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  • Marcos Aguinis

    A Saga do Marrano

    Editora Pgina Aberta - 1996

    Gnero: romance histrico

    Numerao: cabealho - 488 pags

    Contracapa

    UM ROMANCE HISTRICO SOBRE A INTOLERNCIA E A F. UMA EMOCIONANTE NARRATIVA DA

    PERSEGUIO

    AOS JUDEUS NA AMRICA LATINA NOS SCULOS XVI E XVII, NUMA POCA DOMINADA PELA

    INQUISIO, PELO

    FANATISMO E PELA COBIA.

    "A saga do marrano reconstri e relembra os horrendos mtodos inquisitoriais,

    alm de alertar sobre todo tipo de discriminao. No centro da histria est a

    defesa

    do direito a escolher a sua prpria verdade sem submeter-se a ningum." Pagina

    12, Buenos Aires

    "Um romance que no apenas traz luz episdios histricos geralmente

    desconhecidos, mas que tambm consegue comover o leitor."

    mbito Financiem, Buenos Aires

    "...um romance poderoso, dominador, envolvente... um livro para ler de um

    flego s."

    Aurora, Telavive

    ISBN 85-7320 025 1

    SCRITTA

    9"788573"200256"

    Orelhas

    Marrano: dizia-se, na Pennsula Ibrica, uu

    judeu ou mouro que, embora professando abertamente o cristianismo para evitar

    perseguies, continuava ocultamente fiel sua primitiva religio.

    NOS ANOS QUE PRECEDERAM a conquista da Amrica, a Inquisio intensificou a

    perseguio aos judeus que habitavam a Espanha, acabando por expuls-los em

    massa.

    O mesmo ocorreu pouco depois em Portugal em 1996 completaram-se 500 anos do

    dito de expulso dos

    judeus daquele pas. Os judeus vagaram pelos pases vizinhos durante algumas

    dcadas at que tentaram refgio seguro

    nos longnquos pases da Amrica Latina. A saga do marrano um romance baseado

    em fatos histricos

    rigorosamente documentados que narra a saga da famlia Maldonado da Silva e suas

    peripcias pelo Novo Mundo. um

    relato sem retoques do perodo colonial latino-americano.

    Francisco Maldonado, o protagonista da histria, um mdico judeu convertido

    em cristo-novo que luta contra

    seus temores e vacilaes em um mundo impregnado pelo fanatismo e pelo horror

    diferena promovidos pela Inquisio;

    um mundo regido pela hipocrisia e pela mais desptica corrupo. Suas convices

    lhe do coragem para lutar pelo direito liberdade de

    conscincia e por seus princpios ticos, num turbilho de crueldade e ambio

    ilumnado a cada momento pelo pulsar da

    piedade, da ternura e das lealdades.

    A saga do marrano tambm um romance que, em seus desdobramentos, fala

    eloqentemente de nosso tempo e descreve

    com maestria e com um talento indignado a intolerncia, a violncia e a

    cobia que marcaram a histria da Amrica

  • Latina desde a chegada dos europeus.

    Marcos Aguinis nasceu em Crdoba, Argentina, em 1935. doutor em medicina e

    cirurgia, especializado em psicanlise e membro titular da

    Associao Psicanaltica Argentina. Autor de inmeros livros de grande sucesso

    em

    seu pas, recebeu prmios literrios na Argentina, Mxico, Espanha e Frana. Na

    dcada de 1980, foi secretrio de

    Cultura do governo argentino na gesto do presidente Raul Alfonsn.

    Marcos Aguinis

    A SAGA DO MARRANO

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do

    Livro, SP, Brasil)

    Aguinis, Marcos, 1935

    A saga do marrano / Marcos Aguinis; traduo Hugueta Sendacz. So Paulo :

    Scritta, 1996. (Terrae)

    ISBN 85-7320-025-1

    1. Romance argentino i. Ttulo, n. Srie.

    96-4949

    CDD-ar863.4

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Romances : Sculo 20 : Literatura argentina

    ar863.4

    2. Sculo 20 : Romances : Literatura argentina

    ar863.4

    Marcos Aguinis, 1991.

    1a edio: dezembro de 1996

    EDITORA PGINA ABERTA LTDA.

    Publicado rnediante contrato com Internacional Editors Co.

    A SAGA DO MARRANO

    Marcos Aguinis

    Traduo Hugueta Sendacz

    SCRITTA

    Coordenao editorial Daisy Barretta Flamarion Maus

    Produo

    Cyntia de Souza Levy Enrique Pablo Grande Isabel Cristina Lima Patrcio

    Capa e projeto grfico Claudia Intatilo

    Foto da capa Cludio Pinheiro

    Reviso

    Maurcio Baltazar Leal

    Maria Borges

    EDITORA PGINA ABERTA LTDA.

    Rua Princesa Isabel, 1503

    04601-003 So Paulo SP Telefone: (011)532-1833 Fax: (011)240-1301 e-mail

    scritta @ax.ibase.org.br

    SUMRIO

    LIVRO PRIMEIRO

    Gnese - Brasas da infncia 09

    LIVRO SEGUNDO

    xodo - O trajeto da perplexidade 131

    LIVRO TERCEIRO

    Levtico - A Cidade dos Reis 209

  • LIVRO QUARTO

    Nmeros - Chile: a breve Arcdia 307

    LIVRO QUINTO

    Deuteronmio - Abismo e cume 395

    EPLOGO 483

    AGRADECIMENTOS 487

    LIVRO PRIMEIRO

    GNESE

    Brasas da infncia

    Imundcie, pele e osso, tornozelos e pulsos feridos pelos grilhes, Francisco

    uma brasa que arde sob os escombros. Os juizes olham enfastiados para este

    espantalho,

    um tumor decididamente intolervel.

    Fazia doze anos que o haviam encarcerado nos crceres secretos. Haviam-no

    submetido a interrogatrios e privaes. Em acaloradas polmicas, confrontaram-

    no com eruditos.

    Humilharam-no e ameaaram-no. Mas Francisco Maldonado da Silva no cede. Nem a

    dores fsicas, nem a presses espirituais. Os tenazes inquisidores transpiram

    raiva,

    porque no querem envi-lo fogueira, sem que carregue arrependimento nem

    temor.

    Quando seis anos antes o ru realizou um jejum que quase o transformou em

    cadver, os inquisidores ordenaram aliment-lo fora, darlhe vinho e doces;

    no podiam

    tolerar que este verme lhes arrebatasse a deciso sobre seu fim. " a Inquisio

    no seus prisioneiros que estabelece as penas e ordena seu cumprimento."

    Francisco

    Maldonado da Silva demorou a recuperar-se, mas conseguiu demonstrar a seus

    verdugos que podia sofrer tanto quanto um santo.

    Na masmorra malcheirosa, o desgraado prisioneiro consegue evocar sua odissia.

    Nasceu em 1592, exatamente um sculo aps a expulso dos judeus da Espanha e da

    descoberta

    das ndias Ocidentais por Colombo. Veio luz no remoto osis de Ibatn, numa

    casa onde predominava a cor pastel com enormes manchas de azul. Sua famlia

    mudou-se

    depois para Crdoba, precipitadamente. Tinham de fugir de uma perseguio que

    logo os alcanaria. Viajou por terras ameaadoras: ndios, pumas, ladres,

    salinas

    alucinantes. Tinha nove anos de idade quando prenderam seu pai. Um ano depois

    arrancaram violentamente de seu lar o irmo mais velho. Completou onze anos e

    no restava

    nada em sua casa para confiscar. Sua me, vencida, entregou-se morte.

    Completou sua educao num convento: ouvia o violino de Francisco Solano, lia a

    Bblia, aprendeu rapidamente o latim. Mas tambm sangrou um apopltico, cavalgou

    pelas assombrosas cordilheiras e conheceu os flagelos. Antes de completar

    dezoito anos resolveu partir para Lima, a fim de graduar-se mdico pela

    Universidade de

    San Marcos. Esperava encontrar seu pai semiparalisado pelas torturas da

    Inquisio. A viagem de milhares de quilmetros em carroa e em mula levaram-no

    desde os

    pampas do sul at as savanas do norte. Alternou

    12

  • vicissitudes com descobertas inesperadas. E desceu buliosa Cidade dos Reis

    para receber a revelao final. Ali conheceu e ajudou o primeiro santo negro da

    Amrica,

    participou da defesa de Callao contra o pirata holands Spilbergen e se formou

    numa cerimnia brilhante. A perseguio que comeou em Ibatn e continuou em

    Crdoba

    tornou a avivar-se em Lima. Decidiu ento embarcar para o Chile. L foi

    contratado como cirurgio-chefe do Hospital de Santiago: era o primeiro

    profissional com

    diploma legtimo que exercia medicina no pas. Sua biblioteca pessoal superava

    todas as colees de livros existentes nos conventos e reparties pblicas.

    Visitou

    sales e palcios, conviveu com altas autoridades civis e religiosas, foi

    adulado por sua cultura. Casou-se. Era um homem apreciado e bem-sucedido; seu

    bem-estar

    reparava a seqncia de padecimentos anteriores.

    Um homem comum no alteraria esta situao. Mas em seu esprito ardia uma chama

    inextinguvel. Era uma rebelio que ascendia das profundezas. Muita gente

    perambulava

    pelo mundo mantendo em segredo suas crenas. Contra a lgica da convenincia,

    ele optou por tirar a mscara e defender seus direitos. At esse momemto havia

    sido

    um marrano *.

    *Qualificao injuriosa aplicada pelo populacho aos judeus e muulmanos

    convertidos ao cristianismo e que mantinham laos com sua antiga f. Marrano o

    porco jovem

    recm-desmamado. Lembra a imundcie e a sordidez. Primeiramente assim se

    classificavam os excomungados. A partir do sculo XIII, o vituprio se dirigiu

    aos judeus

    convertidos fora e suspeitos de manter uma certa lealdade a suas razes.

    Depois a injria foi estendida a todo judeu e, particularmente, aos cristos-

    novos. A

    palavra soava horrivelmente aos ouvidos espanhis, e um decreto de 1380 foi

    promulgado para condenar, com multa e priso, a quem chamasse de marrano a um

    converso

    sincero. Mas no foi o bastante para deter o crescente fanatismo. Limpo era

    aquele que no tinha sangue nem judeu nem mouro, mesmo que fosse um delinqente

    vil e

    cheio de pecados. Sujo, cachorro e sobretudo marrano era aquele em cujas

    veias corria o sangue abjeto. Havia uma grotesca frase: "No come porco, porque

    porco

    ." A palavra se imps em toda a extenso do imprio espanhol e ingressou no

    lusitano.

    (Fim da nota)

    Quando vivia em hipcrita paz no Chile, decidiu dar o salto. Para que o

    arrependimento no o tentasse, afiou seu escalpelo e circuncidou a si mesmo.

    A marca fsica considerada infamante era a dolorosa proteo de sua

    liberdade. Pouco depois ocorreu o esperado: a Inquisio foi busc-lo. Era o

    incio da batalha.

    Quando o fizeram

    13

    comparecer ante o austero tribunal, no pediu clemncia. Os muros tremeram com a

    provocao que seu incrvel juramento acarretava: com Maldonado, milhares de

    vtimas

    tambm reivindicavam.

    Quando pde escapar pela janela de sua cela, no o fez para fugir: arrastou-se

    s cmaras vizinhas e insuflou nimo em outros prisioneiros. Impelia-o uma

    profunda

    convico da justia de sua causa. Coberto de feridas e anmico, continuava o

    combate. Na penumbra de seu tabernculo urdia discursos e os vertia nas sesses

    inquisitoriais

  • como ondas do mar s escarpas.

    Eram exploses de espuma e de luz que os juizes interrompiam abruptamente,

    vencidos e perplexos. Perguntavam-se consternados como foi a vida desse homem,

    quem moldou

    sua diablica insolncia. Era necessrio sab-lo, porque se tratava de uma

    histria inusitada, perigosa.

    O Santo Ofcio inicia os preparativos de um multitudinrio Auto-de-F, a

    realizar-se em janeiro de 1639. Descobriu a chamada Grande Conspirao. Sero

    executados

    muitos rus. A ocasio aconselha a terminar com esse rptil. Os juizes convocam

    ento Fernando de Montesinos, respeitado autor de muitas obras, para que faa o

    relato

    pormenorizado do Auto-de-F e a biografia dos condenados. O excelente trabalho

    seria impresso por ordem do Ilustrssimo Inquisidor Geral. No suspeitam que,

    desta

    forma, as vtimas ascenderiam imortalidade.

    Meio sculo antes da grande matana, o mdico portugus Diego Nunez da Silva

    pai do futuro mrtir havia chegado ao osis de Ibatn. A buclica regio

    apenas

    insinuava o comeo de uma epopia.

    Ao instalar-se em Ibatn* ou San Miguel de Tucumn** Diego Nunez da Silva sentiu

    urgncia em cumprir uma estranha obrigao. Inquietava-o o ptio retangular de

    sua

    humilde casa de pedras, adobe e teto frgil, construda pelos indgenas. Era um

    ptio

    *Nome do povoado no idioma tonocot. Um sculo aps sua fundao, o rio invadiu

    a cidade e seus habitantes a reconstruram muitos quilmetros ao norte.

    **Nome do povoado Ibatn no idioma espanhol.

    14

    quente, coberto por moitas, e para o qual se abriam os quartos. O quadro

    inspito devia ser substitudo por outro: por aquele desenhado em seus sonhos e

    que testemunharia

    sua deciso de radicar-se no lugar definitivamente.

    Diego Nunez da Silva nasceu em Lisboa em 1548. Quando obteve a licenciatura em

    medicina, aos trinta e dois anos, farto das perseguies e submisses, decidiu

    fugir

    para o Brasil. Queria afastar-se das fogueiras sem fim, da vertigem das

    acusaes, das foradas pias de batismo, das cmaras de tortura e dos Autos-de-

    F que assolavam

    Portugal. Regozijou-se com o oceano e festejou suas tempestades que pareciam

    apagar as tempestades humanas. Mas, ao desembarcar no Brasil, percebeu que

    convinha

    afastar-se do territrio dominado pela Coroa Portuguesa. Continuou, pois, sua

    viagem em direo ao oeste, at o Vice-Reino do Peru. Chegou finalmente

    lendria

    Potos, onde as minas de prata eram furiosamente exploradas: os veios j davam

    inequvocos sinais de esgotamento. Encontrou outros portugueses, com quem travou

    amizade;

    essas relaes tiveram mais tarde onerosas conseqncias.

    Desejoso de praticar a medicina, resolveu construir um hospital para os

    indgenas e realizou trmites junto ao Cabido, e tambm junto ao bispo de Cuzco.

    No teve

    xito: a sade dos ndios no era assunto de interesse. Tampouco lhe convinha

    permanecer nesse lugar, onde era visto com suspeita. Sabendo que necessitavam de

    mdicos

    ao sul, reiniciou a marcha. Ainda o animavam esperanas. Atravessou mesetas,

    quebradas e desertos espectrais, at alcanar o osis de Ibatn. Ali conheceu a

    jovem

  • Aldonza Maldonado, uma moa de olhos doces, mas sem bens; uma formosa crist-

    velha* que, pelo exguo dote, no podia aspirar a um casamento vantajoso.

    Aceitou casar-se

    com este mdico portugus maduro, pobre e cristo-novo**, porque tinha aspecto

    confivel e trato cordial. Os esponsais foram austeros, como exigia a falta de

    dinheiro

    de ambas as partes.

    Diego Nunez da Silva sentiu-se feliz. Havia oferecido seus servios a toda

    Ibatn e aos poucos povoados dispersos pela imensa provncia de Tucumn. Com

    suas economias

    anteriores e seu magro salrio, conseguiu financiar a construo da modesta casa

    em torno do tradicional ptio retangular. Terminou a casa, mas faltava corrigir

    o ptio.

    Soube que no Convento de La Merced havia um laranjal. Procurou o superior, frei

    Antnio Luque. Foi suficiente uma s conversa para

    *Sem antepassados mouros nem judeus.

    ** Convertido ou filho de convertido.

    15

    obter vrias mudas e a ajuda gratuita dos ndios e dos negros. Sob sua

    superviso, as enxadas arrancaram as moitas daninhas. Os caules e razes gemeram

    sob os golpes.

    A caa mida fugiu. Em seguida, as ps e picaretas completaram a limpeza,

    removendo tocas de lebres e ovos de rpteis. Roaram a terra mida e fizeram um

    pequeno

    declive suave por onde pudesse escorrer a gua das chuvas. Depois, aplainaram o

    terreno at que o retngulo se tornou to liso quanto uma pele de tambor.

    Dow Diego marcou ento doze pontos e mandou cav-los. Para assombro dos pees,

    fincou um dos joelhos e, dispensando ajuda, plantou cada rvore em seu

    respectivo

    lugar. Comprimiu a terra ao redor da delicada base das hastes, regou com prazer,

    como se desse de beber a peregrinos e, ao terminar o trabalho, chamou sua

    mulher.

    Ela atendeu submissa, as mos enredadas nas contas do rosrio. A escura

    cabeleira chegava aos ombros. A pele azeitonada contrastava com os olhos cor de

    mel. Rosto

    redondo, de boneca, boca pequena e nariz delicado.

    O que voc acha, Aldonza? perguntou orgulhosamente, enquanto apontava as

    pequenas rvores. Explicou-lhe que logo brotariam as flores, viriam os frutos e

    teriam

    uma boa sombra.

    No lhe disse, porm, que o recm-terminado ptio de laranjeiras era a

    reproduo de um sonho. Era a saudade da Espanha, uma terra que nunca havia

    conhecido.

    Quando nasceu o quarto filho do casal, Francisco, a magnfica ramagem do

    laranjal j abrigava a estridncia dos pssaros. O quadro era idlico. Francisco

    o evocaria

    amide nos anos posteriores, mesmo quando jazia no cho de sua priso. A memria

    lhe trazia a paisagem distante em tom pastel com pinceladas de azul.

    Os trs irmos de Francisco eram Diego, Isabel e Felipa. Diego, o primognito,

    era dez anos mais velho do que Francisco e foi batizado com o mesmo nome de seu

    pai.

    Porm seus traos fsicos e espirituais no lembravam o licenciado, mas sim a

    bela Aldonza. Como esta e como sua irm Isabel, Diego era tranqilo, afetuoso,

    de cara

    redonda e baixa estatura. Ao contrrio, Felipa e Francisco reproduziam o pai:

    nariz ossudo, fronte ampla, cabelos acobreados e altura generosa. Eram,

    16

  • como don Diego, apaixonados, falantes e audazes. A impetuosa Felipa, por

    exemplo, no conseguia frear seu esprito rebelde. Seus atrevimentos deixavam

    desesperada

    a pobre Aldonza, que a repreendia com sua voz de santa e lhe ordenava purificar-

    se com uma srie de ave-marias. O pequeno Francisco seguia o mesmo caminho.

    Esta famlia de seis pessoas contava com os servios de um casal de escravos:

    Lus e Catalina. Em comparao com outras casas, dois escravos eram um completo

    certificado

    de pobreza. Don Diego os comprara em uma liquidao de mercadoria defeituosa: o

    negro mancava devido a um ferimento na coxa, causado durante uma tentativa de

    fuga,

    por isso no servia para os trabalhos pesados. Ela era vesga. Ambos haviam sido

    aprisionados em Angola, ainda crianas. Aprenderam os rudimentos do castelhano,

    que

    entremeavam com speras expresses de sua lngua de origem. Tambm se resignaram

    ao batismo e imposio de nomes cristos, se bem que continuassem evocando

    dissimuladamente

    seus deuses distantes. O coxo Lus fabricou um instrumento musical com a

    queixada de um asno e o ossinho de uma ovelha. Raspava os dentes da queixada com

    ritmo excitante,

    e sua voz entoava uma cantilena inverossmil. A vesga Catalina acompanhava com

    palmas, leves movimentos de todo o corpo e um canto triste com a boca fechada.

    O doutor reconheceu a inteligncia de Lus, que afirmava descender de um

    feiticeiro, e o ensinou a auxiliar em seus trabalhos de cirurgia. Esse fato

    repercutiu escandalosamente

    em Ibatn. Se bem que alguns negros e mulatos j trabalhassem como barbeiros e

    realizassem as sangrias comuns, no se confiava a eles a reduo de uma fratura,

    a

    drenagem de abscessos ou a cauterizao de feridas. Don Diego encarregou-o

    tambm da custdia de seu delicado instrumental. Sua manqueira no o impedia de

    seguir

    don Diego pelas ruas de Ibatn, ou atravs do pedregal extramuros, carregando

    sobre os ombros a arca cheia de peas cirrgicas, ps, ungentos e ataduras.

    Quando, ao entardecer, Diego Nunez da Silva se sentava sob as laranjeiras, em

    sua larga poltrona de junco, uma pequena audincia comeava a rode-lo. Ele era

    um

    narrador nato. Se iniciava uma histria, era difcil levantar-se, at mesmo para

    urinar. Tinha um repertrio inesgotvel. Estava sempre disposto a oferecer novos

    contos sobre heris e cavaleiros, mas geralmente lhe pediam que repetisse as

    comovedoras lembranas espanholas e os moralizantes episdios

    da histria sagrada. Seu maior prazer mais do que o repouso, mais do que a

    deliciosa conversao era manter sua memria ativa e exercitar a de seus

    filhos.

    A manuteno da memria no era uma predileo inocente ou desprovida de riscos.

    17

    Um dia o ptio das laranjeiras comeou a ser chamado de "a academia". A ironia

    no incomodou o mdico portugus. Mais ainda, para no parecer intimidado,

    decidiu

    que ali se ministrasse uma educao sistemtica a sua famlia. Alegou que os

    ensinamentos dispersos eram insuficientes. Convenceu o debilitado frei Isidro

    Miranda

    a dar aulas para todos. Assim comeou uma atividade que no seria bem-vista

    pelas autoridades. Aprender algo estranho ao catecismo implicava invadir

    jurisdies

    perigosas.

    Sob a ramagem instalaram uma mesa de alfarrobeira e a rodearam com bancos

    desiguais. O abatido frade props ensinar o quatrivio* bsico: gramtica,

    geografia, aritmtica

    e histria. Sua voz era clida e persuasiva. O melhor deste homem. Em

    compensao, seu rosto ossudo emoldurava um par de olhos constantemente

    desorbitados, como

  • se no sassem do assombro ou terror. Apesar de sua boa vontade, o

    impressionante olhar chocava seus alunos. A estes era difcil subtrair-se ao

    sobressalto. O adoentado

    frade havia evangelizado no Peru e Paraguai, foi trespassado por flechas no

    Chaco e trabalhou na cidade de Santiago del Estero com o legendrio primeiro

    bispo desta

    extensa provncia de Tucumn.

    Os alunos da escola foram Aldonza a quem seu marido havia ensinado as

    primeiras letras , seus quatro filhos (inclusive o pequeno e travesso

    Francisco), Lucas

    Graneros (amigo de Diego) e trs vizinhos. Embora proveniente de uma famlia

    crist-velha, com relativa tradio, Aldonza no havia recebido mais instruo

    do que

    fiar, tecer, bordar e costurar.

    O conhecimento poder repetia don Diego aos dspares estudantes batendo com

    a mo fechada sobre a mesa. um estranho poder que no se compara com o ao,

    nem com a plvora, nem com a fora dos msculos. Quem conhece poderoso.

    Frei Antnio Luque, o severo superior da ordem dos mercedrios, que lhe havia

    dado generosamente as mudas para o laranjal, no pensava da mesma maneira. Luque

    era

    um sacerdote rude, a quem o Santo Ofcio da Inquisio investiu na categoria de

    familiar**. Usou um tom amvel para dirigir-lhe uma refutao

    esmagadora:

    *Trivio ou Quatrivio: conjunto de trs ou quatro matrias escolares que assim se

    agrupavam desde a Idade Mdia.

    **Funcionrio da Inquisio que devia denunciar as pessoas que atentavam contra

    a f e prender os rus com ordem do tribunal (por si mesmo ou auxiliado pelo

    oficial

    de justia). Para o cumprimento de sua misso, estava autorizado a portar armas,

    pblica ou secretamente, em todo o distrito inquisitorial.

    18

    O conhecimento soberba disse lentamente; cada palavra destilava fel. Por

    querer engolir o conhecimento, fomos expulsos do Paraso.

    E referindo-se academia do ptio das laranjeiras, desqualificou-a duramente:

    uma excentricidade.

    Como se no tivesse sido bastante categrico, acrescentou:

    um absurdo que toda uma famlia estude. Para a educao das mulheres

    suficiente aprender trabalhos manuais e o catecismo.

    Diego Nunez da Silva o ouviu com respeito. Sabia o risco que implicava ofender

    sua autoridade de familiar. Aps cada frase, ainda que no estivesse convencido,

    baixava

    as plpebras e at inclinava sua cabea. O rgido sacerdote era pequeno e de

    olhar raivoso. O mdico era alto e de olhos ternos. Mas o mdico, obviamente,

    devia

    ceder ante a fora do pequeno sacerdote. Ao menos para que no fechasse a

    academia. Limitava-se a dizer que refletiria sobre suas criteriosas palavras.

    Mas no despediu

    frei Isidro, nem limitou o horrio das aulas, nem excluiu as mulheres do

    aprendizado. Sua escola devia prosseguir e frei Antnio Luque provavelmente

    reconheceria

    seu valor, quando se convencesse de que no lesava a f.

    Diego Nunez da Silva dedicou seu tempo e presena a sua criao. Em algumas

    tardes se incorporava mesa de estudo para insuflar nimo. Ouvia, perguntava,

    anotava.

    Brincava de aluno. O afetuoso Isidro induzia-o a completar dados e explicar

    melhor certos problemas.

    o senhor, don Diego insistia o frade , quem suprime as dificuldades da

    geografia e da aritmtica. E quanto gramtica e histria, o senhor as

    converte

  • em matrias profundamente influentes. Como no admir-lo? Minha maneira de

    ensinar elementar, sem desleixar e sem sofisticar.

    Exagero. Se o senhor no desleixasse ria-se don Diego de pouco valeriam

    minhas intervenes.

    O senhor nos entusiasma. E quanto a mim reconheo que permite oportunos

    castigos a meus acessos de orgulho. bom que me lembrem como sou insignificante

    e enfermio.

    Encantada, Aldonza contemplava o mirrado sacerdote. Sua firme humildade a

    enternecia. Era um bom modelo para seu ideal de modstia. A submisso e a

    humildade comoviam-na.

    Frei Antnio Luque convocou Isidro Miranda para que "o informasse" sobre

    a "ridcula academia". O limitado funcionrio no queria descries ingnuas.

    Queria algo que se resumia em uma palavra, sonora, inequvoca e enaltecedora:

    denncia.

    A denncia dos costumes, frases, opinies e at aluses sutis que permitissem

    apanhar a ponta de um

    19

    fio que levasse imunda cova do demnio. Formulou meia dzia-de perguntas, que

    o bom frei Isidro respondeu em seguida, com seus olhos mais esbugalhados do que

    nunca:

    eram globos que flutuavam em seu rosto. Depois, o familiar o censurou:

    Que idia foi essa de armar um quatrivio? seu olhar emitia raios. Sim, um

    quatrivio inslito para esta parte do mundo. Que necessidade existe de ensinar

    histria,

    aritmtica, geografia e gramtica, neste deserto da cristandade? So quatro

    matrias para centros qualificados, no para Ibatn. Para completar esse fato

    grotesco,

    falta apenas que inclua os escravos entre seus alunos.

    Frei Isidro comprimia a cruz que pendia no peito.

    O senhor ensina matrias faustosas para seres miserveis. Isto jogar prolas

    aos porcos. Absurdo! levantou-se, deu algumas voltas na escura sacristia e

    ergueu

    o indicador para o cu. Alm disso, cometeu um esquecimento imperdovel:

    marginalizou a teologia, a rainha das cincias. Como pretende que compreendam o

    mundo,

    sem a teologia? Se o senhor e esse mdico extremamente suspeito querem cultivar

    almas, como dizem, ensinem ao menos rudimentos de teologia. Rudimentos!

    Na tarde seguinte, frei Isidro abriu o maltratado caderno, que conservava desde

    os tempos de sua juventude e deu sua primeira aula de teologia. Ao final da

    aula,

    Diego, o irmo mais velho, disse que queria aprender latim. O frade ficou

    surpreso:

    Latim?

    Para entender a missa respondeu o rapaz, desculpando-se.

    Voc no necessita entend-la explicou o sacerdote , basta assistir, ouvir,

    emocionar-se, comungar. E crer.

    Eu tambm quero aprender isso! exclamou o pequeno Francisco.

    "Isso" se chama latim.

    Sim, latim.

    No tens idade suficiente sentenciou frei Isidro.

    Por qu?

    O sacerdote acercou-se do menino e abraou-o carinhosamente.

    No se pode saber tudo disse.

    Soltou-o, caminhou lentamente ao redor de seus alunos e dirigiu-se ao ausente

    don Diego: "Saber nem sempre poder."

    Deu por terminada a aula. Cada um recolheu seus utenslios.

    Contrariamente ao previsto, aps algumas semanas, comeou a ministrar aulas de

    latim. Diego e Francisco estudaram o idioma como se fosse um jogo. Repetiam as

    declinaes

    enquanto pulavam corda e se

  • 20

    entretinham com a prtica do jogo de malha. Sabedor dessa novidade, frei Antnio

    Luque permitiu-se emitir uma centelha de aprovao. Mas ainda no se afastavam

    de

    seu esprito alerta as suspeitas de heresia.

    Francisco Maldonado da Silva completou trinta e cinco anos de idade. Mudou-se

    para Concepcin, no sul do Chile, para evitar as garras da Inquisio. Tem sono

    leve

    e sobressaltado. Intui que em algum momento, que em alguma dessas noites,

    acontecer. Esboa planos, mas os afasta por serem ingnuos. Ambos ele e a

    Inquisio

    tero de encontrar-se, fatalmente.

    Ouve rudos em torno da casa. Seu pressentimento torna-se realidade. Imagina os

    soldados com a ordem de priso. Chegou o momento, levanta-se silenciosamente.

    No

    deve assustar a esposa e a filhinha adormecidas. Veste-se na obscuridade. Os

    esbirros costumam agir brutalmente e ele ir surpreend-los com sua postura

    digna. Ainda

    que seu corao desenfreado tenha comeado a latejar em sua garganta.

    Ibatn se escondia nas fraldas de uma montanha que detinha as nuvens

    provenientes do leste e as obrigava a regar suas encostas; a vasta aridez

    circundante se transformava

    abruptamente em selva. Para chegar a este osis, Diego Nunez da Silva teve que

    percorrer os mesmos caminhos que, pela primeira vez, sculos atrs, os incas

    haviam

    desbravado. Aps os incas, esses caminhos foram exauridos pelos tenazes

    conquistadores: suas pequenas e suicidas tropas eram atradas pela alucinao de

    uma cidade

    portentosa, cujas casas tinham muros de prata e telhados de ouro. Os

    conquistadores, levando fulgurantes armaduras, percorreram a antiga trilha. No

    descobriram

    a cidade dos seus sonhos, mas fundaram outras, entre elas Ibatn, ou San Miguel

    de Tucumn, junto a um rio que desce fresco e sonoro pela Quebrada do Portugus.

    Batizaram-no com o nome de "rio do Telhal", porque em suas margens instalou-se

    uma fbrica de telhas. Mas no se sabe a que portugus se referiram, quando

    chamaram

    a quebrada "do Portugus"; esse nome j existia quando Nunez da Silva chegou.

    21

    Os habitantes de Ibatn tiveram que lutar em princpio contra duas ameaas: a

    natureza exuberante e os ndios. Junto cidade, agitava-se a selva. A

    respirao dos

    pumas chegava at os ptios. O rio baixava em impressionantes barrancos; na

    poca das chuvas os afluentes engordavam rapidamente e ele ento se convertia

    num monstro

    escuro e agressivo. A enchente arrancava rvores

    inteiras, empurrava pedras e devorava muros. Seu horrendo avano gerava pnico.

    Os aldees construam barragens com pedras e troncos. Por mais que se

    esforassem,

    nunca conseguiam deter as lnguas que se estendiam at o centro. Uma vez a gua

    chegou aos umbrais da Igreja Matriz.

    A recm-fundada Ibatn contaram a don Diego logo que l se instalou produziu

    uma sublevao dos calchaques. Estes ndios habitavam as montanhas e no

    aceitavam

    ser submetidos ao regime de encomiendas*. Seu lder naquela poca era um

    legendrio cacique de enorme estatura chamado Gualn, que foi comparado por um

    sacerdote

    ao bblico Golias. Planejaram um ataque devastador e tiveram pacincia de

    aguardar at que a maioria dos espanhis sasse para uma expedio. Quebraram a

    muralha

  • da cidade, destruram os semeadouros, afugentaram os animais, atearam fogo s

    construes. A resistncia sobre-humana dos poucos espanhis, mantida com

    arcabuzes

    e punhais, durou vrios dias, at que pudesse chegar ajuda de Santiago del

    Estero. Gualn morreu no combate. Os calchaques de pescoo taurino e

    cabeleiras leoninas

    retrocederam para suas posies nas montanhas. Os ndios da plancie, que

    tambm queriam sublevar-se, ao perder a proteo destas tribos indmitas,

    submeteram-se

    definitivamente ao poder espanhol. Ibatn foi reconstruda sobre os calcinados

    alicerces.

    Este conflito teve repercusso no vnculo entre os homens e as foras

    sobrenaturais. Com efeito, a cidade havia sido fundada sob a proteo do arcanjo

    Miguel e sua

    espada. Mas viu-se que o arcanjo no enfrentou os calchaques. Sua negligncia

    provocou muita decepo. Os sacerdotes e o povo decidiram conseguir outra

    proteo

    mais confivel. Um padre sonhou com os santos Judas e Simo. A mensagem era

    clara: foram Judas e Simo quem realmente intervieram para salvar Ibatn.

    Deveriam ento

    ser designados padroeiros, no lugar do ineficiente Miguel. Mas como deslocar o

    arcanjo sem ofend-lo? O mesmo padre props a soluo: designar Judas e Simo

    como

    vice-padroeiros.

    *Instituio pela qual se "encomendava" para um colonizador um grupo de ndios

    que trabalhariam para ele, em troca da obrigao, que o encomendero assumia, de

    custear

    sua educao crist.

    22

    A proposta obteve uma alegre aprovao e em poucas semanas se ergueu a capela

    dos novos protetores. Foi primorosamente construda no acesso norte, por onde

    ingressavam

    os viajantes do Peru, que assim logo sabiam da sua presena. Por ali costumavam

    passar Francisco, o seu irmo Diego e seu amigo Lucas, quando iam pescar.

    Uma cerca de troncos rodeava a povoao. Cada morador estava obrigado a manter

    armas em casa e pelo menos um cavalo. Vivia-se em p de guerra. Os guardies

    faziam

    permanentemente a ronda extramuros. Dow Diego tambm fazia a ronda a cada dois

    ou trs meses. Mas, como era o nico mdico, as autoridades preferiam que ele

    no

    participasse tanto das rondas e ficasse disponvel para sua tarefa especfica.

    Francisco orgulhava-se de ver seu pai alistar-se como soldado. Observava-o

    revisar

    o arcabuz, contar a munio e colocar o capacete sobre a cabeleira ruiva.

    A praa central de Ibatn era ladeada pelas ruas reais, que se ligavam aos

    caminhos para o Chile e o Peru (no Norte) e s plancies pampianas (no Sul). O

    alvoroo

    no cessava: ao trnsito das carroas somavam-se as tropas de mulas, o mugido

    dos bois, o relincho dos cavalos e o regateio dos comerciantes. No centro desse

    movimento

    de homens, animais e veculos, erguia-se o pelourinho: era chamado "rvore da

    justia". Era o rstico eixo da cidade: testemunha de sua fundao e vigia do

    seu crescimento.

    Solidamente fixado terra "em nome do rei" legitimava a presena e a ao

    dos colonos. No pelourinho se aoitava e se executava. Os rus chegavam sua

    severa

    instncia com a grossa corda no pescoo, escoltados por guardas. O pregoeiro

    informava sobre o seu delito; o verdugo o enforcava com eficincia; o pelourinho

    o exibia

  • com orgulho macabro; os moradores olhavam morbidamente o corpo que pendia da

    corda e se balanava ligeiramente, como se transmitisse saudaes ao inferno. s

    vezes

    era necessrio retirar o cadver antes que se cumprisse sua didtica funo de

    exemplo, porque se celebrava uma festa. Festa pelo nascimento de um prncipe, a

    coroao

    de um novo rei, a designao de outras autoridades. Era imprescindvel que

    domingos e dias de guarda, bem como a celebrao de santos favoritos, nunca se

    contaminassem

    com uma execuo. No porque a execuo em si carecesse de elementos festivos,

    mas sim que Eclessia abhorret a sanguini que corresponde ao bom cristo dar a

    Csar

    o que de Csar e a Deus o que de Deus.

    A praa, portanto, era um espetculo permanente. Se no pendia um enforcado

    rapidamente visitado pelas moscas , havia folguedo secular. Se no se realizava

    uma

    corrida de touros, circulava uma procisso (contra a prxima enchente do rio,

    contra uma epidemia, por

    23

    falta de chuva, por excesso de chuva, contra renovada ameaa dos calchaques, ou

    em ao de graas pela boa colheita). Durante as procisses desfilavam as quatro

    principais ordens religiosas com seus estandartes: dominicanos, mercedrios,

    franciscanos e jesutas. O fantico frei Antnio Luque costumava dirigir as

    ladainhas

    e imprecaes com sua voz estentrea, podia assim lembrar aos hereges ocultos

    seu terrvel poder de familiar. Marchava frente da imagem fitando o p do

    caminho

    porque "p fomos e p seremos" e, de quando em quando, cravava suas pupilas com

    preciso intuitiva em quem esquecia a gravidade do momento. Depois era realizada

    uma corrida de cavalos e uma de arcos e tambm elementares

    representaes teatrais sobre temas sagrados e concursos de poesia, dos quais

    Diego Nuez da Silva participou uma vez. Ao escurecer, soltavam fogos de

    artifcio.

    Certa ocasio, Diego queimou uma das mos por querer ajudar; ficou com uma

    cicatriz na palma.

    Esta resumida descrio seria incompleta se no lembrssemos que a um lado da

    praa erguia-se o Cabido a autoridade secular , composto por vrias salas que

    rodeavam

    o inevitvel ptio. Seus muros caiados brilhavam como a neve dos altos cumes. No

    centro do ptio instalaram uma cisterna com formoso parapeito de azulejos.

    Defronte

    ao Cabido, erguia-se a Igreja Matriz a autoridade eclesistica. Ali estavam,

    pois, os dois poderes que disputavam o domnio de Ibatn, a provncia de Tucumn

    e

    o continente inteiro. De um lado o poder terreno, de outro o poder celestial. E

    assim como o primeiro se estendia at o implacvel pelourinho, o segundo se

    estendia

    a outras igrejas e conventos. No pelourinho mandava Csar (inclusive os

    condenados pela religio deviam ser entregues ao brao secular) e nos templos

    mandava Deus.

    Mas ambos sempre excediam seus limites, porque Deus est em toda parte e Csar

    no se resigna a ser menos que Deus.

    Pelas ruas vizinhas praa, construram-se outras igrejas, com seus respectivos

    conventos. Os franciscanos, melindrados, ergueram uma igreja mais alta que a dos

    mercedrios e lhe anexaram uma formosa capela. Expuseram-se crtica

    e culpa pela quantidade de dinheiro investido. Os jesutas, por sua vez, no

    se intimidaram com as eventuais crticas: construram uma nave com cruzeiro de

    quarenta

  • metros de largura, amplo trio, paredes de azulejos e almofadado exterior;

    revestiram o piso com cermica, recobriram as paredes com gesso e cobriram o

    teto com

    telhas; instalaram um altar grandioso e dotaram o templo com um plpito

    admiravelmente decorado. Os jesutas assumiam frontalmente a belicosidade de sua

    Companhia.

    24

    Corre a tranca de ferro. Ao entreabrir a porta, vrias mos empurram de fora.

    Supem que Francisco, assustado, tornaria a fech-la. Mas Francisco no se move.

    Os

    soldados tm de frear seu mpeto: diante deles, na penumbra, ergue-se um homem

    corpulento, que o lampio pincela de ouro e anil. Quase esquecem o que tinham a

    dizer.

    Um dos esbirros aproxima o lampio dos seus olhos e pergunta:

    O senhor Francisco Maldonado da Silva?

    Sim.

    Eu sou Juan Minaya, escrivo do Santo Ofcio aproxima o lampio ao nariz,

    como se desejasse queim-lo. Identifique-se.

    Francisco, quase cego, se anima a perguntar:

    No acaba de nomear-me?

    Identifique-se grunhe com impacincia burocrtica.

    Sou Francisco Maldonado da Silva.

    O tenente baixa lentamente o lampio, como se iluminasse partes ondeantes dos

    rostos espectrais.

    Est preso em nome do Santo Ofcio sentencia.

    Outros homens amarram seus braos com rudeza. Apropriam-se do seu corpo.

    Isidro Miranda costumava levar o pequeno Francisco at a ermida dos vice-

    padroeiros Simo e Judas. Era um passeio agradvel para ambos: o ancio se

    divertia com

    as perguntas do pequeno e o religioso as respondia. A salvo da solenidade

    imposta pelos semelhantes, o menino era como um neto que lhe permitia brincar de

    av transgressor.

    Enquanto percorriam as ruas de casas toscas que contrastavam sua cobertura de

    adobe com o verde dos cedros Francisco lhe tazia perguntas sobre os outros

    lugares

    onde havia vivido antes de radicar-se em Ibatn, especialmente sobre a vizinha

    Santiago del Estero. Ali passou anos junto ao divertido Francisco de Vitoria,

    que

    havia sido o primeiro bispo da provncia. Vitoria foi um homem excepcional, que

    interrompeu bruscamente sua gesto pastoral, quando mais necessitavam dele.

    25

    Foi perseguido por seus prprios pecados ou pela inveja dos outros frei

    Isidro no conseguia chegar a uma concluso; algumas vezes acentuava o primeiro

    e outras

    o segundo. Mas insistia Francisco de Vitoria deixou uma lembrana

    indelvel. Sim: indelvel.

    Gostaria de t-lo conhecido disse Francisquinho.

    Simconcordou o frade.E teria te causado uma forte impresso.

    Ele gostava de crianas?

    s vezes.

    Como, s vezes?

    Quando o divertiam. Veja bem. Um de seus filhos, que lhe deu uma negra

    angolana, era extremamente tmido.

    Filho dele e de uma negra angolana? surpreendeu-se o pequeno.

    Isidro no fez caso da interrupo e continuou:

    Enfurecia-o, que fosse tmido. Tanto insistiu para que o mulatinho fosse mais

    travesso, que festejou a destruio da imagem de um santo. Levantou-o, beijou-o

    e

  • danou com ele em torno dos sagrados pedacinhos da imagem. Depois, aplicou-lhe

    uma penitncia. O mulatinho chorou confuso: fizera bem? fizera mal?

    E o senhor, o que acha?

    Espera. Francisco de Vitoria organizou uma procisso para desagravar o santo,

    como devia ser feito, e perguntou ao mulatinho se estava arrependido. O menino

    no

    sabia o que responder e disse com muita graa que ainda lhe doa a sova. No

    est arrependido?, insistiu seu pai. Est doendo, repetia. Responde minha

    pergunta!

    Est doendo. E assim outra vez. O bispo interpretou esta evasiva como uma

    saudvel rebelio.

    Saudvel rebelio?

    "Saudvel"... duvidou o frade. Sim, ele disse saudvel rebelio. Um

    absurdo, naturalmente. Mas Francisco de Vitoria era absurdo. Definitivamente:

    celebrava

    a rebelio. Estranho, no ?

    Um bispo pode ter filhos?

    O frade pigarreou e desviou o olhar. O senhor tem filhos?

    Agarrou com as mos a cruz que lhe pendia no peito:

    Os sacerdotes fazem voto de castidade e praticam o celibato.

    O que celibato?

    No contrair casamento.

    Mas pode ter filhos?

    Pode, mas no deve.

    O bispo Francisco de Vitoria...

    26

    Deus o julgar.

    Estendia-se ao norte a cadeia montanhosa atapetada pela selva. No alto brilhavam

    os cumes nevados. medida que se acercavam de Ibatn, crescia o nmero de

    carroas

    e animais. Ingressaram numa esplanada, onde confluam policromia e estrondo. A

    se renovavam cavalgaduras e bois, se vendiam tropas de mulas, se amontoavam

    fardos

    cheirosos, os escravos carregavam volumes. Era o lugar onde rapidamente se

    encontrava o seleiro que consertava os arreios e os carpinteiros que recolocavam

    o eixo

    nas carroas.

    Ento o bispo Vitoria era bondoso com os rebeldes? Francisco continuava

    assombrado.

    Somente com os meninos rebeldes.

    Por qu?

    No o ameaavam. Era cioso de seu poder e fora. Os adultos que ousavam

    insubordinar-se eram por ele esmagados sem misericrdia, com mo pesada. Saiba

    que chegou

    a excomungar o governador.

    O governador?

    Exatamente! E no uma, mas quatro vezes!

    Excomungou o governador quatro vezes?

    Assim como ouves: quatro.

    Pobre. Deve estar penando no inferno.

    Junto cerca e perto do prtico destacava-se a esbranquiada capela dos vice-

    padroeiros. Foi construda nesse lugar por razes prticas: assim podiam

    controlar

    melhor as ameaas do rio, da selva e dos impenitentes calchaques. Entraram na

    acolhedora penumbra. So Judas e So Simo foram esculpidos em imagens

    impressionantes.

    As bordas de prata ressaltavam seus retintos cabelos. Vestiam hbitos verdes,

    que correspondia cor dominante em Ibatn, e envolvia-os uma tnica roxa, sobre

    a

    qual refulgiam estrelas de ouro.

  • Ajoelharam-se sobre o tapete de l e rezaram. Ao sair, frei Isidro repetia

    sempre:

    Nunca confundas So Judas Tadeu com Judas Iscariotes. Apoiando-se nos reforos

    da paliada estendia-se uma ampla estalagem, cujas paredes estavam cobertas por

    camadas de pintura vermelha. Ali se hospedavam os viajantes. O governador de

    Tucumn havia ordenado com sensatez que toda cidade do territrio deveria ter

    pelo menos

    uma estalagem, "para remediar o dano de que todas as residncias

    o sejam". A uma distncia de uns trinta passos, funcionava a taberna, cujo teto

    de bambu e palha era sombreado por uma alfarrobeira. O frade puxou a mo de

    Francisquinho,

    para afast-lo dessa tentao. Era um edifcio muito concorrido e alegre. Na

    primeira vez em que o menino

    27

    se interessou pelo lugar, o frade disse que era uma porqueira, que taberna

    significava isso: "porqueira".

    Mas no se criam porcos a.

    Algo pior.

    O qu?

    Pecadores.

    Por qu? O que fazem?

    Pecam.

    Que pecados?

    Embriagam-se. E jogam por dinheiro, por terras, por mulas, por roupa. um

    antro de Satans. As cartas, os dados e a piorra os enlouquecem. Alguns saem

    desesperados

    porque empobreceram e outros, desesperados porque enriqueceram. Deveriam deit-

    la por terra.

    Por que no o fazem?

    Frei Isidro erguia seus protuberantes olhos para o cu, para transferir-lhe a

    pergunta.

    Por qu? insistia o pequeno.

    O frade, impotente, fez outra transferncia, mais prxima. Deveria perguntar a

    frei Antnio Luque. O juiz da Santa Cruzada, que vela pelos bons costumes. E

    familiar

    da Santa Inquisio. Tem autoridade suficiente para exigir dos jogadores que

    empenhem sua palavra de que no tornaro a pecar e tambm para castig-los se

    violarem

    o juramento.

    Mas ele no o faz!

    No.

    O pequeno meneou a cabea. Logo insistiu:

    H tabernas em Santiago del Estero?

    H.

    J havia na poca do bispo Francisco de Vitoria?

    Sim, havia. Instalaram-se antes da sua chegada.

    Sua mo pesada no as destruiu?

    No.

    Por qu?

    Por qu! Por qu! No tenho todas as respostas. Francisquinho gostava de

    irrit-lo. O enrugado frade tornava-se

    mais jovem.

    Sei porque murmurou em seguida com um trejeito, mas demorou a diz-lo.

    Por qu?

    Extorquia-lhes dinheiro. O bispo recebia muito dinheiro, como castigo por seus

    vcios. A taberna converteu-se numa importante fonte de recursos para sua obra

    pastoral.

    Isso ele me disse uma vez. um segredo.

    28

  • Era verdade?

    Em parte, creio.

    Esse bispo era pior que os porcos da taberna! sentenciou

    Francisco.

    O frade se benzeu:

    Sou um Judas murmurou arrependido e comeou a beliscar seu rosrio. No

    era um mau pastor. No sou digno dele.

    Sua voz se embargava. Seus olhos enormes brilhavam. No aceitou falar novamente

    sobre seu antigo prelado. Somente o fez muito tempo depois, durante a viagem a

    Crdoba.

    Enquanto os trs oficiais e o severo escrivo do Santo Ofcio o empurram at a

    porta com desnecessria e desrespeitosa violncia, Francisco sai da escurido

    circundante

    e recupera a beleza de Ibatn. V o sonoro rio Tejar, a capela dos vice-

    padroeiros, a buliosa praa central, os cumes nevados sobre as encostas

    cobertas pela selva,

    a incessante fbrica de carroas e o ptio das laranjeiras em cor azul e pastel.

    V sua famlia ntegra, alvoroada, terna e perplexa.

    Nos pequenos povoados da vasta e remota provncia de Tucumn, costumava-se

    acumular certos bens que significavam riqueza: terras, ndios, negros, recuas de

    mulas,

    piaras, gado e semeaduras. A isso tudo se agregavam certos luxos como vasilhas

    de prata, mveis, tecidos finos, peas de ouro e delicados utenslios importados

    da

    Europa. Mas a ningum ocorria formar um tesouro com livros. Os livros eram caros

    para comprar e difceis de vender; ademais, continham pensamentos temerrios. E

    os pensamentos geravam perturbaes que uma cadeira ou uma mula, por exemplo,

    jamais produziriam. Diego Nunez da Silva interessou-se em formar uma biblioteca.

    Ao

    invs de investir suas economias em bens produtivos, gastou-as na aquisio de

    volumes questionveis. Trouxe alguns de sua Lisboa natal, e comprou os restantes

    em

    Potos. Sua biblioteca teria sido apreciada em Lima ou Madri, onde funcionava a

    Universidade e

    29

    abundavam os eruditos. Na miservel Ibatn, ao contrrio, no somente era uma

    extravagncia, mas tambm um motivo de suspeitas.

    Os volumes alinhavam-se sobre grossas estantes, num pequeno quarto, onde ele se

    encerrava para estudar. Quando construiu a casa, ele se esmerou em

    dotar esse quarto da privacidade necessria. Ali tambm guardava sua arca com

    instrumentos mdicos e algumas lembranas pessoais. Ningum podia entrar sem sua

    autorizao.

    Os escravos tinham instrues precisas e a compreensiva Aldonza fazia respeitar

    a vontade de seu marido.

    Francisco adorava introduzir-se nessa espcie de santurio, quando seu pai se

    isolava para ler ou escrever. Tratou de decifrar o enigma por sua prpria conta.

    De

    tanto observar seu pai, reproduzia cada um de seus passos: retirava um tomo com

    carinho, estreitava-o contra o peito como uma valiosa carga, depositava-o sobre

    a

    mesa, abria a dura capa e deixava correr as folhas de sinais iguais. Nesse

    alvoroado mar de letras, apareciam vinhetas coloridas e se intercalavam

    formosas ilustraes.

    Dedicou-se a examinar as ilustraes de todos e de cada um dos livros. Antes de

    aprender a ler, j havia conhecido figuras e paisagens maravilhosas. Quem sabe

    no

    eram os sbios que lhe falavam de terras longnquas. Quando pde ler, esses

    livros j constituam um territrio familiar.

    Algum dia lers todos sorria don Diego ante a voracidade de Francisco.

  • Aconselho-te a ler uni pouco cada dia conciliava frei Isidro. Para no

    cansar-te, caminha devagar e com boa vontade. Toda vez que te concentrares em

    uma folha,

    alegra-te. Alegra-te, porque entabulaste relaes com outro ser, que tem algo

    importante a dizer.

    Entre os numerosos livros disponveis se destacava o Teatro de los dioses de la

    gentilidad do franciscano Baltazar de Vitoria. Teria algum parentesco com quem

    foi

    o primeiro e muito escandaloso bispo de Tucumn? Impossvel sab-lo. A obra era

    um deslumbrante catlogo de divindades pags. Fervilhava com historietas sobre

    personagens

    fabulosos e explicaes inslitas. Mostrava as crenas ridculas que existiram

    antes da revelao. E, se bem que fossem mentiras do princpio ao fim, tinham

    extraordinria

    beleza. Frei Antnio Luque, sabedor do fato, opsse a que Francisco lesse esse

    livro.

    Vai confundi-lo em matria de religio.

    Seu pai, por sua vez, opinava que lhe fortaleceria o raciocnio.

    Ajudar a no confundir-se, precisamente.

    O pequeno lia em forma salteada. Heris, deuses, filicdios, enganos,

    metamorfoses e prodgios, se alternavam com argumentos

    30

    verossmeis. Aprendeu a respeitar os disparates: tambm so poderosos.

    Quando seus progressos em latim lhe permitiram traduzir alguns versos, brincou

    com a Antologia de poetas latinos, composta por Otaviano de la Mirandola. Seu

    pai

    comentou com frei Antnio Luque que os poemas de Horcio includos nessa

    Antologia exalavam um lirismo fantstico e que as suas sentenas penetravam como

    a boa chuva.

    O austero familiar no respondeu porque no lhe interessava o lirismo, e sim a

    f. A moral de Horcio prosseguia don Diego grata ao sentimento cristo. A

    moral

    replicou Luque secamente no necessita ser grata, mas sim acatada.

    Entre a seo mdica e a geral, estavam localizados os seis volumes da Naturalis

    Historia de Plnio. Fascinante: reuniam os trinta e sete livros escritos por

    esse

    romano genial. Francisco levou anos para ler esses livros integralmente. Plnio

    foi um homem corpulento que engoliu o conhecimento global de sua poca. Estudou

    sem

    limites, comeando pela origem do Universo e seu contedo; sabia at que a Terra

    era redonda. Diego Nukz da Silva tinha por ele uma desenfreada admirao. Esse

    homem havia estudado a bagatela de dois mil livros, pertencentes a cento e

    quarenta escritores romanos e 326 gregos contava. Sua vocao pelo saber era

    to ardente,

    que no andava para no perder tempo: os escribas sempre o acompanhavam para

    anotar suas observaes. Sua recompilao foi inteligente e, apesar de sua

    erudio

    incomparvel, teve a modstia de citar as fontes que usou. Algumas de suas

    observaes so impressionantes: assegura que os animais sentem sua prpria

    natureza,

    agem de acordo com ela, e assim resolvem suas dificuldades; mas o homem, ao

    contrrio, no sabe nada sobre si mesmo se no o aprende; o nico que sabe por

    si s

    chorar. Portanto, a obrigao de cada ser humano aprender e instruir-se

    completou don Diego. A partir de ento, cada vez que Francisco chorava, dizia a

    si

    mesmo: "Estou procedendo como um animal; vejamos agora como procede um homem."

    Plnio dedicou muitas pginas aos seres fabulosos. Tinha prazer em descrever

    homens cujos ps apontavam para trs ou seres desprovidos de boca que se

    alimentavam

  • inalando perfumes; cavalos alados; unicrnios; pessoas com dedos to

    descomunais, que podiam cobrir com eles a cabea, como se fossem um chapu.

    verdade tudo o que Plnio escreveu? perguntou Francisco.

    No tenho certeza se mesmo para ele era verdade respondeu o pai, acariciando

    sua aparada barba com reflexos dourados. Mas escreveu porque era verdade

    para algum. Imps a si mesmo a tarefa de recompilar, no de censurar.

    31

    Ento, como sabemos se certo? Meneou a cabea leonina:

    Esse o grande dilema dos pensadores suspirou. Ou daqueles que amam o

    pensamento.

    7

    O episdio do estojo tambm aconteceu na lendria Ibatn. Junto ao mvel de

    cedro no qual se alinhavam os livros de medicina, havia uma grande arca, na qual

    Nunez

    da Silva guardava seu melhor traje e algumas camisas de linho. Na base, oculto

    sob a pilha de tecidos, a curiosidade de Francisco descobriu um estojo

    retangular,

    forrado de brocado prpura, enrolado vrias vezes por um cordo que terminava

    num n.

    O que ? levou o estranho objeto at onde estava sua me.

    De onde voc o tirou?

    Da arca. Do quarto de papai.

    Com licena de quem? Voc no sabe que no deve espiar, nem mexer em suas

    coisas?

    No mexi assustou-se o menino. Deixei a roupa como estava. Mas encontrei

    isto.

    Coloque-o no lugar ordenou Aldonza com doce severidade. E no entre no

    quarto na ausncia do seu pai.

    Est bem vacilou, girou o estojo entre os dedos. Mas... O que ?

    Uma lembrana de famlia.

    Que lembrana?

    S sei que uma lembrana de famlia. Uma esposa no deve fazer perguntas ao

    marido se ele no gosta de responder.

    Ento... deve ser algo horroroso.

    Por qu?

    Papai sempre responde. Eu vou perguntar-lhe o que .

    Por enquanto v colocar o estojo no mesmo lugar de onde o tirou. E, quando seu

    pai voltar, no o incomode com perguntas desnecessrias.

    Quero saber o que esta lembrana de famlia.

    Diego Nunez da Silva havia partido de manh at os confins de

    32

    uma fazenda, para atender ndios enfermos. O feudatrio veio busclo

    pessoalmente. Estava muito nervoso: temia o comeo de uma epidemia, apesar de

    no saber exatamente

    do que se tratava.

    O que uma epidemia? perguntou-lhe Francisquinho.

    A propagao rpida de uma doena.

    E como se cura?

    No diria que se cura: se detm pediu a bolsa com os instrumentos a Lus e,

    ao mesmo tempo, recomendava ao encomendero que se mantivesse calmo.

    Se detm? Como a um cavalo?

    No exatamente: isola-se. Encerra-se em uma espcie de muro.

    Construir um muro ao redor dos ndios com epidemia? Nunez da Silva riu:

    Somente em sentido figurado. Primeiro terei que me inteirar se exato o que

    chegou aos ouvidos do capataz.

    Nessa noite, logo ao regressar, Francisco disparou a pergunta:

    O que contm o estojo vermelho guardado na arca grande?

    Deixe-o apear protestou Aldonza.

  • epidemia? interveio Diego.

    O pai revolveu os cabelos de Francisco e se dirigiu ao filho mais velho:

    No, felizmente. Creio que o capataz teve a suspeita por medo. um homem

    demasiadamente cruel. Exige tanto dos ndios que vem sonhando com a epidemia que

    eles

    desencadeariam como represlia.

    Os olhos de Francisco continuavam cravados no pai, aguardando a resposta.

    Falarei sobre o contedo do estojo respondeu em seguida. Mas antes vou me

    lavar, est bem?

    O pequeno no conseguia dissimular sua alegria. Selecionou algumas frutas,

    lavou-as e arrumou-as sobre uma bandeja de cobre. Os figos maduros, pretos e

    brancos,

    alternavam com roms lustrosas. Seu pai tinha predileo por elas.

    Dow Diego entrou na sala com roupa limpa. Exalava a frescura de seu banho. O

    cabelo e a barba midos resplandeciam mais escuros e brilhantes. Trazia o

    misterioso

    estojo, que colocou sobre a mesa. Francisco instalou-se ao seu lado. Tambm se

    aproximaram Diego, Isabel e Felipa. Aldonza, ao contrrio, distanciou-se; no

    parecia

    interessar-se pelo assunto. Na realidade a inquietava; mas no conseguia

    expressar seu mal-estar de outra forma, a no ser pelo silncio.

    uma lembrana de famlia advertiu o pai. No se decepcionem.

    Desfez o n do cordo. Acariciou o brocado gasto, que no tinha nenhuma

    inscrio. Alou os olhos em busca de mais luz e pediu que aproximassem o

    candelabro. As

    chamas prximas e fortes produziram um brilho no velho tecido.

    No tem valor material. O espiritual inestimvel. Abriu a tampa. Todos

    puderam ver.

    Uma chave.

    Sim, uma chave. Uma simples chave de ferro pigarreou, levantou as

    sobrancelhas e disse: Na empunhadura tem uma inscrio: conseguem v-la?

    Aproximaram-se. O pai ajustou a posio do candelabro. Distinguiram um desenho.

    uma chama de trs pontas. Pode ser a chama de uma tocha. Parece um smbolo,

    no? A gravao tampouco excepcional. Ento tornou a pigarrear , por que

    guardo

    este objeto num estojo e o considero valioso?

    Francisco aproximou a cabea at quase tocar a chave com seu nariz, mas no

    decifrava o enigma. Don Diego lha entregou.

    Toque-a. de puro ferro. No tem prata, nem ouro. Meu pai entregou-a para

    mim, em Lisboa. E ele a recebeu de seu prprio pai. Provm da Espanha, de uma

    formosa

    casa de Espanha.

    Francisco ergueu-a com delicadeza e a susteve com ambas as mos, como fazem na

    missa com o clice sagrado. A luminosidade oscilante do candelabro reverberava

    em

    sua rugosa superfcie. Parecia emitir um fulgor prprio: a pequena chama gravada

    na enferrujada empunhadura acendeu-se tambm.

    Pertence fechadura de um prtico majestoso que foi atravessado por muitos

    prncipes. Nessa residncia havia um belssimo salo, onde se realizavam

    reunies em

    torno de documentos preciosos que ali eram escritos e copiados. Vejam a textura

    da chave. Foi elaborada por um ferreiro de reconhecida santidade. Usou

    partculas

    de metal que nunca pertenceram a arma alguma, que jamais feriram um homem. A

    tnue patina amarelada que agora a recobre como a tnica que proteje algo

    nunca maculado.

    Tiveram-na em suas mos grandes prncipes, lembrem-se, de cuja dignidade e

    sabedoria podemos apenas ser uma imperfeita imitao. Quando esses prncipes,

    por razes

  • alheias a sua vontade, no puderam continuar freqentando o esplndido recinto e

    nossos antepassados tiveram que abandonar a residncia, fecharam o pesado porto

    e decidiram guardar a chave. Sim, esta singela e, ao mesmo tempo, preciosa

    chave, que simboliza os documentos, o recinto, toda a reunio de dignitrios, o

    magnfico

    lar

    de nossos antepassados espanhis.

    34

    Meu bisav prendeu a chave em seu cinto. Nunca mais se separou dela. Quando o

    anjo da morte o visitou, nem sequer a debilidade de sua agonia abrandou a mo

    que se

    fechava com obstinao sobre a empunhadura trabalhada. Seu filho, quer dizer,

    meu av, teve de arrancla, chorando, como se estivesse cometendo um sacrilgio.

    Confeccionou

    um estojo, forrou-o cuidadosamente com brocado, para que no se repetisse a

    penosa histria de se violentar um morto. Meu av recomendou a meu pai que

    cuidasse desta

    pea como se fosse um tesouro. Meu pai a mim. E eu a vocs.

    Reinava um pesado silncio. Os quatro filhos de Diego Nunez da Silva estavam

    assustados. A luz das velas pintavam suas faces de escarlate.

    O pai aproximou a relquia dos olhos de Diego, de Felipa, de Isabel e de

    Francisco.

    Observem novamente esta pequenina chama da empunhadura. No lhes parece

    enigmtica? Imaginam o que estas trs pontas significam? No?... Observem:

    parecem trs

    ptalas sobre uma grossa barra horizontal. Ou trs avezinhas sobre um galho.

    Aguardou as opinies de seus filhos, mas a perplexidade no lhes permitia emiti-

    las.

    Algum dia sabero aproximou o signo de seus lbios e o beijou. Os

    prncipes e os nossos antepassados acreditavam retornar a essa casa. Por isso

    guardamos a

    chave.

    Francisco balbuciou uma pergunta:

    Poderemos retornar?

    No sei, filho, no sei. Quando eu era pequeno, sonhava transformar-me num

    desses legendrios prncipes e abrir o majestoso porto.

    A pequena Alba Helena acorda sobressaltada e comea a chorar; sua me a

    acode. Francisco Maldonado da Silva tenta aproximar-se delas, mas as mos dos

    oficiais, inflexveis

    como tenazes, prendem seus braos. A esposa, atnita, com a criana ao colo,

    avana at o grupo que representava o pesadelo, iluminado pelo lampio do

    tenente Juan

    Minaya.

    No se assuste consegue dizer Francisco.

    Cale-se ordena o tenente.

    Francisco tenta libertar-se. Os oficiais no permitem.

    No fugirei exclama com inesperada autoridade e os fita diretamente.

    35

    As correntes se contraem. Uma surpreendente dvida invade os guardas. Lembram-

    se, subitamente, que enfrentam um mdico honrado pelas autoridades e cujo sogro

    foi

    governador do Chile.

    Os dedos rudes, pouco a pouco, comeam a afrouxar. Francisco se desprende,

    recupera sua postura e caminha at sua amada Isabel Otanez e sua filhinha.

    Enxuga-lhes

    as lgrimas. Abraa-as e beija-as. Nunca mais tornar a v-las.

    8

  • Pouco antes da famlia mudar-se para Crdoba, Francisco testemunhou outra

    chocante revelao. Seu irmo Diego convidou-o a pescar. Primeiro procurariam o

    amigo Lucas

    Graneros, depois iriam juntos ao rio Tejar. O pai de Lucas tinha uma fbrica de

    carroas, que abastecia toda a provncia. Havia formado uma empresa colossal.

    Teve

    a perspiccia de canalizar o imenso patrimnio madeireiro de Ibatn para a

    produo em grande escala do melhor transporte imaginvel entre as encostas do

    Noroeste

    e o porto de Buenos Aires. Enriqueceu mais rapidamente que muitos descobridores

    de ouro. Possua cento e vinte escravos negros, alm de ndios e mestios que,

    com

    destreza, moviam o cinzel e a plaina.

    Graneros construiu sua casa no sul, no bairro dos artesos. Ali, assim que

    despontava a aurora, acendiam-se as forjas e comeava o bulcio das oficinas.

    Todo mundo

    conhecia o ourives Gaspar Prez, que cinzelava valiosas peas para altares e

    armrios. Tambm o sapateiro Andrs, que confeccionava botas rsticas, sandlias

    de

    frade e calados finos com fivelas de cobre. O seleiro Juan Quisna consertava

    arreios, polia arcas e costurava selas. O alfaiate Alonso Montero confeccionava

    gibes,

    jaquetas com abas, hbitos de dignitrios religiosos e trajes para funcionrios

    reais. O chapeleiro Melchor Fernandez modelava os grossos feltros que cobririam

    as

    cabeas de um capito, de um feudatrio ou de um corregedor. Quase todos eram

    homens com mescla de sangue indgena, mas ansiosos por mesclar-se raa dos

    conquistadores.

    Vestiam-se como os espanhis e empenhavam-se em falar somente o espanhol. O

    gosto pelos vencedores fazia crescer ao mesmo tempo o desgosto pelos vencidos.

    Seguramente

    no dormiam em paz.

    36

    Essa manh prometia ser muito quente. Francisco levava a funda, que o coxo Lus

    fizera para ele com uma bexiga de boi. Usava-a compulsivamente, atirando em

    qualquer

    alvo: uma fruta silvestre, a flor de um arbusto, um seixo distante. Chegou a se

    tornar infalvel com estas flechas cintilantes que so os lagartos. Enterrou com

    honras o primeiro em que acertou na cabea; inclusive armou uma cruz com dois

    galhinhos para identificar seu sepulcro. "Quem mata lagarto com uma funda no

    somente

    gil, como astuto", sentenciou seu pai.

    O bairro dos artesos exalava um odor cido, mescla de metais, couros, tintas e

    ls. Atrs das oficinas viram-se diante de um par de altas nogueiras, que

    marcavam

    o acesso fbrica de Graneros. Era um terreno enorme, to extenso que foi

    batizado de "pas". Junto ao muro se estendia um telhado, sob o qual se

    alinhavam as mesas

    de carpintaria, caixas com ferramentas e artigos de cobre e lato. Diversas

    carroas estavam terminadas e outras pareciam o esqueleto de um animal pr-

    histrico.

    Curiosamente, a montagem era feita sem nenhum prego. A estrutura desses veculos

    era to firme, que podiam carregar pelo menos duas toneladas. As rodas eram um

    prodgio

    com mais de dois metros de dimetro; somente duas sustentavam a pesada carga e

    estavam unidas por um nico eixo. O centro da roda era uma massa slida feita

    com

    o cerne de um grosso tronco.

    Don Graneros deu um pio a seu filho, como presente de aniversrio.

  • Desse tamanho mostrou com as mos: como uma pra. Foi feito em madeira

    leve, torneado artisticamente, e lhe colocaram uma ponta de metal. Depois,

    pintaram-no

    de cores vivas.

    Poderia levar esse pedao de madeira? perguntou Francisco.

    Claro respondeu Lucas, enquanto revisava sua sacola de iscas. Para que

    voc precisa?

    Para fazer um pio igual ao seu.

    Lucas riu. Tomou da madeira e dirigiu-se a um grupo de homens. A conversa foi

    to rpida que, quando os irmos se aproximaram, j pde dizer-lhes que no dia

    seguinte

    entregariam o pio.

    Com ponta de metal e bem pintado! Deu um salto triunfal.

    Por enquanto, empresto o meu ofereceu Lucas. Francisco o recebeu alvoroado.

    Lucas colocou no ombro a sacola cheia de iscas e se encaminharam at o rio.

    Deixaram para trs o bairro dos artesos com sua algaravia de forjas. Entraram

    na estrada real, parcialmente sombreada pelos carvalhos. Chegaram at a

    esplanada cheia de mercadores, escravos em

    37

    perptua atividade e tropas de mulas prontas para receber novas cargas. Da ampla

    estalagem, cujas paredes conservavam restos de pintura vermelha, saa um grupo

    de

    forasteiros;

    na taberna coberta por uma copa de alfarrobeira, entrava outro. Junto ao porto

    aberto da paliada, destacava-se o quadrado da pequena e luminosa capela dos

    vice-padroeiros.

    Cruzaram o limite. frente, fremia a selva profunda e aterradora.

    Seguiram at o rio, cujas guas ressoavam entre os paredes de vegetao, e

    subiram rocha viva, que tanto Diego como Lucas consideravam o melhor lugar

    para lanar

    as linhas.

    Enquanto ajustavam os anzis, Francisco ps-se a brincar com o belo pio de

    Lucas. A rocha viva tinha vrios lances horizontais, que serviam como degraus.

    Enrolou

    o fio em torno da madeira reluzente, prendeu a extremidade no indicador, e

    lanou-o para baixo e para a frente. A ponta metlica arrancou chispas da pedra.

    O objeto

    girou loucamente e suas cores se transformaram em tiras mal delineadas. O pio

    aproximou-se da borda do degrau e, sem parar de girar, desceu ao nvel seguinte.

    Depois,

    inclinou-se at os flancos, indeciso, e ergueu a ponta metlica como a pata de

    um animal ferido. Francisco levantou-o, tornou a enrolar o fio e se disps a

    faz-lo

    descer vrios degraus. Calculou a distncia, colocou o brao bem para trs,

    levantou a perna oposta, e o atirou em forma rasante. O golpe foi certeiro: o

    pio avanou

    rapidamente at a borda do degrau, saltou o seguinte, continuou rodando,

    progrediu at a nova borda, tornou a saltar, seguiu girando e Francisco comeou

    a gritar

    e estimullo com palmas.

    Trs degraus! Vamos, vamos. O quarto!

    Quarto! exclamou Lucas.

    O pio conseguiu passar o novo limite. Seu irmo tambm se entusiasmou. Largou

    os anzis e se aproximou com gestos de admirao. O pio dava mostras de

    cansao.

    Beliscou a borda, mas inclinou-se demasiado e caiu com a ponta metlica para

    cima.

    Que pena.

    Muito bem disse Lucas.

    Est despencando! gritou Diego.

  • Com efeito, rodava lentamente at o declive lateral que terminava no rio. Num

    timo o perderiam de vista. Diego saltou para peglo e escorregou sobre um tufo

    de

    ervas. Seu p se enredou e deslizou novamente, at ficar preso numa fenda.

    Desequilibrou-se, soltando uma maldio.

    Lucas e Francisco acorreram em sua ajuda, tarde demais. A greta era funda e

    tinha a borda afiada. No puderam alcanar a extremidade. Cuidadosamente fizeram

    girar

    seu corpo para acomod-lo forma

    38

    da fenda, at que seu p se soltou. Tiraram-no lentamente. Surgiu o tornozelo

    ensangentado; parecia que tinha algo dependurado. Apesar da dor, teve a lucidez

    de

    pedir a Lucas que lhe aplicasse uma atadura. Com tua camisa. Com qualquer

    coisa. Rpido! Depois o carregaram. Lucas pelos ombros e Francisco pelos

    joelhos. Pediram

    ajuda a um grupo de negros, que emprestaram sua jumenta. Montaram Diego, que se

    abraou ao pescoo do animal. Dirigiram-se a sua casa, seguidos pelo cortejo dos

    negros que deveriam recuperar a jumenta. Levaram-no diretamente para sua cama.

    Aldonza alarmou-se. Apesar de Diego dissimular a dor e insistir que no era

    grave,

    a camisa que envolvia seu tornozelo j exibia uma grande mancha vermelha. Lus

    trouxe uma bacia com gua morna, desatou a precria atadura e lavou a ferida.

    Ajustou

    o pedao de pele e enrolou rapidamente a rea afetada com uma atadura limpa.

    Colocou trs almofadas sob a perna, para que o tornozelo ficasse mais elevado

    que o

    corpo. Depois, saiu correndo procura do mdico.

    Lucas permaneceu junto a seu amigo at que chegasse don Diego. Francisco

    atribuiu o acidente ao pio. O mdico olhou o corpo deitado e formulou algumas

    perguntas

    enquanto apalpava a parte afetada. Pediu mais gua morna e que os presentes se

    afastassem, para no impedir a luz. O escravo levantou a perna de Diego e o

    mdico

    desenrolou a atadura quase at o fim. O rapaz comeou a queixar-se de dor,

    porque o tecido j havia grudado com o sangue. Lus derramou borrifos de gua,

    enquanto

    don Diego manobrava at liberar completamente o tornozelo. Escolheu uma pina e

    extraiu os imperceptveis corpos estranhos que teimavam em ficar grudados.

    Depois,

    aproximou as bordas e esticou a azulada poro de pele sobre a ferida. Diego

    cerrava os dentes. Seu pai cobriu a carne viva com

    ump leitoso, que combinava casca de salgueiro com limalha de zinco.

    Ficars bom em trs semanas. Agora necessitas de repouso. No preciso

    colocar talas. Tambm tomars uma colherinha deste remdio.

    Abriu sua arca e tirou um frasco de vidro.

    um remdio excelente, que os ndios do Peru usam. Mitiga a dor e baixa a

    febre.

    Dirigindo-se sua esposa, que o olhava angustiada, disse:

    Todas as vezes que o usei foi eficaz. Como se fosse mandrgora.

    Como se chama?

    Quinino. extrado de uma planta chamada quinina sentou-se novamente junto

    cama de seu filho. Tomou-lhe o pulso, enquanto observava firmemente o seu

    rosto.

    Depois, fez sinal para que

    39

    as pessoas deixassem o quarto. Desejaria desnudar Diego e fazer um exame

    completo?

  • Lucas despediu-se. Aldonza e Francisco acompanharam-no at a porta. Eles saram

    e Francisco recuou um pouco. Para que lhe faria um exame completo? No teria

    sentido,

    se somente feriu o tornozelo e j lhe havia medicado. No estaria querendo dar-

    lhe um conselho mdico ntimo que diga somente respeito aos homens? Boa

    oportunidade

    para saber. Francisco no era tambm um varo? O aposento encheu-se de

    silenciosa intimidade.

    Don Diego acariciou a testa de seu filho prostrado, que o fitava agradecido.

    Nunca me machuquei to forte. Di muito.

    Eu sei. Te feriste numa regio muito sensvel. O p de quinino vai te aliviar.

    Tambm indicarei compressas com ervas sedativas. Isso tudo o que te pode

    ajudar

    externamente e...

    O pai se interrompeu. Em seguida, insistiu com a ltima palavra:

    "externamente..."

    Francisco esgueirou-se pela penumbra do quarto e conseguiu esconder-se a pouca

    distncia do leito. Conhecia essa forma de introduzir um assunto embaraoso: seu

    pai

    suavizava a voz, acariciava o cabelo ou a borda de uma mesa; repetia certas

    palavras.

    Entendes, Diego?

    O jovem assentiu por condescendncia, mas no entendia. Francisco, tampouco.

    No, no me entendes suspirou o pai. Diego contraiu a boca.

    Quero dizer-te, filho, que nem toda a ajuda que necessitas provm do que te

    alheio, como o p cicatrizante ou o quinino ou outro remdio. Tambm podes obter

    alvio vindo de teu interior, de teu esprito.

    Era esse o tema ntimo de que iria tratar? Diego tornou a concordar.

    Creio que no me entendes inteiramente insistiu seu pai. Com a ponta de um

    leno enxugou-lhe a testa; o meio-dia era como um forno aceso.

    Havia outra coisa, ento? Francisco aproximou-se mais, esgueirando-se como um

    gato. Sua curiosidade no permitia perder uma s palavra.

    A cura importante, a definitiva, provm do esprito. Nessa deves apoiar-te.

    Diego atreveu-se a confessar sua desorientao:

    40

    Parece-me que compreendo disse , e me parece que h algo que no

    compreendo...

    Sim o pai sorriu. simples e no . Soa como simples, conhecido,

    evidente. Mas h outra ressonncia, profunda, que no se nota sem alguma

    preparao.

    Olhou a mesa e encheu um copo com gua de sara. Tomou um largo sorvo. Depois,

    secou os lbios e se reacomodou em sua cadeira rangente.

    Vou explicar. Ns, os mdicos usamos produtos curativos que a natureza

    oferece. E, se bem que a natureza seja obra de Deus, Deus no a consagrou como

    recurso absoluto,

    mas proveu ao homem mesmo, sua criatura bem-amada, de dispositivos que

    permitem estabelecer contato direto com Ele. Uma parte de sua grandeza infinita

    habita sempre

    em nosso corao. Se nos propomos a consegui-lo, reconheceremos sua presena em

    nossa mente, em nosso esprito. Nenhum mecanismo to eficaz como essa

    presena.

    Enxugou o suor do pescoo, nariz e testa com o leno de algodo.

    Te perguntars por que digo isso. E por que o digo com certa... estalou os

    dedos procura da palavra precisa solenidade. Bom... Porque um assunto

    concernente

    minha profisso de mdico, mas... no s um paciente igual aos outros.

    Sou teu filho.

    Claro. E isto implica algo especfico, quase secreto. Implica a Deus e a nossa

    especial relao com Ele.

  • Francisco precisava coar a nuca. A confuso e a impacincia lhe provocavam

    coceira. Seu pai no desfazia o n.

    Deveria comungar? conjecturou Diego, somente para tentar descobrir a ponta

    do enigma.

    Seu pai moveu os ombros para relaxar as costas. Estava tenso e queria mostrar-se

    relaxado.

    Comungar? No, no isso que quero transmitir-te. A hstia desliza de tua

    boca ao estmago, do estmago ao intestino, da ao sangue, ao resto do teu

    corpo. Mas

    no falo da hstia, nem da comunho, nem dos ritos, nem de algo que se incorpora

    de fora. Falo da presena ininterrupta de Deus em tua pessoa. Falo de Deus, do

    nico.

    Diego franziu as sobrancelhas. Francisco tambm. Que coisa nova ou secreta

    pretendia insinuar com isso?

    No me entendes? Falo de Deus, o que cura, consola, d luz, d vida.

    Cristo a luz e a vida recitou o rapaz. isso que me dizes, papai?

    Falo do nico, Diego. Pensa. Olha para dentro. Conecta-te com o que te habita

    desde antes do nascimento. O nico... Compreendes agora?

    No sei.

    Deus, o nico, o Todo-Poderoso, o Onisciente, o Criador, o nico, o nico

    repetiu com nfase.

    O rosto de Diego se enrubescia. Estava estendido na cama e seu pai sentado.

    Ambos muito tensos. A figura do pai lhe parecia gigantesca, no apenas pelo

    desnvel,

    mas sim porque o forava a um raciocnio penoso. Don Diego alisou seu bigode,

    para deixar mais livres os lbios e adotou uma postura de quem vai declamar. Com

    voz

    lenta e arquejada, pronunciou umas palavras sonoras:

    Shem Israel, Adonai Elohenu, Adonai Ehad.

    Um tremor percorreu Francisco. Somente reconheceu a palavra Israel. Seria uma

    frmula mgica? Teria relao com bruxaria? Don Diego traduziu com devoo:

    "Ouve Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor nico."

    Que significa?

    O significado est escrito em teu corao.

    O mistrio estava por ser esclarecido. A nvoa densa e violeta que ocultava o

    sol ia rebentar. Algumas de suas gotas j surgiam na testa de Diego.

    Durante muitos sculos esta breve frase sustentou a coragem de nossos

    antepassados, filho. Sintetiza histria, moral e esperana. Foi repetida sob

    perseguies

    e durante os assassinatos. Ressoou entre as chamas. Ela nos une a Deus como uma

    inquebrantvel corrente de ouro.

    Nunca a ouvi.

    Ouviste; naturalmente que a ouviste.

    Na igreja?

    Em teu interior, em teu esprito estendeu ambos os indicadores para marcar o

    ritmo. Ouve, Diego. "Ouve Israel"... Ouve, filho meu: "Ouve Israel" agora

    sussurrava.

    Ouve, filho de Israel. Ouve.

    Diego ergueu-se sobressaltado.

    O pai apoiou as mos sobre seu peito, suavemente, e o obrigou a deitar-se.

    Logo entenders.

    Suspirou. Sua voz era mais ntima.

    Estou te revelando um grande segredo, meu filho. Nossos antepassados viveram e

    morreram como judeus. Pertencemos linhagem de Israel. Somos os frutos de um

    tronco

    muito antigo.

    42

    Somos judeus? um trejeito deformou-lhe o rosto.

    Assim .

    Eu no quero ser... no quero ser isso.

    Pode a laranja no ser laranja? Pode o leo no ser leo?

  • Mas ns somos cristos. Alm disso disse com voz trmula , os judeus so

    prfidos.

    Por acaso ns somos prfidos?

    Os judeus mataram o Nosso Senhor Jesus Cristo.

    Eu o matei?

    No surgiu-lhe um sorriso forado. Claro que no. Mas os judeus...

    Eu sou judeu.

    Os judeus o mataram, o crucificaram.

    Voc o matou? Voc judeu.

    Deus e a Santssima Virgem, protejei-me! No, claro que no! persignou-se

    horrorizado.

    Se no foi voc, nem eu, evidente que "os judeus", que "todos os judeus",

    no somos culpados. Alm disso, Jesus era to judeu quanto ns. Digo mais,

    Diego: talvez

    mais judeu do que ns, porque se educou, cresceu e pregou em cidades

    manifestamente judias. Muitos daqueles que o adoram na verdade tm horror ao seu

    sangue, tm

    horror ao sangue judeu de Jesus. Tm merda na cabea: odeiam o que amam. No

    conseguem ver quo perto de Jesus est cada judeu, apenas pelo fato de pertencer

    sua

    mesma linhagem e sua mesma histria castigada por sofrimentos.

    Ento, papai, ns... quero dizer, os judeus, no o matamos?

    Eu no participei nem de sua priso, nem de seu julgamento, nem de sua

    crucificao. Voc participou? Ou meu pai? Ou meu av?

    Meneou a cabea:

    Te ds conta que levantaram uma calnia atroz? Nem mesmo o Evangelho o afirma.

    O Evangelho diz que "alguns" judeus pediram o justiamento, mas no "todos":

    porque

    seno, meu filho, seria preciso incluir os apstolos, sua me, Maria Madalena,

    Jos de Arimatia, a primeira comunidade de cristos. Tambm eles so criminosos

    irredimveis?

    Que absurdo, no verdade? Jesus, o judeu Jesus, foi preso pelo poder de Roma,

    que subjugava a Judia. Foram os romanos que o torturaram em seus calabouos,

    nos

    mesmos calabouos onde torturaram centenas de outros judeus como ele e como ns.

    Os romanos inventaram a coroa de espinhos para caoar do judeu que pretendia ser

    rei e libertar seus irmos. A morte por crucificao tambm foi inventada por

    eles e na cruz no morreu somente Jesus e um par de ladres,

    43

    mas milhares de judeus, antes do nascimento de Jesus e at muito depois de sua

    morte. Um romano lhe cravou sua lana no lado direito do corpo e soldados

    romanos

    tiraram a sorte para repartir suas vestes. Em compensao, foram os judeus que o

    baixaram piedosamente da cruz e lhe deram sepultura decente. Foram judeus que

    recordaram

    e difundiram seus ensinamentos. Contudo, Diego, contudo fez uma longa pausa ,

    no se repete que os "romanos", "os romanos e no os judeus", escarneceram e

    mataram

    Nosso Senhor Jesus Cristo. Os romanos no so perseguidos. Nem se exige pureza

    do sangue romano.

    Por que essa sanha contra os judeus, ento?

    Porque nossa resistncia em deixar-nos submeter provoca desespero neles.

    Os judeus no aceitam Nosso Senhor.

    O cerne do conflito no religioso. Eles no querem nossa converso. No.

    Isso seria fcil. J converteram comunidades judias inteiras. Na verdade, Diego,

    lutam

    por nosso desaparecimento. Querem-no por bem ou por mal. Teu bisav foi

    arrastado pelos cabelos at a pia batismal e depois o atormentavam porque

    trocava de camisa

  • aos sbados. Teve de abandonar a Espanha fora. Mas no se resignou. Levou

    consigo a chave de sua antiga residncia e gravou nela uma pequenina chama de

    trs pontas.

    O que significa?

    uma letra do alfabeto hebraico: o shin.

    Por que essa letra?

    Porque o comeo de muitas palavras: shem, "ouve", shalom, "paz". Mas,

    sobretudo, a primeira letra de shem, que significa "nome". E, acima de todos

    os nomes,

    existe o Shem, o "Nome". Quer dizer, o inefvel nome de Deus. O Shem tem

    infinito poder. Sobre isto, os cabalistas realizaram inmeros estudos.

    Quem?

    Os cabalistas. J vou explicar, Diego. O essencial, por ora, que tenhas

    conscincia da deciso profunda que muitos judeus tomaram. A deciso de

    continuar existindo,

    nem que seja mediante a conservao de uns poucos ritos e tradies.

    Diego, confuso, fitava-o. No podia absorver o aluvio de dados e argumentos;

    somente podia assombrar-se; Francisco tampouco entendia. Ambos estavam

    perplexos. Diego

    na cama e Francisco em seu esconderijo. As palavras de seu pai eram um

    terremoto.

    Mas somos catlicos Diego resistia em aceitar. Somos batizados. Eu fiz o

    sacramento da confirmao. Vamos igreja, confessamos. Somos catlicos, no?

    44

    Sim, mas fora. O prprio Santo Agostinho disse algo assim: "Se somos

    arrastados a Cristo, iremos sem desejar crer, e somente se cr quando se chega a

    Cristo

    pelo caminho da liberdade, no da violncia." A ns foi aplicada e continuam a

    aplicar a violncia. O efeito trgico: somos catlicos na aparncia para

    sobreviver

    na carne, e somos judeus por dentro, para sobreviver no esprito.

    terrvel, pai.

    . E foi terrvel para o teu bisav e para o teu av. E para mim. Que

    pretendemos? Simplesmente, que nos permitam ser o que somos.

    Que deveria fazer para... converter-me em judeu? Seu pai riu suavemente:

    No precisas fazer nada. J s judeu. No ouves por a que nos qualificam de

    "cristos-novos"? Vou contar-te nossa histria, meu filho. uma histria

    admirvel,

    rica, dolorosa. Explicarei a chamada lei de Moiss*, a que Deus entregou ao

    nosso velho povo no monte Sinai. Explicarei muitas tradies formosas, que

    conferem a

    esssa vida uma enorme dignidade.

    Apoiou as mos sobre os joelhos, para levantar-se.

    Agora, descansa. E no reveles a ningum o nosso segredo. A ningum.

    Olhou a atadura, apalpou-a suavemente e arrumou as almofadas que elevavam a

    perna.

    Francisco permaneceu no cho, acocorado, at que anunciaram o almoo.

    A academia das laranjeiras funcionava de tarde, quando amainava o calor da

    sesta. Frei Isidro chegava pontualmente e ocupava seu lugar na ampla mesa

    instalada no

    ptio. Seus grandes olhos flutuavam e ele afastava uma rala mecha de cabelos

    grisalhos. Arrumava o material e dava um longo suspiro. Aguardava pacientemente

    que

    os alunos tomassem seus lugares.

    *Chamava-se "lei de Moiss" ao judasmo, em contraste com a "lei de Jesus

    Cristo".

    45

    O mestre pretendia ser bravo, como convinha ao ensino seus olhos ajudavam-no

    , mas no conseguia esconder sua inata ternura. Fingia aborrecer-se quando

    algum

  • se distraa. s vezes, desbaratavam o plano de aula. Fingia ignorar, fazia-lhes

    perguntas simples ou mesclava-as com anedotas para despertar o interesse dos

    alunos.

    Quando lhe esgotavam a pacincia tinham de ser perseverantes para consegui-lo

    , e no lhe restava outro recurso a no ser bater ou retirarse, comeava a

    imitar

    a