixões” santo Agostinho quer expressar

os desejos desordenados, o apego indevido, o afeto desmedido e inconseqüente

dirigido aos bens terrenos, como se eles tivessem o mesmo valor dos bens eternos.

É assim que os atos cometidos por paixão subvertem a hierarquia dos valores

estabelecida por Deus, corrompendo o homem, impedindo-o de agir

virtuosamente. A inversão da natural hierarquia dos bens criados se constitui na

atitude de dar preferência aos bens inferiores, rebaixando a um valor secundário

os bens supremos (Deus e as realidades espirituais da alma que podem conduzir o

homem à salvação, etc.). É esta inversão da hierarquia de bens e valores

divinamente estabelecida, que configura o critério para classificar determinadas

atitudes como pecado e, portanto, como ações moralmente culpáveis75.

Assim é que Agostinho prepara o caminho, para estabelecer o ser humano

dotado naturalmente de razão e de livre arbítrio, como parte da “ordem natural”

criada por Deus. Dentro da ordem do cosmo existe o ser humano com sua

constituição interior própria, sua estrutura pessoal dotada de alma, mente e razão.

73 De libero arbitrio 1, 3,8. 74 Ibid., 1,4,9. 75 Cf. De libero arbitrio 1, 4,10.

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É a partir desta estrutura que o ser humano está apto para agir, movendo

livremente sua própria vontade pessoal.

e) A estrutura interna do ser humano como parte da ordem natural

do universo criada por Deus

O homem é superior às demais criaturas por ser dotado de razão. Para

santo Agostinho, razão é o princípio mais elevado na criatura humana e constitui

“a excelência do homem”76. Nota-se, portanto, que a própria estrutura interna do

ser humano (sua constituição biológica, psíquica e espiritual) está harmonizada

com a ordem natural do universo estipulada por Deus. A estrutura fundamental da

existência humana é parte da ordem hierárquica da natureza e do universo.

“Agostinho: Prossigamos e vejamos agora como o homem está perfeitamente ordenado em si mesmo. (...)

Evódio: Pois é no espírito que reside a faculdade pela qual nós somos superiores aos animais” 77.

A estrutura interna da pessoa humana é uma dádiva do Criador. Tal

estrutura tem também uma ordem hierárquica estabelecida por Deus, na qual a

razão é o elemento mais elevado. O ser humano é dotado de uma existência

natural e biológica. Tal condição o iguala aos demais elementos existentes no

universo. Tudo que está presente no cosmo possui “existência”. Porém além da

existência, o homem possui vida animada e também a capacidade de raciocínio e

discernimento, conformando uma vida inteligente. Temos, assim, os três atributos

que caracterizam a condição humana e a diferenciam das demais criaturas

presentes no universo. O ser humano tem “existência” no interior do mundo

criado (ele vive) ; além disso ele tem “conhecimento racional” (ele sabe que vive),

por fim o ser humano possui “consciência”, (ou seja, ele reflete sobre sua vida e

planeja, pela razão, o modo como quer viver).

Portanto, a condição do homem é, neste sentido, superior às demais

criaturas no universo. Sua vida constitui uma modalidade de existência mais

elevada. É um viver com consciência de si, um viver com sabedoria, um viver

76 De libero arbitrio 1, 7,16. 77 Ibid.; Neste texto a palavra espírito é usada para designar a “mente” como morada da razão.

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planejado e refletido mediante um saber consciente. O conhecimento produzido

pelo uso da inteligência é, para santo Agostinho, um viver mais perfeito.

Agostinho: “(...) talvez queiras dizer que o conhecimento é uma vida mais alta e mais pura, a qual ninguém pode alcançar, a não ser que seja dotado de inteligência? Ora, o que é ter inteligência a não ser viver com mais perfeição e esplendor, graças à luz mesma da mente?” 78.

Santo Agostinho postula um tipo de vida guiado pela inteligência. Vida

consciente de si, com forte uso da razão, do entendimento, do discernimento. Tal

qualidade de vida é possível graças à natural capacidade de raciocínio, de

avaliação, estudo e aprendizagem. É a inteligência. Atributo humano que é uma

bênção concedida pelo Criador. Há, na mente do homem, “a luz” dada por Deus,

luz essa que é o fundamento de toda essa maravilhosa capacidade de raciocínio,

aprendizagem, de desenvolvimento intelectual, psíquico e espiritual79. Esta

estrutura fundamental do ser humano é o ordenamento natural de origem divina

que o constitui como ser de razão e de liberdade. Assim é que se configura a vida

humana como uma ordem perfeita em si mesma e, simultaneamente, como uma

unidade constitutiva de um todo maior, que é a ordem hierárquica do universo, de

origem igualmente divina e perfeita.

A capacidade de raciocínio e de compreensão, (fundamento da tomada de

decisões), é o ponto alto da ordem natural da estrutura interna da pessoa humana.

É ela que possibilita o correto direcionamento para a vida do homem. Daí o valor

inestimável dado por santo Agostinho a essa capacidade humana de agir livre e

racionalmente.

Cabe ressaltar, entretanto, que habitam o homem não apenas elementos

nobres e elevados, mas também sentimentos ambíguos e marcados por certa carga

de negatividade. Agostinho menciona, por exemplo, “o amor aos elogios, à

própria glória pessoal” e o “desejo de dominar” como sendo “paixões” e

“inclinações” avessas à razão que nos causam muitos infortúnios80. Para

restabelecer a ordem natural das coisas é preciso controlar tais ímpetos mediante o

discernimento e o comando da razão.

78 De libero arbitrio 1, 7,17. 79 Já notamos aqui, sinais dos fundamentos da teoria da “iluminação” divina no homem, tema clássico do pensamento agostiniano. 80 De libero arbitrio 1, 8,18.

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“Por conseguinte, só quando a razão domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado. (...) Então, quando a razão, a mente, ou o espírito governa os movimentos irracionais da alma, é que está a dominar, na verdade, no homem aquilo que precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna”81.

Esta retomada da ordem natural mediante a superação das paixões, este

reto ordenamento mediante a reflexão e a ação no âmbito da razão, somente são

possíveis devido à generosidade do Criador, que deu ao ser humano essa estrutura

interna dotada de mente e razão. É aí nessa estrutura, ou seja, no interior mesmo

da alma humana, que ressoa o eco daquela lei eterna de Deus que rege a natureza

do homem como também a natureza do universo. Para Agostinho, existe em todo

ser humano, a noção dessa lei eterna. Todos temos a “noção dessa lei eterna” do

Criador “impressa em nosso espírito”. É isso que torna possível orientarmos

nossas vidas de acordo com ela82.

Quando as paixões imperam, o homem vive irracionalmente,

desordenadamente. Reverter tal situação é que constitui a correta ordenação dos

próprios sentimentos, o bem viver, “a vida feliz”83, a existência própria do

homem sábio, virtuoso e temente a Deus. Isso equivale a restabelecer a verdade do

próprio homem. É no âmbito desse movimento interior do ser humano que

Agostinho situa a ação do livre arbítrio.

1.5.1.2

O livre arbítrio como instrumento da liberdade

Dominar ou ser dominado pelas paixões? Eis a questão. Para Santo

Agostinho, de acordo com o encaminhamento dessa questão, de acordo com a

atitude adotada diante das paixões e da razão é que se estabelecerá a diferenciação

entre o homem sábio e o homem néscio. Em ambos os casos, se dá a liberdade de

escolha por parte do ser humano, mediante o recurso ao livre arbítrio.

81 Ibid. 82 De libero arbitrio, 1, 6,15. 83 É a vida bem aventurada, vivida na retidão moral, na coerência com a lei natural que Deus inscreveu no ser humano. Esta é a existência virtuosa, simultaneamente sensata e prazerosa, que Agostinho denomina de “beata vita” e que o moveu a escrever um livro com este mesmo nome (De beata vita).

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O homem sábio é “aquele cuja vida está pacificada pela total submissão

das paixões ao domínio da mente.”84; ao passo que, o indivíduo néscio é aquele

que não impõe o domínio da razão (existente na mente) sobre os impulsos e

sentimentos derivados das paixões. O homem que não orienta sua conduta pela

razão (que lhe fora dada por Deus justamente para esse fim), este é o homem

“insensato”85. Tanto num caso como no outro, é o ser humano quem está agindo,

por sua própria vontade livre, (mediante o livre arbítrio). Aqui santo Agostinho

aborda primeiramente o caso do homem néscio, que faz mau uso do livre arbítrio,

para em seguida afirmar o caráter essencialmente bom do mesmo livre arbítrio

enquanto dom de Deus.

“Portanto, não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livre arbítrio” 86.

O responsável pela submissão às paixões só pode ser o livre arbítrio. É o

próprio ser humano, por meio de sua decisão pessoal quem se submete às paixões,

apegando-se aos bens terrenos, preterindo os bens eternos, invertendo, assim, a

ordem natural e desobedecendo a lei eterna estabelecida por Deus. Esta opção do

livre arbítrio a favor das paixões acarreta diversas conseqüências danosas para o

ser humano. No entanto, ontologicamente falando, nada há, na ordem da natureza,

que force a mente a ceder às paixões. Se Deus tivesse criado o homem indefeso

contra as paixões, seria um deus perverso, não o Deus da revelação cristã. O Ser

Supremo não constrange a mente humana a ser escrava das paixões87. Com este

argumento santo Agostinho se contrapõe frontalmente à perspectiva maniqueísta,

segundo a qual se afirmava serem os homens predestinados ao bem ou ao mal. Se

o homem decai do reto ordenamento interior concedido por Deus, isto só pode

advir de uma deliberação do próprio homem.

De outro lado, (e em sentido positivo) o livre arbítrio não foi dado por

Deus “para que” o homem pecasse. A finalidade natural do livre arbítrio é

possibilitar que o homem possa, por sua própria vontade, optar pelo bem, pois

somente assim ele poderá ser feliz. Em última instância, o objetivo de Deus ao

conceder o livre arbítrio ao homem é a própria felicidade do ser humano. Mas, 84 De libero arbitrio 1, 9,19. 85 Ibid. 86 De libero arbitrio 1, 11,23. 87 Cf. De libero arbitrio 1, 11,21-23.

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para tanto, o próprio ser humano precisa querer ser feliz, necessita pelo exercício

da liberdade, “mover a sua vontade” na direção desta “beata vita”. Por isso, o

homem deve “amar essa boa vontade” que se orienta para o bem. Ele deve

procurá-la e sustentá-la com afinco, pois é pela vontade que o ser humano poderá

alcançar “uma vida louvável e feliz”88.

De tudo isso decorre que, ainda que possa ser mal utilizado, o livre arbítrio

continua sendo um dom, uma dádiva, um bem concedido por Deus à criatura

humana. O livre arbítrio pode ser orientado para o bem, para que o homem regule

sua vida de acordo com os critérios da ordem natural e da lei eterna. Foi

precisamente para isso que o livre arbítrio foi concedido ao homem. No entanto,

ele não é pré-determinado nem mesmo por Deus que o criou. O livre arbítrio é um

dom totalmente submetido ao uso livre que o ser humano lhe dá e é daí que deriva

o pecado. O livre arbítrio pode mover-se tanto para a justiça como para o pecado.

De acordo com a vontade livre do próprio ser humano, ele age como uma

“dobradiça” que se move numa ou noutra direção89.

Assim, o livre arbítrio é por excelência o instrumento próprio para o

exercício da liberdade. Ele está totalmente à disposição do ser humano e, por isso

mesmo, o homem é livre para agir diante de Deus e Deus é justo ao julgar o

homem quando este usa o livre arbítrio para pecar. Não há injustiça da parte de

Deus nem quando cria o livre arbítrio, nem quando o submete a um julgamento

divino que pune o pecado90.

Esta é a conclusão derivada da argumentação desenvolvida por Agostinho

em referência ao problema do maniqueísmo. Vejamos a seguir como estas idéias

são enriquecidas e complementadas, a partir da reflexão sobre a liberdade feita no

âmbito da controvérsia pelagiana.

88 Ibid., 1, 13,28. 89 Cf. De libero arbitrio 3,1-3 90 Por isso mesmo, todo o livro 3 do De libero arbitrio constitui-se como uma conclusão da obra, em forma de um louvor a Deus pela ordem natural do universo, da qual o livre arbítrio é um elemento positivo, ainda que possa dar margem para o mau uso que gera o pecado.

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1.5.2

A liberdade a partir das obras de combate ao pelagianismo

O pelagianismo entrou em cena, propagando sua concepção ingenuamente

otimista em relação à existência de uma natureza humana não afetada pela

realidade do pecado original e enfatizando a auto-suficiência da vontade livre para

se alcançar a vida virtuosa. O livre arbítrio faz parte da natureza que o Criador deu

ao ser humano, logo tal livre arbítrio é capaz de escolher e praticar o bem. Era esta

a perspectiva de Pelágio.

De sua parte, Agostinho sabia (quer por sua experiência pessoal, quer

pelos dados colhidos na revelação bíblica) que a capacidade de ação do ser

humano é limitada. A liberdade é experimentada sempre dentro do contexto em

que o ser humano se situa. A ação humana é marcada simultaneamente pelo bem e

pelo mal. Virtude e vício, graça e pecado se misturam na vida de cada pessoa, daí

as dificuldades com que se depara o ser humano que almeja a salvação. No

enfrentamento deste problema teológico e pastoral, Agostinho se vê na obrigação

de conceber a liberdade humana dentro do contexto de um mundo que é marcado

pela realidade do pecado. Os pontos fundamentais da reflexão de Agostinho sobre

a liberdade, no âmbito de suas obras anti-pelagianas, é o tema que será tratado nos

próximos itens.

1.5.2.1

A liberdade como escolha e como superação do pecado

Uma das contribuições mais importantes decorrentes da polêmica

pelagiana, foi a ampliação do conceito de liberdade. Percebendo mais claramente

as limitações do livre arbítrio e os equívocos experimentados no âmbito da

capacidade de escolha por parte do ser humano pecador, Agostinho conseguiu

mostrar que a liberdade, em sua essência, é mais do que a capacidade de fazer

escolhas mediante o livre arbítrio.

No tempo de Agostinho, (e até mesmo nos dias atuais), era comum definir

a liberdade exclusivamente pelo exercício do livre arbítrio, ou seja, como a

capacidade que o ser humano tem de fazer escolhas, isto é, o poder fazer ou deixar

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60

de fazer algo, como possibilidade de optar entre o bem e o mal conforme a própria

vontade. Era esse o critério básico pelo qual os pelagianos definiam sua

concepção da liberdade.

De fato, não se pode negar que a liberdade é exercida mediante o livre

arbítrio inerente à própria natureza humana. Entretanto, algumas perguntas são

aqui pertinentes. Será que o ato mau, cometido no âmbito da liberdade de escolha,

pode ser encarado como uma opção equivalente ao ato bom? Pode o ato mau ser

considerado uma experiência de autêntica liberdade? Não será antes um “ato

prisioneiro” de desejos vis, ou ao menos prisioneiro do erro e do engano, que gera

dano ao próximo e ao próprio ser humano que comete o ato mau? São

questionamentos como estes que levam Agostinho a buscar um outro critério para

definir a liberdade num sentido que não se limita à capacidade de fazer escolhas.

Faz parte das alternativas do livre arbítrio a possibilidade de pecar, o próprio

Agostinho o admite91, mas, numa perspectiva cristã, tal possibilidade não deve ser

vista como o sentido próprio da liberdade.

“A redenção é a liberdade definitiva da felicidade sem jamais poder recair na escravidão do pecado. Porque se a liberdade consiste, como tu dizes, em poder voluntariamente o bem e o mal, resulta que Deus não tem a liberdade; porque ele não pode pecar. Se nós procurarmos no homem esse livre arbítrio original, inamissível, é esse desejo de felicidade que está em todos, mesmo nos homens que não querem meios que conduzam à felicidade”92

Nota-se, assim, a perspectiva da argumentação de Agostinho. Deus não

pode pecar e nem por isso deixa de ser livre. Antes ao contrário, Deus possui a

liberdade em seu grau mais eminente justamente devido ao fato de não poder

pecar. No ser humano, o livre arbítrio é um dom concedido pelo Deus sumamente

livre, um dom essencialmente bom, dado como um elemento positivo em vista da

felicidade do próprio homem.

Tal felicidade corresponde ao desejo de comunhão com Deus inscrito pelo

próprio Criador no íntimo da criatura humana. Esta concepção já estava presente

nas obras escritas contra o maniqueísmo. A novidade aqui reside na ênfase dada

91 Cf. De peccatorum meritis et remissione 2, 18, 30-31, texto que fala do livre arbítrio como um dom de Deus que pode voltar-se tanto para um lado como para o outro, tanto para o bem como para o mal. 92 Contra Julianum opus imperfectum 6, 2.

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no aspecto propriamente redentor dessa busca por liberdade, ou seja, na ênfase

dada ao fato de que a autêntica liberdade implica na “capacidade de não pecar”.

Agora, tendo que responder aos argumentos pelagianos, Agostinho

precisa frisar que não basta ser naturalmente dotado da capacidade de optar entre

o bem e o mal. A felicidade plena corresponde à redenção operada por Jesus

Cristo, redenção esta que garante ao homem a “liberdade definitiva” de não mais

“recair na escravidão do pecado”. É desta felicidade que se trata. É esta

liberdade mais autêntica e profunda que é apresentada na proposta de salvação

oferecida em Jesus Cristo. Logo, a possibilidade de pecar (embora seja uma das

alternativas do livre arbítrio) não é um elemento “essencial” à liberdade tal como

pensavam os pelagianos. O critério que define a liberdade, segundo a fé cristã, é a

realização do bem, a superação da escravidão do pecado e a comunhão

irreversível com Deus.

Nota-se, portanto, que ao colocar a opção pelo bem, ou seja, a superação

do pecado como critério de definição da liberdade, Agostinho adota uma

perspectiva inversa àquela adotada no pelagianismo. O livre arbítrio (embora

possa efetivamente pecar) não tem nessa possibilidade nada de positivo. Antes ao

contrário, a opção pelo pecado é, para o livre arbítrio, um aviltamento, uma

deturpação daquilo que constitui a sua meta original e o sentido de sua existência.

Os pelagianos contra-argumentaram acusando Agostinho de estar

anulando a liberdade do homem ao dizer que ele tem a “necessidade” de uma

força extra vinda de Deus. Para eles, a associação entre liberdade e necessidade

parecia uma contradição nos termos. Do ponto de vista deles, ou o ser humano é

plenamente livre e não tem “necessidades” externas para optar pelo bem, ou então

tem necessidade do auxílio divino e nesse caso não tem uma autêntica liberdade.

A esta objeção, santo Agostinho responderá que a liberdade humana não é

antagônica à necessidade da graça divina para a salvação. O verdadeiro antônimo

da liberdade é a “escravidão” imposta pelo pecado. E o interessante é que este

ponto do debate com os pelagianos dará a Agostinho a oportunidade de

estabelecer outras nuances de seu pensamento a respeito do tema da liberdade.

Na prática, a orientação do livre arbítrio (para o bem ou para o mal)

permanece sob o poder da vontade livre do ser humano; porém, ao mesmo tempo,

a vontade livre do ser humano se manifesta por intermédio de um livre arbítrio

que não está imune ao pecado. A situação do livre arbítrio humano em sua

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condição atual é bem distinta da condição “original” na qual fora criado. Em seu

estado atual, afetado pelo pecado, o livre arbítrio tem necessidade da graça divina

para que possa ser conservado no bem. Torna-se, então, necessário distinguir entre

querer (“velle”) praticar o bem e poder (“posse”) efetivamente praticar o bem.

Pois, para ser realmente livre, o ser humano precisa “querer” e igualmente

“poder” viver liberto do pecado. De outro lado, Agostinho responde que a graça

não precisa necessariamente ser vista como rival da liberdade. Sem violentar a

autonomia do ser humano, a graça de Deus pode perfeitamente agir no homem,

contando com seu livre consentimento e respeitando sua escolha, mesmo no caso

de ele se decidir pela recusa à ação divina. Estes dois aspectos importantes para

uma compreensão mais detalhada e profunda acerca da liberdade é que serão

apresentados nos próximos itens.

1.5.2.2

Distinção entre querer (“velle”) e poder (“posse”)

Neste ponto, o objetivo de Agostinho, é mostrar a divisão interior

experimentada pelo ser humano afetado pelo pecado, indicando,

consequentemente, a necessidade de uma cura no livre arbítrio, para que este

possa fixar-se no bem.

Supondo um primeiro momento de pureza originária da natureza humana

anterior ao pecado, Agostinho tem sempre em mente a concepção de que, na

situação paradisíaca de Adão e Eva, a humanidade teve tanto a possibilidade de

“querer” a justiça e a comunhão com Deus, como também a capacidade de

“poder” efetivamente viver essa justiça e essa comunhão. Entretanto, o quadro

muda substancialmente com a experiência da transgressão de Adão e Eva. Ao

romper o mandamento divino, o primeiro casal humano dá início a um novo

contexto radicalmente distinto do anterior para toda a humanidade.

Tendo esta concepção em mente, Agostinho entende que depois do pecado

dos primeiros pais, os seres humanos continuam tendo o livre arbítrio, continuam

agindo por vontade própria, mas já não conseguem perseverar no bem com

vontade firme e constante. Agostinho afirma que o querer o bem está ao alcance

do ser humano, mas não o poder fazer o bem. A vontade continua com seu poder

de querer (“velle”) o bem, mas já não possui o poder (“posse”) de realizá-lo. Esta

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reflexão é apresentada em duas obras dedicadas à controvérsia pelagiana, O De

diversis quaestionibus ad Simplicianum e o De spiritu et littera. Neste último

livro Agostinho faz a seguinte observação:

“O querer e o poder são dois conceitos diferentes, de sorte que nem o que quer pode nem o que pode quer. Assim como algumas vezes queremos o que não podemos, da mesma forma, algumas vezes podemos o que não queremos. Considerando a evolução dos termos, vontade (“voluntas”) deriva de ‘querer’ (“velle”), enquanto o poder [a capacitação para realizar efetivamente aquilo que se quer] deriva de poder (“posse”). Assim o que quer tem vontade e o que pode tem poder” 93

Nota-se que Agostinho usa termos diferentes para distinguir dois atributos

da liberdade humana. O primeiro é a possibilidade de desejar, o querer, que sem

dúvida nenhuma é fruto do exercício da vontade livre mediante o livre arbítrio. O

segundo é a capacidade efetiva de realizar o que se almeja, de possuir o que se

quer, é a transformação do desejo numa realidade que lhe seja perfeitamente

correspondente. Esta distinção nos termos é indicada, justamente para frisar que a

liberdade efetiva de realizar o bem depende da conjugação dos dois atributos na

mesma direção, conjugação esta que pode ser almejada pelo ser humano, mas que

é também impedida pelo pecado. É este aspecto que Agostinho salienta no De

diversis quaestionibus ad Simplicianum , como bem nos mostra M. Huftier.

“ ‘Se eu faço o que não quero, eu consinto na lei e reconheço que ela é boa...Eu acho em mim a vontade de fazer o bem, mas eu não encontro o meio de realizá-lo’ 94 E então, mantendo completamente o domínio sobre nossos atos [domínio este que corresponde] ao livre arbítrio da vontade, Agostinho reconhece nos nossos membros uma lei que só a graça de Deus permite superar95. A vontade continua a querer o bem mas, em conseqüência do pecado original, ela não tem força para realizá-lo efetivamente; só a graça de Deus lhe dá essa força. (...) [Por isso] pode-se dizer que atualmente, sem a graça de Deus, a vontade continua a ser ela própria, a querer (“velle”) o bem, mas só a graça divina pode lhe dar (“posse quod vult”) o perfeito cumprimento disso.”96

Assim, fica demonstrado que somente quando os dois atributos, “velle” e

“posse” estão articulados é que o ser humano pode permanecer firme no bem .

93 De spiritu et littera 31,53. 94 Rm 7, 16.18. 95 De div. quaest. ad simpl. 1,1,9; 11-12. 96 HUFTIER, M., “Libre arbitre, liberté et péché chez saint Augustin”, in Recherches de Théologie Ancienne et Médiévale, Paris, 33 (1966), p. 195.

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Além disso, é preciso notar que a assistência da graça divina no homem é a

condição imprescindível para que essa articulação possa ocorrer e isso não

configura uma anulação da liberdade.

1.5.2.3

A “necessidade” da graça não anula o livre arbítrio

O livre arbítrio, portanto, não se limita a optar entre o bem e o mal. Para

ser aquilo que realmente é chamado a ser, (isto é, livre orientação da conduta para

o bem), o livre arbítrio necessita da ação gratuita da graça de Deus. É essa graça

que “prepara a boa vontade do homem” para praticar o bem. Esse é o autêntico

livre arbítrio, ou seja, o livre arbítrio que realiza aquilo para que foi criado.

“Deus nos revelou nas Santas Escrituras que há no homem um livre arbítrio. Como ele o revelou? Eu vou explicar, não por palavras humanas, mas pelas do próprio Deus primeiramente: de que serviriam ao homem os preceitos divinos, se ele não tivesse o livre arbítrio da vontade, pelo qual, cumprindo os mandamentos de Deus, ele pudesse chegar às recompensas prometidas ? Esses preceitos lhe foram dados para lhe tirar todo pretexto de procurar se escusar por sua ignorância. No Evangelho, assim diz o Senhor: ‘Se eu não tivesse vindo e não lhes tivesse falado, não seriam culpados de pecado; mas agora não têm escusa para seu pecado’ [Jo 15,22]”97

A possibilidade de cumprir os mandamentos divinos é real e o juízo de

Deus a respeito da ação humana é perfeitamente legítimo, justamente porque

existe o livre arbítrio no ser humano como dom de Deus. Tal livre arbítrio não é

coagido pela ação divina, mas ao contrário é solicitado, é chamado a agir pelo

bem. A graça o move, mas não lhe rouba a autonomia de decidir segundo sua

própria escolha.

Entretanto, isso que é tão “natural no homem”, essa possibilidade de fazer

livremente a opção pelo bem não é assim tão fácil de ser efetivada, depois que o

pecado entrou no mundo. Por esta razão torna-se necessária uma graça extra da

parte de Deus, a fim de curar o livre arbítrio, fazendo com que recupere a

capacidade de agir retamente.

97 De gratia et libero arbitrio 2,2.

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“(...) para fazer o mal cada um é livre” [pelo exercício da capacidade de escolha e decisão] , porém, “para fazer o bem, não existe livre senão aquele que foi libertado por Aquele que disse: ‘Se o Filho vos libertar, vós sereis verdadeiramente livres’ [Jo 8,36] . Todavia, não quer dizer que aquele que terá sido libertado da dominação do pecado não tenha mais necessidade do socorro de seu libertador: ao contrário, já que ele o ouve dizer-lhe: ‘Sem mim vós não podeis fazer nada’ [Jo 15,5]”98.

Em Adão, a graça nos foi dada apenas para satisfazer aquele natural desejo

que todo ser humano tem de sentir-se em comunhão com Deus. Ou seja, no

primeiro ser humano a graça se manifestava no estado original do homem sem

pecado, vivendo a comunhão com Deus. Naquele primeiro contexto, a liberdade já

era uma “tendência para Deus” naturalmente presente no homem. Era suficiente a

Adão perseverar na graça na qual ele tinha sido criado. Isso era deixado ao seu

livre arbítrio.

O modo de conceber a liberdade muda com a consideração sobre o pecado

representado na “queda” de Adão e Eva. Neste segundo contexto, (que é a

situação do ser humano atual), ninguém consegue mobilizar livremente seu

próprio livre arbítrio na direção do bem apenas com seus próprios esforços. Ao

contrário do livre arbítrio de Adão antes da queda, o nosso livre arbítrio atual

precisa ser curado e re-orientado.

“Ao primeiro homem faltou-lhe esta graça de nunca desejar ser pecador,

mas foi revestido da graça na qual, se quisesse perseverar nunca teria sido pecador (...). Esta graça, porém, poderia perdê-la pelo mau uso de seu livre arbítrio. Portanto, Deus não quis privá-lo de sua graça, a qual rejeitou voluntariamente. Pois o livre arbítrio basta por si mesmo para praticar o mal, mas é insuficiente para agir bem se não é ajudado pela bondade do Onipotente. Se o homem, com seu livre arbítrio, não tivesse recusado esta ajuda, teria sido sempre bom; mas recusou, por isso foi recusado. Com efeito esta ajuda era de tal ordem que poderia recusar ou conservá-la, se quisesse, mas não era eficaz para levá-lo a querer.

Esta é a graça concedida ao primeiro Adão, mas a outorgada no segundo Adão é superior. A primeira possibilita ao homem viver na justiça; a segunda, mais eficaz leva o homem a querer a justiça e a amá-la com tal intensidade que o espírito vence com sua vontade a vontade da carne inclinada a contrariar o espírito. Não foi pequena a primeira (...) [ mas a ] segunda é maior e, não apenas devolve ao homem a liberdade perdida e é tão necessária que sem ela não pode abraçar o bem ou nele permanecer (...) [pois esta 2ª graça dada, mediante Jesus Cristo, ao homem decaído] é “eficaz para mover a vontade”99.

98 De correptione et Gratia 1,2. 99 De correptione et gratia, 11,31.

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Em função do pecado original, tornou-se necessário um acréscimo, uma

ação extra da graça visando curar o livre arbítrio, fazendo com que o homem

resgate o gosto pelo bem, encontrando nessa realização do bem (pela vontade

própria do livre arbítrio curado) a sua satisfação maior enquanto ser humano.

Nota-se como o modo de enfocar a liberdade muda significativamente com

a polêmica pelagiana. Trata-se agora de, reconhecer a importância do livre arbítrio

em ordem ao ato livre e à autonomia decisória do sujeito, mas levando também

em conta os limites que esse mesmo livre arbítrio sofre em conseqüência do

pecado original. Por isso mesmo, o livre arbítrio só é efetivamente livre quando

libertado pela graça.

Não há antagonismo entre liberdade e graça no pensamento de Agostinho.

Antes ao contrário, a ação da graça reconhece o “espaço próprio” da liberdade e

age nela no sentido de curá-la, para fazê-la recuperar sua capacidade de responder

positivamente aos apelos de Deus manifestados mediante Jesus Cristo.

Conclusão:

A liberdade é algo mais profundo do que a capacidade de escolher entre

diferentes alternativas. Não resta dúvida de que Agostinho considera essa

capacidade de escolha mediante o livre arbítrio como um dos elementos

constitutivos da liberdade. No entanto, quando se trata de considerar a liberdade

como dom de Deus, a compreensão da liberdade passa ao plano da experiência

salvífica. Aí se situa o livre arbítrio como “media vis”, como instrumento

intermediário que pode ser mobilizado, tanto na direção do bem, como na direção

do mal. No entanto, a revelação cristã (que é o ponto de partida de Agostinho) nos

informa que o livre arbítrio é dom do Deus sumamente bom que é o Pai do Verbo

encarnado. Por isso, jamais o livre arbítrio pode ser visto como um instrumento

destinado a ter um uso vil.

A natureza humana (da qual faz parte o livre arbítrio) é essencialmente boa

e destinada à comunhão salvífica com o Deus criador. Logo, o ato de pecar é um

“acidente”, enquanto um dos usos possíveis do livre arbítrio, mas não é aquele

elemento que define a essência do livre arbítrio e a destinação para a qual ele foi

criado. Em sua própria liberdade Jesus Cristo não aceitava praticar o mal e

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justamente por isso, sua vivência humana da liberdade era perfeita. Tudo isso nos

mostra que, do ponto de vista da fé cristã, a liberdade é definida pelo bom (e não

pelo mau) uso do livre arbítrio. Que desde Adão a humanidade tenha falhado,

nesse que é o seu destino natural, trata-se de um outro problema que não

corresponde a nenhum mal ontológico no âmbito do ser. A natureza humana,

criada à imagem e semelhança do Deus de Jesus Cristo, é essencialmente boa. O

pecado que surgiu “desde a origem” constitui um desvio e não o rumo natural da

liberdade. Este desvio (provocado pelo mau uso do dom dado por Deus) fez

Agostinho enfatizar cada vez mais a necessidade da graça, como “auxílio divino”

que não concorre contra o livre arbítrio, mas age nele e em favor dele.

Tudo isso nos faz perceber que a abordagem agostiniana sobre a liberdade

não situa livre arbítrio humano e graça divina no mesmo plano. A graça não

precisa violentar nem anular o livre arbítrio para cooperar com ele. O livre arbítrio

não precisa prescindir da graça para reafirmar sua autonomia diante dela. A graça

procede de Deus que, em Jesus Cristo, vem restaurar, curar o livre arbítrio a fim

de salvar o ser humano. O livre arbítrio está situado no ser humano como

instrumento de sua liberdade e como expressão de sua vontade livre, mediante a

qual o ser humano pode e deve cooperar com Deus em vista da salvação. É este o

dinamismo que trará a realização do ser humano enquanto ser livre.

Por um lado, a perspectiva anti-maniqueista da abordagem de Agostinho

ressalta o livre arbítrio como dom de Deus em vista de que o homem prossiga

firme na busca da verdade e seja feliz. Mas, como vimos , tal ênfase não chega a

ignorar a necessidade da graça. De outro lado, a perspectiva anti-pelagiana

ressalta bem mais este aspecto da total necessidade da graça para restaurar no livre

arbítrio a capacidade de praticar o bem, correspondendo ao projeto de Deus

revelado mediante Jesus Cristo. No entanto, esta mudança de ênfase não se dá em

detrimento do reconhecimento do livre arbítrio. Na maioria dos textos, Agostinho

deixa entrever que o consentimento do ser humano a esta ação da graça divina

deve se dar no âmbito da vontade livre do próprio ser humano. Tal consentimento,

sendo expressão da liberdade humana, nem por isso deixa de ser desde seu início

possibilitado e sustentado pela graça divina.

Ao final das contas, nota-se que há uma distinção, mas também uma

complementaridade entre a perspectiva anti-maniqueista e a perspectiva anti-

pelagiana, conformando os diversos itens constitutivos do dinamismo da liberdade

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expostos neste capítulo. No entanto, ficam por ser explicados alguns pontos.

Como se dá a ação da graça em relação ao livre arbítrio, de modo a promover sua

cura sem violentar a autonomia que lhe é própria? Como será o modo pelo qual o

livre arbítrio interage com a graça? Como se dá no ser humano a percepção do

pecado e a sua conseqüente superação? Estas questões ficam para ser debatidas no

próximo capítulo.

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Capítulo 2

Liberdade em Jesus Cristo: a vida humana dinamizada pela

graça

Introdução

Visto o contexto histórico e teológico no qual viveu santo Agostinho, já é

possível agora analisar mais de perto os pontos centrais da reflexão agostiniana

sobre liberdade. A meta neste segundo capítulo é enfocar a liberdade humana

como participação voluntária do homem no processo de salvação, esclarecendo os

principais conceitos e idéias referentes a esta temática.

Para isso, é necessário analisar os seguintes pontos: 1o) a realidade da

presença do pecado no mundo, com a qual inevitavelmente o ser humano tem que

se deparar na vivência de sua liberdade; 2o) o livre arbítrio necessitado da graça

divina; 3o) a caracterização da experiência da liberdade humana como processo de

superação do pecado, que se dá sob a primazia da graça divina, mas contando

também com a participação voluntária do ser humano.

No primeiro ponto, desenvolvo o tema da limitação da liberdade humana

pelo pecado presente e atuante, seja no mundo de modo mais abrangente, seja na

própria vida de cada ser humano em particular. Aqui se nota o realismo de

Agostinho ao se referir à “enfermidade” (infirmitas) que o pecado provoca no

homem, tornando vulnerável sua natural capacidade de agir livremente mediante o

concurso de sua vontade (voluntas).

Tal constatação nos leva ao segundo ponto, no qual será evidenciada a

radical necessidade que o homem tem da ação de Deus em sua vida, de tal modo

que a graça divina se torna um elemento fundamental à liberdade do homem.

No terceiro ponto, o objetivo é apresentar, por um lado, os elementos

constitutivos da própria experiência da liberdade e, por outro, a percepção que

Agostinho tem acerca da liberdade, como processo de superação do pecado. Nesta

ocasião, será visto que a “verdadeira liberdade” do homem é fruto da ação da

graça no íntimo da alma humana, produzindo uma espécie de “itinerário

espiritual” da liberdade. Neste processo, o homem passa de um dinamismo de

obediência extrínseca à lei divina registrada na Bíblia, para um dinamismo de

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adesão interior ao projeto de Deus suscitado pela ação do Espírito Santo e

simultaneamente pela mobilização da vontade pessoal mediante o livre arbítrio

Deste modo, a liberdade será analisada enquanto ação humana e ao mesmo

tempo enquanto processo de libertação do pecado suscitado pela graça divina.

Pois é dentro deste contexto que Agostinho constrói a sua concepção de liberdade.

2.1 O Ser Humano diante da realidade do pecado

Já foi afirmado que Agostinho não nega, antes ao contrário, afirma

categoricamente a existência da liberdade no homem. O ser humano é criado por

Deus, à sua imagem e semelhança, dotado de vontade própria e livre arbítrio, pelo

qual pode fazer suas próprias escolhas. Por isso, Agostinho fala da vontade sem a

qual o homem não pode praticar o bem100, mostrando que esta vontade “nasce do

livre arbítrio que o ser humano recebeu em sua natureza ao ser criado”101.

Entretanto, se permanecêssemos aqui, ficaríamos na superfície da questão.

A liberdade humana não é experimentada num mundo idílico ou paradisíaco.

Agostinho sabe bem que a liberdade é vivida num mundo em que a realidade do

sofrimento, do mal e do pecado é bastante presente e real. Tal situação impõe

limites. Com tantos e tão evidentes sinais de pecado e de morte no mundo, pode-

se ainda considerar que o homem é livre? Ao invés de “livre”, não seria antes

“servo” o arbítrio do homem, uma vez que suas escolhas parecem rejeitar

reiteradamente a proposta salvífica de Deus? Eis a questão. Qualquer reflexão

sobre a liberdade que ignorasse tal questão, resultaria vazia e fora do real. A

existência humana é vivida nos enfrentamentos inevitáveis com a realidade do

mal e do pecado, aos quais ninguém, nesta vida, pode fugir.

Também aqui, Agostinho reflete sobre a condição humana, integrando sua

própria experiência pessoal com os dados da revelação bíblica. Com efeito, ao

descrever o peso dos próprios pecados sobre sua vida102, Agostinho se sente

submetido a uma “dura escravidão”103 da qual deseja, mas não consegue se

libertar. Por sua vez, a Sagrada Escritura atesta abundantemente que todos somos

100 De spiritu et litt. 12, 20: “(...) a nossa vontade, sem a qual não podemos praticar o bem (...)”. 101 Ibid., 33, 58. 102 Cf. Confessiones 8. 103 “dura servitus”, cf. Confessiones 8, 5, 10.

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pecadores e necessitados do perdão de Deus104. Esta é a realidade que se abate

sobre a liberdade do homem e que precisa ser explicada e interpretada

teologicamente. Agostinho o faz, aprofundando a reflexão sobre a condição

humana, vivida dentro mesmo desta realidade de dura servidão ao pecado. Ele

tenta mostrar as causas desta situação que aprisiona o homem, extraindo dela as

suas implicações para a reflexão sobre a relação entre a graça e a liberdade.

Assim, Agostinho constata que tal situação decorre de uma “enfermidade”

(infirmitas) que tornou débil e vulnerável a vontade do ser humano.

“Pois foi preciso mostrar ao homem a hediondez de sua doença, visto que contra sua iniquidade não foi útil o bom e santo preceito o qual contribuiu para aumentar a iniquidade em vez de diminuí-la”105.

Podemos notar a ênfase dada por Agostinho a esta condição frágil e

doentia em que se encontra o homem, de sorte que nem mesmo os preceitos da lei

contidos na Sagrada Escritura106 e que exortam a uma vida virtuosa podem curá-

lo. Agostinho se reporta várias vezes a esta condição enferma do ser humano no

mundo, fazendo notar que a mesma está intimamente associada ao pecado.

Com efeito, expressões como languor107, infirmitas108, vitium109, são

recorrentes na obra de Agostinho e manifestam esta situação ambígua do homem

que possui vontade própria e livre arbítrio, mas nem por isso realiza o bem e a

justiça propostos por Deus. Esta situação de enfermidade pesa sobre a vontade

livre do homem. Para descrever a gravidade da “doença” e apontar o “remédio”110

que pode curá-la, Agostinho recorre ao célebre capítulo 7 da Epístola aos

104 Cf. Sl 103, 2. 4; 143,2, 1 Jo 1,8; Mt 6,12; 1 Rs 8,46; Rm 5. 105 De spiritu et littera 6, 9. 106 Sobre a ineficácia da lei para fazer o homem sair desta infirmitas Agostinho considera que a letra da lei por si mesma “mata” como nos diz 2 Cor 3,6, pois não é suficiente para sustentar o ser humano na fidelidade a Deus. A lei pode exercer sim um papel pedagógico (cf. Gl 3,24), indicando o ideal a ser seguido e mostrando ao homem que no fundo ele necessita de Deus para poder permanecer firme no bem. É verdade que a lei possui um sentido salvífico quanto ao seu conteúdo, especialmente naquilo que aponta para a salvação operada por Jesus Cristo, que veio revelar o autêntico sentido e o pleno cumprimento da lei (Mt 5,17). Mas para isso é necessário amar Deus acima de tudo e amar ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 39), o que só é possível mediante a ação da graça divina no homem. A conclusão de Agostinho, então, é de que a lei foi dada para estimular o homem a recorrer à graça (cf. De spiritu et littera 19, 34). 107 Cf. De spiritu et littera 6,9; 33, 59. 108 Cf. ibid., 9,15; 10,16; 29, 51; 34,60. 109 Cf. ibid., 12,19; 33,58 110 A metáfora do remédio e a noção da ação salvífica de Deus como uma medicina curativa é sugerida pelo próprio Agostinho, cf.. ibid. 6,9.

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Romanos. Ele cita o texto de Rm 7,6-25 para enfatizar a divisão interior que

dilacera a existência humana111.

Esta “enfermidade” se caracteriza, portanto, pela debilidade da vontade,

expressa na divisão interior do homem que mesmo que queira não consegue

praticar o bem112. Agostinho dirá que essa “vontade débil” ocorre porque o

homem não consegue amar o bem de tal modo que rejeite livremente qualquer

outra coisa que impeça sua realização. Assim, a justiça não se realiza, não porque

seja impossível, nem porque o homem não pode racionalmente desejá-la, mas por

que ele ainda não aprendeu a amá-la. Ela ainda não lhe é prazerosa e atraente ao

ponto de fazer com que a satisfação com a prática da justiça supere o prazer ou a

dor de qualquer coisa contrária à sua realização113.

“E mesmo quando aquilo que o homem deve fazer e o sentido da ação a ser realizada já estiverem patentes, ainda assim, não se age, não se abraça, nem se vive o bem se o bem não nos deleita e não se o ama”114.

Assim, a ausência deste amor ao bem, (com a consequente debilidade da

vontade), constituem o primeiro fator que determina a enfermidade do homem.

Mas não é o único. O segundo fator que constitui esta infirmitas é a ignorância.

De fato, conhecer a Deus e sua proposta constitui um elemento

fundamental para a salvação. Agostinho pleiteia uma forma mais profunda e

interiorizada de conhecer a Deus, que se distingue da mera informação assimilada

mediante os preceitos religiosos (lei). Ele ressalta este ponto precisamente por

perceber quão efêmero e superficial é o conhecimento que temos de Deus na vida

presente. Sem conhecer, como amar? Trata-se, portanto, de uma questão decisiva.

“Quem isto adverte, advirta também que todos pecamos em muitas coisas (Tg 3,2), ainda quando nós mesmos cremos agradar a Deus a quem amamos, ou que não lhe desagrada aquilo que fazemos. Até que advertidos pela santa Escritura, ou por alguma outra razão certa e evidente, ao conhecer aquilo em que lhe desagradamos, pedimos-lhe perdão arrependidos.(...)

E de onde provém que conheçamos de maneira tão imperfeita o que agrada a Deus, senão do fato de O conhecermos muito imperfeitamente?”115.

111 Cf. De spiritu et littera 14,25 ; 33, 59 e 36, 66 112 Cf. ibid. 3, 5; 7, 11. 113 Cf. ibid. 35, 63. 114 Ibid., 3,5. 115 De spiritu et littera, 36, 64

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Com esta reflexão, Agostinho faz notar que o conhecimento adquirido na

experiência de vida acumulada pelo ser humano é um conhecimento parcial e

limitado. Ele ignora muito do que precisaria saber e experimentar para amar de

todo o coração o bem e a justiça. Além disso, o fato de conhecer o bem não é, por

si mesmo, suficiente para que a vontade do homem o leve a amá-lo. Entretanto,

pode-se conhecer e não amar, mas não se pode amar sem conhecer116. Assim, a

ignorância constitui o segundo fator determinante da enfermidade do homem.

Avançando mais no desenvolvimento da questão, Agostinho chega à

conclusão de que a ignorância humana no sentido negativo, enquanto falta de

empenho na busca pela sabedoria, é causada pelo pecado. A ignorância “natural”

própria da finitude da capacidade cognitiva do homem não configura um mal

moral. Há, contudo, uma debilidade e uma ignorância que são voluntárias,

ignorância esta que se manifesta na persistência do ser humano em permanecer no

pecado, ou ainda na atitude de nem sequer admiti-lo. Tal situação é analisada por

Agostinho, particularmente nos capítulos 8 e 12 do De spiritu et littera, numa

clara referência à situação de pecado compartilhada igualmente, tanto por judeus

como por gentios, descrita em Rm 1-3.

Os judeus gloriavam-se de conhecer a Deus por meio da lei mosaica, no

entanto, transgrediam a mesma lei que eles exaltavam e, assim, a lei não lhes

serviu como instrumento de justificação. Embora tenham conhecido a revelação

mediante a lei, os judeus estabeleceram “sua própria justiça” fundada nas obras da

lei e assim, desconheceram e não se submeteram à “justiça de Deus” que justifica

o homem pela graça e não pelo mérito de suas obras (cf. Rm 2,17-29; 10,3).

Os gentios, por sua vez, puderam conhecer o Criador por meio das

criaturas. No entanto, eles, “tendo conhecido a Deus, não o honraram como Deus

nem lhe renderam graças”, mas ao contrário “se perderam em vãos arrazoados”.

Tomando-se a si mesmos por sábios, “deificavam” suas próprias especulações,

criando simulacros de deuses, pensavam ser os verdadeiros possuidores da

sabedoria, mas, ao contrário, mostravam-se néscios (cf. Rm 1, 19-21).

Inspirando-se nestes dados bíblicos, Agostinho mostra que a busca por

Deus e a procura da verdade, podem resultar na soberba e na vaidade. Por causa

do pecado, o conhecimento que se alcança, além de limitado e parcial, torna-se

traiçoeiro pelo uso que dele se faz. Conhece-se algumas coisas e ignora-se outras. 116 Cf. ibid.

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Deste modo, notamos que conhecimento não se identifica com somatório de

informações. Com efeito, muitas pessoas orgulham-se de possuir muitas

informações e são tidas como sábias, mas ignoram a verdadeira sabedoria que

procede de Deus. Com efeito, inspirando-se em Jó 28,28, Agostinho sustenta que

a “piedade é a verdadeira sabedoria”117. Muitos, porém, distorcem a verdade ou

dela fogem, por soberba e vaidade, pretendendo estabelecer uma “sabedoria

própria” contrária à sabedoria divina.

Tal atitude constitui um modo de “ignorar” o plano salvífico que leva o

homem a afastar-se de Deus. Os que adotam tal procedimento destinam-se

inevitavelmente a cair nos pecados do orgulho e da prepotência que Agostinho

critica tão firmemente, como podemos ver na citação seguinte.

“Eis aí a vaidade, enfermidade própria dos que se enganam a si mesmos, julgando ser algo não sendo nada (Gl 6,3). Por fim, obscurecendo-se seus olhos com este inchar-se de soberba, (...) apartaram-se da luz da verdade imutável e seu insensato coração ficou nas trevas.”118.

Tal é a situação em que o ser humano se encontra. Uma situação que

textos como Rm 3,23, Rm 5,12 (entre tantos outros mencionados por Agostinho)

mostram ter um alcance universal119. Por isso Agostinho pode afirmar tão

categoricamente que ninguém é sem pecado e que ninguém está livre desta

infirmitas enquanto permanece nesta vida terrena. Todos nascemos neste pecado,

que é o pecado original. Esses dados confirmam a opinião de Marafioti:

“(...) este primeiro pecado está na origem da ‘enfermidade’ que aflige atualmente o homem e o priva da força necessária para querer e cumprir o bem sempre e em todas as coisas. O batismo cancelou o pecado completamente, mas não eliminou esta infirmitas, este languor, que cessará somente quando o homem for completamente renovado na vida futura”120.

117 Ibid. 11, 18; 12, 19, “Ecce pietas est sapientia” tradução da vulgata para o texto de Jó 28,28 que a Bíblia de Jerusalém traduz como “Eis o temor do Senhor é a verdadeira sabedoria”. 118 Cf. ibid., 12, 19. 119 Cf. ibid., 2, 3, 6, 9, 9, 15 e 27, 47. 120 MARAFIOTI, D., obra citada, p. 67. Nesta mesma página, (nota 74), o autor recorda que Agostinho reconhecia que o batismo promove a remissão “tota et plena” dos pecados (cf. De peccatorum meritis et remissione 2, 7, 9). Respondia assim à critica de Juliano de Eclano que o acusava de negar a eficácia do batismo. Contudo, Agostinho nota que mesmo após o batismo a graça continua sendo necessária ao homem, seja em função da reparação das conseqüências do pecado original (a infirmitas), seja para evitar ou superar novos pecados que possam ou venham a ser cometidos pelo homem, em sua liberdade de ação, depois de ter sido batizado.

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Com tudo o que já foi dito até aqui, já há condições de concluir este ponto.

A “enfermidade” é conseqüência do pecado original que atingiu a todos. Suas

características básicas são duas. De um lado, a vontade humana gravemente

afetada e enfraquecida pelo pecado, de tal modo que o homem já não consegue

amar o bem, (e mesmo se vem a amá-lo, não o ama como convém). De outro lado,

a ignorância que impede o homem de conhecer em profundidade o Deus que o

ama e o chama para viver em seu amor. Esta ignorância não é apenas o

desconhecimento dos bens necessários à salvação, mas também o ignorar o plano

de Deus, afastando-se dele, opondo-se voluntariamente à sua realização.

Esta infirmitas tornou-se um elemento constitutivo da condição humana,

não por ser co-natural ao homem, mas porque o mistério do mal e da iniqüidade se

propagou e atingiu proporções tais que o homem já não tem forças suficientes

para evitá-lo ou enfrentá-lo. Daí a ênfase crescente que santo Agostinho dará ao

longo de sua vida e obra, à necessidade radical da graça divina para a cura e a

libertação do ser humano. Entretanto, mesmo vivendo nesta condição enferma, a

liberdade do homem, embora adulterada, não foi aniquilada. Apesar de tudo, o

homem ainda guarda consigo a condição de ser criado à imagem e semelhança do

Criador121, sendo a única entre as criaturas que pode ter responsabilidade por seus

atos, tanto para o bem como para o mal. Veremos que é nesta capacidade de

resposta, no profundo da interioridade do homem, lá onde se articulam suas

decisões livres, que Deus atua. É “lá dentro” que Deus quer agir e operar uma

transformação radical, agindo na própria alma do homem, de modo a tornar

verdadeiramente livres as escolhas por ele feitas.

No entanto, uma transformação tão radical, que implica uma experiência

tão mais profunda da liberdade, não pode ocorrer assim instantaneamente. Não se

faz sem passar por dentro do intrincado jogo das interações da liberdade do

Criador com a liberdade da criatura humana. Tal processo exige a concatenação

de vários dinamismos, como os da constatação da própria condição enferma, os do

desejo de mudança, os da tomada de decisão, bem como os dinamismos dos atos

de libertação e de consumação da liberdade. Para tanto, não basta ao homem o

recurso às próprias forças da vontade vulnerada pelo pecado. A graça de Deus é

121 Cf. De spiritu et littera 28. Confira o próprio título deste capítulo: “Imago Dei non omnino deleta in infidelibus”.

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totalmente imprescindível. Esse processo de transformação do ser humano é tema

do próximo item.

2.2 A tomada de consciência e iniciativa por parte do ser humano

Já foi mencionado anteriormente que a visão antropológica maniqueísta

não deixa margem para se pensar o homem como ser que possui a capacidade de

livremente fazer suas escolhas e de assumir uma responsabilidade pessoal sobre

elas. Com efeito, no livro das Confissões, Agostinho, nos diz:

“Todavia parecia a mim que não éramos nós que pecávamos, mas sim uma outra natureza estranha que pecava em nós, pelo que se deleitava minha soberba em considerar-me isento de culpa e não ter que confessar meu pecado quando eu havia praticado o mal, a fim de que Tu sanasses minha alma porque era contra Ti que eu pecava. Antes gostava de escusar-me e acusar uma entidade incógnita posta em mim mesmo, mas sem ser eu mesmo”122.

Podemos notar que este eximir-se de responsabilidade pelos próprios atos

era exatamente o ponto em que o maniqueísmo negligenciava a reflexão sobre a

liberdade do homem e, simultaneamente, um dos aspectos mais sedutores da

doutrina maniquéia. O próprio Agostinho confessa como o atraía o poder escusar-

se, transferindo a um outro ente abstrato e desconhecido, a responsabilidade por

seus maus atos. Caindo em si, Agostinho toma consciência de sua própria situação

e começa a afirmar cada vez mais a responsabilidade do ser humano em decidir

sobre a própria vida e as próprias escolhas.

“Uma coisa me elevava até a tua luz: a consciência de possuir uma vontade não menos que uma vida. Em cada ato de consentimento ou de recusa, era certíssimo de ser eu, e não outro, a consentir ou recusar; e que aí residia a causa do meu pecado, eu o via cada vez melhor”123.

Vemos assim que Agostinho aos poucos vai explicitando, a partir da

análise sobre sua própria vida, a percepção do pecado como experiência pessoal.

Neste sentido, o pecado se caracteriza como ato da vontade, ou seja, como

“vontade de reter ou conseguir aquilo que a justiça proíbe”124, sendo que tal

122 Confessiones 5, 10, 18. 123 Confessiones 7, 3, 5. 124 De Duabus animabus contra manichaeos, 11, 15.

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situação só se caracteriza como pecado, quando o homem tem de fato condição de

livremente se abster do mal proibido pela justiça divina. Nota-se assim, que o

pecado não é qualquer atitude ruim, mas somente aquela atitude má que deriva do

exercício livre da vontade do homem. É a opção pela injustiça feita no uso da

liberdade. Daí que Agostinho afirme enfaticamente:

“Deus me criou com o livre arbítrio: se tenho pecado, fui eu que pequei...não o fato, não a fortuna, não o diabo...”125

Estes textos só fazem confirmar que, mesmo quando o homem peca, está

presente nele o livre arbítrio pelo qual ele move sua vontade, definindo suas

escolhas e suas decisões. Reconhecer estas opções e atitudes e assumi-las

pessoalmente é um ato de humildade, mas também de tomada de consciência

acerca da própria liberdade.

Neste ponto, santo Agostinho enfatiza a importância dessa atitude de

tomar consciência de si mesmo, assumindo a responsabilidade pessoal pelos

próprios erros. É assim que se exercita a própria consciência como um dos

componentes da vivência da liberdade. Reconhecer os próprios pecados é um

requisito para o êxito na busca da verdade e da conversão. Somente “quem

reconhecer sua própria fraqueza”126 é que poderá viver na justiça de Deus.

Esta tomada de consciência, contudo, não representa resignação, nem

condescendência diante da realidade do pecado. Ela funciona como uma

constatação realista da situação em que o ser humano se encontra, quando

afastado de Deus e privado de sua graça. Uma constatação que o inclina ao início,

ou aos primeiros passos do ato de fé, levando-o a pedir o auxílio divino e buscar a

misericórdia de Deus. Deste modo, reconhecer o próprio pecado é o início de um

movimento interior pelo qual o ser humano identifica, não apenas o mal que o

abate, mas também de onde procede o bem que pode levá-lo a redimir-se. Tudo

quanto de bom o homem possui foi recebido de Deus. Por isso, o homem deve

saber de quem recebeu seus dons127, encaminhando a Deus as suas preces e

125 Enarrationes in Psalmus 31, 2, 16. 126 De spiritu et littera 29, 51. 127 Para enfatizar esta noção de que toda a vida do homem é um dom de Deus e ressaltar a glória devida unicamente a Ele, Agostinho reprisa frequentemente os textos de 1 Cor 4,7 (De spiritu et littera 9, 15; 10, 16.17; 11, 18; entre outros) e 2 Cor 10,17 (De spiritu et littera 13, 22; 35, 63). A este respeito ver HOMBERT, P-M. , Gloria Gratiae. Se Glorifier em Dieu, principe et fin de la Théologie Augustinienne de la Grâce, Paris, 1996.

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apresentando-se com digna humildade diante dEle. Assim, ao homem que, ao

reconhecer suas faltas, experimenta a dor decorrente dos próprios erros e enganos,

Agostinho recomenda:

“...refugie-se pela fé na misericórdia de Deus, a fim de que Ele conceda o que manda e, com a suavidade da graça infundida pelo Espírito Santo, consiga que lhe dê mais prazer o que Ele manda, do que o que Ele proíbe.”128.

Assim, a iniciativa primeira do homem no seu processo de conversão é o

reconhecimento de seu pecado, seguido da decisão de ir ao encontro de Deus pela

oração. Agostinho recorda aqui a exortação do próprio Cristo à atitude de

confiança em Deus e à prática da oração, “Pedi e recebereis” (Mt 7,7),

manifestando a disposição de Deus para conceder sua sabedoria a todos os que o

invocarem, “contanto que peçam com fé” (Tg 1,5-6)129.

Resumindo, digo que este início da experiência da liberdade dinamizada

pela graça, se identifica com o processo de conversão que conduz o homem ao ato

de fé, ato de confiança em Deus e de confiar-se a Deus, pelo qual o homem obtém

o perdão para seus pecados, sentindo-se liberto e revigorado para reconstruir sua

vida em novas bases.

2.3

A renovação interior

Ficou constatado que a experiência da liberdade, do ponto de vista da fé

cristã, não consiste na liberdade de pecar, mas antes coincide com a conquista da

vitória contra o pecado. Tal experiência se dá pela associação da ação (totalmente

necessária) de Deus com a ação do próprio homem que, em resposta às

interpelações dAquele que o criou, deve tomar consciência acerca de si mesmo e

colocar-se em movimento, para conseguir a mudança radical da situação

“enferma” em que se encontra.

Neste processo de mudança, um primeiro aspecto que deve ser destacado é

que o mesmo constitui um “dom do Espírito Santo”. Agostinho ressalta este ponto

com enorme frequência em sua obra. Para tanto, ele usa repetidamente do texto de

128 De spiritu et littera 29,51. 129 Cf. De spiritu et littera 32, 56; cf. também ibid. 36, 65.

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Rm 5,5 para indicar o efeito da atuação do Espírito Santo na vida do homem,

mostrando que é pela ação do mesmo Espírito que se difunde o amor (charitas)

nos corações130. Isto faz com que a justiça antes impossível de ser cumprida por

ser experimentada como uma exigência externa imposta pela lei, torne-se agora

uma realidade vivida e amada internamente pelo homem devido às moções do

Espírito que nele operam.

Assim, o bispo de Hipona mostra que a ação de Deus em favor da

libertação do homem não se limita a ações externas como a elaboração da lei

mosaica, mas inclui também ações internas ao próprio homem, pelas quais ele se

renova e obtém forças para fazer o que antes não conseguia. Com efeito, Deus

concede ao homem um crescimento interior (intrinsecus incrementum)131, que

equivale a uma “novidade” ou a uma “renovação” (novitas), “que dia a dia cresce

no homem interior”132, fazendo com que toda a “caducidade” da antiga forma de

viver diminua progressivamente até ser completamente eliminada133.

Esta renovação interior produz como conseqüência a experiência do amor,

que liberta o homem. Amor que difundido no coração do homem (cf., Rm 5,5)

leva-o a amar Deus que é a fonte do próprio amor134. Tal experiência leva-o a

amar o bem preceituado na lei e a cumpri-lo por identificar nele o bem maior que

é a realização do desígnio salvífico de Deus. E isto só se tornou possível porque a

motivação do homem renovado pelo Espírito Santo não é mais o temor suscitado

pelas sanções da lei, mas sim o amor que vem de Deus e que lhe foi dado.

Este tema será retomado mais adiante. Por ora, quero apenas fazer

referência a este dinamismo de transformação interior, que é dom do Espírito

Santo e que ajuda o homem a viver uma vida nova, marcada por uma “renovação”

que cresce e aumenta seu vigor, à medida que o ser humano vai se abrindo à ação

da graça. Assim, sua vontade e seu livre arbítrio passam por uma reorientação,

podendo assumir um encaminhamento em direção ao bem e à justiça propostos

por Deus. O homem pode, então, exercitar mais plenamente sua própria liberdade.

Pode imprimir um rumo novo à sua vida, pode mover sua vontade de modo mais 130 Para dimensionar a importância do texto de Rm 5,5 na obra de Agostinho, conferir BONNARDIÈRE, A. M. La, “Le verset paulinienne Rom V, 5 dans l’ouvre de Saint Augustin” in Augustinus Magister, II, p. 657-665. 131 Cf. De spiritu et littera 25, 42 (citando 1 Cor 3,7). 132 ibid., 14, 26, (citando 2 Cor 4, 16, texto ao qual Agostinho se refere, direta ou indiretamente, outras 4 vezes, cf. 22, 37; 32, 56; 33, 59 e 29, 50) 133 Cf. ibid., 14, 26. 134 Cf. ibid., 3, 5; 32, 56.

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livre, pois romperam-se os elos da corrente que a aprisionava. Esta voluntas, antes

submetida unicamente aos direcionamentos ditados pelo pecado, pode agora ser

livremente dirigida pelo homem para experiências de amor e de prática da justiça.

Entretanto, isto exige a colaboração e o empenho decidido do homem e aqui se

situa um dos pontos controversos do pensamento de santo Agostinho.

De um lado, ele enfatiza a liberdade pelo dom do livre arbítrio,

contrariando as abordagens deterministas sobre o ser humano, propugnadas pelo

maniqueísmo, pelos adeptos da astrologia e por algumas correntes filosóficas

fatalistas135. De outro lado, com o aprofundamento do combate ao pelagianismo,

Agostinho passa a enfatizar cada vez mais a necessidade da graça divina, para a

renovação interior da pessoa humana, de modo a curar o livre arbítrio escravizado

pelo pecado. Como já indiquei anteriormente, o crescimento dessa ênfase na graça

divina, é interpretado por alguns críticos da obra agostiniana, como uma negação

da liberdade humana. Desde a época de Agostinho até os dias atuais, os modos de

interpretar as afirmações de santo Agostinho foram muito diversificados,

suscitando posições antagônicas e até heresias, como o Jansenismo, que se

inspirava em idéias agostinianas.

Esta diversidade de interpretações sobre o pensamento agostiniano indica,

de um lado, a relevância da obra de santo Agostinho, mas de outro lado, expressa

também a ambigüidade e as imperfeições de algumas de suas formulações,

sobretudo quando consideradas isoladamente e desconectadas do conjunto de sua

obra. Por esta razão, vale a pena considerar o questionamento levantado acerca do

“tom” dessa ênfase de santo Agostinho na necessidade da graça para a renovação

interior da pessoa.

Quando ele exalta a graça, atribuindo toda a superação do pecado à ação

divina no ser humano, será que isso constitui uma forma de negação da liberdade

humana? Quando reflete sobre a onisciência divina, a respeito de quem e quantos

são os eleitos ou “predestinados”, que conseguirão ser libertados do pecado pela

ação da graça, alcançando assim a salvação, será que ele está “antagonizando”

com os dinamismos do livre arbítrio e da liberdade apresentados nos livros que ele

135 Para uma síntese da contraposição de Agostinho a estas correntes de pensamento fatalistas, ver a “Introduzione Generale” feita por TRAPÈ, A. em Grazia e Libertá, Opere di Sant’Agostino (Nuova Biblioteca Agostiniana), vol. XX, Roma, 1987, p. XXIX – XLII.

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mesmo escreveu? Estes são questionamentos válidos que dividem as opiniões136.

Não tenho a pretensão de esgotar o assunto e colocar fim ao debate. Posso apenas

humildemente indicar alguns pontos úteis para formar uma opinião sensata e não

extremada, a respeito do sentido da abordagem de Agostinho sobre estes “temas

controversos” , mas situando-os no âmbito das posições adotadas por Agostinho,

conforme indicado nos itens anteriores no capítulo 1 e também nos itens que

estamos analisando aqui no capítulo 2 desta tese.

2.4

A primazia absoluta da graça seria um determinismo teológico?

Vista numa perspectiva unilateral, que despreza a interação ativa do ser

humano com Deus, a reflexão sobre a graça pode, com efeito, expressar uma

concepção da salvação cristã que anula completamente a iniciativa humana. Nesta

concepção a ênfase sobre a graça divina é dissociada da liberdade do ser humano,

pela qual ele deve dar uma resposta positiva à graça oferecida por Deus. Assim,

sem dar a devida atenção à livre ação do ser humano nessa relação com a graça

divina, algumas idéias teológicas foram sendo criadas para se referir ao poder de

Deus. Neste aspecto, a mentalidade antiga, assim como o pensamento medieval

136 Uma síntese das opiniões dos estudiosos da obra agostiniana a este respeito pode ser encontrada na tese de doutorado de José Luis Jansen de Mello Neto, “Deus cordis mei”: Estudo sobre o Itinerário da Experiência Cristã nas Confissões de Santo Agostinho de Hipona, Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, 2004. Só para se ter uma idéia da divergência entre as interpretações, menciono duas posições opostas. De modo geral se considera que a redação do Diversis Quaestionibus ad Simplicianum (primeira obra de Agostinho como bispo, escrita em 396 dC) demarca uma mudança de enfoque, na qual se prioriza a ênfase na graça ficando a participação da liberdade na salvação do homem em segundo plano. K. Flasch interpreta esta mudança de ênfase como sinal de uma nova fase, em que Agostinho apresenta a ação de Deus com uma lógica implacável, com referência aos “terroris Domini”, (daí o título da obra de Flasch Die Logik des Schreckens: Augustinus von Hippo, Die Gnadenlehre von 397, Mainz, 1990). G. Lettieri radicaliza ainda mais esta interpretação pessimista e propõe que a mudança teológica no pensamento de Agostinho teria sido tão nítida, que justificaria a classificação da obra agostiniana em dois momentos contrapostos. Haveria um “primeiro agostinho” anterior ao De diversis Quaestionibus Ad Simplicianum e depois um “segundo Agostinho” (Daí o título de sua polêmica obra L’Altro Agostino. Ermeneutica e Retorica della Grazia dalla crisi alla metamorfosi del De doctrina christiana, Brescia, 2001). No campo oposto a estas interpretações extremas, situam-se autores que entendem ser mais adequado adotar uma “via média” na consideração sobre a relação entre graça e liberdade em Agostinho (cf. STUDER, B. Gratia Christi – Gratia Dei bei Augustinus von Hippo. Christozentrismus oder Theozentrismus, Roma 1993, p. 185-186); autores que consideram que não há argumentos consistentes para sustentar a idéia de que a afirmação da primazia absoluta da graça sobre o livre arbítrio representaria uma “reviravolta” na teologia de Agostinho (cf. MADEC, G., Petites Études Augustiniennes, Paris, 1994, p. 87).

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82

conceberam a ação de Deus como “onipotência divina”, ou seja, como expressão

do poder de tudo saber e tudo comandar nos acontecimentos futuros.

E foi assim que o fatalismo se infiltrou na reflexão teológica pelas noções

de “presciência divina” e “predestinação”. Deve-se notar que ambas as noções

estão amparadas em textos da Escritura que foram incorporados à doutrina cristã.

No entanto, compreendidas numa ótica estrita e a partir de uma leitura literal dos

textos bíblicos, estas noções deram margem a concepções pessimistas da

soteriologia cristã.

O conceito de presciência, por exemplo, originalmente queria apenas

expressar o conhecimento de Deus acerca dos fatos, mesmo antes que aconteçam.

Assim, tudo é presente ao conhecimento de Deus, até mesmo as ações futuras do

homem. Esta idéia acabou induzindo muitos a crer que Deus em sua onisciência

predetermina os atos humanos e os acontecimentos da história. Gerava-se, assim,

uma oposição entre a presciência divina e a liberdade humana. Agostinho procura

então elucidar a questão, afirmando que não é preciso negar a liberdade para

afirmar a presciência, nem negar a presciência para afirmar a liberdade. Ao amigo

Evódio, que não entende como tais termos podem ser conciliáveis, Agostinho

apresenta a distinção entre conhecer previamente a atitude de alguém e induzir

este alguém a praticar tal atitude.

“Se não me engano, não se segue da tua previsão que tu forçarias a pecar aquele de quem previste que haveria de pecar; nem a tua presciência mesma o forçaria a pecar. Ainda que, sem dúvida, ele houvesse de pecar, de outra forma não terias tido a presciência desse acontecimento futuro. Assim também, não há contradição a que saibas, por tua presciência, o que outro realizará por sua própria vontade. Assim Deus, sem forçar ninguém a pecar, prevê, contudo, os que hão de pecar por própria vontade” 137.

Assim, Agostinho crê que é falsa a oposição entre presciência e liberdade

humana, mostrando que estes termos não se anulam mutuamente num dualismo,

mas se articulam dialeticamente numa dualidade. Podemos também notar, o

empenho do bispo de Hipona em desfazer a idéia de que Deus possa ser visto

como autor do mal. Este é fruto da livre escolha do homem, pela qual o próprio

homem terá que responder diante de Deus, na legítima justiça divina. Com isso

Agostinho, de certo modo, quer impedir que se confunda presciência com 137 De libero arbitrio 3, 4, 10.

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predestinação. Deus só pode predestinar ao bem, nunca ao mal, mas sabe

antecipadamente os que se salvam e os que se condenam de acordo com a própria

opção livremente feita.

Aqui reside um dos pontos mais difíceis e delicados do pensamento

agostiniano. Devido aos termos que escolhe para desenvolver sua doutrina sobre a

liberdade e a graça, Agostinho vai tornando sua obra mais abrangente e ao mesmo

tempo mais complexa. A noção de predestinação é trabalhada por Agostinho,

dentro do plano maior e mais amplo do conjunto de sua obra, no sentido de

enfatizar a graça e exaltar o mistério de Deus na realização do plano salvífico e na

justificação do homem. Portanto, analisar a reflexão agostiniana sobre a

predestinação afastando-a deste seu contexto vital, é incorrer em sério risco de

deturpá-la, tornando-a incompreensível.

Com efeito, tendo este contexto como pano de fundo, é possível ter uma

percepção mais adequada acerca da doutrina agostiniana da predestinação. A

intenção de Agostinho ao elaborá-la é primordialmente enfatizar o valor

imprescindível da graça na destinação salvífica do homem e, por outro lado,

ressaltar que Deus elabora seu plano salvífico e o conduz a seu termo final em

total liberdade e soberania, sem ser por isso injusto para com aqueles a quem

julga. É neste sentido que o bispo de Hipona afirma que a predestinação dos

santos não é outra coisa senão a onisciente “preparação dos benefícios” com que

Deus salva o justo138. Portanto, a predestinação nada mais é do que a “disposição

que Deus faz”, (em sua justiça onipotente e onisciente), “das suas obras

futuras”139.

Entretanto, tal como aconteceu com a noção de presciência, também a

noção de predestinação suscitou e suscita, mesmo em nossos tempos, reações

críticas, pelo fato de poder dar margem a concepções fatalistas e negadoras da

liberdade humana. A meta pretendida aqui nesta reflexão é mostrar, que aplicar

sem mais e imponderadamente esta crítica a Agostinho significaria desconhecer

toda a luta anti-fatalista do bispo de Hipona e distorcer sua doutrina, eliminando

138 Cf. De dono perseverantiae 14, 35. 139 Cf. Ibid., 17, 41. Agostinho mostra ainda que a noção de predestinação não exclui, antes inclui, a prática do bem pelo empenho da vontade humana. Ele afirma que a predestinação implica em “praticar o bem” como uma “preparação para a graça” sem que isto impeça de ser obra da graça a consumação, ou seja o “efeito da mesma predestinação” (cf. De praedestinatione sanctorum 10,19). Nota-se nestas referências como Agostinho quer garantir a primazia da graça, sem abrir mão das noções de presciência, predestinação e liberdade humana.

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um de seus pilares fundamentais: a liberdade. O que ocorre é que o pensamento

agostiniano é complexo e multifacetado, abarcando diferentes controvérsias, e

sempre buscando articular em dualidades (não dualismos) a graça e a liberdade,

garantindo a possibilidade do encontro do Deus santo e justo com o homem

vulnerável e pecador.

Assim, ter conhecimento prévio (presciência) dos acontecimentos e do

plano salvífico como um todo, não é o mesmo que executar tudo no mesmo plano

salvífico. Sem dúvida é Deus quem conhece e comanda a salvação do homem,

mas este carrega sempre consigo a responsabilidade de fazer a sua parte, posto

que o plano de salvação é um projeto de comunhão e de inter-relação e não de

imposição dominadora entre Deus e o homem. Tal processo de salvação toca o

profundo do mistério do próprio Deus e do mistério do posicionamento sempre

livre adotado pelo homem em seu relacionamento com Deus. Por isso, a

predestinação deve ser pensada em termos dinâmicos, de modo a se captar a

riqueza, a complexidade e o mistério mesmo que nela se articulam.

Não tenho aqui condições de explorar a fundo este tema. Quero apenas

deixar indicado sua complexidade e sua pertinência ao conjunto da obra de

Agostinho, como um tema que toca a questão da liberdade humana. Justamente

dada a relevância e o caráter eminentemente polêmico do tema, o mesmo suscita

diversidade de interpretações e consequentemente calorosos debates entre os

peritos em agostinismo140.

Nesse estudo, aqui neste item da tese, minha intenção foi tão somente

mostrar que a reflexão de santo Agostinho sobre a presciência e a predestinação

não anula, de modo algum, tudo o quanto ele escreveu sobre a valorização da

liberdade humana. Não resulta num “fatalismo teológico”. Que a doutrina

agostiniana da predestinação tenha suscitado diversas interpretações, gerando em

certos ambientes um “predestinacionismo” fatalista, já constitui uma outra

discussão, que diz respeito aos distintos “agostinismos”, ou seja, às distintas

140 Para um aprofundamento do tema veja-se: TRAPÈ, A., obra citada, p. CXXV-CXC; THONNARD, F-J., “La prédestination augustinienne: sa place en philosophie augustinienne”, Revue des Études Augustiniennes 10 (1964), p. 97-123; BOUBLÍK, V., La Predestinazione. S. Paolo e S. Agostino, Roma, 1961; CHENÉ, J., La Théologie de Saint Augustin. Grace et Prédestination, Le Puy-Lyon, 1961. De CELLES, D., “Divine Prescience and Human Freedom in Augustine”, Augustinian Studies 8 (1977), p. 151-160; MARAFIOTI, D., “Alle origini del teorema della Predestinazione (Simpl. 1,2,13-22)”, em Atti del Congresso Internazionale su S. Agostino nel XVI centenario della Conversione, (Roma, 1986), Roma 1987, v. II, p. 257-277, além de outras indicações na bibliografia, no final da tese.

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correntes de interpretação da obra de Agostinho surgidas ao longo dos séculos.

Como já dissemos, entrar no mérito dos argumentos de tais correntes

interpretativas está além do escopo desta tese141. Creio ser suficiente para o

propósito desta pesquisa, dar indicações seguras de que, consideradas dentro do

conjunto da obra de Agostinho, as noções teológicas de presciência e

predestinação, não comprometem a valorização da liberdade sempre pressuposta e

defendida pelo bispo de Hipona. Assim, no que diz respeito à concepção

agostiniana da predestinação, seguindo a análise de A. Trapé142, tiramos as

seguintes conclusões:

a) trata-se de um tema que precisava ser encarado de frente dados os vários

textos bíblicos que dele dão testemunho143.

b) Ao abordá-lo Agostinho quer mostrar que nossa salvação provém da fé

e não das obras.

c) provém da fé e não das obras, para que o homem não se glorie de si

mesmo144.

d) Com o fato de os justos serem vocacionados (“predestinados”) à

realização das boas obras não se nega a liberdade (o livre empenho da própria

vontade), mas supõe-se junto com ela a atuação da graça145.

e) Ao tratar desse tema, Agostinho quer, mostrar que a graça da

justificação recebida pelo homem não é de nenhum modo “merecida”. Pois foi

Cristo que, (pelos méritos de sua paixão e ressurreição), nos chamou,

“predestinou” à salvação, tornando justo o homem que até então, i.e., até a vinda

redentora de Cristo, vivia aprisionado na sua condição de pecador146.

f) Com a noção de predestinação, Agostinho quer ressaltar a plena eficácia

e a total gratuidade da graça divina que salva o ser humano.

141 Sobre esta questão, além das indicações da nota anterior, ver também TRAPÉ, A., “A proposito di predestinazione: S. Agostino e suoi critici moderni”, em Divinitas, 7 (1963), p. 243-284. 142 Cf. TRAPÉ, A., “Grazia e Libertà” in Opere di Sant’ Agostino, (Nuova Biblioteca Agostiniana), vol. XX, Roma, 1987, p. XCIX e p. CXXV ss. 143 Textos como Jo 12,37s; Mt 13,11, Rm 8,29s. 2 Cor 3,5; Rm 9,13.15-16. 18-23; 11,5.7.9; At 13,48, entre outros, que Agostinho se vê na obrigação de analisar no De praedestinatione sanctorum e no De dono perseverantiae. 144 Cf. Ef 2, 8-9; 2 Cor 10,17; 1 Cor 4,7; Rm 12,3. 145 Cf. TRAPÉ, A. “Grazia e Libertà” in Opere di Sant’ Agostino, (Nuova Biblioteca Agostiniana), vol. XX, Roma, 1987, p. XCIX. 146 Cf. Rm 8,29-30. Conferir também TRAPÈ, A., ibid., p. CV.

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São estes os significados que Agostinho quer enfatizar ao refletir sobre a

predestinação. Ele conclui que constitui um mistério do Deus onipotente que uns

sejam salvos e outros não. A livre opção, tanto dos que se salvam como dos que se

condenam, é preservada. Por isso, tanto a condenação como a salvação, se

processam dentro da justiça divina, pois não há iniqüidade em Deus147 e seus

juízos são dotados de uma justiça e de uma perfeição que de muito escapam à

compreensão do homem.

De acordo com A. Trapé, estas são as linhas gerais da apreciação que santo

Agostinho faz do tema da predestinação. Não se trata de reflexão fácil, nem isenta

de ambigüidades. Os termos com que o bispo de Hipona se refere à situação de

perdição, ou seja, de rejeição ao plano salvífico de Deus, são duros e até

dramáticos. Ele fala de uma “massa de perdição”148 da qual só Deus sabe quem

consegue sair e se salvar. E os que conseguem não o fazem sem o concurso da

própria vontade, mas devem-no totalmente ao auxílio da graça divina,

indispensável à sua salvação.

Além disso, temas como a limitação da efetiva capacidade de o homem

perseverar na fé depois da queda de Adão149, a idéia de um número fixo dos

“eleitos” e outro dos “reprovados” e a concepção da vontade salvífica de Deus

restrita a um grupo de “predestinados”150, não deixam de suscitar problemas de

interpretação, paradoxos e perplexidades, tanto para a teologia mesma em sentido

mais amplo, como para a análise da obra de Agostinho em particular.

Estes e outros termos empregados por Agostinho mostram uma faceta

sombria e talvez até pessimista de sua obra e de sua visão do homem. Este

“pessimismo” que se mostra nas obras da fase final da vida de Agostinho151, na

verdade já dava seus sinais mesmo antes, ao longo da polêmica com os

pelagianos, suscitando entre os estudiosos da obra agostiniana, diversas hipóteses

para explicá-lo. Neste particular, Isabelle Bochet apresenta as prováveis razões

147 Cf. Rm 9,14. 148 “massa perditionis” cf. De dono perseverantiae 14, 35. 149 Cf. De dono Perseverantiae 11 e 12. 150 Cf. ibid., 13 e 14; esta noção em particular gerava dificuldades quando confrontada com a vontade salvífica universal que se pode extrair de 1 Tm 2, 4; os adversários de Agostinho bem o sabiam e o criticavam por isso, tal como fizeram os monges semipelagianos de Marselha. 151 As obras que tratam mais detalhadamente da questão da predestinação (De praedestinatione sanctorum e De dono perseverantiae) datam do ano 429 d.C. e foram as últimas a serem escritas por Agostinho.

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que levaram Agostinho a este “pessimismo”152. Segundo a autora, a dureza de

certas expressões da teologia agostiniana estão diretamente relacionadas ao

recrudescimento da controvérsia pelagiana. Ela recorda a agressividade dos

posicionamentos de Juliano de Eclano contra o bispo de Hipona, que, juntamente

com as polêmicas com os monges semipelagianos de Adrumeto e Marselha no sul

da França153, sugaram muito do vigor e da paciência de Agostinho. É mencionado

também o fato de Agostinho já contar com 75 anos quando escrevera suas duas

últimas obras. Assim, é também possível que o envelhecimento tenha deixado

Agostinho menos disposto a ser condescendente com seus críticos e

adversários154.

Mas há, ainda, uma outra e mais profunda razão que motivava o bispo de

Hipona a exaltar muito mais a graça divina do que a ação do próprio homem no

processo salvífico. Trata-se da experiência interior na qual o homem sente a

presença misteriosa de Deus clamando por mudanças e motivando as

transformações necessárias à sua vida. Destarte, Agostinho sabe, por experiência

própria, que todo processo de conversão e de crescimento na fé é conduzido pela

força poderosa, amorosa e misteriosa da ação do próprio Deus no interior da alma

humana. Tal consciência suscita, a alegria jubilosa pela descoberta da presença de

Deus na vida do homem, mas, simultaneamente, o horror e o desgosto sentido

diante da condição pecadora em que se encontra o homem afastado de Deus. Por

outro lado, a sensação provocada na mesma experiência de conversão que leva o

homem a sentir-se mais próximo dAquele que descobriu ser o Senhor e o sentido

de sua vida, não pode senão suscitar o ato de louvor e gratidão próprio de quem

reconhece que não se salvou por si mesmo, mas que foi salvo pelo poder de Deus.

152Cf. BOCHET, I., Saint Augustin et le Desir de Dieu, Paris, 1982, p. 301, nota 5. 153 Os monges de Adrumeto e Marselha, adotavam um pelagianismo moderado, pois aceitavam alguns pontos da doutrina da graça, mas com argumentações mais sutis do que as de Pelágio, Celéstio e Juliano de Eclano, continuavam criticando Agostinho. Os monges de Adrumeto, por exemplo, afirmavam que a ênfase na necessidade radical da graça tornava inútil a correção fraterna em vista da conversão do pecador, posto que (segundo eles) Agostinho negligenciava o empenho do livre arbítrio na mudança de conduta. Já os monges de Marselha admitiam que a graça divina era necessária para a perseverança na fé, mas o início da fé (initium fidei) era, para eles, fruto da livre decisão do próprio homem. Para responder à primeira crítica Agostinho redigirá o De correptione et gratia e para responder à segunda o De dono perseverantiae. Para maiores informações ver A. Trapé, TRAPÉ, A. “Grazia e Libertà” in Opere di Sant’ Agostino, (Nuova Biblioteca Agostiniana), vol. XX, Roma, 1987, p. IX-XXIX. e CI-CXVII. 154 Cf. BOCHET, I., obra citada, p. 301, nota 5.

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Por essa razão, citando G. de Plinval, Isabelle Bochet pode dizer que se

Agostinho atribuiu uma parte cada vez maior de sua obra “ ‘àquelas nossas

determinações que emanam diretamente de Deus por Jesus Cristo’155, é que ele

tinha um senso cada vez maior da graça e que nele aumentavam os sentimentos

de humildade e de adoração ”156. Deste modo, é possível notar que a exaltação da

graça divina feita por Agostinho não quer, de modo algum, negar a existência e a

atuação da liberdade do homem, nem levar o ser humano ao pessimismo e ao

desespero. Ao contrário, reconhecendo os atributos humanos, mas sem deixar de

mostrar suas limitações, quer manifestar o sentido inefável e místico da presença

atuante da graça divina em nós. Assim ele o faz, escrevendo com todo rigor lógico

da reflexão teológica e simultaneamente com o sentimento de piedade e devoção,

que leva a ressaltar a pequenez da criatura diante do Deus seu Criador e Salvador.

Tendo feito esta digressão, a fim de acompanhar o desenvolvimento da

reflexão de Agostinho, já se torna mais fácil entender as bases do pensamento

agostiniano sobre a liberdade. No próximo item pretendo ressaltar ainda alguns

pontos que tocam e nuançam a questão da liberdade.

2.5

A liberdade ativa pela práxis da justiça

Em sua reflexão sobre a liberdade, Agostinho se situa entre duas atitudes

extremas que ele quer a todo custo evitar: a soberba e a escusa. Inspirado nos

textos de 1 Cor 4,7 e 2 Cor 10,17 157, ele critica e refuta a concepção pelagiana da

liberdade, mostrando que esta não é auto-suficiente e não é algo de que o homem

deva se vangloriar como se não fosse auxiliado pela graça divina e como se a

própria liberdade não fosse um dom concedido por Deus.

Por outro lado, esta noção de que “tudo é dom de Deus” pode gerar o

extremo oposto da soberba, ou seja, a atitude de escusa. Esta se caracteriza por

aquela postura de quem usa de subterfúgios para não se comprometer com a

justiça e com o bem necessários à vida, ou seja, a atitude de forjar “desculpas”

155 PLINVAL, G. de., “Aspects du determinisme et de la liberté dans la doctrine de saint Augustin”, Recherches Augustiniennes, 1 (1955), 377. 156 BOCHET, I., obra citada, p. 301, nota 5. 157 Cf. De spiritu et littera 9, 15; 10,16-17; 13,22; 35,66 .

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para não dar uma resposta positiva ao convite salvífico feito por Deus, sob a falsa

argumentação de não ter recebido de Deus o “dom” de ser capaz de fazê-lo.

Combatendo esta última tendência, o bispo de Hipona mostrará que todo

ser humano possui condições de responder positivamente ao chamado de Deus

uma vez que Ele a todos quer salvar e a ninguém nega a sua graça158. Ele

argumenta em favor do reconhecimento da vontade e do livre arbítrio como dons

concedidos por Deus e, simultaneamente, em favor da necessidade efetiva da

prática das obras de justiça por parte do ser humano. Por isso, o homem tem

condições de responder e deve responder positivamente ao chamado de Deus. Ele

precisa manifestar a vontade de crer (voluntas credendi), a qual é levada a efeito

através das obras.

Destarte, crer é também “um ato da vontade”159 e a fé clama e atua para

que sejam boas as obras do homem160, as quais são as “obras da fé”161, praticadas

através da caridade difundida no coração do homem pelo Espírito Santo (cf. Rm

5,5)162, mas conjuntamente com o concurso da vontade livre do homem que aderiu

às moções do Espírito. Estas são as obras pelas quais o ser humano pratica a

justiça e ao mesmo tempo se submete e participa à justiça divina. Pois Deus

retribui a cada um segundo suas obras (cf. Sl 62,13). Não praticá-las equivale a

“desprezar a misericórdia de Deus”163 que nos chama à fé. Pois são as boas obras

que “libertarão o homem da corrupção da morte”164 e o farão participar de modo

real e objetivo da salvação que, em Cristo, Deus vem operar.

Falando do dinamismo escatológico desta salvação, Santo Agostinho

mostra que ela se dá sob o primado da graça de Deus que cura a enfermidade da

alma do homem, conduzindo-o até a contemplação de Deus na bem-aventurança

escatológica. Ele mostra igualmente que a prática das obras de justiça faz parte

integrante deste processo, no qual o homem experimenta, de um modo mais

radical e autêntico, a própria liberdade. Isso pode ser notado de modo bastante

nítido na citação seguinte.

158 Cf. o texto de 1 Tm 2,4 (“Deus quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade”), citado em De spiritu et littera 33, 58. 159 Cf. ibid. 33, 57. 160 Cf. ibid. 161 Ibid. 162 Cf. ibid. 163 Cf. ibid. 33, 58. 164 Ibid.

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90

“ Estas enfermidades do homem velho, se avançamos com intenção de perseverar, são curadas com o crescimento dia a dia do homem novo pela fé que opera pelo amor. [É o Senhor] ‘Que resgata da morte a tua vida’ [cf. Sl 103,4] : isso se dá na última ressurreição dos mortos. ‘Que te coroa de misericórdia e compaixão’ [aqui também Sl 103,4] : isso se realiza no juízo, quando o Rei justo sentar-se-á no trono para retribuir a cada um conforme as suas obras (Mt 16, 27). Então quem se gloriará de possuir um coração casto? Ou quem se gloriará de estar purificado de todo o pecado (Pr 20,8-9) ?

Foi preciso realçar a compaixão e a misericórdia do Senhor, falando daquele dia em que o cobrar as dívidas e o retribuir os merecimentos poderiam ser vistos como se não houvesse lugar à misericórdia. Portanto, Deus coroa de compaixão e de misericórdia, mas considerando as obras. Pois será separado para a direita aquele ao qual se dirá: ‘Tive fome e me deste de comer’ (Mt 25,35), ‘mas o juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia’ (Tg 2,13), porém, ‘Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia’ (Mt 5,5)”165.

Nota-se, assim, que a transformação que Deus opera no interior da alma

humana deve ser acompanhada e corroborada pelo homem em sua liberdade. Ele

deve “perseverar”, naquela novidade que o torna um “novo homem” e que ele

sente crescer dia a dia dentro de si. Para tanto, ele deve viver concretamente a

solidariedade com os necessitados (cf. Mt 25,35) e praticar a misericórdia, para

poder receber a misericórdia divina (cf. Tg 2,13).

A liberdade de que dispõe o ser humano nada tem de passiva. Ao

contrário, ela deve levá-lo a agir concretamente no mundo em que está inserido o

homem, fazendo com que este, atento às necessidades do próximo, possa libertar-

se praticando a justiça. O homem deve, por isso, libertar-se, com o auxílio da

graça divina, libertando também aos seus irmãos, (filhos do mesmo Deus e

Senhor), que com ele compartilham a mesma condição humana enferma pelo

pecado e o mesmo destino salvífico proposto e concedido por Deus.

Logo, o homem é também sujeito de sua própria libertação. Sua liberdade

é ativa. Assim, já estamos assinalando que esta experiência da liberdade está

associada a uma verdadeira experiência de fé e de amor. O homem precisa crer

nAquele que o liberta, a fim de que, experimentando de modo novo sua própria

165 Ibid. 33, 59 (grifos meus).

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liberdade, ponha a fé em obras, não pela imposição da lei, mas pela gratuidade

própria de quem ama.

Vistos, estes elementos constitutivos da experiência da liberdade humana,

já é possível avançar mais no estudo do tema. Apresentei aqui uma abordagem da

liberdade na perspectiva da autonomia e capacitação pessoal do homem para agir

e se relacionar com seus semelhantes, com o mundo e com Deus. Na próxima

etapa deste trabalho, abordarei a liberdade, como processo dinâmico de

transformação interior, que caracteriza um modo de vida totalmente polarizado

pelo amor a Deus e ao próximo, pelo qual se reordena toda a existência da pessoa.

2.6

A antiga e a nova aliança: os dois tempos da economia da salvação

Os argumentos apresentados nos itens anteriores caracterizaram a

liberdade como um atributo fundamental da condição humana, o qual mediatizado

pelo livre arbítrio, é fragilizado pelo pecado e ao mesmo tempo aberto à ação da

graça. Agora é chegado o momento de analisar a liberdade como o próprio “modo

de vida”, pelo qual o ser humano faz experiência da salvação proposta por Deus.

Neste sentido, a liberdade se constitui como nova existência dinamizada

pela graça divina, que liberta o homem do pecado. Esta vida nova é conquistada

num autêntico “processo de libertação”. Um processo que consiste numa peculiar

forma de experimentar a própria liberdade, que se caracteriza pela superação da

dependência da lei (enquanto controle externo sobre a conduta) e pela primazia do

amor, (enquanto vivência espiritual suscitada pela ação do Espírito Santo no

interior do homem). Tal processo de libertação constitui uma experiência mais

profunda e plena da liberdade, a qual, sob o signo da redenção operada por Jesus

Cristo, se configura como liberdade cristã. Assim, a partir do dado fundamental da

consumação do plano salvífico na pessoa de Jesus Cristo, Agostinho vai conceber

a própria economia salvífica em duas etapas.

Em consonância com a revelação bíblica e com a libertação operada no

homem por meio de Cristo, nosso autor abordará a salvação em dois momentos

distintos e complementares, expressos respectivamente pelo Antigo e pelo Novo

Testamentos da Escritura, expressando o primeiro a Antiga e o segundo a Nova

Aliança. Notar-se-á que, nessa concepção dual do processo salvífico, ocorre certa

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correspondência entre dois dinamismos salvíficos distintos, um mediado pela lei e

outro pelo Espírito Santo.

Assim, Agostinho conforma uma concepção da salvação cristã como

processo de passagem da Antiga à Nova Aliança, processo este que é interpretado

e descrito como passagem do dinamismo da letra da lei ao dinamismo da

liberdade no Espírito. Este último é que possibilita caracterizar a liberdade como

existência livre do pecado, na qual a práxis da justiça é vivenciada

“naturalmente”, isto é, livremente, na pureza da espontaneidade do homem que

aprendeu a amar. Esta é a liberdade cristã, a qual se caracteriza, pela libertação da

lei, mediante a adesão às moções do Espírito.

O itinerário percorrido pela reflexão agostiniana demonstrou que, a

vivência da liberdade está associada ao seu processo de interação com a graça

divina. De fato, os dados da revelação bíblica (manifestando a iniciativa salvífica

totalmente gratuita da parte de Deus), confrontados com a experiência cotidiana

do ser humano (manifestando os obstáculos à salvação representados pelo pecado

e pela infirmitas), levam Agostinho a afirmar que é dentro do processo de

interlocução com Deus que o homem vivencia sua própria liberdade. Neste

processo, ele se descobre ao mesmo tempo livre e necessitado de libertação. Livre

para responder ao chamado que Deus lhe faz e necessitado de libertação devido às

profundas marcas provocadas pelo pecado em sua vida.

Assim, o processo de constituição e vivência da liberdade, de certa

maneira coincide com o próprio processo salvífico proposto por Deus. Tal

processo tem em Cristo sua plena explicitação e realização, de tal sorte que o

mesmo é subdividido em duas etapas uma anterior e outra posterior à vida morte e

ressurreição de Jesus Cristo. Há, portanto, no mesmo processo salvífico, dois

testamentos (o Antigo e o Novo consignados na Sagrada Escritura) e duas

alianças. Agostinho bem o sabe e descreve nestes termos a salvação e

consequentemente a libertação do ser humano.

Ele afirma que este processo salvífico transcorre de acordo com a

“sucessão ordenada dos tempos”166 estabelecida por Deus e usa o termo

“testamento” para designar tanto os dois testamentos da Sagrada Escritura, como

também as duas alianças que Deus firma com seu povo e que são mencionadas em

166 Ibid. 15, 27 .

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93

Jr 31,31-34 167. Assim, há um “tempo do Antigo Testamento” que se distingue do

“tempo do Novo Testamento”168, correspondendo a cada um destes “tempos”,

uma etapa distinta do plano salvífico.

A relação entre estas duas etapas é complexa e dinâmica, pois entre elas

há, tanto linhas de continuidade, como de superação. Em alguns aspectos, a

segunda cumpre e realiza aquilo que a primeira anuncia. Em outros, a nova etapa

“corrige” e supera certas situações decorrentes da antiga. Portanto, não se trata

nem de igualar os “dois tempos” da economia salvífica, nem de criar um falso

antagonismo entre os mesmos. Importa ver o processo como um todo, notando

quais características permanecem e quais são abolidas na passagem da Antiga à

Nova Aliança.

Para tanto, Agostinho se vale de uma análise da revelação bíblica em duas

perspectivas. A primeira, analisando a revelação da lei a Moisés no Monte Sinai

em comparação com a revelação do Espírito Santo na experiência de Pentecostes

vivida pelos apóstolos de Cristo169. A segunda, analisando o anúncio da Nova

Aliança feito pelo profeta Jeremias170. Baseado nestes episódios bíblicos,

Agostinho irá mostrar que na primeira etapa, a economia salvífica se desenvolve

sob o primado da lei, ao passo que na segunda, sob o primado do Espírito.

Isto não significa que o Espírito esteja ausente na Antiga Aliança, nem que

a lei de Deus esteja ausente na Nova. Agostinho se expressa nestes termos, para

ressaltar a novidade radical que se inaugura na economia da salvação a partir da

encarnação de Cristo, pois, somente com Cristo se realiza a salvação anunciada

nas promessas salvíficas do Antigo Testamento.

Assim, conforme já foi dito, Agostinho aborda os dois momentos do

processo salvífico, traçando um paralelo entre a revelação ocorrida no Monte

Sinai e aquela ocorrida em Pentecostes. Ele assinala a existência de dois

dinamismos contrastantes: um da letra da lei escrita em tábuas de pedra e outro da

lei inscrita no interior do coração do homem (cf. 2 Cor 3,3). No entanto,

Agostinho o faz, sem deixar de dizer que se trata da mesma lei elaborada sob a

167 Cf. ibid., 19; de fato a tradução latina do texto de Jr 31,31-34 usa “testamentum” para designar aliança. 168 Cf. ibid., 24, 39; 25. 169 Cf. ibid., 17. 170 Cf., ibid., 19.

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inspiração divina. O que muda é o modo como a lei é integrada no processo

salvífico numa e noutra etapa.

Recordando a analogia do Espírito Santo como “dedo de Deus” no texto de

Lc 11,20 , Agostinho afirma que é Ele (o Espírito Santo) o autor, tanto da lei

escrita nas tábuas de pedra, como da lei inscrita nos corações171. Só que o fato de

uma ser externa e outra interna ao homem, faz com que se conceba a mesma lei

em duas versões. Uma é a antiga lei, a lei do Antigo Testamento, ou da Antiga

Aliança, que prescreve, ameaça, mas não justifica. Outra é a lei nova, do Novo

Testamento ou Nova Aliança, que é amada interiormente e produz como efeito a

justificação do homem.

“Na admirável concordância que existe entre a antiga e a nova lei há que se ressaltar esta grande diferença: lá [ na antiga lei, no Sinai], com espantosos terrores o povo é proibido de se aproximar do lugar da entrega da lei (Ex 19); Aqui [ na nova lei, no Pentecostes], o Espírito Santo desceu sobre todos aqueles que o esperavam e se tinham unanimemente congregado para esperá-lo, depois que o mesmo lhes tinha sido prometido. Lá, o dedo de Deus escreveu em tábuas de pedra, aqui nos corações dos homens. Lá, a lei foi dada exteriormente para infundir o temor nos injustos, aqui foi dada interiormente para que fossem justificados.”172

Nota-se na citação acima, a confirmação da perspectiva antes apontada, ou

seja, a noção de que as duas etapas da salvação cristã comportam dois dinamismos

contrapostos representados respectivamente pela antiga e pela nova lei. No

primeiro dinamismo se verifica a exterioridade da lei expressa nas tábuas de

pedra. No segundo, ao contrário, se verifica a interioridade da mesma lei impressa

nos corações dos homens. Para Agostinho, esta passagem da exterioridade à

interioridade constitui exatamente o elemento diferencial que distingue as duas

etapas da economia da salvação173, elemento este que já era prenunciado na

profecia de Jeremias.

“Vê com atenção e examina este testemunho brilhante acerca deste

assunto proclamado pelo profeta: ‘Eis que virão dias, diz o Senhor, em que eu farei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá; não como a aliança que eu fiz com seus pais no dia em que os tomei pela mão, para os tirar

171 Cf. ibid., 16, 28. 172 Ibid., 17,29 (cf. Ex 19 e At 2). 173 Cf. ibid., 25,42.

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da terra do Egito, aliança que eles violaram [e por isso os abandonei174 ] , diz o Senhor. Mas eis a aliança que farei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor. Imprimirei a minha lei nas suas entranhas, e a escreverei no seu coração, e serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. E ninguém ensinará mais ao seu próximo, nem ao seu irmão dizendo: Conhece o Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor até o maior, diz o Senhor; porque perdoarei a sua maldade e não me lembrarei mais do seu pecado’ (Jr 31,31-34).

O que dizer sobre isso? Pois, nos livros do Antigo Testamento, nunca ou dificilmente, exceto essa passagem profética, aparece uma menção ao Novo Testamento a tal ponto de designá-lo expressamente com este mesmo nome. Em muitas passagens [este Novo Testamento] é predito e anunciado como futuro, mas não de modo que se leia explicitamente este nome. Considera, portanto, com atenção, a diferença entre os dois testamentos, o Antigo e o Novo, atestada pelo próprio Deus.”175.

Nota-se que Agostinho não se limita a estabelecer esta distinção entre o

antigo e o novo dinamismo salvífico, mas mostra que, assim como o antigo

anuncia profeticamente o novo, também o ser humano deve acompanhar esta

“sucessão dos tempos salvíficos”, passando do “Antigo” ao “Novo Testamento”,

da “Antiga” à “Nova Aliança”, da “antiga lei” (exterior) à “nova lei” (interior).

Pois na primeira etapa vigora a “lei do temor”, na segunda a “lei do amor”176. Na

primeira, a graça está latente, enquanto na segunda ela está patente e plenamente

revelada por Jesus Cristo177. Na primeira manifestou-se a ferida do homem

velho178, a caducidade e o jugo servil do regime da letra179, ao passo que na

segunda manifestou-se a cura operada pela graça divina, que produz o homem

novo e que se caracteriza pela novidade do Espírito180, que gera a “verdadeira

liberdade”181.

174 Esta frase representa uma mudança em relação ao texto original da Bíblia. Com efeito, segundo a Bíblia de Jerusalém, Jr 31,32 diz apenas “Não como a aliança que selei com seus pais no dia em que os tomei pela mão para fazê-los sair da terra do Egito - minha aliança que eles mesmos romperam, embora eu fosse o seu Senhor, oráculo de Iahweh!”; Na segunda parte do versículo Agostinho substitui a expressão “embora eu fosse o seu Senhor” pela expressão “et ego neglexi eos”, (cf. edição bilíngüe do De spiritu et littera traduzida pela BAC (Biblioteca de Auctores Cristianos) em Obras de San Augustín, tomo VI, Madri, 1956). Aqui traduzi por “e por isso os abandonei” por julgar ser esta a idéia que Agostinho quer expressar com a palavra “neglexi” (derivação do verbo “neglego”) que indica ato de negligenciar, não cuidar de, por de lado, ser indiferente. Cf. Dicionário Escolar Latino-Português, de Ernesto Faria, edição da Campanha Nacional de Material de Ensino, do Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1967. 175 De spiritu et littera 19, 33 176 Cf. ibid., 8, 13; 18, 31; 21, 36; 29, 51; 32, 56. 177 Cf. ibid., título do capítulo 15: “Gratiae in Vetere Testamento latens, in Novo revelatur”. 178 Cf. ibid., 20, 35. 179 Cf. ibid., 21, 36 180 Ibid., 20, 35. 181 Cf. ibid., 16, 28

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Assim, decorre da própria dinâmica da economia salvífica, que o ser

humano deva tomar parte no processo salvífico, passando do dinamismo

extrínseco da lei, ao dinamismo intrínseco da graça, do temor ao amor. Agostinho

o mostra, contrapondo a “lei das obras” à “lei da fé”. A primeira refere-se à lógica

da retribuição, segundo a qual a justificação é pensada como recompensa aos

méritos dos que praticam as boas obras previstas na lei; ao passo que a segunda

expressa a lógica da gratuidade, pela qual se concebe a salvação como decorrência

da fé pela qual se crê que é (gratuitamente) de Deus, por Cristo e no Espírito, que

nos vem a justificação182.

“Quando o profeta prometeu um Testamento novo, não igual ao Testamento feito antes com o povo de Israel libertado do Egito, não se referiu absolutamente à mudança nos sacrifícios e outros sacramentos, ainda que se desse a substituição, como o atesta a mesma Escritura profética em muitas outras passagens. Apenas ressaltou a diferença entre ambos [os “Testamentos”], porque Deus daria suas leis no interior dos que pertencem ao Novo Testamento e a gravaria em seus corações; donde se inspirou o apóstolo quando disse: ‘Sois uma carta de Cristo, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações (2 Cor 3,3); E [ressaltou também] que a recompensa eterna desta justificação é, não aquela terra da qual foram desalojados os amorreus, os heteus e outros povos ali citados (Js 12), mas a posse do próprio Deus, junto ao qual é bom permanecer (Sl 73,28), a fim de que o bem divino que os justos amam, seja Aquele a quem amam e de quem não podem ser separados senão pelo pecado, do qual não podem ser redimidos senão pela mesma graça divina. Por isso, depois de haver dito: ‘todos me conhecerão desde o menor até o maior’, o profeta acrescentou em seguida: ‘Porque perdoarei sua maldade e não me lembrarei mais de seu pecado’ (Jr 31,34).

Portanto, pela lei das obras, diz o Senhor: ‘Não cobiçarás’ (Ex 20,17); pela lei da fé afirma o Senhor ‘Sem mim nada podeis fazer’ (Jo 15,15) (...) . Desse modo aparece a diferença entre o Antigo e o Novo Testamento, ou seja, a lei do Antigo está escrita em tábuas e a do Novo nos corações. Assim, o que na primeira atemoriza exteriormente na segunda deleita intrinsecamente; e o que na primeira tornava o homem transgressor pela letra que mata, na segunda leva o homem a amar pelo Espírito”183.

Já é possível notar, que Agostinho ressalta a diferença entre os dois

“Testamentos”, enfatizando os benefícios trazidos pelo “Novo” em relação ao

“Antigo”: a interiorização da lei nos corações, a remissão dos pecados, de maneira

que os bons e santos preceitos não atemorizem mais, mas sejam amados

182 Cf., ibid., 13; 14; 17, 29. Para maiores detalhes sobre a polaridade “lei das obras / lei da fé” ver MARAFIOTI, D., L’Uomo tra Legge e Grazia. Analisi Teologica del De Spiritu et Littera , Brescia, Morcelliana, p. 120-123. 183 Ibid., 25, 42 (grifos meus).

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97

interiormente ao ponto de o homem poder “deleitar-se” com seu cumprimento.

Assim, não há mais necessidade de “instrução”, pois o homem que sai do

dinamismo da letra e entra no dinamismo do Espírito não precisa que outro lhe

ensine, porque ele mesmo já ama e “conhece” a Deus. Assim, Agostinho

sutilmente chama a atenção para esta “passagem da letra ao Espírito”, dizendo que

os benefícios da nova etapa da salvação inaugurada pela concessão do Espírito de

Cristo em Pentecostes, são oferecidos aos que “pertencem ao Novo

Testamento”184. Em seguida afirma-se explicitamente que a graça pela qual a lei é

inscrita no coração é prometida pelo profeta ao Novo Testamento.

“...consta que a graça de Deus foi também prometida pelo profeta ao Novo Testamento e que esta graça consiste em que as leis de Deus sejam impressas nos corações dos homens, e assim cheguem aquele conhecimento de Deus pelo qual ninguém mais ensinará o seu próximo, nem a seu irmão, dizendo: ‘Conhece o Senhor’, porque todos me [ o ] conhecerão desde o menor até o maior [ Jr 31,34].”185

Estas indicações comprovam que Agostinho tem uma concepção da

salvação em duas etapas, segundo a qual se opera a passagem do temor e do

extrinsecismo da lei ao amor e à interiorização da mesma lei. Esta mudança de

dinamismos corresponde a um processo de libertação para o homem, no qual ele

faz uma experiência mais profunda da liberdade. Este processo se caracteriza pela

superação da lei como norma imposta exteriormente, pela vivência do amor e pelo

aprofundamento da experiência da liberdade até se chegar à sua plenitude. Este

aspecto da superação da lei como mais um passo dessa caminhada de libertação é

que será o próximo tema a ser analisado.

2.7

A superação da lei

Já foi dito que a lei tem um caráter ambíguo, embora exerça um papel útil

e necessário em ordem à salvação. Ela é enfocada em três diferentes sentidos, o

mortífero (a “letra que mata” cf. 2 Cor 3,6), o pedagógico (a lei que indica o

caminho para a salvação em Cristo, cf. Gl 3,24) e o salvífico, (o sentido da lei que

184 cf. ibid. . 185 Ibid. 28, 49 (grifo meu).

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98

expressa o projeto salvífico proposto por Deus, daí a afirmação de que Jesus não

veio abolir mas sim cumprir a lei, cf. Ex 20 e Mt 5,17). Nestes distintos sentidos

da lei verifica-se que os dois primeiros são transitórios e o terceiro permanente.

Agora é chegada a hora de mostrar que exatamente isso que a lei possui de

transitório deve ser superado em favor do seu sentido salvífico permanente.

Em consonância com a concepção “bipartida” da economia da salvação,

Agostinho passa a apreciar a lei também de forma dual, visto que, como já foi dito

antes, a salvação implica na passagem da exterioridade para a interioridade no

cumprimento do sentido salvífico da lei. Assim sendo, o mestre hiponense faz

uma análise do papel da lei no plano salvífico, recorrendo àquela forma de

raciocínio bi-polar tão característico de sua teologia. Portanto, assim como o

temor deve ceder lugar ao amor, a Antiga à Nova Aliança, a exterioridade à

interioridade, da mesma forma a lei (enquanto coação exterior ao homem) deve

ser substituída pela graça. Por meio dessa superação da lei, o ser humano

aprofunda a vivência da liberdade, uma vez que assume a prática do bem, movido

pela própria vontade, livre de qualquer coação. Agostinho o mostra, como é de

seu gosto, amparando-se nos textos das cartas paulinas.

Ele comenta o texto de Rm 2,17-19 no qual São Paulo critica os judeus

que se gloriavam de serem zelosos observadores da lei, depositando toda sua

confiança e esperança de salvação no rigoroso cumprimento dos preceitos da

mesma lei. Agostinho mostra que tal cumprimento por si mesmo nada significa, se

não partir de uma motivação sincera do coração do homem186. Pois há quem

pratique os mandamentos da lei sem nenhum interesse real pelo bem do próximo.

É o caso daqueles que cumprem a lei por temor do castigo divino, mas em seu

íntimo preferem a transgressão. Agostinho mostra que os que assim agem

aparentam exteriormente praticar o bem por própria vontade, mas não enganam ao

Deus que perscruta e conhece o íntimo dos corações (cf. Jr 17,10). A prática da lei

motivada pelo temor revela que a vontade do homem ainda não foi curada e ainda

não é livre, pois age ainda por coação, constrangida pelo temor, um temor que

muitas vezes oculta, na verdade, o próprio pecado de quem teme. Assim, não

basta cumprir a lei, é preciso considerar também a motivação com que se cumpre,

pois é pelo Espírito Santo que o homem alcança cumprir a lei com reta intenção.

186 Cf. ibid., 8, 13.

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99

Estas ponderações nos mostram como a lei se constitui num instrumento

de coação ao homem. Ao exigir o bem impositiva e externamente, ela acaba

suscitando o temor e, de certo modo, inibindo o amor. Já a graça age no sentido

oposto, levando o homem a amar, podendo, consequentemente, desvencilhar-se da

norma externa da lei que transforma o bem numa obrigação imposta

coercitivamente. Daí que a salvação implique a passagem do dinamismo da lei ao

dinamismo da graça, pois (nos termos aqui expostos), os mesmos são

incompatíveis187. Com efeito, o homem não deve temer a lei que atemoriza

exteriormente com ameaças, mas sim amar a justiça da lei que o habita

interiormente188. E para que não pairem dúvidas a respeito do princípio

dinamizador que torna possível esta superação da lei exterior em prol de um novo

dinamismo salvífico intrínseco ao ser humano, Agostinho afirma:

“O que são as leis de Deus escritas pelo próprio Deus nos corações senão a presença do Espírito Santo, que é o dedo de Deus, mediante cuja presença se difunde a caridade em nossos corações, a qual é a plenitude da lei e a finalidade do preceito?”189.

Assim, fica demonstrado que o Espírito Santo faz surgir um dinamismo

novo, superior ao da letra da lei. Este novo dinamismo constitui a finalidade e a

plenitude daquela salvação para a qual a lei aponta sem, no entanto, ter condições

de realizar. Por isso mesmo a lei, naquilo que ela possui de provisório e externo

ao homem, deve ser substituída por uma força mais eficaz e intrínseca ao próprio

homem, a fim de possibilitar não apenas o anúncio mas também a efetiva

realização da salvação e da libertação do ser humano. Esta força que substitui a

lei, fazendo com que a mesma seja superada, é a fé suscitada pela graça. Esta é, na

verdade, a única que é capaz de dar condições ao homem de viver na justiça de

Deus, justificando o homem gratuitamente pela graça e não pela lei (cf. Rm 1,17;

3,24). Deste modo, orientando-se segundo a doutrina paulina da justificação na

Epístola aos Romanos, Agostinho tira as consequências lógicas derivadas dos

argumentos apresentados, chegando à seguinte conclusão: a salvação se processa

independentemente da lei.

187 Esta incompatibilidade leva Agostinho a dizer que “Pela lei tememos a Deus, pela fé esperamos em Deus, mas para os que temem o castigo a graça permanece oculta”; cf. ibid., 29, 51. 188 Cf. ibid., 31, 36. 189 Ibid.

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“Mas, ó homem, escuta o que vem a seguir: ‘Agora, porém,

independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela Lei e pelos profetas’ (Rm 3,21). Acaso os próprios surdos não ouvem estas palavras? O Apóstolo diz: ‘Manifestou-se a justiça de Deus’. Ignoram esta justiça os que querem estabelecer a sua própria e não querem sujeitar-se a Deus (cf. Rm 10,3). O Apóstolo disse: ‘Manifestou-se a justiça de Deus’ e não a justiça humana ou a justiça da vontade própria; justiça de Deus, não aquela pela qual Deus é justo mas aquela com a qual reveste o homem quando justifica o ímpio. (...)

Por isso o Apóstolo prossegue e acrescenta: ‘Justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo’ (Rm 3,22), ou seja, pela fé com a qual se crê em Cristo. Assim como por esta fé de Cristo não se entende a fé com a qual Cristo crê, assim a justiça de Deus não é aquela pela qual Deus é justo. A justiça e a fé são nossas, mas se diz serem de Deus e de Cristo porque nos são concedidas por eles em sua liberalidade. Portanto, a justiça de Deus, embora seja concedida sem a Lei, não se manifestou sem a Lei. Pois, como poderia ser testemunhada pela Lei sem ser manifestada pela Lei? Mas a justiça de Deus é concedida independentemente da Lei, porque ele a confere ao crente mediante o Espírito da graça sem a ajuda da Lei, ou seja, sem ser auxiliado pela Lei.”190 .

O papel da lei exterior ao homem é bem delimitado e restrito. Ela anuncia,

aponta o caminho da salvação, mas quem move o homem a viver de acordo com

esta proposta salvífica é a graça comunicada mediante o Espírito Santo (Spiritus

gratiae), graça que mobiliza a vontade e suscita a fé. Esta é a justiça que vive da

fé e todo aquele que deseja “tornar-se justo” (ser justificado) deve chegar a esta fé,

aderindo e dando acolhida à graça. Neste sentido, podemos falar numa “justiça

sem lei”, ou seja, numa justificação movida unicamente pela fé, pela graça, pelo

Espírito Santo. É este o dinamismo do Espírito que opera de modo cabal e eficaz a

salvação que a lei se encarregava de testemunhar mas não podia efetuar.

Para mostrar que esta salvação independente da lei é efetivamente possível

e real, Agostinho recorda os exemplos de Abraão que viveu antes da promulgação

da lei mosaica e foi justificado por sua fé (cf. Gn 15,6; Rm 4,3), e dos gentios que

abraçando a fé trazem a lei gravada em seus corações, mesmo desconhecendo os

preceitos da lei mosaica (cf. Rm 2,15.26)191. Assim, mais que conhecer

formalmente os preceitos da lei como tais, importa vivenciar o sentido salvífico da

lei, de modo que, animado pelo Espírito Santo, o homem possa realizar, pela

práxis da justiça, o bem recomendado pelo preceito. Chegando-se a este ponto, a

lei se torna totalmente desnecessária e dispensável, pois o homem não nasceu para

ser submisso a uma lei externa, mas para vivenciar livremente a vocação divina 190 Ibid., 9, 15 (grifos meus). 191 Cf. ibid., 26, 46.

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101

que traz consigo interiormente, segundo a imagem e semelhança do Criador que

existe em sua alma.

No entanto, deve-se atentar para o fato de que o homem é independente da

lei, mas não de Deus. Ele é criado por Deus e necessita de Deus, mas deve manter

com Deus uma relação de filiação e não de escravidão mediante o jugo da norma

exterior representado pela lei. É isto que se atesta na passagem seguinte.

“Mas é preciso fazer ainda outra distinção: os que vivem sob a lei (e, por temor ao castigo, se empenham em manter sua própria justiça), não praticam a justiça de Deus, visto que esta é obra da caridade, (a qual não se compraz senão naquilo que é lícito), e não do temor que obriga a praticar o que é licito embora haja a vontade de praticar outra coisa, pelo que, (se assim fosse possível), mais se gostaria que fosse lícito aquilo que não o é; até mesmo estes crêem em Deus, pois, se não cressem não temeriam o castigo da lei.

Mas não é esta a fé recomendada pelo Apóstolo quando diz: ‘Com efeito, não recebestes um espírito de escravidão para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos Abba! Pai!’ (Rm 8,15). Portanto, é um temor servil e, por conseguinte, embora se creia no Senhor, não se ama a justiça, mas se teme a condenação. Mas os verdadeiros filhos de Deus clamam Abba! Pai!, invocações próprias, a primeira da circuncisão e a segunda da incircuncisão, ou seja, do judeu primeiramente e do grego, ‘pois há um só Deus que justificará os circuncisos pela fé e também os incircuncisos através da fé’ (Rm 3,30). (...).

Cheguem, portanto, até este ponto os que estão sob a lei, para que de escravos se tornem filhos, sem, no entanto, deixar de serem servos, mas servindo como filhos e com liberdade ao Pai e Senhor. Porque também lhes foi concedida esta graça: ‘A todos que o receberam - o Filho Unigênito - deu o poder de se tornarem filhos de Deus’ (Jo 1,12)”192.

Portanto, não resta dúvida de que, segundo a concepção de santo

Agostinho, a experiência da liberdade e da libertação do homem implica na

superação do dinamismo da letra da lei. Em seu lugar passa a vigorar o

dinamismo do Espírito, no qual o homem atua, não por medo, mas por amor.

Disto decorre que a resposta de fé do ser humano à ação do “Espírito de graça”

em sua vida, é caracterizada pelo amor a Deus e ao próximo. Esta resposta

resulta, portanto, na experiência do amor pela qual se põe em prática o bem e a

justiça, ou seja, a mesma salvação prevista na lei. Por isso mesmo, a abordagem

deste tema será, então, o conteúdo do próximo item.

192 Ibid., 32, 56 (grifo meu).

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102

2.8

A experiência do amor

Conforme foi dito no item anterior a letra da lei que age exteriormente ao

homem “passa”, “retira-se”, no mesmo processo em que o amor sucede ao

temor193. Tal afirmação vem nos mostrar que o amor é um elemento constitutivo

do novo dinamismo salvífico do Espírito e da nova etapa da economia da salvação

dinamizada pela graça. Assim sendo, devemos então apreciar atentamente o modo

como o bispo de Hipona concebe a experiência do amor, a fim de

compreendermos como este se situa no processo de constituição da liberdade e da

libertação do ser humano.

Santo Agostinho emprega termos distintos, (charitas, delectatio e dilectio),

para designar a experiência do amor em suas diferentes nuances. Além disso, esta

experiência do amor ocupa um lugar de destaque no processo salvífico. Ela

constitui o ato pelo qual se pratica a caridade e também o “novo modo de viver”

próprio do dinamismo do Espírito, que faz dessa experiência a característica

fundamental da verdadeira e plena liberdade do homem, a liberdade cristã.

Ao tratar do amor, santo Agostinho prioriza os termos charitas, delectatio

e dilectio. Embora distintos, eles são empregados para descrever um mesmo

processo. Em decorrência disso, torna-se difícil (talvez até impossível) impor

limites rígidos na análise destas expressões, tratando-as como conceitos

precisamente definidos. Na verdade, o próprio Agostinho usa aqueles termos com

muita liberdade, porque, embora se possa e se deva estabelecer distinções entre

eles, os mesmos guardam inegáveis conexões e equivalências entre si194.

Assim sendo, vale a pena considerar os termos usados como aspectos

complementares da mesma experiência do amor. Pois na própria obra agostiniana

estas distintas nuances possuem conexões entre si. Não é demais lembrar que o

interesse pelos referidos termos se restringe aquilo que diga respeito à experiência

193 Cf. ibid. Esta noção de que o amor sucede ao temor é repetida outras vezes no De spiritu et littera, como por exemplo em 21, 36; 25, 42; 8, 13 e 29, 51. 194 D. Marafioti observa que Agostinho usa “amor-delectatio-dilectio” como termos “correlativos e correspondentes”, assinalando que, sobretudo os dois últimos expressam o movimento interior do homem em busca da felicidade. Embora não se refira diretamente ao termo charitas, (que parece ter um sentido mais específico), a observação feita pelo autor assinala a abrangência e a semelhança semântica que aproxima e une as expressões empregadas por Agostinho para expressar a experiência do amor (cf. MARAFIOTI, D., L’Uomo tra Legge e Grazia. Analisi Teologica del De Spiritu et Littera , Brescia, Morcelliana, 1983, p. 114, nota 113.).

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103

do amor como expressão da liberdade e do processo de libertação do ser humano.

É, portanto, dentro deste objetivo que seguirá a reflexão aqui feita.

Para iniciar a análise, é importante ressaltar que a abordagem de Agostinho

sobre o tema do amor, está intimamente relacionada com a fundamentação bíblica

dos posicionamentos e idéias por ele defendidas. Com efeito, à medida que

aprimorava sua perícia no domínio da Sagrada Escritura, ele usava das

descobertas feitas em suas pesquisas bíblicas, para responder às questões e

necessidades que estavam surgindo no âmbito teológico e eclesial. O tema do

amor deve ter sido uma destas descobertas fascinantes que tocavam, tanto a vida

pessoal do bispo de Hipona, (sua conversão, o arrebatamento de seu amor a

Cristo, sua vida espiritual, etc.), como também as reflexões teológicas que lhe

eram exigidas pelos conflitos vividos na Igreja. De fato, a análise da Sagrada

Escritura e de suas referências à experiência do amor a Deus e ao próximo,

possibilitaram abordagens muito interessantes.

O texto de Rm 5,5, tantas vezes citado, parece comprová-lo. De fato, nele

se afirma categoricamente que um dos efeitos da ação do Espírito Santo é

justamente a difusão do amor (charitas) no coração do homem195. Seguindo a

perspectiva apontada por este texto, Agostinho procura assinalar os seus

desdobramentos sobre o plano salvífico, analisando-o em conexão com outras

referências ao amor encontradas na mesma Sagrada Escritura. Assim, o amor é

dom de Deus (cf. Rm 5,5)196; é a força que move a fé à prática do bem (cf. Gl

5,6)197 e que possibilita o pleno cumprimento dos mandamentos da lei (cf. Rm

13,9-10)198; consequentemente, o amor é o meio pelo qual se dá a vivência da

justiça (cf. Mt 22,37-40)199.

Deste modo, a charitas se identifica com este dom de Deus, concedido

mediante o Espírito Santo, que torna o homem capaz de amar e que constitui, por

assim dizer, o sentido último da própria lei de Deus. Por isso, se diz que o homem

que recebeu esta charitas no coração pratica o bem por amor200 e passa a amar

195 Cf. De spiritu et littera 16, 28; 21, 36; 32, 56. 196 Cf. ibid., 3, 5; 14, 25; 25, 42 Reforçando essa compreensão de que o amor é dom de Deus, Agostinho por vezes se refere ao amor como charitas Dei ao invés de usar o termo charitas sozinho, cf. 28, 49; 32, 56; 36, 65. 197 Cf. ibid., 14, 26; 26, 46 (dilectio); 32, 56 (charitas/dilectio). 198 Cf. ibid., 16, 28; 17, 29; 21, 36; 26, 46. 199 Cf. ibid., 36, 64. 200 Cf. ibid., 16, 28.

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104

interiormente a lei201, de tal modo que se transforma de transgressor

(praevaricator) em “amante” (dilector) da lei202. Esta transformação é operada por

um dinamismo interior identificado pelo binômio delectatio-dilectio, o qual,

segundo D. Marafioti, é usado para designar esta atuação do amor na vida do

sujeito203. Através dele, o amor substitui o temor204, o homem consegue praticar

espontaneamente o bem, de tal sorte que quem ama cumpre a lei, vivendo na

justiça de Deus. Deste modo, a charitas corresponde aquele sentido salvífico da

lei e Agostinho pode afirmar enfaticamente: “Portanto a lei de Deus é a

caridade”205. Além disso, amparando-se na Sagrada Escritura, Agostinho

fundamenta esta equivalência entre lei e amor nos textos de Rm 13,9-10; 10,3-4 e

Mt 22, 37-40. Inspirado nos referidos textos, ele faz as seguintes considerações:

“...o Senhor, abreviando e resumindo sua palavra sobre a terra (Is 10,23; Rm 9,28), afirmou que toda a Lei e os Profetas dependem de dois preceitos. Não os ocultou, mas declarou-os expressamente: ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento’; e amarás o teu próximo como a ti mesmo’ (Mt 22,37-40). Não é verdade que o cumpridor destes mandamentos cumpre toda a justiça?”206

“Porque aquilo de, ‘não adulterarás’, ‘não matarás’, ‘não cobiçarás’ [Ex 20] (...) nesta palavra se recapitula, a saber: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’ [Mt 22,39]. ‘A caridade não pratica o mal contra o próximo. A plenitude da lei é a caridade’ (Rm 13,9-10). Esta não foi escrita em tábuas de pedra, mas ‘derramada em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado’ (Rm 5,5). Portanto, a lei de Deus é a caridade.”207

Estes textos testemunham a viva consciência de Agostinho acerca do valor

único e do lugar insubstituível ocupado pelo amor no plano salvífico. A lei

externa sim é substituída para que o formalismo, a coação, a imposição e o

controle externo cessem e cedam lugar ao amor que liberta sem renunciar ao bem.

Portanto, o amor deverá tornar-se o único princípio ativo a orientar e conduzir a

vida do homem, pois uma vez em vigor, ele produz os efeitos positivos da

renúncia ao mal e do engajamento da vontade unicamente em prol do bem. Daí

que todo outro preceito que vise o bem passe necessariamente pelo amor. Ele

confere um caráter novo à antiga lei, porque a eleva à sua mais alta radicalidade

201 Cf. ibid., 21, 36. 202 Cf. ibid., 25, 42. 203 Sobre este dinamismo delectatio-dilectio, ver MARAFIOTI, D., obra citada p. 122-124. 204 Cf. De spiritu et littera 18, 31; 21, 36; 25, 42; 29, 51. 205 Cf. ibid., 17, 29: “Lex ergo Dei est charitas”. 206 Ibid., 36, 64 207 Ibid., 17, 29.

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ao exigir e possibilitar que o homem assuma o bem expresso na lei por sua e para

sua própria liberdade. Por isso, o amor é a plenitude da lei e a lei somente

encontra seu sentido pleno no amor.

Neste aspecto, é significativa a ênfase dada por Agostinho ao texto de Rm

13,9-10. Ele o reprisa várias vezes208 e o põe em conexão com o texto de Rm

10,4209. Desta forma ele associa a noção do amor como “plenitude da lei” à pessoa

de Cristo como “finalidade do preceito”. Tal associação parece indicar que a

adesão a Cristo e a vivência do amor se completam como meta última e definitiva

proposta na lei. Assim, o amor não se desvincula, antes se ordena àquela salvação

oferecida e operada em Cristo.

[Através da presença do Espírito Santo] “é derramada em nossos corações a caridade, que é a plenitude da lei [Rm 13,9-10] e a finalidade do preceito [Rm 10,4]”210

Com efeito, o texto de Rm 10,4 afirma que “a finalidade da Lei é Cristo

para a justificação de todo o que crê”. Agostinho deliberadamente aplica ao amor

um atributo próprio de Cristo que se ordena à justificação do ser humano. Assim

como Cristo, também o amor é meta a ser alcançada, objetivo previsto e

preceituado na lei divina. Se, por um lado, Cristo é a perfeita manifestação da

salvação proposta na lei, de tal modo que o homem deve “cristificar-se” para ser

salvo, por outro lado, é pela vivência do amor difundido no coração pelo Espírito

Santo, que o homem consegue “conformar-se” a Cristo. Deste modo, se estabelece

uma conexão entre Cristo e o amor. Ambos são constituídos como sentido último

da lei em vista da salvação. Esta é concedida em Cristo, implicando

necessariamente a experiência do amor. Aqui se faz notar o sentido da charitas.

Ela é o amor dado por Deus, que faz o homem amar a Deus e ao próximo,

praticando a justiça e vivenciando a salvação.

“Portanto, de onde procede este amor, ou seja, a caridade pela qual age a fé, senão dAquele a quem a própria fé suplicou? Pois não se encontraria em nós em nenhum grau, se não fosse difundida em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5). A caridade de Deus, com efeito, se disse que

208 Cf. Ibid., 16, 28; 17, 29; 21, 36; 26, 46; 209 Cf. Ibid., 21, 36; (cf. 9, 15; 12, 20; 29, 50 que também citam Rm 10,3-4, mas separadamente de Rm 13,10). 210 Ibid., 21, 36.

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foi difundida em nossos corações; não aquela pela qual Ele nos ama, mas aquela pela qual nos faz amadores seus [dilectores suos] ; do mesmo modo que a justiça divina é aquela pela qual nos faz justos (Rm 3,24); assim como a salvação do Senhor é aquela pela qual nos torna salvos (Sl 3,9), e a fé de Cristo é aquela pela qual nos torna fiéis (Gl 2,16). Esta é a justiça de Deus, a qual não somente no-la ensina pelo preceito da lei, mas também no-la outorga mediante os dons do Espírito”211.

Logo, a salvação se dá mediante a experiência do amor que é fruto da

graça divina, ou seja, que é produzida como dom concedido por Deus mediante o

Espírito Santo. É esta dimensão da experiência do amor, como dádiva divina que

leva o homem a amar e cumprir livremente a lei em seu sentido mais pleno e

profundo, que o termo charitas quer designar. Ele expressa, assim, o amor como

dom pelo qual se realiza a própria salvação.

Há, contudo, uma outra dimensão da mesma experiência do amor, que diz

respeito ao processo de transformação que se verifica no homem, em cujo coração

foi difundido o amor pelo Espírito Santo. Este processo assinala a efetiva

mudança de orientação na vida do homem, que de transgressor passa a “amador”

dos bons e santos preceitos da lei. Este processo de mudanças pelo qual o homem

começa a viver objetivamente o amor é analisado por Agostinho com os termos

delectatio e dilectio. Com eles, o bispo de Hipona parece se reportar às

conseqüências e aos efeitos derivados da difusão da charitas no interior do

homem. Tal processo se caracteriza pelas moções do Espírito Santo movendo

interiormente a vontade a praticar o bem que o homem aprendeu a amar. Neste

ponto, D. Marafioti observa como a ação do Espírito Santo e a interiorização da

lei estão intimamente associadas através da experiência do amor.

“O Espírito Santo faz amar tudo o que ele mesmo escreveu ‘dentro’ e ‘dentro’ não escreveu outra coisa senão ‘a mesma justiça da lei’212. Essa justiça que era pesada, dura, inflexível e temível, quando era escrita em ‘tábuas de pedra’, agora por seu dom, se torna uma ‘suavidade que deleita’ (suavitate iustitiae delectati), de modo que o homem a cumpre evitando a pena e a condenação da ‘letra’213. De fato, é próprio do Espírito Santo suscitar no homem o dinamismo operativo delectatio-dilectio pelo qual ele pratica efetivamente o bem”214.

211 Ibid., 32, 56. 212 Cf. De spiritu et littera 19, 32; 21, 36 . 213 Cf. ibid., 10, 16; 18, 31 . 214 MARAFIOTI, D., obra citada., p. 139, citando também De spiritu et littera 3, 5; 14, 26; 33, 59; 32, 56; 16, 28 e 21, 36.

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107

Assim, mediante este processo de transformação interior, Deus não apenas

mostra o que fazer, mas efetivamente capacita o homem para que possa realizá-lo.

Neste dinamismo, cabe ao homem acolher o dom que lhe é oferecido,

transformando-o em ato concreto. Por isso, depois de ter sido “interiorizada”, a lei

é novamente “exteriorizada”, não sob a forma de preceito, mas sob a forma de

práxis. Esta práxis que realiza objetivamente a justiça prevista na lei, antes de ser

concretizada exteriormente, é construída e vivenciada interiormente, fazendo com

que aquilo que era objeto de uma imposição legislativa se torne fruto de uma

escolha livre. Somente então, libertado interiormente, (do pecado, da coação e do

medo), o homem está pronto para agir. Ele não é mais submisso à lei coercitiva,

porque está sob o influxo da graça e vive dinamizado pelo amor.

Assim, se completa o processo de vivência da liberdade para o ser

humano. Tal processo, como vimos, implica a livre adesão do próprio homem às

moções do Espírito Santo. Trata-se, portanto, de libertação do pecado, como cura

da alma pela graça, e também de liberdade para assumir espontaneamente a vida

nova no Espírito, vivendo coerente com ela mediante a práxis da justiça. Pela

experiência do amor, simultaneamente como dom de Deus (charitas) e amor ativo

pelo qual se pratica o bem amando o próprio bem (delectatio-dilectio), o homem

experimenta de modo mais autêntico e profundo a própria liberdade.

Portanto, a experiência do amor constitui um “existencial”, um modo

próprio de viver, que é totalmente imprescindível para a libertação e a vivência da

autêntica liberdade humana. Podemos mesmo dizer que a experiência do amor (na

acepção aqui exposta) praticamente se identifica com a própria salvação. O

dinamismo do amor de Deus levando os homens a amar o próprio Deus e o

próximo, constitui a própria salvação em ato, a qual corresponde à vivência da

liberdade em seu mais alto grau: a liberdade cristã.

2.9

A liberdade cristã

A partir do que foi indicado no item anterior, já é possível afirmar que a

liberdade não se resume apenas a um atributo, pelo qual o homem pode mover a

vontade de acordo com suas escolhas. Ela constitui uma experiência vital, um

modo de proceder e de viver, pelo qual o homem sente-se livre dos

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108

condicionamentos que o aprisionam e impedem de amar. Em certo sentido, é

possível dizer que a liberdade é vivenciada como uma “experiência da liberdade”

e um “processo de libertação”, posto que se constitui num modo de vida

qualitativamente novo, marcado pela primazia da ação da graça no mais íntimo e

profundo da alma do homem, fazendo com que sua vida seja dinamizada não mais

pela lei, mas pelo amor.

Tal processo comporta intrinsecamente duas dimensões constitutivas. A

primeira, que diz respeito a esta manifestação mais prática e pontual da liberdade,

(mediante a qual o homem faz suas escolhas cotidianas). A segunda, que diz

respeito ao processo de configuração da liberdade em sentido mais amplo, (como

libertação do pecado e capacitação para a vivência do amor e da justiça), é a que

será agora explicitada. Esta é a dimensão mais profunda e completa da liberdade

humana, que inclui a primeira dimensão antes citada e a unifica numa existência

que engloba toda a vida da pessoa e que tem sua plena expressão na redenção

operada pela mediação salvífica única e universal de Jesus Cristo. É esta

existência, esta nova qualidade de vida, que é denominada “liberdade cristã”.

Começo, então, por caracterizar a síntese que Santo Agostinho fez acerca do plano

salvífico como experiência dessa liberdade.

“Anulamos o livre arbítrio pela graça? De forma alguma; antes o consolidamos. Assim como a lei é estabelecida pela fé, também o livre arbítrio não é aniquilado, mas fortalecido pela graça (Rm 3,31); pois nem a mesma lei pode ser cumprida senão mediante o livre arbítrio; pela lei se verifica o conhecimento dos pecados e, pela fé, a súplica da graça contra o pecado; pela graça, a cura da alma do vício do pecado; pela cura da alma, a libertação do arbítrio; pelo livre arbítrio, o amor da justiça; pelo amor da justiça, o cumprimento da lei.”215

Esta citação, mostra como santo Agostinho parece ter em mente uma

sequência, na qual cada vetor cumpre seu papel.

A Lei (faz ver o pecado) → a fé (suplica a ação da graça) → a graça (cura

a alma) → a alma curada (liberta do livre arbítrio) → o livre arbítrio libertado

(gera o amor à justiça) → o amor à justiça (resulta no cumprimento da lei).

215 Ibid., 30, 52.

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109

Com admirável poder de síntese, Agostinho consegue expressar o

dinamismo salvífico pelo qual se alcança o bem e a justiça previstos na lei de

Deus. Podemos notar que o esquema montado integra graça, liberdade e lei no

processo salvífico. Como se diz já no início da citação, estes não são termos

antagônicos entre si, (contanto que se compreenda que a lei aqui designa o

conteúdo salvífico dos mandamentos da lei divina e não o formalismo externo da

“letra”). Porém, o mais interessante é mostrar que a submissão ao dinamismo da

graça não representa para o homem uma aniquilação de sua liberdade. Ao

contrário, representa a possibilidade real e única para a vivência de uma autêntica

liberdade. Esta não consiste em poder pecar, mas sim em poder viver livre das

amarras do pecado, visto que, se levada a efeito, a possibilidade de pecar

representa, na verdade, uma falsa liberdade, aliás uma renúncia à vida realmente

livre possibilitada unicamente na comunhão com Deus.

É interessante notar com particular atenção, as últimas “etapas” do

esquema sugerido por Agostinho. Nele se afirma claramente a existência de um

processo de cura, pelo qual se restaura a capacidade de optar pelo bem, perdida

com a vulnerabilidade da vontade humana frente ao “vício do pecado”. É por esta

cura operada pela graça que o livre arbítrio torna-se verdadeiramente livre e é por

este processo de “libertação do livre arbítrio”, que pode o homem viver uma nova

e mais elevada modalidade de liberdade: a liberdade de quem espontaneamente

ama a justiça e nela vive. É a liberdade do amor. Liberdade que só conhece quem

passou da obediência à letra para a adesão ao Espírito, experimentando o amor.

Deste modo, o processo de consolidação da liberdade é enfocado sob dois

pontos de vista. O 1º diz respeito à prática do bem pela correta educação da

vontade. Trata-se aqui do uso do livre arbítrio, sob o impulso da graça, na direção

do amor. As decisões e escolhas da liberdade, dentro deste dinamismo, têm como

efeito a realização/cumprimento da justiça preceituada na lei. O 2º ponto de vista

com que Agostinho trabalha o tema de liberdade, diz respeito à transformação

interior que possibilita o correto uso do livre arbítrio. Neste aspecto, Agostinho

enfatiza a ação prévia da graça, que toca a liberdade do homem num nível mais

profundo. Trata-se aqui de uma existência no Espírito Santo, ou seja, do homem

vivendo em “estado de graça”, o que possibilita o cumprimento da lei e o amor à

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110

justiça. É neste sentido mais profundo que Agostinho fala que “a graça cura a

vontade pela qual se ama livremente a justiça”216.

É notável que estes dois pontos de vista correspondam a dois níveis

distintos e complementares da mesma experiência da liberdade. O 1º é o nível da

liberdade como capacidade para espontaneamente fazer escolhas e tomar decisões.

É neste nível que se situa o livre arbítrio. O 2º nível constitui uma espiritualidade

interior do homem liberto do pecado pela graça. É a este 2º nível que fazem

referência as supracitadas reflexões de Agostinho. Nelas se mostra um sentido

mais profundo da liberdade, que liberta o livre arbítrio de seus condicionamentos

negativos e pecaminosos. Já não se trata, aqui, da liberdade como possibilidade de

optar entre o bem e o mal, mas da liberdade de assumir o bem como única

alternativa viável e legítima. É a liberdade da vontade curada pela graça, pela qual

o homem vive livre e justamente. É a liberdade para a qual Cristo quer nos libertar

(Jo 8,36; Gl 5,1.13-14). É a liberdade dos filhos de Deus (Rm 8,13-15.21; Gl 4,1-

7; Rm 6,20-23; 7,5-6), a autêntica e verdadeira liberdade cristã.

Conclusão

Depois de tudo o que foi exposto, já há elementos suficientes para

compreender a concepção de liberdade formulada pelo bispo de Hipona. De

acordo com os itens listados neste capítulo 2, nota-se que na compreensão

agostiniana, a liberdade é um rico processo, no qual interagem o livre arbítrio

humano, a graça divina, o pecado e a lei.

De início tentei descrever os efeitos perversos do pecado, que limitam o

empenho da vontade na busca do bem. É dentro deste contexto que se dá o

exercício da liberdade. Ficou evidente a necessidade de uma tomada de

consciência por parte do ser humano, em vista da percepção de que o livre

arbítrio, mesmo mantendo sua natural capacidade de escolha, precisa do auxílio da

graça divina. Só assim o livre arbítrio torna-se efetivamente livre e capaz de

realizar o bem, correspondendo ao chamado de Deus.

Como conseqüência constatou-se que a necessária renovação interior do

ser humano para a superação do pecado, se dá mediante a primazia absoluta da

graça divina, que corresponde à ação do Espírito Santo no íntimo da alma 216 Ibid.

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111

humana. Foi visto ainda, que esta primazia absoluta da graça não constitui uma

concepção da salvação cristã independente da livre vontade do ser humano. É

certo que Agostinho usou de algumas formulações ambíguas sobre as concepções

da presciência divina e da predestinação dos santos a fim de ressaltar a total

primazia da graça divina, reafirmando as noções de onipotência e onisciência de

Deus. Mas ele o faz sustentando a dialética do dinamismo do processo salvífico

que não pode corresponder à santidade e à justiça de Deus se for negada a

liberdade do homem.

O que caracteriza esta liberdade (além do livre arbítrio já tão enfatizado) é

justamente o dinamismo de interação do livre arbítrio humano com Deus. A ação

da graça divina no interior da alma humana não violenta antes cura o livre arbítrio,

capacitando-o para a práxis da justiça. A ação de Deus no homem não anula antes

requisita o livre consentimento da vontade. É assim que se dá a superação do

pecado e da necessidade da lei. A vivência da liberdade se aprofunda pelo

dinamismo do amor que é suscitado pela ação do Espírito Santo na alma do ser

humano. Há uma passagem do dinamismo da submissão extrínseca aos ditames da

lei, para o dinamismo da liberdade espiritual, da vida nova no Espírito. Assim é

que a liberdade proposta por Agostinho se configura também como experiência de

libertação. Como experiência de um livre arbítrio curado e exercitado no amor;

como a vivência da liberdade no seu sentido mais amplo e profundo que designa a

liberdade cristã.

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112

Conclusão da parte I

Procurei, nesta primeira parte da tese, fazer uma exposição sobre os temas

mais importantes, tanto no que concerne à trajetória pessoal de santo Agostinho,

situada dentro do contexto histórico e eclesial da África nos séculos IV e V d.C.,

como também no que concerne às bases do pensamento agostiniano sobre a

questão da liberdade.

Assim, o capítulo 1 foi estruturado em dois grandes blocos. No primeiro

foram assinaladas as experiências mais marcantes na vida pessoal de Agostinho (a

formação familiar, as influências do maniqueísmo e do neoplatonismo e de santo

Ambrósio, bem como os debates de Agostinho com o donatismo e o

pelagianismo). No segundo bloco temático foram apresentados os fundamentos do

ensino de santo Agostinho sobre a liberdade. Receberam destaque os seguintes

temas: a concepção da liberdade como busca da verdade e também como

adequação do ser humano à ordem natural criada por Deus; a visão do ser humano

como alguém composto de uma estrutura interior dotada de mente e razão, com a

qual, mediante o livre arbítrio, o ser humano realiza suas livres escolhas; a

necessidade da ação da graça divina para libertar o livre arbítrio do pecado,

ajudando o ser humano a superar o domínio das paixões, etc.

Creio que estes temas expressam os pontos fundamentais da concepção

agostiniana sobre a liberdade. Eles ajudam a perceber que, por um lado Agostinho

concebe a liberdade como elemento constitutivo da própria natureza humana,

como dom dado por Deus. No entanto, por outro lado, esse dom natural da

liberdade é exercitado pelo livre arbítrio, mediante o qual o ser humano mobiliza

sua própria vontade pessoal, estimulado pela graça. Nesse contexto, é que o ser

humano tem a possibilidade de assumir uma condição de vida mais de acordo com

o projeto salvífico proposto por Deus, fazendo, no bojo desse mesmo processo,

uma experiência mais profunda da liberdade.

Foi então, partindo destes temas básicos da vida pessoal e do pensamento

de Agostinho que, no capítulo 2, procurei apresentar o modo como a graça

interage com o ser humano, formando e aprofundando a própria vivência da

liberdade. Neste ponto foi interessante notar que Agostinho se esforça para

mostrar, que a graça divina age sem violar nem anular a livre iniciativa do ser

humano mediante o livre arbítrio. Antes ao contrário, tanto mais livre se torna o

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113

arbítrio humano quanto mais amparado ele estiver na graça divina. Essa

perspectiva de abordagem partiu da constatação de que os efeitos perversos do

pecado atingiram a todos os seres humanos. Daí derivou a conclusão de que todos

somos necessitados da graça de Deus. Sem ela nenhum ser humano consegue ter

seu livre arbítrio libertado do pecado. Foi por isso que santo Agostinho indicou as

ações pelas quais a graça divina liberta o ser humano. Daí os temas indicados no

capítulo 2: a renovação interior do ser humano mediante a ação do Espírito Santo;

a importância de mostrar que a primazia absoluta da graça não representa uma

anulação do livre arbítrio; em consonância com isso, a idéia de que essa

renovação interior suscita um livre arbítrio livre para agir pelo amor, numa

liberdade ativa pela práxis da justiça, etc. Tudo isso configura a experiência da

liberdade como processo em que a graça divina interage com a livre iniciativa

humana, num dinamismo de libertação do livre arbítrio em vista da superação do

pecado, mas de tal modo que a resposta humana à ação divina fica preservada.

Uma vez caracterizada esta concepção agostiniana da liberdade, passo

agora para a segunda parte da tese, na qual será analisada a obra de Juan Luis

Segundo.

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114

PARTE II

PRESSUPOSTOS DA TEOLOGIA SEGUNDIANA E

FUNDAMENTOS DA ABORDAGEM DE JUAN LUIS

SEGUNDO SOBRE O TEMA DA LIBERDADE

Introdução à parte II

Nesta parte da tese o objetivo é analisar detalhadamente a concepção de

liberdade que emerge da obra de Juan Luis Segundo. Para isso, estruturei a

reflexão em dois capítulos. No primeiro capítulo (capítulo 3) procurei situar a

obra segundiana em seu contexto histórico. Por isso há uma parte referente à

trajetória pessoal do autor, seguida de outra na qual tentei fazer uma síntese dos

principais conceitos usados por Segundo, indicando a ligação desses conceitos

com o tema da liberdade.

Nos itens referentes à trajetória pessoal de J. L. Segundo, há informações

básicas sobre a formação intelectual e teológica do autor. Já na segunda parte do

capítulo fiz uma descrição do conteúdo referente aos conceitos básicos da teologia

de J. L. Segundo, posto que sem tais conceitos é impossível compreender o modo

próprio pelo qual o autor constrói sua teologia.

No segundo capítulo desta parte (capítulo 4), pude enfim entrar mais

diretamente no tema da liberdade. Aqui a intenção foi destacar o modo específico

pelo qual os conceitos apresentados no capítulo anterior se articulam, formando a

concepção segundiana da liberdade. Será fácil notar que neste ponto da tese a

visão do autor sobre o tema da liberdade ficou mais explicitada, posto que os

fundamentos filosóficos e teológicos da liberdade são diretamente apresentados.

Neste sentido, foi evidenciado o caráter histórico, existencial e também coletivo

da experiência humana da liberdade. Além disso, os múltiplos dinamismos

evolutivos da vida humana foram também destacados como elementos

importantes na configuração da liberdade.

A exposição se inicia com a reflexão sobre as diversas condições

biológicas, psicológicas, sociais, etc., (que Segundo chama de “determinismos”),

que definem as situações concretas dentro das quais é vivida a liberdade. Nesse

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115

mesmo processo, é descrito o modo como estas determinações naturais e sociais

se articulam com situações imprevisíveis, surgidas do próprio desenvolvimento

humano e cósmico e que são experimentadas como “acasos”. Daí a percepção

segundiana de que a liberdade vai sendo construída nessa articulação entre

“determinismos” e “acasos”.

Em seguida, é apresentado o desafio de conciliar a experiência dinâmica

da liberdade humana com a noção de “ordem ou lei natural do universo”, sem cair

num determinismo absoluto que nega a liberdade. Como postular a liberdade

reconhecendo tantos condicionamentos de ordem psicológica, biológica, social,

política, econômica, etc.? Este questionamento foi um dos eixos principais que

conduziu a reflexão de J. L. Segundo e, por isso mesmo, foi apresentado neste

ponto da tese.

Em consonância com esta temática, o passo seguinte da exposição sobre a

reflexão segundiana, foi a apresentação da “perspectiva evolutiva” com a qual o

autor aborda a experiência humana da liberdade. Neste ponto é que aparece a

percepção de que a vivência pessoal da liberdade está associada aos dinamismos

que movem o desenvolvimento do ser humano e do universo.

Por fim, extraindo as conseqüências dos dados apresentados, pude refletir

sobre o impacto de toda essa reflexão para a teologia. As informações trazidas por

J. L. Segundo mostraram que a própria maneira de conceber a relação com Deus é

transformada quando se modifica o modo de conceber a liberdade. E foi assim

que, nos temas finais deste capítulo 4, foram tecidas algumas considerações sobre

a “providência divina”, ou seja, sobre a ação de Deus no interior de um mundo

criado com leis naturais próprias e com os dinamismos autônomos da liberdade de

ação do ser humano. Foram feitas também algumas considerações sobre o ser

humano como “ser pessoa”. Aqui então, a existência humana ficou caracterizada

como vida de homens e mulheres dotados de uma liberdade limitada porém real,

para construir e interpretar sua própria história de vida.

Em linhas gerais são estes os temas tratados nesta segunda parte da tese,

cuja abordagem é apresentada a seguir.

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116

Capítulo 3

Contexto histórico-teológico de Juan Luis Segundo

Introdução

O contato direto com a produção literária de um autor é importante para

compreender seu pensamento. Porém se a leitura das obras do autor em questão

for descontextualizada produzirá equívocos e incompreensões. Por isso é muito

importante a contextualização de qualquer obra dentro do quadro de referências

pessoais e sociais do autor que a produziu. Será muito oportuno, portanto, situar a

obra de Juan Luis Segundo dentro do contexto vivido pelo autor. Por isso, um dos

objetivos do presente capítulo é apresentar os principais pontos de referência da

obra segundiana. Entrarão em cena alguns aspectos de sua vida pessoal, sua opção

pastoral em favor da formação do laicato e da reflexão engajada na realidade

latino-americana, bem como os autores que o próprio Segundo indicava como

sendo aqueles que mais influenciaram sua teologia. Em seguida apresentarei os

conceitos fundamentais do pensamento segundiano. Tais conceitos possibilitarão

um melhor entendimento sobre a estrutura da reflexão de J. L. Segundo e ao

mesmo tempo fornecerão as idéias principais que vão caracterizar o modo como o

autor enfoca a questão da liberdade.

Assim, este terceiro capítulo foi estruturado em três partes. Na primeira

delas (item 3.1), são apresentadas algumas informações sobre a vida pessoal e a

relevância da obra de Juan Luis Segundo. Na segunda parte (item 3.2), entram em

cena os autores e correntes teológicas que influenciaram J. L. Segundo com

especial destaque para G. Bateson, N. Berdiaeff, Teilhard de Chardin, além da

hermenêutica teológica de Bultmann e da perspectiva aberta pela Teologia da

Libertação. Por fim, na terceira parte (item 3.3), são apresentados os conceitos

fundamentais da teologia segundiana. Nessa parte da exposição se evidencia a

densidade da reflexão segundiana. Mediante conceitos como “estrutura de

valores”, “fé antropológica”, “ideologias”, “fé religiosa”, “dados transcendentes”,

“dêutero-aprendizagem” entre outros, o autor expõe a complexidade e a riqueza

de elementos humanos, sociais e teológicos que integram a experiência da

liberdade cristã.

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117

3.1

Dados sobre a história pessoal de Juan Luis Segundo

De 1925 a 1996 durou a vida de Juan Luis Segundo. Foram setenta anos de

intensa formação intelectual que ele concentrou em suas atividades como ser

humano, como cristão, padre jesuíta e especialmente como teólogo. Isso pode ser

comprovado, não apenas pelos mais de vinte livros e os mais de cem artigos que

escreveu, mas também pelo grande interesse que sua obra despertou no meio

acadêmico, em diversas universidades mundo afora, gerando muitos artigos,

livros, dissertações de mestrado e teses de doutorado criadas para estudar o

pensamento de J. L. Segundo217.

Uma obra de tal porte, demanda um longo tempo de formação humana

para seu autor. Os anos de estudo e preparação intelectual e espiritual começaram

quando J. L. Segundo era ainda muito jovem. Basta dizer que seu ingresso na

Companhia de Jesus se deu em 1941, quando ele contava apenas 16 anos, tendo

um primeiro livro publicado aos 23 anos. Com a solidez da formação e do amparo

institucional oferecido pelos jesuítas, Segundo pôde estudar teologia na Bélgica

no início dos anos 50, ordenando-se padre em 1955 e obtendo o doutorado em

letras na França pela Universidade de Sorbonne em 1963.

O interessante é que nessa trajetória intelectual Segundo teria (se

quisesse) excelentes oportunidades para uma atividade docente voltada

basicamente para a pesquisa e o debate acadêmico entre especialistas em teologia

ou filosofia. Ele tinha talento e inteligência de sobra para isso. No entanto, por

uma opção pessoal, decidiu lecionar teologia, levando a sério os métodos

acadêmicos da pesquisa teológica, publicando livros de conteúdo consistente,

mantendo ao mesmo tempo o trabalho pastoral com leigos, com grupos de

reflexão constituídos de estudantes universitários, ocupando-se com debates

visando um diálogo honesto e consistente com pessoas agnósticas, etc.

Sim, é verdade que Segundo teve participação em encontros com outros

teólogos da América Latina e manteve durante certo tempo uma atividade docente

em Harvard, Chicago, Toronto, Paris e Lyon. Mas tal atividade não se desenvolvia

217 Dados sobre a trajetória pessoal e sobre a bibliografia de J. L. Segundo podem ser obtidos em Misión de fé y Solidaridad, 62/63, junho-julho de 1996, (revista da Compania de Jesus no Uruguai que teve todo este número dedicado a J. L. Segundo). Ver também CORONADO, Jesús Castillo, Livres e Responsáveis: o legado teológico de Juan Luis Segundo, São Paulo, Paulinas, 1998.

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118

em detrimento do contato pessoal com os cristãos leigos no Uruguai e em outros

países da América Latina. J. L. Segundo tinha a certeza de que esse trabalho de

formação de um laicato consciente e atuante é importantíssimo para a Igreja e para

a sociedade. Isso fez com que ele se fixasse efetivamente em seu próprio país

para, a partir de sua realidade histórica e eclesial, elaborar a sua teologia.

3.2

Pontos estruturantes da teologia segundiana

Para conhecermos bem o pensamento de J. L. Segundo, é importante

considerar as pessoas, as idéias e as obras literárias que ele valorizava. É fácil

notar que sua escrita é densa e complexa. Isto se deve não apenas à originalidade

de suas proposições, mas também ao empenho para tratar de temas importantes da

vida cristã, sem cair em simplismos e superficialidades. J. L. Segundo encarava as

tarefas históricas pertinentes à vivência da fé cristã na cultura moderna própria do

século XX como realidades complexas. Por isso mesmo, a sua abordagem

teológica é também complexa, articulando diversos autores da teologia, como

também da literatura, da filosofia e das ciências. Neste ponto, é útil apresentar

ainda que brevemente os autores e as idéias que atuaram como referências

importantes para o universo intelectual de J. L. Segundo. Situada neste contexto, a

obra segundiana poderá ser melhor compreendida.

3.2.1

Juan Luis Segundo e a Teologia da Libertação

Entre os pontos estruturantes da obra segundiana consta sem dúvida a

reflexão teológica feita no âmbito da Teologia da Libertação. Na passagem dos

anos 60 aos anos 70 do século XX, foi progressivamente sendo desenvolvida uma

reflexão feita por diversos teólogos sensibilizados e familiarizados com a

realidade social de setores marginalizados e excluídos nos diversos países latino-

americanos. Motivados pelos documentos de Medellín e Puebla, estes teólogos

procuravam articular uma prática pastoral solidária com os pobres, que pudesse ir

além das obras de caridade e mostrasse os mecanismos sociais de opressão e

exclusão. Assim visavam a formação de uma consciência cristã mais crítica e

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119

profunda acerca da realidade, fazendo com que os próprios membros desses

setores excluídos se tornassem agentes de sua própria libertação. Motivados pela

fé cristã, os pobres poderiam assim tomar parte em processos de transformação

social, que ensejassem a superação das situações de exclusão, gerando novas

situações e estruturas sociais mais coerentes com o projeto do Reino de Deus

anunciado por Jesus nos evangelhos.

Assim, autores como Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Juan Carlos

Scannone, Enrique Dussel, foram alguns dos pioneiros no movimento da Teologia

da Libertação. Pouco a pouco, as críticas e confrontações provenientes de outros

setores com visões teológicas bem diferentes, deram ocasião para obras de

esclarecimento e de defesa deste novo modo de fazer teologia. Seus idealizadores

quiseram deixar bem claro que as origens da Teologia da Libertação deviam ser

buscadas, “não tanto em ideologias políticas ou econômicas alheias ao

cristianismo, mas naquelas concepções antropológico-religiosas trabalhadas e

assumidas pelo Concílio Vaticano II, juntamente com a riqueza das fontes

originárias do Cristianismo, isto é, a Tradição e a Escritura.”218.

A Teologia da Libertação começou quando diferentes teólogos da América

Latina resolveram marcar reuniões de trocas de experiências teológico-pastorais.

Estes encontros enriqueciam os participantes, fazendo com que percebessem a

necessidade de elaborar uma teologia a partir do lugar social em que estavam

enraizados, uma teologia sintonizada com os desafios históricos dos povos da

América Latina. Foi assim que se deram conta de que a teologia reinante naquele

momento tinha se convertido “numa ideologia negativa e num fator de alienação

que estava dando às pessoas simples e marginalizadas uma concepção falsa do

que eram e do que podiam chegar a ser. E mais: dadas as circunstâncias sócio-

históricas de outrora, tudo parecia indicar que essa teologia prestava-se ao

mesmo tempo, a cumprir o papel de elemento reforçador e legitimador das

situações de pobreza e injustiça pelas quais atravessava o continente”219.

Dentro deste contexto, J. L. Segundo apresentou uma contribuição bastante

singular. Sua opção desde o início não foi a de trabalhar diretamente ou

exclusivamente com os pobres para incutir neles uma nova teologia mais

politizada e libertadora. Segundo percebia que tal intenção era carregada de

218 CORONADO, J. C., obra citada , p. 3. 219 Ibid., p. 5.

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120

ambigüidades e poderia facilmente se converter numa forma mais sofisticada de

dominação do povo pobre disfarçada por discursos libertadores. Fazia-se

necessário um trabalho pastoral sério e efetivamente comprometido com a “opção

pelos pobres”, mas que fosse, ao mesmo tempo, articulado com uma reflexão

teológica de primeira grandeza, com sólida fundamentação na Bíblia, na Tradição

da Igreja e nos conhecimentos provenientes de distintas áreas do saber científico.

Foi por sentir uma deficiência precisamente neste segundo ponto, que J. L.

Segundo investiu muito de sua energia na construção de uma vigorosa reflexão

teológica que, partindo da realidade latino-americana, tivesse uma consistência

teórica igual ou superior às melhores teologias desenvolvidas na Europa.

Assim a teologia elaborada por Segundo tornou-se uma reflexão crítica

para a própria Teologia da Libertação da qual o próprio Segundo é um dos

fundadores220. Notamos aqui, uma peculiaridade da perspectiva teológica

segundiana, afinal ela é dirigida à causa da libertação dos pobres e

simultaneamente, configurada como uma teologia crítica e neste sentido

libertadora. É por isso que Segundo se propõe (em sua própria obra) a tarefa de

“desalienar” a teologia e consequentemente elaborar uma teologia nova,

alternativa à teologia alienante que se praticava na América Latina até os anos 70

do século XX.

Neste contexto é que se situam obras como a coleção Teologia Aberta

para o Leigo Adulto em cinco volumes, e Libertação da Teologia.221 Cada uma

delas possui sua especificidade própria, mas com um objetivo amplo comum:

contribuir para formar cristãos amadurecidos em sua fé. Estes cristãos com uma

nova visão teológica, (desprovida dos componentes alienantes da teologia pré-

Concílio Vaticano II que reinava em muitos seminários, paróquias e dioceses,

etc.), poderiam, então, desempenhar um papel importante na pastoral, nos

220 Sobre este sentido crítico da reflexão segundiana, que comporta uma avaliação da teologia praticada na América Latina, inclusive a respeito da própria Teologia da Libertação, ver: SEGUNDO, J. L., “Les Deux Théologies de la libération en Amerique Latine”, Etudes, 361 (1984), 149-161; Id., “Notas sobre ironias e tristezas. Que aconteceu com a Teologia da Libertação em sua trajetória de mais de vinte anos? (resposta a Hugo Assmann)” em Perspectiva Teológica 37 (1983), 385-400; Id. “Críticas e autocríticas em la Teología de la Libéracion”, em GONZÁLES FAUS, J. I., COMBLIN, J. e SOBRINO, J. Cambio Social y Pensamiento Cristiano en América Latina, Editorial Trotta, sl./sd.; 221 SEGUNDO, J. L., Teologia Aberta para o Leigo Adulto, São Paulo, Loyola, 1977 (v.1: essa comunidade chamada Igreja; v.2: Graça e condição humana; v.3: A nossa idéia de Deus; v.4: Os sacramentos hoje; v.5: Evolução e culpa); Libertação da Teologia, São Paulo, Loyola, 1978.

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121

movimentos sociais, na formação de lideranças cristãs, como contribuição aos

processos de libertação em curso nos países latino-americanos.

Esse movimento renovador na reflexão teológica latino-americana,

realmente alçou vôo e possibilitou aos leitores interessados uma nova visão sobre

alguns dos temas fundamentais da fé cristã, tais como Igreja, Deus, a relação entre

Graça, pecado e liberdade, os sacramentos, etc. Por outro lado, esse processo

mostrou que as obras dos diversos autores ligados à Teologia da Libertação não

formam uma reflexão teológica homogênea e sem divergências entre os autores.

A visão própria de cada autor e o contexto específico a partir do qual cada um

elaborava sua obra, estimularam o surgimento de diferentes linhas teológicas

dentro da própria Teologia da Libertação.

Essas diferenças são derivadas do contexto próprio de cada autor em seu

país e neste aspecto, o caso de J. L. Segundo é exemplar. Sua obra está

estreitamente ligada ao diálogo que ele teve durante toda a sua vida com setores

intelectuais, universitários, crentes e não-crentes, interessados em refletir sobre a

realidade social para descobrir as interações que deveriam ocorrer entre a fé cristã

e esta realidade. Neste sentido, J. L. Segundo sempre procurou estimular nos

movimentos pastorais, nos setores universitários, como também no campo da

reflexão teológica acadêmica, a formação de uma fé cristã amadurecida, crítica,

inteligente e, assim, preparada para as interpelações advindas da sociedade. De

certo modo, a teologia segundiana tem como projeto, fornecer as bases para que

os países latino-americanos, nos séculos XX e XXI, encontrassem cristãos com

maturidade suficiente para dar respostas criativas e eficazes, para os desafios

provenientes da realidade sócio-cultural desses países.

3.2.2

As reflexões bíblico-teológicas de G. Lambert e L. Malevez

No plano bíblico-teológico, o próprio J. L. Segundo admite que recebeu

contribuições importantes de Léopold Malevez e Gustave Lambert222. Vem deste

último a noção de que a descoberta de Deus feita pelo povo de Israel foi se dando

progressivamente, por “etapas”. Em decorrência, os registros escritos desse

222 Cf. CORONADO, J. C., Livres e Responsáveis: o legado teológico de Juan Luis Segundo, São Paulo, Paulinas, 1998, p. 7-8 (com indicação bibliográfica referente aos dois autores) e 29-32.

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122

processo de descobertas, amadurecimentos e auto-críticas, constituem a expressão

das concepções teológicas contidas no Antigo Testamento.

G. Lambert foi professor de Antigo Testamento de J. L. Segundo e teve o

importante mérito de lhe transmitir essa noção de que na Bíblia havia crises,

conflitos entre diferentes interpretações, entre as diversas alternativas que

despontavam na caminhada histórica do povo hebreu, mostrando que tais crises

correspondiam a distintas etapas do amadurecimento teológico e espiritual do

povo de Deus. Tal compreensão pôde ser enriquecida com a abordagem teológico-

sistemática empreendida por Léopold Malevez. De acordo com este outro

professor, a distinção entre a ação humana e a ação divina não deveria gerar uma

dicotomia entre a realidade temporal e a realidade espiritual. Tal dicotomia é

desnecessária e deveria ser superada.

Evidenciava-se, desta forma, que a ação sobrenatural de Deus em

benefício dos seres humanos não era exterior, como se Deus vivesse ausente do

mundo criado. Neste sentido, Malevez ajudou J. L. Segundo a compreender que as

virtudes e as situações libertadoras experimentadas pelos homens, aqui mesmo na

vida terrena, no plano do “natural”, possuíam já algo de “sobrenatural”. A ação de

Deus participa intrinsecamente da vida dos seres humanos, a partir de dentro da

história e da existência humana.

Contemplando essas percepções de seus professores, J. L. Segundo obteve

a base necessária para compreender que a existência humana na história forma um

processo pedagógico, pelo qual Deus se revela ao homem e interage com ele.

Processo este, que é composto também por crises, dúvidas descobertas, ampliação

de conhecimentos, tanto na compreensão intelectual como no amadurecimento da

fé. Foi assim na Bíblia e é assim também na experiência de fé que qualquer ser

humano pode fazer, ao longo de sua existência, a partir das experiências vividas.

Tais perspectivas foram incorporadas na teologia de J. L. Segundo, tanto na

interpretação bíblica que ele usa para fundamentar sua argumentação teológica,

como na concepção segundiana de crescimento na fé por meio de um “processo de

aprendizagem” construído paulatinamente também por “etapas”223.

223 É fácil notar a presença desta concepção e das idéias herdadas de Lambert e Malevez na noção segundiana de “dêutero-aprendizagem”, bem como em livros como SEGUNDO, J. L. Etapas pre-cristianas de la Fé: Evolución de la idea de Dios en el Antiguo Testamento, Montevidéu, Mimeográfica Luz, 1964, entre outros escritos.

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123

3.2.3

O método hermenêutico usado por Juan Luis Segundo

Característico também da teologia segundiana, é o método de sua

abordagem, ou seja, o modo próprio como é usado o chamado “círculo

hermenêutico”224 na leitura que J. L. Segundo faz dos textos bíblicos. Assim, a

partir de uma interpretação bíblica que leva em conta a situação histórica e

existencial do cristão, J. L. Segundo se preocupa em construir uma abordagem

sobre as principais verdades da fé cristã, a partir de uma perspectiva histórico-

crítica atualizada. Neste sentido, J. L. Segundo inova, ousando pensar a fé cristã

em diálogo com ciências como a psicanálise, a sociologia, a filosofia e ainda, (no

que toca ao tema da evolução no homem e no universo), em diálogo com a

biologia, a física, a química, etc.225.

Neste sentido, um ponto recorrente na reflexão segundiana é o uso da

Gaudium et Spes, como fundamento de uma visão da realidade humana articulada

com a iniciativa salvífica de Deus. O objetivo de J. L. Segundo neste aspecto é

poder se fundamentar em argumentos da Tradição, ratificados pelo próprio

Magistério Eclesial, os quais demonstram claramente que, tanto a vida pessoal

como a vida social do ser humano possuem um valor propriamente teológico.

224 Aqui podemos sentir a influência de R. Bultmann. O célebre teólogo alemão percebera, já na primeira metade do século XX, que o acesso a Jesus e ao conteúdo de sua mensagem registrada na Bíblia nunca é neutro. Tanto o hagiógrafo como o leitor atual sempre levam consigo sua cultura e suas questões existenciais. Daí as características do método histórico-morfológico (Formsgeschichte), proposto por Bultmann. Para analisar adequadamente o texto bíblico é preciso levar em conta as características dos diversos estilos literários usados. De outro lado, Bultmann foi professor, juntamente com Heidegger, na universidade de Marburg (Alemanha). Entusiasmado com a filosofia existencialista, Bultmann viu nela um rico arcabouço conceitual, que servia de mediação para uma nova perspectiva de compreensão da mensagem cristã. Esta nova perspectiva deu à teologia bultmanianna um caráter existencial, levando em conta a necessidade de anunciar a mensagem bíblica de modo inteligível ao homem moderno em seu horizonte cultural próprio. Toda essa percepção da necessidade de “mediações filosóficas” e de uma adequada “pré-compreensão” para se ter acesso à mensagem cristã, serviu de base para a teologia de J. L. Segundo. Não por acaso ele foi um dos mais ardorosos defensores da necessidade de anunciar a mensagem cristã, de modo que possa ser “relevante” e “crível” para os homens e mulheres latino-americanos que viveriam a passagem do século XX para o século XXI. A respeito das características básicas da obra de Bultmann ver EICKELSHULTE, D., “Hermenéutica y teología em Rudolf Bultmann: possibilidades de un diálogo con la teología católica”, Seleciones de Teología, vol. V, 20, 1966, p. 287-297; MONDIN, B., Os Grandes Teólogos do Século XX, v. 2: Os teólogos protestantes e ortodoxos, São Paulo, Paulinas, 1980, p. 115-138. 225 No que toca a esse diálogo com as ciências humanas, a obra segundiana faz abundantes referências a autores como Freud, Marx, Engels, Sartre, Marcuse, etc. Já no que toca às ciências naturais que lidam com o modo como se processa a evolução no cosmo e no ser humano, J. L. Segundo usa abertamente dados científicos provenientes de pesquisadores tais como J. Monod, C. Darwin, S. Hawking, G. Bateson e Teilhard de Chardin, entre outros.

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Ambas estão implicadas no amor salvador de Deus, manifestado no projeto do

Reino de Deus revelado por Jesus. Neste aspecto, nada do que diga respeito às

necessidades do ser humano, nenhuma das exigências próprias à sua existência

digna sobre terra, são alheias ao plano salvífico querido e realizado por Deus.

Assim, textos como GS 11, 16, 19 e 22; são mencionados e analisados

por J. L. Segundo226, com este objetivo de mostrar que não há uma história

salvífica sagrada sobreposta a uma história humana profana. Se há uma revelação

de Deus na história humana, é dentro desta mesma e única história que transcorre

a salvação que Deus oferece ao homem. A vida, as dores, os fracassos, as

descobertas e criações humanas, os pecados, erros e acertos... tudo o que diga

respeito à dignidade do ser humano e de sua vida em sociedade interessa, tanto ao

homem, como também para Deus.

É precisamente esta percepção do valor salvífico da história humana, que

leva Segundo a construir uma reflexão teológica, que se preocupa em articular as

diversas dimensões da vida humana na relação do homem com Deus. As

estruturas sociológicas, psicológicas, biológicas etc., constitutivas da existência do

ser humano devem, portanto, ser levadas em conta na apreciação que o teólogo

fizer sobre o sentido salvífico dessa mesma existência humana. Se o homem

criado à imagem e semelhança de Deus é um ser biológico, situado

historicamente, dependente de um meio ambiente equilibrado para poder

sobreviver e também dependente de estruturas políticas e econômicas que

garantam as condições mínimas para sua sobrevivência...então estas necessidades

antropológicas básicas têm seu lugar no próprio desígnio salvífico de Deus.

Assim, recorrendo aos textos do Concílio Vaticano II, especialmente os da

GS, Segundo se apóia em argumentos do próprio Magistério para construir a

“hermenêutica atualizada”, com a qual se fundamenta a sua teologia. É com essa

perspectiva teológica, que nosso autor leva a sério as características

antropológicas básicas da condição humana, acentuando o sentido transcendental

da própria existência histórica do ser humano227.

226 Assim, podemos encontrar GS 11 em SEGUNDO, J. L., Que Mundo? Que Homem? Que Deus?.São Paulo, Paulinas, 1995, p. 6; Idem, O Dogma que Liberta, São Paulo, Paulinas, 1991, p. 413-414; GS 16 em Idem, O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré .v.1..., p. 97; nesta mesma obra, encontraremos referência a GS 19, na p. 82; Já GS 22 pode ser encontrada no artigo do mesmo autor, “Diálogo e Teologia Fundamental”, em Concilium 6 (1969). 227 É notória neste ponto, a influência da teologia transcendental de Karl Rahner no pensamento segundiano. Livros como Curso Fundamental da Fé, São Paulo, Paulinas, 1989, Escritos de

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Nota-se, portanto, que esta perspectiva teológica se configura como uma

“teologia aberta”, uma teologia sensível ao diálogo com o mundo moderno, com

as descobertas científicas sobre o desenvolvimento do ser humano e do universo;

uma teologia que acolhe a concepção evolutiva do homem e do cosmo, que

dialoga com os arcabouços conceituais e filosóficos acerca da existência humana,

que foram fornecidos por pensadores modernos como Marx, Freud e Sartre,

etc.228.

Seguindo na seara aberta por Bultmann, e Rahner, J. L. Segundo adota

essa hermenêutica atualizada de uma teologia em diálogo com a filosofia e com as

ciências, em vista de poder construir uma reflexão teológica preparada para buscar

soluções para problemas atuais da vida humana. É neste sentido que nosso autor

promove uma certa releitura da Bíblia, da Cristologia e de alguns pontos

importantes dos principais tratados teológicos, sempre nesta perspectiva de

abertura ao diálogo com as ciências, com a filosofia, e com a concepção evolutiva

do desenvolvimento do ser humano e do universo. Essa é, na opinião de Segundo,

a “hermenêutica apropriada” para construir uma teologia capacitada para dar

respostas consistentes aos desafios da era pós-Concílio Vaticano II.

3.2.4

A influência de Gregory Bateson

Dentre as diversas matrizes do pensamento segundiano, os estudos de

Gregory Bateson possuem, certamente, enorme relevância. Com uma obra que

trafega entre dados científicos e reflexões no campo da epistemologia, Bateson

forneceu a Segundo idéias e conceitos úteis para o diálogo entre a teologia e as

ciências. Se um dos objetivos da obra segundiana é aprofundar esse diálogo,

incorporando na teologia os dados referentes à evolução do homem e do cosmo,

então os estudos de G. Bateson puderam ser bem aproveitados por J. L. Segundo,

precisamente neste ponto.

teología, Madri, Ed. Taurus, 1961, Teologia da Liberdade, Caxias do Sul, Paulinas, 1970, dentre outras obras do ilustre teólogo alemão, certamente serviram de referência para a construção da teologia segundiana. 228 Essa hermenêutica, pela qual J. L. Segundo constrói uma teologia em diálogo com outros saberes, é indicada no próprio título de um de seus mais instigantes livros: “Que mundo? Que Homem? Que Deus?” Cujo subtítulo confirma a hermenêutica interdisciplinar da teologia segundiana: “aproximações entre ciência, filosofia e teologia”.

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126

De modo especial, Bateson forneceu a Segundo idéias sobre o modo como

o ser humano interage com sua própria mente e, através dela, sobre o modo como

o ser humano constrói sua percepção acerca da sociedade e do mundo que o cerca.

Mais adiante (no item sobre os conceitos fundamentais do pensamento

segundiano), tentarei mostrar o modo como Juan Luis Segundo desenvolveu a

noção de que o ser humano constrói sua própria vida, numa certa “ecologia” das

relações que estabelece consigo mesmo, com a sociedade e com o mundo. Daí que

haja uma “ecologia humana e social” no próprio dinamismo da liberdade do ser

humano. Pois bem, penso que não será exagerado dizer que estes pressupostos não

constariam no pensamento de J. L. Segundo se ele não tivesse conhecido a obra

Steps to an Ecology of Mind de G. Bateson229.

Foi baseado nesta obra, que J. L. Segundo se apropriou da noção

batesoniana das “premissas epistemológicas e ontológicas (...) parcialmente

autovalidantes”230, noção esta a qual retornarei mais adiante, ao tratar do tema da

ecologia social. Importa notar aqui o fato de que todo ser humano lida com a

realidade e tenta compreendê-la a partir da estrutura mental que traz consigo.

Desde que nasce o ser humano precisa receber, informações de todo tipo, hábitos ,

valores, etc. Sem tais informações o cérebro, (mesmo que seja saudável e perfeito

do ponto de vista orgânico), não saberá decodificar as informações dadas pela

sociedade e pelo mundo. Daí o caráter “epistemológico” e “autovalidante” dessas

premissas mencionadas por Bateson. Elas é que vão ajudar o ser humano a

“compreender” e a ter a chave de leitura para aceitar as mensagens enviadas à

mente. Somente então, poderá a mente humana partir para a interação com o

mundo. Neste sentido, é que tais premissas irão “validar” o modo como cada

pessoa entende o mundo. São premissas que antecedem as escolhas racionalmente

feitas pelo homem, e é por isso mesmo que elas vão configurar o modus operandi

da mente humana.

Neste sentido é que J. L. Segundo afirma que estas “premissas

epistemológicas autovalidantes” são fundamentais para as relações do homem

229 BATESON, G., Steps to an Ecology of Mind, Nova York, Balantine Books, 1974. É uma obra bastante mencionada por J. L. Segundo, que na maior parte das vezes a ela se refere fazendo uso da tradução feita na Argentina (cf. BATESON, G., Pasos hacia una Ecología de la Mente, Buenos Aires, Ed. Carlos Lohlé, 1976). 230 Cf. BATESON, G., Pasos hacia una Ecologia de la Mente, Buenos Aires, Ed. Carlos Lohlé, 1976, p. 344, citado em SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v.1: Fé e Ideologia, São Paulo, Paulinas, p. 113.

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127

com o próximo, consigo mesmo, com o meio ambiente e com Deus. Tais

premissas vão configurar para o ser humano “o modo de ser e de pensar” no

contexto sócio-cultural em que está inserido. Dependendo dos valores que forem

adotados como premissa básica, a pessoa, a comunidade e mesmo um povo inteiro

poderão ser mais otimistas ou mais pessimistas diante da realidade; poderão

cultivar ou anular as esperanças referentes ao futuro.

Nota-se, portanto, que esta noção batesoniana das “premissas

epistemológicas autovalidantes” é usada por J. L. Segundo para mostrar a

importância da “estrutura de valores”. Tais premissas expressas em valores

humanos, formam a estrutura epistemológica da existência humana, o modo

próprio pelo qual a mente constrói a significação que o ser humano dá às coisas.

Mais adiante aparecerá de modo mais evidente a importância disso na vivência da

fé e da liberdade.

Agora podemos indicar o segundo ponto em que Bateson oferece

contribuições ao pensamento segundiano. Trata-se do modo como a religião pode

contribuir como fonte de valores para o ser humano e para a sociedade. Neste

aspecto, Bateson não tem em mente as religiões em seu aspecto doutrinal formal,

mas sim como uma experiência interior e íntima de valores essenciais à vida

humana. Certos valores e práticas de convivência em comum, de tolerância mútua

entre as pessoas e de respeito pelo cosmo e pela natureza, constituem valores que,

por serem imprescindíveis à vida humana, deveriam ser considerados como

valores dotados de um sentido “sagrado”. Seriam coisas que deveriam ser dadas

nas relações dos homens de “graça”, por “gratuidade”, por constituírem atitudes

positivas em ordem à vida e que, enquanto tais, são atitudes que “possuem valor

por si mesmas”.

É nestes termos que a religião ajuda a ver tais práticas e valores como

coisas “sagradas”, enquanto coisas imprescindíveis à vida do ser humano e à

harmonia do cosmo. Assim, as relações dos seres humanos entre si e com o

universo, ficam situadas no nível da atitude respeitosa e reverente diante da vida

como algo “sagrado”. É precisamente neste nível que se situa a contribuição da

religião, segundo G. Bateson.

Ao fornecer ao ser humano elementos para uma tal elevação das

condições, das atitudes e dos valores fundamentais à vida ao nível do

imprescindível/sagrado, a religião suscita um tipo de consideração acima da razão.

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Esta já não fica escrava da lógica da técnica, da produção e do lucro231. Mas pode

coadunar-se com expectativas maiores, em vista do bem comum, da preservação

da vida no planeta Terra, da mudança da mentalidade do ser humano em sua

relação com o universo, etc. Deste modo, a religião pode gerar nos seres humanos

(e em benefício deles), uma visão de mundo dotada de “esperança”, ou também

dotada de uma certa sensação de “recompensa” decorrente desta atitude reverente

favorável à vida232.

Assim, a vida fica revestida de uma certa sacralidade, que leva o ser

humano a cultivar sentimentos de reverência e respeito, de zelo e cuidado com

universo. E isso corresponde às concepções e sentimentos que devem estar no

topo da escala de valores. Nessa perspectiva, Segundo aproveita dessa reflexão

batesoniana acerca da religião, para ressaltar a importância fundamental daqueles

valores que devem ser considerados como “absolutos” em vista da realização de

uma existência humana, que experimentada com zelo por sua própria sacralidade,

pode caminhar para sua plenitude.

Por fim, um terceiro ponto que caracteriza a contribuição de G. Bateson na

formação do pensamento teológico de J. L. Segundo, diz respeito à perspectiva

evolutiva pela qual Bateson concebe o desenvolvimento humano. Ele concebe as

relações dos seres humanos entre si e com o universo como um processo

ecológico. Provém daí a expressão “ecologia da mente”. Neste processo, é

destacado o papel dos valores, das “premissas” de compreensão que o ser humano

formula, num processo que é ao mesmo tempo pessoal e sócio-cultural.

Neste sentido, o ser humano se desenvolve num dinamismo progressivo,

no qual aprende a construir sua escala de valores, na medida em que cresce em

sua capacidade de interagir com o ambiente em que vive. As relações com o

próximo, com a família, com a sociedade formarão o quadro de referências de um

processo formativo, no qual cada pessoa amplia progressivamente seus

conhecimentos e suas potencialidades humanas. Daí que Bateson situe este

processo como uma “evolução cultural”. 231 Essa razão técnica e instrumental, obsessivamente posta a serviço das metas e interesses do ser humano é o que Bateson chama de “racionalidade propositiva” ou “propositividade” e que J. L. Segundo traduz como “racionalidade teleológica”, cf. O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v.1..., p. 337. 232 A respeito dessa concepção de G. Bateson sobre o valor da religião como produtora de esperança e “recompensa instrumental” decorrente da atitude de promoção da vida como valor mais importante, ver SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1..., p. 336-346.

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Alguns valores, concepções de vida e de mundo, são transmitidos de

geração em geração e vão formar um tradição humana, subjetiva, cultural que é

uma espécie de alicerce sobre o qual as novas gerações irão buscar os materiais

para estruturar suas vidas, seus próprios valores. Assim há uma base, que de

acordo com Bateson, atua na formação do ser humano de modo análogo a uma

“herança genética”. Mas se a construção de escalas de valores se prendesse

exclusivamente a essa herança, o desenvolvimento humano acabaria chegando a

um ponto de estagnação. Por isso, este processo de evolução cultural precisa

também da liberdade de criação, de adaptação a novos contextos, do contrário não

habilitará o ser humano para a solução de novos problemas, que surgem em

decorrência do próprio dinamismo da vida.

É, portanto, nessa tensão entre herança cultural e criação cultural, entre

tradição e renovação que se dá a “evolução da espécie humana”. J. L. Segundo

toma esta concepção evolutiva do desenvolvimento humano, para situá-lo como

um dinamismo em que a tradição cultural exerce o papel de facilitar a transmissão

de valores. Neste sentido ela “poupa energia”, pois neste nível o ser humano age

quase que sem pensar, já é capaz de resolver determinados problemas mediante

procedimentos relativamente simples, aos quais já está familiarizado pelo hábito,

pela herança cultural recebida.

No entanto, o próprio dinamismo do desenvolvimento humano cria novos

embaraços, situações imprevistas e obstáculos que tornam e existência mais

complexa. Neste ponto é preciso um movimento de sentido inverso; movimento

de concentrar a energia humana liberada pela tradição, aplicando-a na busca de

soluções inovadoras, que possam fazer frente às novas exigências que tenham sido

criadas. Aí se exige do ser humano e da sociedade que “evoluam”, que descubram

novas técnicas, mudanças de mentalidade, ações corretivas, que em geral são

penosas e exigem muita energia para serem viabilizadas.

Assim, a partir dessa concepção evolutiva trazida por Bateson, J. L.

Segundo percebeu que há, na vida humana, um dinamismo de passagem de níveis

mais simples e energeticamente menos custosos, para níveis mais complexos e

energeticamente mais custosos. Isso possibilitou J. L. Segundo aplicar esse

esquema evolutivo até mesmo ao desenvolvimento da fé cristã.

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130

3.2.5

A contribuição de Teilhard de Chardin

Outro autor que ajudou J. L. Segundo a trabalhar teologicamente sobre o

dado da evolução do ser humano e do cosmo foi o padre e cientista francês Pierre

Teilhard de Chardin. Este padre jesuíta surpreendeu o mundo e a Igreja Católica

quando buscou em seus estudos uma articulação entre os dados científicos do

desenvolvimento do universo e os dados teológicos da fé cristã. Os cientistas

viram tal pretensão como mais religiosa do que científica. As autoridades

eclesiásticas temeram ser justamente o contrário. No entanto, seus livros

publicados postumamente exerceram grande impacto, não tanto pelos resultados

objetivos propostos, mas pela perspectiva que inauguravam. De fato, nos anos 50

e 60, as obras de Teilhard de Chardin apontavam para a legitimidade de uma

cosmovisão, na qual se considera os movimentos de dispersão e concentração de

energia, como um dinamismo evolutivo, que foi progressivamente dando forma ao

universo tal como o conhecemos hoje.

De algum modo isso pôde ser visto como expressão de uma “lógica”, ou

de um “vetor” que faz com que os elementos e as reações químicas e biológicas

que dinamizam o desenvolvimento no universo se articulem com “sentido”. Há

forças no cosmo que estimulam um desenvolvimento, que pode ser considerado

como “ascendente”. Assim, a configuração atual do universo e a configuração da

própria espécie humana podem, neste sentido, ser vistas como um sinal, ou uma

prova dessa “evolução”233.

J. L. Segundo não ficou indiferente a esta “novidade teilhardiana”. Em sua

perspectiva de abordagem da salvação cristã, como uma ação de Deus que faz o

homem e a mulher crescerem em humanização, J. L. Segundo percebeu que o ser

humano vai se humanizando mais, vai se desenvolvendo em suas potencialidades,

na medida em que interage com o mundo; ou melhor, com este mundo que é

dinâmico, no qual existe movimento, forças naturais, circulação de energia,...um

mundo que evolui. O próprio ser humano está em constante movimento. Seu

desenvolvimento pessoal e social é dinâmico. Tudo isso vem mostrar que tanto o

universo como o próprio ser humano “evoluem”.

233 A própria vida humana é vista, nesta perspectiva, como ponto alto da evolução entre os seres vivos.

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Assim, há diversas modalidades de circulação (dispersão e concentração)

de energia, as quais irão dinamizar o desenvolvimento humano e cósmico. Neste

aspecto, J. L. Segundo se apropriou da concepção teilhardiana de que existe uma

linha evolutiva no cosmo, que integra o desenvolvimento do ser humano ao

desenvolvimento do universo. Ambos se desenvolvem mediante processos que

inicialmente se mostravam de modo ainda muito incipiente e que foram

progredindo, pouco a pouco, por meio de inúmeros desdobramentos, num

processo contínuo de criações e transformações. Isso evidencia que em cada etapa,

em cada ser vivo, em cada elemento natural presente no cosmo, a forma final é

produto do lento desenvolvimento de forças e dinamismos que já estavam

presentes como origem (“gênese”) destes mesmos seres e elementos naturais.

“No mundo não pode aparecer no fim, através dos umbrais atravessados

pela evolução, nada que não tenha sido primeiro obscuramente primordial”234

Este é, portanto, um dos pontos que J. L. Segundo herdou de Teilhard de

Chardin. Os princípios básicos da evolução da matéria são usados como analogia

para o desenvolvimento humano. Assim, as formas mais elementares da energia

humana, (como a libido que Freud abordava nos termos de “eros e tânatos” e que

Marcuse concebia nos termos de “eros e ágape”235), são vistas por J. L. Segundo

como expressão de um dinamismo evolutivo, no qual também ocorre um

desenvolvimento de expressões mais simples para formas de expressão mais

complexas de uma mesma energia vital em cada pessoa.

Algo de muito semelhante ocorre também no âmbito das interações sociais

do ser humano. A partir de pequenas conquistas é que o ser humano pode

caminhar para grandes transformações. Neste aspecto, todos os seres humanos

estamos inseridos num mesmo processo. Em termos mais vastos participamos da

evolução do universo e “evoluímos” junto com ele. Em termos mais restritos,

participamos da evolução humana que transcorre na história e “evoluímos” de

acordo com o modo e o ritmo com que transcorre o desenvolvimento histórico das

sociedades em que vivemos236.

234 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre., Le Phénomène Humain, Paris, Ed. Du Seuil, Paris, 1955, p. 70, citado em SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje. Diante de Jesus de Nazaré, v.1..., p. 24, nota 8. 235 Cf. SEGUNDO, J. L. ibid., p. 24, nota 8. 236 Cf. Ibid., p. 386.

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132

Foi neste sentido que a concepção evolutiva teilhardiana serviu de base

para a concepção com a qual J. L. Segundo compreende a vida, como um

processo em que são articuladas a evolução do cosmo juntamente com a evolução

do ser humano em si mesmo. Todos estes dinamismos evolutivos interligados

apontam para a existência de um sentido no universo criado. Era neste aspecto que

Teilhard de Chardin encontrava “coincidências” entre o percurso dos dinamismos

evolutivos do cosmos avançando para seus desenvolvimentos últimos e a

esperança bíblico-cristã de um futuro escatológico de toda a criação, trazendo

dentro de si o desenvolvimento do ser humano até a sua plenitude. J. L. segundo

acolheu essa perspectiva em sua busca por uma articulação, entre os dados

científicos acerca da evolução do universo e os dados teológicos acerca da

salvação cristã.

3.2.6

A influência de Nicolás Berdiaeff

Um dos pontos mais característicos da obra segundiana é a reflexão sobre

a pessoa. De fato, se há um ponto em que J. L. Segundo é enfático, esse ponto é a

afirmação do ser humano como pessoa autônoma e livre para tomar suas próprias

decisões, inclusive no âmbito da fé. Pode-se considerar que na teologia

segundiana há mesmo um certo “personalismo”. A centralidade da pessoa humana

como “livre interlocutor” diante de Deus, constitui um dos pontos mais

fundamentais do pensamento de J. L. Segundo e, neste ponto, é notável a

referência à obra de Nicolás Berdiaeff.

Este filósofo existencialista russo radicado na França, foi objeto da

pesquisa de doutorado feita por J. L. Segundo237. Baseado nas obras daquele

autor, Segundo firmou uma convicção de que o ser humano constrói seu modo

próprio de estar no mundo, por meio de sua escala de valores e de seus

posicionamentos pessoais.

Esta idéia vai ser aplicada por J. L. Segundo ao dinamismo próprio da fé.

Nesta perspectiva, o ser humano vai progressivamente configurando sua própria

vida como existência pessoal, pelo modo como interage com o mundo à sua volta,

237 Cf. SEGUNDO, J. L., Berdiaeff: une Réflexion Chrétienne sur la Personne, Paris, Aubier, 1963.

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sempre passando pela intermediação de seus próprios valores. A grande

inspiração que J. L. Segundo teve a partir dessa reflexão de Berdiaeff, foi a idéia

de aplicar essa perspectiva “personalizante” à relação do homem com Deus.

“Nicolás Berdiaeff afirmou uma vez, com muito tino, que o problema de Deus não consistia tanto em estabelecer sua existência quanto em ‘justificá-lo’, quer dizer em julgá-lo ante o tribunal de nossos valores” 238.

Com estas palavras ousadas, J. L. Segundo mostra que a estrutura

valorativa de cada ser humano é uma condição prévia para o exercício da

liberdade. É a partir dos valores, que cada pessoa avalia as situações e as relações

que estiver vivendo. Na relação com Deus não é diferente. De algum modo a

minha percepção de Deus tenderá a ser coerente com os meus valores, do

contrário como Ele me poderia estar acessível? Se a percepção de Deus que

estiver sendo oferecida a uma determinada “pessoa”, for incompatível com os

valores humanos nela presentes, se a visão de Deus que estiver sendo proposta for

(neste sentido) "desumana”, será então “humanamente” inaceitável.

A citada referência à opinião de Berdiaeff, mostra que são os melhores

valores humanos em nós, que poderão nos mostrar, entre “diversos deuses”, qual

será a concepção de Deus que pode ser “crível” para o ser humano, uma vez que

este queira realmente levar a sério os valores humanos essenciais à vida

Deste modo, Berdiaeff fornece elementos para que J. L. Segundo possa

legitimar a concepção de que o ser humano exerce um papel ativo e interativo na

própria manifestação de Deus. Isso equivale a dizer que os valores cultivados pelo

ser humano em sua escala de valores podem aproximá-lo ou distanciá-lo do Deus

revelado em Jesus Cristo, posto que é aí ao nível dos valores humanos que Deus

se revelou humanamente. Assim, ou Deus se revela de modo humanamente

inteligível ou não será humanamente crível.

Se tais pressupostos forem corretos, então eles implicam em considerar

que, de algum modo, o ser humano exerce sua liberdade ao participar da revelação

de Deus. Construindo sua própria escala de valores, ele interage com Deus e com

o mundo. Ao fazer isso, o ser humano “sai do anonimato” e exerce uma autêntica

liberdade até mesmo diante de Deus. E é assim que o ser humano se descobre

como “pessoa”. É dentro deste processo, que o ser humano vai amadurecendo em 238 SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré , v.1..., p. 80

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sua relação com Deus. Ele vai aprimorando sua compreensão a respeito de Deus, à

medida que aprofunda sua própria experiência “pessoal” dos valores humanos. É,

portanto, nesse processo que o ser humano vai corrigindo as imagens de Deus que

formula ou aprende ao longo da vida e é por meio deste expediente que cada

“pessoa”, como sujeito ativo, acaba percebendo que imagem de Deus é crível e

que imagens de Deus não o são.

Nota-se, portanto, que é nesse nível da prática dos valores que se dará o

decisivo, tanto no que diz respeito à liberdade com a qual cada ser humano

constrói sua própria escala de valores, como no que diz respeito ao ato de

liberdade pelo qual cada pessoa vai decidir se aceita ou não a Deus.

Baseado nestes fundamentos personalistas de Berdiaeff, J. L. Segundo

desenvolve a idéia de que também os atos e valores apresentados por Jesus são

“argumentos” que cada indivíduo pode aceitar ou recusar. Diante do Deus

revelado por Jesus, cada ouvinte é um interlocutor livre, é autenticamente

“pessoa”. Assim, evidenciando a condição pessoal de sua própria existência, o ser

humano pode aprimorar suas relações com “esse Deus” revelado por Jesus Cristo

o que mostra que conhecendo e aprofundando a experiência dos valores de Jesus,

o próprio ser humano vai crescer como “pessoa”.

3.3

Conceitos básicos da Teologia Segundiana

Vistos os dados mais relevantes da trajetória pessoal de J. L. Segundo,

torna-se agora oportuno falar dos principais conceitos do pensamento segundiano.

Tais conceitos nem sempre são fáceis de ser delimitados, uma vez que descrevem

dinamismos humanos que são subjetivos e complexos. Ainda que estes conceitos

descrevam aspectos abstratos da subjetividade humana, seus traços fundamentais

podem ser extraídos e compreendidos a partir da análise detalhada das obras do

autor. Uma vez assimilados estes conceitos, ficará bem mais fácil analisar o modo

como J. L. Segundo tenta uni-los na caracterização da vivência da liberdade.

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135

3.3.1

Estrutura de valores

A construção de uma “estrutura de valores” é imprescindível à vivência da

liberdade. Trata-se de uma necessidade antropológica básica: todo ser humano

precisa ver “significado” em sua própria vida. Precisa de um conjunto de valores

pelo qual possa sentir-se orientado e mediante o qual possa direcionar o seu agir

no mundo. Do contrário a ação do homem no mundo se dilui e perde sua eficácia.

É por meio de sua estrutura de valores que o ser humano capta as informações da

realidade e interage com elas.

Os valores são necessários para que nós seres humanos tenhamos metas na

vida. Eles formam o código de significados pelo qual nos guiamos e através do

qual aprendemos a identificar nossas emoções e o “valor” daquilo que fazemos.

Estes valores são agrupados e articulados de maneiras diversas e desta construção

pessoal dependerá o agir do ser humano no mundo. É mediante este processo de

construção da escala de valores que cada pessoa poderá traçar a rota da procura

pela realização e pela felicidade.

É neste ponto que a existência humana é experimentada como um “drama”

pessoal. É “uma existência a construir”, é sempre obra inacabada, em permanente

processo de construção. E esta construção pessoal da própria existência é um

processo no qual não há certezas prévias. Não há como saber antecipadamente o

resultado final da adoção de uma ou outra escala de valores.

Por essa mesma razão, é preciso descobrir, na própria vida, um “fim”, uma

“meta” que valha a pena ser encarada como objetivo prioritário e mais valioso em

relação aos demais. O homem tem que descobrir e elaborar, por sua própria conta

e risco, este “fim”, em cuja realização empregará o melhor de suas energias. De

certo modo, podemos dizer que o homem joga sua existência nas tentativas que

faz de ser feliz; ele “aposta” nos valores que escolhe para sua vida. O “valor

supremo” que pode satisfazer o homem não lhe é conhecido previamente. Tal

objetivo ou meta vai aos poucos sendo descortinado ao longo da existência, de

acordo com as opções que a pessoa vai fazendo no âmbito de sua liberdade.

Esta incerteza acerca do acerto ou não das metas estabelecidas na vida da

pessoa, bem como a dúvida na busca pelos meios mais adequados para atingir tais

metas, ou seja, este “quadro de referências” tão necessário à vida do homem

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constitui uma “imprevisibilidade estrutural” da própria condição humana. Foi

precisamente este aspecto que Segundo quis destacar como parte integrante do

dinamismo das escolhas do livre arbítrio.

“...não é possível ir até o término da existência para ver o que vale a pena realizar e depois, com essa certeza na mão, voltar ao começo para tentar tal realização”239.

Há uma só vida para ser vivida e é nesta única existência que o ser

humano precisa aprender a arriscar, para poder descobrir e construir a estrutura de

valores, que dará forma concreta à sua vida. Assim se manifesta

fenomenologicamente a condição humana. Ela é histórica, imprevisível,

indeterminada, aberta às possibilidades, que só serão verificadas empiricamente, à

medida em que o próprio homem assumir efetivamente a tarefa de dia a dia, entre

êxitos e fracassos, escolher e trilhar os rumos que ele próprio propuser para sua

vida.

O homem e a mulher não podem fazer o mesmo processo existencial duas

vezes. Não têm como ir até o final de sua existência para depois, com o

aprendizado feito, retornar ao início e começar tudo de novo evitando os erros da

primeira tentativa. Não! Isso não é possível. Há uma única chance, uma única

vida, uma única existência histórica, na qual o ser humano aprende enquanto vive

e faz suas escolhas com sua liberdade, ao mesmo tempo em que, vive enquanto

aprende com os erros e acertos produzidos nas escolhas livremente feitas.

É preciso notar, contudo, que este caráter imprevisível da construção da

escala de valores pode ser encarado de modo mais sereno, se for integrado no

próprio dinamismo do processo de amadurecimento humano. Para Segundo, a

experiência cotidiana dos homens dá sinais que acenam para possibilidades reais

de êxito na construção da escala de valores em vista da realização da pessoa

humana. Ou seja, a dificuldade de ser feliz e a dúvida sobre quais são as metas e

mediações necessárias para que a felicidade seja alcançada, não precisam ser

necessariamente experimentadas como um pavor paralisante.

Sabemos que a vida em sociedade é complexa e difícil. Há, mesmo assim,

pontos de apoio, forças que movem o homem e o estimulam de modo que “às

vezes ele acerta”. Nem sempre ele erra. Há também muitas chances de aprender 239 SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1..., p. 7.

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137

da vida e tomar o rumo certo. Mesmo que a vida (no mundo em que vivemos) seja

em certos aspectos caótica, ainda assim, as pessoas possuem “personalidade

própria”. Isto significa que podemos, “em boa medida”, “prever as suas reações

no trato cotidiano com elas”240. Ou seja, as pessoas, no processo social de

convivência, operam segundo uma determinada lógica.

Juan Luis Segundo mostra que aprendemos com as experiências uns dos

outros. O aprendizado do outro também nos ensina. Enquanto seres humanos,

somos fruto de uma experiência coletiva. Todo ser humano é socialmente

construído. Daí o valor enorme atribuído por Segundo às “experiências alheias”.

“A experiência nos mostrará, aqui, mais uma vez que só se pode ter a idéia de um caminho satisfatório de maneira certa através de experiências alheias. (...) O que a experiência nos mostra aqui claramente é a básica solidariedade da espécie humana” 241.

E mostra como isso se aplica na formação daquela estrutura de valores que

dá suporte para nossa existência .

“As experiências de valor realizado nos são proporcionadas por nossos semelhantes. Antes de nós as termos, percebemos seu valor, suas possibilidades de satisfação, através de experiências alheias. Assim, todos dependemos de todos, frente à necessária limitação de nossas existências”242.

Com estas referências, Segundo nos fala de um ponto fundamental. É pela

convivência, pela troca, pela comunicação, pelo intercâmbio cultural e afetivo que

os homens formam sua estrutura de valores. Ele fala de “testemunhos

referenciais”243 que formam o processo educativo, na convivência social, os quais

são fundamentais para a construção da estrutura de valores e, conseqüentemente,

para a própria vida e para o exercício da liberdade. Deste modo, a estrutura de

valores é, não um mecanismo rígido, mas sim um processo dinâmico, histórico e

existencial, como um dinamismo constitutivo da formação da liberdade humana.

240 Ibid. p. 8. 241 Id. 242 Ibid. p. 8-9 . 243 Ibid, p. 9.

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138

3.3.2

Fé antropológica

Um dos pontos mais importantes do pensamento segundiano é o conceito

de “fé antropológica”. Através dele o autor expressa a necessidade de crer em

determinados valores, dinamismo este que se constitui como um dado

antropológico fundamental da existência humana. Juan Luis Segundo, nesse

ponto, mostra que a vida humana é pessoal, mas também eminentemente social. E

é exatamente nessa condição que a vida humana em sua realização histórica

impõe ao homem que hierarquize seus desejos. Mostra, assim, que há uma

necessidade estrutural de priorizar as “satisfações superiores” em detrimento de

algumas das “satisfações imediatas” que, neste sentido passam a ser encaradas

como “inferiores”.

Historicamente e existencialmente falando, é impossível encontrar o

homem plenamente satisfeito. Os limites que a vida em sociedade impõe são

muitos e severos. Por outro lado, para alcançar as satisfações necessárias à vida,

para realizar os valores que estruturam a sua existência, o homem “necessita de

companhia”. Devido às características pessoais e sociais de sua existência, o ser

humano não consegue realizar seus valores por meio de uma decisão meramente

individual. Então, impõe-se a construção de um “projeto” de vida, no qual se

distinga o que é mais significativo daquilo que tem menor relevância. E é nessa

direção que vai o raciocínio de Segundo, mostrando que essa construção da vida

humana (como projeto de hierarquização dos valores) se dá através das interações

e conflitos entre o indivíduo e a sociedade.

Deste modo, ele mostra que essa tensão entre indivíduo e sociedade pode

ser caracterizada como uma dimensão “antropológica” (e, portanto, essencial) da

vida humana. O ser humano luta por seus valores porque “acredita” neles.

Necessita antropologicamente “crer” em determinados valores, para viver

coerentemente com eles e assim “estruturar” sua vida no interior da história.

Do ponto de vista de J. L. Segundo, existe uma identificação desse

aprendizado coletivo, dessa estrutura de valores, com a “fé”; não enquanto uma

crença formalmente religiosa, mas como um dado fundamental, estrutural e

constitutivo do ser humano.

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Deste modo, o autor vai conceber a fé antropológica como a necessidade

de ter uma estrutura de referências significativas (socialmente construída) e de

poder “crer” no valor dessa estrutura. Sem ela toda a construção de nossa

existência e de nosso estar no mundo desaba. É neste sentido que Segundo afirma

que “sociedade” equivale a “fé”, quer dizer , viver em sociedade exige fé (“fé

antropológica”), fé nesse sentido que diz respeito à raiz, à essência mesma do

humano, àquela necessidade de adotar valores, lutar por eles, empenhar-se na

realização deles, àquela necessidade de “valorizar” esses valores, de “crer” neles.

No confronto com as limitações da existência histórica, no embate com a

exigência de priorizar e escolher quais causas e projetos merecerão o empenho de

suas melhores energias, no enfrentamento deste desafio, é que o homem precisa

“crer” naquilo que está fazendo de sua vida. Precisa ter uma certa “fé” nos valores

que está estabelecendo como superiores. Sem isso, a sua existência social fica

desprovida de significado e fica inviável viver. É por isso que J. L. Segundo

afirma que viver em sociedade exige certa experiência de fé.

“Além disso, dizer aqui sociedade é dizer fé. De fato, como chamar uma tendência universal nunca desmentida, destinada a preencher as lacunas de nossa experiência com a experiência tomada de empréstimo aos outros? Claro que não falamos aqui de uma ‘fé’ em sentido precisamente religioso. A esta altura de nossa reflexão a fé nos aparece como uma dimensão antropológica absolutamente universal”244

O próprio agir do homem revela seu “sistema de crenças”, sua hierarquia

de virtudes e sua hierarquia de vícios. Ou seja, as diversas escolhas e ações

determinadas pelo homem revelam a escala de valores que orientou sua escolha e

seu agir. É nesse sentido que Segundo entende que há uma “fé antropológica”,

que guia e orienta o homem quando ele necessita discernir, avaliar, escolher entre

situações diversas. Em circunstâncias normais, haverá de desejar o que for melhor

para si e se orientará para a escolha que o realizará mais e melhor.

É justamente aí que entram as “experiências acumuladas” na sociedade, na

família, no trabalho, etc. Elas darão o quadro de referências que orientará a

escolha. E o homem “crê” que tal orientação será boa e eficaz. É essa fé que

ensina qual é o valor ao qual o homem pode confiar a totalidade de sua existência.

Assim, essa fé o move a buscar uma realização mais elevada em sua vida e ajuda a

244 Ibid., p. 10.

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140

dar perseverança na tentativa de alcançar essa meta considerada mais importante.

É neste sentido que Segundo fala de uma “fé antropológica”.

3.3.3

Fé religiosa

O conceito de “fé religiosa” é um dos mais difíceis de serem definidos

dentre todos os conceitos criados por J. L. Segundo. Isto porque, o autor situa a

religião de um modo bem peculiar, dentro desse dinamismo maior da construção

da escala de valores e da fé (“antropológica”) nesses valores.

Na verdade, a religião pode expressar tanto o fim, a meta que a pessoa

estabelece para sua própria vida, (“fé” da pessoa nos seus “valores absolutos”),

como também pode-se usar a palavra religião para expressar os ritos, preces e o

corpo doutrinal de um sistema de crenças como o Cristianismo, o Judaísmo, etc.

Neste aspecto das formalidades rituais e doutrinais, a religião não está sendo

considerada como expressão da “fé” da pessoa nos valores humanos mais

importantes de sua existência, mas tão somente no sentido “religioso formal”, no

sentido dos “meios”, ou instrumentos eficazes pelos quais a pessoa transmite,

expressa e comunica seus ideais. Neste segundo caso, a religião é um “meio de

eficácia”, é o instrumental que a pessoa usa para realizar seus valores, é o que J.

L. Segundo chama de “ideologia”.

Deste modo, se faz necessário distinguir bem a perspectiva em que a

religião está sendo considerada em cada caso. É preciso diferenciar a religião

enquanto uma experiência humana no nível mais profundo dos valores, para

distingui-la da situação em que a religião é enfocada ao nível sociológico, ou seja,

da religião enquanto “meio eficaz”, enquanto mediação empregada para expressar

a escala de valores das pessoas.

Ao falar de uma “fé religiosa”, Segundo vai se situar no plano dos valores

e não no plano da mera instrumentalidade. Com o conceito de fé religiosa, o autor

quer expressar uma experiência humana dos valores, mas num sentido peculiar e

mais profundo do que o habitual. E é aqui que se vai estabelecer a sutil porém

significativa distinção entre a fé antropológica e a fé religiosa.

De um lado a fé antropológica faz referência à confiança, à crença do

homem nos valores que considera como mais importantes em sua vida. Falar em

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fé antropológica é falar do empenho do homem para lutar pelos valores que mais

estima, os valores em torno dos quais ele “estruturou” sua existência.

De outro lado, a fé religiosa vai indicar esta mesma experiência da adesão

do homem a determinados valores, só que num plano muito especial. Trata-se

agora, não apenas de valores que o homem testou e escolheu ao longo de sua vida,

mas de valores que ele “aprendeu” no contato com outras pessoas, grupos e com a

sociedade e nos quais ele acredita, mesmo sem ter certeza experimental. Ou seja,

ao falar de “fé religiosa” , J. L. Segundo está se referindo a uma “aposta” na qual

o homem se arrisca, por confiar em “dados” que lhe escapam ao entendimento

racional fruto da experiência empírica. São dados experimentados na experiência

histórica do homem, mas que lhe são oferecidos por circunstâncias que não estão

sob seu controle. É o que J. L. Segundo chama de “dados transcendentes”, sobre

os quais falarei mais adiante. Em outras palavras, o conceito de fé religiosa vai

estar indicando aquelas situações peculiares em que a fé antropológica do homem

em sua escala de valores, coincide com dados provenientes da própria revelação

divina.

Ou seja, trata-se de uma experiência de integração da fé do homem nos

valores que considera absolutos, com a descoberta dos valores que aparecem

como absolutos na revelação divina. Esta experiência do encontro dos valores que

Deus mesmo considera “absolutos”, com os valores que o ser humano considera

absolutos em sua fé antropológica não é linear, nem imediata e nem controlável

empiricamente. Trata-se de uma experiência de fé em determinados valores aos

quais o homem chega por indicações, por “sinais” no interior de sua própria

história e nos quais ele se sente “convidado a crer” por uma “aposta nestes sinais”.

Como, terei ocasião de mostrar, trata-se de uma experiência que tem como

caso exemplar a revelação divina ocorrida em Jesus de Nazaré. Tal referência não

se reproduz instantaneamente e não se dá, de um modo como se a experiência pela

qual Jesus ensinou seus valores aos seus discípulos fosse transferida magicamente

às gerações posteriores.

A fé religiosa, neste sentido, é produzida numa experiência situada

existencialmente e historicamente, mas que simultaneamente “ultrapassa” os

limites do racional, do histórico e do empírico, sem contudo deixar de ser uma

experiência profundamente humana e humanizadora. A fé religiosa se mostrará

como uma experiência na qual o ser humano, (construindo sua estrutura de

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valores e desenvolvendo sua fé antropológica nessa estrutura), acaba descobrindo

sinais daquela proposta humanizadora, que se realiza por intermédio daqueles

valores apresentados e defendidos por Jesus Cristo. De um certo modo, é uma

passagem que é operada do nível humano habitual dos valores da pessoa para um

nível “mais humano ainda”, porquanto conectado numa comunhão mais profunda,

histórica e existencial com os valores revelados por Deus em Jesus Cristo.

Vejamos.

Todo ser humano necessita “estruturar” sua vida numa escala de valores

hierarquizados em ordem de importância. Uma vez que não tem como dedicar-se

igualmente a todas as satisfações que gostaria de ter, o homem vai empenhar-se

mais decididamente na realização dos valores mais significativos. Daí a “fé

antropológica” do homem na sua escala de valores. Ela é fundamental para o

homem construir sua vida e também para poder viver com os outros em

sociedade. Estes valores considerados imprescindíveis ficam “no topo” da escala

de valores do homem e ganham assim o status de “valores absolutos”. São

absolutos não em sentido metafísico, mas sim no sentido (antropológico) de que o

homem vivencia estes valores como superiores; como valores que subordinam os

demais e que de tão importantes não estão subordinados a mais nada. São valores

que o homem deseja incondicionalmente, em primeiro lugar. É neste sentido,

enquanto “incondicionados”, que estes valores são concebidos por Segundo como

“absolutos”. Valores que nesta condição solicitam a nossa “crença” a nossa fé

antropológica neles245.

E é a partir desta experiência profundamente humana dos valores absolutos

que J. L. Segundo começa a se perguntar se não há aí, no interior desta mesma

experiência, um caráter “religioso”. Muito além do aspecto formal das crenças

específicas de cada religião, J. L. Segundo tem aqui em mente o sentido da atitude

do homem que “crê” que deve se empenhar sem reservas, para realizar os “valores

absolutos” de sua estrutura de valores. Não será essa uma atitude “religiosa” ?

Creio que é isso o que nosso autor quer considerar.

245 É neste sentido que Segundo declara que se “toda escala de valores implica um valor não condicionado aos demais” então “devemos admitir (...) que algo nas decisões de cada homem é real e estritamente absoluto, incondicionado” . Cf. SEGUNDO, J. L. , O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1..., p. 77 .

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“Mas o que aqui estamos tentando averiguar é se, e como, o homem chega à convicção ‘religiosa’ de que tal existência determinada, tal ordem ou tal valor concretos justificam todas as mediações, por dolorosas que sejam, que se usam para os realizar. Ou seja, que relação tem a convicção do valor absoluto de uma estrutura significativa determinada com Deus e sua revelação.

Esta colocação nos deve levar necessariamente a analisar o que sucede quando nossa fé antropológica, sem deixar de o ser - sem tornar-se ‘fé’ em instrumentalidades - se converte em fé religiosa propriamente dita”246

Nota-se no texto citado, a hipótese levantada por J. L. Segundo. No fundo,

o autor postula a idéia de que existe “algo”, alguma “experiência humana

específica”, que leva o homem a justificar seu empenho para realizar seus valores

absolutos, mesmo com as contradições da realidade que dificultam a realização de

tais valores. A realidade é frequentemente um “obstáculo” à realização dos

valores mais nobres do homem. No entanto, este insiste em “ir além” do estado

atual da realidade. Neste sentido o homem, ao mesmo tempo em que se sente

impedido, ele se sente também impelido a realizar os valores mais elevados de sua

escala valorativa. Ele visa a máxima realização possível para seus valores mais

queridos. Sendo assim, em sua busca de realização, o homem sente dentro de si

um ímpeto de “transcender” a realidade; de ir além dos limites por ela impostos,

numa “fé” de que no final dará tudo certo; numa convicção de que os esforços e

cansaços acumulados neste empreendimento serão recompensados. É a confiança

de que, quando se trata destes valores absolutos, “vale a pena” o homem doar-se

ao máximo.

Podemos notar aqui a semelhança desta concepção da fé religiosa com o

conceito anteriormente visto de fé antropológica, como atitude interiormente

cultivada pelo homem de acreditar nos valores mais significativos para sua

existência. É por isso mesmo que o próprio J. L. Segundo coloca a questão: em

que a fé religiosa difere da fé antropológica? O interessante é que o autor não foge

da difícil tarefa de estabelecer a distinção entre os dois conceitos. Mas ele o faz

partindo da constatação de que estes conceitos não expressam realidades humanas

antagônicas, mas ao contrário, expressam realidades mutuamente implicadas uma

na outra.

Deste modo, essa raiz antropológica universal da “fé” do ser humano em

seus “valores absolutos” está, na verdade, intimamente conectada com a realidade

que Segundo quer designar com o conceito de fé religiosa. Assim, J. L. Segundo 246 SEGUNDO, J. L., Ibid., , p. 77-78 (as indicações em letra cursiva são do próprio autor).

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assinala um vínculo muito estreito entre esta convicção interior ao nível da fé

antropológica e a experiência religiosa em seu sentido mais profundo, isto é, a “fé

religiosa” nos valores absolutos.

Neste ponto, J. L. Segundo está convencido de que a própria construção da

vida pessoal do ser humano em seus valores, coloca para o homem situações que

vão além de seu domínio, situações que “ultrapassam” seu controle e sua

compreensão. Na existência histórica do homem, ocorre a experiência de que a

totalidade e a unidade final dessa existência é “mais”, vai sempre “mais além” do

que as concretizações históricas (categoriais) dessa mesma existência em cada

momento concreto. A vida humana, neste sentido, é uma experiência que

“transcende” tudo o que o homem conseguiu viver em cada etapa particular de sua

existência. Daí a analogia estabelecida por J. L. Segundo entre essa convicção

interior, essa “confiança incondicional nos valores humanos” e a fé em Deus

como “fé religiosa”.

Tomando como ponto de partida os pressupostos fixados por Segundo,

concluo o seguinte: baseando-se na fé antropológica (especialmente voltada para

os valores absolutos), os seres humanos fazem uma certa experiência de situações

que sinalizam e levam a vislumbrar e “experimentar” a ação do próprio Deus. Não

É preciso prescindir dos valores humanos para acolher os valores divinos, mas

justamente ao contrário; no interior mesmo da experiência dos valores humanos é

que se pode encontrar “os sinais” daquilo que Deus quer e propõe para a vida

humana. No bojo deste mesmo dinamismo, poderá dar-se a experiência da

percepção humana da revelação divina. Por isso é que a fé religiosa está sempre

tão intimamente associada à fé antropológica.

Tentarei indicar, mais adiante, o modo como J. L. Segundo observa esse

mesmo dinamismo presente na pessoa de Jesus Cristo. Importa agora notar, que o

autor salienta a abertura do ser humano a esta possibilidade de percepção da

revelação divina, mostrando que a mesma não ocorre fora da experiência histórica

da vida humana. Esta percepção da revelação divina ocorre através da construção

da própria existência pessoal, mediante uma estrutura de valores, na qual o

próprio ser humano sempre experimenta alguns valores como absolutos.

O homem nada pode conhecer a não ser “humanamente”. Pretender que o

homem possa ter um conhecimento de uma realidade qualquer, (mesmo que seja a

realidade de Deus), de modo completamente independente de mediações

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históricas, sociais e culturais... querer isso é o mesmo que postular algo

humanamente impossível. É algo fora de propósito. É querer que o homem se

desumanize para poder receber a revelação divina. O que J. L. Segundo está

querendo mostrar, com sua concepção de união entre fé antropológica e fé

religiosa, é justamente o oposto dessa atitude. O ser humano não precisa (nem

deve e nem pode) se desumanizar para receber a revelação de Deus. Ao contrário!

É no interior de sua própria humanização que ele poderá descobrir a presença de

Deus. Quanto mais o homem se humaniza (por sua escala de valores, pela fé

antropológica) mais ele poderá aprofundar a descoberta de um Deus que se

revelou “humanamente” em Jesus Cristo (fé religiosa). Com esta argumentação, J.

L. Segundo nos mostra que a experiência “humana” da fé em Deus jamais ocorre

desprovida de mediações humanas.

“É forçoso convir que, já que Deus não entra nos limites de nossa experiência sensível, qualquer ‘revelação’ sua, seja sobre valores, seja sobre as testemunhas em que, a titulo de mensageiros divinos, nos deveríamos fiar, há de ser percebida e transmitida mediante testemunhas humanas.247 São pessoas como nós aquelas que viveram certos acontecimentos históricos como ‘revelação’ de Deus, pretendendo assim distingui-los de outros acontecimentos ordinários. É muito certo que os discípulos de Jesus, enquanto puderam explicitar o que dele compreendiam, perceberam que Jesus, e (...) não as autoridades religiosas de Israel, proporcionava uma revelação de Deus, dos valores que Deus mesmo elevava ao plano do absoluto. (...) precisamente por isso, cada um de nós deve ter hoje fé nos discípulos de Jesus. E não só enquanto testemunhas oculares, já que os acontecimentos concretos nos são transmitidos por eles, mas porque foi seu critério valorativo desses acontecimentos aquilo que os constitui num elemento decisivo para nossa ‘fé’ dirigida a Jesus, ou em Jesus.”248

Notamos assim que, os próprios discípulos só puderam ter fé em Jesus

Cristo, porque (a partir da convivência com Ele, no aprendizado dos “valores

dEle”) puderam ter uma “percepção humana” de que nas “atitudes humanas” de

Jesus de Nazaré estava acontecendo uma revelação divina. A partir dos valores

considerados absolutos por Jesus, é que se tornou humanamente possível aos

discípulos (e a nós hoje), descobrir os valores que são absolutos para o próprio

Deus, (os valores do Reino de Deus). Não são apenas os fatos que contam. São

decisivos também os critérios pelos quais os discípulos interpretaram os fatos da 247 O próprio autor indica aqui, que neste aspecto, é oportuno recordar as afirmações por ele feitas no capítulo 6 do livro, Libertação da Teologia (São Paulo, Loyola, 1978, p. 181 ss.); capítulo este que tem o sugestivo título de “Condicionantes relativos de uma fé absoluta”. 248 SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré,.v.1..., p. 79 (grifos meus).

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vida de Jesus. Em última instância, é este “critério de valor” que vai justificar e

legitimar a fé em Jesus Cristo.

Nesta mesma longa citação acima transcrita, há dois pontos que merecem

destaque e que nos ajudam a entender esse dinamismo da passagem da fé

antropológica à fé religiosa.

Primeiro: Deus não se deixa aprisionar dentro dos limites da realidade

humana.249 Ele só pode ser percebido mediante os “sinais” dessa realidade

humana que apontam para Ele. Deus não é um ente categorial. Ele transcende toda

e qualquer realidade ou categoria humanas. No entanto, o próprio Deus não

prescinde dessas realidades (categoriais) humanas para se revelar ao ser humano.

Por isso, é que J. L. Segundo vai dizer que a revelação de Deus pode ser

percebida, tanto através de determinados “valores”, como também a partir do

“testemunho” de determinadas pessoas (testemunhos humanos que servem como

“mensageiros”). Seja como for, sempre em todo caso tal revelação de Deus haverá

de ser percebida e transmitida pela intermediação de “testemunhos humanos”. Daí

concluímos que a experiência da fé (a percepção que o homem pode ter da

Revelação de Deus) será sempre feita “humanamente”, por pessoas “humanas”, a

partir de “mediações humanas”.

Em segundo lugar: Foi assim, num dinamismo em que Deus se revela por

meio de sinais da própria realidade humana, que os discípulos puderam

“perceber” na vida de Jesus Cristo os “sinais” que comunicavam a revelação de

Deus. Os discípulos puderam identificar , “a partir daquilo que conseguiram

compreender” da realidade de Jesus, que nEle se manifestava a realidade de Deus.

E isso ocorria precisamente no âmbito dos valores defendidos por Jesus Cristo.

Ou seja, os discípulos conseguiam enxergar nos valores defendidos por Jesus

Cristo “os valores que Deus mesmo elevava ao plano do absoluto” 250.

Desse modo, são estes dois pontos que J. L. Segundo usa para confirmar

sua opinião de que a fé propriamente religiosa não prescinde da fé antropológica

nos valores humanos. Antes ao contrário. A fé antropológica é que serve de base

para se chegar à fé religiosa.

249 Creio que foi isso que J. L. Segundo quis dizer logo na 1a frase da citação : “Deus não entra nos limites de nossa experiência sensível...” , Deus só pode ser captado transcendentalmente, por meio de sinais de sua presença nas realidades imanentes do mundo criado. Mas Deus mesmo enquanto tal jamais se confunde com essas realidades. Cf. ibid. 250 SEGUNDO, J. L. , O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1..., p. 79.

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Se os próprios discípulos usaram esse critério de acompanhar os valores,

práticas e ensinamentos (ou seja, a atitude fundamental) de Jesus de Nazaré, para

perceber nestes valores a manifestação do próprio Deus e daquilo que tem “valor

absoluto” para Deus... Se os discípulos usaram esse critério e assim captaram

fidedignamente a revelação de Deus, elevando a fé antropológica deles até o nível

de uma fé religiosa explicitamente referida a Deus... Então, também nós devemos

confiar nesse critério e adotá-lo em nossa própria vida, percebendo os

acontecimentos e os valores que podem ser, nos dias de hoje, mediação humana

do encontro com Deus. É nesses termos que a experiência de fé dos discípulos é

modelo, inspiração e paradigma para a experiência de fé que nós fazemos no

contexto atual. É esse o dinamismo designado com o conceito de “fé religiosa”.

3.3.4

Ideologias

Por tudo o que foi visto, é evidente que a fé supõe o dinamismo histórico

da construção da escala de valores. Supõe também a capacidade humana de aderir

a esses valores, de acreditar neles, a capacidade de a pessoa se empenhar para

realizar esses valores ao nível da práxis. Ora, nada disso é possível se o homem

não tiver à sua disposição técnicas, instrumentos e meios eficazes para efetivar

esses valores em sua vida. É totalmente necessário ao homem produzir uma

articulação satisfatória entre meios e fins. É aí que entram esses instrumentos,

essas mediações que J. L. Segundo caracterizou como “Ideologias”.

Toda a consideração anteriormente feita sobre a fé, (no sentido aqui

atribuído por Juan Luis Segundo), coloca implicitamente a questão dos meios, das

mediações históricas, psicológicas, econômicas, políticas, culturais, eclesiais, que

conjugadas poderão propiciar a realização da pessoa.

Tais mediações são necessárias para que uma pessoa possa realizar os

valores superiores de sua escala valorativa. Estes meios nos mostram que a

liberdade não cria magicamente os instrumentos necessários para a satisfação do

homem. Nossa liberdade recorre a mediações que Segundo compreende como um

sistema articulado de mecanismos que possuem sua lógica interna própria;

mecanismos que possuem sua própria eficácia independente de nossas intenções.

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Nós simplesmente “tiramos proveito” e somos beneficiados pelo bom

funcionamento desses meios.

Creio que é nesse sentido que J. L. Segundo fala de um duplo movimento:

Por um lado, devemos submeter-nos ao meio (ideologia) com sua lógica própria,

enquanto coopera para a realização de nossos valores mais elevados. Por outro

lado, devemos ter autonomia em relação ao meio, para poder “ir além dele”, para

trocá-lo por outro, se isso for necessário para o êxito da busca da meta (fé)

estabelecida em nossa vida. Por isso, Segundo vai falar de uma relação com o

meio, sempre dentro desse duplo movimento de aceitação e superação.

“...de certo modo devemos nos submeter a eles [aos meios, mediações] sem nos submetermos inteiramente. Que se trata de duas dinâmicas diferentes, (que é preciso combinar em uma), se evidencia no fato de que, conservando o mesmo valor como guia, podemos aceitar ou rechaçar métodos existentes, criticá-los e até encontrar outros melhores. E isso, como dizíamos, sem mudar nada na finalidade que buscamos” 251.

O valor da finalidade almejada como meta (fé) vai determinar em grande

parte o tipo de relação que haveremos de ter com os meios (ideologias). Por outro

lado, a “qualidade”, a “adequação” do meio em relação ao fim é que dirá se nossa

relação com o meio será temporária ou permanente, constante ou episódica. As

limitações e as lógicas e eficácias próprias a cada meio, de certa maneira,

delimitam o modo como iremos lidar com eles.

Há, portanto, duas lógicas: uma com referência à “meta”, ou seja, aos

“valores superiores” de acordo com a escala estabelecida (fé); e outra lógica com

referência à eficácia no uso dos “meios disponíveis” (ideologias). Estas duas

lógicas são diferentes, mas devem estar sempre articuladas.

Da correta articulação entre estes dois níveis da existência humana,

dependerá o êxito na construção da própria liberdade do homem e da busca pela

sua realização pessoal. Somente dentro desta articulação entre fé e ideologia é que

poderemos verificar se existe ou não a coerência dos atos de uma pessoa com sua

escala de valores. Ou dito de outro modo: é através desta articulação fé - ideologia

que se constrói “a autenticidade de cada ser humano” 252.

251 Ibid., (grifo meu). 252 Ibid., p. 13.

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Para se verificar tal autenticidade, analisa-se articuladamente os dois níveis

(o dos valores e o da eficácia dos meios), mas sempre considerando o segundo em

função do primeiro. São dois níveis que devem ser reconhecidos cada qual com

sua própria lógica. São duas dimensões próprias da condição humana, mas que

são sempre complementares.

“ (...) somente o fato de ter em conta ambas as dimensões radicais do agir humano como fundamentalmente distintas, mas também como igualmente necessárias, é a base da maturidade e da liberdade que um homem pode alcançar na existência”253

Portanto, será dentro desta articulação com a fé antropológica nos valores

humanos, que J. L. Segundo vai propor o conceito de ideologia. Ao situar este

conceito numa acepção toda peculiar, o objetivo do autor é tratar daquela

dimensão humana histórica, sócio-econômica e política da vida humana. Ou seja,

a acepção segundiana do termo ideologia visa designar a “eficácia” nos meios

necessários para a existência humana, as “mediações”, os “métodos” pelos quais

se produzem os valores e a estrutura significativa da ação humana.

3.3.5

Dados transcendentes

Dissemos anteriormente que na busca pelos valores mais adequados para a

realização pessoal, o homem exercita a liberdade de escolha, mas de um modo que

elimina algumas alternativas para poder viabilizar outras; exercitar a liberdade é

também fazer renúncias. Optar, construir a própria vida mediante escolhas

livremente feitas, é criar a possibilidade de obter “certas satisfações”, tendo que

abrir mão de outras. Daí o caráter “arriscado” da experiência humana da

liberdade. Não há certezas prévias. O ser humano não possui previamente uma

segurança teórica acerca das opções e dos caminhos que escolhe para sua própria

vida. Ele quer alcançar a sua realização pessoal, mas também “corre o risco” da

frustração de suas expectativas mais queridas. Daí que em muitas circunstâncias,

o exercício da liberdade seja também cercado de medo e insegurança.

253 Ibid., p. 14 (grifo meu) .

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Diante disso, como poderá o ser humano seguir em frente? Como apostar

nos valores que ele, sem certezas absolutas, julgou como mais importantes? Como

construir uma estrutura de valores que seja realmente humanizadora para a pessoa

e para a sociedade? Neste aspecto, o ser humano realiza cotidianamente a sua

aposta na vida, a partir dos dados captados em sua percepção da realidade. No

entanto, mesmo valendo-se destes dados objetivos da realidade, o ser humano

acaba percebendo que a vida exige escolhas importantes, por vezes em situações

em que não há estatísticas ou dados experimentais, que assegurem previamente a

eficácia e o acerto das escolhas feitas. São recorrentes as situações em que o ser

humano é obrigado a tomar decisões, baseadas em “convicções” provenientes de

“experiências alheias”. Determinadas opções na vida, se baseiam em dados que

vão além da possibilidade de verificação empírica. São essas motivações

implícitas, situadas além da objetividade científica, que J. L. Segundo chama de

“dados transcendentes”.

Para escolher mediante o livre arbítrio e exercitar a liberdade; para decidir

sobre sua vida e seu futuro, o homem precisa “comparar” as alternativas

disponíveis. Em muitas circunstâncias, tal comparação é feita um pouco “às

cegas”. Isso porque o ser humano não tem como ter conhecimento pleno de todas

as informações necessárias, para fazer uma análise precisa e inequívoca de todas

as possibilidades, para depois escolher a melhor. A construção da existência

histórica por meio da liberdade humana não se processa dessa maneira.

O ser humano que opta por determinado caminho para sua existência

“maneja” sempre “dados transcendentes”, i.é., “dados referentes a coisas que não

pode experimentar e que, neste sentido, o superam”254. Essas informações e

experiências necessárias são, porém, impossíveis de ser obtidas todas por um

único ser humano individualmente considerado. Tais informações, o homem as

obtém, a partir da “experiência alheia”, ou seja, da experiência acumulada na

sociedade, nas instituições, na família, etc.

“Podemos dizer que os dados com os quais escolhemos as orientações mais básicas [para nossa vida] não provém de nossa própria memória (experimental), mas sim da memória da espécie (humana), a qual temos acesso enquanto confiamos (explícita ou inconscientemente) em certas pessoas que nos transmitem [esses dados] através de suas vidas subjetivas. Assim, aos dados transcendentes de que falamos (porque nunca podem dar-se dentro de uma

254 Ibid., p. 30.

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151

experiência determinada) corresponde um tipo de conhecimento que deve ser intitulado como fé em um sentido social e laico255.” .

Portanto, independente da religião formal que o homem professe, ele terá

que fazer muitas opções na vida, “crendo” em indicações e critérios herdados de

outros. Claro que as experiências obtidas em sua vida pessoal serão a base a partir

da qual ele irá filtrar as informações recebidas dos outros, mas isso não elimina o

fato de que alguns dos critérios de decisão serão provenientes da “memória da

espécie humana”. É fato que o ser humano se inspira em determinadas motivações

para definir e construir sua existência pessoal. É também verdadeiro que o

processo pelo qual estas motivações são obtidas não está sob o controle do próprio

ser humano. Muitos dos ensinamentos que a vida lhe fornece “transcendem”,

“superam” o que lhe é informado diretamente por suas experiências pessoais. E é

neste sentido que se diz que o homem precisa poder “acreditar” nestes “dados que

transcendem” a percepção individual da realidade.

Ao tratar deste tema, Juan Luis Segundo mostra que estes dados

necessários em nossas tomadas de decisão (e que não se situam no âmbito da

verificação empírica), são imprescindíveis a todo e qualquer ser humano. Ele vai

argumentar que este dinamismo se deu também na vida do próprio Jesus Cristo,

extraindo desse fato a conclusão de que, deveremos então, incluir os dados

transcendentes para passarmos da fé antropológica para a fé religiosa

propriamente dita.

Segundo cita Mc 1,14-15, como um exemplo de situação que pode ser

descrita como um dado transcendente presente na ação e na pregação de Jesus. “O

Reino de Deus está próximo”. Esta era a “Boa Notícia” anunciada por Jesus. Em

função dessa “Boa Nova”, Ele solicitava que seus ouvintes se arrependessem dos

pecados cometidos e mudassem de vida.

Aquele que aceita o convite deve converter-se, deve operar uma

transformação profunda em sua própria escala de valores, uma vez que esteja

convencido de que é verdade que, em Jesus Cristo, o Reino de Deus está

acontecendo de fato. Vemos assim, que Jesus apela a uma “fé religiosa”. Isso

porque a fé postulada por Jesus está intimamente relacionada com “a proximidade

255 Ibid., p. 31 (destaques em letra cursiva são de J. L. Segundo; já os grifos mediante palavras sublinhadas são meus).

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152

desse acontecimento ‘religioso’ por excelência: a instauração da vontade divina

sobre a Terra.” 256

Nota-se, portanto, que Jesus pede a seus ouvintes um voto de crédito; uma

capacidade de acreditar naquilo que Ele está anunciando e realizando. É neste

sentido que Juan Luis Segundo afirma que o apelo feito por Jesus a seus ouvintes

é muito mais do que um “ato religioso formal”. É um apelo a fim de que o ser

humano modifique a escala de valores a que estava habituado até aquele momento

em que ouviu a pregação de Jesus. Essa “fé” é algo que mexe com as estruturas

mais íntimas e profundas da alma humana; é uma fé que provoca “metanoia” , ou

seja, mudança de mentalidade , revisão de critérios, modificação de valores. Esta

“conversão” não é algo privativo do universo religioso propriamente dito; mas é

algo experimentado também ao nível da estrutura significativa, ou seja, também (e

em primeiro lugar) ao nível dos valores, ou seja, ao nível da fé antropológica!

Segundo argumenta que o Novo Testamento mostra que tanto João Batista,

assim como Jesus e Paulo entendem metanoia no sentido acima indicado, ou seja,

no plano dos critérios e atitudes morais. Paulo assume esse processo de mudança

como passagem do “homem velho” (que deve morrer) para o “homem novo” (que

deve renascer espiritualmente).257

Isto se evidencia no “argumento” que Jesus usava para convencer seus

ouvintes a “crer” no anúncio da Boa Nova. A razão pela qual, as pessoas deveriam

adotar essa “fé religiosa” naquilo que Jesus está propondo, não aparece assim de

maneira tão óbvia como se costuma supor. Este “motivo” aparece de um modo um

pouco mais sutil.

“Está claro que, tratando-se de fé, não se deve esperar uma demonstração. Mas também não se apela a uma atitude de submissão cega, infra-humana (...)” 258

256 Cf. Ibid., p. 88 . Segundo recorda aqui os primeiros pedidos da oração do Pai Nosso: que o Reino “venha”, que “seja feita a vontade de Deus” (na terra como no céu); estes pedidos expressam um desejo, uma confiança de que há situações em que Deus está realmente “reinando”, situações em que o projeto salvífico querido pelo Deus de Jesus Cristo está sendo efetivamente realizado. Tais situações realmente vão além da verificação científica estrita e é, por isso mesmo, que Juan Luis Segundo entende que são situações, que se apresentam como “dados transcendentes”, nos quais os interlocutores de Jesus são convidados a “acreditar” (cf. ibid., p. 88-89) . 257 cf. Ef 4, 23-28 indicado por SEGUNDO, J. L., obra citada, p. 89. 258 Ibid., p. 90.

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153

“O tempo se cumpriu” porque “o Reino de Deus está próximo”, i.e., já está

se realizando; esta realização do Reino na práxis de Jesus Cristo é que é a Boa

Notícia na qual os interlocutores de Jesus são convidados a crer. Esse “crer na

Boa Nova” da realização do Reino implica “arrependimento”, mudança de atitude,

metanoia. E o “motivo” pelo qual o apelo para crer na Boa Nova merece

credibilidade é um só: o Reino de Deus está próximo , está sendo realizado

efetivamente nas atitudes de Jesus Cristo.

Aplicando a terminologia segundiana, é possível afirmar que a realização

do Reino na práxis de Jesus é um “fato decisivo”, é uma “razão” que serve de

motivação para os ouvintes de Jesus. Para aqueles que se deixaram tocar por esta

Boa Nova, o fato de Jesus estar realizando sinais do Reino, serve como um “dado

transcendente”, que irá motivá-los a investir suas energias na mudança de sua

própria escala de valores. Este “dado” surge como o “argumento convincente”,

uma “razão” que (mesmo situada além da possibilidade de comprovação

científica) irá motivar os seguidores de Jesus a viverem um processo de

conversão. Um processo que leva os cristãos a tentarem praticar em suas vidas, os

mesmos valores que Jesus estava vivenciando como os mais importantes na escala

de valores dEle.

É neste sentido, que J. L. Segundo diz que Jesus “apela a uma fé

religiosa”. Isto não significa que Jesus estivesse pedindo aos seus ouvintes não-

judeus que se convertessem formalmente à religião que Ele praticava. Jesus não

estava pedindo que os seus ouvintes se tornassem judeus. Mas sim que vivessem a

metanoia, promovessem essa mudança na escala de valores, a fim de

corresponderem a este “dado novo” da realização do Reino.

No entanto, para que isso fizesse sentido aos ouvidos dos interlocutores de

Jesus, ou seja, para que essa mensagem pudesse ser compreendida e assimilada,

era necessário que esse “dado transcendente” apresentado por Jesus encontrasse

eco na vida dos próprios ouvintes. Fazia-se mister que a pregação de Jesus

estivesse apoiada numa longa “tradição”, que já tivesse informado previamente

algo a respeito desse Reino de Deus. É dentro desse contexto de esperança

salvífica, é dentro desse “ambiente de expectativa messiânica” e de sensibilidade

para a metanoia, que o anúncio de Jesus sobre a chegada do Reino constitui uma

notícia alvissareira. Fora deste quadro de referências, fora dessa “estrutura de

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significação”, a mensagem de Jesus não encontra eco e não pode ser percebida

como “Boa Nova”.

A proximidade do Reino de Deus somente pode ser declarada “boa

notícia” se estiver guardando referência a alguns “valores pré-existentes”, que

estão presentes nos interlocutores de Jesus. Esses valores prévios são o ponto de

contato entre Jesus e as pessoas que creram nEle, (as pessoas que acolheram a

pregação dEle).

J. L. Segundo não hesita em dizer que, ao anunciar que o Reino chegou e

que isso constitui uma notícia “boa”, ao fazer esse duplo anúncio, Jesus Cristo

“apela a valores pré-existentes em seus ouvintes”259. Ou seja, o Reino de Deus

não é uma “boa” notícia em qualquer situação, em toda e qualquer circunstância.

Não! Isso fica mais claro nas duras críticas que Jesus dirige às elites de seu tempo.

Para os ricos, os de mesa e vida fartas, para os que agora se beneficiam de

privilégios sustentados sobre a exploração do povo, para estes ricos e poderosos

que comodamente podem rir apoiados nessa situação privilegiada e injusta (Mt 6,

20-21), ou seja, para todos estes a quem Jesus dirige a imprecação “ai de vós”, a

proximidade do Reino de Deus não é uma “boa notícia”!

Consequentemente, J. L. Segundo vai considerar que o caráter positivo ou

negativo do Reino anunciado por Jesus dependerá dos valores sustentados por

cada pessoa. É por isso que na ausência de uma “tradição”, sem uma “série

unificada de testemunhos anteriores”,260 o anúncio da chegada do Reino

dificilmente poderá ser considerado como um “dado transcendente”, um dado a

partir do qual a pessoa aceita mudar a sua própria escala de valores.

Desse modo, compreende-se a importância da formação de uma “tradição”

que crie o ambiente propício à formação dos valores. Só contemplando esse

processo é que o ser humano poderá entender que a conexão entre diversos grupos

de testemunhos referenciais é fundamental para ajudá-lo a captar esses “dados

transcendentes”. Eles são percebidos sempre num verdadeiro “processo de

aprendizagem”, no interior do qual surgem as oportunidades para periodicamente

construir e (se necessário) reformular a escala de valores. É dentro dessa dinâmica

que cada pessoa poderá fazer experiência dos dados transcendentes. Juan Luis

Segundo faz notar que foi esse dinamismo que contribuiu para as descobertas que

259 Ibid. 260 Ibid.

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155

os discípulos fizeram com Jesus. É esse mesmo processo que fazemos também

nós nos dias de hoje.

Em síntese podemos dizer que dados transcendentes são dados necessários,

imprescindíveis para construir a estrutura de valores. J. L. Segundo nos mostra

que, justamente por se situar além da experiência imediata cotidiana (além do

categorial), justamente por isso, é que estes dados são considerados

“transcendentes”. Eles se manifestam, como uma orientação, ou como uma

indicação que “aponta para” a efetivação das possibilidades humanas em sua

totalidade. Estes “dados transcendentes” são como “sinais”, ou como experiências

que “orientam na direção” das potencialidades e possibilidades de humanização

para a vida do homem.

3.3.6

Aprendizagem em 2o grau, aprender a aprender ou dêutero-

aprendizagem

O conceito de “aprendizagem em 2o grau”, ou “aprender a aprender”,

também chamado de “dêutero-aprendizagem”, foi criado por J. L. Segundo para

designar o processo cognitivo pelo qual o homem aprende as lições, informações

e valores provenientes de suas interações com Deus e com o mundo. Este

conceito, portanto, guarda certa referência à percepção que cada pessoa pode ter

acerca da revelação divina. Por isso mesmo, é útil entendermos bem o modo como

o autor concebe esta revelação de Deus. De acordo com A. Murad261, há dois

aspectos básicos na concepção segundiana da revelação.

1o) A revelação como mensagem, é uma comunicação da parte de Deus

que deve ser humanamente compreensível. A revelação é sempre palavra

encarnada numa linguagem humana. Neste aspecto, “toda revelação, ou se

acomoda à nossa maneira humana de comunicação, ou simplesmente não existe

como tal”262.

2o) A revelação é “a comunicação de algo que interessa ao homem”, é algo

que diz respeito à sua vida; é algo “relevante” para sua existência. É uma

261 MURAD, Afonso , Este Cristianismo Inquieto: A Fé Cristã Encarnada em J. L. Segundo, São Paulo, Loyola, 1994, p. 17-19 . 262 SEGUNDO, J. L. , “Revelación, Fé, Signos de los Tiempos”, em Revista latinoamericana de teología, 14 (1988), p. 124-127.

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156

comunicação que “faz diferença”; é a comunicação de “valores” que podem ser

percebidos e estimados pelo homem. É uma manifestação de Deus que transforma

a vida do ser humano; uma comunicação que faz o homem entender que aquilo

que está sendo comunicado incide sobre sua vida, afeta a situação na qual ele se

encontra e, nesta condição, suscita uma resposta por parte do homem.

Assim, é dentro desse processo de interlocução com Deus, que se dá o

desenvolvimento do homem na história, seu crescimento pessoal e comunitário. É

aí, dentro do processo da revelação divina, que o homem “aprende” a viver e a

tematizar sobre as experiências vividas. No entanto, a ação do homem faz parte

desse processo. Na perspectiva segundiana, somente com a participação ativa do

próprio homem é que se pode dizer que a revelação chegou definitivamente ao seu

destinatário.

“A revelação de Deus não é dirigida à pessoa para que esta saiba mais, mas para que seja de outra maneira, que atue melhor e viva em um nível mais humano. A verdade da revelação transforma a existência humana. E a fé nesta revelação, longe de desviar a mente daquilo que seria temporal e efêmero em favor do pretenso necessário e eterno, ‘orienta a mente para soluções plenamente humanas’ diante dos problemas históricos (GS 11). Quem acolhe a revelação cristã tem uma indispensável tarefa: traduzí-la numa verdade transformadora da história para que o processo comunicativo iniciado por Deus chegue à sua plenitude”263

Neste processo de revelação, Deus cria, age por sua própria iniciativa e por

sua própria liberdade. Por outro lado, Ele oferece gratuitamente essa revelação ao

homem, como a um interlocutor igualmente livre. É assim que tanto a história

humana, como a revelação de Deus nesta história se constituem como processo

interativo, no qual Deus vai se manifestando ao homem, enquanto este responde e

vai aos poucos “conhecendo” Deus. A história da revelação na qual Deus e o

homem interagem é uma história de duas liberdades; é uma história humana e, ao

mesmo tempo, uma ação salvífica divina. É, por tudo isso, uma história vivida e

sentida também como um “processo de aprendizagem” para o homem.

“Na origem da liberdade humana há uma história posta por Deus. Por que história? Por três razões. Primeiramente, a criação está destinada por Deus a prolongar-se de certa maneira por meio do trabalho humano (Gn 1-2). Em segundo lugar, o universo não é um sistema cíclico emanado de um motor

263 MURAD, A., obra citada, p. 19. O autor faz referência aqui a J. L. Segundo, O Dogma que Liberta: Fé Revelação e Magistério Dogmático, São Paulo, Paulinas, 1991, p. 413-414.

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157

imóvel, mas brota de uma liberdade. Javé se dá a conhecer como pessoa, como liberdade. Deus será fundamentalmente o Deus da aliança, o Deus que se relaciona com o homem na história, de liberdade a liberdade, de pessoa a pessoa. Por fim, o tempo e o trabalho humano em aliança com Deus, buscam por infinitos tentos, uma meta. Esta meta, utopia fundadora da história, situa-se distante no tempo futuro, mas está feita já com elementos da história presente (novos céus e nova terra) alcançando a humanidade inteira (Is 19, 21-25)”264

Como se nota, o homem é fundamentalmente livre diante de Deus. É posto

pelo próprio Deus nesta condição de interlocutor capaz de criar, de dialogar, de

“aprender”. Isto se dá de tal modo, que a Verdade oferecida na revelação não é

apresentada a priori e já pronta. Há um caminho a ser trilhado por esta Verdade,

que parte da iniciativa salvífica de Deus até chegar no interior da realidade

terrena, temporal e finita na qual vive o ser humano. Neste “caminho” da verdade

revelada até seu destinatário, as relações humanas constituem a mediação

necessária e imprescindível para que a verdade de Deus possa ser sentida,

percebida e acolhida como Verdade efetivamente comunicada em linguagem

humana. Ou seja, é através da própria intermediação das experiências e relações

humanas que o ser humano vai aos poucos fazendo “o aprendizado de si mesmo”

e simultaneamente o “aprendizado sobre Deus”.

Nesse processo, o homem vai formando compreensões parciais acerca da

Verdade que Deus vem lhe comunicar. O homem é receptor dessa Verdade

revelada, mas nessa “recepção” ele exerce papel ativo. As imagens de Deus, que o

próprio homem vai construindo em sua descoberta progressiva da Verdade,

também se constituem como mediação, como caminho que o homem precisa

percorrer, para chegar ao conhecimento sobre aquilo que Deus vem lhe revelar.

Daí que o tema da imagem de Deus ocupe um lugar tão destacado na obra

segundiana. Estas imagens de Deus, (mesmo com suas imperfeições, mesmo com

os esclarecimentos corretivos que posteriormente se façam necessários), são muito

importantes nesse “processo de aprendizagem” de que estamos falando.

“ Quando se estabelecem relações de dominação, tende-se a criar imagens de Deus que as legitimem. Nossa sociedade injusta e nossa idéia deformada de Deus fazem um pacto terrível e intrincado. (...) uma sociedade que estabelece relações justas e humanizantes, de acordo com a direção do processo evolutivo, cria condições favoráveis para acolher o Deus vivo da revelação. E por outro lado, a imagem de Deus conforme a revelação impulsiona as pessoas para o compromisso histórico sustentado e orientado ao

264 MURAD, A., obra citada, p. 21

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158

sobrenatural. [ Mas isso ocorre de uma forma tal que o homem constantemente se depara com sua própria história, dando-se conta de que vive e se desenvolve no interior de seu próprio contexto vital, dentro de uma ] ‘infra-estrutura humana e social que deve transformar-se para que o homem possa vislumbrar melhor através dela a face de Deus’265 ”266.

O desenvolvimento espiritual e o processo histórico estão sempre

intimamente associados. É por isso que J. L. Segundo diz que esse

desenvolvimento do homem se dá pelo conhecimento que o homem faz sobre si

mesmo, somado ao conhecimento do Deus que se revela em sua história. Daí a

legitimidade de se conceber este mesmo dinamismo do desenvolvimento do

homem, (num processo histórico simultaneamente humano-divino), como um

processo que é também “cognitivo”; um “processo de aprendizagem”, no qual o

“conteúdo” transmitido não é ditado por Deus mecanicamente de modo

extrínseco, mas sim aprendido na interação do homem com seus interlocutores.

Progressivamente o ser humano vai descobrindo os meios necessários a este

aprendizado. É um processo no qual o próprio ato de aprender vai aos poucos

sendo aprendido.

Por esta mesma razão, J. L. Segundo vai conceber a revelação como uma

“pedagogia divina”267, na qual a Verdade eterna de Deus se faz Verdade no

interior das realidades finitas e temporais vividas pelo homem e pela mulher. E é

assim que esta Verdade de Deus se torna Verdade humanizadora para o ser

humano. Verdade que o liberta de tantos esquemas desumanizantes que afetam

negativamente a vida humana, especialmente em contextos de injustiça social

como os existentes na América Latina.

Tudo isso vem mostrar que, no processo de interlocução Deus-ser

humano-sociedade, a busca de soluções humanizantes para os problemas

históricos do ser humano possui um significado propriamente divino e um valor

propriamente teológico. Esta busca é querida e estimulada pelo próprio Deus. Isso

a Bíblia e o Concílio Vaticano II nos ensinam há muito tempo. A novidade que J.

L. Segundo está introduzindo nessa reflexão, reside no fato de ele afirmar que esta

265 SEGUNDO, J. L., Teologia Aberta para o Leigo Adulto, v. 3: A nossa idéia de Deus, São Paulo, Loyola, p. 10, 37-40. 266 MURAD, A. obra citada, p. 23-24. 267 O Concílio Vaticano II, em DV 15, reconhece este caráter pedagógico da revelação divina, respeitando o dinamismo progressivo do desenvolvimento humano. Cf. SEGUNDO, J. L. “Revelación, Fé, Signo de los Tiempos”, em Revista Latinoamericana de Teología, 14 (1988), p. 232; também O Dogma que Liberta... p. 75-180.

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159

busca por situações novas e mais humanizadoras, exige interações entre múltiplos

fatores que determinam a vida do homem na história. Ora, se é aí, dentro desta

história multifacetada e “complexa”, que Deus se revela ao homem, então o

aprendizado que este precisa fazer é também “complexo”, envolvendo diversas

dimensões da vida. Portanto, não lhe basta “somar” as informações para formar

esse processo de aprendizagem. Isso seria uma “aprendizagem em 1o grau”.

Conceber as interações do homem com o próximo e com Deus nestes termos, é

incorrer num erro simplório. É supor que na revelação que Deus faz de si, Ele

(Deus) dita e o homem decora as verdades formuladas diretamente por Deus sem

intermediações humanas.

J. L. Segundo não aceita esta concepção. Ele entende que o homem

“aprende aprendendo”, isto é, não a posteriori, não depois do “ditado” de Deus,

mas sim durante os processos históricos nos quais exerce papel ativo, acertando,

errando, corrigindo erros, articulando informações originalmente simples mas

que, em novos contextos, dão origem a conhecimentos mais complexos. O homem

aprende articulando diversas informações em níveis diferentes. Por isso seu

aprendizado sobre si mesmo, sobre a sociedade e sobre a presença de Deus em sua

vida, não se dá por mera “adição”, mas sim por uma “multiplicação de

informações”, num autêntico “aprender a aprender”, que J. L. Segundo caracteriza

como processo de “aprendizagem em 2o grau”, ou “deutero-aprendizagem”. Trata-

se de um processo educativo para o próprio ser humano em sua fé e em sua

liberdade. Um processo que não é feito meramente somando verdades e

subtraindo erros, mas sim articulando os dados da realidade do mundo e das

experiências humanas vividas, incluindo acertos e erros, como parte integrante do

próprio processo educativo. É um crescimento na descoberta progressiva da

Verdade. Um processo pelo qual, mediante as múltiplas interações entre as

informações disponíveis, o ser humano vai pouco a pouco, superando

compreensões insuficientes, formulando compreensões novas, mais abrangentes,

mais complexas e consequentemente mais aprimoradas na aproximação à

Verdade. Trata-se, portanto, de um processo inesgotável de enriquecimento e

revisão constantes do conhecimento formulado pelo ser humano em sua interação

com o próximo, com a sociedade e com Deus. Um processo que integra crises,

insuficiências, superações e que está sempre aberto a novas faces e nuances da

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Verdade que se revela ao homem, Verdade que ele mesmo vai descortinando, sem

nunca conhecê-la por completo, sem nunca compreendê-la cabalmente.

Esta concepção da revelação (bem mais dinâmica e rica de experiências

humanas), parece bem mais adequada ao desenvolvimento cognitivo do ser

humano. Tal concepção está mais de acordo com o enraizamento histórico

complexo e multidimensional, dentro do qual se dá o desenvolvimento do homem

e da sociedade. Foi para registrar esse dinamismo que J. L. Segundo criou o

conceito de “aprendizagem em 2o grau”, ou “aprender a aprender”

3.3.7

Ecologia Social

Num capítulo intitulado “A espessura da nossa realidade”, J. L. Segundo

trata do contexto social e político na América Latina, com especial atenção aos

anos transcorridos entre 1950 e 1975, período em que se gestaram muitos regimes

ditatoriais nos países latino-americanos268. O leitor atento notará que o interesse

do autor não é fazer uma análise política pura e simples. Seu objetivo principal é

perceber os efeitos sociais e culturais dos processos políticos ocorridos nestes

países, e especialmente, os mecanismos pelos quais estes processos deram origem

a um modo próprio de pensar e viver. Interessa, então, à análise de Segundo as

“premissas”269 de compreensão sobre o homem e a sociedade nesses países. Seu

268 SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1: Fé e Ideologia, São Paulo, Paulinas, 1982; capítulo 5 , “A espessura da nossa realidade” (p. 347 a 384). 269 Trata-se aqui de uma noção formulada por Gregory Bateson. J. L. Segundo se refere a esta noção nos seguintes termos: Gregory Bateson em “sua interessante obra (...) Steps to an Ecology of Mind (...) escreve: ‘O ser humano... está ligado por uma rede de premissas epistemológicas e ontológicas que (...) se convertem parcialmente em autovalidantes (self-validating) para ele’ ” (G. Bateson, Pasos hacia una Ecología de la mente, Buenos Aires, ed. Carlos Lohlé, 1976, p. 344; citado em SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1... p. 113). J. L. Segundo quer mostrar que essas “premissas ontológicas e epistemológicas” constituem o ponto de partida de qualquer raciocínio. Antecedem o saber racional e conceitual. Tais premissas formam a base sobre a qual a razão vai operar. Por isso, ele nos diz: “A premissa é a-racional. A razão trabalha sobre premissas que não são nem criadas, nem controladas por ela (...) o uso mais importante e decisivo da razão é o de justificar ou ‘validar’ as consequências que o homem tira de suas premissas ‘ontológicas e epistemológicas’. Que tipo de premissas são estas? (...) uma realidade humana muito simples, exatamente o que temos chamado estrutura de significação ou estrutura valorativa” (SEGUNDO, J. L., ibid., p. 114, grifos meus). Assim, J. L. Segundo associa a concepção batesoniana das “premissas autovalidantes” ao tema dos valores (fundamental no pensamento segundiano). Ao que tudo indica, a “escala de valores” constitui para Segundo um daqueles “dados ontológicos” e ou “epistemológicos” de que fala Bateson. É uma “condição sem a qual” não conseguimos produzir conhecimento. A escala de valores seria uma “premissa autovalidante”, uma condição prévia, um fundamento necessário ao próprio uso da razão.

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161

objetivo ao analisar a situação social latino-americana é mostrar que tal contexto

resultou num “modo de pensar a vida”, num modo de crer em determinados

valores desprezando outros, num hábito, num costume de assumir determinados

pressupostos, que sutilmente foram induzindo a vida dos homens e das sociedades

numa determinada direção e numa determinada maneira de o homem latino-

americano se relacionar consigo mesmo, com a sociedade e com Deus.

Nesta perspectiva, torna-se imperativo entender as perguntas que “aquele”

contexto apresentava, para “aqueles” homens, que viveram os desafios “daquele

período histórico” concreto. Como estruturar os próprios valores, em meio a uma

forte polarização política e ideológica entre capitalismo e socialismo; entre direita

e esquerda; entre guerrilhas e governos ditatoriais? Como organizar a vida em

sociedade, com limitações à liberdade de imprensa e ao debate público, em

contextos políticos nos quais a emissão de opiniões críticas aos governantes é

bloqueada, censurada e vista sob suspeição? Como ser cidadão, e mais ainda,

como ser cristão, no interior de regimes políticos que inviabilizaram a

democracia, em que algumas instituições sociais como partidos políticos e

sindicatos foram fechados, enquanto algumas outras instituições funcionaram de

modo parcial e, ainda assim, sob um rígido controle imposto pelos grupos

governantes? São questionamentos como estes que J. L. Segundo se faz ao

analisar a formação das sociedades latino-americanas no referido período.

Interessa ao autor levantar as condições e os elementos constitutivos desse

processo formativo, desse processo de socialização de valores, de esperanças e

também de “desesperanças”. O desejo do autor é mostrar que foi dentro desse

processo de formação coletiva de valores que se deram abalos profundos na “fé

antropológica” dos homens e das sociedades nos países da América Latina.

Ou seja: para poder começar a raciocinar sobre a realidade, é preciso que eu tenha previamente a capacidade de ver, (a mim mesmo e ao mundo), de modo ordenado; é necessário que eu seja capaz de ver a realidade “como um conjunto potencial de valores estruturados” (ibid., p. 118). É a estrutura de valores que me possibilita isso. Neste sentido, a escala de valores atua como uma “premissa” anterior à razão. É a partir dessa capacidade de associar os fatos e as diversas informações num todo ordenado, que a mente vai dar a significação destes mesmos fatos e informações. Eis o papel absolutamente fundamental desempenhado pelas “premissas ontológicas e epistemológicas parcialmente autovalidantes”. Sem elas não há raciocínio, não há conhecimento. Elas nos mostram que o modo como cada pessoa “conhece” a realidade nunca é “neutro”. São estas “premissas” (valores) que vão decodificar o mundo e torná-lo inteligível para o ser humano. Premissas estas que vão definir o modo como cada pessoa irá assimilar as experiências vividas e também o modo como tais experiências irão orientar o agir da pessoa. Para mais informações sobre este tema ver SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1: Fé e Ideologia, São Paulo: Paulinas, p. 113-117.

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162

Nota-se, portanto, que a reflexão de Segundo mostra que dentro mesmo do

processo de desenvolvimento político e social de uma nação, transcorrem dois

processos mutuamente articulados: a formação da vida pessoal do ser humano e a

formação da vida do conjunto da sociedade. Estes processos simultâneos e

interdependentes é que criam as condições de desenvolvimento do ser humano

nos aspectos anteriormente indicados (da escala de valores, da fé antropológica

articulada à fé religiosa, da dêutero-aprendizagem, etc.). É neste sentido que J. L.

Segundo vai falar da constituição de um “processo ecológico” da formação social

do ser humano. Nesse processo devemos considerar todas as energias retesadas,

os atrofiamentos, como também as energias liberadas, o investimento nos valores,

na formação das consciências pessoal e coletiva. Ao considerarmos o

investimento na formação cultural das pessoas, veremos que todos estes

elementos associados de modos diversos vão constituir o habitat, o “ambiente” no

qual se forma o ser humano. É neste sentido que o autor vai conceber o

desenvolvimento humano como uma “ecologia social”.

São muitos os fatores que entram no processo constitutivo da ecologia

social. Analisando o contexto da América Latina, J. L. Segundo enfoca alguns

dentre aqueles que considera mais relevantes270 tais como:

- A conscientização sócio-política crescente em determinados setores da

sociedade civil, especialmente entre jovens universitários.

- Os planos econômicos implantados sob a inspiração de teorias ditas

“desenvolvimentistas”, visando o crescimento econômico, a geração de emprego e

renda, etc.

- As mobilizações sociais e políticas associadas ao crescimento da ação de

partidos políticos de esquerda, associações, sindicatos, movimento estudantil, etc.

- A contestação do modelo de desenvolvimento adotado e a percepção do

caráter estrutural das crises econômicas e do subdesenvolvimento dos países

latino-americanos.

- A polarização e a radicalização dos conflitos sociais e políticos que

resultaram em golpes militares e regimes autoritários nestes países, com a

consequente reação organizada, sob a forma de movimentos revolucionários

contra as ditaduras.

270 Cf. SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v.1..., p. 347-356.

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163

Não faz parte do objetivo desta tese avaliar a qualidade sociológica da

análise que J. L. Segundo fez acerca de todo esse processo. Pode-se concordar ou

discordar em maior ou menor grau das opiniões políticas do autor. O que interessa

a uma tese teológica sobre o pensamento de Segundo é verificar o modo como

todo esse processo por ele descrito forma uma concepção propriamente teológica

acerca do ser humano e de seu processo de interação com o próximo, com mundo,

com a cultura, com a fé, com a Igreja e com Deus.

E é precisamente este o objetivo do autor, quando ele aborda estes temas

sociais e políticos da realidade latino-americana. Interessa-lhe perceber que tipo

de interação dos homens entre si e dos homens com Deus poderá emergir destas

múltiplas interações entre estes fatores econômicos, políticos, culturais, etc.

É preciso considerar o processo da ecologia social como um conjunto de

processos menores (simples e complexos), que se articulam num todo maior e

mais rico em quantidade e qualidade de relações humanas e sociais. Trata-se,

como é notório, de um processo dinâmico que cresce em dimensões e direções

muitas vezes imprevistas e incontroláveis. É por isso que determinadas mudanças

ao nível das estruturas sociais, (mesmo que com motivações positivas e justas),

podem acarretar conseqüências negativas imprevisíveis sobre o modo de ser das

pessoas e sobre os valores culturais assimilados pela sociedade.

Daí que quanto mais intensas forem as transformações nas estruturas

sociais de um país, mais elas afetarão um conjunto cada vez maior de seus

habitantes. Moral da história: transformar a realidade social exige prudência,

cálculos com várias variáveis; prognósticos não apenas com informações técnicas

objetivas, mas também com variáveis de ordem subjetiva e cultural. Para dizê-lo

numa expressão bem brasileira: Para lidar com mudanças sociais de grande porte

é preciso “jogo de cintura”, é preciso “sabedoria”, capacidade de administrar

vetores sociais e valores culturais contraditórios; ou no dizer do próprio J. L.

Segundo: é preciso “flexibilidade” para lidar com a “espessura da nossa realidade”

latino-americana. Pois a sociedade nem sempre reage como imaginamos. Nem

sempre a resultante de um processo social e político corresponde ao plano inicial

formulado por seus idealizadores. Assim é a ecologia social.

Neste aspecto, J. L. Segundo afirma que, no caso das sociedades latino-

americanas, durante a segunda metade do século XX, houve situações de

progresso, como também situações de retrocesso. O autor considera que o

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164

desenvolvimento histórico daquelas sociedades a que ele se refere, gerou uma

“ecologia social” que aprofundou e difundiu mais amplamente o processo de

conscientização social, com a conseqüente percepção da necessidade de libertar os

povos latino-americanos de esquemas de dominação política, econômica e de

situações de dependência nas relações internacionais entre os países

desenvolvidos e os subdesenvolvidos. No entanto, esta mesma ecologia social

latino-americana resultou num estreitamento das liberdades democráticas, nos

regimes ditatoriais, nos quais o espaço para o exercício da liberdade (e para o

exercício da própria nova consciência que então despontava) ficou muito

reduzido. Nota-se, portanto, que havia uma transformação social profunda em

curso, mas as sociedades em cada país não souberam “como” lidar com estas

transformações. Não souberam encontrar “os meios mais adequados”, para

viabilizar estas mudanças.

De acordo com esta análise, houve grupos que atuaram como uma

“minoria” dentro da sociedade. Uma minoria qualificada, que conseguiu fazer um

aprendizado denso e complexo, que esclarecia os mecanismos de alienação e

dominação impostos pelas elites governantes sobre a maioria da população. No

entanto, essa “conscientização da minoria” não foi difundida e assimilada

adequadamente pela “maioria”. Não houve uma sinergia entre os processos

formativos destes grupos minoritários e as “massas” formadas das amplas

maiorias das populações, que não dispunham de informações e de formação

psicológica, cultural e política para conseguir acompanhar todo aquele processo

de conscientização e mobilização social então em curso. A libertação que aparecia

como necessária era ao mesmo tempo temida por muitos. A percepção (correta em

princípio) formulada por estas minorias esclarecidas na América Latina não era

suficiente. Fazia-se necessário encontrar os meios de eficácia, as “ideologias” que

pudessem dar concretização histórica a esta libertação, num projeto histórico

viável, que pudesse progressivamente fazer com que essa libertação passasse a ser

compreendida pela “massa” das amplas maiorias das populações dos países latino-

americanos. Ou seja, houve uma incompatibilidade entre a fé antropológica

almejada (a libertação) e as ideologias disponíveis (os meios de conscientização e

de ação política empregados); no entendimento de J. L. Segundo isso indica que

houve uma “falha” na ecologia social .

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165

Nesse processo, vai sendo construída uma “fé”, uma esperança, (ou

“desesperança”) de que o desenvolvimento humano consiga em algum momento

superar os obstáculos que travam a sua realização. Essa esperança (ou a falta dela)

é que vai constituindo pouco a pouco aquela “premissa” cultural, aquela fonte de

valores da pessoa e da sociedade, que pode tanto estimular a ação como a

passividade (conforme o maior nível de esperança ou de frustração). E é aí que se

vê como este componente “espiritual”, (cultural e social), é decisivo. De fato, este

componente da subjetividade humana é fundamental na composição da ecologia

social. É aí que vão sendo estabelecidas (ou não) as condições para a passagem do

nível da “fé antropológica” para o nível da “fé religiosa”.

A religião, (na concepção batesoniana assumida por J. L. Segundo)271,

aponta nesta direção da formação da esperança, de um certo otimismo, de uma

expectativa de superação dos obstáculos presentes. Ou seja, a religião pode servir

de estímulo em favor da compreensão de que os sacrifícios, dores e mesmo as

frustrações presentes possibilitarão “recompensas instrumentais”272 que abrirão

caminhos para um novo futuro.

O que prevaleceu na América Latina, no período analisado por Segundo

foi a “desesperança”, a frustração das expectativas de transformação social. Esta

foi a “premissa” que deu a tônica subseqüente às esperanças, que haviam sido

construídas com tanto empenho e “gasto de energia”, pelos grupos minoritários

conscientizadores. É por isso que J. L. Segundo diz que este período da história

latino-americana foi um momento histórico em que houve grave “perda de

271 Este é mais um ponto em que Segundo acolhe formulações de Gregory Bateson. Este ressalta o papel positivo que a religião, (num sentido espiritual mais amplo e não meramente confessional), pode exercer em prol de uma ecologia social humanizante. Bateson concebe a religião num sentido bem peculiar. Ela pode atuar como fundamento para uma ação equilibrada do ser humano em vista da ecologia social. Isso porque a religião pode oferecer uma certa “esperança”, uma “perspectiva otimista” de se encarar a relação entre meios e fins em termos de complementaridade; sem exacerbar nem o âmbito dos meios (ideologias) nem o âmbito dos fins (fé). A concepção batesoniana de religião se refere a uma “esperança que evite a dissociação total entre fins e meios” (SEGUNDO, J. L. , O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1..., p. 339). A religião no sentido aqui indicado, ajuda na elaboração de um tipo de conhecimento baseado em dados transcendentes, que permite uma “aposta”, um “otimismo”, uma expectativa positiva quanto ao uso dos meios coerentes com os fins; como um fundamento para uma integração mais profunda das ideologias com a fé, considerando os valores realmente humanizadores para o homem; é assim como uma percepção dos meios mais importantes para a ecologia social enquanto “meios dotados de um valor sagrado”. Para mais informações sobre este ponto ver SEGUNDO, J. L. ibid., p. 329-344, especialmente p. 336 e 341) 272 A expressão é de G. Bateson (obra citada, p. 202-203) cf. as referências indicadas na nota anterior.

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sabedoria e de graça”, tendo como conseqüência “uma tremenda destruição

‘ecológica’: a destruição da ecologia social”273.

Tudo isso mostra que a ecologia social é um processo de múltiplas

dimensões, que deriva das articulações entre diversos fatores e que, por isso

mesmo, é um processo que o homem constrói através da integração de sua vida

pessoal com a ação coletiva dos grupos humanos na sociedade. Como vimos, essa

integração entre o pessoal e o social se dá por um dinamismo “espesso”, em certos

aspectos imprevisível e é por isso mesmo que ele se configura como uma ecologia

social formada por “sistemas sociais de equilíbrio complexo”274.

Nota-se, assim, como J. L. Segundo tenta esboçar uma concepção do ser

humano integrado num projeto histórico humanizador, colocando “o todo” numa

relação adequada com “as partes”; a fé integrada com a ideologia; o homem com a

sociedade, numa relação dinâmica com o processo da ecologia social.

No entanto, para que isso aconteça é necessário, superar as “falhas no

processo ecológico”, é preciso encontrar uma justa adequação entre fé e ideologia,

nas diversas dimensões da vida humana. É preciso sabedoria, ou seja, a

capacidade de ser flexível no planejamento, na ação, na revisão de planos para que

a ecologia social se mantenha em equilíbrio. É justamente esse assunto que é

abordado no conceito de flexibilidade histórica.

3.3.8

Flexibilidade Histórica

A reflexão anteriormente feita nos mostrou que a formação do ser humano

em sua interação com a sociedade, se configura como um processo ecológico.

Sendo que tal processo pode sofrer abalos, pode ter componentes perturbadores,

pode assumir tanto uma configuração que estimula o desenvolvimento do ser

humano, como pode também assumir uma configuração que tolhe este mesmo

desenvolvimento.

Daí que muitas vezes esta ecologia social precise de certos “reparos”, de

novas práticas que possam reconstruir o processo em novas bases, que sejam mais

humanizadoras para o homem. Esses procedimentos reparadores, que aperfeiçoam

273 SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré,, v. 1..., p. 355. 274 Ibid., p. 360.

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167

o processo ecológico-social, exigem do ser humano aquela “sabedoria criativa”

anteriormente mencionada. Ou seja, exige o desenvolvimento do senso crítico, a

capacidade de avaliação, inclusive a capacidade de rever convicções

anteriormente assumidas, etc. Numa expressão simples podemos dizer que a

ecologia social exige que o ser humano seja capaz de transitar entre a condição de

“massa” e a condição de “minoria”275.

Explicando um pouco melhor. Boa parte do tempo lidamos com tarefas

previamente traçadas, rotineiras, cujo método de execução já nos foi ensinado pela

força do hábito. Este é o “comportamento de massa”. Em geral, tal

comportamento cumpre a função de executar as tarefas mais simples em nossa

existência, tarefas para as quais é suficiente pouca reflexão e pouco gasto de

energia. No entanto, a vida não é feita só de tarefas simples. A existência humana

é dinâmica. Aos poucos a vida social vai se modernizando com a introdução de

novas tecnologias, novas descobertas nas diferentes áreas do saber, aprofundando

a experiência das diversas dimensões da vida humana. Na medida em que isso

acontece, o aprendizado que o ser humano precisa fazer vai ficando também mais

complexo, exigindo do ser humano cálculos mais complicados e impondo a

interação com um volume maior de informações.

A partir desse momento, o ser humano se vê diante da exigência de um

aprendizado e de um conjunto de atitudes mais complexos, que exigem um gasto

de energia bem maior do que aquele exigido nas tarefas simples. É nesta ocasião

que ele precisa assumir um “comportamento de minoria”. É esse o tipo de

comportamento próprio de grupos seletos de indivíduos que “aprenderam a

aprender”, que conseguiram armazenar múltiplas informações em sua mente, que

conseguiram desenvolver uma cosmovisão adequada para lidar com a

complexidade própria da vida humana em sua interatividade com o mundo.

O que J. L. Segundo nos mostra em sua análise sobre a ecologia social, é

que o ser humano totalmente envolvido nesse processo, não pode permanecer

eternamente numa atitude infantil, de só querer prazer, de só querer se deliciar no

gozo das tarefas fáceis, delegando (mediante diversas artimanhas) as tarefas

difíceis para que outros realizem. Tal atitude impediria o homem de amadurecer e

se desenvolver. Na verdade, a existência pessoal e social exige que o ser humano

275 Sobre este tema ver SEGUNDO, J. L., Massas e Minorias na Dialética da Libertação, São Paulo, Loyola, 1975.

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168

aprenda (um mínimo que seja) a realizar, tanto as tarefas próprias do

comportamento de massa, como também as tarefas próprias do comportamento de

minoria.

Desse modo, o ser humano poderá atuar de modo criativo na ecologia

social. Quer dizer, o dinamismo de integração da vida pessoal com a vida social

depende dessa “flexibilidade”, dessa capacidade de transitar nos dois níveis. A

existência do ser humano depende desse talento para lidar, tanto com as tarefas

simples e de menor custo energético, como também da capacidade para lidar com

as tarefas complexas e de maior custo energético.

Só assim, com essa capacitação, o homem poderá adquirir a “sabedoria”

necessária à vida. Só assim poderá “criar”, pesquisar, descobrir, inventar. E este

dinamismo é totalmente necessário ao enfrentamento dos problemas novos que

periodicamente surgem na vida em sociedade. Baseados nessas observações

segundianas, podemos dizer que esta “flexibilidade” do ser humano na lida com o

processo ecológico-social é derivada precisamente da tensão entre massa e

minoria. Estes são dois pólos, ou dois “tipos” de atitude humana, que se

confrontam ao mesmo tempo em que se complementam. Por isso, é desprovida de

sentido uma opção que quisesse anular um dos pólos. De certo modo, é o

comportamento massa que “libera energia”, para que o ser humano possa dedicar-

se com mais afinco às tarefas mais complexas. De outro lado, o comportamento

minoria deixa o ser humano mais qualificado para enfrentar os desafios mais

exigentes da vida cotidiana. Daí que saber conjugar os dois dinamismos é

fundamental para o desenvolvimento humano.

Esta breve caracterização da “flexibilidade histórica”, já é suficiente para

mostrar a importância dessa atitude que é também uma “sabedoria”, um jeito

próprio de lidar com os dinamismos pessoais e sociais de formação do ser

humano. O exercício da liberdade inclui necessariamente uma responsabilidade,

uma fé autêntica, construída com bom senso, em valores e atitudes que formarão a

base da vida da pessoa e que formarão também a energia acumulada para as

futuras gerações de seres humanos que nos sucederão. Podemos dizer que a

flexibilidade é importantíssima, tanto no amadurecimento pessoal como na vida

social. Por isso mesmo é que ela é um dos componentes essenciais do processo de

desenvolvimento do ser humano. É precisamente disso que tratarei no item

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169

seguinte sobre os dinamismos evolutivos desse processo de desenvolvimento

humano.

3.3.9

Evolução cultural

Do ponto de vista natural, podemos dizer que há “evolução” quando as

qualidades dos seres vivos vão se tornando “genéticas”. Para J. L. Segundo, a

principal característica que assinala que houve uma evolução é quando, a partir de

certo momento, uma espécie consegue concentrar suas habilidades adquiridas para

transmiti-las “hereditariamente” a seus descendentes. Quando um aprimoramento

é transmitido biologicamente entre os indivíduos de uma mesma espécie, aí se

pode dizer que esta espécie “evoluiu”. Algo semelhante se dá com a raça humana.

Os processos de desenvolvimento da vida pessoal e social do ser humano também

“evoluem”, só que isto se dá de um modo especial e singular. A hereditariedade

genética e os processos de “seleção natural” descritos por Charles Darwin não são

suficientes para explicar o modo como o ser humano se desenvolve.

É verdade que J. L. Segundo vai falar numa certa “genética sócio-

cultural”; mas isso não representa um determinismo biológico. No ser humano a

“evolução” se dá através de caracteres adquiridos no convívio social entre os

homens e, de modo especial, pelo exercício daquela “sabedoria criativa” já

mencionada quando tratei da “flexibilidade histórica”276. A partir dos

conhecimentos difundidos sócio-culturalmente, uma geração transmite à outra

seus aprimoramentos e seu aprendizado, de tal modo que a geração subseqüente

não precisa repetir o caminho existencial percorrido pela geração anterior. Certos

eventos e descobrimentos são incorporados pelo conjunto das sociedades

humanas, as quais, enriquecidas por tais “aprimoramentos”, seguem seu

desenvolvimento a partir dali. Não precisam “voltar à estaca zero”.

Surge destes empreendimentos criativos, uma qualificação de toda a

espécie humana, qualificação esta que foi inicialmente obra de uma “minoria”,

que atingiu um nível qualitativamente superior de conhecimentos e experiências

num determinado aspecto da existência. Processando um enredo mais complexo

de informações e eventos, essa “minoria qualificada” consegue socializar a 276 Vide item 3.3.8 desta tese sobre o conceito de flexibilidade histórica.

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riqueza obtida, fazendo com que o aprendizado feito se torne um patrimônio

compartilhado com os demais indivíduos da espécie humana. É assim que o ser

humano (animal social) evolui.

É neste sentido que nosso autor considera que há uma herança cultural que

se transmite por sucessivas gerações. Ele considera que essa socialização de

valores humanos fundamentais age como se fosse uma “genética” da cultura. Tal

dinamismo explica muita coisa mas não tudo. Ou seja, o desenvolvimento

humano transcorre (de um modo muito singular), justamente porque a “evolução”

do ser humano não se limita aos dinamismos hereditários. Também é necessário

considerar o dinamismo próprio da liberdade.

No que toca àquela “genética sócio-cultural” antes mencionada, vale o

mesmo. O ser humano não se limita a herdar e repetir valores. Ele também cria

novos valores, interage, critica, questiona e “reinventa” sua própria história. As

determinações genéticas não bastam para compreender o homem. Mesmo a

“genética cultural” não é suficiente para explicar o fenômeno humano. A

exigência de lidar com situações imprevistas; o exercício da imaginação e da

criatividade; a inevitável emergência do novo tornam mais complexa a evolução

do ser humano; consequentemente torna também mais complexa a tarefa de

compreendê-la e de explicá-la. Ora, se o homem não se desenvolve apenas por

hereditariedade biológica e pela transmissão cultural de valores entre as gerações,

mas também por criação e pelo exercício de uma autêntica liberdade, então é

preciso descobrir quais são os meios pelos quais operam a criatividade e a

liberdade.

Por outras palavras, isso quer dizer que para exercitar a liberdade o ser

humano desenvolve mecanismos que lhe permitem realizar coisas, que os

dinamismos genéticos não são capazes de fazer. Ou seja, no âmbito da liberdade,

o ser humano continua se valendo dos dados que lhe foram transmitidos por

hereditariedade277, mas não se limita a eles, vai além deles. Pois bem, os meios

que permitem ao homem exercitar a criação e a liberdade, usando de sua “herança

genética” sem ficar aprisionado nela, foram denominados por J. L. Segundo de

“mecanismos homeostáticos”. Trata-se de um termo que J. L. Segundo tomou

277 Tanto dados da genética biológica, como dados da “genética sócio-cultural”.

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171

emprestado de G. Bateson278, a fim de indicar o “jogo de cintura” que o homem

precisa ter, para lidar com informações que não constavam originalmente em sua

base genética-cultural.

Ao contrário das abelhas, que constroem colméias seguindo técnicas

geneticamente definidas, o homem precisa de liberdade de criação para “planejar”

sua moradia. Esse detalhe faz toda diferença. A abelha “poupa energia” ao

obedecer cegamente à sua herança genética. Já o ser humano precisa “gastar

energia” para calcular quais serão os recursos mais adequados para construir sua

moradia e seu habitat sócio-cultural. Para suprir este gasto extra de energia (do

qual a herança genética não pode dar conta), o ser humano recorre aos seus

“mecanismos homeostáticos”: os valores, o planejamento racional, o cálculo da

relação custo/benefício, etc. É com estes “recursos mentais”, que o ser humano

pode obter as informações necessárias para seus cálculos e suas escolhas. Tais

informações não são transmitidas biologicamente de pai para filho. O ser humano

precisa aprendê-las correndo o risco de errar. Os mecanismos homeostáticos

existem exatamente para isso, para avaliar até que ponto as “informações

hereditárias” dão conta da solução de um determinado problema e até que ponto

esta carga genética é insuficiente, demandando outras informações “não-

genéticas”, ou seja, informações “criadas” dentro da interatividade social. É por

isso que J. L. Segundo compara estes mecanismos homeostáticos (mentais) do ser

humano com a ação reguladora de um termostato. Este é um aparelho de controle

térmico, que reage de acordo com a variação de temperatura. Seu objetivo é

manter um certo padrão térmico necessário para que um determinado “ambiente”

se conserve nas condições adequadas. Deste modo, o termostato (em analogia

com os mecanismos homeostáticos do homem) lida com o novo,

“o inédito, o inesperado, coisa que uma informação meramente genética não pode fazer. (...) Assim, um termostato, quando a temperatura de um depósito de água quente perde calor (quer dizer se torna errônea para os fins inscritos no aparelho), liga por si mesmo o dinamismo que a esquenta e igualmente, quando o calor ultrapassa certo limite (tornando-se de novo errôneo), desliga o dispositivo”279.

278 Cf. BATESON, G. Pasos Hacia una Ecología de la Mente, Buenos Aires, ediciones Carlos Lohlé, 1976, p. 339 ss. citado em SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1... , p. 389. 279 SEGUNDO J. L., O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré., v. 1..., p. 389.

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172

Ou seja, o termostato possui a “habilidade” para agir de modos diversos,

de acordo com situações novas, que podem gerar efeitos indesejados. No exemplo

aqui mencionado, ele age para evitar que a água fique fria demais ou quente

demais. Num certo sentido, a mente humana é como o termostato. Ela exercita

cotidianamente essa capacidade de interagir com a realidade “passando pela

experiência do erro e de sua correção”280. Neste sentido, é que a mente humana,

com sua capacidade de uso da razão, se constitui para J. L. Segundo como modelo

exemplar de mecanismo homeostático. Entretanto, cabe aqui verificar como tudo

isso se aplica ao desenvolvimento humano, à ecologia social e ao exercício da

liberdade. Afinal que têm que ver os mecanismos homeostáticos com o tema da

flexibilidade histórica e da evolução cultural?

Têm sim muito a ver, na medida em que o ser humano depende de seu

próprio aprendizado para viver. Todo homem tem constantemente que lidar com

realidades novas, com situações inusitadas. O ambiente do qual depende sua vida

não lhe é inteiramente disponível e favorável. Não há como controlar todas as

variáveis da evolução. Isso é humanamente impossível. Por isso mesmo o ser

humano precisa “incorporar erros”, imprevistos, situações inconvenientes em seu

próprio processo de aprendizagem. O homem como animal social e político não

tem seu desenvolvimento pré-determinado. Ao contrário, o que caracteriza

singularmente o ser humano, é justamente a necessidade que ele tem de

“acrescentar à sua herança genética”, um lento e longo processo de formação

cultural, o qual é oferecido pela convivência social. Vem daí a percepção de que a

espécie humana precisa desenvolver mecanismos homeostáticos. Estes equivalem

aos processos pelos quais o ser humano acumula experiências, a partir das

informações disponíveis, para tentar construir um “ambiente” coerente com suas

necessidades. Portanto, estes mecanismos homeostáticos são procedimentos que

supõem a liberdade do ser humano; sua capacidade de aprender com os “erros” e

“acertos” vivenciados e assim “evoluir”.

Nestes termos, é que a mente/razão se configura como um mecanismo

homeostático, atuando de um modo análogo a um termostato, dando

“flexibilidade” ao homem, ajudando-o a desenvolver habilidades para reagir

diante da realidade social, de modo a amenizar os impactos negativos que ela

possa gerar em sua vida pessoal e coletiva. Toda vez que a sociedade exagerar, 280 Id.

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173

(“para mais” ou “para menos”), um determinado aspecto da existência humana, o

homem deverá usar de suas capacidades mentais, de sua razão, para suprir essa

defasagem e “corrigir o erro” provocado por essa situação desequilibradora. A

mente entra em ação “para reequilibrar o sistema”; para alcançar uma nova

estabilidade na produção ecológica da vida pessoal e social do ser humano. Aliás,

J. L. Segundo identifica as contribuições humanizantes de Freud e Marx, como

exemplos dessa ação do pensamento humano numa perspectiva crítica e

libertadora, como exemplos dessa ação da mente humana como um mecanismo

homeostático. De acordo com Segundo, essas contribuições das reflexões

marxista e freudiana visavam

“(...) introduzir a consciência e a deliberação - mecanismos homeostáticos - ali onde as coisas funcionavam como dirigidas por herança genética, isto é, de forma automática e inconsciente. Tratava-se de expor ao erro e à crítica o que passava, sem exame nem crítica, de geração em geração”281.

Com seus respectivos critérios de análise, as obras de Marx e Freud

fornecem ao ser humano um aparato crítico que lhe ajuda a identificar situações

de alienação, de impactos psicológicos negativos, situações de exploração e

injustiça que impedem o homem de se libertar. Por isso a reflexão humana

inspirada na obra destes autores funciona como o termostato. É um “mecanismo

homeostático” que esclarece, aponta equívocos e identifica critérios para uma

“evolução cultural” do ser humano.

No entanto, essa avaliação crítica feita pelo pensamento humano pressupõe

toda aquela base de transmissão de valores, mediante tradição, testemunhos

referenciais, já mencionados. A evolução cultural se dá mediante uma articulação

entre a ação dos mecanismos homeostáticos e a economia energética possibilitada

pela herança cultural genética. J. L. Segundo mostra que não há porque optar por

um ou outro destes dois dinamismos. Ambos se tensionam mutuamente, ao

mesmo tempo em que interagem e se complementam. Por isso mesmo Segundo

concebe a “evolução cultural” como produto do equilíbrio dinâmico entre os

mecanismos homeostáticos e a herança cultural genética.

A evolução cultural equivale à conquista de uma certa “sabedoria”, por

parte dos seres humanos que assimilaram a “flexibilidade histórica”, articulando

281 Ibid., p. 390.

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174

os dois dinamismos num mesmo processo. Mediante a herança cultural genética,

se dá a formação e difusão de tradições de valores. Há, assim, uma economia de

energia nos procedimentos que não exigem grandes esforços de pesquisa e

experimentação. No entanto, essa economia energética deve se dar de tal modo

que não chegue a sacrificar a capacidade criativa.

Aqui entra o trabalho crítico e criativo dos mecanismos homeostáticos.

São eles que vão atuar no sentido da tendência contrária, ou seja, em vista do

exercício da criatividade, da reflexão crítica, da busca de soluções inovadoras e

mais complexas, envolvendo um elevado dispêndio de energia humana. Mas isso

deve se dar de tal modo que não chegue a sobrecarregar a mente com uma

quantidade exagerada de tarefas penosas. Pois a fadiga seria uma espécie de

“pane” no sistema pessoal ou social e acabaria inviabilizando até mesmo as

tarefas mais simples.

Nota-se, portanto, que a evolução cultural humana referida por J. L.

Segundo se dá num processo rico e complexo que articula diferentes dinamismos.

Trata-se em verdade de um constante desafio para o ser humano e para a

sociedade. Qualquer desequilíbrio, seja na herança cultural genética seja nos

mecanismos homeostáticos, se traduz em inflexibilidade, ou seja, numa

desarmonia na articulação que precisa existir entre fé e ideologia. A questão que

se coloca então é: como ter uma economia energética dinâmica e equilibrada,

tanto no desenvolvimento pessoal como no social ?

Aqui se fazem necessários os “valores absolutos” do homem. Por serem

imprescindíveis à vida, estes valores devem atuar como se fossem dados

transmitidos “geneticamente”. De outro lado, ocorrem também mudanças no

ambiente social, as quais vão se tornando cada vez mais necessárias, afetando a

vida dos indivíduos e da sociedade. Portanto, é dentro dessas “balizas” impostas

pela própria ecologia social, é dentro desse “ambiente” que se dá a liberdade do

ser humano. É dentro desse processo que transcorre a “evolução cultural”. A

submissão a certos valores e técnicas que recebemos da tradição (testemunhos

referenciais, herança cultural) acaba sendo uma necessidade fundamental, uma

espécie de dado transcendente ao qual todos temos que recorrer282. Em certo

sentido, essa tradição pela qual recebemos muitos de nossos valores mais

282 Cf. Ibid., p. 399.

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175

fundamentais colabora na formação das “premissas autovalidantes” que vão nos

guiar na vida.

No entanto, esta herança cultural genética sozinha não é suficiente para

produzir a evolução cultural. Faz-se necessária a instância crítica dos mecanismos

homeostáticos. A tradição não deve ser assumida acriticamente. A própria

dinâmica do desenvolvimento humano exige transformação e criação, mas

também avaliação e crítica. De sorte que o ser humano, em sua relação com a

cultura, exerce um papel simultaneamente passivo e ativo. Há tradições culturais

que são recebidas por herança, mas que também são manuseadas pelo ser humano,

no âmbito de sua liberdade e de acordo com suas necessidades. Deste modo uma

tarefa histórica decisiva que é colocada para o homem é precisamente a de criar e

recriar e assim, atuar na produção de sentidos para a existência283.

É fundamental para o homem que ele se torne capaz de formar uma

tradição cultural eficaz em ordem à ecologia social. Isso implica em construir uma

estrutura de valores que seja “transmissível”; uma escala valorativa que sirva de

base para dinamizar a ecologia social. Trata-se de construir uma cultura que seja

simultaneamente “global” e “humanizadora”, para uma adequada formação do

homem e do mundo. Uma cultura que possa atuar vigorosamente na formação de

uma ecologia social positiva em vista do desenvolvimento do ser humano.

Tudo isso nos faz ver que, para poderem se desenvolver, os seres humanos

precisam se preparar para se dedicar a essa imensa obra de criação cultural,

através de múltiplos processos convergentes; tanto processos de criação de novos

valores e novas tradições, como também processos de conservação ou reprodução

de tradições já existentes. É dentro deste dinamismo que se dá a produção do

sentido da existência para o homem. É assim que homens e mulheres formam

concepções de mundo articulando-as com os dados empíricos da realidade do

homem e do mundo. De tal modo que todo ser humano, todo e qualquer grupo

humano e sociedade têm sua relação com o mundo intermediada pela cultura.

Nisto consiste a dinâmica da “evolução cultural”.

283 Cf. Ibid., p. 404-407.

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Conclusão

Neste capítulo foram apresentados os pontos fundamentais da trajetória

pessoal e dos conceitos básicos elaborados por J. L. Segundo. O objetivo foi o de

mostrar como esses elementos influenciaram na configuração da concepção de

liberdade construída pelo próprio autor. Nesse processo múltiplos fatores se

articulam, num rico dinamismo que envolve tanto a ação humana como a livre

iniciativa divina. Nosso autor analisa em detalhes os múltiplos processos sociais e

pessoais que precisam ser conjugados para formar a pessoa humana dentro do seu

enraizamento histórico. É aí que se situam os dinamismos da produção da escala

de valores, da formação da fé antropológica, da configuração dos dados

transcendentes, da dêutero-aprendizagem, da ecologia social, etc.

J. L. Segundo quer enfatizar a recepção ativa que o ser humano é

convidado a dar à revelação divina. Deus é eminentemente livre em sua relação

com o ser humano. No entanto, este último é também verdadeiramente livre diante

de Deus. O ser humano foi criado já nesta condição existencial de liberdade.

Somente nessa condição é que o homem pode receber a revelação como uma ação

amorosa, como uma comunicação realizada entre dois seres que se respeitam

mutuamente como interlocutores efetivamente livres. O homem, portanto, se

realiza e se posiciona diante de Deus, a partir de sua própria liberdade e de sua

própria história.

E é isso que os conceitos aqui analisados revelam. Não é necessário

reapresentar aqui os pontos essenciais de cada conceito. Basta notar que eles

apresentam o ser humano como protagonista no processo de configuração

histórica de sua própria liberdade. Isto não coloca o homem numa posição

arrogante nem ingênua, como seria a suposição de que o ser humano atua de

modo solitário e independente. Ao contrário, o que os conceitos segundianos

indicam é um amplo processo dinamizado e delimitado dentro de relações sociais,

culturais, históricas, políticas, etc. São manifestadas a amplitude e a complexidade

da vivência da liberdade humana, nos múltiplos processos que a configuram. Da

mesma forma como são evidenciadas as limitações e dificuldades humanas como

elementos constitutivos do próprio processo de vivência da liberdade.

No próximo capítulo terei condição de mostrar com mais detalhamento os

dinamismos constitutivos das interações do ser humano consigo mesmo, com a

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sociedade, e com o universo em evolução. Será evidenciado então que ao abordar

estes assuntos, J. L. Segundo mostra o quanto essas distintas interações são

importantes na configuração do ser humano enquanto ser de liberdade.

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Capítulo 4

Determinismos, acasos, evolução e sentido:

a liberdade nas múltiplas interações humanas

Introdução

No presente capítulo, trato dos dinamismos que configuram a existência

histórica e pessoal do ser humano. Tais dinamismos revelam o modo próprio pelo

qual o ser humano vive como ser de liberdade. As opções livres feitas pelo ser

humano nunca se dão fora das determinações de seu corpo e de sua mente. Por

isso, o estado psicológico, o quadro clínico em que se encontrar o homem

determinará em grande parte o quanto ele poderá ser livre. O mesmo pode ser dito

em relação às circunstâncias históricas, sociais, culturais, econômicas e políticas,

nas quais vive concretamente o ser humano. Tais condições afetam a vida e serão

elas que darão forma à liberdade que o homem conseguirá exercer e assumir.

Por isso, J.L. Segundo fala em diversos “determinismos” que condicionam

a vivência humana da liberdade. Ignorar esses condicionamentos é falsear a

liberdade humana. É pensá-la em abstrato, fora da realidade histórica. Ou seja,

pensar a liberdade humana sem levar em conta esses condicionamentos que a

“determinam” é pensar uma liberdade meramente imaginária e ilusória. Seria,

neste sentido, uma liberdade não humana que, aliás, nem mereceria esse nome de

liberdade.

De outro lado, esta configuração histórica e existencial da liberdade não é

sempre previsível e “determinada” em todos os seus aspectos. Entram no processo

de construção da liberdade humana, diversas situações imprevistas e neste sentido

“indeterminadas”, que podem ser consideradas como “acasos”. Por isso mesmo,

Juan Luis Segundo dá especial atenção a este componente da configuração da

liberdade, mostrando como ele se infiltra, até mesmo nas dimensões que

imaginávamos mais objetivas e cientificamente determinadas da existência

humana. Assim o ser humano vivencia sua liberdade tendo que interagir tanto

com os “determinismos” como com os “acasos”. É esse processo que será descrito

a seguir.

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179

4.1

Liberdade e determinismo são termos antagônicos?

É imperioso reconhecer os múltiplos dinamismos da existência humana. A

definição do homem como ser que tem a sua vida condicionada pelas estruturas

biológicas, psicológicas, culturais, econômicas, etc. já é até uma obviedade. Será

que há ainda algo a dizer a respeito desse tema? Aqui há uma sutileza importante.

O fato de reconhecermos os condicionamentos da existência humana ainda não é

tudo o que se deve saber para entender a dinâmica da vivência da liberdade. Aliás,

uma leitura superficial e apressada, nos leva a concluir que as “determinações”

dos condicionamentos aqui listados se opõem à liberdade e até impedem o homem

de ser livre. Visto nesta ótica reducionista, a relação entre liberdade e

“determinismo” não pode ser outra senão de oposição e mútua exclusão.

Se por um lado os múltiplos condicionamentos se sobrepõem à existência

histórica do ser humano, de outro ele não deixa de ser por causa disso um ser que

toma decisões e faz escolhas dentro das circunstâncias que lhe são impostas. Estas

mesmas circunstâncias oferecem mediações para o exercício da liberdade e assim

entramos no ponto sutil da questão que foge às obviedades e às apreciações

apressadas. O modo como os condicionamentos “determinam” a existência

histórica do ser humano não é, (salvo em casos extremos), de tal sorte que elimine

a interatividade entre o ser humano e estes diversos condicionamentos. E é aí que

se estabelece uma perspectiva própria, para que possamos analisar que tipo de

relações podem existir entre o ser humano dotado de livre arbítrio e os múltiplos

“determinismos” que condicionam sua existência. De fato, J. L. Segundo

apresenta considerações bastante interessantes a esse respeito.

4.1.1

Teologia cristã e determinismo

O “paradoxo” desse conflito liberdade X determinismo, em relação à

teologia, é que o Cristianismo precisou se inculturar “no mundo do pensamento

grego”. Daí a contradição. Justo o Cristianismo, (que é uma proposta de vida

pautada nas opções da liberdade), para difundir sua mensagem pelo mundo teve

que interagir com a filosofia grega, usando e recriando alguns de seus conceitos.

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180

Isso obrigou a fé cristã a assumir formas de expressão muito diferentes do

universo cultural bíblico. Assim, com o objetivo de anunciar em novos ambientes

a sua mensagem de liberdade, o Cristianismo “aceitou (...) moldes provenientes

de um mundo apaixonado pelo fixo e o necessário. Ou seja, [ um mundo cultural

helênico que está ] a mil léguas de dar à liberdade e à história que dela surge o

lugar de preeminência que já possuía no Antigo Testamento e continuou tendo no

Novo Testamento.”284.

Juan Luis Segundo recorda que o Pentateuco e os livros proféticos da

Bíblia possuem nítida intenção de construir suas afirmações teológicas, a partir

dos acontecimentos históricos vividos pelo povo de Israel. Afirma que esse

dinamismo histórico está subjacente a todo o movimento e pregação

desenvolvidos por Jesus e seus discípulos. Há aí uma tensão dialética entre o

presente histórico construído no âmbito das opções feitas pela liberdade dos

protagonistas do movimento iniciado por Jesus e o futuro escatológico inerente a

esse movimento. É isso que leva J. L. Segundo a dizer que, no Novo Testamento,

a “escatologia luta com a história”285. Para reforçar ainda mais a centralidade da

liberdade e da história na fé cristã, J. L. Segundo menciona ainda um outro fato.

Enquanto na cultura e na filosofia gregas o “monismo do ser (...) fez da Grécia o

berço da filosofia e das ciências modernas (...) Éfeso e Calcedônia faziam da

história singular de Jesus a base para formar nada menos que o próprio conceito

da Divindade cristã.” 286. E arremata sua argumentação com o seguinte:

“É claro que nem os filósofos gregos nem os teólogos cristãos da época das grandes sínteses medievais negaram o fato da liberdade do homem. A literatura grega usa-o, apesar de que a filosofia grega o relegue a um mundo contingente mais imaginário que real. Este mesmo fato da liberdade é capital para o pensamento bíblico hebraico, pois até o próprio Deus a respeita: não anula os atos do homem que se apartam da lei da natureza. Algumas vezes Deus limita-se a castigá-los. Em outros casos ainda mais expressivos, Deus – por assim dizer – faz o esforço de conseguir dessa mesma liberdade um arrependimento e a conseqüente volta ao caminho da vontade divina (cf. Os 2,6-25). Para negar o fato da liberdade é necessário esperar tempos muito mais recentes. Mas aceitar o fato de que o homem opta [livremente] não significa que se possa dar a isso, tanto em filosofia como em teologia o lugar de destaque que a liberdade merece. Ou dizendo de outro modo, seu pleno sentido.” 287.

284 SEGUNDO, J. L., Que Mundo? Que Homem? Que Deus? Aproximações entre Ciência, Filosofia e Teologia, São Paulo, Paulinas, 1995, p. 153. 285 Ibid., p. 154, nota. 286 Ibid., p. 154. 287 Ibid., p. 154-155.

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181

Deste modo, essa herança filosófica grega deixou suas marcas no

pensamento cristão medieval. As noções de “ordem do ser” e de “ordem da

natureza” pouco a pouco passaram a balizar a reflexão sobre a liberdade.

“(...) é preciso destacar que a filosofia cristã medieval definiu a liberdade como ‘imunidade em relação ao vínculo ( = necessidade ) da lei (immunitas a vinculo legis). Este estranho tipo de imunidade podia – é certo – passar como uma dignidade, mas para isso seria necessário esquecer algo muito importante para o pensamento grego: o fato de que a ‘lei’, num sistema baseado na causalidade, era sinônimo de ordem. A ordem com a qual o próprio Deus, em sua criação, ‘vinculou’ todo o universo ao fim para o qual cada ente chegou à existência.

Em outras palavras, a liberdade para a filosofia medieval constituía-se em algo cuja existência não podendo ser ignorada, no fundo tampouco podia justificar-se. Se o bem estava em acatar a ‘lei natural’, isto é, a ordem colocada por Deus no universo, o que podia ser considerado como razão de ser dessa possibilidade de ‘permanecer’ imune da obrigação de servir a essa ordem e ater-se a ela? A lógica mais simples indicava que o não estar sujeito à lei, nesse campo da causalidade do ser, como no da moral cívica, equivalia ao mal.” 288.

Portanto, notamos a tensão entre essa noção da existência de uma ordem

(ou lei) natural e a pretensão da liberdade humana de ser independente e agir por

vontade própria, o que inclui a possibilidade de questionar essa “ordem”

estabelecida. Se essa noção de ordem natural do universo e da natureza humana é

imediatamente identificada com o bem, gera-se, como conseqüência lógica, que

desobedecer a esta “ordem” equivale a praticar um mal. Parece que não sobra

espaço para a liberdade.

Foi por isso que Nicolás Berdiaeff e Gaston Fessard criticaram Sto. Tomás

de Aquino. Na opinião de Berdiaeff, o sistema escolástico tomista não reserva

lugar para a liberdade. Já Gaston Fessard acusava o tomismo de não ter uma

categoria própria para expressar a história como âmbito próprio da liberdade289.

No final das contas essa tradição filosófica cristã acabou caindo num fixismo e é

isso que J. L. Segundo nos mostra. Com essa concepção de uma ordem definitiva

e previamente dada por Deus, o Cristianismo acabou apreciando mais o

determinismo do que a liberdade. E isso acabou escamoteando um paradoxo:

sendo o Cristianismo, em sua origem, uma religião fundada no valor da liberdade,

288 Ibid., p. 155. 289 Cf. Ibid., 155-156.

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182

o determinismo deveria ser visto como um “grande inimigo da fé cristã”290. Daí a

contradição entre a perspectiva pessoal da existência humana no interior de um

universo em evolução e a idéia de uma ordem natural do universo fixa e imutável,

à qual o ser humano tem que se submeter independentemente de sua própria

vontade.

No entanto, também aqui J. L. Segundo situa a liberdade humana como

uma via intermediária entre extremos. Se, de um lado, essa concepção do universo

como uma estrutura fixa dotada de uma lei imutável se mostra inadequada para

dar conta de uma natureza humana dotada de liberdade, por outro lado existem

também acasos e determinismos que limitam o alcance dessa liberdade. No fim

das contas, a liberdade do ser humano se situa entre muitos condicionamentos que

a cercam. Por isso, devemos notar a dialética que existe entre os

condicionamentos naturais e a capacidade de livre decisão do homem. De um lado

ele é “super-regulador”, ou seja, exerce a capacidade de transformar a natureza, de

traçar estratégias para definir sua forma física e sua saúde mental e mais ainda

para a construção de sua vida moral; mas de outro lado, toda essa ação do homem

no plano da liberdade “é regulada”, é exercida dentro de limitações que são

impostas pela própria natureza e pelo cosmo. Por isso, embora reconheçamos a

existência da liberdade humana, devemos igualmente reconhecer que seu raio de

ação é bastante reduzido pelos condicionamentos físicos e biológicos inerentes à

natureza.

O universo tem suas leis naturais próprias, mas essa “ordem” não se

estrutura contra a liberdade humana. O desenvolvimento evolutivo do cosmo

supõe múltiplas interações entre acasos e determinismos. Se de um lado esse

processo limita a ação livre do ser humano no interior de uma existência histórica,

biológica e psicologicamente “determinada”, por outro lado, oferece

simultaneamente essas mesmas características como um contexto a partir do qual

o ser humano exerce sua liberdade. Esta não é impedida pelas determinações

naturais, mas sim viabilizada por elas.

290 Cf. Ibid., 156.

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183

4.1.2.

Condicionamentos naturais do ser humano

É sabido que o corpo e a mente do ser humano são constituídos de uma

enorme quantidade de componentes, órgãos e reações biológicas. Estes elementos

formam a existência biológica e “determinam” grande parte da constituição física

e psicológica do ser humano. Diante dessa constatação, podemos nos perguntar:

estes determinismos biológicos deixam espaço para o exercício da liberdade? Será

que não impedem o homem de ser “regulador” de sua própria existência mediante

opções realmente livres? Ao responder essa indagação, J. L. Segundo mostra que,

mesmo num dos determinismos mais notórios de todo ser vivo como o “instinto

de sobrevivência”, ocorre um certo exercício de tentativa e verificação de

possíveis erros. É por meio desse exercício que os organismos vivos realizam

“adaptações” e “regulagens” diante do meio em que vivem.

Para sobreviver, todo ser vivo “ensaia hipóteses”. O critério de

permanência de qualquer espécie é a capacidade de “passar viva por esse

ensaio”291. Até uma ameba, de certo modo, pratica esse exercício diante das

situações com que se depara, pois ela está programada para “reagir” diante do

meio. Ocorre que sua programação não possui condições para avaliar cada

situação e decidir com liberdade. Ela reagirá sempre a partir do mesmo código e

vai “testar sempre a mesma hipótese”.

Tal procedimento se repetirá sempre que possível, até que surja uma

determinada situação em que “a hipótese disponível” na ameba se mostre

insuficiente. Nesse caso, se verifica que suas capacidades biológicas se

configuram como uma “hipótese errônea” diante do meio no qual está inserida. E

assim devido ao “erro” de sua hipótese, a ameba não sobrevive àquela situação

determinada.

Em linhas gerais, podemos dizer que se dá o mesmo com o ser humano só

que de um jeito diferente. As determinações biológicas também se manifestam no

ser humano, mas nele estas determinações são submetidas à mente e à reflexão e

isso introduz um dinamismo novo e não redutível às reações biológicas.

291 Ibid., p. 157.

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“(...) o homem aprende a fazer o que a genética não lhe ensina através de hipóteses que submete à prova. E é aí onde elimina o erro. A única coisa que mudou – mas que muda tudo – é o lugar onde a prova se realiza. Antes acontecia no próprio corpo da ameba, em seu centro vital. Agora os problemas desafiam primeiro a mente. E as hipóteses são escolhidas deliberando sobre elas com a mente.”292.

Isso significa que mesmo reconhecendo a infinidade de reações bio-

químicas que ocorrem no corpo humano à revelia do consentimento racional, há

“um espaço próprio” no qual são tomadas decisões do homem a respeito desse

mesmo corpo que o constitui. O ser humano pode “mudar de hipótese” e assim

corrigir o erro, por meio de uma “aprendizagem mental”. Nota-se, portanto, que o

ser humano é movido não apenas pelo instinto de sobrevivência, mas também

pelo desejo de viver e mais ainda, pelo desejo de viver uma vida que valha a pena,

num mundo que faça sentido. Admite-se, portanto, a existência de determinismos

biológicos no ser humano, mas eles se articulam com os dinamismos próprios da

liberdade e não há porque criar um antagonismo entre estes dois tipos de

dinamismos constitutivos da própria natureza humana.

Por outro lado, a consideração que se deve fazer acerca desses confrontos

entre determinismo e liberdade não deve acabar aqui nestas breves palavras sobre

os condicionamentos provenientes da biologia. O influxo filosófico do

pensamento determinista e da concepção fixista do universo foi muito amplo,

chegando ao disparate de atingir também as “ciências ditas humanas”. Tal aspecto

deve, portanto, ser submetido também a uma apreciação cuidadosa, a fim de se

verificar a existência de outros condicionamentos que atuam na configuração da

liberdade humana.

4.1.3.

A formação social do homem seria um determinismo antropológico?

O avanço do conhecimento científico deveu-se em grande parte à

substituição progressiva de “conceitos universais” por “medições concretas cada

vez mais precisas”293. Por meio deste expediente a ciência conseguiu criar

sistemas para verificar hipóteses. Quanto mais se afastaram do humano, mais as

292 Ibid., p. 158. 293 Ibid., p. 159.

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185

ciências se aperfeiçoaram na verificação objetiva. Por isso, a precisão e a

objetividade são muito maiores nas ciências da natureza do que nas ciências do

espírito. Com isso gerou-se a cultura de que a ciência seria um dia capaz de

explicar tudo, todo e qualquer fenômeno ocorrido no mundo da natureza e em

especial no ser humano. De acordo com esta mentalidade, bastaria dividir cada

objeto de estudo em suas partes constitutivas, para assim se comprovar o modo

como as coisas “funcionam”. O universo e também o homem são vistos por este

paradigma como “máquinas” compostas de partes e engrenagens. Uma vez que

todos os componentes dessas “máquinas” fossem pesquisados, nada mais haveria

a explicar. Nada de novo poderia ser criado. Tudo no universo seria regido por

causas científicas. Novamente não sobra espaço para uma autêntica liberdade.

Esta mentalidade foi adotada também na análise das atividades humanas como a

economia e a política. Marx pensava que o modo de produção determinava as

relações humanas.

“Neste ponto, Marx, apesar de todas as suas críticas, seguia o espírito

determinista – cientista – de sua época. Certamente, também se propôs determinar o caminho científico para o socialismo e, além dele, até o comunismo”294.

Para Marx as forças produtivas e os conflitos sociais que moviam a

história tinham uma “determinação” com um nível de certeza semelhante aquele

encontrado nas leis da natureza. E isso é um sinal de que no século em que Marx

vivia, era comum pensar que havia também um determinismo nos fatos da vida

social, mentalidade esta derivada das influências da visão mecanicista e

determinista oriunda das ciências especialmente da física. Ainda assim, o próprio

Marx sabia que mesmo com essas “determinações” o ser humano, pela práxis,

podia transformar a sociedade e nisso se reconhece alguma margem de

liberdade295.

No entanto, é interessante notar que o mesmo Marx, afirmou que “grandes

acontecimentos históricos como uma revolução proletária, deviam acontecer nos

países capitalistas mais desenvolvidos, porque ‘a produção capitalista cria, com a

294 Ibid., p. 161. 295 Não fosse assim, que sentido teria o apelo feito por Marx no Manifesto Comunista: “Proletários do mundo inteiro uni-vos” ? citado em ibid.

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força inexorável de um processo da natureza, sua própria negação’.”296. Tais

palavras revelam mesmo a presença de um certo determinismo histórico no

pensamento e na obra de Karl Marx, recebido como herança cultural do

cientificismo reinante nos séculos XIX e XX, que fez com que se acreditasse que

até mesmo as relações humanas poderiam ser analisadas segundo critérios

deterministas.

Levada ao extremo, essa perspectiva acabaria se configurando como um

determinismo antropológico, como se os indivíduos fossem mero produto da

dinâmica da sociedade sem ter um espaço para a liberdade individual. No entanto,

uma vez mais, Juan Luis Segundo se mostra convencido de que o melhor a fazer é

considerar o ser humano formado dentro de dualidades. No que tange à produção

social da vida humana, há sim múltiplos determinismos (econômicos, políticos,

etc.), mas os indivíduos também exercem livremente suas ações pessoais para

formar a sociedade. Aliás, indivíduo e sociedade se afetam mutuamente e, neste

sentido, se resgata uma vez mais (agora no plano social) a complementaridade

entre “determinismos” e liberdade.

4.1.4.

A lida “psicológica” com instintos e paixões

Neste ponto J. L. Segundo quer explicitar os apegos, paixões, desejos que

existem e não raro provocam um turbilhão de sentimentos no interior do ser

humano. No entanto, os estudiosos do tema apontam para a necessidade de o ser

humano manter-se autônomo diante desses impulsos, para tentar ordená-los dentro

de si e não se deixar dominar por eles. Aqui, o interessante é que J. L. Segundo

não recorre exclusivamente a Freud297, enquanto pai da psicanálise. Ao abordar

esse tema, J. L. Segundo recua mais atrás no tempo para se fundamentar em

Tomás de Aquino.

296 SEGUNDO, J. L., Que mundo? Que Homem? Que Deus?..., p. 161, citando K. Marx, Obras Escogidas, t. 1, Montevideo, Ed. pueblos unidos, p. 447. A indicação em letra itálica é do próprio J. L. Segundo. 297 No entanto, isso não significa que J. L. Segundo despreze a rica contribuição de Freud. Há comentários segundianos a algumas dessas contribuições de Freud, por exemplo, em Teologia Aberta para o Leigo Adulto, v. 2: Graça e Condição Humana, São Paulo, Loyola, 1977, p. 40-42; e também Teologia Aberta para o Leigo Adulto, v. 5: Evolução e Culpa , São Paulo, Loyola, 1977, p. 18-38.

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Apesar de ter apresentado anteriormente a crítica feita à teologia tomista

(que na opinião de alguns não deu a devida atenção à liberdade e à historicidade

da existência humana)298, J. L. Segundo, ao abordar a relação do ser humano com

seus afetos, vai matizar um pouco essa crítica. Segundo ele, São Tomás admite a

existência das ações livres do ser humano, especialmente quando se trata dessa

lida com os próprios sentimentos que hoje, depois de Freud, caracterizaríamos

como “psicológica”.

No entender de J. L. Segundo, o pensamento de Tomás de Aquino neste

ponto, segue a perspectiva iniciada bem antes com Aristóteles, ao considerar “a

dificuldade de a liberdade vencer o determinismo das paixões”299. Assim, a

teologia tomista compreendia essas “paixões” como tipos de forças ontológicas,

“quase físicas mas dotadas de um enorme poder”300. Pode-se notar, já na própria

caracterização das paixões, como se coloca uma tensão das mesmas com a

vontade racional da mente humana, que deverá refletir sobre essas paixões, tomar

consciência delas e direcioná-las.

“Em palavras mais simples, Santo Tomás se pergunta que domínio

poderá ter a razão – através da liberdade – sobre as paixões. E sua resposta tem (...) uma inesperada atualidade. Responde que se trata de um domínio político. E acrescenta que usa esse adjetivo de um modo figurado, pensando no domínio que exerce um soberano que se faz obedecer pela multidão de seus súditos. E isso, apesar de que eles, sendo livres por natureza e muito poderosos por seu número, podem a cada momento dizer não às suas ordens.”301.

Neste sentido, é impressionante a semelhança entre o modo como São

Tomás pensa lidar com instintos, apetites e paixões e o princípio do “dividir para

governar” postulado por Maquiavel. Ou seja, se todos os súditos atuassem juntos e

ao mesmo tempo contra o rei, este não teria como governar. Daí a necessidade de

fazer com que os interesses particulares se diluam na sociedade, numa espécie de

mútua anulação pelas múltiplas direções que as vontades individuais podem

assumir. Assim, enquanto os súditos voltam suas energias uns com os outros e uns

contra os outros, o rei tem melhores condições para se impor e governar. São

Tomás postula algo semelhante na relação do ser humano com seus apetites e

paixões. O único modo de o ser humano, com sua frágil liberdade pessoal, lidar 298 Cf. SEGUNDO, J. L., Que mundo? Que Homem? Que Deus?..., p. 155-156. 299 Ibid., p. 163. 300 Ibid., p. 163-164. 301 Ibid., p. 164, citando aqui a Suma Teológica, 1-2, Art. 2, Q. 9 ad 3.

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com tantos e tamanhos instintos e sentimentos interiores, é poder conviver com

eles num equilíbrio dinâmico, em que as forças se contraponham entre si,

diminuindo seu poder destrutivo e, assim, evitando anular o comando central

exercido pela razão mediante a vontade pessoal.

J. L. Segundo recorre a essa reflexão para mostrar que assim como há

conflitos do ser humano com a sociedade; assim como há tensões do indivíduo

com os dinamismos biológicos em seu próprio corpo; existe também, de modo

análogo, um denso dinamismo dos afetos e sentimentos que habitam a mente

humana. Também aí se verifica um conjunto de “determinismos” de ordem

psicológica, que definirão a personalidade do ser humano. E ele precisa aprender a

lidar com esses dinamismos.

O ser humano não se constitui por fora desses dinamismos, mas

exatamente na lida com eles, no exercício permanente da articulação entre os

diversos instintos e sentimentos, de tal modo que consiga exercer “algum

domínio” sobre eles. É assim que o ser humano vai abrindo espaço para a

liberdade “por entre” os diversos sentimentos que interiormente o habitam. Há,

neste próprio dinamismo, a capacidade do ser humano refletir sobre seus afetos,

reconhecendo seus determinismos, mas também integrando-os na existência

pessoal que ele próprio constrói em sua liberdade.

4.2.

Indeterminismos, acasos e articulação entre os diferentes

determinismos na formação da liberdade

Os dados fornecidos até aqui, já são suficientes para mostrar que o ser

humano é constituído por uma grande multiplicidade de dinamismos. Nesta

mescla de elementos químicos, biológicos, psicológicos, sociais, culturais,

políticos, etc., surgem as situações e processos definidores do ser do homem. Já

foi dito antes, que as “determinações” presentes em cada um desses dinamismos

expressam apenas uma parte do processo constitutivo da existência humana. Há,

no bojo de todo esse processo, os direcionamentos provenientes das decisões que

o ser humano toma no âmbito de sua liberdade condicionada, porém real.

No entanto, é necessário reconhecer que tanto os determinismos como as

opções livres interagem com outros elementos que surgem de modo imprevisto. J.

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L. Segundo afirma que o desenvolvimento humano é marcado não só por

determinismos, mas também por acontecimentos surpreendentes, qualificados

como “indeterminismos” e “acasos”.

J. L. Segundo menciona o exemplo de Júlio César que devia decidir se

cruzava ou não o Rubicão para ampliar seu poder com a conquista da Gália.

Conta-se que foi nesse contexto que teria sido dita a famosa frase: “Alea jacta

est” (a sorte foi lançada)302. Ao mencionar esse episódio histórico, J. L. Segundo

mostra que um ato da liberdade sempre traz consigo algo de imprevisível em dois

sentidos. De um lado, porque por mais favoráveis que sejam as condições de um

determinado projeto humano, não há como ter previamente garantias de seu êxito.

De outro lado, porque uma decisão tomada no âmbito da liberdade não é

conclusiva e totalitária. Não fecha a história, não impede que surjam novos atos

livres, conseqüências e desdobramentos. A decisão tomada no ato da vontade

suscitará novos ciclos de ações e reações, que poderão ser tanto favoráveis, como

contrárias ao sentido pretendido inicialmente. O resultado final desses ciclos só é

sabido quando o conjunto do processo termina. Cada opção feita pela liberdade

enseja a busca de um resultado que é incerto, até que se saiba, a posteriori , o que

aconteceu. Os projetos humanos sempre estão sujeitos a “acasos” e “imprevistos”

que participarão também da definição do resultado final.

É neste sentido que se diz que a liberdade é em parte fruto de acasos ou

indeterminismos, que correspondem às situações novas, aos elementos

imprevistos decorrentes do exercício da própria liberdade, os quais condicionarão

como “novos determinismos” as futuras opções e condutas do ser humano. Isto se

aplica não somente à práxis histórica, mas também à lida psicológica do homem

com seus desejos, aos posicionamentos tomados diante dos determinismos

biológicos, sociais, etc.

“(...) a liberdade ocupa, por assim dizer, os lugares que a colisão de dois ou vários determinismos lhe deixa livres. Se o determinismo pudesse ser reduzido a uma só força a liberdade perderia a batalha. Mas, na medida em que a evolução avança, não apenas aumenta a diversidade dos elementos com que se deve contar; mas cada ‘espécie’ carrega seu feixe de determinismos. E no homem, longe de acabar com a liberdade, constata-se que esta é uma multiplicadora de determinismos. Porque sabe que, na confluência de vários

302 Cf. Ibid., p. 168.

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[determinismos], se produz o campo de indecisão, do não predizível, a possibilidade de decidir e construir novas sínteses a partir da diversidade.”303.

Por estas palavras, se mostra como os diversos dinamismos se unem,

abrindo um leque de variadas alternativas para a configuração da liberdade.

Mesmo quando a livre vontade age, o ser humano não fica imune ao acaso e à

imprevisibilidade. E é isso o que torna a liberdade humana uma aventura rica,

complexa, intrigante, arriscada e ao mesmo tempo fascinante.

4.2.1.

Determinismo – Indeterminismo e evolução

A partir dos dados já fornecidos nos itens anteriores, é possível mostrar de

modo explícito o que já estava implícito em toda a argumentação precedente. Ao

discorrer sobre os diversos tipos de determinismo que condicionam a vida

humana, J. L. Segundo mostrou que cada um deles expressa uma dimensão da

vida. Além disso, ficou demonstrado que indeterminismos ou acasos também

atuam na existência histórica do ser humano. Portanto, cabe agora tirar a

conseqüência que deriva desse processo.

Decorre de tudo o que foi dito, que a existência do ser humano é fruto de

um processo longo, lento, complexo e multifacetado. A vida do ser humano não

pode ser definida por um único dinamismo tomado isoladamente. Na verdade, ela

é o resultado das variadas articulações entre estes diversos dinamismos que a

constituem. Isso implica dizer que o ser humano se desenvolve, não apenas

fisicamente, biologicamente, psicologicamente. Também cresce em auto-

consciência, em formação moral, em interatividade social e política. Numa

palavra, a vida humana “evolui”.

Nas múltiplas interações entre os determinismos e indeterminismos

presentes na constituição da vida humana, há progressos. Há passagens de formas

mais simples de existência, para formas mais complexas. Não será justamente isso

que é amadurecer? Tornar-se pessoa não é passar da heteronomia para a

autonomia, mediante um penoso processo de aprendizagem? Não é isso que

caracteriza a passagem da infância à maturidade? Da frágil constituição física do

303 Ibid., p. 167-168.

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bebê recém-nascido a uma configuração física e biológica mais desenvolvida,

capaz de deixar o ser humano mais preparado para a luta pela sobrevivência e para

a interação com a sociedade mediante decisões livres?

Dá para notar, portanto, que no desenvolvimento do ser humano há uma

linha ascendente, um dinamismo evolutivo. É como um grande processo que é

composto de múltiplos processos menores articulados entre si. E esta evolução se

situa, como já foi indicado anteriormente, no espaço intermediário “entre” o

determinismo e o acaso. Na verdade, determinação e acaso se mesclam e formam

um processo que evita as posições extremas. Não cai nem no determinismo

absoluto e nem no indeterminismo absoluto.

Há nessa evolução humana um telos, uma meta possível de ser atingida de

acordo com os desdobramentos do próprio processo evolutivo. Dependendo da

forma como for configurada a articulação entre os diversos dinamismos, o ser

humano poderá adquirir um desenvolvimento mais amplo ou menos amplo; mais

simples ou mais complexo; mas em todo caso, será fruto de uma complexidade

evolutiva própria da interação entre os diversos dinamismos. Uma complexidade

evolutiva que se desdobra numa linha ascendente. É isso que faz J. L. Segundo

resgatar o pensamento de Teilhard de Chardin, a fim de mostrar que o dinamismo

evolutivo presente no cosmo atua, mesmo que com características peculiares,

também no ser humano304.

“Assim, não é estranho que a primeira parte de sua obra clássica ‘O Fenômeno Humano’ esteja consagrada à matéria inerte. Ou seja, ao estudo da energia - e de sua evolução no domínio físico. (...) Teilhard desloca ao primordial o tipo de energia que, mais tarde, se tornará consciência no reino animal e liberdade no plano humano”305.

304 É importante notar que o objetivo prioritário de J. L. Segundo não é discutir aqui as minúcias das diferentes concepções acerca da evolução. É sabido que muitos outros autores puderam se debruçar sobre o assunto com dados e perspectivas diferentes da perspectiva adotada por Chardin. A questão de saber se há ou não uma finalidade ou um telos formando um sentido ou uma orientação na dinâmica da evolução, é uma questão sobre a qual não há consenso na comunidade científica. Creio que J. L. Segundo não o ignora. Apenas se vale aqui de alguns elementos apresentados pelo célebre padre-cientista francês, que são úteis para mostrar os pontos da reflexão sobre a evolução que ele J. L. Segundo deseja fazer. Para maiores informações a respeito do debate científico sobre a evolução, ver CRUSAFONT, M., MELÉNDEZ, B. e AGUIRRE, E. La Evolución, Madri, 1966; GANOCZY, A. Doctrina de la Creación, Barcelona, 1986. 305 SEGUNDO, J. L., Que mundo? Que Homem? Que Deus?..., p. 174.

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J. L. Segundo continua seu raciocínio afirmando que a argumentação de

Teilhard de Chardin, nesse aspecto, concorda com a de K. Popper acerca da

evolução da consciência.

“Popper (...) falando da evolução da consciência, diz que esta ‘cresce a partir de começos muito pequenos; talvez sua primeira forma seja um vago sentimento de irritação que o organismo experimenta quando tem um problema para resolver, como o de afastar-se de uma substância irritante’ ”306.

Com estas referências, J. L. Segundo nos indica que o universo se

desenvolveu progressivamente numa linha evolutiva que permitiu o surgimento de

diversas formas de consciência, de acordo com cada espécie e, de um modo todo

especial, a consciência peculiar que existe na espécie humana. A perspectiva da

abordagem teilhardiana nos aponta para uma dinâmica na qual, a partir das muitas

formas de energia presentes no universo, surge um tipo especial de energia que

veio desembocar na consciência animal e na singularidade da consciência

humana, racional, capacitada para o exercício de uma autêntica liberdade. A

perspectiva de abordagem desenvolvida por K. Popper indica a existência de

certos dinamismos da evolução, os quais, depois de diversos e sucessivos

desenvolvimentos, resultam na formação de sistemas de consciência. Neste

sentido, a própria natureza (e dentro dela a gênese da espécie humana) agem como

uma “mente precursora”307, que desdobrando diversos dinamismos, produz

formas de consciência mais complexas a partir de formas de consciência mais

simples.

Ao unir as duas abordagens, J. L. Segundo concebe o surgimento do ser

humano dotado de liberdade, no interior da evolução cósmica. O dinamismo

pessoal (o agir livre e consciente) próprio dos seres humanos vai, pouco a pouco,

surgindo de dentro mesmo dos dinamismos naturais da evolução do cosmos.

Assim, o mesmo processo de desenvolvimento (que integra acaso e múltiplos

determinismos) transcorreu numa linha evolutiva adequada para gerar e manter a

liberdade do ser humano.

306 Ibid., p. 175, citando K. Popper, Objective Knowledge. An Evolutionary Approach, Oxford, Clarendon Press, 1981, p. 250. 307 SEGUNDO, J. L. , Que mundo? Que Homem? Que Deus?..., p.175.

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4.2.2.

Impacto da reflexão sobre o acaso na teologia

Neste ponto, J. L. Segundo começa mostrando que o Concílio Vaticano I

formulou uma imagem de Deus também influenciada pela visão fixista e pelos

conceitos abstratos próprios da filosofia grega. Partia-se, então, da definição da

“essência”, ou da “natureza divina”, enquanto “ser infinito”, para depois expor

como decorrência lógica, os atributos divinos correspondentes, que

caracterizavam Deus como ser “imutável”, “infinito”, que se basta a si mesmo;

um Deus que, sendo perfeito e eterno, possui uma “real e essencial felicidade em

si e de si” (D. 1782)308 .

Daí deriva a noção de “providência divina” formulada pelo Concílio

Vaticano I, a qual em linhas gerais diz o seguinte: Com sua providência divina,

Deus “governa” e “conserva” tudo o que Ele criou. “Porque tudo está patente

diante de seus olhos, até o que irá acontecer pela ação livre das criaturas”309.

Essa concepção de que a providência divina tudo governa e tudo sabe previamente

coloca alguns problemas para a reflexão teológica. A conseqüência de tal

concepção é que tudo, no âmbito das causas naturais e mesmo no âmbito da ação

humana, está submetido ao controle direto de Deus. Se isso é mesmo assim, fica a

dúvida: ainda resta algum espaço para a autonomia do mundo criado com as leis

próprias da natureza? Sobra ainda algum espaço para ações e decisões humanas

realizadas com autêntica liberdade?

Para J. L. Segundo, a concepção de que a providência divina corresponde

ao controle direto de Deus sobre o mundo criado e sobre o resultado final da ação

dos homens dentro desse mundo, coloca em xeque o espaço próprio da liberdade

humana. É esse questionamento que vai levar J. L. Segundo a afirmar que tal

concepção “equivale a tirar da liberdade o seu caráter decisivo”310. Pois se Deus

previamente já sabe tudo, decide tudo e controla tudo, então não existe nada sob

domínio do homem. Num mundo assim, “a liberdade do homem não consegue

inscrever qualquer coisa de definitivo e próprio na realidade.”311.

308 Ibid., p. 176. 309 Ibid., p. 177. 310 Ibid., p. 178. 311 Ibid.

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Nota-se aqui a dificuldade que a teologia teve para enfocar

satisfatoriamente e de modo equilibrado a relação da providência divina com a

livre iniciativa do ser humano. J. L. Segundo é de opinião de que algumas

seqüelas dessa dificuldade se fazem sentir até nos tempos atuais, como, por

exemplo, no tema da relação entre graça e liberdade312. J. L. Segundo considera

que a teologia precisa levar a sério, o dado de que o homem é dotado de uma

liberdade real, com alcance real, que introduz “novidades” no mundo criado e na

relação com Deus. Se extrairmos todas as conseqüências desse dado, tudo muda.

Deus respeita essa liberdade humana e a solicita na autonomia que lhe é própria,

numa autêntica relação eu-tu.

As conseqüências disso são muito significativas e revelam um Deus que

não diminui sua onipotência por conceder ao homem um espaço aberto, que

pertença definitivamente ao domínio da liberdade humana. Antes ao contrário.

Deus é plenamente poderoso, mas seu poder é exercido no amor. Então,

justamente por isso , é que Deus respeita infinitamente o espaço próprio das ações

e decisões do ser humano. Se assim é, então a noção de providencia divina precisa

ser repensada.

Será que a ação do Deus transcendente e criador no interior do mundo

criado, precisa necessariamente revogar ou suspender temporariamente as leis

naturais que regem esse mesmo mundo? Será que para ser “providente” Deus

precisa anular a liberdade e a responsabilidade humanas, sabendo tudo

previamente, exercendo seu domínio até mesmo na ação do ser humano? Um

domínio divino neste nível, não faz com que a ação humana deixe de ser

autenticamente livre? “Será contra a certeza da providência divina o fato de que

Deus quis não saber de antemão o resultado das livres decisões de suas

criaturas?”313

A conclusão de J. L. Segundo, é a de que Deus não é menos providente por

respeitar a liberdade humana. Sua providência se manifesta realmente como sinal

do Reino na vida dos homens. Mas isso se dá de tal modo, que fica preservada a

capacidade de iniciativa do ser humano, no âmbito de uma liberdade real não

manipulada por Deus.

312 A este respeito ver SEGUNDO, J. L. Teologia Aberta para o Leigo Adulto, v. 2: Graça e Condição Humana, São Paulo, Loyola, 1977. 313 SEGUNDO, J. L. Que mundo? Que Homem? Que Deus?..., p. 179.

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195

4.2.3.

Os “acasos” e o “telos” presentes na evolução podem ser vistos

como sinais providenciais?

A partir dessa reflexão sobre a providência divina, J. L. Segundo consegue

apontar para a legitimidade da aceitação do “acaso” na criação. Com efeito, o

autor considera legítimo afirmar que há acasos no desenvolvimento cósmico e no

desenvolvimento humano, desde que não seja atribuído ao acaso um valor

absoluto314. Aqui neste ponto, há que se ter presente uma adequada concepção

acerca da evolução e sobre o papel do acaso dentro do dinamismo evolutivo do

universo. G. Bateson e T. de Chardin pensam a evolução de um modo oposto ao

modo como J. Monod a concebe. Este último absolutiza a ação do acaso na

evolução biológica. Dessa forma, Monod fecha a porta para o sentido, a

finalidade, as “necessidades” na evolução. Para ele, o dinamismo evolutivo

produz as estruturas genéticas constitutivas dos seres vivos, a partir de situações

imprevistas, sem nenhum tipo de orientação prévia. De acordo com essa

perspectiva, o universo assume um determinado rumo “sem ninguém que lhe

guie”.

Já J. L. Segundo (baseando-se em Bateson e Chardin) entende que o telos,

a finalidade e a necessidade fazem parte do dinamismo evolutivo do universo. O

acaso absoluto não forma estruturas. Para poder agir, “o acaso precisa surgir de

algum lugar”. Por isso, G. Bateson vai afirmar (em sentido inverso ao defendido

por Monod) que a “ordem precede o acaso”315. Isso vale tanto na evolução

cósmica, como no desenvolvimento humano.

O homem é que, com sua liberdade, usa os acasos a seu favor. A natureza,

em certo sentido, faz o mesmo para compor a ordem do universo num processo

evolutivo e dinâmico. Há uma “razão de ser” nos acasos do universo. O cosmo e o

ser humano não existiriam, se os acasos não se unissem para configurá-los como

são. Ou seja, o acaso opera como uma loteria, uma roleta, mas não é isento de

sentido e finalidade. Essa ação aleatória e surpreendente do acaso, se dá a partir de

elementos fornecidos ao universo dentro de uma certa lógica. Para formar vida, o

314 Daí o sub-título “O acaso a serviço da criação” em SEGUNDO, J. L., Que Mundo? Que Homem? Que Deus?... p. 178. 315 Ibid., p. 180, citando, Gregory Bateson, Steps to an Ecology of Mind, New York, Ballantine Books, 1974, p. 3-8.

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acaso precisa “ser captado”; precisa ser integrado num “sentido”, num “projeto”.

E é a evolução em movimento no universo que integra o acaso nesse projeto.

Pensando em termos humanos, os acasos da evolução formarão a matéria prima

que será usada nos projetos construídos no âmbito da liberdade criativa do ser

humano316.

Isto nos leva, de modo muito legítimo, a questionar se essa “sucessão de

acasos” que formam estruturas dotadas de finalidade e sentido deve mesmo ser

encarada como uma absolutização do acaso. Será que estas “sucessões de acasos”

que se integram para formar o cosmo e o ser humano não estariam expressando ao

contrário um “telos”, uma meta, uma finalidade? Se levarmos este

questionamento a sério, com todas as suas implicações, estaremos novamente nos

aproximando do debate entre ciência e teologia acerca da possibilidade de uma

articulação entre a evolução (objeto de estudo das diversas ciências) e a criação

(objeto de estudo da teologia).

Aqui, J. L. Segundo recorda que o debate sobre a evolução foi (e é ainda)

bastante polêmico, devido a muitos fatores. Entre eles, um dos mais importantes

foi o antagonismo gerado entre a noção cristã de um universo criado por Deus e a

concepção de evolução que nos foi legada a partir da teoria da evolução das

espécies de Darwin. Esta discussão seguiu por caminhos que acabaram criando

um antagonismo desnecessário entre criação e evolução. Charles Darwin e muitos

adeptos de sua teoria usaram justamente a noção de “acaso” como argumento para

provar que Deus não participou da criação, do universo, da fauna e da flora.

Na perspectiva darwinista, a evolução biológica das espécies ocorre pela

conjunção de “dois acasos”. O primeiro gera alguma anomalia genética num dado

momento do desenvolvimento de uma determinada espécie, dando origem a uma

espécie variante. O segundo provoca mudanças no ambiente, que vão favorecer a

sobrevivência da nova espécie surgida e, em contrapartida, vão dificultar a

sobrevivência da espécie que lhe deu origem, fazendo com que esta corra o risco

de entrar em extinção. Desse modo, “sem qualquer intervenção”, a natureza faz a

passagem de uma espécie “menos apta” para outra “mais apta” a sobreviver nas

novas circunstâncias ambientais que foram criadas317.

316 Cf. SEGUNDO, J. L. Que Mundo? Que Homem? Que Deus?..., p. 180. 317 Cf. Ibid., p. 181.

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A esse respeito, J. L. Segundo faz a crítica às perspectivas darwinistas e

neo-darwinistas, mostrando que as mutações ocorridas nas espécies não

ocorreriam “se já não existisse uma finalidade (...) nos códigos genéticos que não

pode provir do acaso”318. Com isso, não se nega o surgimento dos eventos

imponderáveis e surpreendentes (já mencionados anteriormente sob as

denominações de “indeterminismo” e “acaso”). Apenas se acena para o fato de

que, tendo em vista um plano maior do desenvolvimento humano e cósmico, esses

dinamismos ocorrem de modo que sejam integrados numa evolução, que em

certos momentos faz cessar o acaso para fazer emergir um telos, um sentido no

universo considerado em seu conjunto. Deste modo, as mudanças genéticas e

ambientais que configuram a evolução das espécies, atestam a formação de um

novo padrão, de uma nova configuração do mesmo universo em evolução. É isso

que leva J. L. Segundo a afirmar que, neste ponto, cessa o acaso dando início à

ordem e à necessidade319.

De outro lado, é interessante notar que, ao buscar uma concepção da

“evolução”, que não seja antagônica à fé cristã na ação amorosa de Deus durante a

“criação”, J. L. Segundo recupera o conceito de “mecanismo homeostático”320.

Com ele, Segundo constrói uma percepção da evolução (distinta da concepção

darwinista), justamente porque não fica dependente do acaso. A visão segundiana

sobre a evolução não é unilateral justamente por não absolutizar o acaso.

Assim, J. L. Segundo concebe a evolução num dinamismo, em que os

mecanismos homeostáticos presentes na natureza atuam como um “maquinista”,

que puxa os demais vagões atrás de si para a frente, levando toda locomotiva

adiante321. Estes mecanismos, articulando dinamismos de degradação de energia

(entropia) com dinamismos de concentração de energia em formas

qualitativamente superiores (nega-entropia), vão criar as “condições necessárias”,

para o surgimento de seres capazes de “sínteses mais complexas e ricas de

energia”322. A partir desse ponto de vista, podemos considerar que a evolução

segue uma “orientação” presente na própria natureza. Há um sentido, uma meta

que vai se configurando, até mesmo na evolução biológica das espécies, abrindo

318 Ibid. 319 Cf. Ibid. 320 Cf. as informações sobre este conceito apresentadas no capítulo anterior. 321 Cf. SEGUNDO, J. L. Que Mundo? Que Homem? Que Deus?..., p. 182. 322 Ibid.

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caminho para seres dotados de uma maior variedade de qualidades para lidar com

situações novas e diversificadas que surgem da própria evolução.

Assim, “quem contempla a chamada ‘árvore da evolução’, percebe claramente que há como que uma atração que leva os ‘ramos’ até sua máxima diferenciação compatível com o ambiente.”323

São estas características da evolução natural, que levam J. L. Segundo a

crer que a natureza não assiste passivamente a evolução acontecer. Ao contrário,

ela parece indicar “um caminho”. Ela age como uma “mente”, como um

“bricoleur”, ou seja, como um “artesão amador”324, que a partir da imensa

variedade de elementos disponíveis no universo, vai “fazendo escolhas”,

“selecionando os materiais” que serão associados para produzir as estruturas

formadoras do universo, os organismos vivos, as espécies animais e vegetais, os

ecossistemas, as diversas galáxias, buracos negros, etc.

Por outro lado, [mantendo-nos na perspectiva (já apontada aqui) de

integrar a evolução cósmica à evolução humana], podemos considerar que o ser

humano é, ele próprio, um “bricoleur”. Ele se desenvolve criando cultura,

fazendo escolhas e intervindo no meio ambiente natural e no meio ambiente social

em que vive, construindo relações humanas, estruturas sociais, etc. Assim, de

modo análogo, tanto a natureza como o ser humano são ativos no processo

evolutivo. Levando em conta diversos “acasos”, ambos agem de acordo com

determinados “sentidos”, “finalidades”, ou “metas” para selecionar dentre estes

acasos, quais serão os elementos constitutivos de cada processo criativo. É assim

que são construídos o “universo cósmico” e o “universo humano”. É neste sentido

que J. L. Segundo faz a seguinte reflexão.

“Pois bem, uma vez que falamos a partir da teologia, teríamos que dizer que essa concepção evolutiva atenta contra a providência de Deus? Se Deus queria fazer [do ser humano] um pequeno criador que lhe correspondesse a partir do mundo, utilizando a criação incompleta, como poderia dirigir melhor as coisas, senão usando assim o acaso? O acaso ‘fonte de toda novidade’, dizia Monod num sentido absoluto e sem lógica

323 Ibid. 324 Ibid., p. 182-183. citando aqui, o artigo de F. Jacob “Evolution and Tinkering”, publicado em Vários Autores, Biological Foundations and Human Nature.

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suficiente. O acaso, ‘fonte de toda novidade para a liberdade humana’, podemos dizer diante do gigantesco e lentíssimo processo evolutivo.”325.

Portanto, a evolução, (com seus determinismos misturados com seus

acasos), não é incompatível com a compreensão cristã da criação de um universo

dotado de sentido. Se a natureza (e também o ser humano) constroem universos,

fazendo “bricolagens” de elementos surgidos do acaso, isso não impede que

possamos formular uma interpretação teológica a respeito desse processo. Uma

interpretação que percebe os sinais da “criatividade”, presentes nos diversos

dinamismos evolutivos que se articulam entre si, para fazerem o ser humano e o

universo serem o que são hoje.

Desse ponto de vista, é perfeitamente legítimo à fé cristã ressaltar na

“evolução” os sinais de uma autêntica “criação”. Não há nada na abordagem

científica sobre o desenvolvimento do universo e do ser humano que, pelos

próprios resultados da pesquisa científica, exija a rejeição da idéia de que Deus

possa atuar transcendentalmente na criação/evolução do universo. Respeitados os

métodos, as diferentes perspectivas de abordagem e os limites próprios da ciência

e da teologia, é possível ser ao mesmo tempo cientista e cristão. Não é necessário

renunciar à fé cristã para ser cientista; assim como não é necessário renunciar aos

dados fornecidos pelas ciências para ser cristão.

Para se chegar a uma boa síntese, basta que tenhamos uma adequada

compreensão, tanto da perspectiva própria da fé cristã, como também uma correta

compreensão acerca dos alcances e limites próprios da metodologia científica.

Neste sentido, é que se coloca a reflexão feita por J. L. Segundo. Ele visa fornecer

os elementos para essa “compreensão adequada” que evite antinomias

desnecessárias. Por isso, se aceitarmos as condições básicas sugeridas por seus

argumentos, veremos que não há contradição entre criação e evolução.

Os próprios dinamismos evolutivos presentes no universo podem,

teologicamente, ser concebidos como sinais da providência divina. A teologia

dispõe de argumentos sólidos que legitimam essa apreciação, sem desprezar nem

violentar os rigores da análise científica sobre o desenvolvimento do cosmo e do

ser humano.

325 SEGUNDO, J. L., Que Mundo? Que Homem? Que Deus?..., p. 183-184, os destaques em letra itálica são do próprio autor.

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200

A questão que se coloca é que tipo de providência será essa, que consegue

agir no universo sem violar a autonomia do homem e do mundo em evolução. A

noção de providência só poderá ser aceitável sem contradições, se for concebida

de modo a respeitar tanto a liberdade de Deus como também a liberdade do

homem. É neste sentido que J. L. Segundo concebe os “acasos” da evolução como

sinais desse tipo de providência. Os dinamismos físicos, químicos e biológicos

ocorrem segundo suas leis naturais próprias. Não se confundem com a ação do

próprio Deus. Este não age como um ente categorial. O Criador não precisa

deixar de ser o que é para agir ao nível das criaturas. Mas, agindo

transcendentalmente, consegue dinamizar a criação para que nela ocorram os

processos evolutivos com suas leis próprias, ou seja, respeitando totalmente as

reações e eventos surgidos na natureza em evolução. Portanto, se é legítimo que

tais dinamismos naturais sejam considerados em consonância com o agir

transcendental do Deus criador, então não há incompatibilidade entre estes

dinamismos evolutivos e a concepção cristã acerca da providência divina.

O mesmo pode ser dito a respeito da relação entre a ação (transcendente)

da providência divina e a liberdade de ação humana. Uma ação não concorre

contra a outra. Respeitando a autonomia humana, Deus não deixa de amar e de

agir em favor do ser humano. Assim, os momentos em que o ser humano cresce e

amadurece como pessoa não são contrários à ação divina. Ao invés disso, estas

ocasiões de desenvolvimento humano podem ser vistas como expressão de uma

providência divina que consegue estimular o desenvolvimento humano, sem

violar o espaço próprio das iniciativas e das descobertas feitas pelo ser humano.

4.2.4

O Ser humano dotado de liberdade é uma “pessoa”

Chegados a este ponto da pesquisa, podemos agora apreciar mais

detalhadamente o sentido próprio no qual se diz que o ser humano é um “ser

livre”. Dissemos anteriormente, que o ser humano é sujeito de sua própria

liberdade, mesmo quando leva em consideração os múltiplos determinismos e

acasos que definem sua existência histórica. Será útil agora apresentar a

fundamentação que J. L. Segundo usa para comprovar essa afirmação. Assim

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poderemos ver como o ser humano vive sua liberdade de um modo que vai

caracterizar a vida humana como experiência pessoal.

Um dos pontos mais básicos na reflexão sobre a liberdade é a afirmação de

que cada ser humano possui o livre arbítrio, como qualidade que lhe capacita ao

exercício da liberdade. No entanto, esta idéia básica, (mesmo sendo correta), não é

suficiente para quem quer refletir em profundidade sobre o assunto. É preciso

também abordar com mais precisão o fato de que o ser humano é sujeito no

exercício desse atributo que é a liberdade. Isso implica em considerar que cada um

usa desse atributo de um modo único e é isso mesmo o que caracteriza a liberdade

como uma experiência na qual o ser humano se torna “pessoa”. É essa

característica que faz com que um ser humano seja mais do que “apenas mais um

indivíduo” da espécie humana. Ao usar o livre arbítrio, na construção cotidiana da

sua vida pessoal, o ser humano se constitui como ser único, dotado de uma

identidade própria. É essa característica que vai qualificar as decisões e os atos

humanos como a experiência própria de “ser pessoa”. Então, levando em conta os

dinamismos apresentados nos itens anteriores, J. L. Segundo mostra a realidade

humana complexa que é retratada no conceito de pessoa.

4.2.4.1

Ser pessoa como liberdade para agir

Como “início de conversa”, J. L. Segundo recorda que etimologicamente

falando, pessoa, é proveniente do grego, “prósopon”, palavra que era usada para

designar as máscaras usadas pelos atores do antigo teatro grego326. Aplicado ao

ser humano em sentido mais amplo, o termo indica a capacidade de assumir e

expressar as próprias emoções e sentimentos. Quando situamos o ser humano

nesse nível da capacidade de conhecer e expressar o que sente, estamos lidando

com uma característica importantíssima da condição humana. Trata-se da

experiência de deparar-se com as próprias decisões, com os próprios atos

praticados, com os erros e acertos cometidos, criando a oportunidade de o ser

humano “representar isso”, no sentido de “re-apresentar” as situações vividas para

si mesmo. A partir desse exercício é que o ser humano vai avaliar suas escolhas e

326 Cf. SEGUNDO, J. L., Que mundo?Que homem? Que Deus?..., p. 114.

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202

traçar rumos para sua vida. Assim, podemos notar que a vida do ser humano se

situa além dos limites estreitos dos conceitos habitualmente usados para defini-la.

Neste sentido é que se diz que o ser humano, enquanto “máscara”,

prósopon, (persona em latim) é “maior” do que as diversas apreensões parciais

que se possam fazer a seu respeito. Realidades situadas no âmbito dos valores

humanos, (“dever ser”), no âmbito da liberdade, no âmbito das escolhas e

decisões livres do homem... transcendem, vão sempre mais além de toda

classificação conceitual327.

O substantivo “homem” não é suficiente para designar toda a riqueza de

experiências “pessoais” que qualquer homem concreto possui em sua vida. Neste

sentido, quaisquer conceitos ou concepções parciais sobre o ser humano (a partir

da biologia, ou da psicologia por exemplo) não alcançam a totalidade da

existência de um ser humano concreto. Esta é o produto da múltipla interatividade

do ser humano consigo mesmo, com a sociedade e com seus interlocutores, sejam

eles os familiares, Deus, os colegas de trabalho, ou quaisquer outros. Neste

sentido J. L. Segundo adota a mesma perspectiva para mostrar que o ser do

homem possui isso em comum com o próprio Deus. Se olharmos bem, a palavra

“Deus” diz muito pouco ou quase nada sobre quem é Deus, sobre seu modo de

agir, ou seja, sobre o ser de Deus em sua própria liberdade. Ao invés de

procurarmos conhecer Deus pelas características do “ser” de Deus, ao invés de

procurarmos “substantivos” adequados para definir “a essência” de Deus,

deveríamos notar “o modo como Deus age” em sua própria liberdade, a partir das

escolhas e decisões livremente manifestadas por Deus na história humana.

“Se dizemos com João que ‘Deus é amor’ e que seu amor o leva a dar a própria vida de seu filho (1Jo 4,8.16; cf. 3,16) isso somente pode querer dizer alguma coisa, ou seja, somente pode fazer sentido, se não é a mera essência ou natureza divina que decide o que Deus é, mas alguma coisa prévia, precedente: uma decisão livre.”328

Neste sentido, o nível do “ser” é diferente do nível da “pessoa”. Quando se

fala em ser, logo imaginamos algo que tem mais a ver com a noção de essência

(ontologia). Já quando se trata de pessoa, é o exercício da liberdade que fica em

evidência. Aplicando esse raciocínio aos textos de 1Jo 4,8.16; Jo 3,16. J. L.

327 Cf. Ibid. 328 Ibid., p. 114-115.

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203

segundo mostra que sim, “Deus é amor”, mas não um amor qualquer. Deus é um

Amor de tal magnitude, que envia seu Filho. Entretanto, para que essa afirmativa

“possa fazer sentido” para homens dotados de uma liberdade efetiva e real, torna-

se necessário que Deus manifeste este seu amor de modo livre, numa iniciativa

totalmente desinteressada da parte de Deus, considerando-se o homem como

interlocutor dotado de uma liberdade autêntica (embora condicionada) para se

posicionar livremente diante da revelação desse Deus. Daí a perspectiva própria

do existencialismo de Sartre, que é recuperada por J. L. Segundo. “A existência

precede a essência”. Parece que, de algum modo, isso vale tanto para o Criador

como para a criatura, sem que isso desfaça a distinção entre ambos.

“Em outras palavras, se somos criados, se Deus nos ama até o extremo de fazer-se um de nós, compartilhar nossa história (...) isso se deve a uma realidade determinante que não é a essência ou o ser de Deus. Assim, quando dizemos que Deus é, por sua essência, imutável, impassível, auto-suficiente ( = ser infinito), não estamos dizendo que Deus não possa amar, criar, encarnar-se...Queremos dizer que não está logicamente obrigado a mudar, criar, amar suas criaturas e encarnar-se em nosso mundo. Se o faz, é porque livremente decidiu fazê-lo e dar essa forma a seu ser infinito”329

Para aplicar o mesmo tipo de raciocínio em relação ao ser humano, J. L.

Segundo recorre ao pensamento de Nicolás Berdiaeff.

O homem “(...) se em parte é resultado de sua essência – é muito mais o resultado de suas livres decisões. Por isso, para Berdiaeff, é necessário cultivar uma linguagem distintiva da liberdade, não apenas no caso de Deus, mas também no caso da psicologia, da sociologia, da ética humanas...”330

Por estas referências vemos que, mesmo que Deus como criador seja

essencialmente diferente do ser humano enquanto criatura, há entre Deus e o

329 Ibid. p.115., as indicações em letra cursiva são do próprio autor. 330 Ibid., p. 116, citando BERDIAEFF, N., De l’esclavage et de la liberté de l’homme, Paris, Aubier, 1946, p. 18. Seria interessante detalhar com mais precisão estes fundamentos filosóficos da liberdade de Deus e da liberdade do ser humano. Não há condições para fazê-lo aqui. Alguns dos elementos básicos a respeito desse tema encontram-se na p. 115 do Que mundo? Que Homem? Que Deus ..., especialmente na nota 1. Ali é mostrado que J. L. Segundo se baseia em N. Berdiaeff , que por sua vez se baseou em Jakob Boehme, para propor a existência de uma “vontade sem fundamento” (Ungrund) como fundamento primeiro da liberdade em Deus. Talvez algo de semelhante ou análogo possa ser dito em relação ao ser humano. O certo é que esses elementos pinçados destes pensadores fornecem a base para estabelecer a liberdade como ponto de partida do ser do homem e do ser do próprio Deus. É neste sentido que Berdiaeff, (baseado em J. Boehme), afirma que “a liberdade é o início de tudo”; cf. BERDIAEFF, N. Essai de Métaphysique Eschatologique, Paris, Aubier, 1946, p. 125, indicado em SEGUNDO, J. L., Ibid., p. 115.

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204

homem uma característica comum: a liberdade enquanto fonte de uma existência

pessoal. Deus e o homem “existem”, como seres que livremente expressam o que

são por meio de um agir livre, consciente e pessoal. E para aprofundar ainda mais

essa reflexão, J. L. Segundo aplica este mesmo raciocínio à própria “pessoa” de

Jesus Cristo. Ao fazê-lo, J. L. Segundo indica que o próprio Jesus Cristo, sendo

“verdadeiro homem” como diz o dogma cristão, também “existiu” submetido a

este mesmo dinamismo da liberdade humana tão bem sintetizado pelo ateu Jean

Paul Sartre.

“Isso explica o fato de que um ateu como Sartre invente também uma linguagem apofática para expressar a pretensão metafísica global do existencialismo no já citado axioma: a existência precede a essência. Porque se olharmos bem, que é essa existência (...), senão uma linguagem negativa, paralela à utilizada pela teologia, a respeito das duas naturezas de Cristo, quando buscou o que as ‘precedia’ ou fundamentava ambas e encontrou uma palavra tão parecida ao não-ser como o termo (...) máscara?”331

Vemos que J. L. Segundo se vale de Sartre, para indicar que há na

“existência” humana algo que “precede” qualquer definição ou descrição que se

possa fazer sobre o homem. Esse “algo” que marca a existência humana é

indefinível e indescritível, até que o homem se defina a si mesmo por meio de sua

práxis histórica. Esse “algo”, esse critério fundamental da existência humana é

aquilo que o ser humano já é em potência, é a condição de poder agir, escolher e

decidir livremente, capacidade esta que está apenas “latente” e ainda não

“patente”, enquanto o ser humano não se manifesta como sujeito de sua própria

história pessoal. Daí que haja um sentido “apofático”, um caráter de “não ser” na

estrutura mesma do ser pessoa. E é justamente isso o que define o ser humano

como ser de liberdade.

Ou seja, há no ser humano uma liberdade pronta para agir, mas que “ainda

não entrou em cena” até que ele “livremente” se manifeste. A liberdade do

homem (neste sentido “existencialista sartreano”) é um “não-ser” em permanente

estado de expectativa pela decisão que o fará “vir a ser”. O homem “ainda não é”

aquilo que ele “poderá tornar-se” mediante as decisões e atitudes de sua própria

331 SEGUNDO, J. L., Que mundo? Que Homem? Que Deus ..., p. 116-117 (as indicações em letra itálica são do autor).

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205

liberdade332. Neste sentido, o ser humano não é um mero produto das

circunstâncias históricas, psicológicas, sociais etc. O homem é o sujeito de sua

própria liberdade. Ele é o ser que se pergunta sobre as circunstâncias que

demarcam a sua presença no mundo, e é também o ser que decide sobre estas

circunstâncias, o ser que escolhe como agir diante delas.

Compreendido isso, cabe verificar o sentido em que esta reflexão sobre a

liberdade poderia ser aplicada à pessoa de Jesus. Aqui J. L. Segundo mencionou

essa reflexão sobre os fundamentos da liberdade, a fim de afirmar que ela pode ser

encontrada na abordagem cristã acerca das duas naturezas de Cristo. A existência

humana (enquanto distinta da “essência do ser”) é uma linguagem negativa

(apofática), paralela à linguagem que a teologia usa para falar sobre as duas

naturezas de Jesus Cristo, quando a própria teologia busca expressar aquela

realidade que “precede” a estas duas naturezas, aquele “sujeito livre” que existe

como fundamento dessas duas naturezas. Foi esta linguagem teológica que criou o

termo “pessoa” (prósopon, persona, máscara) precisamente para isso: para

designar esse sujeito livre, esse Jesus Cristo sujeito de sua própria liberdade que,

em certo sentido, “antecede” essa definição de “duas naturezas” (uma humana,

outra divina) com distinção, mas sem separação, nem confusão entre elas.

Assim, Juan Luis Segundo apresenta Jesus Cristo, a partir do fundamento

primeiro e irredutível de sua própria liberdade, como sujeito único e irrepetível de

ambas as naturezas (divina e humana), estabelecendo um paralelo com a

"existência” de todo ser humano, uma vez que todo ser humano é um ser de

liberdade. Todo ser humano (de modo análogo a Jesus Cristo) tem como

fundamento primeiro e irredutível de sua própria “existência” a condição do

exercício humano de sua própria liberdade. É isso que faz do homem um sujeito

livre. Do mesmo modo, Jesus Cristo é também o único sujeito protagonista que

decide e age em sua própria existência (tanto no que diz respeito à natureza

divina, como no que diz respeito à natureza humana). Creio que é esse o sentido 332 Sartre é constantemente mencionado na obra segundiana, com referências a diversos livros do famoso filósofo francês. Aqui neste ponto, ao falar sobre este tema do fundamento primeiro da liberdade, J. L. Segundo recorre ao clássico livro O ser e o nada. Assim, em Que Homem? Que Mundo? Que Deus?..., p. 116, nota 2, J. L. Segundo se reporta a um trecho do citado livro de Sartre que lhe parece bem ilustrativo desse fundamento e desse dinamismo da liberdade. - O homem possui “a permanente possibilidade de desgrudar-se da série de causas que constituem o ser...Quem pergunta deve poder fazer, em relação àquilo sobre o que pergunta, uma espécie de separação que introduz um não-ser; escapa assim à ordem causal do mundo, desgruda-se do ser” “Essa possibilidade que o homem tem de segregar um não-ser, que o isola (do ser)...é a liberdade” (SARTRE, J. P. , L’être et le néant, Paris, Gallimard, 1943, p. 69 e 71).

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206

do paralelismo estabelecido por J. L. Segundo entre a reflexão filosófica de Sartre

e a existência “pessoal” de Jesus Cristo.

Prosseguindo nessa linha de raciocínio, Segundo vai se basear num autor

alemão chamado Jakob Boehme , de cuja obra ele tomou conhecimento através

dos estudos feitos acerca de Nicolás Berdiaeff. A reflexão feita por J. Boehme

apresenta a liberdade como critério fundamental que define o ser de Deus. Essa

liberdade de Deus é descrita como uma “vontade sem fundamento”, como sendo o

“ungrund”, o núcleo da liberdade divina333, o ato próprio pelo qual Deus decide,

o “ponto zero” a partir do qual a vontade divina se manifesta e faz deslanchar a

revelação que Deus faz de si ao mundo. Por isso, esse “ungrund” é visto por

Boehme como uma espécie de vontade primeva, que permanece nas “profundezas

de Deus”, (como se precedesse a esta própria profundidade)334. Esse seria o

fundamento primeiro da liberdade em Deus. E é neste sentido que o autor vai

dizer: “A liberdade é o início de tudo”335.

Ou seja, na hora de definir filosoficamente o que é o ser humano enquanto

ser de liberdade, Juan Luis Segundo aplica ao ser humano essa mesma lógica dos

fundamentos da liberdade divina. Ele faz isso, associando as reflexões de J.

Boehme e N. Berdiaeff ao pensamento de J. P. Sartre. O ser humano é o ser que se

pergunta sobre si mesmo e que também é capaz de decidir sobre si mesmo. Neste

sentido, o homem é um ser “prévio”, “anterior” às circunstâncias (sociais,

históricas, políticas, culturais, biológicas...) que o definem. Embora não possa

controlar essas circunstâncias o homem, como ser de liberdade, é alguém que

existe enquanto decide como interagir com elas.

Sartre é de opinião de que devemos abandonar a antiga abordagem

metafísica sobre o ser humano, a fim de que possamos restituir ao homem (ao

homem concreto, histórico, singular) seu “poder de transcendência pelo trabalho e

pela ação”336. Creio que é neste sentido que se situa a afirmação “sartreana” de

que “a existência precede a essência”. Esta abordagem nos mostra que o ser do 333 Creio que essa “vontade sem fundamento” ou “ungrund” pode ser caracterizada como a capacidade de livre iniciativa, como desígnio, como ímpeto criativo, como vontade primeira, da parte de Deus; algo como um “não ser” anterior ao próprio ser. 334 Cf. SEGUNDO, J. L. Segundo, Que Mundo? Que Homem.? Que Deus..., p.115, nota 1. 335 Ibid.. 336 SARTRE, J. P. , Critique de la Raison Dialectique, Paris, Galimmard, 1960, t. 1, p. 68. E aqui, J. L. Segundo explica que preferiu traduzir o termo “dépassement” usado por Sartre pela palavra “transcendência”, por crer que esta última é mais oportuna para “indicar essa capacidade (mencionada por Sartre) que a liberdade outorga ao homem de determinar seu próprio ser”, cf. SEGUNDO, J. L., ibid., p. 93, nota 8.

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207

homem se revela primeiramente como ser de liberdade. Fala-se assim, do ser

humano como ser capaz de transformar a realidade para torná-la mais coerente

com seus valores. Nesta perspectiva o “ser” do homem se mostra justamente

enquanto ele escolhe, decide e age. Aí reside sua humanidade mais básica de

acordo com a perspectiva do existencialismo de Sartre337.

Dessa forma, não é difícil entender o interesse de J. L. Segundo nestes

autores. Ao tratar do ser humano como “pessoa” ele se vale das abordagens de

Boehme, Berdiaeff e Sartre precisamente para confirmar essa percepção de que o

que caracteriza fundamentalmente o ser humano é a capacidade de ser livre e de

construir sua vida como sujeito de sua própria existência. É com essa perspectiva

que o homem parte para seus diversos relacionamentos sociais, espirituais e

afetivos. E é isso que leva J. L. Segundo a afirmar:

“(...) o ser do homem é o resultado da opção que fez à liberdade. E não vice-versa. De tal modo que, verdadeiramente posso dizer: ‘eu sou minha liberdade (em ato)’. Ou, se o preferimos: ‘meu ser é o resultado do que minha liberdade decidiu’.

Esta e não outra, é a razão pela qual desde tempos imemoriais, todos os homens sabem vagamente que as relações pessoais, como o amor ou a amizade, não podem dar uma razão de ser de sua existência. Porque o que nelas se escolhe não é tal ou qual qualidade do ser da outra pessoa, mas a pessoa enquanto tal. É algo assim como dizer: amo-te porque sim. Ou, o que é a mesma coisa: amo-te porque eu sou eu e tu és tu (...)”338.

Nota-se, assim, que há um dinamismo contínuo da ação humana no

exercício da liberdade. “Antes” de escolher e fazer opções a partir de seu próprio

livre arbítrio, o homem apenas pensa, faz considerações sobre as conseqüências de

seus atos. Neste ponto a liberdade ainda não se tornou uma experiência histórica.

Enquanto não age, o homem “ainda não é”. No entanto, na medida em que

começa a agir, sua liberdade entra em cena. Há aqui um “durante”, um processo

em andamento, que corresponde à práxis, pela qual a vontade e a decisão livre

estão sendo colocadas em prática. Neste momento a liberdade já está em ato, mas

ainda não concluiu seu curso, não encerrou o ciclo pelo qual se define a situação

que enseja em si. Em seguida vem um momento de síntese, em que surgem os 337 “...a existência precede a essência...Significa que o homem começa existindo...e que depois se define. O homem, assim como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque começa com ser nada. Somente será depois e será tal qual se tenha feito ele próprio...” SARTRE, J. P. , El Existencialismo un humanismo, Paris, Nagel, 1946, p. 17 ss. citado em SEGUNDO, J. L., Que Mundo? Que Homem.? Que Deus..., p. 106-107. 338 SEGUNDO, J. L., Que Mundo? Que Homem.? Que Deus..., p. 107.

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efeitos da ação realizada. Assim, “depois” de consumado o ato livre feito pelo ser

humano, vem as conseqüências que ele deverá assumir, o preço que ele

inevitavelmente terá que pagar pela opção escolhida e tornada efetiva no âmbito

de sua própria liberdade. Tal processo só termina quando o homem morre. Pois

em cada decisão, em cada uma das milhares de escolhas que o homem faz na vida

esse ciclo se repete, de tal modo que da unificação entre os diversos ciclos

realizados despontará o sentido e o rumo que a vida do ser humano assumiu. É

isso que se costuma chamar de liberdade profunda ou atitude fundamental.

Concluindo este ponto, deve-se afirmar que os três momentos, (o antes, o

durante e o depois) formam parte da experiência humana da liberdade. Eles se

integram através da ação humana, fazendo com que a vida do ser humano seja a

vida de uma “pessoa”, que neste sentido se fez a si mesma, enquanto colocava sua

própria liberdade em ato. Por isso, ser pessoa é exercitar a liberdade para agir. É

assim que se configuram as experiências de amor, as relações sociais , as relações

de interação do homem com Deus e com o mundo da natureza, etc. De certo

modo, é arriscando sua vida que o ser humano constrói sua vida. Por entre dúvidas

e certezas ele abre caminho rumo ao futuro no exercício da própria liberdade.

Refletindo e também agindo, construindo, realizando, corrigindo erros, sempre

dentro das realidades sociais que as circunstâncias históricas permitem. É, por

esse mesmo dinamismo, que se diz que a liberdade é uma experiência humana. É

através dele que o ser humano “se torna pessoa”, construindo ativamente a

história de sua própria vida como história de sua própria liberdade.

4.2.4.2

Ser pessoa como liberdade de interpretar a própria história

Pelo que foi visto no item anterior, a “pessoalidade” da existência humana

qualifica o ser humano, como ser livre para agir e assim construir sua própria

história. Esta é sem dúvida uma dimensão fundamental da condição humana. No

entanto, há ainda uma outra dimensão característica da vida humana, que diz

também respeito ao exercício da liberdade. Esta segunda dimensão consiste na

capacidade de interpretar a história que a própria liberdade construiu. Trata-se de

uma dimensão tão importante quanto a primeira e que na verdade a completa. O

ser humano não é livre apenas por agir por sua própria vontade. Na estrutura

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mesma da ação humana há razão, consciência, a capacidade de pensar de planejar

de avaliar as circunstâncias, etc. Isso caracteriza o ser humano como ser

comunicativo, como ser de linguagem339.

Neste âmbito da comunicação e da linguagem é que se estabelece a

expressão do sentido dos acontecimentos para o ser humano. Ele precisa conhecer

a realidade, precisa compreender o mundo, precisa viver uma vida que faça

sentido. Ocorre que este sentido é também construído pelo ser humano no

exercício de sua liberdade. É o próprio ser humano o sujeito da interpretação. Para

mostrar isso, J. L. Segundo usa como exemplo hipotético, uma situação em que

um mesmo acontecimento é descrito por três pessoas diferentes, cada qual com a

sua visão dos fatos340.

Assim, um passageiro de um trem, um camponês e o presidente do país

descrevem o mesmo acontecimento, com pontos de vista muito distintos entre si.

De tal sorte que cada versão parece um fato diferente, embora se refira ao mesmo

acontecimento. As três versões do mesmo fato mencionado indicam a pluralidade

de sentidos, que os acontecimentos podem ter ou adquirir, de acordo com a

perspectiva própria de cada um que for observar e narrar este acontecimento. O

“elemento liberdade” é que define cada uma das versões; é esse “elemento” que

torna específica e diferente a visão que cada um forma sobre a mesma realidade.

Para compreender o sentido que uma pessoa atribui a um determinado fato, é

necessário levar em conta a história de vida dessa pessoa; a história que ela

construiu no exercício de sua própria liberdade. Ao mencionar aquelas três

versões de um mesmo fato, J. L. Segundo mostra como a liberdade de olhar os

acontecimentos dentro de uma determinada perspectiva direciona a interpretação

dos fatos.

Neste sentido, “ser pessoa” equivale a exercer a liberdade de privilegiar

certos dados em detrimento de outros. J. L. Segundo toma como exemplo o

339 J. L. Segundo classifica a linguagem humana em dois tipos: a linguagem icônica e a linguagem digital. A primeira é voltada para as dimensões mais amplas da vida humana, os valores, a fé religiosa, a ética os projetos de vida do ser humano, etc. Daí seu meio de expressão ser o “ícone” por ser mais apropriado para a expressão simbólica. A segunda é usada para os aspectos mais objetivos da existência e exerce a função de definir com precisão, expressar literalmente aquilo que se quer designar. Daí que seu meio de expressão seja o dígito (Letras, palavras, conceitos, números). Não há necessidade de detalhar muito este ponto do pensamento segundiano para o tema desta tese. Para maiores esclarecimentos sobre este tema ver SEGUNDO, J. L. , O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1, p. 166-169; 187-217; MURAD, A. Este Cristianismo Inquieto: A Fé Encarnada em J. L. Segundo, São Paulo, Loyola, 1994, p. 75-78 e 104. 340 SEGUNDO, J. L., Que Mundo? Que Homem.? Que Deus..., p. 120-127.

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exercício de uma determinada profissão. Dependendo das circunstâncias

históricas, o mais provável é que o sentido que o trabalho assume na vida do

trabalhador341 é mais importante que a atividade profissional propriamente dita. É

a liberdade que dá esse “valor”. Trata-se da liberdade que o ser humano possui, de

interpretar os fatos e as atividades que desenvolve em sua própria vida. É uma

espécie de autonomia interpretativa, que é baseada na vida pessoal e na atribuição

de sentido feita pelo ser humano enquanto protagonista de sua própria história.

Baseado nestes argumentos, J. L. Segundo mostra que não existe história

humana puramente factual e objetiva. Dados objetivos nus e crus “não fazem

história”. Esta é feita por homens e mulheres que poderão ser (ou não)

protagonistas dos fatos, mas que sempre serão protagonistas na interpretação dos

fatos, compondo livremente o sentido dos mesmos em sua história de vida

pessoal. Pois só o ser humano dotado de liberdade tem a capacidade para

interpretar e para atribuir significado aos “dados objetivos” da realidade e assim

construir uma história com autêntico sentido humano. Deste modo é o ser humano

que, no âmbito de sua própria liberdade, “fixa o sentido dos acontecimentos”342.

É assim a estrutura fundamental da história humana. Fatos não interpretados são

meros acasos. No entanto, quando uma determinada sucessão de acontecimentos é

vivida e interpretada, os fatos são como que “costurados” num determinado

sentido e é a partir desse momento, que estes acontecimentos se tornam uma

história autenticamente humana, porque construída sobre o eixo da liberdade das

pessoas que interpretaram os acontecimentos atribuindo-lhes um “sentido”.

Assim, podemos dizer que, num certo “sentido pessoal”, cada um é livre a

partir de si próprio, ou seja, a partir daquilo que conseguiu viver e interpretar. É

sempre por dentro dessa estrutura, que sentimentos, fatos e processos históricos

ganham sentido e significado. A conclusão a que se chega é a de que essas

características antropológicas que descobrimos nesse processo são “propositais”,

são “providenciais”. Não são mero acaso, mas ao contrário, formam uma certa

lógica, fazem parte do próprio dinamismo da criação e da salvação realizadas por

Deus. É por isso que J. L. Segundo afirma:

341 Cf. Ibid., p. 126. 342 Cf. Ibid., p. 127.

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211

“De fato (...) nossa hipótese aqui é teológica: Deus quis fazer um mundo, onde tivesse os homens como interlocutores livres, capazes de decisão, ou seja, cooperadores criativos num projeto comum a ambos: Deus e os homens”343.

Disso se conclui que a historicidade e a liberdade próprias da condição

humana não são acasos. Antes expressam o desígnio salvífico próprio de um

Deus, que cria o ser humano (já desde o princípio) no interior de um dinamismo

evolutivo, no qual a liberdade se depara e se defronta com as condições históricas,

sociais, psicológicas, biológicas, etc., nas quais o próprio ser humano deverá

construir sua existência. E isso gera algumas conseqüências derivadas deste

próprio dinamismo evolutivo, dentro do qual o homem exerce sua liberdade.

“Cada ser humano está estruturado para inventar seu próprio caminho

num universo incompleto e colocado nas mãos humanas” 344. Pelo menos no que

diz respeito ao sentido que esse universo deverá ter, é possível dizer que o

universo está sujeito “àquilo que o homem decida fazer com ele e dele”345. Ou

seja, o ser humano é “pessoa”, não apenas quando constrói sua própria história,

pensa, decide e age livremente, mas também é “pessoa” , quando avalia, interpreta

e consegue captar, a partir da realidade, um sentido que orienta a construção de

sua existência no mundo.

Dá para notar que a liberdade humana possui assim uma estrutura dual. De

um lado, o ser humano tem que lidar com os diversos dinamismos da natureza que

definem seu ser biológico e com a realidade social com suas estruturas políticas

culturais, econômicas, etc. De outro lado, todo esse processo interativo no qual o

homem constrói sua própria vida deve ser interpretado para poder “fazer sentido”.

Então, vemos que nesse âmbito da construção do sentido, o ser humano exerce

também a sua própria liberdade.

4.2.5

Conseqüências decorrentes do caráter pessoal da liberdade humana

Com todos os argumentos expostos, nota-se que a liberdade humana tem

como característica básica o seu caráter pessoal. O ser humano livre é “pessoa”

343 Ibid., p. 133. 344 Ibid. 345 Ibid.

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nos dois sentidos acima descritos: como sujeito da construção de sua própria

existência e também como sujeito da construção do sentido que essa existência

deve ter. Tal processo de construção da liberdade tem conseqüências e

desdobramentos importantes para a vida do próprio ser humano. Dentre estas, J.

L. Segundo destaca três que são por ele consideradas mais significativas:

conseqüências éticas, conseqüências ecológicas e conseqüências sociais. Vejamos.

a) Conseqüências éticas

No plano da ética, a configuração dual da liberdade humana, traz como

conseqüência a necessidade de perceber que as decisões morais, para serem

realmente construídas de um modo pessoal e livre, devem ser gestadas dentro do

projeto de vida que o ser humano estiver construindo para si. Ou seja, a vida

moral do ser humano não deverá ser uma eterna consulta a um código de regras

que defina o que pode e o que não pode ser feito. Do ponto de vista da construção

de uma autêntica liberdade, a vida humana deverá ser uma “moral de projetos”346.

“No plano da ética, (...) o cristão até pouco tempo atrás estava acostumado a perguntar à autoridade magisterial a clássica pergunta: é lícito fazer isto? A lei de Deus o permite? (...) ao ler as passagens centrais de Paulo – o que ele chama ‘seu’ evangelho – essas passagens lhe dizem que, como filho de Deus, é o homem, enquanto herdeiro maior de idade, ‘dono de tudo’ (Gl 4,1; 1Cor 3,21) e que em conseqüência, suas questões morais estão em função de seus projetos de amor (Gl 5,1.13c-14), como colaborador ( = synergos ) criativo do projeto próprio de Deus (1 Cor 3,9). Não se trata, então, de perguntar pelo permitido ou pelo proibido em sua própria casa, mas pelo conveniente para seu projeto (1 Cor 6,12; 10,23-29) que é tão único e irrepetível como sua pessoa e seu contexto.”347

Impõe-se, então, uma adequada conexão entre fins (Fé) e meios

(Ideologia)348 de acordo com o projeto de vida da pessoa. Isso não significa que os

projetos de vida escolhidos sejam sempre os melhores. Não significa que não haja

necessidade de submeter tais projetos a avaliações e revisões periódicas. O

próprio J. L. Segundo admite que embora seja imprescindível que se busque os

346 Ibid., p. 144. 347 Ibid., p. 143-144. 348 Cf. SEGUNDO, J. L. O Homem. de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1: Fé e Ideologia, São Paulo, Paulinas, 1982.

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213

meios mais coerentes com os fins almejados, a simples coerência entre meios e

fins não é garantia de se estar no melhor projeto para a própria vida. Há uma

hierarquia de fins (uma escala de valores) que precisa ser cautelosamente

construída. Pode ocorrer que, mesmo sendo coerentes com o fim almejado, certos

meios se mostrem a longo prazo inadequados por destruir valores e metas mais

importantes. Há, portanto, uma necessária cautela que deve constar nessa “moral

de projetos”. No entanto, isso não invalida o fato de que a vida moral do ser

humano será tanto mais autêntica e fará o homem amadurecer tanto mais, quanto

mais ele for capaz de tomar decisões amadurecidas a partir de escolhas

discernidas e executadas no âmbito de sua própria liberdade pessoal.

b) Conseqüências ecológicas

Nesse nível J. L. Segundo considera a ecologia, tanto do ponto de vista

ambiental, como no sentido mais amplo da ecologia humana e social já apontado

no capítulo anterior. Aqui se coloca o problema da absolutização dos meios

(ideologias) como se fossem fins em si mesmos. Há certa tendência de sacralizar

certos meios pela força do hábito, por costume (tradição), por interesses, por

comodismo, etc. Há também o perigo inverso, ou seja, a tendência de o ser

humano relativizar certos meios ou até mesmo certos fins, por ignorância, por

desconhecer a importância dos mesmos em seu projeto de realização pessoal349.

Tanto um caso como o outro são bastante prejudiciais para o ser humano.

Como conseqüências destes desequilíbrios, surge o problema da “propositividade”

indicado por G. Bateson e também o problema da perda da “flexibilidade

histórica”350. A busca obsessiva pela realização dos “propósitos” estabelecidos

pelo homem como metas prioritárias, de acordo com critérios meramente técnicos

e financeiros, leva o ser humano a uma relação muito destrutiva com a natureza. A

349 J. L. Segundo recorda aqui a reflexão feita por E. F. Schumacher (The Small is Beautiful, Nova York, Harper and Row, 1975, p. 104-105), a respeito do rebaixamento da terra (fauna e flora) da condição de meio imprescindível ao homem para a condição de mero meio, como se fosse tão somente fonte de matérias primas. Este exemplo de desvalorização de algo que deveria ter um “valor absoluto” ou “sagrado” foi apresentado primeiramente no Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1, Fé e Ideologia, São Paulo, Paulinas, 1982, p. 329-331. 350 A respeito dessa atitude de buscar obsessivamente os propósitos ditados pela racionalidade técnica, economicista e cientificista (“propositividade”) ver SEGUNDO, J. L., Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1, Fé e Ideologia, São Paulo, Paulinas, 1982, p.336-344. A respeito do tema da flexibilidade necessária para superar a racionalidade propositiva ver Ibid., p. 385ss. e também as observações sobre o conceito de “flexibilidade histórica” indicadas no capítulo anterior.

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214

rigidez social e política do homem (falta de “flexibilidade”) faz com que sistemas

naturais entrem em colapso. O mesmo poderia ser dito dos desequilíbrios

provocados na ecologia social, no delicado ajuste entre os grupos humanos na

sociedade.

c) Conseqüências Sociais

Aqui J. L. Segundo aponta para o problema da “mentalidade egóica” do

ser humano que infla o ego, os desejos do “eu”, desenvolvendo uma perspectiva

solitária e egoísta de consideração sobre a pessoa humana, como se estivesse num

processo de seleção natural darwinista, no qual é preciso usar de força e ser rude,

anulando os outros para sobreviver. Hoje em dia não faltam representantes dessa

mentalidade egocêntrica, pensando que este é o jeito certo de “dominar a

natureza”. Acham que a lei do mais forte é a ordem “natural” do universo. Pensam

que o desenvolvimento das espécies e inclusive do próprio homem é assim pela

própria natureza das coisas.

Para J. L. Segundo, no entanto, a própria natureza “age de outro modo”.

Na natureza, as espécies, os elementos naturais e de modo especial os seres

humanos só podem “se mover” e “crescer”, se forem capazes de interagir uns com

os outros. É isso que o leva a crer que “o ideal egocêntrico é contra a natureza”351.

De certo modo essa reflexão é aplicada também ao ser humano. O homem não

consegue construir seu projeto de vida sozinho. A aventura criadora do homem

(inclusive a sua relação com Deus) é mediatizada nas relações sociais. A

conseqüência disso é que até mesmo a construção da vida pessoal é uma obra

coletiva.

Há aqui uma dialética entre a dimensão interior e solitária da vida pessoal

e a dimensão social dessa mesma vida. Há mesmo e de modo muito legítimo o

foro íntimo da pessoa, onde se dão as tomadas de decisão, a ocupação da pessoa

consigo mesma, um certo autocentramento em si próprio, ou seja, um cuidar bem

de si, da própria individualidade do ser humano. Todos precisam dessa dimensão

de interiorização. Em alguma medida, (especialmente na infância), aquela

“estrutura egóica” é necessária e legítima. Mas ao mesmo tempo, o ser humano

351 SEGUNDO, J. L., Que mundo? Que Homem.? Que Deus?...p. 147, citando aqui TEILHARD DE CHARDIN, Le Phénomène Humain, Paris, Ed. du Seuil, 1955, p. 271.

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215

precisa também da troca, do diálogo, da convivência com os outros, com a

sociedade e com a natureza (dimensão de abertura ao outro). Sem essa dimensão a

vida humana fica também inviável.

Daí que J. L. Segundo apresente esse dinamismo social da formação do ser

humano como uma dialética. Há situações que exigem do ser humano a

capacidade de assumir o centro de sua vida pessoal. Voltar-se para este centro,

para o próprio eu. Em outros contextos é fundamental ter abertura, para introduzir

na própria vida “outros centros”, outros interlocutores, como a comunidade, a

família, o trabalho, a sociedade, etc. Neste sentido podemos falar de uma

dualidade por complementaridade entre a relação da pessoa consigo mesma e a

relação da pessoa com os outros. Resumindo, esse processo de formação da

pessoa, se constitui no desafio de abrir a estrutura egocêntrica do ser humano à

participação de outros interlocutores, sem instrumentalizá-los e sem deixar-se

instrumentalizar por eles.

Conclusão

Neste capítulo, procurei indicar os pontos fundamentais do pensamento de

J. L. Segundo acerca da liberdade. O autor situa a liberdade num equilíbrio

dinâmico entre os determinismos e os acasos constitutivos da vida humana. Nesta

síntese final, pretendo apenas recordar os pontos principais dessa abordagem, a

fim de explicitar a concepção de liberdade formulada pelo autor.

Um primeiro aspecto que merece destaque é que a abordagem segundiana

revelou uma distinção entre dois níveis, tanto na consideração sobre Deus, como

na consideração sobre o ser humano. De um lado, existe o nível da natureza ou do

“ser” (a essência, a natureza própria de Deus, como também a natureza própria do

ser humano). De outro lado, há o nível da liberdade ou da relacionalidade, que

manifesta o ser pessoal de Deus, como também a existência do homem como “ser

pessoa”. Não significa que esses dois níveis sejam antagônicos entre si, mas de

certo modo se distinguem. A pesquisa evidenciou que J. L. Segundo privilegia o

segundo nível, apresentando Deus como ser de relações, como ser pessoal que

exercita sua liberdade divina na relação com o ser humano.

Neste aspecto, a perspectiva adotada por J. L. Segundo se distingue da

tradição filosófica grega. Para esta, a condição de “pessoa” é vista como um

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“acidente”. Constitui um atributo próprio da existência do ser humano em sua

vida terrena. Trata-se, portanto, de algo finito e mortal que não pode ser atribuído

ao ser de Deus. Já J. L. Segundo considera que esse influxo da filosofia grega no

Cristianismo descaracterizou a concepção bíblica que apresenta um Deus pessoal,

que decide criar o universo e se revelar ao ser humano, por um desígnio de sua

própria vontade. Como parte desse mesmo ato livre de Deus, surge o ser humano

dotado também de liberdade para dialogar, aceitar ou recusar a proposta desse

Deus. É por isso que J. L. Segundo enfatiza tanto a perspectiva existencial e

histórica no agir de Deus e especialmente no que concerne ao agir humano.

Sob esse ponto de vista, J. L. Segundo tem razão em situar a liberdade no

centro do debate a respeito do ser humano. Pois essa característica é fundamental

na tradição cristã, que concebe tanto o caráter pessoal do ser de Deus, como o

caráter pessoal da condição humana. É aí no âmbito pessoal que se situam a

liberdade e a criatividade. E é por isso que J. L. Segundo coloca a liberdade como

tema central em sua reflexão sobre o ser humano, distinguindo-a da concepção

essencialista, herdada da filosofia grega. Esta abordagem oriunda do helenismo

parte da essência do ser, da ontologia, para o nível relacional-pessoal da existência

do homem. Já J. L. Segundo prefere o caminho inverso, partindo do nível

relacional e pessoal do ser humano, para só então chegar ao nível ontológico. Ele

faz isso, porque vê nesta inversão um caminho mais apropriado para chegar a uma

concepção sobre o ser humano, que seja mais fiel aos dados da revelação bíblica e

mais coerente com o dinamismo existencial da vida humana.

Neste sentido, Segundo foi muito coerente ao indicar os diversos

condicionamentos da existência histórica do ser humano. Se é dentro dessa

existência histórica que se dá a experiência da liberdade, então os diversos

dinamismos históricos, sociais, culturais, econômicos, biológicos, psicológicos,

etc., que configuram a vida do ser humano fazem parte do dinamismo da vivência

da liberdade. Daí a palavra forte usada por J. L. Segundo, para caracterizar esses

condicionamentos que se impõem sobre a liberdade humana. Esta é condicionada

pelos múltiplos “determinismos” característicos da historicidade própria da

condição humana. Isso implica dizer que o homem é dotado de uma liberdade

real, porém limitada, uma liberdade situada historicamente.

No entanto, J. L. Segundo mostra que o ser humano é mais do que estas

determinações. Sua liberdade é caracterizada por “acasos” e também por escolhas

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livres, feitas no interior de um universo em evolução. Fazem parte da vida do ser

humano os eventos imprevistos, os dinamismos evolutivos do próprio corpo

humano e do cosmo, o amadurecimento do homem mediante a aprendizagem

pessoal e mediante a interação com a sociedade. Todos esses dinamismos

oferecem novos elementos sobre os quais age a vontade humana. É por isso que

os diversos “determinismos” não são absolutos. Há também interatividade,

reflexão, decisão, escolhas, construídas no âmbito de uma liberdade autêntica e é

isso que caracteriza a vida humana como vida de um ser que é “pessoa”.

O ser humano é sujeito ativo do processo de construção de seu próprio ser

na história, por meio da interação que estabelece com os diversos determinismos e

acasos com que se depara. Com efeito, ele é o sujeito, a “pessoa” que exerce sua

liberdade ao construir e também interpretar sua própria história. Neste sentido, o

homem é o ser que já nasce nessa condição, histórica, existencial e também livre.

É, portanto, o ser que formula o sentido de sua própria existência e orienta de

acordo com ele a sua práxis e sua atitude fundamental. Assim o ser humano foi

criado e nesta condição é que ele pode se apresentar como um interlocutor diante

de seu Criador. A abordagem de J. L. Segundo, neste aspecto, aponta para uma

abertura à consideração sobre o sentido dos diversos dinamismos formativos da

condição humana. Tudo isso será mera obra do acaso? J. L. Segundo postula aqui

a legitimidade de se considerar esta condição existencial pessoal e evolutiva da

vida humana dinamizada pela liberdade como sinais de um “telos”, de um sentido

maior que integra a evolução humana à evolução do universo.

Neste sentido, a liberdade humana não é antagônica à ação de Deus. A

liberdade humana e a liberdade divina não são por si mesmas concorrentes entre

si. Antes ao contrário, o espaço aberto ao exercício da liberdade do ser humano

completa os demais dinamismos presentes no universo. Exercendo

autonomamente sua própria liberdade, o ser humano pode ser um interlocutor

criativo na interação com o universo e com o próprio Deus, embora possa também

no âmbito da mesma liberdade recusar-se a sê-lo. Por isso mesmo, é que os

dinamismos próprios da liberdade humana podem ser vistos como um sinal da

providência divina. É Deus quem por sua graça oferece ao homem as condições

para ser livre.

São estes, portanto, os pontos fundamentais destacados por J. L. Segundo.

A partir deles, se tem uma visão abrangente sobre a concepção de liberdade

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formulada pelo autor. Vistos aqui em seu conjunto, estes pontos oferecem

melhores condições para indicar os aspectos em que estas considerações podem

ser confrontadas com os pontos fundamentais da concepção de liberdade

construída por santo Agostinho. É o que será feito na terceira parte desta tese.

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219

Conclusão da parte II

Nesta segunda parte da tese procurei situar J. L. Segundo e sua obra dentro

do seu contexto histórico, ressaltando os conceitos e idéias que caracterizam o

pensamento do autor. Surgiram nesta exposição os elementos básicos do processo

de formação do ser humano como ser de liberdade. Cabe agora recolher esses

dados, sistematizando-os numa visão integrada.

No capítulo 3, o objetivo foi apresentar os principais conceitos do

pensamento segundiano, deixando indicados os traços característicos da visão

segundiana acerca da liberdade. Foram destacados temas como a importância da

estrutura de valores, a articulação entre fé e ideologias, a passagem da fé

antropológica para a fé religiosa e a importância dos dados transcendentes e da

dêutero-aprendizagem nesse processo, que acaba formando a liberdade humana

em dinamismos que J. L. Segundo caracteriza como dinamismos de ecologia

social e evolução cultural.

No capítulo 4, o tema da liberdade foi analisado como construção do

homem enquanto “pessoa” que se desenvolve num cosmo em evolução. Ali

procurei mostrar que a liberdade é uma experiência pessoal que se constrói em

meio a influências biológicas, psicológicas, sociais, etc. De sorte que a liberdade

se constitui como um processo complexo, que articula diversas variáveis, tanto de

ordem pessoal como social. De fato, J. L. Segundo afirmou que o ser humano é o

protagonista da construção de sua própria existência, mas um protagonista que

não possui liberdade ilimitada para agir. Segundo nos mostrou que a liberdade

abre caminho por entre os diversos “determinismos” constitutivos da própria

condição humana, de modo que o ser humano interage com influxos de ordem

antropológica, de ordem cultural, social, política, etc. No entanto, há também

circunstâncias em que o ser humano passa por situações imprevisíveis, lida com

dados surpreendentes, tendo novas chances de soluções criativas para as

exigências de sua vida pessoal e social. É por isso que o ser humano se

desenvolve, interagindo tanto com os “determinismos” como também com os

“acasos”, com os novos contextos que surgem em seu próprio desenvolvimento.

Nessa abordagem, evidenciou-se que a configuração da liberdade é um

processo baseado em dois eixos fundamentais: primeiro na existência histórica e

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em segundo lugar nos dinamismos que favorecem a humanização, tanto na

dimensão pessoal como na social.

a) Liberdade como enraizamento histórico do ser humano

É no interior das relações sociais que o ser humano constrói sua escala de

valores. É através destas relações que ele aprende a crer nos seus valores

absolutos, estabelecendo sua fé antropológica. É por isso que J. L. Segundo nos

diz que este enraizamento histórico é de fundamental importância, não apenas

porque permite socializar os valores, mas também porque oferece ao ser humano

as mediações necessárias para a sua realização. É este enraizamento histórico que

vai fornecer as “ideologias” necessárias para a realização da “fé”.

Pode-se dizer que este enraizamento histórico é a base a partir da qual se

formam todos aqueles elementos constitutivos da liberdade humana, que foram

descritos nos conceitos segundianos abordados no capítulo 3 desta tese. J. L.

Segundo aponta o modo como as relações sociais e as instituições da sociedade

são importantes para fornecer as mediações ou “ideologias” que poderão ser

colocadas a serviço da fé nos valores mais elevados da vida de uma pessoa. O

mesmo pode ser dito em relação ao processo da “dêutero-aprendizagem”, e

especialmente no que diz respeito aos dinamismos da “ecologia social” e da

“evolução cultural”. Em todos estes itens é possível notar que o processo histórico

é sempre o ponto de partida.

Esses influxos da sociedade sobre o indivíduo tolhem a liberdade mas, por

outro lado, são estes mesmos influxos da sociedade que vão oferecer ao indivíduo

a estrutura social de que ele necessita para construir seu projeto de vida e exercer

sua liberdade.

b) Liberdade como processo de humanização pessoal e social

O que caracteriza singularmente a vida humana é exatamente o fato de o

ser humano pensar e agir num processo pelo qual, por meio de diversas escolhas e

atos, ele vai formando o conjunto de sua existência histórica como atitude

fundamental. É assim, por meio da liberdade, livremente exercida nos atos e na

atitude fundamental, que os indivíduos experimentam a vida como uma existência

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eminentemente humana, uma existência construída por cada pessoa nas múltiplas

relações estabelecidas historicamente.

Já ficou demonstrado que é o próprio ser humano quem conduz este

processo. Trata-se de um dinamismo de construção da própria história pessoal. As

opções que a pessoa vai fazendo ao longo da vida vão configurando o que ela

conseguiu ser. Isso se aplica em tudo o que cada ser humano experimenta nas

diversas instâncias de sua vida pessoal. É a própria pessoa que, através de suas

escolhas, vai formando sua escala de valores, vai desenvolvendo sua fé

antropológica, vai percebendo os dados transcendentes que surgem em sua

existência, conformando sua dêutero-aprendizagem, etc. Portanto, a liberdade é

uma experiência de “ser pessoa”. É orientando-se por sua própria deliberação, que

cada indivíduo constrói e interpreta sua própria existência.

No entanto, esta dimensão pessoal da liberdade não exclui o caráter

eminentemente social das experiências humanas. A liberdade é um dom de Deus,

um atributo próprio da natureza humana, mas que só se manifesta e só pode ser

percebido como tal, através das relações que os seres humanos estabelecem no

interior da história. Por isso mesmo, o ser humano não se faz sozinho. Sua

existência é um produto coletivo na medida em que depende de estruturas sociais.

É a sociedade que oferece as condições e os meios para que o ser humano possa

aprender e transmitir valores, interagir com os demais, etc. Num certo sentido, a

sociedade com suas estruturas econômicas, políticas, culturais é que define as

circunstâncias dentro das quais cada pessoa poderá exercer sua liberdade.

Por tudo isso é que a experiência da graça é imprescindível nestas duas

dimensões da liberdade humana. O crescimento pessoal, assim como a vivência

social e coletiva são aprimoradas e corrigidas precisamente nesse processo, que

manifesta a relação do ser humano com Deus, vivenciada através da

intermediação das relações dos seres humanos uns com os outros. Quanto mais o

ser humano vai sendo “pessoa”, vivenciando os dinamismos de sua liberdade,

realizando os valores humanizantes revelados em Jesus Cristo, mais ele cresce em

liberdade. Quanto mais o homem aprofunda a sua atuação nesse processo

(mediante a articulação da fé antropológica à fé religiosa, com a dêutero-

aprendizagem, etc.), mais ele vai humanizando a si mesmo e à sociedade. Daí que

viver a liberdade, nesse sentido, implica necessariamente num processo de

humanização pessoal e social. Aliás, é dentro desse mesmo processo, que a

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222

humanização vai sendo aprofundada, pela descoberta dos sinais da providência

divina no interior dos dinamismos da evolução do ser humano e do cosmo.

Feita a síntese final da parte II desta tese, já há condições para dar o passo

seguinte. Na parte III apresentarei, então, os pontos em que se pode fazer o

confronto entre as abordagens agostiniana e segundiana da liberdade. Dessa

comparação poderão surgir elementos muito interessantes para o amadurecimento

da consciência cristã e também pistas para aprimorar a ação pastoral e o trabalho

de reflexão teológica feitos pela Igreja.

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223

PARTE III

ANÁLISE COMPARATIVA: CONTRAPONTOS E

APROXIMAÇÕES ENTRE AS CONCEPÇÕES DE

LIBERDADE DE AGOSTINHO E DE JUAN LUIS SEGUNDO

Introdução à parte III

Depois de todo o percurso feito nos capítulos anteriores, é chegado o

momento de colocar em diálogo as idéias de santo Agostinho e de Juan Luis

Segundo. Será precisamente este o objetivo desta terceira parte da tese. Para

alcançar esta meta, será necessário reunir os principais pontos da concepção de

liberdade formulada por cada autor, mas de tal maneira que a sua apresentação

facilite estabelecer ligações entre os pensamentos (tão distintos) desses dois

grandes teólogos. A tarefa não é fácil uma vez que, dentre os muitos pontos

indicados nos capítulos anteriores, terei de selecionar apenas alguns que sejam

mais adequados para as comparações, contrapontos e conexões entre as

respectivas abordagens feitas por Agostinho e Segundo. Seria muito bom poder

fazer uma análise aprofundada e detalhada sobre cada uma das características das

abordagens construídas por cada autor. Mas isso demandaria muito mais tempo de

pesquisa e quantidades de páginas escritas, excedendo os limites dentro dos quais

se situa este trabalho. Assim sendo, limitei-me a indicar e comentar brevemente os

principais aspectos da concepção de liberdade de cada autor, usando para isso,

apenas aqueles aspectos que permitem ver mais claramente as relações de

semelhança e diferença entre essas concepções.

Procurei organizar as idéias da seguinte forma. Os temas propostos para

confronto entre os dois autores foram apresentados em tópicos. Em cada um deles

consta uma breve síntese do modo como os autores refletem sobre o assunto.

Foram destacadas, então, as concordâncias e semelhanças entre as respectivas

abordagens. Em seguida, procurei mostrar os pontos que sinalizam diferenças e

contrapontos entre as reflexões de cada autor. Depois disso, em cada ponto de

comparação, procurei apontar as conseqüências, indicando as implicações deste

“debate” entre Agostinho e Segundo para o estudo do tema da liberdade.

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224

Obviamente não tive a pretensão de esgotar todos os temas nos quais

poderiam ser feitas comparações entre Agostinho e Segundo. O objetivo da

análise foi o de suscitar elementos para o aprofundamento do debate sobre o tema

da liberdade, a partir das abordagens dos dois autores. Mantendo-me dentro dos

limites desta tese doutoral, selecionei alguns temas, (dentre muitos outros que

seriam possíveis e legítimos), para indicar aspectos em que a abordagem de santo

Agostinho interpela a abordagem feita por Juan Luis Segundo e vice-versa. Assim

é que foi sendo explicitada a riqueza que essa mútua interpelação pode trazer para

a reflexão sobre a liberdade nos dias de hoje. Portanto, todos os pontos

apresentados nesta parte III da tese se situam dentro desta perspectiva.

Foram destacados quatro temas considerados como mais interessantes para

a comparação entre as abordagens dos dois autores.

a) A abordagem da liberdade levando em conta os contextos eclesiais e

sociais nos quais santo Agostinho e J. L. Segundo estavam inseridos.

b) A relação entre imagem de Deus e liberdade humana, indicando como

um aspecto influencia na configuração do outro.

c) A interpelação que a noção de ordem natural do universo criado provoca

na reflexão sobre a experiência humana da liberdade.

d) A liberdade na relação do ser humano com Deus.

Tendo concentrado a análise nestes temas, pude fazer uma abordagem

mais detalhada destacando os pontos em que as perspectivas de abordagem de

Agostinho e Segundo “dialogam” entre si, sugerindo diferenciações, semelhanças

e também complementações mútuas. As referências para a compreensão e para

vivência da liberdade humana que surgiram nesta análise se mostraram realmente

bastante enriquecedoras.

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225

Capítulo 5

Confrontos e complementações entre as concepções da

liberdade cristã em santo Agostinho e J. L. Segundo

Introdução

Neste capítulo a meta é realizar o confronto entre as concepções da

liberdade cristã de santo Agostinho e de Juan Luis Segundo. Aqui se encontra o

capítulo final da tese. Nele procuro recolher alguns dos pontos mais

característicos da reflexão de cada autor, a partir do que já foi exposto nos

capítulos anteriores. Uma vez identificados estes pontos, pude apresentá-los numa

seqüência, que indique as semelhanças e concordâncias entre as perspectivas

agostiniana e segundiana.

Assim, o primeiro aspecto que surgiu como ponto de comparação entre

santo Agostinho e J. L. Segundo, foi o modo como cada autor abordou o tema da

liberdade, levando em consideração os respectivos contextos sociais em que

viviam. Deste modo evidenciou-se a sensibilidade de ambos para tratar do tema

da liberdade em duas abordagens diferentes, mas ambas muito atentas ao

enraizamento histórico do ser humano e às necessidades da Igreja em cada

contexto histórico concreto.

Em seguida, foi feita uma exposição sobre a relação entre imagens de

Deus e liberdade humana. Neste ponto, se mostra que a concepção de Deus que

estiver sendo formulada afeta a concepção que o ser humano poderá ter a respeito

de sua própria liberdade. Assim, as distintas concepções de Agostinho e Segundo

mostraram diferentes conexões entre a imagem de Deus e a concepção de

liberdade possível em cada contexto. Procurei, portanto, indicar, a partir das

abordagens dos dois autores, as implicações que as respectivas concepções trazem

para o modo de conceber a relação entre a compreensão sobre Deus e as

concepções de liberdade formuladas nos dias atuais.

A relação entre liberdade humana e ordem natural do universo foi outro

tema, que a pesquisa indicou como aspecto relevante nos dois autores. De fato, se

o universo criado já possui uma ordem regida por princípios eternos e imutáveis,

isso traz diversas implicações para a reflexão sobre o espaço próprio e sobre a

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226

autonomia própria da liberdade humana. Por isso as reflexões de Agostinho e

Segundo foram consideradas também sob esse ponto de vista.

O quarto e último tema analisado nesta parte final da tese foi exatamente a

questão da liberdade na relação do ser humano com Deus. Neste ponto, tanto

santo Agostinho como J. L. Segundo consideram o ser humano como um “livre

interlocutor” diante de Deus. No entanto, as peculiaridades de cada abordagem

revelam o modo como cada autor enfoca essa interação entre Deus e o ser humano

como uma relação de liberdade a liberdade. Foi isso que procurei aqui explicitar.

Por fim, depois dessa análise, é chegado o momento de uma síntese final,

capaz de extrair pistas para a reflexão e a ação pastoral na realidade brasileira

atual. Deve, no entanto, ficar claro que em nenhum momento eu quis afirmar que

a obra de um dos autores é “melhor” do que a outra. De modo algum foi sugerido

que as reflexões de Agostinho são uma alternativa contra as reflexões de Segundo

ou vice-versa. Apenas procurei fazer indicações, a partir dos elementos fornecidos

por estes dois grandes teólogos, para ajudar no amadurecimento da reflexão sobre

esse tema tão importante que é a questão da liberdade. É assim, que apresento a

seguir os resultados da análise feita, desejando que seja uma modesta contribuição

para o debate teológico e para a vida eclesial.

5.1

Convergências e distinções entre as concepções de liberdade de

santo Agostinho e J. L. Segundo

5.1.1

A liberdade pensada a partir das demandas do contexto em que os

autores estavam situados

Um primeiro ponto que, a meu ver, merece destaque é a abertura para as

necessidades dos cristãos e das comunidades eclesiais em cada época. Esta é, sem

dúvida, uma característica que J. L. Segundo tem em comum com santo

Agostinho. Respeitadas as diferenças do contexto específico de cada autor, ambos

se preocuparam em dar respostas efetivas para problemas que desafiavam a Igreja.

Tal como indiquei na primeira parte da tese, Agostinho foi tenaz no

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227

enfrentamento das crises geradas pelo donatismo, pelo pelagianismo e também no

combate ao maniqueísmo. A concepção de liberdade por ele construída foi sendo

elaborada no interior dos debates, que se faziam necessários para dirimir as

dúvidas e defender a doutrina católica dos ataques desferidos pelos adeptos

daqueles movimentos.

Foi neste contexto, que santo Agostinho defendeu com firmeza o livre

arbítrio contra a visão dualista e determinista dos maniqueus. No esteio desse

debate foi que se afirmou cada vez mais a responsabilidade pessoal do ser humano

sobre suas escolhas e seus atos. É esta responsabilidade pessoal, (fruto da

liberdade naturalmente concedida por Deus ao ser humano), que está na base da

explicação dada por Agostinho para o problema do pecado e do mal.

Por outro lado, constatado o problema teológico e pastoral suscitado pelo

pelagianismo, Agostinho muda o foco de sua teologia, certamente não para negar

a liberdade humana, mas para situá-la dentro da realidade do pecado. A liberdade

humana é real, porém, fragilizada e limitada pelo pecado, não consegue se firmar

no bem sem o auxílio da graça divina. Foi, assim, que Agostinho escreveu

diversas obras, cartas, sermões, voltando-se para as comunidades monásticas, para

o povo de sua diocese, para esclarecer as idéias e apoiar as pessoas numa vivência

correta da fé cristã.

Por seu lado, Juan Luis Segundo, foi também um homem sensível à

realidade do Uruguai e da América Latina como um todo. Sua reflexão teológica

leva em conta os dados econômicos, sociais, políticos e culturais da vida do ser

humano. É dentro dessa existência histórica e social que a liberdade se configura.

A percepção agostiniana de que o ser humano precisa ser libertado do pecado para

ser livre é situada por J. L. Segundo no nível das relações humanas concretas. O

pecado se manifesta em relações de dominação política e cultural, as quais muitas

vezes são até legitimadas religiosamente pelas versões alienantes da fé cristã. O

processo de libertação do pecado tem que estar enraizado historicamente. Foi

mediante a encarnação de Jesus que Deus se revelou, assumindo desde dentro a

história humana, com a finalidade de resgatar a liberdade; a fim de possibilitar que

o ser humano conquiste uma liberdade libertada do pecado, mediante relações

humanas realmente humanizadoras.

Neste sentido, creio que a parte II desta tese deixou claro que toda a vida

de J. L. Segundo foi dedicada a essa missão de esclarecer a fé cristã, tornando a

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228

vivência dessa fé (especialmente nos leigos) mais consciente, amadurecida e

preparada para os desafios dos séculos XX e XXI. A perspectiva que ele

apresentava, fundamentando-se em GS 11, de buscar soluções mais

humanizadoras para os problemas humanos, se situa nesta intenção de possibilitar

um Cristianismo amadurecido, através da formação de leigos “adultos” em sua fé.

Foi com este objetivo que Segundo elaborou uma longa e consistente obra, na

qual se pode encontrar uma “teologia aberta”, que aceita o diálogo com os saberes

provenientes de outras ciências como a biologia, a psicanálise, as teorias de

análise sócio-política tais como o marxismo, etc.

Se, de um lado, Agostinho combate a visão determinista oriunda do

maniqueísmo, defendendo a liberdade mediante o recurso ao livre arbítrio e à

responsabilidade pessoal nos atos morais, de outro lado, J. L Segundo, ao levar

em consideração os condicionamentos biológicos, psicológicos e sociais da vida

humana, rebate as concepções fatalistas que interpretam estes condicionamentos

como um determinismo natural ou social. Segundo compreende a existência

humana, sob o influxo destes condicionamentos, mas, mantendo-se fiel aos

fundamentos bíblicos que concebem o ser humano como ser livre, defende a

perspectiva de que o ser humano interage com estas “determinações” de ordem

biológica, social, etc. E assim consegue formular uma visão do ser humano como

ser condicionado pelos influxos biológicos, sociais e psicológicos, mas ao mesmo

tempo como ser de liberdade, de discernimento e decisão. E assim também J. L.

Segundo combate as visões deterministas modernas provenientes de abordagens

estreitas e fechadas, por serem amparadas em visões “cientificistas” que só

consideram informações exclusivamente científicas.

Creio que estes dados comprovam que tanto Agostinho como Segundo,

por meios diferentes, respondem às demandas dos respectivos contextos em que

se encontravam, mostrando-se sensíveis às necessidades dos cristãos e da Igreja.

A ela dedicaram suas vidas, o primeiro como bispo em Hipona nos séculos IV e V

d.C.; o segundo como padre jesuíta no Uruguai, no século XX, mas ambos com

uma valiosa obra teológica dedicada ao bem do povo de Deus. Neste sentido, eles

construíram uma rica visão da liberdade cristã, fazendo de suas próprias vidas

uma viva experiência dessa liberdade.

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229

5.1.2

As imagens de Deus e a liberdade humana

Tanto na reflexão feita por Agostinho como na reflexão feita por Segundo,

o tema da imagem de Deus está sempre presente. De fato, é inviável refletir sobre

o ser humano numa perspectiva cristã sem referir-se à revelação de Deus. Tanto

na criação como na redenção do ser humano, está presente a iniciativa salvífica

divina. Ao refletirem sobre a liberdade do homem, tanto Agostinho como J. L.

Segundo deixam entrever a imagem de Deus que eles têm em mente. As

respectivas ênfases de cada autor em determinados atributos divinos vão

repercutir consequentemente no modo de conceber o ser humano e sua

interlocução com esse Deus.

Não é difícil perceber que, sendo a obra agostiniana pontuada por

contextos diversos, é natural que seus escritos salientem diferentes traços da

realidade de Deus, de acordo com as necessidades em cada ocasião. Assim,

quando o objetivo é o debate sobre o pelagianismo, Agostinho se expressa de um

jeito. Quando se trata de enfrentar a polêmica com o maniqueísmo a forma de se

expressar já é diferente. Entretanto, em todos os casos a referência a Deus direta

ou indiretamente está presente.

Articulando alguns elementos das obras de Agostinho mais citadas nesta

tese, creio poder oferecer ao leitor uma breve síntese das principais características

da imagem de Deus transmitida pelo bispo de Hipona.

Conforme já foi indicado352, santo Agostinho entende que uma das

características divinas mais evidentes e importantes é o poder de Deus

manifestado na Criação. Em vários trechos de suas obras, Agostinho evidencia os

traços que caracterizam Deus como criador do universo. De tal modo que, pela

contemplação das criaturas o homem pode ser elevado até o Criador. Este é o

Deus que criou o ser humano já naturalmente com o dom do livre arbítrio e com a

capacidade racional de avaliar as situações vividas e de tomar decisões

livremente. Por outro lado, se diz que essas características “naturais” do ser

humano fazem parte do todo maior que é o universo criado. Com efeito, o ponto

de vista de Agostinho expressa a idéia de que este exercício da liberdade por parte

352 Cf. o que foi apresentado no capítulo 1 da parte 1ª da tese, no item 5.1.1 sobre a liberdade humana situada dentro da ordem natural criada por Deus.

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230

do homem se situa dentro de uma “ordem natural” do universo, ordem esta que é

dom de Deus. Trata-se, portanto do Deus Criador, fonte da vida de todas as

criaturas e artífice da própria natureza humana dotada de liberdade.

Por outro lado, Agostinho enfatiza também que esse Deus criador, é o

mesmo Deus que se encarnou em Jesus Cristo para salvar a humanidade. É o Deus

que quer libertar o homem do pecado e para isso concede sua graça, mediante a

ação do Espírito Santo que difunde o amor no íntimo do ser humano (cf. Rm 5,5).

É o Deus que exerce seu infinito poder, tanto na criação do universo com sua

ordem natural, como na redenção da humanidade mediante Jesus Cristo.

Nota-se, portanto, a dualidade no modo como Agostinho apresenta Deus.

Há uma ênfase no “poder” do Deus que cria o universo e o ser humano, exercendo

sobre eles o seu “Senhorio”. De fato, pelo que foi indicado na parte I da tese, um

dos traços fortes da imagem de Deus construída por Agostinho é a caracterização

de Deus como Senhor da criação e da salvação, transcendente, dotado de um

poder inabalável, onipresente, presciente, que sabe de antemão quem e quantos

são os “eleitos”, ou seja, os seres humanos “predestinados” à salvação. Por outro

lado, (tendo em consideração as obras anti-pelagianas e as Confissões), Agostinho

mostra a imagem de um Deus que se faz presente no íntimo da alma de cada

pessoa. Um Deus que toca o coração do homem com suavidade e, de lá de dentro

desse “íntimo mais íntimo” da alma, sensibiliza o ser humano, convidando-o à

conversão e estimulando-o nessa mudança de vida. É assim que Deus age no

interior do ser humano, mas sem violentar a liberdade humana. Como já foi

indicado, é assim que a graça divina cura o livre arbítrio, libertando-o do pecado.

Neste aspecto se manifesta um Deus que infunde amor no interior do ser humano,

justamente por tratar-se de um Deus que é amor.

Nota-se, portanto, que há diferentes aspectos que reunidos expressam uma

imagem de Deus contendo múltiplos significados. Isto é bem compreensível,

quando se considera que na obra de Agostinho a tradição platônica se mescla com

a tradição cristã. Por isso, a noção da divindade como Sumo Bem, como ente mais

elevado dentre todos, (ao qual o ser humano só pode ter acesso mediante um

processo de elevação da alma), é associada com os dados provenientes da

revelação bíblica, que caracterizam o Deus que cria e salva mediante Jesus Cristo.

Ao articular essas duas perspectivas, Agostinho forma uma concepção de Deus

que é cristã, mas ao mesmo tempo eivada de elementos neoplatônicos. Daí advém

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231

aquela ênfase no “poder” de um Deus que é visto como ser “imutável”, “auto-

suficiente”, mas que, ao mesmo tempo, é o autor da Creatio ex nihilo, e o Deus

que enviou Jesus Cristo ao mundo para a remissão dos pecados.

Trata-se, de um Deus que se manifesta amorosamente ao ser humano em

vista de sua salvação e, nisso, Agostinho e Segundo estão de acordo. As

divergências começam a surgir quando se trata de compatibilizar essa ação

salvífica que manifesta o amor de Deus na criação do mundo e na salvação do ser

humano, com a noção do Deus imutável, Senhor do universo, que mediante sua

presciência, seu pleno poder e sua predestinação, “controla” todos os

acontecimentos no mundo criado. Aqui é que se coloca uma dificuldade de se

conciliar estas características da imagem de Deus construída por Agostinho com a

autonomia do ser humano em sua liberdade, bem como em relação à autonomia

do mundo criado com os eventos da natureza que transcorrem segundo suas leis

próprias.

É bem verdade, que o próprio Agostinho faz um grande esforço, para

tentar mostrar que o Deus que predestina os eleitos e pune os condenados, o Deus

soberano que governa o mundo tendo a ciência prévia dos acontecimentos, realiza

um julgamento justo, de acordo com a sua infinita sabedoria divina e de acordo

com os mistérios que escapam ao entendimento limitado do ser humano. Pois este

Deus, “Senhor onipotente e onisciente”, não anula a liberdade humana nem

propõe ao ser humano uma salvação inviável. Agostinho pressupõe que,

oferecendo universalmente a graça, sendo onipotente e santo, sendo o Criador que

fez boas todas as criaturas, Deus não faz acepção de pessoas e não comete

injustiças353.

Na perspectiva que lhe é própria, Agostinho se dá por satisfeito com esta

argumentação e a considera suficiente para afirmar que a concepção do Deus

presciente e todo-poderoso não está em contradição com a liberdade do ser

humano. Entretanto, mesmo considerando o notável empenho de Agostinho, com

os poucos instrumentos de que dispunha em sua época (a tradição platônica e os

dados da revelação bíblico-cristã), é preciso considerar que as noções de

onipotência, presciência e predestinação tradicionalmente atribuídas a Deus

353 Cf. as observações feitas no capítulo 2 da parte I, mais especificamente no item 2.3 sobre a primazia absoluta da graça e o problema do fatalismo teológico.

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232

colocam alguns problemas teóricos e práticos para a teologia em nosso tempo

atual.

É aqui neste ponto que se nota o questionamento proveniente da imagem

de Deus presente na obra de J. L. Segundo. Evidentemente, ele não nega a fé no

Deus criador e no poder de Deus. O que ocorre é que a teologia segundiana enfoca

a ação de Deus no mundo criado, levando em consideração os dinamismos

evolutivos, tanto no universo como no ser humano. Dispondo de todo um aparato

crítico proveniente da biologia, da física, da química da psicologia, da sociologia,

etc., J. L. Segundo pôde articular as autonomias próprias de Deus e do mundo

criado, resguardando com mais nitidez o espaço próprio (a liberdade) da criatura

em sua relação com o Criador.

As realidades do mundo criado são consideradas por J. L. Segundo a partir

de seu desenvolvimento natural. Um desenvolvimento que se dá mediante

múltiplos dinamismos interconectados, cada qual com suas características

próprias. Assim, Segundo mostra que do Big Bang até o surgimento do Homo

Sapiens, o universo fez uma longa jornada, com uma infinidade de vetores de

temperatura, elementos químicos, pressão, espaço, átomos, etc.354, que ao longo

de bilhões de anos foram interagindo entre si, de modo difícil de prever em muitos

de seus aspectos. Além disso, a partir do momento em que, de dentro desse

dinamismo químico e biológico da evolução do universo, surgiu o primeiro ser

humano, Deus então passou a ter diante de si um interlocutor livre. Alguém que

responde com razão, com vontade própria, que tem que dar-se ao trabalho de

descobrir se Deus existe e quem é Deus. Numa palavra: quando surge o ser

humano, é introduzido no âmbito das criaturas um elemento novo, justamente a

liberdade.

Para Segundo os dinamismos da natureza seguem seus próprios princípios,

gerando as distintas espécies da fauna e da flora, por meio de mutações. O Ser

humano aos poucos vai aprendendo a conhecer o universo e a interagir com ele de

modo a criar situações novas, experimentações diferentes, etc. Tal concepção

revela a autonomia do mundo criado e da liberdade humana diante de Deus. O ser

humano “cria” situações novas. A própria natureza, para dar a forma que o

354 Aqui, obviamente Segundo leva em consideração dados fornecidos por cientistas conceituados como J. Monod, S. Hawking, C. Darwin, etc. cujas obras são citadas no Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1... e no Que mundo? Que Homem? Que Deus?... conforme indiquei no capítulo 2 da parte II desta tese.

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233

universo possui hoje, experimentou também “pontos de mutação”, o que mostra

que, do ponto de vista científico, existem regularidades no universo assim como

também o inesperado, a inovação.

Isso implica considerar que Deus criou o universo e o ser humano no

âmbito dessa autonomia. O poder de Deus não pode se infiltrar no mundo criado,

de forma extrínseca e aleatória, para fazer com que os elementos químicos

presentes no cosmo se articulem desta ou daquela maneira. O Deus criador não

precisa “controlar” todos os atos humanos para poder ser onipotente e onisciente.

Se esse fosse o modo pelo qual Deus age, este seria um “deus” que tolhe a

liberdade e a libertação do ser humano. Tal concepção de Deus é inaceitável ao

homem moderno e J. L. Segundo afirma isso com toda sinceridade .

Diante disso, é que aquela concepção de um Deus presciente, onipotente

que predestina alguns seres humanos para serem salvos e “deixando” que outros

sejam condenados torna-se problemática. Ação de Deus deve ser pensada de

forma compatível com uma autêntica liberdade de ação humana e também de

modo compatível com os dinamismos próprios e autônomos das leis naturais, dos

fenômenos (químicos, físicos, biológicos, etc.) que constituem a evolução do

universo.

Isso significa que a partir do questionamento apresentado por J. L.

Segundo as noções de onisciência e onipotência divinas perdem completamente

seu sentido? Não. No entanto, é recomendável que possamos compreender estes

atributos tradicionalmente referidos a Deus, em uma nova perspectiva, levando-se

em conta os dados trazidos pelas ciências da natureza. Nesta nova perspectiva,

Deus continua tendo “poder” eterno e infinito; continua sendo sumamente sábio;

entretanto esse mesmo Deus, conforme a própria tradição cristã admite, é Amor

que não violenta a liberdade do ser humano. É um Deus que não perde sua

condição de Senhor da criação, mas que ao criar estabelece leis e dinamismos

próprios na natureza, no ser humano e no cosmo.

Trata-se de um poder divino que não se sente diminuído pelo poder do ser

humano de acolher ou rejeitar o plano salvífico. Trata-se de um Deus que de certa

forma “se retrai”, um Deus que em sua liberdade e em seu infinito amor, realiza já

na criação uma “kênosis”, um ato de desprendimento voluntário, um ato de

desapego de si, para poder deixar nascer o outro, o diferente dEle, o “não-Deus”,

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234

para assim, no interior mesmo dos “dinamismos naturais” do universo com suas

leis próprias, possibilitar o surgimento das criaturas.

Nesta perspectiva, J. L. Segundo, valoriza, de certo modo, a noção do

“poder de Deus”, e também a noção de que esse poder é exercido amorosamente

em vista da salvação do ser humano, tal como fez Agostinho. No entanto, este

último com os recursos conceituais de que dispunha nos séculos IV e V d.C., não

chegou a uma síntese que pudesse expor com mais detalhe a articulação entre

poder e amor em Deus. Neste sentido, J. L. Segundo teve melhores condições para

esclarecer a questão. Ao pensar a ação do poder infinito de Deus, como auto-

esvaziamento voluntário, que possibilita “um espaço próprio” para a liberdade do

ser humano, J. L. Segundo consegue uma formulação mais nítida sobre a ação

divina. Trata-se de uma onipotência exercida no amor infinito de um Deus que,

por tanto amar, “aguarda” a decisão de sua criatura. Um Deus que não tem seu

poder diminuído por interagir com o ser humano, numa relação de liberdade a

liberdade. Um Deus que é poder infinito e, sem contradizer isso, exerce esse poder

num movimento “kenótico”, de quem interage com as “novidades” criadas pela

ação efetivamente livre do ser humano.

Por outro lado, é sabido que o ápice dessa “kenosis” de Deus se dá na

encarnação de Jesus Cristo. Tanto Agostinho como Segundo lidam com esse dado

central da fé Cristã. No entanto, parece-me que J. L. Segundo percebe melhor a

tensão (para não dizer contradição) entre este dado da encarnação e a noção da

imutabilidade divina. As afirmações de que Deus é eterno, infinito e imutável,

fazem aqui um contraste com a concepção do Deus que livremente decide assumir

a condição humana, finita, temporal e mortal no homem Jesus de Nazaré. Em que

sentido se poderá dizer que o Deus encarnado em Jesus Cristo permanece ainda

“imutável” ? Aqui neste ponto, o aparato conceitual neoplatônico usado por

Agostinho é insuficiente para expressar o mistério da encarnação.

Isso mostra que também neste ponto, a liberdade e o amor se tornam

mediações melhores, para transmitir uma imagem de Deus mais adequada ao

anúncio da fé cristã. Ao considerar o dinamismo da evolução no próprio ser

humano, J. L. Segundo mostra que a existência humana se desenvolve por meio

de muitas transformações na vida pessoal, transformações estas que se dão no

interior de um cosmo também em evolução. A implicação deste dado para a

teologia é enorme. Se Deus, por meio de Jesus Cristo, assume a condição humana

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235

nestes termos evolutivos, participando da finitude, da temporalidade, dos dilemas

colocados pelas opções da liberdade humana, então Deus se vale dessa

“capacidade de mudar” por sua própria e livre escolha. Nada obrigava Deus a se

encarnar mediante a vida histórica do homem Jesus de Nazaré. Se o fez é por que

essa “mudança” foi decidida no âmbito de sua própria liberdade. Por isso, a

imagem de Deus também pode e deve ser enriquecida por esta informação de

profunda significação teológica. Deus em seu amor infinito pela humanidade, por

meio do desígnio de sua vontade, “cria um jeito novo” de expressar seu amor pelo

ser humano. Torna-se, Ele próprio, humano em Jesus Cristo, enchendo de sentido

divino a história humana.

Isso significa que Deus é “mutável” no sentido da contradição e da

incoerência, tal como ocorre no ser humano pecador? Logicamente que não! Em

seu amor infinito Deus não muda. Em seu desígnio de salvar a humanidade por

meio de Cristo, Deus é sim amor perfeito, eterno, sem contradição e neste sentido,

“imutável”. Nisso Agostinho tem razão e J. L. Segundo concorda com ele.

Entretanto, se for tomado como paradigma a noção de imutabilidade nos termos

da filosofia grega (platonismo, neoplatonismo, etc.), a concepção de Deus já muda

de figura. O Deus de Jesus Cristo revelado na Sagrada Escritura, não é “imutável”

no sentido de impassível, indiferente à sorte dos homens, distante numa

transcendência sem contato com a imanência da existência histórica dos seres

humanos.

Por isso, é que se tornam pertinentes as observações aqui feitas a partir das

indicações fornecidas por J. L. Segundo. A forma de se conceber Deus muda,

quando as categorias da cultura moderna entram em cena. As noções antigas de

Deus como ser onipotente e imutável, não precisam ser “anatematizadas”. No

entanto, podem ser enriquecidas por novas informações da cultura atual, sendo re-

valorizadas sob um novo enfoque. De certo modo, é neste sentido que se colocam

as considerações feitas na reflexão segundiana.

A imagem de Deus que daí deriva é muito enriquecedora para a reflexão

teológica e a prática pastoral nos dias de hoje. Sem deixar de valorizar os

elementos essenciais que Agostinho legou à Tradição Cristã, essa imagem de

Deus renova essa mesma tradição, evitando os impasses gerados nas antigas

concepções da onipotência e da imutabilidade divinas.

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236

Nos parâmetros da cultura atual, já não é aceitável a afirmação de uma

onipotência divina, entendida como poder ilimitado para agir mesmo até

contradizendo o amor e violando as leis naturais e a liberdade humana. De modo

análogo, a concepção do “Deus imutável” precisa ser repensada sob um novo

enfoque, quando confrontada com o dado da encarnação de Jesus Cristo, nos

dinamismos evolutivos da existência histórica da pessoa humana.

Deste modo, superando concepções, (que na prática distorcem a imagem

de Deus e anulam a liberdade humana), a “nova imagem de Deus” implícita na

obra de Segundo liberta a fé cristã para apresentar Deus sob uma nova ótica, de

modo a valorizar o amor e a liberdade como traços característicos do poder de

Deus e do jeito de agir do Deus cristão.

Será que uma imagem de Deus assim, bem articulada com a liberdade do

ser humano, uma imagem de Deus libertadora e coerente com a revelação de Deus

em Jesus Cristo, não traria grandes benefícios para os fiéis e para as comunidades

cristãs nos dias de hoje? Creio que sim. Seria muito oportuno que nas atividades

desenvolvidas nas comunidades, paróquias e dioceses, se pudesse difundir essa

imagem libertadora de Deus, superando certas concepções que dificultam uma

autêntica liberdade na relação entre os cristãos e destes com Deus.

5.1.3

A liberdade articulada à noção de Ordem Natural

Um dos pontos importantes da reflexão agostiniana é a visão do livre

arbítrio como um “dom natural” dado por Deus à criatura humana. A partir desta

compreensão, a liberdade é vista como algo inerente ao próprio ser humano. Neste

sentido, essa natureza humana, que faz com que o homem tenha em si a

capacidade de exercitar sua própria liberdade, é parte da “ordem natural” do

mundo criado por Deus. De outro lado, ficou provado na argumentação teológica

feita por Agostinho, que há o outro aspecto, em que a liberdade é vista como vida

isenta de pecado. Nesta perspectiva, ser livre é viver de acordo com a salvação

proposta por Deus. O mundo que Deus queria quando criou o universo certamente

não é este que traz em si a realidade do pecado. É neste sentido, que se pode

também dizer “agostinianamente”, que ser livre é ajustar-se ao plano

originalmente querido por Deus. É adequar a própria vida à lei eterna do Criador

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237

pela qual é regido o universo. O ser humano deve ajustar a própria conduta

pessoal à verdade sobre si mesmo e sobre a ordem natural do mundo criado.

Na visão de Agostinho, a liberdade se articula, por um lado com a ordem

natural do universo e, por outro, com a graça redentora que nos é dada por Deus,

mediante Jesus Cristo, no Espírito Santo. Graça esta, que age enquanto poder de

Deus que possibilita ao ser humano retomar a capacidade de viver de acordo com

a ordem natural, superando o pecado que o desvia dessa ordem.

Como já indiquei anteriormente355, perceber a harmonia entre os diversos

bens e seres existentes no universo constitui, para Agostinho, uma forma de

contemplar os sinais da presença de Deus no mundo criado. De acordo com esta

perspectiva há uma hierarquia entre os elementos naturais que constituem o

universo, hierarquia esta que progride dos bens e criaturas inferiores para os

superiores. Neste sentido, é que Agostinho concebe que o ser humano criado à

imagem e semelhança de Deus está situado no topo da hierarquia das criaturas

terrestres. Pois só o ser humano possui além da existência, a consciência e a razão.

Mas acima desta realidade natural do ser humano estão situadas as realidades

celestes, onde o topo da hierarquia é ocupado pelo próprio Deus. Assim, por livre

vontade, o ser humano deve seguir numa ascensão, partindo das realidades

terrestres do mundo criado, elevando-se até a visão beatífica de Deus. O ser

humano progride em liberdade, ao adequar-se a esta verdade e ao percorrer este

itinerário espiritual ascendente, rumo aos bens mais elevados nessa “hierarquia

natural” estabelecida por Deus em sua lei eterna.

A passagem das realidades temporais para as realidades celestiais e

eternas, requer um certo desprendimento dos bens terrenos, afim de que o ser

humano possa “estar livre”, ou seja, “disponível” para fruir dos bens eternos,

dando a cada realidade o seu devido valor, tendo sempre em vista a subida para o

topo da hierarquia. A possibilidade de êxito neste percurso está diretamente

vinculada à acolhida da graça divina. Somente assim é que o ser humano se liberta

do pecado e chega ao ápice deste percurso, cumprindo a “meta natural” para a

qual foi criado.

No que toca a essa consideração acerca da ordem natural, J. L. Segundo

tem abordagem bem distinta da de Agostinho. Isso porque, Segundo é da opinião

355 Cf. item 5.1.1, no capítulo 1 sobre o modo como Agostinho enfoca a relação ,entre liberdade e ordem natural do universo, na parte I desta tese.

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238

de que a noção de uma ordem natural do universo fixa e imutável torna-se

contraditória com a concepção de uma autêntica liberdade humana.

Como indiquei antes356 , J. L. Segundo entende que esta noção de uma

ordem fixa do universo tem suas raízes na tradição filosófica grega. Nessa

tradição, formou-se a concepção do universo como um mundo regido por

princípios de causalidade. Desse modo aplicou-se a lógica de causa/efeito aos

elementos da natureza, gerando a opinião corrente de que a divindade teria

vinculado cada ser presente no mundo a uma finalidade determinada. Cada ente

existe em função da finalidade que lhe é própria, sendo o universo o produto final

da articulação entre os entes que o compõem.

J. L. Segundo mostra que a filosofia cristã medieval assimilou esses

pressupostos, passando a identificar essa ordem fixa do mundo natural com a

própria noção do “bem”. Assim, foi que se fixou a idéia de que cada ser e

elemento da natureza deveriam permanecer em seu estado original, continuando a

desempenhar sempre a mesma função para a qual foram criados, em vista do

“bem”, ou seja, em vista da harmonia da “ordem” do cosmo. Por contraposição,

desajustar essa “ordem” natural do universo passou a ser compreendido como ir

contra o bem, portanto, seria o mesmo que cometer um mal357.

É aqui, então, que se situa o problema relativo à questão da liberdade.

Como é possível adotar esta visão de um universo, em que cada coisa tem que

estar em seu lugar próprio, fixo e imutável e postular, ao mesmo tempo, que o ser

humano faz parte deste universo, sendo porém dotado de liberdade para agir como

quiser? O ser humano deve ser submisso aos dinamismos da natureza, devendo

ajustar-se a uma suposta ordem fixa do universo previamente estabelecida? Ou

deve antes exercitar a arte da experimentação e a liberdade de agir para

transformar, criar, criticar, re-criar...?

É neste sentido que é colocada a crítica de J. L. Segundo a essa concepção

fixista do universo, que secularmente vem sendo divulgada através da noção de

“ordem natural”. Pensada nestes termos, tal noção se aproxima mais de um

determinismo (no sentido pejorativo do termo) do que de uma autêntica liberdade.

Se tudo que cabe ao ser humano, (em sua relação com o mundo da natureza), é

356 Cf. item 4.1.1, no capítulo 2 da parte II desta tese, capítulo este que aborda as tensões entre determinismo e liberdade. 357 SEGUNDO, J. L. , Que Mundo? Que Homem? Que Deus?...p. 155.

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239

adaptar-se, é “não mudar”, então o dinamismo de seu livre arbítrio e de sua

liberdade pouco ou nada valem. Numa concepção fixista do universo, o ser

humano fica “impedido de criar”, uma vez que por meio de uma lei natural de

origem divina, ele tem que permanecer para sempre no lugar que para ele foi

estabelecido na ordem natural do universo.

Isto posto, cabe a pergunta: Será que a concepção de Agostinho acerca do

universo criado como dom de Deus, de acordo com uma ordem hierárquica de

matérias e seres vivos existentes no universo é de todo errada? Será que a

condição específica do ser humano dotado de razão e capacidade de aprendizagem

e, portanto de discernimento ético, não constitui efetivamente uma característica

que o especifica e distingue, colocando-o num nível “superior” quando

comparado às demais criaturas (justificando uma certa noção de hierarquia entre

as criaturas)? Não há razões para considerar legítima a opinião de Agostinho a

respeito dessa noção de ordem natural? Será que o livre arbítrio e o dinamismo da

liberdade não são mesmo elementos da “natureza humana”, que aos olhos da fé

cristã são legitimamente percebidos como dons oferecidos pelo Criador, a fim de

que a criatura humana saiba se situar no universo criado?

Como se vê a questão tem suas nuances e seria um equívoco dizer que um

autor está certo e o outro errado. Cada um deles com o instrumental científico,

filosófico e teológico de que dispunha em sua época, enfocou a noção de “ordem

natural” sob um prisma específico. Essa constatação tem como conseqüência o

fato de que é preciso submeter o pensamento dos autores à crítica, mas

reconhecendo também os méritos próprios da abordagem de cada um.

No caso presente, da noção de ordem natural e suas implicações para o

tema da liberdade, há também “pontos de contato” entre Segundo e Agostinho.

Existe sim o reconhecimento da parte de J. L. Segundo, a respeito dos dinamismos

naturais do universo e de como eles configuram o modo pelo qual o ser humano

poderá exercitar sua liberdade. Daí tudo o que se disse a respeito dos

“determinismos”358 próprios dos sistemas biológicos, psicológicos, etc. que fazem

parte da existência humana. A liberdade construída mediante o livre arbítrio de

que fala Agostinho é (também para J. L. Segundo) um processo que traz a marca

da natureza humana, que o Deus criador concedeu à criatura. O acréscimo que

Segundo pode fazer em relação à Agostinho, reside no fato de que J. L. Segundo, 358 Aqui em sentido positivo, não pejorativo.

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240

refletindo com dados científicos não disponíveis na época de Agostinho, consegue

construir uma concepção da interação da liberdade humana com o universo

criado, em termos mais dinâmicos e complexos. J. L. Segundo admite sem

problemas que o universo é constituído de uma harmonia natural e é isso que em

sentido positivo a noção de “ordem natural” deve evidenciar. Entretanto,

Segundo, muito mais do que Agostinho, teve condições para entender que esta

ordem natural do universo não é fixa e estática. Ao contrário, ele mostra com toda

clareza que o universo possui estruturas químicas, físicas, biológicas que se

modificam com o passar do tempo. Tanto o ser humano como o cosmo se

desenvolvem por múltiplos dinamismos que podem ser considerados naturais

(estão no âmbito da natureza), mas que são também dinamismos evolutivos.

Esta percepção é que estabelece uma grande diferença entre as abordagens

de Segundo e Agostinho. A perspectiva evolutiva de Segundo, (diferentemente da

perspectiva fixista usada por Agostinho), é que permite uma concepção da ordem

natural do universo mais dinâmica, mais aberta a situações novas, imprevistas, a

situações que vão possibilitar ao ser humano o exercício de uma verdadeira

liberdade de experimentação e de criação.

Daí a compreensão formulada por Segundo de que há também “acasos”,

mesmo nos dinamismos que deram a forma atual do planeta terra, assim como

houve também “acasos” na passagem dos primatas até o homo sapiens. Isso quer

dizer que a “mãe natureza” passa por mutações. Suas leis que pareciam tão rígidas

e metódicas têm também seus “momentos imprevisíveis”, somente explicados a

posteriori pela ciência. Estes acasos inibem a ação previsível e permanente de

muitos fenômenos naturais? O próprio J. L. Segundo reconhece que não. Muitos

dos princípios da física de Newton continuam operando mesmo depois das

descobertas da física quântica. As regularidades permanentes dos movimentos dos

planetas em suas respectivas órbitas é que garantem a sobrevivência do planeta

Terra. E graças a isso os seres humanos podem fazer planos, ter uma vida

cotidiana, traçar metas, justamente porque há um certo funcionamento previsível

do universo, através de mecanismos repetitivos presentes no cosmo. Ou seja,

santo Agostinho tem razão por um lado e Juan Luis Segundo também tem razão

pelo outro. Há “determinações” e também “indeterminações” (“acasos”) na

natureza. O universo possui uma harmonia na articulação entre tantas forças,

elementos químicos, organismos biológicos, etc. Isso faz com que determinismos

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e acasos se articulem num todo maior, numa “ordem” não fixa, não estática, a qual

revela no fim das contas um sentido, um telos, que se nota no modo como o

universo se desenvolveu até possibilitar o surgimento do ser humano.

A noção de ordem concebida por Agostinho a partir de uma concepção

fixista do universo, é re-criada por J. L. Segundo numa concepção evolutiva. Esta

concepção é mais adequada para mostrar a conexão entre os diversos dinamismos

formadores do cosmo e os dinamismos formadores do ser humano dotado de

liberdade. E neste ponto J. L. Segundo teve melhores instrumentos científicos e

filosóficos do que Agostinho e, por isso, pôde explicar melhor a complexidade

desse processo que integra o ser humano ao universo. Processo no qual o ser

humano é constituído com o dom natural do livre arbítrio, a partir do qual tem a

capacidade de interagir com os seres e elementos da natureza por meio de opções

livres. A relação do ser humano com esta “ordem natural” do universo está,

portanto, situada no âmbito de uma liberdade verdadeira. Uma liberdade

condicionada, por muitos determinismos (biológicos, psicológicos, econômicos,

políticos...), porém uma liberdade real, aberta à criação, à “evolução” ao

aparecimento do novo.

Trazendo essa reflexão para a realidade atual, será que não caberia um

trabalho para incluir nas comunidades, paróquias, e movimentos cristãos essa

riqueza trazida pela concepção evolutiva do universo, sem desprezar a validade da

noção de ordem e harmonia criadas por Deus? Neste ponto, uma articulação

crítica mas também propositiva, entre as perspectivas de Agostinho e Segundo

seria bastante útil para repensar a liberdade em sua relação com as noções de lei

natural ou ordem natural. Creio que o desenvolvimento do diálogo entre as

reflexões dos dois autores a respeito desse tema, seria muito proveitoso para a

Igreja.

5.1.4

A liberdade como cooperação entre o Ser Humano e Deus

Quando santo Agostinho quer refletir sobre a liberdade, ele sempre

relaciona o ser humano livre com o Deus que o criou naturalmente dotado de

liberdade. Sua experiência pessoal de conversão, tão ricamente descrita no livro

das confissões, certamente o influencia nessa perspectiva. Por outro lado, o

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242

aprofundamento de seus estudos sobre a Sagrada Escritura e o uso dos textos

bíblicos nas obras escritas para superar o donatismo, o maniqueísmo e o

pelagianismo, deram significativa contribuição para Agostinho situar a liberdade

no âmbito da relação do ser humano com Deus.

De um lado, a liberdade é pensada a partir do livre arbítrio, como dom

oferecido por Deus ao ser humano. Um dom que faz parte da própria natureza

humana. Um dom que precisa ser usado com responsabilidade para estar de

acordo com o plano de Deus, que é a plena comunhão entre o Criador e as suas

criaturas.

De outro lado, a liberdade é vista como um modo de vida qualitativamente

novo. Uma vida caracterizada pela redenção operada mediante Jesus Cristo. Neste

sentido, a liberdade autêntica para o ser humano é aquela que se dá quando o livre

arbítrio consegue, com o apoio da graça divina, desprender-se do pecado,

aderindo ao projeto do Reino de Deus apresentado por Jesus.

Nota-se, portanto, que santo Agostinho enfatiza que a cooperação do ser

humano com Deus se dá mediante a adesão livre ao projeto proposto por Deus.

Certamente trata-se de uma adesão que deve ser manifestada na prática histórica.

Porém a ênfase recai muito mais sobre a graça divina devido às exigências da luta

anti-pelagiana. Pode-se dizer que, dentro da perspectiva agostiniana, o grande mal

do mundo é o pecado, fruto exatamente da “falta de cooperação” do homem em

relação a Deus. Para superar esta situação é preciso dispor de meios para que a

vontade de cooperar livremente com o plano de Deus substitua a vontade livre que

não quer ou ainda não pode fazê-lo.

a) Espiritualidade e práxis cristã

Assim, retomando aqui as linhas básicas da reflexão sobre a liberdade359,

alguns aspectos devem ser ressaltados. O primeiro deles é a necessidade de

ordenar a vida de acordo com a reta razão. Agostinho destaca nos escritos anti-

maniqueus, o valor dos dons que Deus ofereceu ao criar a natureza humana.

Dentre estes, o dom que caracteriza singularmente o ser humano, diferenciando-o

359 Conforme as indicações sobre os pontos característicos do pensamento agostiniano sobre a liberdade feitas nos capítulos 1 e 2 da primeira parte desta tese.

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243

das demais criaturas é precisamente o dom da razão360. Trata-se não somente da

capacidade de raciocínio, mas também do discernimento ético, da avaliação

conforme o bom senso, de acordo com a lei eterna e a ordem natural feitas pelo

próprio Criador.

De certo modo, é no uso dessa capacidade que o ser humano constrói sua

vida pessoal. Pode-se dizer que as atitudes e a própria busca do homem pela

verdade dependem desse dom que é a razão. Deste modo, o homem livre é aquele

que se empenha por própria vontade na busca do conhecimento. Ser livre é

conhecer a verdade (sobre si mesmo e sobre o universo) e poder viver de modo

coerente com ela. Nesta busca da verdade, obviamente se coloca a necessidade de

o ser humano encontrar-se com Aquele que é a própria Verdade. Daí advém o

itinerário espiritual proposto por santo Agostinho; itinerário de busca da verdade,

tanto no interior da própria alma, como na elevação até a transcendência de Deus,

mediante a contemplação dos sinais do Criador na harmoniosa disposição

hierárquica das criaturas.

Deus que é a suprema Verdade, (da qual derivam as demais verdades sobre

as criaturas), pode ser encontrado pela alma racional. Porque Deus se dá a

conhecer. Ele oferece os sinais de sua presença no mundo criado e, mais ainda, se

revela mediante Jesus Cristo.

Claro que a iniciativa dessa revelação é graça, é oferta totalmente gratuita

da parte de Deus. Agostinho não cansa de enfatizar isso. No entanto, há uma

contrapartida do ser humano que deve responder ao chamado dessa verdade que

se revela. A razão entra também como parte dessa resposta. A alma racional deve

cooperar, buscar e decidir, no âmbito da práxis, a atitude que será tomada.

Isso se mostra na mobilização da vontade mediante o livre arbítrio na

superação das “paixões”, que fazem com que o ser humano se afaste do Criador,

apegando-se aos bens inferiores na hierarquia das coisas e seres criados. Há,

assim, uma “reta razão” que deve ordenar a vida do ser humano. Este deve tornar-

se capaz de optar pelos bens superiores até poder gozar da plena comunhão com o

Sumo Bem que é o próprio Deus. Neste processo, a mobilização do livre arbítrio

pela vontade depende da graça, mas age pelo próprio dinamismo da ação da razão

humana.

360 Cf. as citações de De libero arbitrio 1,1,16; 1,7,17 e 1,8,18, no capítulo 1 desta tese.

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244

Nota-se, assim, a relevância do discernimento e da vontade pessoal como

elemento constitutivo da liberdade para Agostinho. Aliás, essa valorização da

razão é um elemento importante na busca pelo conhecimento, no desejo de agir

com sabedoria e no empenho pessoal para o cultivo das virtudes. Sem este

elemento não existe uma autêntica relação de liberdade, de “cooperação” entre o

ser humano e Deus.

No entanto, para que essa deliberação racional possa ser eficaz, é

necessário que o ser humano consinta na ação de Deus no interior da própria

alma. Neste caso, deixar Deus agir, significa deixar o livre arbítrio ser curado pela

graça. Já foi dito anteriormente que este livre arbítrio humano, afetado “desde a

origem” pelo pecado, precisa ser libertado para ser efetivamente livre em seus

resultados. Por isso é imprescindível a ação da graça divina, pois sem ela a ação

humana mediante o livre arbítrio não se volta efetivamente para o bem.

Este se configura como um segundo ponto fundamental nessa capacitação

do ser humano para livremente poder cooperar com Deus. Agostinho foi se

tornando cada vez mais enfático a este respeito. É o próprio Deus quem estimula o

ser humano a essa cooperação. É sendo libertado, que o ser humano vai se

tornando mais livre, mediante uma adesão voluntária ao plano de Deus. É assim

que ele vai se tornando capaz de cumprir os mandamentos da lei de Deus expressa

na Sagrada Escritura. É assim que ele vai aprofundando sua capacidade de seguir

os ensinamentos de Jesus Cristo.

Como se pode notar, há uma cooperação, ou uma ação mediante a vontade

pessoal do ser humano em prol do Reino de Deus. Mas trata-se de um processo

que deve crescer até o seu pleno desenvolvimento. Deste modo, Agostinho

concebe como “verdadeira liberdade” a situação em que o ser humano viva

definitivamente liberto do pecado. Tal é a situação que se configura na vida dos

bem-aventurados, que pela ressurreição desfrutam da visão beatífica de Deus. Por

isso, é que Agostinho concebe esse crescer em liberdade, como a passagem de

uma situação de poder não pecar (“posse non peccare”) para a situação definitiva

de não mais poder pecar (“non posse peccare”). É a passagem da liberdade

efêmera que ainda avança e recua na prática da justiça, para a liberdade que não

tem mais recaídas no pecado, porque está irreversivelmente firme no amor a Deus

e ao próximo.

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245

E aqui entram todos aqueles dinamismos da renovação interior mediante a

ação do Espírito Santo, da práxis da justiça mediante a fidelidade ao projeto de

Deus revelado em Jesus Cristo, da experiência do amor, anteriormente

mencionados361. Em todos estes dinamismos estão presentes os dois elementos

característicos da reflexão agostiniana sobre a liberdade cristã: por um lado o dom

de Deus e por outro lado a ação do ser humano em sua liberdade.

Todo esse processo constitutivo da liberdade humana passa pela

espiritualidade. É na própria relação com Deus que o ser humano adquire forças

para corrigir seus erros e passar a cooperar mais com o plano divino. Por isso,

Agostinho enfatiza que todos os dinamismos constitutivos da liberdade só estão

completos se estiverem associados na oração, na prática da piedade e da união

espiritual com Deus.

É neste sentido vertical que o ser humano pode “subir” até Deus, pela

oração, num diálogo filial com Ele, um diálogo entre filho e Pai, entre a criatura e

o seu Criador. Sem este cultivo da vida espiritual, sem este reconhecimento de

que o ser humano precisa de Deus, como poderá ele alcançar a salvação? Sem

Deus como poderá o homem encontrar Deus? Como poderá superar o pecado e

passar a cooperar com Deus? Neste sentido, é que a vida de oração a Deus, a

prática espiritual constituem o elemento que unifica todos os demais dinamismos

da liberdade que foram assinalados aqui. E isso constitui uma característica

singular da abordagem agostiniana.

Isto posto, cabe verificar o contraponto que se estabelece entre a

concepção agostiniana e a reflexão de J. L. Segundo sobre este tema da liberdade

como elemento próprio da relação do ser humano com Deus. Aqui, como nos

itens anteriores, há pontos de semelhança como também pontos de distinção.

Certamente J. L. Segundo concorda com Agostinho no que tange à

necessidade da graça divina para a libertação do livre arbítrio; no que toca ao uso

da razão, juntamente com a mobilização da vontade pessoal, para a ampliação de

conhecimentos e para que o ser humano possa alcançar uma vida virtuosa,

cooperando com o plano salvífico proposto por Deus.

No entanto, deve-se notar que a reflexão feita por Agostinho coloca a

liberdade sob um enfoque mais pessoal e espiritual. Santo Agostinho pensa no ser

humano histórico concreto, não resta dúvida, mas concebe este ser humano em 361 Temas que foram indicados no capítulo 2, na parte I desta tese.

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sua relação com Deus, ou seja, no âmbito do plano salvífico. Aliás, neste plano da

ênfase na espiritualidade como elemento fundamental da vivência da liberdade, a

reflexão segundiana poderia ser enriquecida pelas afirmações de Agostinho, já que

a ênfase da reflexão segundiana recai mais na práxis, pela qual se realiza a

cooperação do ser humano com Deus.

Com efeito, J. L. Segundo aborda a liberdade também no âmbito da

existência histórica da pessoa humana, mas caracterizando a liberdade como uma

experiência simultaneamente pessoal e social. Com isso, o autor quer indicar que

a liberdade existe sempre a partir do enraizamento histórico do ser humano. É aí

na realidade histórica, por intermédio das relações sociais estabelecidas, que o ser

humano se torna um interlocutor de Deus. A “cooperação” do homem com o

plano divino se estabelece por intermédio das relações com o próximo, nos planos

da sociedade, da economia, da política, da cultura, etc. É dentro desse mundo

histórico concreto, que Deus fala ao homem e é dentro deste mesmo mundo das

relações sociais, que o ser humano responde livremente às interpelações feitas por

Deus.

b) Aprendizagem dos valores coerentes com o projeto de Deus

Aqui é que se coloca a necessidade de o ser humano construir sua própria

escala de valores, a partir das relações que estabelece com o próximo e com a

sociedade. É deste modo que ele hierarquiza os valores, mantendo uma “crença”

na importância “absoluta” dos valores superiores em sua vida. J. L. Segundo é

muito enfático em mostrar que essa “fé antropológica” nos valores mais

importantes da vida da pessoa, constitui a base do que será a “fé propriamente

religiosa”. Há uma necessidade básica no homem, de crer nesses valores mais

importantes que dão “estrutura” e “direção” à vida. Tais valores são a base da

construção do projeto de vida de cada pessoa.

J. L. Segundo mostra que o Deus que se encarnou em Jesus Cristo assumiu

por inteiro os dinamismos antropológicos próprios da existência humana. Então,

isso implica que a revelação de Deus em Jesus Cristo passa por dentro desse

processo de construção da fé antropológica nos valores humanos fundamentais. O

homem Jesus de Nazaré precisou construir sua própria escala de valores, a partir

dos padrões morais e sociais da cultura judaica na palestina do século primeiro de

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247

nossa era. Além disso, em sua atividade profética, Jesus teve que se valer dos

valores então disponíveis, para tornar inteligível naquele ambiente, a sua

mensagem sobre o Reino de Deus. Isso vem confirmar a perspectiva segundiana

de que a fé antropológica nos “valores absolutos do ser humano” constitui uma

mediação fundamental dessa interação entre o homem e Deus. É essa fé

antropológica que indica os valores absolutos aos quais o ser humano pode confiar

a totalidade de sua existência.

Aqui é que se dá o elo de ligação entre esta fé nos valores fundamentais

da pessoa, com a fé nos valores indicados pela revelação divina ocorrida em Jesus

Cristo. Ou seja, a passagem de uma “fé antropológica” nos valores humanos, para

a “fé religiosa” ancorada na revelação divina, está intimamente relacionada com

estes “valores absolutos” do ser humano. Pois o próprio Deus encarnado em Jesus

de Nazaré se utiliza desses valores para revelar seu projeto de vida aos homens.

A partir dessas informações, J. L. Segundo mostra que essa fé religiosa se

caracteriza pela experiência da adesão a certos valores prioritários; valores que o

ser humano “aprende” no convívio social e nos quais “crê”, mesmo sem ter uma

certeza experimental. A fé religiosa é uma “aposta”, na qual o ser humano se

arrisca por confiar em “dados transcendentes”, ou seja, informações, intuições,

acontecimentos, percepções da realidade que, (embora sejam condicionados

historicamente), situam-se além do entendimento racional e além da possibilidade

de comprovação empírica. Nota-se, portanto, que tal experiência não se restringe

às religiões propriamente ditas, não se confunde com as práticas de uma

instituição religiosa específica. Trata-se de uma experiência existencial profunda,

(que até pode se valer do instrumental religioso formal), mas que vai muito além

dele. A fé religiosa se manifesta nessa atitude de crer em determinados valores

fundamentais, baseando-se nos dados transcendentes disponíveis. Ter fé, no

sentido aqui indicado, é fazer uma opção de vida pelos valores absolutos

escolhidos. É um dedicar-se a estes valores, mesmo quando o contexto histórico

não é favorável. Neste sentido, “ter fé” é um transcender o estado atual da

realidade, a fim de buscar a máxima realização dos valores absolutos.

Deste modo, se pode dizer que é através dessa experiência de fé nos

valores absolutos, que o ser humano pode vislumbrar os sinais daquilo que Deus

quer e propõe para a vida humana. É no bojo deste mesmo dinamismo que se dá a

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percepção humana da revelação divina. É por isso que J. L. Segundo afirma que o

anúncio do Reino de Deus feito por Jesus representa um apelo a uma fé religiosa.

Ao pedir que seus ouvintes mudem de vida e creiam que o Reino de Deus

está próximo (cf. Mc 1,15-16)362, Jesus está solicitando que sejam reconhecidos os

“sinais” do Reino que ele estava realizando. Sinais que se davam na realidade

histórica mediante os atos e os valores defendidos por Jesus, mas que enquanto

tais não poderiam ser submetidos a uma comprovação científica estrita. Portanto,

justamente por compartilhar dos valores que Jesus vivia e anunciava, é que seus

ouvintes, podiam se converter e crer na boa nova. Apostando nos sinais e no

anúncio feito por Jesus, os discípulos aceitam a proposta de uma “metanoia”, ou

seja, uma mudança na escala de valores a que estavam habituados. Nesse

processo, crendo nos dados transcendentes indicados por Jesus, é que os seus

seguidores fizeram uma experiência de passagem da fé antropológica para a fé

religiosa.

Nota-se, por esse exemplo, como a vivência dos valores constitui uma base

importante para que Deus possa se revelar ao ser humano. No sentido inverso, é

também através da fé nos valores, que o ser humano pode sentir a presença de

Deus e interagir com Ele. É aí nessa articulação entre fé antropológica e fé

religiosa que poderá dar-se a cooperação entre o homem e Deus.

Neste sentido, J. L. Segundo situa esta cooperação no nível pessoal e nisto

sua abordagem se assemelha à de santo Agostinho. Este com os conceitos

próprios de sua época, mostrou também as condições para que a liberdade humana

possa interagir favoravelmente em relação ao projeto salvífico de Deus. Por sua

parte, J. L. Segundo com os conceitos de estrutura de valores, fé antropológica e

fé religiosa expressa com mais riqueza de detalhes este mesmo dinamismo da

relação pessoal do ser humano com Deus. No entanto, como se sabe, isso não é

tudo. O ser humano é um ser social e mesmo sua relação pessoal com Deus é

socialmente condicionada.

Aqui se apresenta um ponto em que J. L. Segundo pôde avançar mais do

que santo Agostinho. Certamente o bispo de Hipona com sua genialidade própria,

percebia a importância da vida comunitária e das instituições como a Igreja e a

família na transmissão dos fundamentos da fé. Entretanto, valendo-se de todo o

cabedal da concepção moderna da história, dos conceitos críticos da sociologia e 362 Cf. SEGUNDO, J. L. , O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1..., p. 88-90.

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249

da psicologia, J. L. Segundo pôde compreender melhor os dinamismos que dão a

forma histórica concreta à prática de fé. E foi por isso que ele se propôs a analisar

os processos sociais, que configuram essa interatividade entre o ser humano e

Deus.

Já foi dito acima, que os valores formam a base a partir da qual o ser

humano interage com o mundo e com Deus. Na medida em que esses valores vão

sendo socializados culturalmente, forma-se uma espécie de “memória coletiva da

espécie humana”, que será fundamental para transmitir critérios e experiências

para as futuras gerações. Isso produz uma “tradição”, um “ambiente propício” à

conversão e ao aperfeiçoamento na escala de valores de cada indivíduo. Já se nota

aqui essa interação entre o coletivo e o pessoal.

Aplicando esse raciocínio à revelação bíblica, pode-se dizer que foram os

valores previamente existentes nos interlocutores de Jesus, que lhes possibilitou

compreender o anúncio que Ele fazia do Reino de Deus. Esta base de valores era

formada e divulgada socialmente. Logo, essa interação do ser humano com a

sociedade é fundamental também para a relação deste com Deus. É por isso que J.

L. Segundo vai situar essa interação no âmbito das mediações oferecidas pela

sociedade.

Para viver e se desenvolver, o ser humano depende do próprio processo

coletivo de construção da vida humana, mediante a criação e atuação das

instituições da sociedade, mediante a difusão de valores essenciais à vida, etc. É

dentro deste processo social e coletivo que o ser humano vai recebendo “dados

transcendentes”, vai adquirindo experiências, que lhe ensinam como viver valores

que acrescentam descobertas e novidades, que ampliam os conhecimentos do

homem sobre si mesmo, sobre a sociedade e sobre Deus. É por isso, que J. L.

Segundo qualifica esse processo interativo, denominando-o de “dêutero-

aprendizagem”. É nesse processo que se vai progressivamente descortinando a

revelação e interagindo com Deus. Trata-se de um processo em que há crises,

insuficiências, correções de apreensões parciais errôneas e aprimoramentos. Um

processo que está sempre aberto a novas faces e nuances da Verdade que se

revela.

Nota-se, portanto, que nesta “aprendizagem em 2º grau” o ser humano

exerce um papel ativo na própria revelação de Deus. As suas descobertas e mesmo

seus equívocos contribuem para o seu “aprendizado” da experiência salvífica que

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250

Deus vem construir com ele, “livremente” e “criativamente”. Assim é formada

uma concepção bem mais dinâmica da cooperação entre o homem e Deus. Trata-

se de uma concepção que respeita o caráter progressivo da cognição humana e

também as experiências de criação, de questionamento, de dúvidas próprias de um

ser que pensa por si mesmo e age com autêntica liberdade diante de Deus. Trata-

se, portanto, de uma concepção na qual, a própria experiência do erro e de sua

correção é integrada nos dinamismos da relação entre Deus e o homem.

Aqui, nota-se bem a diferença em relação a Agostinho. Creio que Segundo

tem um jeito “otimista” de considerar os erros e pecados, integrando-os no

processo da dêutero-aprendizagem, que faz o ser humano amadurecer em sua

própria experiência de liberdade. A visão agostiniana sobre o pecado já é bem

mais pesada e indicando-o como caminho de perdição, que pode levar o homem

ao definitivo afastamento de Deus363.

De outro lado, esta descrição do processo de aprendizagem, ressalta

também o caráter simultaneamente pessoal e social da relação de liberdade que se

estabelece entre Deus e o ser humano. Mesmo na qualidade de receptor da

revelação divina, o ser humano é um interlocutor livre, efetivamente ativo nas

relações sociais, mediante as quais os valores do projeto de Deus lhe são

revelados. É esta intuição genial que J. L. Segundo desenvolve nos conceitos da

ecologia social, da flexibilidade histórica e da evolução cultural.

c) Relações sociais e processos culturais humanizantes

Não é necessário repetir tudo que já foi apresentado sobre o conteúdo

destes conceitos, basta aqui indicar seus traços fundamentais em ordem à questão

da liberdade. Assim, vale a pena destacar que o mesmo processo interativo entre

pessoa e sociedade pelo qual se dá a dêutero-aprendizagem, se faz presente

também na própria formação das estruturas e instituições da sociedade. Estas

exercem um papel importantíssimo em prol da vida coletiva, articulando distintos

interesses, prestando serviços de utilidade pública, produzindo e difundindo

cultura, etc. Ao conjunto deste dinamismo J. L. Segundo chama de “ecologia

social”.

363 Daí as expressões “massa damnata” e “massa perditionis” usadas por Agostinho nos livros De Praedestinatione sanctorum e De dono perseverantiae.

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251

São diversos processos simples e complexos que se articulam na formação

do ser humano e da sociedade. E isso interessa à questão da liberdade cristã, uma

vez que é nessa teia de relações sociais, que são fornecidos os meios para

construir e expressar as relações do ser humano consigo mesmo, com a natureza,

com o próximo e com Deus. A sociedade é produto da ação dos indivíduos, mas

estes co-existem socialmente e dependem da sociedade para viver. Por isso, os

processos de transformação social, econômica e política precisam ser

cautelosamente planejados e acompanhados durante sua execução, uma vez que

seus efeitos afetarão positiva e negativamente a vida das comunidades humanas.

Por isso é que J. L. Segundo alerta para o fato de que, quanto maiores forem os

impactos dos projetos sócio-político-econômicos sobre as relações sociais

vigentes, maior deverá ser a “sabedoria” na capacidade de administrar os diversos

vetores e atores sociais envolvidos. Pois as conseqüências poderão ser destrutivas

para o meio ambiente e para as coletividades humanas.

Isso tudo não afeta a liberdade humana? Não estão implicados nesses

processos os valores absolutos do ser humano, de acordo com a revelação divina

ocorrida em Jesus Cristo? A reposta de J. L. Segundo para estas perguntas é

claramente afirmativa. Ele considera que as afirmações centrais da Bíblia e a

própria encarnação de Jesus Cristo revelam que o valor absoluto para Deus é a

vida humana vivida em condições de dignidade. Portanto, é na sociedade que se

gestam as condições para que os valores do Reino de Deus possam ser realizados

historicamente na existência concreta, pessoal e coletiva, dos seres humanos.

Para que isso ocorra é necessário que se organizem movimentos e

estruturas sociais favoráveis à dignidade das pessoas e dos povos. Daí advém a

percepção segundiana, de que é necessário coordenar diversos esforços

simultâneos, para formar uma ecologia social que viabilize a experiência da

liberdade, tanto no nível pessoal, quanto no nível social.

Aqui é que se faz necessária a dinâmica “massa-minoria” de que fala J. L.

Segundo. Nem todos os grupos na sociedade tomam consciência acerca da

realidade ao mesmo tempo e da mesma forma. Compreender os processos mais

complexos da ecologia social, as intrincadas relações econômicas e políticas que

formam os mecanismos de exploração e injustiça, especialmente nos países da

América Latina, exige das pessoas, habilidade para processar grande quantidade

de informações e dinamismos sociais e políticos baseados em tradições e

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252

estruturas sócio-culturais multiformes. Tal processo de conscientização não é

acessível para amplas parcelas da sociedade. Em geral este processo exige muito

empenho pessoal, dependendo de articulações entre lideranças em pequenos

grupos como partidos políticos, associações estudantis, sindicatos, grupos de

estudo, movimentos sociais, eclesiais, etc.

Nos “grupos minoritários” há melhores condições para este “gasto de

energia”, que possibilita uma visão crítica mais profunda sobre os problemas da

sociedade. Por outro, lado a solução destes problemas freqüentemente requer a

mobilização de amplos setores da sociedade, o que exige que aquele processo de

conscientização que começou com grupos minoritários seja progressivamente

difundido e socializado, por maiores parcelas da população, numa verdadeira

sinergia entre massas e minorias. Estas desempenham o papel da reflexão crítica

que, com grandes esforços de estudo e análise da realidade (nega-entropia), abre

caminho para as transformações necessárias, para que a ecologia social seja

transformada e aperfeiçoada, em vista da ampliação da liberdade. Daí se falar em

autênticos processos de libertação. De outro lado, as massas cuidam de tarefas

mais simples do cotidiano, que exigem menos energia (entropia) e de certo modo,

prestam serviços que permitem que os grupos minoritários estejam disponíveis

para lidar com a complexidade própria dos processos de reflexão crítica e de

conscientização.

Na verdade “massa” e “minoria” não correspondem a dois tipos de pessoas

ou grupos na sociedade. O mais acertado é dizer que correspondem a dois tipos de

conduta que fazem parte, tanto da vida social, como da vida pessoal. Nenhum ser

humano suportaria ocupar-se todo o tempo com tarefas complexas que consomem

muita energia. É preciso alternar processos simples e complexos, de modo que a

energia economizada nas tarefas simples (entropia) possa ser investida nas tarefas

complexas (nega-entropia). Isso vale tanto para o indivíduo como para a

sociedade. Os dois dinamismos devem ser articulados de modo que os grupos

minoritários ofereçam o resultado de seu penoso trabalho para qualificar as

massas e, simultaneamente, que estes grupos que desempenham mais a função de

massa cooperem para apoiar os grupos de minorias. São dois processos opostos,

mas que, no fim das contas, atuam cooperativamente formando um equilíbrio

dinâmico.

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253

Tal dinamismo de articulação entre o comportamento massa e o

comportamento minoria mostra que o processo de construção social e coletiva da

liberdade é complexo e exigente. Construir uma ecologia social efetivamente

humanizadora é tarefa para muitas gerações de seres humanos conscientizados

politicamente. E aqui podemos já deixar indicada a pergunta: Será que este

dinamismo “ecológico-social”, que integra os dois comportamentos não são

também aplicáveis à dinâmica das comunidades eclesiais? Não se faz necessária a

ação de minorias conscientizadoras, a fim de que se abram caminhos novos na

pastoral, na reflexão teológica, etc.? Creio que sim. Esse dinamismo massa-

minoria pode ser aplicado à dinâmica interna da Igreja. Isso possibilitaria uma

maior conscientização sobre a fé cristã e um aprofundamento na própria

experiência da liberdade feita pelos cristãos.

Já se nota aqui, como este dinamismo da ecologia social deve exigir das

pessoas, a capacidade de lidar com movimentos opostos. O ser humano precisa

atuar no processo ecológico-social de modo criativo. A existência pessoal e social

exige que o ser humano aprenda a ser “massa” e simultaneamente “minoria”. A

vida não é feita só de tarefas fáceis e de baixo custo energético. Se assim fosse

não haveria necessidade do trabalho de reflexão crítica e de aperfeiçoamento

constante. De outro lado, lidar com as tarefas complexas e de alto custo

energético, durante todo o tempo, inviabilizaria a vida. Seria como uma “pane” no

sistema operacional do indivíduo e da sociedade. Portanto, a “sabedoria” está

nesta habilidade de combinar na medida certa os dois dinamismos, seja na vida

pessoal, seja na vida da sociedade. Essa habilidade de integrar dinâmicas opostas

é que constitui a realidade que J. L. Segundo caracteriza no conceito de

“flexibilidade histórica”.

Tanto o ser humano, como a sociedade e a Igreja, necessitam de pessoas e

de estruturas “flexíveis”, capazes de administrar situações diversas, tendências

contrárias, cuidando da base da escala de valores que é necessária para a vida e

para o bom funcionamento das instituições da sociedade, mas também cuidando

da capacidade criativa, para lidar com situações novas, que surgem e exigem

mudanças. Deste modo, assim como há uma tensão dialética entre massa e

minoria; há também uma tensão dialética entre tradição e renovação; entre a

tendência de manutenção do já estabelecido e a tendência de mudança na busca

pelo novo.

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254

Aqui J. L. Segundo faz notar que a “rigidez”, na vida das pessoas como

também na vida das instituições, atrapalha muito o desenvolvimento humano,

porque tende a eliminar um dos pólos em tensão. A sabedoria criativa necessária à

vida aponta para outra atitude. O ser humano precisa “aprender a ser flexível”. A

tradição é necessária. É ela que fornece a base dos valores e mantém a identidade

das instituições e dos projetos humanos. Entretanto, a vida em sociedade é

dinâmica e muda muito, introduzindo novas necessidades. As instituições sociais

incapazes de mudar, tendem a morrer ou a se tornarem ineficazes diante dos

novos problemas e desafios que surgem.

Por isso é preciso que pessoas e grupos sociais estejam disponíveis e

preparados para estas mudanças, sem perder de vista os valores essenciais. Só

assim estarão abrindo caminho para as futuras gerações, construindo a ecologia

social e promovendo as atualizações e transformações necessárias, em vista do

próprio desenvolvimento do ser humano e da sociedade.

Visto essa exigência de flexibilidade aplicada ao desenvolvimento humano

e social, será que não seria válido aplicar o mesmo princípio à vida eclesial?

Quando se trata dos dinamismos da relação do ser humano com Deus, da

expressão da fé no interior da comunidade eclesial, nos seus movimentos e

estruturas, será que não caberia uma atitude favorável a esta “flexibilidade”? Será

que o conceito segundiano de “flexibilidade histórica” poderia ajudar a manter

perspectivas promissoras de diálogo, identificando mais claramente os elementos

essenciais da tradição e simultaneamente os legítimos reclamos por renovação na

Igreja? Uma postura “flexível” por parte das autoridades eclesiásticas, não seria

útil para deixar espaço aberto a perspectivas de futuro mais criativas para a

vivência da fé cristã? Creio que sim. O conceito de flexibilidade histórica,

juntamente com a atitude fundamental que ele sugere, poderia ajudar nessa difícil

arte de sustentar dialeticamente essa polaridade, entre tradição e renovação. Seria

uma boa contribuição para criar perspectivas promissoras para a vivência da

liberdade no interior das práticas eclesiais, o que não deixa de ser também uma

forma de viver a cooperação com o plano de Deus.

Para tanto, se faz necessário aplicar, na vida pessoal e coletiva, aquele

princípio evolutivo já apontado anteriormente364 e que é tão característico da

364 Cf. Capítulo 3, item 3.3.9 sobre a evolução cultural e capítulo 4, item 4.2. sobre os diversos aspectos em que a evolução atua sobre o ser humano e sobre o cosmo.

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255

teologia segundiana. Com a noção de “evolução cultural”, J. L. Segundo

caracteriza aquela dinâmica de formação da pessoa e da sociedade mediante a

difusão e assimilação de valores humanos. Esta dinâmica é comparada aos

movimentos que caracterizam a evolução biológica das espécies animais. Assim

como se dá geneticamente a transmissão de caracteres por sucessivas gerações de

uma mesma espécie, de modo análogo, ocorre algo semelhante no plano dos

valores. Estes não são transmitidos biologicamente, mas sim por meio das

relações entre as pessoas, de modo que os hábitos, as práticas, o jeito de educar, as

crenças, os sentimentos e afetos vão sendo difundidos e assimilados socialmente

formando aquilo que ficou denominado como “cultura”. É assim que uma geração

transmite à outra o que aprendeu. Forma-se uma base de valores, critérios,

técnicas para resolução de determinados problemas. Aos dinamismos biológicos

que constituem o ser humano, se somam dinamismos sociais que formam uma

verdadeira “evolução cultural”.

É neste processo que o ser humano descobre o que é liberdade. Por um

lado, ele aprende a “ajustar-se” no interior de uma tradição recebida da sociedade,

da igreja, da família, das instituições de ensino, etc. Por outro lado, ele inova, cria,

experimenta situações inusitadas, re-inventa a tradição recebida, por meio dos

diversos usos que faz dela. Assim à primeira tendência de repetir os modelos

oferecidos pela tradição, corresponde o que J. L. Segundo chama de “herança

cultural genética”. À segunda tendência de crítica e inovação corresponde aquilo

que J. L. Segundo chama de “mecanismos homeostáticos”, cujo melhor exemplo

é, para ele, a mente humana365.

O papel desempenhado pelo ser humano diante dos valores nos quais fora

educado é simultaneamente passivo e ativo. Ele recebe, mas também re-cria. Há

em sua conduta e em suas escolhas algo que é “herdado” culturalmente, mas há

também práticas, elementos, valores que provém de exercícios de criação e de

crítica, sobre aquilo que foi recebido. Por isso que a cultura é um dinamismo tão

forte e tão rico na formação da liberdade. Isso vale, tanto para a vida de cada ser

humano particular como para a vida coletiva da sociedade.

365 Sobre os termos “herança cultural genética” e “mecanismos homeostáticos” cf. SEGUNDO, J. L. , O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, v. 1...p. 385-407. Ver também as indicações dadas no capítulo 3, na parte II da tese, especialmente o item 3.3.9 sobre a evolução cultural.

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256

Ora sem a presença destes dois dinamismos formadores da cultura o ser

humano não “evolui”. É justamente pela articulação deles que ele exerce a sua

capacidade criativa, tanto pessoal como socialmente. Por outro lado, no interior

deste mesmo processo os valores essenciais permanecem, formam “tradição”,

podem ser transmitidos por sucessivas gerações. Sem eles a liberdade não é

viável, não tem uma “base” sobre a qual operar.

Não será a liberdade justamente esse movimento de administrar essas

tensões? Não será justamente isso que caracteriza a experiência da liberdade em

sua pespectiva evolutiva e aberta ao futuro? Creio que sim e que é neste sentido

que J. L. Segundo quer caracterizar a liberdade cristã.

Com efeito, pode a relação do ser humano com o próximo e com Deus

ficar imune a este “amadurecimento cultural”? Não é mesmo assim entre ensaios,

erros e acertos, que vão sendo descobertas as experiências mais criativas na

vivência da fé? Parece que, com grande atualidade e ousadia, J. L. Segundo

consegue expressar aquela liberdade pela qual o ser humano coopera com o plano

divino, enquanto um processo aberto e dinâmico sem certezas prévias, mas

carregado de um autêntico empenho humano, livre, evolutivo, o qual repercute na

vida da sociedade repercutindo também esta nos dinamismos da vida de cada

indivíduo. É no interior deste processo interativo e evolutivo que Deus atua e aqui

toda aquela riqueza da abordagem de santo Agostinho sobre a graça se mostra

pertinente, podendo ser atualizada e re-criada.

É assim que a cooperação entre Deus e o ser humano transcorre num

processo salvífico realmente aberto, dinâmico, até certo ponto “imprevisível”. Tal

processo é sim totalmente dinamizado pela iniciativa divina mediante a graça, mas

suscitando sempre no interior deste mesmo dinamismo, a liberdade criativa do ser

humano. Tal é o processo dinâmico da liberdade cristã, que se manifesta tanto na

vida de cada pessoa, como na vida da sociedade, com seus grupos, instituições,

coletividades, etc.

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257

5.2

Breves indicações sobre as conseqüências do debate sobre a

liberdade cristã para a vida da Igreja

Depois de todo o percurso feito no item 5.1, é oportuno registrar algumas

orientações ou pistas de ação, que possam ser úteis para a evangelização e ação

pastoral. Não tenho a pretensão de dar respostas definitivas para questões

complexas, que envolvem múltiplos fatores de ordem eclesial, cultural, etc.

Desejo apenas fazer uma síntese, que recolha alguns aspectos da comparação

entre as concepções de liberdade de Agostinho e Segundo, de modo a apresentar

algumas sugestões, que poderão ser úteis ao trabalho nas comunidades eclesiais,

atividades pastorais, catequéticas e de formação teológica, etc.

a) O esmero na apresentação de Deus

Nos cursos, catequese, as homilias nas missas, os retiros, e demais

atividades desenvolvidas numa paróquia há sempre uma (ou várias) imagens de

Deus que estão sendo transmitidas seja subjetivamente seja diretamente mediante

afirmações explícitas de certas características humanas (sabedoria, poder,

conhecimento, etc.) elevadas à máxima potência para qualificar estas

características como atributos divinos. Daí as noções de “sabedoria infinita”,

“poder tremendo”, “conhecimento prévio dos acontecimentos futuros”, etc.

Tendo em vista a interlocução entre Agostinho e Segundo a esse respeito,

creio que os responsáveis pelas atividades nas igrejas deveriam receber uma

formação atualizada periodicamente. Pois como já foi dito, (no item anterior deste

capítulo), a forma de apresentar esses atributos divinos pode acabar distorcendo a

imagem do Deus revelado em Jesus Cristo.

Para que isso não aconteça é necessário muito cuidado ao apresentar o

“poder de Deus” como algo imutável, onisciente e presciente. De fato, a noção do

“poder de Deus” é muito freqüente na liturgia, na catequese, em certos

movimentos cristãos e até mesmo na obra de grandes teólogos como Agostinho. O

estudo apresentado aqui nesta tese não foi feito para sugerir uma supressão do

conceito do poder de Deus, mas para indicar a necessidade de submetê-lo a uma

revisão. Quis apenas indicar que seria muito oportuno conciliar noções como as

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de “onipotência” e “imutabilidade” divina, com uma adequada concepção acerca

do amor de Deus revelado em Jesus Cristo.

Para tanto, seria útil apresentar a imagem de um Deus que exerce o “poder

do amor”, e que sendo imutável no amor se “retrai” para criar o universo e o ser

humano, prosseguindo nesse movimento “kenótico”, até sua expressão máxima na

encarnação e crucificação de Jesus Cristo. Assim, permanecendo fiéis à fé no

Deus criador e salvador, as lideranças cristãs, o clero e os leigos engajados na

evangelização terão melhores condições de apresentar uma imagem de Deus, que

respeita a liberdade humana, e a autonomia do mundo criado com suas leis

naturais, exercendo uma “onipotência amorosa”. Cria-se, então, a oportunidade de

apresentar a imagem de um Deus imutável por não contradizer a si próprio, mas

ao mesmo tempo criativo e “livre para mudar” , a fim de apresentar de distintos

modos o seu amor pelo mundo e pelo ser humano.

Creio que investir as energias das instituições católicas como emissoras de

TV e rádio, cursos de formação teológica para clérigos e leigos, para apresentar

esta imagem de Deus atualizada traria grandes benefícios para os fiéis e as

comunidades eclesiais em geral.

b) Por uma nova concepção sobre o agir de Deus no interior de um

mundo em evolução

Outro assunto significativo que emergiu do diálogo entre as reflexões

teológicas de santo Agostinho e de J. L. Segundo, foi o tema da criação do

universo e do ser humano. Neste aspecto articulam-se os dados da Bíblia e da

Tradição, com as informações que a ciência moderna traz sobre o

desenvolvimento humano e cósmico.

É fácil perceber que Agostinho se vale mais dos dados da revelação bíblica

e da Tradição cristã. Era este o instrumental conceitual de que ele dispunha para

tratar do tema da criação e da fé no Deus Criador. Já J. L. Segundo, sabe da

importância desta base bíblica e eclesial na reflexão sobre a criação. Só que, ele

vai considerar esses dados em nova perspectiva, possibilitada justamente pelas

informações provenientes da ciência, as quais afirmam o caráter evolutivo do

desenvolvimento do universo e do ser humano. Daí as diferenças entre os pontos

de vista de Agostinho e de Segundo. O primeiro compreende o universo criado

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259

numa visão fixista. Daí sua ênfase na ordem natural do universo, à qual o ser

humano deve se ajustar. Enquanto que J. L. Segundo concebe o desenvolvimento

do homem e do universo numa perspectiva evolutiva.

Como já foi assinalado antes, não se trata de escolher um autor excluindo o

outro. Ao pensar na atualidade deste debate, sobre o modo pelo qual Deus age no

mundo e na vida das pessoas, o interessante é notar de que modo cada um dos

autores pode oferecer algo de proveitoso para a vida cristã nos dias de hoje.

Será que a visão agostiniana sobre a “ordem”, sobre a harmonia no

universo pode ser articulada com a visão evolutiva defendida por J. L. Segundo?

Reconhecendo as divergências entre as duas concepções em certos aspectos, creio

que é possível uma cooperação mútua entre elas, que seria muito benéfica para os

cristãos de hoje.

Tal articulação entre os autores ajuda muito a repensar a liberdade, em sua

relação com as noções de lei natural ou ordem natural. Através desse debate, a

noção daquilo que é “natural” no ser humano pode ser integrada à percepção de

que o mesmo ser humano, dotado de uma “natureza humana” dada pelo Criador,

vive uma existência “pessoal” , indeterminada e aberta ao futuro, mediante os

dinamismos da liberdade. Isso possibilitaria uma compreensão mais profunda

acerca da pessoa humana em sua interatividade com o universo em evolução.

O próprio ser humano em si mesmo, nos dinamismos que o constituem,

não se desenvolve apenas por determinações biológicas e psicológicas

(“naturais”), mas também (e sobretudo) por meio das opções da liberdade. Isso

mereceria bastante atenção por parte da Igreja, para uma adequada orientação aos

fiéis. A moral ensinada na pregação e nos documentos oficiais da Igreja costuma

ser uma moral, na qual os dinamismos “naturais” ainda são mais enfatizados do

que os dinamismos próprios de uma liberdade “pessoal”. Este aspecto poderia ser

também ressaltado numa ética cristã366 coerente com a mensagem de Jesus e com

a Tradição eclesial, mas levando também em conta os dinamismos que a ciência

moderna vem destacando acerca desse caráter evolutivo do desenvolvimento da

pessoa humana. Esta perspectiva traria a oportunidade de uma profunda renovação

366 Daí a proposta de J. L. Segundo no sentido da construção de uma “moral de projetos” como algo bem melhor do que uma moral rígida e legalista; cf. SEGUNDO, J. L., Que Mundo? Que Homem? Que Deus?...p. 144, indicado no item 4.2.5 (sobre as conseqüências éticas decorrentes do caráter pessoal da liberdade humana), do capítulo 4, na parte II desta tese.

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260

para a catequese, para a pregação e mesmo para o próprio ensino teológico nas

faculdades e seminários. Seria uma riqueza para a vida da Igreja.

Tal renovação não despreza as noções de “ordem” e harmonia no cosmo,

presentes na reflexão de Agostinho. Apenas mostra que esta ordem da natureza,

que expressa a dádiva oferecida pelo Criador, é composta de múltiplos

dinamismos químicos, físicos, biológicos etc., que atuam segundo leis próprias.

Esse é o modo próprio pelo qual Deus age na criação. A ação de Deus em prol do

desenvolvimento do cosmo, não precisa ser vista como um ato externo ou

categorial, como se fosse uma decisão de efeito imediato no plano natural. O lento

processo de “evolução” do universo, da fauna, da flora, dos recursos naturais,

segue seu próprio dinamismo. O mesmo pode ser dito a respeito do lento e

progressivo desenvolvimento do ser humano. Tal processo não se dá por um

intervencionismo extrínseco, mas sim por meio de uma criação e sustentação dos

dinamismos naturais, mediante uma ação contínua, transcendente, totalmente

autônoma e gratuita da parte de Deus. Uma ação divina que verdadeiramente

respeita a liberdade humana e a autonomia do mundo criado.

Deus e o ser humano, no exercício de suas respectivas liberdades,

interagem com este cosmo em evolução e cooperam para que esse dinamismo

prossiga em seus múltiplos desdobramentos. Tal possibilidade de cooperar com o

plano natural do cosmo e da própria vida humana não poderia ser visto como uma

dádiva, como uma expressão da graça divina? Creio que sim. Isso mostra que a

ordem natural postulada por Agostinho não precisa ser “jogada fora”. Basta

superar a visão fixista em que a mesma era pensada antigamente. Harmonia

natural e evolução não são termos antagônicos. Se isso fosse bem assimilado,

quanta riqueza em termos de mensagem cristã poderia ser transmitida em retiros,

pregação, catequese, na vida da Igreja.

c) O ser humano como interlocutor livre diante de Deus

A argumentação precedente mostra que alterando-se o modo de

compreender a ação de Deus, altera-se também o modo de compreender o ser

humano. Se Deus age em liberdade, estabelecendo um “diálogo” com o ser

humano, este é criado com a capacidade de responder às interpelações de Deus.

Os dinamismos químicos, biológicos, psicológicos se desenvolvem para que o

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homem se torne “pessoa”, que age também com autonomia e toma decisões

pessoais, ou seja, como um ser de liberdade.

O Ser humano a quem é oferecido o mundo criado, é um interlocutor livre

diante de Deus. Porém esta mesma liberdade humana é dinâmica, devendo ser

vista sob diferentes perspectivas. Agostinho mostra que os elementos constitutivos

da liberdade individual, tais como o livre arbítrio, a vontade pessoal, o

discernimento da razão - do ponto de vista da ação criadora de Deus - são “dons

naturais”, fazem parte da natureza humana criada por Deus. É com estes dons que

o ser humano exerce sua liberdade. Este exercício, entretanto, se dá num mundo

marcado pelo pecado que impede o homem de fazer uma opção radical e firme

pelo bem, pela justiça, pela fidelidade a Deus no amor ao próximo. Daí a

necessidade de que o livre arbítrio seja libertado do pecado, pela ação da graça

divina. Assim, nesta perspectiva agostiniana, nota-se que durante toda a vida do

ser humano desde sua criação, a liberdade é dinamizada pela ação amorosa de

Deus. A liberdade humana é um dom de Deus, que é estimulado pelo próprio

Deus para que se torne um “processo”, uma vida livre do pecado.

É por isso mesmo que Agostinho tem razão em considerar que a liberdade

deve também ser exercida no âmbito da espiritualidade, como ato de louvor a

Deus, por ser um dom dEle recebido. A liberdade deve ser também exercida como

ato de contrição a Deus, pelo reconhecimento dos pecados cometidos no uso da

própria liberdade e também como ato de gratidão a Deus pelas vezes em que,

tocada pela graça, a liberdade se torna verdadeira experiência de fidelidade a Deus

e pelas vezes que o homem se firma neste caminho do bem. Por tudo isso, vemos

que o ser humano se dirige a Deus num autêntico “diálogo”, exercendo sua

liberdade como ser “autônomo” e ao mesmo tempo “necessitado” de Deus.

Já J. L. Segundo, mostra que esta liberdade de interlocução com Deus se

dá na história, através das relações sociais, que servem de mediação concreta para

o ser humano, “construir” sua própria liberdade. Os dons do livre arbítrio, da

razão, da vontade pessoal indicados por Agostinho, de acordo com a visão

segundiana, precisam de uma boa adequação entre valores (fé) e meios de eficácia

(ideologia). O dom natural da liberdade precisa ser exercido na prática, através da

ecologia social, da evolução cultural mediante a flexibilidade histórica, para se

tornar um “dom social”, ou seja, uma experiência existencial concreta vivida na

história. A liberdade é, assim, um processo simultaneamente pessoal e coletivo,

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fruto das inter-relações do ser humano com seu meio ambiente social. É aí que ele

interage com Deus. É aí através de mediações econômicas, sociais, políticas que

ele descobre os valores do Reino de Deus revelados por Jesus. Portanto, o ser

humano é um interlocutor livre diante de Deus, tanto na condição de ser pessoal,

como na condição de ser social. É assim, articulando estas diversas perspectivas,

que o ser humano pode compreender e vivenciar melhor a sua própria liberdade.

Também aqui, há toda uma fonte de riquezas para o amadurecimento dos

fiéis católicos no entendimento e na práxis da liberdade cristã. Que bom seria se

nos cursos de teologia, nos retiros espirituais, nos diversos setores pastorais das

comunidades eclesiais houvesse maior consciência acerca desse dinamismo da

liberdade cristã.

Compreendida como interlocução entre o homem e Deus, esta liberdade

seria percebida sem medo, incorporando as diversas experiências vividas, os erros

e acertos num processo de amadurecimento e crescimento humano. Muitos

momentos de desentendimento, legalismo, incompreensão poderiam ser evitados

se houvesse a compreensão a respeito dessa dupla dimensão da liberdade. Ela é

ação da graça divina no íntimo da alma que liberta o ser humano, capacitando-o

para amar e atuar no plano salvífico oferecido por Deus. Mas, por outro lado, se

compreenderia que a liberdade é uma vivência humana construída na convivência

com as pessoas, na interação com a sociedade, na práxis política, no

amadurecimento cultural, no aperfeiçoamento da escala de valores, na vivência

dos valores que melhor realizem, nos contextos históricos concretos, o projeto do

Reino de Deus. Assim a vivência da liberdade cristã seria bem mais amadurecida,

uma vez descoberto que é um processo dinâmico, complexo, dependente de

diversas mediações, necessitado da graça de Deus, aberto ao futuro e por isso

mesmo rico em possibilidades.

Conclusão

A partir do que foi abordado neste capítulo, já é possível ter uma boa visão

sobre a liberdade cristã, a partir das contribuições de santo Agostinho e de J. L.

Segundo. Foi possível notar que a liberdade se estrutura a partir de múltiplos

dinamismos que interagem entre si.

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263

Assim, alguns pontos foram apresentados como constitutivos dessa

experiência humana da liberdade e muitos outros poderiam ter sido acrescentados.

A centralidade de ação salvífica de Jesus Cristo nas obras de Agostinho e

Segundo; As contribuições dos dois autores, para repensar os desafios e requisitos

para a vivência da liberdade cristã na comunidade eclesial, por exemplo, seriam

dois temas muito bons para análise. Entretanto, em face das dificuldades do

próprio processo de pesquisa não foi possível abordá-los aqui. Creio que os temas

selecionados nos capítulos desta tese demonstram que os conteúdos tratados são

densos e exigem um lento trabalho de articulação entre si.

Por isso mesmo, selecionei apenas alguns temas, para que pudessem ser

bem detalhados, de modo a evidenciar os aspectos em que a comparação entre os

dois autores ficasse mais nítida. Deste modo, este último capítulo foi dividido em

duas partes, (cada qual com suas respectivas subdivisões). Na primeira (item 5.1),

indiquei os aspectos em que se poderia fazer um bom confronto entre as

concepções de liberdade de Agostinho e Segundo.

Nesta ocasião, foram destacados quatro temas básicos. No primeiro deles,

o objetivo foi demonstrar que ambos os autores construíram suas concepções de

liberdade, a partir da abertura às necessidades dos respectivos contextos em que se

encontravam. A sensibilidade pastoral de santo Agostinho e de J. L. Segundo é

evidenciada nos debates e polêmicas que eles enfrentaram, buscando dirimir

dúvidas, esclarecer as idéias possibilitando o amadurecimento dos cristãos e da

própria Igreja.

Em seguida ocupei-me das imagens de Deus e da experiência da liberdade

humana. Aqui foi muito interessante notar como estes dois temas repercutem um

no outro. Foi possível perceber que, tanto Agostinho como Segundo refletem

teologicamente sobre a criação, mas a partir de categorias bem diversas. O

primeiro numa concepção de Deus como Criador onipotente e imutável acaba

formulando uma concepção do ser humano correspondente a esta imagem de

Deus. Daí a noção de que o homem deve se submeter à onipotência de um Deus

que tudo controla. Já J. L. Segundo mostra como é possível repensar as noções da

onipotência e imutabilidade divina, em novos termos, reconhecendo o poder de

Deus, mas ao mesmo tempo seu amor infinito que “abre espaço” para a liberdade

humana, tornando a relação Deus-homem mais dinâmica e mais livre.

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264

No terceiro item foi abordada a noção de ordem natural, tema muito

relacionado com a imagem do Deus Criador. Também aqui, tentei articular as

concepções de Agostinho e J. L. Segundo, apontando a contraposição entre a

visão fixista do universo e a concepção evolutiva, mostrando como cada uma

delas resulta num modo bem distinto de considerar a ação humana no mundo. A

visão fixista do universo implica numa exigência de submissão do ser humano à

ordem natural, submissão esta que pode acarretar numa limitação da concepção da

liberdade e da ação criativa e criadora por parte do ser humano. Em contrapartida,

se for adotada uma concepção evolutiva do universo, a liberdade de ação do ser

humano e a autonomia do mundo criado tendem a ser mais valorizadas.

Em seguida, como último ponto deste item, dediquei-me à apresentação da

liberdade como cooperação do ser humano em sua relação com Deus. Foi quando

procurei indicar as mediações necessárias para a participação do ser humano no

plano salvífico de Deus, plano este que possui seus dinamismos pessoais e sociais.

Santo Agostinho contribui no sentido de mostrar como a graça divina é necessária

para que o ser humano possa se abrir, para compreender melhor as características

que constituem o próprio ser humano, suas limitações, a necessidade de superação

do pecado, etc. Constatado isso, a própria perspectiva segundiana pode ser

enriquecida pela abordagem de Agostinho, escapando assim de um voluntarismo

que poderia enfatizar demasiadamente a ação humana no plano salvífico e ou no

plano de sua própria humanização. De outro lado, J. L. Segundo enriquece a

abordagem agostiniana, no sentido de indicar mais claramente quais seriam as

relações sociais, políticas econômicas e culturais que devem ser compreendidas e

usadas como mediações do processo salvífico na história.

Por fim, na segunda parte do capítulo (item 5.2) apenas indiquei algumas

conseqüências do confronto entre as concepções de liberdade dos dois autores,

para o trabalho eclesial, a evangelização, etc. Neste ponto procurei recuperar os

benefícios trazidos pelo confronto entre as perspectivas de abordagem dos dois

autores. Nesse estudo comparativo, surgiu uma nova concepção a respeito do

desenvolvimento da liberdade humana em termos evolutivos. A transformação

interior necessária a esse desenvolvimento, mediante os dinamismos da vida

espiritual, da acolhida humana à graça divina (Agostinho) deve ser associada às

múltiplas interações humanas com “acasos” e “determinismos”, provenientes dos

diversos dinamismos químicos, biológicos, psicológicos, sociais, culturais, etc. (J.

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L. Segundo). Aqui foi possível notar como as duas perspectivas se integram e

devem ser articuladas na própria relação do ser humano com Deus e nas relações

do ser humano consigo mesmo, com o próximo e com o mundo.

Ao chegar ao final do trabalho de pesquisa nesta tese, espero ter

conseguido indicar algumas perspectivas promissoras de abordagem a respeito da

experiência humana da liberdade, perspectivas estas que surgiram do confronto

entre as abordagens de santo Agostinho e J. L. Segundo. Penso que os pontos aqui

indicados foram realmente coerentes com o pensamento dos autores e

simultaneamente relevantes para o debate teológico atual sobre o tema da

liberdade. Se isso for verdade, a pesquisa no âmbito desta tese pode ser dada por

concluída, mas não o estudo do tema. Este, por ser tão atual e instigante, merece

continuar sendo pesquisado.

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266

Conclusão da parte III

O objetivo desta parte III da tese de doutorado foi o de fazer um paralelo

entre as reflexões de santo Agostinho e Juan Luis Segundo. Com esta

comparação, pretendi destacar os pontos principais da visão de cada autor,

indicando os aspectos em que se pode estabelecer um “diálogo” entre a visão que

cada um deles formou acerca da liberdade.

Composta apenas do capítulo final da tese, esta terceira parte recolhe,

então, as principais características da concepção da liberdade em santo Agostinho

e Juan Luis segundo, que foram descritas e analisadas mais detalhadamente nas

partes I e II da tese. Dentre os diversos aspectos acentuados, me restringi aos

temas em que as semelhanças e diferenças entre os autores eram mais

evidenciadas. Deste modo, foram apresentados os temas da sensibilidade pastoral

em relação ao contexto de cada autor, da imagem de Deus, da relação entre

liberdade pessoal e ordem natural do universo, da concepção do ser humano como

interlocutor livre e colaborador junto ao plano salvífico de Deus. Cada um deles

foi analisado, visando mostrar o modo como tais temas foram enfocados

respectivamente por santo Agostinho e Juan Luis Segundo. Em cada um dos

temas foi possível notar as diferenças e também as semelhanças de enfoque.

No que diz respeito à importância do contexto histórico na elaboração do

conceito de liberdade feito por cada autor, algumas lições podem ser extraídas.

Ambas as concepções mostram a sua vitalidade e a sua relevância pastoral e

teológica. Isto indica que os cristãos de hoje também devem formular uma

reflexão sobre a liberdade, que seja qualificada para os desafios que a fé cristã é

chamada a enfrentar nos tempos atuais. Se de um lado Agostinho deixou

claramente manifesta a necessidade de uma sólida argumentação doutrinal

baseada na Sagrada Escritura, evidenciando o chamado de Deus à salvação,

juntamente com a afirmação da ação imprescindível da graça que solicita e não

tolhe a liberdade humana, de outro lado, J. L. Segundo acrescenta que o livre

chamado de Deus implica necessariamente na resposta humana, como atuação da

liberdade em contextos históricos determinados. Isto se dá mediante o

desenvolvimento de valores humanos, estruturas sócio-econômico-político-

culturais e também mediante o desenvolvimento dos dinamismos evolutivos do

ser humano e do cosmo, que cooperem para o processo salvífico, sendo este um

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267

processo que valoriza e exige a vivência da liberdade humana. Foi possível assim

notar como as respostas de Agostinho e Segundo aos seus respectivos contextos

são iluminadoras para o contexto pastoral e eclesial atual.

Nessa análise comparativa entre os dois autores, ficou evidente também o

quanto é fundamental que a imagem de Deus anunciada pela comunidade eclesial

seja uma imagem, que leve em conta as exigências da vivência da liberdade na

complexidade própria da sociedade contemporânea. De certo que o anúncio de

Deus feito pelas comunidades de hoje precisa ser fiel aos dados da revelação

cristã. No entanto, isso não elimina o fato de que é preciso encontrar as mediações

teológicas, filosóficas, pastorais e políticas adequadas, para que a mensagem

cristã sobre Deus seja também inteligível e relevante para o ser humano que lida

com os desafios próprios da sociedade contemporânea.

Neste sentido, é muito oportuna a reflexão sobre os pressupostos da

concepção sobre o Deus criador, sobre sua relação com o ser humano dotado de

uma autêntica liberdade e sobre a relação desse Deus Criador, com um mundo

criado que tem suas leis naturais próprias e autônomas. As reflexões de santo

Agostinho e J. L. Segundo revelam Deus e o ser humano como interlocutores

livres, autônomos, mas unidos no plano salvífico, fruto do amor generoso desse

Deus, que respeita profundamente a liberdade humana e a vocação humana para a

liberdade. Por isso, é que esta relação do ser humano com Deus se dá

necessariamente dentro das mediações históricas disponíveis em cada contexto, no

interior de um universo e na vida de seres humanos ambos em evolução; Tal

compreensão exige a revisão da antiga visão fixista do universo e da ação

intervencionista extrínseca de Deus, pois essa visão fixista se mostra contraditória

com a autonomia do universo criado e com a liberdade humana.

Como se pode ver, as duas perspectivas de abordagem, mostram a

complexidade e a profundidade espiritual que envolvem a questão da liberdade

humana. Por isso mesmo, as visões de santo Agostinho e J. L. Segundo

forneceram pistas e orientações para uma vivência amadurecida da liberdade

cristã, nos trabalhos pastorais e demais atividades desenvolvidas no âmbito das

comunidades eclesiais.

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268

CONCLUSÃO FINAL

Chegando ao final desta tese, pude notar como é rico o estudo do tema da

liberdade cristã. Mais ainda em se tratando de uma pesquisa feita nas obras de

dois grandes teólogos como santo Agostinho e J. L. Segundo. Não é necessário

repetir aqui os elementos característicos das abordagens feitas pelos autores, visto

que muitas observações já foram apresentadas nos capítulos com suas respectivas

sínteses finais, bem como nas introduções e conclusões de cada uma das três

partes da tese. Neste momento conclusivo do trabalho de pesquisa, desejo apenas

fazer as considerações finais pertinentes ao trabalho de pesquisa.

A partir do ponto de vista que lhe é próprio, santo Agostinho faz uma

reflexão que permanece muito atual. Sua visão realista sobre os efeitos do pecado,

sua ênfase na ação da graça divina e o ardor espiritual com que ele aborda a ação

salvífica de Deus representam uma fonte inspiradora para a teologia. No entanto,

há também as limitações do pensamento agostiniano que ficaram mais evidentes

quando confrontado com o pensamento de J. L. Segundo.

A perspectiva segundiana ressaltou a riqueza dos dinamismos que

precisam estar associados para o aprofundamento da experiência humana da

liberdade. A importância da aprendizagem dos valores humanos, da interação do

ser humano com o próximo e com as instituições da sociedade, foram alguns dos

elementos importantes destacados por J. L. Segundo, como parte integrante da

vivência da liberdade.

De um lado, o estudo da obra de Agostinho evidenciou a liberdade como

dom de Deus, como dom inerente à natureza humana e também como dom que é a

libertação do pecado. Nesse processo de superação do pecado como condição para

uma autêntica liberdade, Agostinho soube, como poucos, articular a

imprescindível necessidade da atuação da graça divina com a iniciativa do ser

humano a fim de agir por sua própria vontade, em busca da própria liberdade.

De outro lado, o estudo da obra de J. L. Segundo fez ver a liberdade como

amadurecimento de múltiplas interações, que dão o contexto a partir do qual se

estabelece a interlocução com Deus. Aliás, é neste sentido que J. L. Segundo

mostra os ricos processos sociais e culturais mediante os quais , o ser humano se

constitui num interlocutor livre na relação com Deus, integrando, nesta mesma

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relação com Deus as demais relações do homem com seus semelhantes e com o

cosmo em evolução.

Desta forma, Segundo ressalta que a autonomia do mundo criado,

juntamente com a autêntica liberdade do ser humano são duas realidades, que se

situam no campo de diálogo e inter-relações estabelecido pelo próprio Deus

criador. Tanto o universo como o ser humano, (cada qual com seus próprios

dinamismos, mas atuando reciprocamente como realidades inter-conectadas), tem

sua integridade e sua própria autonomia diante desse Deus livre e amante da

liberdade, que é o Deus de Jesus Cristo.

A confrontação das concepções de liberdade hauridas das obras de santo

Agostinho e J. L. Segundo aponta para a riqueza de elementos e dinamismos

presentes na experiência humana da liberdade. Neste sentido, a pergunta básica

que motivou esta tese doutoral recebe uma resposta satisfatória, ainda que não

seja a resposta última e definitiva sobre o assunto. De fato, a possibilidade de as

respectivas concepções de liberdade de santo Agostinho e de J. L. Segundo se

interpelarem mutuamente, (conforme a hipótese levantada na introdução geral

desta tese), foi confirmada na argumentação feita nos capítulos apresentados.

Mostrou-se nesta argumentação, como as abordagens feitas pelos dois autores

fornecem elementos para um grande aprofundamento, inclusive com revisões

conceituais, na compreensão habitualmente feita a respeito da liberdade.

O diálogo entre as perspectivas de santo Agostinho e de J. L. Segundo

fornece orientações muito ricas para os movimentos pastorais, as paróquias,

dioceses, repensarem e atualizarem a maneira de conceber a liberdade cristã. A

complexidade da vivência humana da liberdade em seus múltiplos dinamismos e

os desafios impostos pela vida nas sociedades contemporâneas ficaram evidentes,

na argumentação de ambos os autores. Tal descoberta certamente enriquece a

compreensão sobre o tema e contribui para a vivência da fé cristã nos dias de hoje.

Assim, concluo este trabalho no desejo de que tenha sido uma modesta

contribuição para a reflexão teológica e eclesial sobre a liberdade cristã, mas

também com a esperança de que sejam estimulados muitos outros estudos, que

possam aprofundar a consciência cristã e eclesial sobre esse tema tão importante.

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270

6. Referências bibliográficas

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______ De libero arbitrio, in Obras de San Agustín, tomo XI, (BAC - Biblioteca

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