Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    1/14

    Campinas-SP, (34.1): pp. 81-94, Jan./Jun. 2014

    A ALAVANCA DA CRISE: A POESIA PS-

    UTPICA DE HAROLDO DE CAMPOS

    Marcos Siscar(UNICAMP - CNPq)

    Deem-me um ponto de apoio e moverei aTerra. ( ,frase atribuda a Arquimedes por Pappus de

    Alexandria em Synagoga, Livro VIII).

    Michel Deguy conta, em Rouverture aprs travaux, que haviapensado em intitular esse seu livro Manifesto pela poesia, a exemplo deum ttulo de Alain Badiou. O poeta e crtico francs, entretanto, teria

    voltado atrs na deciso, por uma razo precisa:

    No intitulei este opsculo manifesto pela poesia, embora tivesse vontadede faz-lo, encorajado pela emulao j proposta por Alain Badiou (com seumanifesto pela losoa). Isso porque o tempo dosManifestosse concluiu exatamente com Breton, que pe m era do Romantismo, apesar das rplicasssmicas posteriores (na Frana, tivemos o manifesto frio, o eltrico, entreoutros...). Eu certamente poderia dizer com Badiou que a idade dos poetasterminou, mas apenas se aproveitando-me da permutabilidade dos trscomponentes da famosa trade: poesia / poema / poeta eu ngir acreditarque Badiou tambm est constatando o encerramento do Romantismo. Porm,como o leitor tem razo de conjecturar, se ele anuncia de certo modo,acrescenta a extino da possibilidade de transformao da poesia (nostermos que colocarei), da literatura e de vrias outras coisas conexas, por umexorcismo hiperblico que pretende acabar com o juzo da poesia, nesse caso,eu preferiria escrever: comea a idade doparablicoou da escrita num sentido

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    2/14

    82 Remate de Males 34.1

    profano aumentado, que aquele do poema transformado, de mais umavatar de m do mundo (Baudelaire) ou do pensar-falar-escrever: o mesmo.(DEGUY, 2007, pp. 59-60)1

    O livro no se chama, portanto, Manifesto pela poesia porque aidade dos manifestos teria se esgotado juntamente com uma grandepoca chamada Romantismo. O pitoresco da deciso, enunciada dentrodo prprio livro, sensvel no contexto do debate sobre a natureza dom da poesia, interpretado por Badiou (mas no por Deguy) como umaextino. Se no se trata de um manifesto, porque alguma coisa distintadeve ser levada em conta: em especco, para Deguy, a metamorfose dapoesia em outra coisa, ainda que presa na sinonmia do nome poesia.

    Por meio dessa metamorfose, caminhamos na direo do que ele chamade idade do parablico, uma curva que, ao levar em conta a ideia de umfundo, de m da linha, relana o movimento. Nesse sentido, o poema seriaum avatar do m do mundo. A deciso do autor tem a ver, portanto, comoutra viso do m, do que quer dizer o m e de como um poema podenome-lo.

    Evidentemente, a retrica da negativa pela qual Deguy descarta a(falsa) soluo do ttulo a mesma que insinua sua importncia. O livrono se chama Manifesto pela poesia, mas poderia (ou deveria) ter essenome, no fosse tudo aquilo que ele prprio descreve (o m dos manifestose da poesia como era entendida, a idade do cultural, da patrimonializaogeneralizada e da cultura turstica). E, se no um manifesto, no porqueo juzo da poesia acabou, mas porque se transformou.

    Essa situao retrica me parece particularmente interessante namedida em que sugere outras formas de descrever a mesma questo.

    A julgar casos como esse, vivemos uma poca para a qual o m dosmanifestos umproblema, ou passou a ser um problema. Se colocarmos

    entre parnteses a constatao histrica pura e simples de que a pocados manifestos se concluiu, teramos que admitir que texto de Deguy um manifesto (ou seja, algo que no passado chamaramos um manifesto);um manifesto que tem sua prpria retrica, suas estratgias especcas eque, detalhe importante, no pode mais ser assumido como tal. Em outraspalavras, o que a argumentao de Michel Deguy me sugere que talvezcontinuemos a escrever manifestos, mas de outra forma. O livro em questo um exemplo disso. Trata-se de um diagnstico amplo e argumentado dasituao contempornea da poesia e das artes, no qual o tnus de defesa

    1O livro foi publicado no Brasil, em 2010, pela Editora da Unicamp.

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    3/14

    Siscar 83

    da razo potica est, por assim dizer, claramente manifestoe s podeser comparado com a intensidade explcita do descontentamento queacompanha suas provas.

    Outro caso a que gostaria de me referir o de um ensaio de Haroldode Campos justamente, outro texto empenhado em estabelecer o mda idade dos manifestos. Trata-se de Poesia e Modernidade, de 1984(CAMPOS, 1997). Em resumo, o ensaio faz o levantamento das oposiestericas associadas militncia crtica que o poeta teve durante a poca doconcretismo, numa tentativa de suavizar seu carter opositivo e procedera uma espcie de dialtica histrica que resulta na proposio do conceitode ps-utpico para designar aquilo que sucede poca das vanguardas,

    ou seja, a poca da pluralizao das poticas possveis. No me detenhoaqui nos procedimentos complexos que sustentam essa argumentao.Remeto apenas ao fato de que, a propsito de constatar o encerramentodas vanguardas e da poca dos manifestos, Haroldo no deixa de escreveruma espcie de manifesto, mais enviesado, mas no menos efetivo que ode Deguy.

    O tom moralizante das advertncias no nal do ensaio (a poesia nodeve ensejar uma potica da abdicao, tornar-se libi do ecletismoregressivo etc.) indcio de um desejo de indicar linhas mestras, ainda

    que o texto seja, mais explicitamente, mais programaticamente, umadescrio histrica do contemporneo como poca. Porm, o maisrevelador talvez seja a recepo do ensaio, que ajudou a estabelecer aexemplo do que faziam os manifestos referncias importantes sobre ocontemporneo, inclusive graas a sua fora de interpretao histrica.Por essas razes, o texto um acontecimento relevante para se pensar asituao recente da poesia, bem mais do que por aquilo que simula oupretende constatar. Sua relevncia instaura-se, antes disso, a partir desuas estratgias e de seu funcionamento, que eu chamaria de legislador(ou performativo).

    Um indcio revelador da performatividade do ensaio (que, por assimdizer, realizao ps-utpico, no momento em que parece apenas fazer-lheo diagnstico) a contracapa do livro de poemas A educao dos cincosentidos(1985), do prprio Haroldo de Campos:

    Neste seu livro, Haroldo de Campos nos apresenta o momento ps-utpicode seu trabalho potico, que veio tomando corpo ao longo desses ltimos anos,mas que j se insinuava, aqui e ali, em alguns poemas esparsos dos anos 60 e 70.

    Poesia da agoridade, da construo do presente atravs da expropriao (e dareapropriao) crtica da tradio. (Grifos do autor).

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    4/14

    84 Remate de Males 34.1

    O livro de poemas, publicado pouco depois, praticamentecontemporneo de Poesia e Modernidade. As palavras grifadas na suacontracapa (ps-utpico e agoridade) so tambm os dois termos-

    chave do ensaio, vinculando diretamente o livro de poemas propostacrtica recm-divulgada. Ou seja, o poeta constata o ps-utpico naproduo crtica e, praticamente ao mesmo tempo, apresenta seu livro depoemas como ps-utpico. Naturalmente, a contracapa de um livro no assinada; ela faz parte do trabalho editorial, ainda que normalmente coma anuncia do autor. De todo modo, dicilmente seria possvel dissoci-lade uma estratgia mais ampla que declara a poca de ps-vanguarda parapoder mais efetivamente assumi-la como projeto.

    Textos como esse, que constatam o m de uma poca (no caso, maisespecicamente, a morte da vanguarda), a meu ver, so manifestos empotencial quem sabe os manifestos da nossa poca. Historicamente,para usar os termos da teoria dos atos de fala, funcionam tanto comoconstativos quanto como performativos, por um tipo de contradiomuito curiosa que permite ao texto encerraralguma coisa que ele prprioinaugura, de outra maneira. Muito mais do que virar a pgina da poca das

    vanguardas, por meio de seu suposto apagamento, o papel que tm o dedesloc-la, reatualizando seus instrumentos e suas possibilidades.

    Textos desse tipo no deixam de ter uma relao com o dispositivo davanguarda, quando insinuam sua insatisfao com o que acontece, quandosugerem (ainda que de forma mediada, cautelosa, corretiva) que as coisas

    vo mal: isso que motiva o projeto, o manifesto, a interveno crtica oucriativa. Se o tom do ensaio sereno, Haroldo no perde a oportunidade demarcar a distncia que mantm em relao paisagem sua contempornea.Embora o ps-utpico seja seu tema, no cita nenhum nome, nenhumaformao discursiva ps-vanguardista, remetendo, no fundo sepensarmos nos termos com que faz advertncias aos contemporneos a uma relativa frivolidade. Isso porque, a meu ver, o contemporneo emquesto no , para Haroldo, apenas ou exatamente um campo de refexo(aquele que o texto descreve e apresenta criticamente), mas tambm,ou antes, um campo de ao. Diagnsticos semelhantes, como sabemos,foram conrmados posteriormente por crticos, como Helosa Buarquede Holanda, que creditam vitalidade ao contemporneo plural da poesia,ao mesmo tempo em que vm a cerc-lo de restries e convocaesticas e crticas, passando nalmente a uma diversicao de objetos e de

    contextos que se assemelha ao resultado de uma frustrao2

    .

    2Penso, aqui, em especco, na Introduo ao livroEsses poetas: uma antologia dosanos 90(HOLLANDA, 1998).

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    5/14

    Siscar 85

    So procedimentos que aproximam a prtica da poca dita ps-utpica ao ethos da vanguarda. Em Haroldo de Campos, o ponto em queessa aproximao passa a ser visvel, como experincia de reiterao quase

    maqunica, a referncia a Mallarm como ponto de sutura do grandeleque da tradio; ou, mais literalmente, no caso, como ponto de equilbrioda alavanca com que o poeta pretende deslocar a leitura da tradio.Mallarm (especicamente, seu poema mais radical, Um lance de dados), de acordo com a gura usada por Haroldo, um ponto arquimdico, ouseja, um ponto de apoio. Deem-me um ponto de apoio e moverei a Terra,teria armado Arquimedes. Embora o poeta tenha muitas vezes refutadoa dimenso terica e histrica da originariedade, de teleologia orgnica,

    no h como no ver a uma espcie de arqu que cumpre a funo doprincpio, da fonte ou da causa. difcil no encontrar em Mallarm ena ousadia experimental do Lance de dados uma referncia fundadorada obra e do pensamento de Haroldo de Campos, seu ponto de apoio um autor que coloca os termos a partir dos quais, desde o concretismo,Haroldo pensa e escreve poesia. Desde a dita crise do verso, dentro daqual faria um salto qualitativo (segundo a Teoria da poesia concreta),Mallarm tornou-se manancial de guras fundamentais para a criaopotica haroldiana, como a da constelao.

    Uma evidncia dessa transformao aparece no miolo do ensaiosobre a poesia ps-utpica. Para Haroldo, a relao com o poeta francsorganiza toda a interpretao que se pode fazer da histria da poesia nosculo XX. A lgica de vanguarda no abandonada totalmente, poisMallarm continua sendo um precursor: num primeiro momento(nos anos 1950 e 1960, digamos), era um precursor graas percepodiferenciada da crise do verso; nos anos 1980, por supostamente j ter sidops-moderno, em relao a Baudelaire. Creio, entretanto, que o maisimportante assinalar como essa funo de alavanca, por meio da qual opoeta-crtico entende movimentar a tradio, aprofundada quando sefaz de Mallarm a medida historiogrca privilegiada das transformaesda poesia no sculo XX.

    Em Poesia e modernidade, Mallarm continua sendo o ponto emtorno do qual gira toda a histria da poesia moderna e contempornea:

    [...] toda uma histria da poesia uma Pequena Histria (Radical) da PoesiaModerna e Contempornea pode ser delineada, avaliando-se apenas asrespostas que poetas de vrias nacionalidades e lnguas (e os latino-americanos

    entre eles) teriam dado ao poema-desao de Mallarm, pergunta insinuadana breve introduo que o precede: sans presumer de lavenir qui sortira dici,rien ou presque un art. (CAMPOS, 1997, p. 256)

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    6/14

    86 Remate de Males 34.1

    claro que, em boa medida, a proposta visa legitimar oConcretismo, que tratado como ponto decisivo dessa leitura. Mas mais do que isso: alm de aprofundar o mbito no qual se dava essa

    importncia, que vale agora para toda a poesia do sculo, a formulaopassa a incorporar a prpria historicidade da sua leitura: a histria dapoesia do sculo XX no apenas a histria da influncia de Mallarm,mas a histria da leituradessa obra qual damos o nome de Mallarm,isto , das diferentes tentativas de dar sentido a esse corpus. No se trataapenas de uma histria da presena de Mallarm neste ou naquele poeta,neste ou naquele grupo, mas de uma histria de suas interpretaes, dafora com que essas interpretaes nos interpelam, nos requisitam, ao se

    transformarem em obras. Esse passo, no o d Haroldo explicitamente.Mas creio que dene bem a congurao especca de seu manifestops-utpico.

    Resumidamente, o ensaio d expresso crise do verso outraamplitude; ou melhor, vemos ali a tentativa de empreender uma passagemdo Mallarm da crise do versopara o Mallarm da crise da arte, da poesiacomo um todo. Se Mallarm relevante, hoje, se um precursor denossa situao ps-utpica, no porque ps-moderno, no sentido dotratamento que d questo do destino das formas ou das estratgias

    de comunicao potica3, mas no sentido da viso que tem do modernocomo um todo. E essa viso que, em Haroldo, se tornar tambm umasensibilidade quase proftica a viso da crise.

    Mallarm importante no por ter dado um tratamento hiperblico questo da comunicao, mas por ter captadoparabolicamente (segundo otermo de Deguy) o m do mundo da poesia. Se a identicao entre crisedo verso e extino da poesia , comumente, uma sinonmia jornalstica,trata-se, no caso de Haroldo, de us-la como forma de redramatizar aleitura de Mallarm, depois de esgotados seus esforos de vanguarda. ParaHaroldo, Mallarm tinha ou teve uma viso quase apocalptica da crise. dando relevo ao toposdo m do mundo da poesia que as estratgias dopoeta brasileiro passam, ento, a se associar compreenso da poesia dosculo XX e de sua prpria prtica potica.

    Retomo o texto de Haroldo nesse ponto. Fazendo uma longa citaode duas pginas de um texto de 1968, de sua prpria autoria, Poesia emodernidade nos coloca diante da questo do jornalismo e dos novos

    3Mallarm, autor de poemas formalmente inovadores (como Um lance de dados),tido como apreciador de jornais e de cartazes, teria procurado adaptar as estratgiascomunicativas da poesia aos novos tempos, diferena de Baudelaire, por exemplo, vistocomo formalmente conservador.

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    7/14

    Siscar 87

    meios de comunicao como matrizes das experincias mallarmeanas,representativas de uma nova concepo de civilizao, marcada pelasimultaneidade e (pela) interpenetrao (CAMPOS, 1997, p. 255). Ao

    apontar o fenmeno metalingustico, Haroldo associa o ato de poetar(com) a crise ou a possibilidade mesma do poema, tal como se o poetaestivesse assumindo em seu ofcio o dilema hegeliano e marxiano,perguntando-se sobre a morte ou o devir da poesia (CAMPOS, 1997, p.255); a concluso que se trata de uma poesia que tematiza seu fazer, e vaiganhando com isso mais especicidade e emancipao.

    Na economia do raciocnio desse texto de 1968, ainda em clima devanguarda, a percepo genrica da conscincia da crise da linguagem

    e da prpria crise da poesia ou da arte o pano de fundo para umdesenvolvimento claro da ideia de inovao, de especicidade, deemancipao da poesia. J as consequncias tiradas pelo ensaio de 1984,retomando os termos do de 1968, so outras; a nfase outra:

    Tome-se, ento, o poema-constelao de Mallarm como o ponto arquimdico, agrande sntese (ainda que clausulada por umpeut-tre) daquela potica universalprogressiva do Romantismo: como o poema que teria conseguido enfrentar oproblema da crise ou da impossibilidade da epopeia na Era Qumica, vale dizer,cindida, da Modernidade (j assim concebida F. Schlegel), e resolver o impasse

    em favor da poesia, pelo anncio de uma nova forma de arte potica, e no, comosupostamente se faria necessrio, atravs de uma nova pica de base prosstica,o romance, a moderna epopeia burguesa, o gnero por excelncia do mundoirreconciliado e abandonado pelos deuses, tal como, ao invs, prefere pensar o

    jovem Lukcs na esteira de Hegel. (CAMPOS, 1997, p. 256)

    O que, no ensaio de 1968, era uma reexo sobre a transformao dacomunicao e dos meios tcnicos que permitem poesia interagir com opresente, torna-se agora, mais decisivamente, necessidade de superao

    do impasse histrico da crise o modo como a obra pode resolv-loem favor da poesia. No so leituras incompatveis, evidentemente.Mas minha hiptese a de que o deslocamento do elemento enfatizadona leitura de Mallarm permite avaliar as transformaes da prpria obrade Haroldo de Campos, na passagem que ocorre para usar os termoshabituais entre a fase concretista e a fase ps-utpica. Muito mais doque a superao das velhas antinomias e a neutralizao da utopia, o que

    vemos em Haroldo a retomada e o deslocamento da arqu vanguardista:ou seja, a necessidade de refundao daquilo que vai mal; a percepo de

    que as coisas vo mal (tal como se apresentam do ponto de vista do desejotransformador) e de que, s dando conta disso, desse fundo (ainda quesem ter vista um fundo), seria possvel re-fund-las.

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    8/14

    88 Remate de Males 34.1

    Na formulao mais ampla, passamos da crise do verso ao impassedo pico, palavra que coloca em jogo a efetividade da fora potica defundao, que eu aproximaria a seu carter cerimonial (para usar o

    termo de Mallarm). Dizendo de outra forma, passamos de uma nfasenas transformaes do versopara uma nfase na profundidade da crise.Em Haroldo, essas duas nfases no se colocam em relao de oposio,mas servem como extremos de uma alavanca com a qual, a meu ver, opoeta-crtico promoveu, ao longo do tempo, seus prprios deslocamentos deslocando primeiramente a resistncia da crise com a fora de apoiodo verso e, em seguida, deslocando a resistncia do verso com a fora deapoio da crise.

    Se, passando a sua produo potica, abordarmos especicamente altima fase da poesia de Haroldo, perceberemos que a declarao do mda utopia convive, no exatamente com uma liberao das possibilidadescriativas, mas com a multiplicao dos signos que remetem questocerimonial da poesia. Como se Haroldo buscasse esse novo ponto deapoio, sinalizando uma virada tanto na teoria quanto na poesia.

    Lembremos que, juntamente com a concluso do longo projeto deGalxias(publicadas em 1984, mas iniciadas na dcada de 1960), o poetarev os termos da militncia anterior, promovendo um retornoao verso

    livre e aprofundando o carter pessoal das referncias poticas. Em Aeducao dos cinco sentidos, de 1985, Haroldo no deixa de sinalizar essaalterao de rumo e de poca, j na contracapa, qual me referi. Mas o faztambm remetendo necessidade de manter viva a entelquia no arco

    voltaico dos cinquentanos (CAMPOS, 1985, p. 29). A poesia, eletrizada, chamada de fogo, e no de forma, ou gestalt. Ainda que continuetrazendo traos caractersticos da escrita de Haroldo, como a preciosidade

    vocabular e as frases extremamente seccionadas, ou tranadas, segundoseu prprio termo, o livro faz tambm algumas declaraes de passagem.

    Anlogo ao Pstudo, de Augusto de Campos, por exemplo, o curto poemaMinima Moralia poderia ser uma delas:

    j z de tudo com as palavrasagora eu quero fazer de nada

    (CAMPOS, 1985, p. 25)

    Texto talvez o mais leminskiano de Haroldo, o poema joga com a

    ideia de esvaziamento dentro da qual, numa sintaxe mallarmeana, o nadaassume a importncia.

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    9/14

    Siscar 89

    A partir da, alguns temas ou traos j presentes na obra anteriorpassam a ganhar importncia organizadora. O topos da viagem, porexemplo, que j era decisivo em Galxias, desloca-se e se aprofunda,

    numa espcie de aventura global, na qual o poeta se mostra como visitantede lugares e culturas. Sua passagem por elas, ao contrrio do turismo queDeguy (2007) chama de cultural, uma tentativa de assumir as marcasda passagem, de constituir uma potica do turismo. Em Crisantempo(1998), por exemplo, temos sees de poemas escritas no Japo, nos EUA,em Israel, em Tenerife. A ambio planetria desse livro tem paralelocom a ambio constelar de Galxias, mas enfatiza mais especicamentea pluralidade das aproximaes, em detrimento de uma ideia de sntese

    experimental. No por acaso, Odisseu, o velho viajante, uma das gurasdesse livro.Outro tema importante na poesia de Haroldo dessa poca

    justamente o do herosmo do poeta, ou o do herosmo mtico associado poesia. As referncias epopeia so decisivas. Como sabemos, o poeta sededicou, no nal de sua vida, traduo de textos de Homero e de outrosautores da antiguidade. Esse herosmo representado, ainda, por outrosgrandes mitos, como Fausto e Prometeu, ou ainda por nomes associados grandiosidade literria da tradio (como Dante, Goethe, Hlderlin),

    tratados como referncias ou modelos para a situao presente, semdesconsiderar, evidentemente, o efeito de ironia que a vai. A simulao daterza rima, emA mquina do mundo repensada(2000), apenas o aspectomais visvel dessa tentativa de alinhar-se hbris dos grandes desaosmilenares personicados pela poesia; so ali evocados Dante, Cames,Drummond, entre outros, colocados em paralelo com o desenvolvimentoda fsica moderna e com suas diversas cosmogonias4.

    Se voltarmos a Crisantempo, veremos que a prpria iconograa dolivro aponta para o universo clssico, ao qual tambm se associa (aindaque menos exemplarmente do que nA mquina do mundo repensada) omtico e o mstico da cincia contempornea. Tradues da antiguidadeclssica greco-romana so inseridas como sees do livro, aspirandoserem lidas como parte da obra de seu autor, o qual, segundo o livro,uma outra escala [...] rege. A escala em questo a da grandeza, ados grandes desaos, a das grandes pocas, a dos grandes poetas. Essahbris haroldiana traduzida de modo exemplar no texto introdutriodo editor e amigo Jac Ginzburg, que apresenta o poeta a desdobrar a

    4 O poeta assume explicitamente esses grandes desaos ao incluir-se na notabibliogrca que a eles remete, ao nal do volume.

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    10/14

    90 Remate de Males 34.1

    sua maturidade potica, comparando-o a um odisseu das lnguas e daslinguagens, [que] percorre um vasto mar de inspiraes e transcriaes.Na esteira do ps-utpico, dessa potica de escombros, estaria a tarefa de

    transverter Babel no cone de uma reconquistada interlocuo universal(apud CAMPOS, 1998).

    Dando crdito ao que diz Ginzburg, a ambio no pequena e seucontexto assumido um mar de escombros pelo qual o temerrio Odisseucircula. Com efeito, creio que esse m do mundo algo mais do que umtema qualquer da fase ps-utpica de Haroldo. As imagens da crise, daimpotncia, do m se associam s mitologias da cincia contemporneapelas quais o viajante circula, a m de compor sua viso parablica com

    ambio planetria. O velho poeta j viu tudo (meninos eu vi) e nosrelata: Meninos eu vi uma expresso repetida por um poema em queHaroldo associa o esquema mstico da viso honra de j ter visto muitacoisa e ombreado os grandes. A nave na velhice vai sem rumo, sem dadosou acaso, na direo do m da linha, que tambm o m do mundo(CAMPOS, 1998, p. 47). E pedidos mais comezinhos de paz na velhice,em especial para que os jovens poetas no lhe enviem manuscritos,no chegam a quebrar a solenidade cerimonial da situao. A msicaplanetria dos novos tempos leva interrogao: placentria / rstica /

    musa quem te ouve?. O poema escrito em lngua morta (CAMPOS,1998, p. 39).

    Creio que a imagem que congrega, em Haroldo, todos esses elementos(da viagem, do herosmo e da relao com o m) a do pico Odisseu, oastucioso que tambm o ousado, o soberbo, exemplo mximo da hbris.Na possibilidade do herosmo de Odisseu est depositada a capacidadefundadora da poesia ou, em todo caso, sua funo cerimonial. Um dospoemas-chave de Haroldo, nesse sentido, Finismundo: a ltima viagem(CAMPOS, 1998, p. 53-59), poema em que o ltimo Odisseu uma gurada condio do poeta, diante da nova viagem:

    I.

    ltimoOdisseu multi-ardiloso no extremo

    Avernotenso limite re-Prope a viagem.

    Trata-se de uma volta de Haroldo ao poema relativamente longo, desopro pico, que teria plena realizao emA mquina do mundo repensada.O poema retoma a questo tradicional da morte de Odisseu, no contada

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    11/14

    Siscar 91

    pela Odisseia, mas apenas referida, graas profecia de Tirsias (thnatoseks halos, morte que provm do mar salino, na traduo de Haroldo). Otema da morte de Odisseu reaparece, de diferentes formas, em Dante, em

    Tennyson, em Kazantzakis. Como em Tennyson e Kazantzakis, que chegoua escrever uma continuao da Odisseia, muito prxima da mtrica e daretrica homrica, Haroldo aborda o mtico silncio relacionado mortedo heri, retomando-o a partir da audcia de reiniciar a viagem.

    Na primeira parte do poema, rechaando o regao de Penlope, oOdisseu de Haroldo lana sua quilha s ondas rumo ao no-mapeado/ Finismundo, rumo ao que est alm do limite, ali / onde comea ainfranqueada / fronteira do extracu. Por conspirao dos deuses, a nave

    naufraga e sobram apenas as rasuras das guas. O naufrgio de Um lancede dadospode assim encontrar sucedneo no lugar mtico do naufrgiode Odisseu.

    A segunda parte do poema, entretanto, acrescenta um problema.Passamos do tempo verbal do passado e de um tom mais pomposo paraum tempo verbal presente com tom mais coloquial. Agora, Odisseu umUrbano Ulisses designao que no deixa de remeter ao Ulisses, de

    Joyce, ou, em ltima instncia, situao degradada do herosmo, umherosmo sobrevivido ao mito. Pode-se, ento, perguntar se a segunda

    parte no permite reler a primeira como uma espcie de herosmohistoricamente revoluto. Odisseu aquele que perdeu os companheiros,como diz o poema: o passado concludo poderia ser visto como o m docoletivismo vanguardista, por aluso ao concretismo. A hbris astuciosa,sobrevivendo ao mito do acaso computadorizado, j agora se pergunta seno est diante de seu epito.

    Priplo?No h. Vigiam-te os semforos.

    E as sereias tornaram-se sirenes. Como se o m da vanguarda,correspondendo capitulao da hbris (e recusando ao mesmo tempoa consolao da pompa fnebre, de alimentar-se da prpria glria),instalasse uma poesia-epito, uma poesia do m do herosmo potico.

    Uma tenso se instaura, ento, entre as duas instncias do poema,uma mais abertamente exposta ao campo do herosmo, outra lherecusando a possibilidade. Pergunto-me se suciente interpretar adiferena como efeito de uma sucesso histrica, comentada pelo poema.Mesmo que assim fosse, seria preciso reformular a questo, reinstalando-ana perspectiva da retomada do herosmo trgico ou irnico como fato daobra de Haroldo de Campos. A viso do paraso, transformada em postal

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    12/14

    92 Remate de Males 34.1

    do den, o que contenta (segundo a palavra do poema) o poeta e seuhipocondraco crtico / leitor. A poca de ps-vanguarda uma poca emque o m da vanguarda se confunde com as imagens do m da poesia na

    qual a falta de efetividade da poesia faz da hbris conquistadora um restocom o qual, ento, supostamente nos contentamos. Se, como diz o poeta,na explicao que faz do poema em nota, a segunda parte uma parfraseirnica (da primeira), projetando (o naufrgio de Mallarm) no cenriocontemporneo (CAMPOS, 1998, p. 353), -nos permitido tambm ver a,nessepathosda crise, o modo como a obra de Haroldo se permite ousar,reincidir, sulcar mais uma vez o tempo presente.

    O efeito gangorra da alavanca haroldiana voluntarioso, prolco,

    vertiginoso. O Haroldo das pragas e do m (que se manifestamexemplarmente no livro pstumo Entremilnios, de 2009) tambmaquele para quem o desejo do pico, de comunidade, o desejo de mobilizara crise a seu favor o mais evidente. Denido pela viva Carmen de P.

    Arruda Campos (que reuniu os poemas de Entremilnios) como obra deum Odisseu que tinha pressa, muita pressa, o livro se assemelha a umtestamento potico, que retoma e organiza as vertentes da ltima fase desua poesia: as viagens, o pico, a traduo, os acontecimentos polticos, odilogo com as artes plsticas. A musa no se medusa: / contra o caos /

    faz msica (CAMPOS, 2009, p. 65). O tom de um sagrado / furor, queconrma a citao de Benjamin, segundo a qual o desespero o motor daesperana; o portal no novo milnio (como diz o poema chamado 2000) sustentado por duas pilastras: a do princpio-esperana e a do moira-desespero (CAMPOS, 2009, p. 59). O patriarca, com o gldio em punho,identicando-se com o sbio bblico do Eclesiastes, fere o contemporneocom sua hbris, como um anjo-esperana, fazendo de si mesmo o retratodaquele-que-disse, ou seja, que legislou performativamente (fa- / lei)

    velho mestre no comando do navio da poesia.Se a ambio parece excessiva, creio que ela se sustenta em um

    dispositivo que ganha o primeiro plano na poesia ps-utpica de Haroldo:a autorreferncia do autor enquanto gura pblica. Esse dispositivo omodo que a obra de Haroldo de Campos encontra para se sustentar diantedo paradoxo da crise, que faz de cada poeta ps-utpico, ao mesmo tempo,o ltimo Odisseu e um impossvel Odisseu. Se Haroldo valoriza o poetado poeta, aquele para quem a prpria poesia sua matria principal, no sem se colocar na situao do poeta de si prprio, poeta de seu nome

    prprio, de sua efgie pblica. Algo como um tom memorialstico refora aexposio de momentos da histria pregressa, compondo um mosaico deremisses no qual reconhecemos no apenas viagens, lugares e situaespessoais, mas tambm encontros e descries de intelectuais, cientistas e

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    13/14

    Siscar 93

    artistas renomados com quem o poeta teve contato. Chamado a escreverregularmente sobre as grandes questes do contemporneo, inclusivepolticas (a exemplo da questo dos sem-terra ou das candidaturas do PT

    presidncia), Haroldo escreve textos em verso e se coloca, igualmente,como personagem pblico que registra sua participao e seus pontos de

    vista. Esse vnculo entre o poema e o poeta reforado, ainda, pelas notasde contextualizao (pouco comuns em livros de poemas) que povoam

    A educao dos cinco sentidos e Crisantempo, mas que no deixam deaparecer tambm emA mquina do mundo repensada, na forma de umabibliograa temtica, no nal do livro.

    A estratgia (mesmo quando transforma o poema em recado para

    desafetos ou para os fs, ou inclui biograa e fotos pessoais no nal dovolume de versos) no pode ser julgada apenas do ponto de vista moralista,como fenmeno narcsico, nem tampouco, por mera e simtrica inverso,como prerrogativa conquistada e merecida pelo velho artista de renome.Caberia, em primeiro plano, explicar suas razes e denir sua funo.

    Esse o passo mais difcil, mas tambm o mais decisivo. Creio quepoderamos entender a hbris ou a soberba haroldiana dessa ltimafase como uma espcie de suplemento daquilo que se esvazia com apluralizao das poticas possveis reivindicada pelo ensaio de 1984. A

    autoridade e, portanto, a legitimidade histrica daquilo que excludocomo elemento datado, descartado por anacronismo, volta como traode estilo signicativo. Entregue diversidade de opes possveis e necessidade de estabelecer um lugar dentro de sua ideia de agoridade,a poesia precisa de novos pontos de referncia, de novos pontosarquimdicos, novas audcias que a legitimem.

    Se a ltima poesia de Haroldo as reencontra na antiguidade, na epopeiada velhice, da volta de Odisseu ao lar rico de seus despojos de guerra, naperspectiva da reapropriao de seus bens, esposa, empregados, animais, seu Odisseu o Odisseu que parte, que reinicia a viagem (o que j erao caso no livro-viagem Galxias); porm, mais especicamente, trata-se agora do Odisseu da morte no narrada, o Ulisses do contemporneorebaixado, que rel Mallarm a partir do naufrgio e da crise. Odisseuse identica, a partir dali, com o mestre ancio do poema de Mallarm,a personicao do prprio verso, hesitando sobre o navio entregue diversidade, ou probabilidade, que lhe advm de seu naufrgio.

    Ao colocar-se nessa posio, autorizado pelas cs e pela narrativa

    das realizaes pregressas, Haroldo assume uma atitude historicamenteativa. O poeta sente os cataclismos dos quais feita a contemporaneidadee com eles pretende novamente singr-la. Colocar-se na posio do ltimopoeta, do ltimo homem, ou seja, daquele que sofre com a fragilidade da

  • 8/11/2019 Marcos Siscar Sobre Haroldo de Campos

    14/14

    94 Remate de Males 34.1

    relao com o m, seu pacto e sua estratgia. Ao mesmo tempo em queessa posio lhe permite sustentar uma viso crtica do contemporneo,coloca-o na situao ambivalente ou incerta de no ter a quem legar

    (legs en la dsaparition; legado na desapario, diz Um lance de dados;MALLARM, 1998) o testemunho cabal de seu prprio m. A crise, aqui, a gura usada pela poesia para metamorfosear-se em si mesma, ou seja,mortal, ou ainda, humana: naufrage cela direct de lhomme / sans nef(naufrgio isso direto do homem / sem nau; MALLARM, 1998).

    Desse conito, resta em Haroldo, em substituio militncia, nafase ps-utpica de sua poesia, um tom de profecia, de sagrado furor,relacionados ao desespero e ao apocalipse. No se trata, segundo entendo,

    de ver a um abandono da poesia, aps ter declarado o m da ideologia devanguarda, mas um convite a retrilhar o moderno para alm da leitura queas vanguardas nos ofereceram dele, ou seja, daquilo que nos habituamosa entender como poesia. Talvez por isso Haroldo de Campos seja maismallarmeano do que poderia admitir.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CAMPOS, Haroldo.A educao dos cinco sentidos. So Paulo: Perspectiva, 1985._____. O arco-ris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997._____. Crisantempo. So Paulo: Perspectiva, 1998._____.A mquina do mundo repensada. So Paulo: Ateli, 2000._____. Entremilnios. So Paulo: Perspectiva, 2009.

    DEGUY, Michel. Rouverture aprs travaux. Paris: Galile, 2007._____. Reabertura aps obras. Trad. Marcos Siscar e Paula Glenadel. Campinas: Editora

    da Unicamp, 2010.

    HOLLANDA, Helosa Buarque de. Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro:Aeroplano, 1998.

    MALLARM, Stphane. Oeuvres compltes, t.1. Org. Bertrand Marchal. Paris: Gallimard,1998.