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Marcos Damaceno * * * Água Revolta Para Luís Melo

Marcos Damaceno

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Primeiras Obras

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Marcos Damaceno* * *

Água RevoltaPara Luís Melo

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Coleção Primeiras Obras, 8Ivam Cabral (organizador)

Apoio Cultural

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Marcos Damaceno* * *

Água RevoltaPara Luís Melo

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PrefácioA Fala como Ação

roberto alvim7

Água Revolta13

Para Luís Melo39

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As duas peças que compõem este volume, Água Revolta e Para Luís Melo, poderiam, à primeira vista, ter sido escritas por autores diferentes. O que nos leva a isso é o fato de as obras constru-írem poéticas (isto é, jogos de linguagem) dis-tintas em suas estratégias dramatúrgicas. Mas, à parte suas diferenças formais, algo as une: o fato de que, em ambas, a ação dramática é a fala humana. O único acontecimento cênico nestes textos é o ato de falar – o que não é pou-co, ao contrário. O pensamento – ou melhor, o próprio ato de pensar através da (e pela) fala – é o protagonista aqui. Pensemos em Wittgens-tein e Lacan: a linguagem é pensamento, e o pensamento é o modo como configuramos o mundo. Quando um autor foca seu interesse

A Fala como Ação

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na linguagem, o que faz é atacar – em sua base – o modo como percebemos/construí-mos o mundo. Ao expôr o momento em que o pensar se configura na fala, desconstruindo ou reconstruindo a linguagem de maneira inusual, é a própria maneira como nos relacionamos com o mundo que é afetada. O teatro não trata mais de reproduzir de modo mais ou menos deformado o real, mas se torna uma meditação sobre o real. Sobre o modo como percebemos – e construímos, pela linguagem – o real. A cena de Damaceno só existe na medida em que suas palavras são enunciadas.

Damaceno escreve a partir da cena (e dirige seus espetáculos a partir da palavra): a constru-ção de suas frases obedece a um norte claríssi-mo – são palavras que existem para ser ditas e, não, lidas. Toda a construção sintática segue esse pressuposto, e seus textos só alcançam funcionalidade plena na medida em que são proferidos. Eis a prova de sua vocação eminen-temente cênica: sua lógica é a dos ouvidos, e só se resolve no espaço frutífero que se abre entre a boca dos atores e a percepção da plateia.

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Em Água Revolta, a ideia (esteio do dra-ma tradicional) de personagens e narrativa é negada em prol da construção de um espaço mental, habitado por vozes que talvez sugiram uma consciência multifacetada. Nesse lugar, a barreira que separa mundo exterior de mundo interior desaba por completo. O próprio arca-bouço estrutural do drama clássico, isto é, a trama, é substituído pela ideia de musicalidade (ritmos ditados pelo tamanho e formato das frases, emprego minucioso da sonoridade das palavras, e silêncios – longos silêncios...). É uma obra que não procura reproduzir a ideia hegemônica que nós temos acerca da condição humana, mas que procura, sim, construir outra realidade que se contrapõe ao mundo (porque dotada de igual densidade).

Em Para Luís Melo, há a construção de uma subjetividade complexa, mas una, que paradoxalmente se torna polifônica devido à gama de personagens introduzidas na narrati-va – o sujeito emissor (a protagonista da peça) emite sua própria voz, mas também (e eis aqui um desafio para a intérprete) se torna porta-

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voz de outras subjetividades. Tudo na obra, no entanto, corrobora a construção de uma única narrativa, ao contrário do procedimento empregado em Água Revolta, onde a negação da narrativa é absoluta. Mas é preciso insistir: em ambas as peças, o que presenciamos em última instância é o processo de nascimento do pensamento pela fala.

(Adendo inevitável: o que soa como digres-são na obra de Damaceno tem, sob um olhar em prospecção, o estatuto de devaneio – que, em par com o disparate, constitui a forma mais alta – porque liberta e descolada de amarras – de pensamento.)

Tematicamente, Para Luís Melo é um libelo carregado de ira (santa) contra os “artistas”. “Artistas” assim, entre aspas, posto que a criação de obras de arte está longe de ser o foco de suas vidas; antes, o grand monde da “arte”, com suas idiossincrasias características (e enojantes), é o que impulsiona as personagens periféricas da peça a fazerem parte do métier. Poderia ser dito que a obra é rancorosa, mas não: há lucidez demais para o rancor. Trata-se aqui de

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ódio, dom raro em nosso mundo pululado de lobbies, pactos de mediocridade, afetos mes-quinhos e aceitação incondicional da mentira como norma.

Mas se pode ler o texto de outro modo (e uma obra só se estabelece como arte na me-dida em que é passível de inúmeras leituras, porque portadora de vastas camadas): pode-se lê-lo como um ato desesperado de amor. O repúdio feroz da personagem central ao mun-do hipócrita dos falsos artistas aponta para um desejo – sincero, dilacerado – de que a arte seja, enfim, significativa, transformadora, po-tente, constitutiva. Este é seu gesto de amor (da personagem e, por extensão, de seu criador): uma súplica (camuflada de soco no estômago) dirigida a todos nós, para que despertemos de nosso sono de entorpecimento e para que rea-lizemos tudo aquilo que podemos, e devemos, enfim, realizar.

Roberto Alvim

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Água Revolta

“Jogar com as palavras é examinar como a mente funciona, espelhar uma partitura do mundo

como a mente o percebe.” (Paul Auster)

Personagens

ABCDE (que deve permanecer sem falar e sem se mover

durante toda a peça)

Nota do autor: Pode haver mais de 1 ator para cada personagem/voz, com exceção do monólo-go final, que deve permanecer sendo executado por 1 ator apenas.

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* * *

(Foco em E. silêncio. longo inspirar e expirar de ar. silêncio. foco nos demais atores. silêncio)

(Um longo silêncio)

A – Eu queria ser (silêncio) só (silêncio) ser (silêncio) eu queria ser só e me bastasse mas é preciso sentir, amar, doer, gozar

C (irônico) – Sentir é preciso?

A – É! é preciso é preciso o sentir

B – É preciso um sentido!

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D (irônico) – Um sentido já é sempre preciso

C – Sempre?

B – Não tanto quanto um sexto sentido

D (zombeteiro) – É! um sexto sentido é sempre preciso

tão preciso quanto convivências!

C – Homens, mulheres

B – Palavras

D – Mãos, olhos, boca, coração, peito, bunda, sexo

C – Deus

(Longo riso de escárnio de todos, menos de E. Longo silêncio)

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A – Não me toque

C – Eu não gosto de você por que você fica se as minhas palavras se as minhas mãos não te alcançam ainda assim te carregamos feito cruz como outras cruzes que carregamos enterradas com jeitos, cheiros por que você fica, e fica, e fica, e fica, e fica,

e fica, e fica água que não passa me atormenta por onde quer que eu vá eu a vejo por onde quer que eu vá eu a vejo uma imagem uma presença uma pedra

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uma flor uma rocha um fantasma que não me larga, que não me larga, que

não me larga, que não me larga, que não me larga, não

me larga

A – Me olhe

C – Me atormenta água que não passa chuva que não passa

A – Me escute

C – Não me larga

D – Eu não preciso de você nunca precisei acho que ninguém precisa estou farta

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dos outros não suporto os outros não suporto a mim mesma

(Breve silêncio)

A – Eu queria sair e nunca mais voltar

C – Existem muitas paredes aqui dentro

A – Dormir e nunca mais acordar

D – Existem muitas pessoas aqui dentro

C – Tão próximos e tão distantes e tudo tão vago sem sentido

D – Continuar se tornou sem sentido

A – É tudo tão difícil

B – Se ao menos chovesse menos

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A – Eu não consigo

D – É só uma chuva

C – Uma chuva que não passa

A – Dilúvio

D – Desgosto

C – Abandono

A – Água forte

C – Que bate e volta, bate e volta, bate bate e volta

B – Se eu soubesse eu nem nascia morava por toda a vida no útero da minha mãe foi um erro

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A – Desculpe

B – Retiro tudo o que disseram desdigo corrijo recrio engano não mais me sacrifico

D – Não vale a pena

C – Nada mais vale a pena

(Longo silêncio)

C – Por que é que continuamos?

(Longo silêncio)

A – Sempre quando ando, ando, ando, ando, ando

sozinha à noite sinto menos medo

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do que sozinha no meu quarto fechado onde nunca há silêncio há palavras que não dizem nada e ficam, e ficam, e ficam, e ficam

C – Gotejando

D – Trovejando

C – Me abrindo

B – Me perfurando

A – Me escavando

(Uma canção a capela. Antes e durante o pró-ximo texto)

A – Eu saio mais descaminho do que caminho e vejo olhos que se encontram

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mas passam não param e eu não paro gostaria de tê-los mas não param acordo chorando (rindo) queria que fosse tudo um sonho

C – Mas você não é, você não é, você não é, você não é

(breve silêncio) você é uma pedra uma presença um fantasma

D – Uma pessoa

B – Fugindo

C – Se perdendo

A – Se procurando

D – Se trancando

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C – Se vasculhando

D – Se percorrendo

A – Não se encontrando

D – Só vejo a minha imagem (breve silêncio) refletida nestas águas escuras

C – Turvas

D – Poças que alagam

C – Inundam

D – E me afogam nesta porra de sentimento de morte

(Silêncio)

B – Esqueçam tudo o que eu disse não importa

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me deixem ser e morrercom isto que há plantado em meu peito

C – Uma pedra

A – Uma flor

D – Uma rocha

B – Que bate pouco e que às vezes quase desiste

B – Queria pertencer à vida real

C – Dos sonhos

A – Devaneios

D – Dos homens, mulheres

C – Amar, sentir, doer, gozar

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(Silêncio. Mesma canção, antes e no início do próximo texto)

C – Quantas vidas será preciso para que você deixe de me corroer e me consumir a alma? depois de tanto seu vestígio nela ainda é visto o que a faz sonhar chorar se exaltar diante do resquício mordo os lábios que ainda conseguem imaginar sentir o gosto dos seus

(Longo riso de zombaria e deboche de todos, menos de E)

D – Não acredite em tudo o que você sente

(Rápido)

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D – Esqueça

A – Me largue

B – Me sinta

C – Não enche

A – Me beije

B – Me toque

D – Me foda

C – Não enche

A – Me olhe

D – Me goze

B – Me sinta

C – Não enche

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p r i m e i r a s o b r a s

A – Me sinta

C – Não enche

B – Me sinta

A – Abrace

C – Não enche não enche não enche não enche (breve silêncio)

D – Me coma

C – Não enche

(Risos de zombaria seguidos de breve silêncio)

B – Eu tenho medo

A – Estou cansada

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D – Eu queria dormir e nunca mais acordar

A – Estou cansada

D – Eu queria sair ver, olhar

A – Estou cansada

D – Beijar, foder, trepar

A – Estou cansada

C – Se ao menos chovesse menos

B – Amado menos

A – Estou cansada (breve silêncio) não agora nem hoje sempre estou cansada já acordo cansada

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não sei... desculpe

C – Tocar, tocar, tocar

B – Não fique assim

A – Eu queria ter alguém

C – Todo mundo quer ter alguém todo mundo precisa ter alguém até deus (risos)

D – Eu não eu não preciso eu não preciso de você eu não preciso de ninguém não preciso de fantasmas com jeitos, cheiros boca, pele, calor, seios eu não preciso de você

C – Então, por que é que você não vai embora? (silêncio)

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A – Não sei... talvez seja... porque... eu... é... não sei eu estou cansada de todas as manhãs ter que ir dormir chorando me abrace me abrace me abrace me abrace me abrace me abrace me abrace me abrace me abrace alguém me abrace por favor

D – Não não me to que

A – Eu não gosto de você desapareça

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p r i m e i r a s o b r a s

desapareça desapareça

D – Eu não gosto de pessoas

A – Desapareça

D – Eu desaprendi a gostar de pessoas

A – Desapareça

D – Não é culpa sua

A – Desapareça

D – Não é minha culpa

A – Desapareça

D – A vida a porra deste mundo me fez assim

A – Desapareça

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D – Não entendo como a vida a porra deste mundo funciona

A – Desapareça

D – Onde é que eu entro nesta história o que é que eu estou fazendo aqui

A – Desapareça

C – Neste nada que nunca acaba

(Longo silêncio)

B – A violência na maçaneta no abrir a porta. seguido dos passos pesados no assoalho. cada vez mais pertos, cada vez mais pertos, ainda hoje eu os ouço.

Não era minha culpa se eu não conseguia parar de chorar a noite toda.

Um estrondo arrebentava.Eu ficava minutos sem respirar. (silêncio)Muito do que eu sinto e sou hoje, se deve, tal-

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vez, a essas noites eternas, e aos dias inteiros que eu passava jogando pedras no céu. que não o alcançavam.

Sempre que essas coisas ruins aconteciam – dias chuvosos, emparedamento – a culpa não era minha, a culpa não era minha, a culpa era de outro alguém que deixava e compactuava com o meu sofrimento apa-rentemente sem razão de ser.

Por que algumas crianças choram, não brin-cam, se isolam, não falam, têm olhos arre-galados e pensamentos dispersos e se tornam gente adulta deslocada e sem sentido?

Quando a coragem me vinha eu corria e me metia entre pernas e braços da minha mãe, da minha mãe. único lugar onde eu me sentia protegido, confortado, onde havia um calor, um calor que eu nunca mais tive.

Mas ainda tinha medo. a noite era muito baru-lhenta para eu dormir tranquilo.

A – Mãe

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B – Mãe, por que é que todas essas coisas estão acontecendo? por que é que a noite é tão barulhenta? por que é que chove tanto?

(Longo riso de deboche de todos, menos de E. silêncio. Mesma canção, mesmo trecho, antes e no início do próximo texto)

D (debochado) – Compreender entender se relacionar

A – Sumir findar acabar desistir

B – Por que eu não podia parar o tempo

C – Desistir acabar

D – Findar

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D – Desabar

A – Desandar

C – Desmoronar

D – Desamar

A – Parar voltar

C – Revolver

D – Ir

B – Talvez outro dia

D – Estiar

C – Estiar

A – Estiar

B – Novamente tentar

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A – Submeter

D – Interromper

C – Suspender

B – Quem sabe até

A – Largar

C – Adernar afundar

D – Imergir

B – Conseguir

A – Murchar

C – Apagar

A – Voejar

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D – Esvaecer esvanecer

C – Se extinguir

(Longo silêncio. Sai luz de todos, menos de E. Silêncio. Longo inspirar e expirar de ar. Silên-cio. Sai luz de E. Blackout)

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Para Luís Melo

Uma idiota.É o que deve ser que sou para estar há quatro

horas sentada na bergère da antessala da casa do casal Auersberger, esperando, para o jantar, o famoso ator do Teatro Nacional e de telenovelas que nunca chega.

– É só um jantarzinho artístico – foi o que disse a Auersberger quando os reencontrei na rua esta manhã. Há 20 anos não os via, o casal Auersberger, os artistas anfitriões da cidade de Viena, como todo mundo os chama. Desde meu, como dizem, rompimento, há 20 anos, não os via, os Auersberger e toda essa gente, artistas e pseudoartistas, que agora esperam na sala de música a chegada do famoso e maior de todos ator do Teatro Nacional e que faz até tele-

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novelas e que disse que viria a este enfadonho jantar artístico assim que acabasse a apresenta-ção de seu O Pato Selvagem.

Claro que eu não devia ter vindo.Só vou por causa da Joana, é o que eu me

dizia enquanto eu vinha caminhando indecisa pelas calçadas de Viena. Só vou por causa da Joana, eu me dizia, me aproximando da casa do casal Auersberger e mesmo enquanto ainda tocava a campainha da casa do casal Auersber-ger. Só vou por causa da Joana.

– Soube da Joana?– me perguntou o Auers-berger quando os reencontrei na rua esta ma-nhã.

– Não – eu respondi. – Matou-se. A Joana se enforcou – disse o

Auersberger.Na hora representei total surpresa e simulta-

neamente choque, embora já soubesse de tudo, desde as 7, que Joana se enforcara. Mal pus os pés na rua esta manhã e soube por uma amiga de infância de Joana que Joana havia morrido. Era só o que todas as pessoas de Viena comen-tavam. A Joana se enforcara.

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A amiga de infância de Joana, vinda da mes-ma cidadezinha do interior que Joana, não quis me dizer de cara que Joana se enforcara. Primei-ro somente me disse que Joana havia morrido, ao que, mesmo sem saber, eu respondi:

– A Joana não morreu. A Joana se matou, não é mesmo?

Pessoas do interior têm mais dificuldade do que as da cidade pra dizer com clareza que uma pessoa se matou. E têm mais dificuldade ainda pra dizer como é que uma pessoa se matou.

– A Joana se enforcou, não é?Diante de minha sinceridade direta a amiga

do interior da Joana ficou totalmente desnorte-ada e só respondeu: – É – e saiu caminhando, chorando copiosamente pelas calçadas de Vie-na, ao que, eu, parada, a observando sumir na paisagem, fiquei pensando: Pessoas como Joana não morrem, pessoas como Joana, e cada vez com mais frequência, se matam, mais especifi-camente se enforcam. Não se jogam num rio, nem saltam de um décimo andar, nem cortam os pulsos ou tomam dezenas de comprimidos tarja preta. Pessoas como Joana e mesmo como

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esta sua amiga e tantas outras vindas do interior para esta hostil e destrutiva cidade grande, dian-te do fracasso de seus projetos de vida, pegam uma corda, amarram no pescoço habilmente e se deixam cair. Serenamente. Abandonadas, humilhadas, abatidas, mortalmente feridas.

Mas na frente dos Auersberger, que eu não via há mais de 20 anos, fingi que não sabia de nada. Nada de nada. Nem sei por que diabos é que fiz isso. Teria sido muito melhor privá-los de serem eles os portadores da desgraça, dizen-do logo de cara que eu já sabia que a Joana se matara, e que eu sabia até como é que Joana se matara, as circunstâncias exatas e tudo.

– Naturalmente irá ao enterro da Joana em sua cidade natal? – me perguntou hoje de manhã a vaca da Auersberger, como se já me acusando antecipadamente de provavelmente eu não ir ao enterro da Joana. A Auersberger sabe muito bem que há tempos criei aversão a qualquer tipo de aglomeração de pessoas e por isso mesmo me perguntou: – Naturalmente irá ao enterro da Joana? – porque sabia muito bem, a vaca da Auersberger, que eu não iria à porra

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do enterro da Joana em porra de cidadezinha do interior algum. Embora eu fosse uma das melhores amigas da Joana, de verdade, não como a maioria das pessoas deste jantar artísti-co que se dizem agora, que Joana está morta, que eram amigos íntimos da Joana e que eram até admiradores do trabalho da Joana. Me dá pipoquinhas pelo corpo só de pensar numa aglomeração de pessoas, se vangloriando, fofo-cando e maldizendo a vida uns dos outros. É só o que faz, qualquer tipo de pessoa, claro, mas não tanto quanto pessoas que se dizem artistas. Por isso passei o dia todo pensando se valeria a pena vir ou não a este jantar artístico e me expor desse jeito. Na verdade não precisava ter vindo, porque embora tenha aceitado o convite dos Auersberger, quando os reencontrei na rua esta manhã, e tenha mesmo me comprometido com os Auersberger de que eu viria à casa deles, depois do enterro, para este enfadonho jantar artístico, ofertado ao famoso ator do Teatro Nacional, que faz até telenovela e que nun-ca chega, eu não precisava ter vindo, já que nunca fui mesmo uma grande cumpridora de

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palavras, como todos me acusam. Não preci-sava ter vindo porque todos, e principalmente os Auersberger, já estão carecas de saber que hoje sou uma pessoa contra aglomerações de pessoas. E uma pessoa principalmente contra aglomerações de pessoas que se dizem artistas. E uma pessoa mais contra ainda a aglomerações de pessoas que se dizem artistas na casa do casal Auersberger, os artistas anfitriões da cidade de Viena, com quem, justo porque andaram falan-do umas coisas de mim, das quais eu não gostei, deixei de falar há mais de 20 anos.

Só vim por causa da Joana, penso, sentada na bergère da antessala da casa do casal Auers-berger. Porque embora este jantar artístico tenha sido marcado para se paparicar o nojento ator do Teatro Nacional e telenovelas e comemorar o seu sucesso em O Pato Selvagem, depois da morte da Joana o jantar artístico, na verdade, tornou-se como que uma homenagem póstuma à Joana, um réquiem para Joana, como ouço dizerem as pessoas que estão na sala de músi-ca. Todos da sala de música só falam agora em Joana, Joana, Joana, Joana, Joana isto, Joana

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aquilo... Enquanto a mala da Auersberger ainda só fala do grande, magnífico, maior de todos e genial ator do Teatro Nacional e telenovelas que nunca chega.

– Eu odeio os atores – grita já bêbado o Auersberger.

– Eu odeio o teatro – grita a escritora Jean-nie.

– Eu também – penso em gritar eu.– O que eu mais odeio no teatro é que ele é

sempre muito teatral – continua o Auersberger.– Uma verdadeira chatice, não é, Auers-

berger?– O Teatro Nacional, Jeannie, é um chiquei-

ro. E esse ator aí não passa de um megalômano repetidor de deixas, de interpretação afetada – grita mais alto ainda o Auersberger enquanto riem e xingam todos o tão afamado e aguarda-do ator do Teatro Nacional e telenovelas que nunca chega.

A Joana não era a grande amiga de todos, como todos agora se dizem. Era só uma artista de certo prestígio e reputação e alguma inteli-gência que causava certo interesse. Convinha a

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todos de certa maneira e convinha mais ainda se dizer amigo íntimo da Joana, como todos agora aqui se dizem. Eu é que realmente co-nheci a Joana. Passei horas da minha vida ao seu lado, conversando sobre a arte da dança e sobre o seu sonhado estúdio de movimen-to, como ela o chamava. Desde criança Joana sempre quis ser uma famosa atriz ou bailarina. E nunca se decidiu sobre isso. Estava sempre ali, no meio do caminho entre ser uma atriz ou bailarina. Então um dia decidiu se tornar uma coreógrafa. E se tornou uma coreógrafa de até certo prestígio. Encenou boas peças em vários palcos nacionais e até internacionais. E ela sempre teve casa cheia, destaque na mídia e até boas críticas e tudo. Até o dia em que foi convidada pelo Teatro Nacional para dar um intenso workshop, para os atores do Teatro Nacional, sobre o caminhar. Uma dessas ofi-cinas em que você tem que ficar caminhando feito tonto de um lado para o outro, em linhas retas, linhas curvas, linhas tortas, linhas baixas, linhas altas, rápido, lento, durante 4, 5, 6 horas seguidas. Um absurdo! Mas mais absurdo ainda

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era a Joana querer dar esse curso de caminhar para os atores do Teatro Nacional, que, como esse ator que todos aguardam e nunca chega, nunca souberam caminhar direito nem querem saber de aprender a caminhar direito. Seu curso foi um completo fracasso, claro. Uma pena! Ficou totalmente arrasada, a coitada. Já não tinha certeza se ela era de fato uma tão boa coreógrafa assim, ou diretora de movimento, ou performer, como por último ela se denominava. Nem mais sabia se realmente queria ela seguir a tão sonhada carreira artística. Ficou mesmo deprimida e totalmente abatida. Caiu numa profunda, como ela dizia, crise artística. Mas foi aí, no buraco, que ela tomou a decisão mais acertada de sua vida. Casou-se com o tapeceiro. Um verdadeiro artista de tapeçaria. Mais de dez anos ela e o tapeceiro viveram juntos, numa ve-lha, mas grande casa de madeira, que também lhes servia de ateliê. Ele era pintor, de família judia, para quem a arte de tecer se tornou a salvação, como ele próprio dizia. E Joana lhe apareceu no momento mais propício, porque foi a originalidade e beleza e simpatia da pes-

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soa de Joana que transformaram o caindo aos pedaços ateliê, que mais parecia um depósito de bananas, num movimentado e charmoso centro artístico de Viena. Passaram a frequentar o ateliê todos os ditos mais renomados, respeita-dos e conceituados artistas e pseudoartistas de Viena, e jornalistas, professores universitários, esportistas, pessoas da night, pessoas famosas, de telenovela e tudo. Atrás das pessoas de te-lenovela vinha a dita alta classe vienense, que tem, como mais alto sonho de consumo, se tornar amigo íntimo de alguém de telenovela. É com o que sonham as pessoas da dita alta classe vienense, procurando descaradamente os famosos, os flashes, o glamour e tudo. Mas, por fim, todos sempre acabavam comprando um ou outro tapete do tapeceiro da Joana. Ele tecia e ela vendia, com um charme e poder de cativar as pessoas que tornaram o ateliê e os tapetes de seu tapeceiro famosos no mundo todo. Um su-cesso! E se tornaram um casal muito feliz com isso. Joana e seu tapeceiro. O ateliê resplendia na cidade de Viena. Logo, o tapeceiro, no auge de sua fama, que ele sem dúvida devia total-

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mente a Joana, foi comprar cigarros e nunca mais voltou. Fugiu, com, como se diz, uma das melhores amigas da Joana.

– Fugiu. Fugiu para o Rio de Janeiro, o para-íso dos fugitivos. Lá é muito bom, tem sol, praia e festa o ano todo – foi o que eu ouvi a Jeannie comentar no enterro da Joana. É. Eu fui ao en-terro da Joana e me arrependi profundamente. Um enterro realmente triste. Não propriamente pelo fato de a Joana, grande amiga de todos, ter se suicidado e estar, naquele momento, sendo enterrada, mas pelo fato de que, atrás do caixão, via-se somente cadáveres de artistas caminhando. Um séquito inteiro de fracassados e frustrados caminhando. Na maioria antigos colegas pelos quais eu há 20, 25 anos, até man-tive certo apreço, pois eram, todos eles, jovens promissores, com grande entusiasmo pela arte e pela vida, via-se que não passam agora de seres de meia-idade deprimentes. Sombras do que fo-ram, ou pior, do que poderiam ter sido um dia. Mesmo os que aparentam ter conquistado algu-ma coisa, me pareciam, no cemitério, durante o enterro da Joana, como que zumbis e mortos-

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vivos caminhando. Até mesmo os Auersberger, que por causa de seus prêmios, troféus, viagens, boas críticas e todo tipo de adulações acreditam ser grandes artistas e pessoas de destaque na sociedade, se vê perfeitamente que entraram, também eles, para o hall da decadência, não só artística, mas também intelectual. E, pior ain-da, até espiritual. O que faz deles o casal-mor dos mortos-vivos. Os mortos-vivos anfitriões da cidade de Viena.

É o que eu penso, de toda essa gente, sen-tada na bergère da antessala da casa do casal Auersberger, aguardando para jantar o, como dizem, genial ator do Teatro Nacional que faz até telenovela e nunca chega.

Como eu, todos da sala de música ainda estão em seus trajes de luto, porque vieram do enterro da Joana, exaustos, direto para este enfadonho jantar artístico. Sentada na bergère, observo todos. Pessoas que há mais de 20 anos eu não via. Quase todos antigos grandes amigos, que eu, agora, só cumprimento com um aceno. Na verdade não escondo mesmo minha repulsa e desprezo por toda essa gente. E eles até perce-

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bem que eu os desprezo e riem discretamente disso. Provavelmente comentando que eu, não eles, sou uma pessoa desagradável. Que eu, não eles, sou uma pessoa medíocre. Que eu, não eles, sou uma pseudoartista, que se instala num canto da sala e, protegida pela penumbra, joga seu joguinho sujo de observar e dissecar um a um. É o que devem estar pensando e comen-tando de mim, as pessoas da sala de música.

Podia me levantar e ir embora, caminhar pe-las ruas frias de Viena, como fazíamos, aliás, eu e a Joana, há mais de 20 anos. Me embebedar, pela Joana, num bar sujo, ou mesmo no fedido café dos artistas, como fazíamos, há mais de 20 anos, eu e a Joana. Depois cambaleando me perder na madrugada pelas ruas frias de Viena, como fazíamos eu e a Joana, cantando nossa paixão por Mozart, um verdadeiro, senão o único, gênio que por aqui tivemos um dia.

Eu e a Joana, às vezes também a Jeannie e os Auersberger, passamos horas de nossas vidas juntos, quando ainda nos considerávamos ami-gos, não importando que tipo de amigos, mas, enfim, nos dizendo amigos, nos embebedando

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e cantando grandes árias alemãs e italianas e in-glesas, numa supervalorização de nós mesmos. Jovens, talentosos, bonitos e bêbados. Muitas foram as noites que passamos nestas mesmas poltronas, destas mesmas salas, desta mesma casa, do casal Auersberger. Celebrando juntos a arte e a possibilidade de através dela elevar nossas vidas. O Auersberger, por ser mais velho que os outros, tinha maior conhecimento da arte musical e ensinava a nós outros tudo que precisávamos saber da dita boa música. Era mesmo o Auersberger um grande conhecedor da música e um pianista de primeira. Ele tocava Bach como ninguém em Viena e a Auersberger o acompanhava. A Auersberger que, além de muito bonita naquela época, também cantava escandalosamente bem. Sempre que a Auers-berger cantava, com o Auersberger ao piano, as belas árias alemãs, meus olhos se enchiam de lágrimas. Por mais que eu já conhecesse de cor e salteado todo o repertório dos Auer-sberger, meus olhos sempre se enchiam de lágrimas, há 25, 30 anos, quando eu nos meus 20, 20 e poucos anos, ainda mantinha grande

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encantamento pelos artistas e pela vida. Éramos todos românticos e apaixonados. Cantávamos, líamos muito, ouvíamos boas músicas, assis-tíamos a bons filmes e encerrávamos a noite esparramados pelos tapetes. Nos embebedando e fazendo tudo o que tínhamos direito. Eu, a Joana, a Jeannie e os Auersberger. E há pouco mais de 20 anos todos me decepcionaram, me traíram, me difamaram, me caluniaram, com mentiras cabeludas, fofocas de baixíssimo nível e intrigas piores que as de telenovela. Somos os amigos mais íntimos de determinadas pessoas e acreditamos que será para a vida toda. Até o dia em que somos decepcionados por essas pessoas que, acima de tudo, idolatrávamos, e passamos do amor ao ódio por essas pessoas, à repulsa, e nada mais queremos ter a ver com essas pessoas. As apagamos totalmente de nossa mente.

Até que, mais que de repente, reencontro o casal Auersberger caminhando pela rua, sor-rio, eles se aproximam, travamos uma rápida conversa e deixo que me convidem para este enfadonho jantar artístico, na presença dos ve-lhos amigos e ofertado ao famoso ator do Teatro

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Nacional e telenovela que disse que viria assim que acabasse sua apresentação de seu O Pato Selvagem. Só uma idiota podia ter aceitado e vindo a um jantar desses, penso, totalmente desavontade, sentada na bergère da antessala da casa do casal Auersberger, me atordoando com algumas taças de vinho branco, para poder aguentar um pouco.

Minha sorte é que sei me preservar. E sen-tada na bergère exercito com gosto este saber. Quando algumas pessoas, antigos amigos, me reconhecem e pensam em vir ficar comigo, se sentar ao meu lado e me fazer companhia, e pior, querendo puxar assunto, eu afasto qual-quer possibilidade de isso acontecer, ficando sentada na bergère em total estado de alhea-mento. E olhando para o chão em momentos decisivos. Durante quatro horas, sentada na ber-gère, já morrendo de fome e tendo que sustentar este estado de alheamento, para poder ficar sozinha e só observar, que é realmente uma das coisas que mais me dão prazer na vida.

Devo isso à Joana, penso, sentada na bergère. O prazer de observar. Pois no ateliê da Joana,

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onde passei horas, mesmo dias e noites inteiras da minha juventude, não apareciam apenas artistas, mas todas as ditas pessoas mais inte-ressantes de Viena. Até mesmo empresários e políticos, aspirantes a senhores do universo, que a Joana convidava com o único propósito de tornar ainda mais conhecidas e famosas e caras as tapeçarias de seu tapeceiro. O que eu penso é que no fundo havia no ateliê uma mistura de gente que me foi extremamente importante para minha formação artística e humanística, quando eu ainda era jovem e com grande an-seio pelo mundo. No ateliê, falando de maneira simples, eu pude não apenas manter contato com a arte e os artistas, mas com a alta/alta, alta/média, alta/baixa, média/alta, média/mé-dia, média/baixa classes em geral, conseguindo depois de alguns anos compreendê-las com clareza. No ateliê da Joana eu pude observar essas pessoas, ver o que elas são, como elas são, como são o que são e o que não são, nem jamais poderão ser na vida. Graças ao ateliê da Joana eu pude apurar as minhas técnicas de observação, as transformando depois em uma

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das minhas melhores habilidades. Tanto que hoje meus dias se tornaram praticamente isso: observar pessoas. Sair para a rua, sentar sozinha num banco qualquer, ou mesmo caminhando à toa, para ficar observando pessoas. Penso até que nunca houve nada, nem mesmo grandes obras de arte, que me desse tanto prazer quanto observar pessoas. Ao mesmo tempo em que nada me causasse tanta repulsa como obser-var pessoas, qualquer tipo de pessoa. Quanto mais as observo, mais aumenta o meu asco e desprezo. Na verdade, eu detesto pessoas, ao mesmo tempo em que elas são a única causa da minha vida.

– Eu podia esperar tudo da Joana, menos que se suicidasse – grita o Auersberger. Há agora 15 a 20 pessoas na sala de música para o jantarzinho artístico. Na maioria antigos colegas que, na verdade, não mudaram muito. São como há 25, 30 anos, quando no fim não apenas me entediavam, mas me causavam até ânsias de vômito.

– Só vamos esperar até a meia-noite e meia – grita a vaca da Auersberger. É talvez o que eu

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mais odeie nos Auersberger, acredito que, por suas descendências italianas, ou na mania de quererem aparecer, própria, aliás, dos artistas, estão sempre gritando ao invés de falar igual a todo mundo.

– Quanto tempo dura esse Pato Selvagem? – já também grita a Jeannie, a, hoje, prestigiada escritora. Tento lembrar quanto tempo dura o Pato Selvagem porque já assisti a uma mon-tagem do Pato Selvagem e também já li e reli várias vezes, em inglês e também em francês, o Pato Selvagem. Mas realmente não consigo lembrar quanto tempo dura O Pato Selvagem nem mesmo do que se trata O Pato Selvagem. Devia ter lido novamente, caso tivesse tido tempo, O Pato Selvagem, antes de vir a este jantarzinho artístico, para poder conversar de igual pra igual com esse atorzinho que nunca chega e e, aliás, ouvi dizer que está uma bosta nessa montagem de O Pato Selvagem. Um ver-dadeiro equívoco, é o que ouvi comentarem, dessa montagem de O Pato Selvagem. Uma merda. Apesar de estar com sete ou oito indi-cações ao prêmio oficial do Estado e ter feito

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várias temporadas nos principais palcos do país e até do exterior e tudo.

– Com certeza ele vai ganhar o prêmio de melhor ator – diz a Auersberger. – Mas da peça num todo eu também não gostei muito – diz a Auersberger. – É mesmo um pouco chata. Sem-pre achei Strindberg um pouco difícil e chato.

– Ibsen, anta. O Pato Selvagem é de Ibsen, anta – grita o Auersberger, para começarem então uma infinidade de insultos de baixíssimo nível ali no meio da sala de música, com todo mundo olhando e rindo, já acostumados. Uma cena deprimente como há tempos eu não via. O que só reforça minha impressão da decadência do casal Auersberger.

Lembro ter visto, uma vez, uma peça com esse ator que todos aguardam e nunca chega, há muito tempo, com a Jeannie. Não era uma peça ruim, mas também não posso dizer que fosse boa. Os atores, como é comum aos atores do Teatro Nacional, eram ou antiquados ou afetados, com suas vozes empostadas e tudo. Os atores do Teatro Nacional, aliás, nunca se comportam como gente, só pensam que se

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comportam, mas a mim sempre me parecem mais é com macacos. Pulando de um lado para outro com suas interpretações carregadas demais, gestos exagerados demais e gritando alto demais.

– Sim, mas isso é teatro, minha querida, não cinema – reagiu a Jeannie, aquela vez, ao meu comentário.

– É! É por isso que eu não vou mais ao teatro – respondi eu. Alguns atores até conse-guem ficar parados e falar como gente, mas são poucos. E esses poucos, a gente logo percebe que eles se consideram bons e isso estraga tudo. Como esse ator, que todos aguardam e nunca chega, é difícil explicar, mas, já naquela época, a gente via que ele agia, tanto no palco quanto na vida, como que convencido de que era bom e isso estragava tudo. Se a gente acha que faz uma coisa benfeita, aí, depois de algum tempo, justo por isso, a deixamos de fazer benfeita. É o que estraga muitos dos artistas de Viena, penso, sentada na bergère da antessala da casa dos Auersberger, que de tanto tempo que aqui estou já começo a pensar que não estou.

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A ideia é grotesca, eu sei, mas a verdade é que, no fundo, sempre fingi para o casal Auer-sberger. Quando me reencontraram na rua e me contaram sobre o suicídio da Joana fingi que não sabia de nada, quando na verdade já sabia de tudo. Fingi estar chocada com a morte da Joana e depois fingi ter aceitado com gosto o convite para este enfadonho jantar artístico. Sempre fingi e enganei o casal Auersberger. Tudo em mim sempre foi fingimento para o casal Auersberger. Por isso, na verdade, talvez eu não esteja aqui, sentada há mais de quatro horas, na bergère da antessala da casa dos Auer-sberger, esperando para jantar o famoso ator do Teatro Nacional e telenovela que nunca chega. E na companhia dos antigos amigos que hoje tanto odeio. Só finjo que estou. Puro fingimen-to. Realmente a ideia parece grotesca, mas é lógica, quando percebo que nunca vivi uma vida real e verdadeira. Vivo e existo somente no plano da imaginação e fingimento. Tudo brincadeira e teatrinho. Tudo em mim sempre foi teatrinho e encenação de personagens rasos. Você passou a vida toda vestindo máscaras da

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hipocrisia e dando falas previamente estudadas e decoradas para cada situação de sua vida. Sempre de mentira. Nada de verdade. Toda a sua existência e o que diz respeito ao envol-vimento com os outros sempre foi simulação e fingimento. Nunca de verdade. Nunca. Só Teatro. puro fingimento.

E já estou gostando desse meu pensamento, de que, talvez, tudo seja apenas pensamento, quando sinto a Auersberger me cutucando com o dedo.

– Se quiser pode ir dormir no quarto de visitas – diz a Auersberger.

Olho em volta e vejo todo mundo me olhan-do, porque devo ter mesmo dormido e até, pelo jeito, ter falado enquanto dormia. Há tempos adquiri essa péssima mania de, às vezes, falar enquanto durmo. Aliás, há tempos que só falo enquanto durmo. Me levanto dignamente, ten-tando me recompor um pouco, paro, olho a Auersberger e fico na dúvida entre lhe dizer: – Bom, acho mesmo que eu tenho que ir – ou simplesmente ir ficar com a mediocridade na sala de música, conversar um pouco e estimulá-

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los a uma disputa intelectual, como eu fazia antigamente. Mas desisto logo dessa ideia, pois realmente não estou interessada em falar com ninguém deste enfadonho jantar artístico. E já me dirijo à porta da antessala da casa do casal Auersberger, com a Auersberger me acompa-nhando, quando toca a campainha, de modo insistente e exagerado, provocando grande al-voroço em todo mundo. A Auersberger logo me esquece, ali, parada, para atender a porta, ao que entra o famoso ator do Teatro Nacional que faz até telenovela.

Que nem me vê e quase passa por cima de mim, se eu não desvio, o ator do Teatro Nacional que faz até telenovela, passando reto, em seu caminhar soberbo, pela antessala da casa do casal Auersberger e também reto pela sala de música da casa do casal Auersberger, até chegar à sala de jantar da casa do casal Auersberger, aquele perfeito horror de estilo majestoso. Péssimo gosto de decoração do casal Auersberger.

– Hoje não foi uma boa apresentação – diz o ator.

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– Por que não? – a Auersberger.– Nãonãonãonãonão! Hoje não foi uma boa

apresentação – é só o que diz o famoso ator, en-quanto já vai se chegando à mesa. – As plateias de Viena estão cada vez piores. Não são mais como antigamente, quando sabiam apreciar uma boa peça. Nãonãonãonãonão! As plateias de Viena de hoje não têm mesmo nenhum tipo de formação, seja artística ou intelectual. Nem mesmo sabem diferenciar a arte da mera bobagem. Nãonãonãonãonão! Uma pena, mas só querem é se divertir com os besteiróis da Treze de Maio, a que estão acostumadas. Passar o tempo, como dizem, é o que querem as pla-teias de Viena de hoje – diz o ator, enquanto a cozinheira serve a sopa de batata.

– Que que é isso – penso eu –, já é 15 pra uma, todo mundo pálido de fome e a cozi-nheira servindo sopa de batata. Um absurdo! – penso em protestar.

Mas já que a estão servindo, acho que fico para comer um pouco.

– Eu gostei muito de seu Pato Selvagem – a Auersberger.

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– É mesmo?– É. Já assisti cinco vezes e chantageei todas

minhas amigas pra que assistissem também.– Muito bem.– Eu ainda não vi, mas vou na próxima

semana com certeza – diz outra.– Que bom.– Está todo mundo comentando muito bem

– diz outra.– Ainda bem. Eu também gostei muito da

nova composição do sr. Auersberger – diz o ator, ao que o Auersberger se avermelha todo.

– É? Já a ouviu?– Já, claro! É uma bela composição con-

temporânea. Muitos ruídos, nenhuma melodia, uma maravilha.

– Você já leu meu novo romance? – pergun-ta a Jeannie. A Jeannie, ou Nena, como alguns a chamam, se tornou uma escritora meio louca e prepotente e se acha a sucessora de Virginia Woolf. A Virginia Woolf de Viena, é como agora ela se apresenta pra todo mundo.

– Não, não li – responde o ator.– Então eu vou lhe dar um de presente.

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E vão todos se sentando à mesa, rapidinho, se espremendo, para que caiba todo mundo. Mais uma cadeira aqui, uma banqueta ali, a Jeannie puxando um pufe ao lado do famoso ator do Teatro Nacional e telenovela, que já se sentou no meio, o Auersberger na ponta, sua mulher ao lado. Todos se sentando rapidinho e eu olhando, esperando, ainda em pé, onde é que seria melhor pra eu me sentar, até que a Auersberger me manda com o dedo que eu me sente e eu me sento, claro. Fico quase frente a frente com o famoso ator do Teatro Nacional e telenovela, sendo obrigada a observar seu jeito nojento de sorver a sopa enquanto fala.

– O Ekdal sempre foi o meu papel prefe-rido.

O papel dos meus sonhos.Tenho verdadeira paixão pelo Ekdal.O Ekdal é, há décadas, o meu personagem

favorito – é só o que diz o ator.–E se tivesse parceiros melhores e mais ta-

lentosos, coisa que não tive, O Pato Selvagem teria sido um sucesso maior ainda. E não só eu brilharia, mas o espetáculo num todo. Os

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jornalistas escreveram isso, que não foi O Pato Selvagem o acontecimento do ano, mas sim o meu Ekdal. Todos escreveram isso. Em qual-quer blog, desde dos artistas semianalfabetos até o do tal... Mario Bortoloco e do tal... Geraldo Thomas é isso que lemos, que não teria sido nada O Pato Selvagem se não fosse eu a fazer o Ekdal – diz o ator, limpando sua enorme barba toda suja de sopa. – Claro que gosto muito de Ibsen e de Strindberg e de todos esses escandi-navos, mas, o que seria desses dramaturgos se não fossem os, como eu, grandes atores, não é mesmo? A literatura dramática, meus amigos, só existe, só é viva, quando há um grande ator, como eu, que lhe dá vida.

E todo mundo paparicando de forma no-jenta, desavergonhada, o famoso ator do Teatro Nacional e telenovela que só fala besteiras. Inclusive o Auersberger, que, há pouco, tanto falava mal, verdadeiramente o difamava pelas costas, agora o olha com a sua cara boba e des-lumbrada, igual a todo mundo, aliás, quando vê pela frente um famoso ator do Teatro Nacional e telenovela. E se o ator sorve sua sopa depressa,

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todos sorvem suas sopas depressa também, se o ator sorve sua sopa devagar, todos sorvem suas sopas devagar também. Uma cena repugnante como há anos eu não via.

A Jeannie, digo, Nena, digo, Virginia Woolf de Viena, um pouco enciumada, pois já não é mais ela o centro das atenções do enfadonho jantar artístico, volta a falar de seu novo roman-ce, que está muito lindo, que está entre os dez mais vendidos e não sei mais o quê. Diz isso para chamar a atenção, claro, pois todo mundo já está cansado de saber que seu novo romance está entre os dez mais vendidos, claro. Apesar de não passar de uma tagarelice sentimentaloide sem nenhuma qualidade artística e que justo por isso está entre os dez mais vendidos, claro. Fala como se fosse ela a grande escritora de Vie-na. Fala que, com seu novo romance – dei um passo além do que fez como escritora a própria Virginia Woolf – que a obra dela finalmente superou e em muito a obra da própria Virginia Woolf – que chegou com seu novo romance à uma excelência que a própria Virginia Woolf sempre buscou, mas nunca alcançou, nem com

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As Ondas, nem com Orlando, nem mesmo com Mrs. Dalloway – é o que diz a Virginia Woolf de Viena, tentando impressionar o famoso ator do Teatro Nacional e telenovela que nem ouve o que a matraca da Jeannie fala. A única coisa que faz, o famoso ator do Teatro Nacional e telenovela, é sorver sua sopa da maneira mais ruidosa possível.

E terminada sua ruidosa sopa se limpa de forma igualmente nojenta não só a boca, mas também a testa toda suada, nariz, sovaco e tudo.

– Já podemos servir o assado – grita a Auer-sberger para a cozinheira que está dentro da cozinha.

– Não sei se devo comer tanto.– Claro que sim. Por que não? Preparamos

tudo do jeito que gosta. É o seu jantar artístico.– Já que insiste.– E como é que foi fazer o Ekdal? – per-

gunta o Auersberger. – Você está muito bem no papel.

– Me custou muito fazer o Ekdal – responde o ator. – O papel mais difícil que já fiz. Mais que

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difícil, quase custou minha própria sanidade fazer o Ekdal. Com a composição do persona-gem muito complexa e desgastante. O papel dos meus sonhos, mas muito desgastante. Real-mente o papel mais desgastante de toda minha vida. Muito desgastante! Acredito mesmo que o Ekdal seja o papel mais desgastante e difícil de se fazer no teatro, porque meio ano, vejam bem, meio ano, passei elaborando e estudando, oito horas por dia, o meu Ekdal. Enfurnado numa pequena sala suja, fedida e cheia de baratas, como são, aliás, todas as salas do Teatro Nacio-nal. Junto com o resto do elenco, o cenógrafo, o iluminador, o sonoplasta, a figurinista e, é claro, o diretor, que era uma besta. Uma besta que não sabia nada de nada de Ibsen. E só pedia ao elenco absurdos que ninguém entendia. Acho que estava na verdade querendo aparecer. Apa-recer, inclusive em cena, mais que os próprios atores. Era o que eu acho que queria a besta do diretor de O Pato Selvagem. Aparecer mais até mesmo que o próprio Ibsen. Um absurdo, claro! Que que é isso! Se tem uma coisa que me irrita é ego de diretor, que quer aparecer

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mais que todo mundo. É! E quando eu já estava quase tendo uma síncope, um chilique, como diziam antigamente, prestes a sair na porrada com o diretor, e... verdade!, já querendo socar a cara do diretor, de tão besta que ele era, preferi me retirar dos ensaios. Me retirei totalmente dos ensaios e fugi para o meu modesto chalé nas montanhas. O meu refúgio, como eu o chamo, o meu modesto chalé nas montanhas, no qual eu me trancafiei por cinco semanas, sozinho, sem ninguém por perto para me dizer o que é que eu tenho que fazer, como é que eu tenho que dizer minhas falas e até como é que eu tenho que caminhar. Nãonãonãonãonão! Que que é isso! Só no meu modesto chalé nas montanhas, sozinho, eu pude finalmente ela-borar com profundidade o meu Ekdal. Porque, sabem?, a maioria dos atores resolve sempre um personagem ou muito cedo ou muito tarde, tem uns que nunca resolvem, claro. Mas a compo-sição de um personagem como o Ekdal, meus amigos, é uma ciência, que deve ser desenvolvi-da somente no momento exato e em ambientes propícios. Lá, meus amigos, no meu modesto

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chalé nas montanhas, é que eu pude finalmen-te entender, num nível alfa, o que é o Ekdal. E o que é o Pato Selvagem. E o que é Ibsen. E mais. Sozinho, meus amigos, no meu modesto chalé nas montanhas, eu pude finalmente entender o que é o Teatro. O Teatro de uma forma como nunca antes eu havia entendido. Foi como uma luz, que me veio numa noite escura e silenciosa nas montanhas, o instante de harmonia em que tudo me foi revelado. E lhes digo, meus amigos, que muitas vezes, precisamos é subir às alturas das montanhas para conseguirmos ter uma vi-são correta do mundo e da vida. Por isso, meus amigos, que eu também lhes digo que se um dia eu vier a fazer o Rei Lear, que quero fazer com certeza, ou um Tchekov, que eu também quero, ou um Beckett, que eu também quero, não vou ficar meio ano ensaiando feito tonto nesta maldita cidade fria e hostil. Para quê, eu pergunto. Nãonãonãonãnão! Irei correndo para meu modesto chalé nas montanhas. Um chalé nas montanhas bem longe de tudo e de todos, inclusive das chatas produtoras, é tudo que eu preciso para reelaborar de uma vez por todas

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a grande arte de representar. E assim originar um novo teatro. Eu comigo mesmo: eis o meu processo criativo.

– Bravo.– Muito bem.– Théâtre du Soleil que nada, isso sim é que

é vanguarda.– Bravo.– Não concordo – diz a Virginia Woolf de

Viena, que há tempos está louca pra dizer al-guma coisa, tecer alguns de seus elaborados comentários, expor algumas de suas valiosas considerações e aparecer um pouco. – Não concordo.

– Com o que é que você não concorda, minha filha?

– Com que o Ekdal seja mesmo o persona-gem mais difícil de se fazer no teatro.

– Pois bem...– O senhor já leu o Edgar, do Strindberg.– Claro! Mas não é uma peça que...– Eu já li e reli várias vezes o Edgar, do Strin-

dberg, durante toda a minha vida. Sou mesmo uma aficionada pelo Edgar, do Strindberg, e

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por toda a obra do Strindberg. Desde pequena sou apaixonada pelo Strindberg. Leio, estudo e comparo tudo, tudo, tudo do Strindberg. Mas estudo e comparo principalmente o Edgar, do Strindberg com o Ekdal, do Ibsen. Mas o Ekdal, do Ibsen, não é tão bom quanto o Edgar, do Strindberg, porque o Edgar, do Strindberg, é muito muito bom, mas muito bom mesmo e bem melhor do que o Ekdal, do Ibsen. E muito mais difícil de se fazer do que o Ekdal, do Ibsen. E Ibsen, aliás, eu acho, na minha opinião, era um chato, nem era tão bom dramaturgo assim. Não tão bom quanto Strindberg, que era, na verdade, o grande gênio.

– Não. Lógico que não – exclama o ator. – Isso é só uma impressão de leitura.

O Ekdal é muito mais difícil. Qualquer ator recém-formado sabe disso.

– Não concordo, meu querido – responde a Virginia Woolf de Viena. – Inclusive nas aulas de teoria do teatro os professores ensinam que entre o Edgar, do Strindberg, e o Ekdal, do Ibsen, o personagem mais difícil de se fazer é o Edgar, do Strindberg. Talvez o senhor ache

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o Ekdal, do Ibsen, mais difícil do que o Edgar, do Strindberg, porque o senhor faz o Ekdal, do Ibsen, mas o mais difícil de se fazer é o Edgar, do Strindberg.

– Sabe – replica o ator. – Acredite em mim, minha fofa. Quando se é ator há anos, como eu, décadas a fio de trabalho e dedicação ao teatro, a gente sabe o que diz. Não ficamos apenas elucubrando. E teoria do teatro é teoria do teatro, entende o teatro de forma totalmente diferente de como os atores, que são o próprio teatro, entendem o teatro.

– O senhor já leu Edgar e o Ekdal: uma comparação.

– Não, quero dizer, claro! Mas não é um livro que ...

– Meu querido, se o senhor realmente ti-vesse lido Edgar e Ekdal: uma comparação, o senhor teria compreendido de verdade o que é o Ekdal e poupado muita gente dos equívocos que há na composição do seu Ekdal.

– Escute aqui! A senhora...– E Ibsen deve ter se retorcido no ca...– A senhora é que é uma frus...

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– E os dias nas montanhas? – pergunta a Auersberger, pondo panos quentes no jantar ar-tístico que começava a pegar fogo e todo mundo adorando tudo isso, claro, inclusive eu.

– Caminhava no mato.Caminhava no mato. Passava o dia todo, de

um lado para o outro, caminhando no mato e decorando o meu texto – responde o ator, se servindo de mais vinho e se recompondo. – Porque gosto de chegar no primeiro dia de ensaio com meu texto já 100% decorado. E de preferência com a construção do personagem já também concluída e acabada. No primeiro dia de ensaio sei não só as minhas falas, mas as de todos os personagens da peça. Porque se tem uma coisa que não suporto, além de gente bur-ra, é colega que não consegue sequer decorar seu texto. É horrível! De chorar! A pior coisa que existe – repete o ator, enquanto também repete o prato. – Hoje, infelizmente, acontece muito de jovens chegarem no primeiro dia de ensaio e nem mesmo saberem do que é que se trata a peça. Principalmente depois que virou moda em Viena o dito teatro de pesquisa. Teatro

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de pesquisa! Agora é que ninguém estuda mais porcaria alguma – diz o ator, ainda comendo e bebendo.

– Um brinde ao nosso mais ilustre ator – propõe a Auersberger.

– E também à nossa finada Joana – diz o Auersberger.

– À Joana – diz o ator. – Para que, com a sua morte, aprendamos a valorizar as nossas vidas – ao que todos brindam em tom solene patético.

– Devo confessar que eu nunca consegui entender direito o que é que se passa na mente dessas pessoas que matam a si mesmas. Não-nãonãonãonão! Mas, de uns tempos para cá, quando vejo o estado deplorável em que se encontra o mundo, acabo é por dar razão a elas. Ainda mais sendo nós, artistas, seres tão sensíveis e suscetíveis às catástrofes da vida, é que concluo que o suicídio, talvez, seja mesmo a melhor saída. É! É! É!

Ao que todos também dizem É. É. É. É.– Mas é estranho que a gente não veja tan-

tos atores se enforcando, digo, tantos quanto

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deveriam, não é mesmo? Porque... quero dizer, se há uma espécie de gente que tem todos os motivos do mundo para cometer suicídio, é a espécie dos atores, não é mesmo?

– Ah! Ah! Ah! Muito engraçado, fofa – diz o espirituoso ator do Teatro Nacional e telenove-la. – Mas, se não gosta de atores, nega, por que é que vai tanto ao Teatro Nacional?

– Ué!? Para manter as aparências, é cla-ro. Por que mais seria? Ah!, e também para depois ter do que falar mal, não é mesmo, Auersberger?

– Ahm? – pergunta o Auesberger.– Ah! É claro! Faz parte da tradição desta

cidade falar mal de tudo que seja fruto desta maldita cidade. Acho até, fofa, que não se é um verdadeiro vienense, aquele que, por mais que goste, não despreze tudo que seja vienense. E do Teatro Nacional é muito fácil, porque dele qualquer jovem diretorzinho fala mal. Até con-seguir se tornar ele próprio o diretor do Teatro Nacional. Aí passará a falar somente maravilhas da casa. Coerente como nossos políticos, não acham? Que mudam de posição ao sabor dos

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ventos – diz o ator do Teatro Nacional, repetin-do ainda mais uma vez o prato. – E, ademais, quem se destaca nesta cidade, digo, quem se destaca de verdade, fofa, sempre atrai inimigos. Os bons sempre atraem inimigos. Basta se fazer alguma coisa bem feita para entrar na mira dos invejosos franco-atiradores. Vejam, meus ami-gos, que é justamente isso que está acontecendo agora com o nosso querido Pato Selvagem.

– Ué!? Mas você mesmo disse que o Pato Selvagem é um fracasso. Opinião com a qual, devo dizer, eu concordo plenamente – diz a Jeannie.

– Bem... Também não podemos exagerar. Nãonãonãonãonão! Que que é isso! Não po-demos dizer que, por causa de um ou outro artista incompetente, o Pato Selvagem seja um fracasso. Nãonãonãonãonão! Afinal, o meu Ekdal é um dos melhores desempenhos de um ator nas últimas décadas em Viena. E isso que em Viena, meus amigos, estão os melhores atores de toda a Europa. Digo isso porque sei o que digo. Eu viajo por toda a Europa e para outros continentes e tudo, acompanhando a

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produção teatral contemporânea mundial. E nãonãonãonãonão! Nada de Paris ou Londres, como ainda dizem os pobres jornalistas que são muito limitados regionalmente e ainda acham que Paris e Londres é que são a Europa. Não-nãonãonãonão! Viena, meus amigos, é que vem inovando a dita encenação contemporânea e é onde melhor se produz teatro em toda a Europa – diz o famoso ator do Teatro Nacional e telenovela enquanto ninguém mais diz nada durante todo o jantar artístico. – Aliás – diz ainda o ator – saibam que começo os ensaios de uma nova peça contemporânea esta semana. Sempre me empolga muito ensaiar uma peça contemporânea. Porque considero um desafio, ou melhor, uma aposta, trabalhar com peças de autores que ninguém nunca ouviu falar. E esta é de um jovem, mas brilhante, autor escocês. Vocês vão adorar! É pra fazer rir, mas profunda. Numa tradução horrenda, mas que eu dou um jeito de arrumar as minhas falas. Sempre faço isso. Arrumo para mim as minhas falas e assim ainda colaboro, sem cobrar nada por isso, com a reputação de quem as traduziu. Geralmente

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as traduções ficam melhores quando eu estou no elenco, porque os tradutores também, in-felizmente, não sabem nada de nada do que é o teatro. Vou representar um escritor frus-trado de uma cidadezinha fria, úmida, hostil e destrutiva. Por isso é que a escolhi. Embora seja escocesa, a peça fala muito desta cidade, meus amigos. Parece mesmo ter sido escrita por alguém daqui, caso aqui existisse algum bom dramaturgo vivo. É! É mesmo um retro-cesso! Ou pelo menos um atraso! Mas é fato, meus amigos, que há anos não vemos surgirem novos dramaturgos nacionais que prestem. E se aparece uma esperança, logo percebe-se que a esperança, na verdade, não tinha talento. Alar-me falso. Propaganda enganosa da mídia. É o que era a dita esperança. Diga-se de passagem, meus amigos, que também é lamentável ver o que há atualmente na mídia. Só bobagens e sensacionalismos. A nova revelação da arte de representar, a aposta da semana, os dez mais geniais do mês, os 20 do semestre, é o que di-zem os críticos em suas ânsias de descobrirem novos gênios.

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– Um novo gênio do Teatro Nacional, eu acho, que eu saiba, na minha opinião, é só o Filipe – volta a abrir a boca a Nena, digo, a Jeannie, digo, a Virginia Woolf de Viena.

– O Filipe, fofa?! É um preguiçoso que não gosta de ensaiar, presunçoso, charlatão, ladrão, um engano. É o que é o Filipe! – diz o ator. – Digo isso porque trabalhei com o Filipe numa peça que ele dirigiu há muito tempo e vi que é só falcatrua, as peças do Filipe. Eu não tenho nada a ver com isso. As peças do Filipe são as peças do Filipe, problema dele. E por questões éticas há tempos deixei de tecer comentários sobre os trabalhos de colegas. Mas, não me deixo de perguntar por que é que todo mundo dá tanta atenção a alguém sem criatividade al-guma, que a única coisa que faz na vida é sentar a bunda gorda na frente de um computador, cli-cando em copiar e colar, copiar e colar, copiar e colar. A vida toda copiando ideias dos outros e depois assinando como se fossem suas. É o que faz o Filipe, fofa! – diz o ator, terminando de comer o seu assado e limpando a enorme barba toda suja de molho.

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– Mas e eu também não acho que os crí-ticos sejam assim tão idiotas como o senhor fala. Eu sempre tive uma ótima relação com os meus críticos e os entendo perfeitamente – diz a Jeannie, em sua necessidade de sempre dizer alguma coisa. – E se eles falaram mal do seu Pato Selvagem, meu querido, é porque devem mesmo ter alguma razão para isso.

– Se com o tempo eu aprendi alguma coi-sa, nega, é que os críticos, esses, mais do que todos, entendem o teatro de forma totalmente diferente de como os atores, que são o próprio teatro, entendem o teatro.

– Quem sabe faz, quem não sabe ensina, quem não sabe ensinar, ensina a ensinar. Quem não sabe ensinar a ensinar, vira crítico – diz o engraçadão do Auersberger, que, apesar de completamente bêbado, é outro que não perde oportunidades para destilar seu veneno ácido, próprio de pessoas de cidades grandes e coisa que eu sempre detestei, aliás, nas cidades gran-des e principalmente nos artistas de cidades grandes. Essa maldita mania de todos sempre querendo ser cínicos e irônicos.

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– Foram colher o maracujá? – grita ainda o Auersberger para a cozinheira, ao que pronta-mente surge a dita-cuja com a sobremesa.

– Gosta de musse de maracujá? – pergunta a Auersberger.

A Auersberger quase não fala porque está ainda abobalhada com a presença do famoso ator do Teatro Nacional e telenovela. Final-mente o famoso ator encontra-se sentado à sua mesa, feito uma peça de decoração que há tempos ela tanto desejava, em sua horrenda sala de jantar, que agora mais parece um ne-crotério, talvez por causa das luzes que a Auer-sberger, não sei por quê, desligou, deixando acesos apenas os castiçais de estilo majestoso, que nada mais dão à sala de jantar do que um sombrio aspecto triste teatral, que, aliás, tão bem combina com todo esse grupo de artistas e pseudoartistas.

– Posso fazer uma foto? – pergunta ela ain-da. Convidando agora todos que já comeram para se sentarem em poltronas mais confortá-veis na sala de visitas, onde ela vai servir um cafezinho.

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Todos imediatamente se levantam abando-nando satisfeitos a sala de jantar para se senta-rem na dita sala de visitas dita superconfortável. Organizada demais ao estilo vienense de cada coisa em seu lugar demais e decorada em estilo ostensivo demais, mas sem nenhuma perso-nalidade demais, parecendo demais é com o showroom das Lojas Pedroso.

– Quem é que vai querer um cafezinho? – pergunta a Auersberger.

A Jeannie não aceita. Prefere acender um fedorento charuto, acho que querendo ficar parecida uma daquelas suas escritoras preferi-das. Uma Gertrude Stein, é com quem eu acho que ela tenta ficar parecida, ao acender seu fedorento charuto, ao que o ator murmura algo sobre ar puro, ao que a Auersberger se levanta de um salto para abrir ainda mais a janela da sala de visitas, ligando depois o antigo toca-disco, para descontrair o ambiente um pouco. Coloca justo o Bolero, música que a Joana mais gostava na vida, fazendo com que todos voltem a falar de Joana, Joana, Joana, Joana... na sala de visitas. Eu mesma, ouvindo o Bolero, não

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resisto em me deixar levar por esse estado de devaneio sobre a Joana. Toda a minha irrita-ção, que durou todo o tempo em que estive sentada à mesa, agora me é substituída por uma tranquilidade que só nos devaneios me é permitida. Fechando os olhos vejo a Joana, a ar-tista do movimento. Ouço sua voz e me alegro ao lembrar de sua boa receptividade para com tudo o que era belo, ao lembrar de seu dom de conseguir enxergar as qualidades, ao invés de somente apontar os defeitos e como conseguia ela nos fazer acreditar em nós mesmos. Nossa otimista Joana, entusiasta da arte e da vida, que quando pequena esperou a infância e adoles-cência inteiras para num ônibus subir e sumir rumo à cidade grande, atrás de seu sonho, com a bagagem carregada de toda a esperança do mundo, acabou, como tantas, abatida. Porque cidades grandes são apenas sonhos, que se es-vaem diante da hostilidade das pessoas das ci-dades grandes. E a Joana, por mais esperta que fosse, nunca conseguiu direito se defender dos diabos que são os artistas desta cidade, penso, feito a Jeannie, que se dizia sua amiga, mas só o

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que fazia era criticar tanto o trabalho da Joana quanto a pessoa da Joana, tentando a todo custo apagar o brilho natural que na Joana havia. Vejo, agora, passados mais de 20 anos, que a Jeannie sempre teve esse prazer pervertido de tentar tornar as pessoas ao seu redor cada vez mais inseguras e sem vida.

O Auersberger se levanta de sua poltrona de anfitrião, para tentar fazer um discurso em homenagem à Joana, balbuciando coisas in-compreensíveis, a que ninguém dá atenção, é claro. Tira então da boca o par de dentaduras, as erguendo orgulhosamente diante do ator feito um troféu que ele ganhara. E rindo exibe a boca completamente desdentada.

– Que deselegância, Auersberger, que dese-legância – queixa-se o ator, ao que a Auersber-ger, mais que imediatamente, salta na direção do Auersberger para tentar carregá-lo para o quarto.

– Se você colocar a mão em mim, eu te mato – diz o Auersberger, a empurrando e ela caindo de costas no colo do famoso ator. – Que deselegância, mulher! Que deselegância!

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Eu fico pensando o que seria de toda essa gente, caso tivessem tentado a vida em outra cidade, em Paris ou em Londres, os ditos prin-cipais circuitos culturais da Europa. Se teriam eles conseguido maior êxito em suas carreiras e mesmo em suas lastimáveis vidas. Mas, penso que não. Toda essa gente, bocejando sem parar, esticada nas poltronas da sala de visitas da casa do casal Auersberger, não passaria de talentos promissores, eternos futuros gênios, penso, em qualquer parte do mundo.

– Para que se embebedar desse jeito, Auer-sberger? Que que é isso?! Para que terminar de afundar o que restou de seu talento nessas garrafas de vinho e de uísque. Você a quem toda a Áustria considerava o sucessor de Webern e de Schoenberg, agora dizem que não faz outra coisa senão encher a cara de uísque, no fedido café dos artistas. Para que, Auersberger?

– É porque a vida não tem mesmo nenhum sentido. E devíamos mesmo é todos nos suici-darmos – diz o Auersberger, chorando, coisa que sempre faz, aliás, o Auersberger, a certa altura dos jantares artísticos.

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E todos fazem de conta que não veem, mas riem, baixinho, é claro. Ainda mais os dois jovens, acho que escritores, que durante todo o jantar artístico não fizeram outra coisa senão se notarem pelas suas risadas histriônicas, pró-prias, aliás, dos jovens artistas. Durante todo o jantar não falaram com ninguém, senão entre eles mesmos. Como eu também, que durante todo o jantar não falei com ninguém, senão comigo mesma. Mas as risadas histriônicas dos dois jovens, acho que escritores, que riem de tudo frouxamente sem ninguém saber o por-quê, já estavam me dando nos nervos, mesmo antes da chegada do famoso ator do Teatro Nacional que faz até telenovelas, porque só sabem rir e chamar as coisas de ridículas, os jovens, mas principalmente os jovens aspirantes a artistas. É ridículo isto, que ridículo aquilo. Mas quando lhes perguntamos por que é que todas essas coisas são ridículas nunca sabem nos responder. Só daqui a alguns anos, penso, talvez saberão por que é que todas essas coisas são ridículas, penso, mais aí já não mais terão do que nem por que rir das coisas ridículas, penso,

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porque serão eles próprios os motivos de riso, penso. Está claro para todos que os Auersberger, os velhos lobos, devem tê-los convidados com o propósito de, por assim dizer, se integrarem à juventude artística vienense, os colocando à mesa, para depois, talvez, quem sabe, devorá-los na cama. Como tanto fizeram comigo, no passado, o casal Auersberger. Lembro que já naquela época ser gay era fashion e bissexual mais fashion ainda. Então todos queriam ser gays ou bissexuais naquela época. E mesmo agora, como percebo. E o casal Auersberger, os artistas anfitriões da cidade de Viena, sempre adorou ter muitos menininhos e menininhas para apimentar seus jantares artísticos, ainda mais quando embalados pelo vinho. Às vezes, sete ou oito, dormindo agarradinhos, na mes-ma cama, no mesmo quarto, da famosa casa do casal Auersberger. Assim é que são o casal Auersberger e todos os artistas desta cidade, penso, loucos por uma salada mista.

Sentada com a corja, num canto da sala de visitas, presto atenção em todos. Principal-mente na Jeannie, sentada, calada e fumando

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seu fedorento charuto. E olhando a Jeannie, a mesma de há 20, 25 anos, só que muito mais acabada, sinto nojo de mim mesma ao lembrar que lambi a sola de seus pés um dia. E sinto nojo maior ainda, ao lembrar que lambi não só a sola de seus pés, mas o corpo todo e tudo, enquanto ela lia para mim os seus escritores favoritos. Lambi, eu confesso, porque era para mim, a Jeannie, a pessoa que eu queria ser um dia. Ideia boba, eu sei, mas que paira na cabeça de toda menina quando ainda indecisa sobre o que quer ser na vida. Só digo que tenha valido a pena, lamber os pés e tudo mais da Jeannie um dia, porque foi assim que conheci toda a literatura do século 20 e os clássicos de todos os tempos. Como também depois aprendi com o casal Auersberger tudo o que sei sobre a boa música e mais tarde, com a Joana, tudo o que sei sobre a arte da dança. E com o seu tapeceiro tudo sobre a pintura, a escultura, a gravura e todo tipo de arte visual. Apesar de nunca eu ter precisado lamber nada do tapeceiro da Joana. Posso até admitir que aprendi tudo o que sei sobre a arte com esse círculo de pessoas. Mas,

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penso também que devo muito mais o que sou hoje ao meu rompimento com essas pessoas. Porque só após o rompimento e o afastamento é que uma relação se completa, penso. E que é somente a distância que podemos conhecer nossos reais amigos, penso.

Vejo agora como foi somente após o meu rompimento e o meu distanciamento é que eu pude, sem nenhum pingo de angústia, es-crever, para mim, os meus romances, que são, claro, muito melhores que os da Jeannie. Como também pude começar a compor as minhas músicas, que são tão belas, senão mais, que as do Auersberger. E também começar a cantar, pintar, fotografar e até interpretar para mim mesma. Tudo de mim para mim mesma. Uma genial multiartista autossuficiente. Nada de sofrer pelos outros. Até que a morte me venha, tudo o que eu faço e que crio ficará guardado, trancado comigo mesma, escondido e a salvo de toda essa gente, que agora ouve o famoso ator do Teatro Nacional contar as anedotas de teatro que ficam veladas ao grande público, escondi-das atrás da cortina. Sempre que nos reunimos

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com gente de teatro chega-se à hora de se contar as anedotas de teatro. O fulano de tal que en-trou bêbado em cena. A beltrana que de tanto se concentrar, fazendo o ground, esqueceu de entrar em cena. A sicrana que estava na coxia chupando o pau de um e depois entrou em cena para beijar a boca do outro. E é assim, con-tando as anedotas de teatro, que o genial ator do Teatro Nacional vai novamente conquistando para si a atenção de todos de uma forma como jamais ele conseguira em toda a sua gloriosa carreira dramática. Nem com Shakespeare, nem mesmo com suas popularescas telenovelas, alguma vez na vida ele conseguira tanta comu-nhão com o público quanto agora, contando as fofocas, digo, anedotas da classe.

Todos cumprindo a paparicação em torno do famoso ator do Teatro Nacional que faz até telenovela, menos a Jeannie, é claro, que, sen-tada e calada, se remói de inveja.

– E o que é que o senhor acha de ter sido no-meado um diretor de fora para o Teatro Nacio-nal? – pergunta a Jeannie. – Um homem genial, um verdadeiro homem de teatro, como há anos

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o Teatro Nacional não via – diz a desagradável da Jeannie. – É o que estão comentando desse homem que vai mandar em sua casa – cutuca a Jeannie, tentando agora derrubar o famoso ator. – E então? O senhor deve ter alguma opinião formada sobre esse seu novo genial diretor, não é mesmo?

– Genial... genial... Meu cu também deve ser genial – diz, já meio alterado, o ator. – Me desculpem, mas é que nesta província todos acham que quem vem de fora é genial. Nãonão-nãonãonão! Que que é isso?! Eu, fofa, com toda a minha vivência, lhe afirmo que não passarão de duas as encenações elogiadas pela imprensa, pelo público, por todos. Mas aí, minha nega, que se prepare esse seu novo genial diretor de que tanto fala, porque, como já se sabe, co-meçarão a derrubá-lo, podando-lhe os galhos pouco a pouco, até o abaterem por completo. Feito as árvores desta cidade que, quando fron-dosas demais, são podadas ou mesmo abatidas, por tornarem-se um perigo. E ficamos apenas com as árvores pequenas ou medianas, nesta maldita cidade.

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– ...– Éééé nega, ninguém precisa ser um vi-

dente para adivinhar o destino desse seu genial diretor que chega nas alturas entre abraços e afagos, pois todos sabemos que logo correrá daqui sapecado pela classe, sendo chamado de besta pra baixo. O que não deixa de ser verdade, porque, entendam de uma vez por todas, meus amigos, são os diretores de teatro, com suas ge-niais invencionices, as quais ninguém entende nada, os únicos responsáveis pelo sumiço do público das salas de teatro.

– Mas...– Nãonãonão... Só um pouquinho, nega. E

ademais, meus amigos, há tempos venho ten-tando resgatar o prazer em fazer teatro, como eu sentia antigamente, mas está difícil, princi-palmente com essa falta de incentivo à cultura que há hoje. E é por isso que, depois de muito pensar e com muito pesar, anuncio aqui, em primeira mão, o meu desligamento do Teatro Nacional. Nãonãonãonãonão. Nada de lamen-tos, meus amigos. Que que é isso?!

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– É... Eu entendo que chegou a hora de o senhor deixar o Teatro Nacional. Assim terá mais tempo para se dedicar às telenovelas, não é mesmo?

– Não, não é bem por isso, fofa.– Mas telenovela dá muito mais dinheiro,

não é mesmo?– Isso não é uma coisa com a qual eu me

preocupe, nega.– E muito mais popularidade, não é mes-

mo?– Pode ser que sim, mas isso, para mim, fofa,

não tem nenhuma importância.– Mas, não precisa ter vergonha. Todos aqui

entendemos que popularidade e dinheiro, logo, telenovela, é tudo com que todo ator sonha, não é mesmo?

– Este não é o meu caso, nega.– Não... não... E quando o senhor declara

que teatro não encontra mais eco na sociedade é completamente compreensível, é claro.

– Mas...– Por acaso alguma vez, em anos, décadas

de trabalho e dedicação ao teatro, o senhor foi

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tão assediado nas ruas quanto agora, depois que se rendeu, digo, vendeu às telenovelas?

– Bem... mas também... o que é que a se-nhora queria, hein? Também não se pode, sim-plesmente, a vida toda, esnobar a existência das telenovelas, e o seu poder na vida das pessoas e na cultura nacional. Isso seria um... um des-peito. Que é como agem os atores fracassados, os sem sucesso.

– Mas não precisa se justificar, meu querido. Ninguém aqui o está recriminando. Porque afinal todos compreendemos que telenovela é realmente muito importante, não é mesmo?

– Mas...– Além de mais fácil e rentável. E para um

ator como o senhor, já chegando à, como agora dizem, melhor idade, isso deve ser levado em conta, não é mesmo? – diz a Jeannie, provocan-do risos em toda a sala de visitas.

– Mas que que é isso?! Que conversa mais deselegante. Que perguntas mais vulgares. Que atrevimento querer afrontar a mim desse jeito. Nãonãonãonãonão! Que que é isso?!

– ...

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– Uma pessoinha qualquer que só faz a mim perguntas maldosas. Quer conversar comigo sobre arte e nem desconfia o que é que seja arte. Nãonãonãonãonão! Que que é isso?!

– ...– Uma pessoinha frustrada, burra e feia, que

por causa, disso tenta destruir tudo o que há de bom à sua volta. Nãonãonãonãonão! – diz o ator, parecendo que tirando as palavras da minha boca. – Uma mulherzinha de voz chata, nojenta e com cara de bruxa, que tenta a noite toda me depreciar. Que que é isso?! – diz o famoso ator na cara da Jeannie, digo da Nena, digo da Virginia Woolf de Viena, que, corada e gaguejando, tenta se justificar.

– Mas mas é que...– Nãonãonãonãonão, nega! Agora quem

fala aqui sou eu e lhe digo que me é repulsivo ser obrigado a sentar com gente feito você, fofa, uma das cobras mais perigosas que eu encontrei na vida – Finalmente me valeu a pena ter vindo a este enfadonho jantar artístico, penso. – E só para deixar claro, velha gorda, eu leio muito mais livros em um ano que você em toda a sua

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deplorável vida. Livros de verdade, está me entendendo? Não esses de capa cor-de-rosa feito os que você escreve – diz o ator cuspindo na cara da Jeannie enquanto grita. O ator é um desses que cospe tanto quando grita, que se você vai ao teatro e se senta na primeira fila, é bom levar um guarda-chuva. – E me diga sinceramente, sua bruxa, por que é que você é assim e apronta esse tipo de situações, hein? Hein? Sua frustrada! Mal-amada! Sua... sua malcomida! – o meu herói torna-se o ator, ao falar com todas as letras para a Jeannie tudo o que todos sempre pensaram mas nunca falaram, assim, na cara da Jeannie.

– Na verdade, nem sei por que é que vim a este enfadonho jantar artístico – diz o meu herói. – cheio de gente que nada tem a nos oferecer senão suas burrices e mediocridades de massa que nos entediam por toda parte – diz, metendo na mão da Auersberger a xícara de café vazia, o meu herói, parando em seguida para se despedir na frente do Auersberger, que há tempos dorme em sua poltrona. – Talvez nascer seja mesmo uma desgraça, mas nascer

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uma pessoa como o Auersberger é uma des-graça maior ainda – diz, fazendo ainda suas as minhas palavras, o meu ator herói.

– O meu herói, você é o meu herói, eu sou sua fã – penso em lhe dizer eu. Pensamento que logo se esvai, ao eu ver o ator despedir-se de todos de forma novamente afetuosa, os beijando e os abraçando.

– Devo concordar com você, Jeannie, que telenovelas não passam de uma ficção rasa, di-vidida em blocos, para se passar as propagandas comerciais no meio. Um trabalhozinho chato, que para um ator de larga experiência, como eu, nãonãonãonãonão!, não acrescenta em nada. E pior, estraga o artista, porque, como dizem, a acomodação é um veneno que mata pouco a pouco. Por isso é que acredito que eu deva buscar novas inspirações e dar novos rumos à minha bela carreira dramática. Que novos rumos?! É o que devem estar todos se perguntando?! Ora, lhes digo eu, ci-ne-ma – diz, o ator, saindo como entrou, sem nem me ter percebido.

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– Ah! – diz ele ainda. – O assado, meus amigos, estava delicioso – e sai, enquanto a Auersberger o segue com o olhar apaixonado, enquanto na poltrona da sala de visitas o Auer-sberger ronca feito um porco, enquanto outros ainda bebem e a Jeannie, soltando fumaça pelas orelhas, planeja formas de dar o troco e destruir de uma vez por todas o famoso ator num próxi-mo encontro artístico.

– Obrigada pelo convite. Gostei muito de ter vindo – digo eu à Auersberger.

– Não tenha pensamentos errados da gente. Todos a amamos muito e não sabe o quanto você é importante pra gente – diz, a Auersberger.

– É – digo eu, a beijando e a abraçando.Desço em saltos as escadas da casa do casal

Auersberger, cruzando o portão da casa do casal Auersberger, para logo adentrar na madrugada fria. E me encontrar liberta e sozinha. Andan-do pelas ruas desertas e úmidas da cidade de Viena. Ruas que, por mais que malditas, ainda me fascinam, me encantam, me enfeitiçam. Aumento o passo para acompanhar meus pen-samentos que me vêm claramente me dizendo

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que tudo – ruas, clima nojento, cidade, pes-soas – que odeio na mesma medida eu amo. E que todas, todas essas pessoas que eu odeio e acima de tudo hei de odiar para sempre, são as que escolhi para mim. Para fazerem parte da minha vida, penso. Porque é só com pessoas, e entre elas, mesmo com as que odiamos, que temos a possibilidade de não ficarmos loucos e continuarmos a viver, penso. E já quase corro, inundada de êxtase, enquanto me jorram pen-samentos de que é claro que a minha próxima obra terá como tema o tema da minha vida, penso. O amor e o ódio. Agora já efetivamente corro, corro, corro, enquanto rindo, e não sei por que, meio chorando, canto, como, lembro, fazíamos, há mais de 20 anos, eu e a Joana.

Fim

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Coleção Primeiras Obras

1. Otávio Martins2. Gabriela Mellão3. Ivam Cabral4. Sérgio Roveri5. Vera de Sá6. Sergio Mello7. Rudifran Pompeu8. Marcos Damaceno9. Lucianno Maza10. Dramamix 2007

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Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei n. 10.994, de 14.12.2004)Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia dos editoresDireitos reservados e protegidos (lei n. 9.610, de 19.02.1998)

Impresso no Brasil 2010

Imprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca 1.921 Mooca03103-902 São Paulo sp Brasilsac 0800 0123 [email protected]@imprensaoficial.com.brwww.imprensaoficial.com.br

© Marcos Damaceno, 2009

Crédito de fotografia: Rogério Viana

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(Biblioteca da Imprensa Oficial)

Damaceno, MarcosÁgua revolta; Para Luís Melo / Marcos Damaceno [Organização de Ivam

Cabral]. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 108 p. – (Coleção Primeiras Obras, 8)

isbn 978-85-7060-804-8Apoio: Grupo Satyros Literatura

Associação dos Artistas Amigos da Praça

1. Teatro – Brasil 2. Literatura – Teatro 3. Textos literários i. Damaceno, Marcos ii. Título iii. Série.

cdd 808.2

Índice para catálogo sistemático:1. Textos literários 808.2

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formato 105 x 155 mm

tipologia Electra

papel miolo Chamois Fine Dunas 85 g/m2

papel capa Cartão Supremo 250 g/m2

número de páginas 108

tiragem 1500

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Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Governo do Estado de São Paulo

governador

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