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Marcos Vinício Chein Feres – Vice-Reitor · seus congêneres estrangeiros ... não há entre ciência e Filosofia do Direito uma ruptura, ... Sem o alargamento de horizontes proposto

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Júlio Maria Fonseca Chebli – Reitor Marcos Vinício Chein Feres – Vice-Reitor

Instituto de Ciências Humanas

Altemir José Gonçalves Barbosa – Diretor Ricardo Tavares Zaidan – Vice-diretor

Departamento de Filosofia

Juarez Gomes Sofiste – Chefe de Departamento Mário José dos Santos – Coordenador do Curso

Antônio Henrique Campolina Martins – Diretor da Revista

Faculdade de Direito Aline Araújo Passos – Diretora

Raquel Bellini de Oliveira Salles – Vice-diretora Denis Franco Silva – Coordenador do PPG em Direito e Inovação

Vicente Riccio Neto – Vice-coordenador do PPG em Direito e Inovação

Comissão executiva

ISSN: 1414-3917

Antonio Henrique Campolina Martins – Editor

Marcos Vinicio Chein Feres – Co-Editor Clinger Cleir Silva Bernardes – Editoração Eletrônica

Camila Fonseca de Oliveira Calderano – Secretária

Conselho Editorial

Antonio Cota Marçal (UFMG) Bruno Amaro Lacerda (UFJF) Gustavo Arja Castañon (UFJF) José Henrique Santos (UFMG)

Luciano Caldas Camerino (UFJF) Luciano Donizetti da Silva (UFJF) Manoela Roland Carneiro (UFJF)

Nathalie Barbosa de La Cadena (UFJF) Pedro Henrique Barros Geraldo (Universidade de Montpellier)

Paulo Afonso Araújo (UFJF) Ricardo Vélez Rodríguez (UFJF)

Roberto Markenson (UFPB) Ronaldo Duarte da Silva (UFJF)

Thereza Calvet de Magalhães (UFMG) Wolfram Hogrebe (Universidade de Bonn)

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Sumário

Editorial Bruno Amaro Lacerda

1

Artigos

A autonomia da razão e seu sentido teológico: o debate entre Habermas e Ratzinger sobre razão e religião Jörg Dierken

6

Fundamental Rights (derecho a la salud) y Business: caso Colombia y Latinoamérica Jaime Gañan

22

Hermenêutica filosófica de Heidegger Cleyson de Moraes Mello

41

A parcialidade do Juiz nas concepções de Duncan Kennedy e de Richard Posner: uma breve exposição Mariana Azevedo Comello Oliveira

55

Pessoa, justiça e historicismo axiológico Bruno Amaro Lacerda

78

Animais não são coisas Júlia Martins Rodrigues Denis Franco Silva

86

Direito e divergência teórica: considerações a partir de Heidegger Lucas Salgado Macedo Gomes de Carvalho

100

Kant e o historicismo axiológico: uma análise ontognosiológica da pessoa enquanto valor-fonte Rafael Bezerra de Souza Moreira

121

Direito à saúde e patente de medicamentos: Da funcionalização das patentes à superação de um dilema Thaís Fernanda Tenório Sêco Fellipe Guerra David Reis

137

RESENHA

Resenha da obra A essência do Estado de Direito de David M. Beatty Bruno Goulart Cunha

160

Número XVII – Volume II – dezembro de 2014

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1

Editorial Bruno Amaro Lacerda1

Michel Villey, recordando a frequente “alergia” que alguns

juristas têm da Filosofia do Direito, disciplina não raro considerada

como “inútil” por muitos deles, explica que esse fato exige que ela tenha

de ser sempre justificada (1975, p. 3-4). Por isso, não basta que se diga

o que ela é; também é necessário apresentar as razões pelas quais

deveríamos empregar tempo e esforço no seu estudo. Assim, o que é a

Filosofia do Direito? E para quê Filosofia do Direito?

Tradicionalmente, costuma-se distingui-la da ciência (ou

ciências) do Direito. Enquanto as ciências jurídicas (ciência do Direito

Constitucional, do Direito Civil, do Direito Penal etc.) são estudos

parciais e especializados, destinados a descrever certos grupos de

normas e condutas, a Filosofia do Direito tem por meta compreender o

fenômeno jurídico como um acontecimento dotado de validade

universal.

A ciência do Direito tem por objeto um determinado sistema

jurídico (como o brasileiro, o francês, o italiano) ou, de forma mais

específica, seus ramos ou subsistemas. Sua pergunta fundamental,

como sugere Francisco Puy, é: “como funciona o direito?” (1972, p.

153). Pense-se, por exemplo, no trabalho doutrinário do civilista. Este

consiste em estudar os principais institutos do Direito Civil (como a

posse, o comodato, o testamento etc.) e buscar sua melhor interpretação

e aplicação. Seu interesse concentra-se nos modos de funcionamento do

Direito Civil. É claro que lhe pode interessar, também, compará-lo com

1 Professor Adjunto da UFJF. Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG.

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seus congêneres estrangeiros (realizando o chamado Direito

Comparado), ou mesmo fazer críticas mais contundentes à sua

disciplina pelo confronto com outras ciências (como a Psicologia ou a

Economia). Porém, na condição de civilista, não lhe interessa investigar

questões como: o que é o Direito? Qual a relação do homem com o

Direito? O Direito vigente é sempre justo? Estas são questões

tipicamente filosóficas.

Com efeito, o filósofo do Direito, diferentemente do jurista

(civilista, penalista, tributarista etc.), não está primordialmente

interessado em compreender e aplicar o Direito positivo ou uma parte

dele (um ramo ou subsistema), mas em pensar o fenômeno jurídico em

termos universais. Como afirma Del Vecchio: “A diferença entre

ciência e Filosofia do direito está precisamente no modo onde uma e

outra consideram o direito: a primeira em particular, a segunda em

universal” (DEL VECCHIO, 1950, p. 1). Mas o que se quer dizer com

“universal”?

Simplesmente que a Filosofia do Direito se ocupa do seu

objeto como algo não circunscrito a certo povo ou época, mas como um

fenômeno que existe para todos os povos, em qualquer tempo e lugar,

pois está umbilicalmente ligado à natureza humana. O interesse do

filósofo do Direito, no entanto, não está em todas essas culturas e

épocas, mas naquilo que em todas estava presente como juridicidade.

Há muitas diferenças, por exemplo, entre o Direito grego do tempo de

Platão e o Direito brasileiro atual. O foco da Filosofia do Direito não

são essas diferenças, mas os pontos de contato. Assim, quando

percebemos que ambos os sistemas, bem como outros que existiram ao

longo da história, se amparam em uma ideia de justiça, podemos ver

nisso uma constante e formular perguntas que problematizem essa

relação em geral, desconsiderando as particularidades, tais como: o que

é a justiça? O Direito se fundamenta na justiça? A quem e quando é

devido um tratamento justo?

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Estas perguntas, embora possam ter se originado da

comparação entre duas ordens jurídicas de épocas distantes, as

ultrapassam para problematizar o Direito como uma realidade sempre

presente, que acompanha o caminhar do homem no mundo. Nelas está

embutida a busca por um “panorama integral do jurídico”, pela sua

“verdade última e completa” (RECASÉNS SICHES, 1934, p. 138). É

por essa razão, diz Sergio Cotta, que a investigação filosófico-jurídica

se constitui como um saber radical, pois problematiza o Direito em

geral, interessando-se não por um sistema ou instituição espaço-

temporalmente determinado, mas pelo lugar que o Direito ocupa na

existência humana, ou seja, pelo Direito universalmente pensado

(COTTA, 1991, p. 15).

O mesmo autor, em outra obra, adverte que, embora distintas,

não há entre ciência e Filosofia do Direito uma ruptura, mas uma

relação de continuidade. A diversidade entre as duas formas de

conhecimento não está no objeto (que é o Direito, para ambas), mas no

horizonte ou referencial. Ao não se limitar pelas normas postas e pelas

instituições socialmente fixadas em sua época, enfrentando as árduas e

disputadas questões universais da juridicidade, o filósofo estabelece

para si um horizonte mais amplo que o do jurista:

Este horizonte é aquele da existência e da experiência humana

na sua globalidade: o direito é tomado em consideração como atividade

humana, como uma modalidade de expressão da existência e da

experiência do homem. Colocado neste horizonte último, o direito

revela-se então conexo com as várias exigências e formas do agir

humano em geral, com a complexa natureza da atividade humana e,

portanto, em definitivo, com a estrutura mesma do homem (COTTA,

1984, p. 71-72).

Essa ampliação de horizontes, porém, não deve ser

interpretada como indicativa de uma superioridade da Filosofia do

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Direito sobre a ciência do Direito. A relação é mesmo de continuidade,

pois, como diz Enrico Opocher, ambas as formas de conhecimento

pressupõem-se reciprocamente na vida jurídica. Não há sentido refletir

sobre a universalidade do Direito a não ser partindo de um Direito

positivo que se quer compreender, justificar ou criticar. Do mesmo

modo, a ciência jurídica só encontra sua razão última de ser na

explicitação dos seus fundamentos (OPOCHER, 1951, p. 13-14).

Filosofia e ciência do Direito são, portanto, igualmente necessárias.

Para Del Vecchio, três são as investigações da Filosofia do

Direito. A primeira, chamada “lógica”, busca compreender o que é o

direito, determinando o seu conceito universal; seu foco são os

elementos comuns dos diferentes sistemas jurídicos, aquilo que

poderíamos chamar de “essência do direito”. A segunda, denominada

“fenomenológica”, perquire as causas históricas do direito, ou seja, os

fatores que possibilitam o aparecimento e a consolidação das ordens

jurídicas nas sociedades humanas. Por fim, a terceira, chamada

“deontológica”, parte da ideia de que o homem não trata o Direito como

um limite insuperável, mas, ao contrário, o avalia, contesta e reforma.

Como todos os indivíduos possuem um senso de justiça, é razoável que

se perguntem sobre como o Direito deveria ser para se tornar mais justo,

adequado, efetivo etc. (DEL VECCHIO, 1950, p. 2-4).

Creio que já temos, agora, elementos suficientes para justificar

o estudo da disciplina. Sem o alargamento de horizontes proposto pela

Filosofia do Direito, ficaríamos limitados ao Direito posto e nos

faltariam as categorias teóricas necessárias para avaliá-lo e, se

necessário, retificá-lo. Sobrariam conhecimentos dogmáticos e

pragmáticos, mas nos faltaria a ideia de Direito, sem a qual estaríamos

condenados a obedecer ao Direito vigente sem maiores

questionamentos.

Em certa medida, isso poderia ser até mais confortável:

interpretar e aplicar o Direito sem problematizá-lo com radicalidade nos

ofertaria a segurança das respostas já dadas. Por outro lado, seria

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contraditório, pois o Direito é obra humana, e, como tal, não pode ser

cumprido desvinculado da liberdade pessoal. Abrir mão da reflexão

filosófica é renunciar à possibilidade de enxergá-lo como algo mais que

um complexo de normas, é não se permitir vê-lo também como uma

tarefa ao alcance de cada um de nós.

REFERÊNCIAS

COTTA, Sergio. Il diritto nell’esistenza. Linee di

ontofenomenologia giuridica. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1991.

COTTA, Sergio. Introduzione alla Filosofia del Diritto.

Torino: Giappichelli, 1984.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lezioni di Filosofia del Diritto. 7.

ed. Milano: Giuffrè, 1950.

OPOCHER, Enrico. Lezioni di Filosofia del Diritto. Raccolte

ad uso degli studenti dell’Assistente Dott. Luigi Caiani. 2. ed. Padova:

Cedam, 1951.

PUY, Francisco. Filosofia del derecho y ciencia del derecho.

Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v.

XLVIII, 1972, p. 145-171.

RECASÉNS SICHES, Luis. Los temas de la Filosofia del

Derecho en perspectiva histórica y visión de futuro. Barcelona:

Bosch, 1934.

VILLEY, Michel. Philosophie du droit. Définitions et fins du

droit. Paris: Dalloz, 1975.

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A AUTONOMIA DA RAZÃO E SEU SENTIDO TEOLÓGICO: O DEBATE ENTRE HABERMAS E RATZINGER SOBRE

RAZÃO E RELIGIÃO*

Jörg Dierken**

RESUMO: Neste artigo, o reconhecido professor e pensador alemão nas áreas da teologia, filosofia

e ética, Jörg Dierken, procede a uma análise e comparação meticulosas entre o pensamento de Josef

Ratzinger e Jürgen Habermas no tocante ao tema da autonomia da razão na modernidade, com a

concomitante exploração de seu possível sentido teológico. Sem identificar-se, em última análise,

com nenhuma das duas perspectivas, Dierken implicitamente oferece uma alternativa de leitura

geral no que concerne ao debate sobre “fé e razão” protagonizado há alguns anos pelos dois

pensadores constantes do título. Nisso o autor retoma e desenvolve sobretudo o conceito de

subjetividade gestado pelo idealismo alemão, indagando sobre seu sentido de transcendência.

Apenas a título de esclarecimento, os tradutores deixam claro aos leitores que neste artigo (o Papa)

Josef Ratzinger é abordado de maneira crítica e como pensador, à parte de sua posição de autoridade

no âmbito do catolicismo.

Palavras-chave: Modernidade; Razão; Religião; Subjetividade; Jürgen Habermas; Josef Ratzinger

ABSTRACT: In the following paper the by now renowned German professor and thinker coming

from the areas of theology, philosophy, and ethics, Jörg Dierken, proceeds to offer a detailed

analysis of, and comparison between, the thought of both Josef Ratzinger and Jürgen Habermas

concerning the broader issue of the autonomy of reason in modernity – with an ensuing exploration

of its possible theological meaning. Though in the last analysis not following either of the suggested

approaches, Dierken implicitly offers an alternative general reading of the debate on “faith and

reason” which, some years ago, had both thinkers as protagonists. He does this by reoccupying and

developing further the concept of subjectivity brought forward by German idealism as it opens up

a sense of transcendence. Just as an aside, the translators want to make clear that in this paper (Pope)

Josef Ratzinger is dealt with in a critical manner and as a thinker, quite apart from his position of

authority in the context of world Catholicism.

Keywords: Modernity; Reason; Religion; Subjectivity; Jürgen Habermas; Josef Ratzinger

* Tradução de Luís H. Dreher (UFJF-CNPq-PPM IV) e Davison Schaeffer de Oliveira (Doutorando na

área de concentração “Filosofia da Religião”, PPCIR-UFJF). Publicação original: DIERKEN, Jörg. Die Autonomie der Vernunft und ihr theologischer Sinn. Zur Habermas-Ratzinger-Debatte über Vernunft und Religion. In: SCHWEITZER, Friedrich (Org.) Kommunikation über Grenzen. Kongressband des XIII. Europäischen Kongresses für Theologie 2008 in Wien. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 2009, p. 644-656.

** Professor (Teologia Sistemática e Ética) na Faculdade de Teologia da Martin-Luther-Universität Halle-Wittenberg, RFA.

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1 - Razão e religião (I), ou: construindo alianças via “patologias” e “descarrilamentos” da

modernidade

A história da relação entre razão e religião oferece material para uma hermenêutica da suspeita.

Isso vale em todo caso para a modernidade ocidental – com precedentes na história que se

estendem até os inícios, na Antiguidade, da crítica do mito pela tradição de razão europeia. O

mais tardar com as primeiras experiências modernas de conflitos confessionais sangrentos

dentro de uma ordem social religiosamente fundada, mas também com o sucesso da pesquisa

da natureza e da técnica pela ligação entre matemática e empiria aquém do dogma, passou a

crescer a distância da razão frente à religião. Aqui, o espectro se estende desde a recusa

polêmica da religião como obscurantismo, superstição e fraude piedosa até estratégias de

demarcar crenças purificadas enquanto veículo de ensino e progresso. Por seu turno, da parte

da religião, não faltam observações mordazes de crítica da razão – apesar das grandes sínteses

entre platonismo – respectivamente, aristotelismo – e cristianismo na Antiguidade tardia e na

Idade Média. Mas fundar a fé sob o signo do absurdo deixa após si marcas permanentes, e,

quando até mesma a independência divina diante de seus próprios decretos passa a operar como

comprovação do poder absoluto de Deus, tem-se por resultado a divindade e a racionalidade

entrando em concorrência. E depois que os conflitos entre razão e religião alcançaram seu zênite

no contexto do Esclarecimento (Aufklärung), o significado do tema parecia desvanecer-se para

todo um ciclo de cultura. Uma secularidade cada vez mais auto-evidente e uma racionalidade

científica distante da religião superaram em muito, do ponto de vista de seus efeitos, as grandes

sínteses pós-iluministas entre religião e razão especulativa.

Por isso tudo chama bastante atenção quando, do quadrante eclesiástico mais

proeminente, veementemente se acentua a concordância entre razão e religião. A ofensiva

midiática de Joseph Ratzinger, quer como cardeal1, quer como Papa, conjurou repetidas vezes

uma unidade entre cristianismo e razão. No seu cerne, ambos seriam inseparáveis, porque “Deus

mesmo” enquanto “fundamento racional originário de todo real, [enquanto] razão criadora a

partir da qual surgiu o mundo e no qual ele se espelha”, é “logos” e, com isso, “sentido, razão

e palavra” 2. As fontes do cristianismo não seriam forças irracionais como poesia ou política –

1 E prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

2 Cf. RATZINGER, J. Cardeal. Auf der Suche nach Frieden, in: FAZ [=Frankfurter Allgemeine Zeitung], 11.06.2004. Formulações semelhantes encontram-se já no livro de RATZINGER, J. Cardeal. Wendezeit für Europa? Diagnosen und Prognosen zur Lage von Kirche und Welt, 2. ed.

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tampouco como mito, magia ou sentimento. Pelo contrário, sua origem convergiria, na

Antiguidade, com o esclarecimento racional3. Esta “correlacionalidade entre razão e fé, razão e

religião”, permitiria e exigiria hoje a discussão com “patologias” de ambos os lados4. Estas

dizem respeito, por um lado, a uma razão reduzida ao cientificismo com seu etos de

configuração tecnicista do mundo; e, por outro, a formas de religião pervertidas pelo

fundamentalismo, com sua tendência à subjugação violenta de tudo que é diferente. Ratzinger

ilustra o primeiro aspecto com uma compreensão do mundo pela qual a natureza é em si mesma

contingente, assemelhando-se, por isso, a um jogo de forças arbitrárias. A partir daqui se daria

apenas um passo bem curto rumo a programas de “produção de seres humanos” orientados por

interesses circunstanciais e cegos. Algo similar valeria para a substituição da justiça por um

arbítrio plenipotenciário nos casos em que o direito e a política não mais se pautam pela razão

do direito natural. Os fenômenos mais crassos no tocante às patologias da religião são, no

entender do Papa, o terror e a violência, por mais que sejam motivados por uma oposição,

legítima aos seus olhos, ao cinismo frívolo da ordem desprovida de amarras morais do Ocidente

capitalista.

Espanta até mais que esta determinação papal da religião enquanto razão o fato de a

crítica implícita encontrar adesão da parte de um pensamento “pós-metafísico” distanciado da

religião5. Em sua crítica de uma modernidade “descarrilada”, Jürgen Habermas se vê numa

Einsiedeln/Freiburg: 1992, p. 76; depois disso, in: PAPA BENTO XVI. Enzyklika Deus caritas est (=SECRETARIAT DER DEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [Hg.] Verlautbarungen des Apostolischen Stuhls Nr. 171, Bonn: 2006; cf: FAZ 26.01.2006; cf. também: Enzyklika Spe salvi (=SECRETARIAT DER DEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [Hg.] Verlautbarungen des Apostolischen Stuhls Nr. 179, 3. ed. Bonn: 2008), par. 23; e depois disso, a assim chamada “Regensburger Rede”: Glaube, Vernunft und Universität. Erinnerungen und Reflexionen, in: SECRETARIAT DER DEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [Hg.] Apostolische Reise Seiner Heiligkeit Papst Benedikt XVI. nach München, Altötting und Regensburg. 9. bis 14. September 2006 – Predigten, Ansprachen, Grussworte, Verlautbarungen des Apostolischen Stuhls, Nr. 174, Bonn: 2006, p. 72-84, principalmente p. 75s; Ansprache von Papst Benedikt XVI. an das Kardinalkollegium und die Mitglieder der Römischen Kurie beim Weihnachtsempfang 2005, = SECRETARIAT DER DEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [Hg.] Verlautbarungen des Apostolischen Stuhls Nr. 172, Bonn: 2006; além de outros mais.

3 Cf., de modo exemplar RATZINGER, J. Cardeal. Der angezweifelte Wahrheitsanspruch, in: FAZ 08.01.2000.

4 RATZINGER, J. Cardeal. Was die Welt zusammenhält. Vorpolitische moralische Grundlagen eines freiheitlichen Staates, in: HABERMAS, J. Dialektik der Säkularisierung. Vernunft und Religion, Freiburg 2005, p. 39-60, principalmente p. 57.

5 Cf. a palavra-chave em HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Zwölf Vorlesungen, 3. ed. Frankfurt/M.: 1989.

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proximidade com Joseph Ratzinger6. No “âmbito operativo” ele chegaria a consequências

semelhantes7. Assim, sua ocupação com o tema “fé e saber” é motivado pelo impulso de

“mobilizar a razão moderna contra o derrotismo que nela própria viceja” 8. O derrotismo

consistiria, por um lado, num aguçamento pós-moderno da “dialética do esclarecimento”, no

qual pretensões racionais repentinamente se convertem em irracionalismos; por outro,

identificar-se-ia com naturalismos crédulos na ciência, tendo nisso, como linha de fuga, uma

ameaça da natureza humana marcada por um tecnicismo aplicado ao humano9. Contraposta a

isso, a “razão prática” teria “de manter desperta uma consciência daquilo que faz falta, daquilo

que clama aos céus” 10. Por isso, aos descarrilamentos modernos haveria que contrapor “os

mandamentos religiosos [da] moral da justiça”, com seus motivos que promovem a “resolução

pelo agir solidário” 11. Ao passo que as consequências da “dialética do esclarecimento”

unicamente poderiam ser exitosamente enfrentadas pelos princípios racionais fracos do

pensamento pós-metafísico, a perda da solidariedade social indicaria também à razão

procedural razões para “comportar-se com disposição de aprender diante das tradições

religiosas12. Pois esta perda também diz respeito à coordenação da ação, focalizada por uma

razão republicano-comunicativa, acerca de “valores, normas e um uso da linguagem orientado

ao entendimento comum”, coordenação esta suplantada pelo mercado, pelo poder e pela

administração. A disposição de aprender da razão se aplica aos potenciais excedentes da

articulação religiosa na linguagem e por imagens – seja no sentido utópico de representações

6 Cf. “Vorpolitische Grundlagen des demokratischen Rechtsstaates?” von J. Habermas zu der

Diskussion mit J. Ratzinger, reimpresso in: HABERMAS, J. Zwischen Naturalismus und Religion. Philosophische Aufsätze, Frankfurt/M.: 2005, p. 106-118, principalmente p. 106; Cf. também p. 111; de igual modo, o artigo “Die Grenze zwischen Glauben und Wissen. Zur Wirkungsgeschichte und aktuellen Bedeutung von Kants Religionsphilosophie”, p. 216-257, principalmente p. 218, 247, et passim.

7 Cf. SCHULLER, F. Prefácio, in: HABERMAS, J.; RATZINGER, J. Cardeal. Dialektik, loc. cit. (ver nota 4), p. 7-14, principalmente p. 13.

8 HABERMAS, J. Ein Bewusstsein von dem, was fehlt, in: REDER, M.; SCHMIDT , J. (Hg.) Ein Bewusstsein von dem, was fehlt. Eine Diskussion mit Jürgen Habermas, Frankfurt a. M.: 2008, p. 26-36, principalmente p. 30.

9 Cf. HABERMAS, J. Bewusstsein (vide nota 8), 30; cf. também: Id. Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik? Frankfurt a. M.: 2001.

10. HABERMAS, J. Bewusstsein (vide nota 8), p. 31.

11 Ibid., p.30.

12 HABERMAS, J. Grundlagen, loc. cit. (assim como na nota 6), p. 115 et passim; cf. Id. Bewusstsein , loc. cit. (vide nota 8), p. 30 s.

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salvíficas, seja no sentido de uma crítica ao tempo presente por meio da descrição da injustiça

e do sofrimento. Tais potenciais teriam de traduzir-se, por meio do pensamento pós-metafísico,

em razões discursiva e publicamente ponderáveis, mesmo que o Habermas tardio em sua

“disposição de aprender” também conheça limites da tradutibilidade diante da característica

obstrutiva das articulações religiosas13. Ao mesmo tempo, ele insiste num dever de

argumentação também da parte dos crentes em formas acessíveis a todos os cidadãos14. Para

Habermas, a “tradução” das simbolizações religiosas na linguagem de uma comunicação

pública, acompanhada de respeito diante de seus excedentes semântico-pragmáticos, é o modus

operandi de uma secularização “que não aniquila” 15. Seu outro lado está em que as pessoas

religiosas, com o reconhecimento concomitante da ordem de direito e da racionalidade

científica, também tomam parte num projeto de tradução que avança, justamente por isso, à

condição de mote contraposto à caricatura fundamentalista da religião16. Assim como o Papa,

Habermas exige alianças entre razão e religião diante do descarrilamento da modernidade. Elas

possibilitam traduzir reciprocamente determinações contrárias da relação entre razão e religião.

Ora, alianças num papel corretivo com concomitante tradutibilidade entre razão e

religião pressupõem pontos em comum sem uma igualdade completa. A religião precisa

implicar, de alguma maneira, conteúdos de razão; do contrário, ela não serve de corretivo em

nome da razão. E a razão precisa indicar uma abertura, arraigada nela mesma, para a religião;

de não ser assim, apenas entrariam em consideração escaramuças polêmicas, já em vista das

pretensões de validade. Uma identidade simples fica excluída a despeito da concordância no

“aspecto operativo” tendo em vista a diferente coordenação entre razão e religião. Enquanto

Habermas insiste numa diferença remanescente entre fé e saber e atribui à religião seu

significado cultural na modernidade devido justamente à sua estranheza, Ratzinger, em última

análise, não conhece nenhuma função da razão que fosse independente da religião e de sua fé

em Deus. E enquanto Habermas explicita a diferença entre fé e saber a partir da perspectiva da

razão, para o Papa a perspectiva da fé em Deus é normativa para a unidade daqueles termos.

13 Cf. HABERMAS, J. Religion in der Öffentlichkeit. Kognitive Voraussetzungen für den “öffentlichen

Vernunftgebrauch” religiöser und säkularer Bürger, in: Naturalismus, loc. cit. (vide nota 6), p. 119-154, principalmente p. 141ss et passim.

14 Cf. HABERMAS, J. Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 136.

15 HABERMAS, J. Glauben und Wissen, Frankfurt/M. 2001, p. 29.

16 Ibid. (vide nota 13).

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Tal fé se vê – na melhor das hipóteses – factualmente, porém não por princípio, como uma

perspectiva entre outras. Já a razão pós-metafísica unicamente conhece a diferença entre fé e

saber como diferença racional no caso em que a fé permanece um outro que lhe é estranho.

2 - Razão e religião (II), ou: oposições sistemáticas por meio de perspectivas de

coordenação distintas

A intuição fundamental da equiparação papal entre Deus, fé e razão17 poderia consistir em falar

a partir de uma efetividade do racional. Por causa dela, a criatividade divina é identificada com

a razão articulada; por causa dela as estruturas do mundo criado são descritas, até mesmo no

nível da matéria, como perpassadas pela razão e perceptíveis pela ciência racional; e, por causa

dela, vigora um direito natural cunhado pela razão enquanto diretriz para toda ordem política18.

Esta equiparação seria perceptível em diversos graus de captação racional tanto da teoria como

da prática. Nisso apareceria, em suas nuanças, uma analogia entre razão criatural, racionalidade

do criado e racionalidade dos atos do espírito humano. Em última análise, saberia a respeito

disso a fé, que por seu turno é racional por seguir a manifestação da razão divina na história da

revelação19. Nesta concepção, não pode haver uma autonomia da razão aquém do Deus da

razão. Deus já sempre está para as duas mais excelentes realizações da razão: a ordenação do

particular num todo universal, imagem prototípica da eternidade e consumação; e atividade

espontânea e criativa do que é livre como sua contraparte originária20. Nisso participam a razão

humana e a fé de um modo derivado – quando as coisas não tomam um rumo patológico. Nesse

último caso, cabe à fé uma função corretiva diante da razão deficitária – em virtude de sua

própria participação na razão.

17 Ela se acha nas linhas da “Enzyklika Fides et ratio” de João Paulo II, e ali ainda radicalizada; cf. João

Paulo II, Enzyklika Fides et ratio, 14 de setembro de 1998 (= SECRETARIAT DER DEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [HG.] Verlautbarungen des Apostolischen Stuhls Nr. 135, Bonn: 1998. Para o tema, cf.: DIERKEN, J. Selbstbewusstsein individueller Freiheit. Religionstheoretische Erkundungen in protestantischer Perspektive, Tübingen: 2005, p. 397ss.

18 Cf. RATZINGER, J. Welt, loc. cit. (assim como na nota 4), p. 42ss.; 56ss.; cf. também Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), p. 81, 83 et passim.

19 Esta fé acompanha sempre o amor prático, cf. PAPA BENTO XVI. Deus caritas est, loc. cit. (vide nota 2).

20 PAPA BENTO XVI. Spe salvi, loc. cit. (vide nota 2), especialmente p. 12, 18, 23, 31.

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A intuição fundamental embalada num conceito ontoteológico, a saber, falar a partir de

uma efetividade precedente do racional, pode reivindicar certa plausibilidade. A alternativa de

um processo de efetivação da razão por sua vez desprovido de razão, através de uma

autoprodução arbitrária, não é necessariamente mais plausível. A emergência arbitrária da razão

aumenta a demanda por fundamentar validade. Poderia ser esta a razão, antes mesmo das

peculiaridades de um estilo de pensamento, por que o Papa intelectual coloca outras concepções

de razão sob a suspeita geral de um relativismo irracional. Isto diz respeito em particular às

modernas concepções da razão sob o signo do ceticismo e da falsificação, da contingência e da

relatividade e de uma focalização na subjetividade com sua tendência à articulação simbólica

em imagens e signos21. Sem que se cause prejuízo a possíveis momentos de verdade destas

intenções, levanta-se a pergunta sobre como se deve estimar o teor de razão da crítica

promovida pelo próprio Papa. Por mais absurda que possa parecer esta questão para uma forma

de pensar que desde sempre já vê fundada, por um caminho ontoteológico, a efetividade da

razão racional, ocorre que ela acaba por se aguçar quando se pergunta pelo status epistêmico

deste enunciado ontológico. Pelo menos no bojo do discurso com posições contrárias não é

Deus como tal, e sim seu mensageiro, que aliás reivindica linguagem, signos e ideias, quem traz

à sua posição a efetividade ontoteológica da razão contra alternativas relativistas. É claro que

este mensageiro dificilmente se vê numa posição de alteridade diante de Deus. Corresponde a

tal atitude justamente a ideia da encarnação, em cuja continuidade o próprio magistério eclesial

se acha. Sendo, porém, assim, ofusca-se a posição do finito, por mais que ela já esteja sempre

incluída no gesto da crítica a outras posições. Este motivo também se acha por trás da crítica à

“deselenização do cristianismo”. Pois esta última dirigia, em suas duas primeiras ondas, o foco

para os momentos de finitude da fé, em contraste com um saber ontoteologicamente

assegurado22. O impulso reformatório acentuava a fé “do coração e da consciência”, e a teologia

liberal abriu-se às descobertas críticas da razão histórica. Para Ratzinger, isso apenas levou a

uma transposição da razão “à dimensão subjetiva”, e com isso ao que é individual e arbitrário23.

O ponto de rotação e o ponto angular desse processo seria Kant, como o Papa acentua repetidas

21 Cf., e de modo exemplar, o diálogo com J. Cardeal Ratzinger in FAZ, 08. 03. 2000.

22 PAPA BENTO XVI. Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), p. 78 ss.

23 PAPA BENTO XVI. Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), p. 81.

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vezes em sua caracterização errônea da filosofia transcendental24. A terceira onda de

deselenização estaria dada com a atual relativização do lugar cultural do cristianismo, visando

o interesse de novas inculturações do Evangelho. Mesmo admitido o enorme significado

histórico-cultural da helenização, esta crítica supõe uma elevação, para além de todas e

quaisquer contingências, da forma helenista do ser cristão. Algo de semelhante vale para a

Igreja romana como efetividade da “Igreja na ideia de Deus” 25, ofuscando-se, assim, a

historicidade contingente de Roma. É bem verdade que se acham, em Ratzinger, alguns temas

recorrentes que vão na direção oposta da figura fundamental esboçada. Destes temas fazem

parte: a teoria personalista do ofício papal26; o cruzamento de uma fé nutrida na vida com uma

esperança que justamente não se torna saber; além de uma prontidão de incluir na crítica

também tradições próprias, como a do escotismo27. Ainda assim, o tom basicamente

ontoteológico que dissolve diante da vista a finitude de toda explicação humana, também a de

uma razão divinizada, imprime os traços básicos ao tipo, personificado pelo Papa, de definição

das relações entre razão e religião – respectivamente teologia.

Em contraposição a esta equiparação substancialista entre Deus, razão e fé, o conceito

proceduralista de razão autônoma de Habermas insiste na persistente diferença entre fé e saber,

teologia e filosofia28. Na medida em que esta razão não abrange a ambas, mas, na racionalidade

que lhe é própria de uma “tradução” para as formas culturalmente consolidadas de uma ordem

24 A polêmica do Papa desconsidera que a “revolução copernicana” de Kant vale para a estrutura da

subjetividade tanto na referência teórica quanto prática, e que ela surge justamente com base em critérios de validade universal. Esta polêmica distorce também o célebre bon mot de Kant sobre a supressão (Aufhebung) do saber para dar lugar à fé enquanto uma supressão do “pensamento”, cf. PAPA BENTO XVI. Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), p. 79. Kant se torna, deste modo, na testemunha principal de um fideísmo inimigo do pensamento e subjetivo. Que esta não é uma interpretação séria de Kant acentua também, pelo lado católico benevolente, cf. RICKEN, S. J., F. Nachmetaphysische Vernunft und Religion, in: REDER, M.; SCHMIDT, J. (Hg.), Bewusstsein, loc. cit. (vide nota 8), p. 69-78, 74.

25 RATZINGER, J. Cardeal. Die grosse Gottesidee “Kirche” ist keine Schwärmerei, in: FAZ 22.12.2000.

26 Cf. RATZINGER, J. Cardeal. Der Stellvertreter Christi (1977), in: FAZ 22.04.2005. A este contexto pertence também a circunstância de que Bento XVI publicou seu livro Jesus von Nazareth sob o nome de RATZINGER, Joseph (=Erste Teil. Von der Taufe im Jordam bis zu seiner Verklärung, Freiburg: 2007).

27 Cf. de modo exemplar, PAPA BENTO XVI. Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), 77.

28 Cf. HABERMAS, J. Grundlagen, loc. cit. (vide nota 6), p. 118; Id., Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 147; Id., Die Grenze zwischen Glauben und Wissen. Zur Wirkungsgeschichte und aktuellen Bedeutung von Kants Religionsphilosophie, in: Id., Naturalismus, loc. cit. (vide nota 6), p. 216-257, aqui p. 216ss, principalmente p. 252ss; Id., Religiöse Toleranz als Schrittmacher kultureller Rechte, in: Id., Naturalismus, loc. cit. (vide nota 6), 258-278, principalmente p. 271 et passim.

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liberal comunicativa, faz referência a ambas, ela preserva a peculiaridade da razão autônoma

sem elevá-la por cima de sua finitude29. Tal posição comporta o ponto teologicamente sagaz de

que a peculiaridade da fé é igualmente reconhecida: seja nos termos de uma filosofia da história,

no sentido de uma resistente prolongação da “era axial” da história da humanidade para dentro

da modernidade racionalista; seja em termos de um diagnóstico da cultura, no sentido de uma

adoção de potenciais semânticos que não tiveram sua validade esgotada e que já consoante sua

autocompreensão se devem à alteridade da revelação divina; seja, por fim, em termos políticos,

como respeito ao direito da dimensão subjetiva da convicção própria de cada um. Este

reconhecimento do elemento religioso enquanto outro da razão30 – em última análise, opaco –

corresponde ao fato de que a razão procedural produz equivalentes funcionais no evento do

“traduzir”. Eles culminam nos diversos aspectos corretivos pelos quais a alteridade do religioso

é transposta para um âmbito de resistências contra as tendências de descarrilamento da

modernidade liberal. Por um lado, isto é possibilitado por figuras religiosas fundantes segundo

as quais a aceitação da origem da razão a partir de um outro ao modo de um destino culmina

em uma “conversão da razão a partir da razão” 31; e, por outro lado, pela apropriação racional

de potenciais de articulação ainda válidos que prometem “compensar uma deficiência

formulada como ‘necessidade da razão’”32. Na medida em que ambos os aspectos interferem

funcionalmente um no outro, a razão procedural pode comportar-se diante da religião não só

“agnosticamente” 33, mas também como razão “disposta a aprender”, compreendendo-se

igualmente como “tradução salvífica”34. A razão procedural se serve virtuosamente de um

procedimento de crítica recíproca, de produção de equilíbrio e de limitação, a fim de fazer

valer pretensões de validade religiosas e seculares contra tendências de descarrilamento da

modernidade. Nisso a razão procedural cobra sua validade a partir do elemento fático, a saber,

29 Cf. especialmente HABERMAS, J. Religion, loc. cit. (vide nota 11), 119ss.

30 Cf. HABERMAS, J. Bewusstsein, loc. cit. (vide nota 8), 29; Id., Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 150.

31 Cf. HABERMAS, J. Grundlagen, loc. cit. (vide nota 6), p. 113.

32 HABERMAS, J. Grenze, loc. cit. (vide nota 26), p. 231. Cf. zur Bedeutung religiöser Artikulationspotentiale, Id., Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 137; Id., Toleranz, loc. cit. (vide nota 26), p. 231; 235ss et passim; cf., no tocante à figura da apropriação de conteúdos religiosos a partir de uma necessidade da razão, o trecho da interpretação de Kant de Habermas, Id., Grenze, loc. cit. (vide nota 26), p. 219; 224 et passim.

33 HABERMAS, J. Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 149.

34 HABERMAS, J. Grenze, loc. cit. (vide nota 26), p. 237; cf. p. 255.

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a partir das ameaças da sociedade pós-secular, contra as quais a primeira vai perfilando seu

papel de tradutora35. Pelo menos de um ponto de vista filosófico-religioso, esta razão mostra-

se abstinente diante de reflexões próprias de validade36.

Tem-se, assim, que a razão habermasiana mal chega a desenvolver categorias para dar

conta de uma logicidade interna da religião – muito embora a religião tivesse de possuir uma

racionalidade interna se é que deve conter, em sua alteridade opaca, qualquer força de atração

para uma “necessidade” própria da razão pós-metafísica. Algo de semelhante vale com vistas à

sensibilidade – guiada pela razão –frente às forças de articulação da religião cuja validade

estaria ainda por esgotar-se, particularmente no que diz respeito à salvação e sua ausência entre

a lembrança de um sofrimento que já não pode ser reparado e a esperança pela reconciliação,

como fontes de solidariedade. Malgrado isso, a religião permanece categorialmente encerrada

diante da razão, inclusive naquela dimensão desta última em que ela está disposta a aprender e

na qual não é, meramente, agnóstica. Isso se revela o mais tardar na relação ambivalente da

razão de Habermas com a teologia enquanto reintegração reflexiva da religião. Por um lado,

Habermas acentua o significado da teologia para um esclarecimento interno da religião -

particularmente no tocante a aspectos pertinentes à filosofia da história, à diagnose da cultura e

a práticas políticas37. A religião seria motivada a tal reintegração teológica pela razão secular,

assim como, inversamente, o pensamento pós-metafísico pode avançar explicitamente à

posição de contraparte da consciência religiosa que se tornou reflexiva38. Por outro lado, a razão

procedural permanece a uma distância confortável da consciência religiosa reflexiva. Acentua-

se, contra uma tradução das perspectivas divinas às humanas, a sua incomensurabilidade.

Posições ortodoxas minimizam o perigo de que motivos religiosos insinuem-se para dentro da

filosofia e façam com que esta se torne religiosa39. A partir da herança kantiana, não é

Schleiermacher, e sim Kierkegaard que se acha mais próximo da razão autônoma de

35 Cf. ibid., p. 249.

36 Isso obviamente não exclui o fato de que a razão pós-metafísica efetue tal reflexão da validade em lógica procedural, em aspectos de teoria da comunicação, de filosofia social e filosofia da história. Estes mostram com toda clareza as respectivas contribuições de Habermas. Todavia, através disso o problema da reflexão filosófico-religiosa sobre a validade não é resolvido, mas apenas adiado.

37 Cf. HABERMAS, J. Naturalismus, loc. cit. (vide nota 6), p. 10; Id., Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 143.

38 Cf. HABERMAS, J. Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 146ss.

39 Cf. HABERMAS, J. Grenze, loc. cit. (vide nota 26), p. 252.

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Habermas40. Em absoluta conformidade com isso, a razão autônoma de Habermas justifica a

irracionalidade teológica do escotismo como pressuposto para a racionalidade secular da

modernidade41. Por isso, as apropriações reflexivas da religião são colocadas sob a suspeita de

que da religião surgiria uma filosofia da religião – de modo semelhante como, da fé, surgiria o

pensamento42. Pode-se estar inclinado a compreender esta forte tese anti-filosófico-religiosa

enquanto reverso de uma razão fraca do ponto de vista filosófico-religioso, já por tratar-se de

uma razão que delega questões de validade à facticidade do “traduzir”. Segundo esta leitura, a

dimensão da efetividade do racional – portanto: de sua validade – acentuada pelo Papa se

anunciaria numa surpreendente troca de posições e papéis. Em termos teológicos, pode-se ficar

tentado a ver o enfoque no pecado e no sofrimento, na reconciliação e na redenção – aqui,

porém, vinculado a um acento metódico em figuras críticas – como herança da religião judaica

da contrafacticidade e da theologia crucis protestante, numa contraposição à lógica

ontoteológica da encarnação43. Seja como for: caso se divisem em seu conjunto os contornos

das posições de Habermas e Ratzinger, então se poderia tentar preservar, a uma só vez como

pensador e como crente, como cidadão e cristão44, a intenção hermenêutica do ato de traduzir.

Nisso se focalizaria, com Habermas, a dupla diferença criticamente acentuada entre ambas as

dimensões justamente enquanto sentido teológico da autonomia da performance finita da razão,

sem que a efetividade – melhor: validade – à qual exorta Ratzinger seja encoberta no interior

da religião.

40 Ibid., p. 241ss; 251ss.

41 Cf. HABERMAS, J. Bewusstsein, loc. cit. (vide nota 8), p. 35.

42 Cf. a réplica de Habermas a uma contribuição de Ch. DANZ, Religion zwischen Aneignung und Kritik. Überlegungen zur Religionstheorie von Jürgen Habermas, in: LANGTHALER, R.; NAGL-DOCETAL, H.(Hg.) Glauben und Wissen. Ein Symposium mit Jürgen Habermas, Wien: 2007, p. 9-31: HABERMAS, J. Replik auf Einwände, Reaktion auf Anregungen, ibid., p. 366-414, principalmente p. 370ss.

43 É interessante como isso se deixa acompanhar por certas reservas contra a “razão prostituta” em questões de religião; só que, agora, por aquelas reservas que são nutridas pela razão e não pela fé.

44 Cf. SCHMIDT, Th. M. Religiöser Diskurs und diskursive Religion in der postsäkularen Gesellschaft, in: LANGTHALER, R.; NAGL-DOCETAL, H. (Hg.) Glauben und Wissen, loc. cit. (vide nota 42), p. 322-340, particularmente p.339ss.

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3 - Transcendência como assunto da razão dialética e suas formas religiosas de articulação

Se a diferença entre saber e fé deve ser preservada sem retirar a religião do campo de atuação

da razão, tem-se que os atos (Vollzüge) da razão finita se disponibilizam desde já para

explorações filosófico-religiosas. Deixar de considerar esse traço cartesiano-kantiano

fundamental em favor de uma teonomia direta da razão acarreta o preço de encobrir o lugar

epistêmico reivindicado para a explicação tanto de Deus, quanto da razão. A razão e seus

conteúdos não são simples itens dados, mas, também quando devem dar conta da constituição

de um mundo fundada em Deus, estão referidos a atividades mentais. Eles são sempre para e

através de atualizações da subjetividade humana. Documentam este achado as negociações

intersubjetivas de questões controversas sobre a objetividade típica das coisas ou acerca do agir

coordenado. A subjetividade se torna manifesta nas relações da intersubjetividade – e na

verdade perante dissensos e diferenças. O mais tardar na resistência diante de interpelações de

outros chega a mostrar-se a atividade subjetiva espontânea. A resistência não pode provir

daquilo contra o que ela mesma se volta. E, no entanto, ela irrompe justamente nesse ponto e é

comunicada intersubjetivamente. Ambas as coisas são possíveis, pois a atividade subjetiva

espontânea45 exibe ao mesmo tempo uma dimensão reflexiva; esta diferencia, de forma

igualmente originária com a retroação ao eu do ato de consciência, entre este eu (Selbst) e seu

outro. Com isso está estruturalmente posta no horizonte a autonomia da razão: uma atividade

espontânea que é acompanhada de uma referência de tipo diferenciador- ordenador a outro, e

que somente por meio disso deixa tornar-se apreensível o eu da atividade. É desta relação

fundamental entre atualização do eu e alteridade que depende a efetividade da razão – no que é

finito. A partir daqui deixam-se traçar linhas para a tarefa de integração da razão, mas também

para a capacidade diferenciadora do entendimento. As dimensões fundamentais da razão –

assim como do entendimento enquanto elemento – abrangem as relações complexas entre

subjetividade e objetividade, mas também entre subjetividade e intersubjetividade no campo

limítrofe do conhecer e do querer.

Por mais que o eu sempre possa somente achar-se instituído em sua espontaneidade

diferente do que é outro, e por mais que ele já por isso seja finito por si mesmo, tanto mais se

45 Ela é a base para a autoconservação, a partir da qual, por exemplo, na forma de interesses

intersubjetivos que exigem negociação, resulta no conflito um elemento em comum.

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dá o caso de que sua atividade reflexiva, na qual ele é capaz de apreender os mais diversos

conteúdos como seus, é acompanhada de um sentido para a unidade. A constituição de regras

e a ordenação tornam-se, com isso, compreensíveis enquanto realizações fundamentais da

razão autônoma46. Em vista do seu lugar finito, o sentido de unidade ordenador implica uma

tendência para a universalização: ele se estende sempre a algo mais. Este transcender imanente

da razão exibe uma orientação à completude (Ganzheit). Tal completude se acha em direção

oposta à da espontaneidade da atualização da subjetividade – até o ponto máximo do “não” no

conflito intersubjetivo. Também nisso se mostra um transcender interno da razão, a saber, da

espontaneidade para a incondicionalidade marcada por validade última. Por isso, liberdade e

completude cunham as características fundamentais e tensionadas de um pensamento que, como

consequência de tal transcendência, chega a ideias 47. A liberdade é aqui a cifra para a alteridade

e a contingência, a completude o é para a regra e a relacionalidade. A razão autônoma esbarra

em tais ideias quando não evita o incômodo de questões resultantes da mensuração própria de

seus limites. Por meio do pensar em ideias, a metafísica crítica permanece uma tarefa da razão

no terreno da subjetividade. Sabedor de que às ideias não correspondem objetos coisificados,

este pensamento serve ao entender-se da razão em sua atualização, não servindo, contudo, à sua

asseguração ontológica prévia a todo e qualquer uso. Por isso, tal metafísica crítica enquanto

pensamento em ideias implica um traço como que pós-metafísico. Ele remete a razão de volta

ao seu ponto de partida no finito e impede a monopolização de uma forma simplória de

explicação da razão, por exemplo, a conceitual-contemplativa. O teor racional da razão se exibe

no lugar do outro de si mesma. Isso permite traçar, na própria razão, linhas e circuitos bem

aterrados na direção de formas religiosas. A religião está justamente para isso: para o ato de

comunicar em formas finitas, mais precisamente simbólicas – que se devem à forte contingência

de mediações históricas e de afetos do mundo da vida –, a orientação da vida finita subjetiva na

sua referência a conteúdos ideativos. Nesta orientação com o auxílio de um pensar em ideias

46 Por esta razão desvia-se do ponto essencial uma interpretação que identifica a guinada para o sujeito

– guinada esta ligada à modernidade, especialmente a Kant – com ‘arbitrariedade subjetivista’.

47 Caso se apreenda esta relação de tensão em seu nexo sistemático e se desenvolva uma concepção de um Absoluto para o pensamento em ideias, é-se conduzido à ideia de que o Absoluto é, justamente por isso, o outro de si mesmo. Sem dúvida, esta ideia hegeliana – cum grano salis – dificilmente se deixa apreender num saber positivo e contemplativo, impelindo, pelo contrário, a uma explicação negativo-teológica. Com isso, o “não” no não-saber douto corresponde ao momento de negação na figura do outro de si mesmo. Para isso, cf.: DIERKEN, J. Selbstbezug und Alterität. Subjektivität zwischen Individualität und Intersubjetivität und der Gottesgedanke – im Gespräch mit Dieter Henrich, in: Wiener Jahrbuch Philosophie, 2009.

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simbolizadas tampouco ela possui qualquer monopólio, como bem mostra a velha disputa com

a filosofia – ou com concorrentes mais recentes como a ciência, a arte, a política, etc. No

entanto, a diferenciação na religião entre pensar em ideias e saber empírico abre, ela própria, o

espaço para articulações simbólicas; mas com isso este próprio diferenciar sequer consegue

livrar-se de tocar em tais articulações. Por isso mesmo, a fronteira entre filosofia e religião não

deve ser fixada definitivamente, por mais que a filosofia possua uma tendência à unidade de

forma e conteúdo arraigada em sua retroação reflexiva, ao passo que a religião tende, antes, a

demorar-se na manifestação da diferença de forma e conteúdo em sistemas simbólicos

historicamente mediados. Nesta relação aberta para com a religião, a filosofia pode contribuir,

através da diferenciação de saber e crer orientada pela razão, na tarefa de indicar a razão na

religião. Mas para tanto não tem condições um uso meramente técnico da razão em questões

religiosas, por exemplo, no sentido de uma sistematização explicativa externa.

Temas exemplares da filosofia da religião48 dizem respeito, por exemplo, a formas

fundamentais da simbolização do que é criatural – inclusive do ser-instituído contingente típico

da própria razão em sua atualização. Tanto a fé na criação quanto na eternidade tem aqui, de

forma proeminente, o seu lugar. Mas também figuras de unidade do todo (Alleinheit) enquanto

horizonte para uma multiplicidade mundana e uma pluralidade de pessoas. Ao lado disso,

entram em cena as formas fundamentais nas quais se torna temático o caráter de

incondicionalidade da liberdade humana. Elas dizem respeito à imagem e à responsabilidade

do ser humano que é tanto semelhante a Deus quanto a ele contraposto. No seu campo de

abrangência se acha, com a consciência do pecado, a capacidade de diferenciar entre bem e mal.

Ela liga uma dimensão do contrafáctico com uma validade superior a todo o fáctico, que se

manifesta no juízo crítico sobre o falso. Com a distância do que é fáctico – que inclui também

o juízo sobre si mesma – conectam-se aspectos do tema da liberdade e da completude no lugar

próprio da vida finita: sem a ideia de uma ordem que deva ser, desmantela-se o “não” do próprio

juízo crítico. Nesta ordem que abrange algo de outro e os outros, precisa incluir-se o eu em

virtude da sua própria liberdade. Seu querer, cujo conteúdo somente surge na comunicação com

outros enquanto elementos de ordem, entrelaça o eu nesta mesma ordem. A crítica como parte

da comunicação intersubjetiva é o lado inverso desse processo. A atualização da ordem é

48 Esta formulação é tomada de empréstimo a um título de livro de W. Jaeschke, e, com ela, obviamente

só se focaliza a filosofia da religião de Hegel, cf. JAESCHKE, W. Die Vernunft in der Religion. Studien zur Grundlegung der Religionsphilosophie Hegels, Stuttgart: 1986.

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simultaneamente sua permanente correção. Esta concepção pragmático-procedural de uma

ordem dinâmica a partir do eu, o qual adquire seus contornos por meio de traços de alteridade

e que se insere em negociações comunicativas, de modo algum é arbitrária – por mais que a

comunicação dos eus suceda ou se demore em simbolizações contingentes. De maneira

clássica, tal concepção se designa, de resto, com o título de uma “religião do espírito” que ao

mesmo tempo é mais do que uma religião meramente estatutária.

O delineamento por nós obtido da razão filosoficamente apreensível na religião do

espírito permite adotar o momento de crítica acentuado tanto por Ratzinger como por Habermas

nos pontos já salientados. A crítica torna-se acessível de modo filosófico-religioso através de

relações recíprocas de tipo comunicativo-procedural que vão desde a autorreferência e a

alteridade até o ponto do “não” enquanto ponto limítrofe, não sendo pensada apenas através da

opacidade religiosa. Deste modo, a crítica, enquanto emblema da razão na modernidade, é

retirada daquele canto em que aparece como mero antídoto contra patologias das quais a

verdadeira substância da razão permaneceria imune. E, contudo, tal delineamento comporta, ele

mesmo, dois problemas reciprocamente imbricados. Por um lado, ele não é adquirido num

percurso através da multiplicidade contingente de constelações religioso-culturais – com a

exceção das posições criticadas. Por outro lado, sua força persuasiva deve, ela mesma, atribuir-

se à contingência de desdobramentos na história do pensamento – sem, com isso, perder a

pretensão implícita à normatividade, que já está posta junto com a crítica. Enquanto o primeiro

problema poderia ser sanado num outro arranjo de acesso a ele, o segundo é inevitável.

Não a razão pura, mas somente as constelações religioso-culturais chegam a oferecer o

material para simbolizações – sejam estas estéticas, religiosas ou filosóficas. Trocas de papéis,

que chegam até o ponto das mais crassas antíteses às simbolizações, são o outro lado da moeda.

Também naturalismos cientificistas implicam uma pretensão de incondicionalidade num

vórtice totalitário; do mesmo modo, linhas sociotécnicas de ação que solapam regulações

normativas da vida em comum não deixam de visar uma contranormatividade. Se quanto a isso

se reage com a crítica, então sua racionalidade se deixa fundamentar com a coação não coagida

do melhor argumento no conflito religioso-cultural. Tal conflito é posto conjuntamente com a

pluralidade de simbolizações. Mas com isso se entra no campo dos debates em torno de ideias

políticas e sobre políticas de religião. A metafísica crítica se traslada para filosofia da religião,

esta para a filosofia social, e para práxis da política. Em todos estes campos há que testar se

alianças táticas como aquelas entre Ratzinger e Habermas podem se tornar comprovadas no

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tempo tendo em vista as diferenças estratégicas nas coisas da razão. Este teste leva a uma

disputa em torno da razão na religião – que, no melhor dos casos, deve conduzir-se

racionalmente, e que representa, ela mesma, uma parte da história da formação da razão no

lugar do seu outro.

Disso, a cultura da religião só tem a ganhar. Pois a religião se deixa acompanhar por

posicionamentos diferenciados. Uma solene piedade existencial é algo diferente de uma crítica

profeticamente suscitada daquilo que vai pelo mundo. Simultaneamente, podem-se encontrar

combinações surpreendentes – não só no debate entre Ratzinger e Habermas. Assim, por

exemplo, a certificação existencial baseada numa teologia da criação pode reverter em

programas éticos de salvamento do mundo nos termos de um ativismo ecológico. De modo

inverso, uma “igreja da liberdade” pode deixar a fé na justificação emudecer na direção de um

pensamento de cotas de êxito a partir de uma economia planejada. Tais posicionamentos e

combinações desafiam o uso do juízo racional. Ele pode deixar-se dirigir pelo seguinte critério:

em que medida estão aí subjacentes os motivos da liberdade e da completude, que, atuando em

direção contrária, pressionam à integração através da “tradução”? Com isso torna-se inevitável

iluminar também os aspectos excluídos de determinados tipos, seus pontos cegos, por assim

dizer. Todo e qualquer posicionamento que decorre da liberdade do próprio querer exclui uma

multiplicidade de outras possibilidades combinatórias. A razão nas coisas da religião pode

sondar em que medida estas possibilidades se introduzem, como partes de um todo

inapreensível, naquilo que lhe é próprio – e isto seja no paradoxo de que a partir do próprio

impulso de liberdade sempre se quer posições unilaterais, das quais, todavia, faz parte o saber

de não serem, elas mesmas, o todo. Isto também vale para um arcabouço categorial filosófico-

religioso para a descrição da religião – e da razão. E, não obstante, tal arcabouço é indispensável

para o projeto da “tradução” de religião e razão. Isso porque ele possibilita à faculdade de julgar

proceder racionalmente em questões da religião também ali onde a religião, na plena

segmentação de seu aparecer cultural, deixa que se torne questionável se ela é razão ou é, antes,

seu oposto. Sem razão, e na verdade sem razão autônoma, essa questão, central para uma

comunicação além-fronteiras que opera de modo hermeneuticamente “tradutor”, não se deixará

nem mesmo colocar.

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FUNDAMENTAL RIGHTS (DERECHO A LA SALUD) Y BUSINESS.

CASO COLOMBIA Y LATINOAMÉRICA1 Jaime Gañan

RESUMO: A tensão entre sistemas únicos de saúde e planos de saúde são uma realidade em quase

toda América Latina, destacadamente em países como a Colômbia. Uma tensão quase permanente

entre o direito fundamental à saúde e os planos de saúde privados. Os sistemas únicos de saúde são

baseados na visão de direitos irrenunciáveis, inalienáveis, universais e inerentes àpessoa humana,

com grande ênfase na saúde coletiva e pública; e os planos de saúde são baseados nas premissas

de mercado, de custo-benefício, de coberturas “universais”, de planos limitados de serviços, de

exclusões, de exigencia de acréscimos para o fornecimento de determinado serviço, cotas

moderadoras e cotas de recuperação, de lógicas afinadas com os planos de saúde privados e na

capacidade de pagamento das pessoas e logicamente de barreiras de todo tipo de acesso com a

finalidade de ganância e de fazer mais rentável os negocios de saúde.

RESUMEN: La tensión entre Sistema Únicos de Salud y sistemas de aseguramiento son una

realidad en casi toda Latinoamérica, con prevalencia en países como Colombia. Una tensión casi

permanente entre el Derecho Fundamental a la Salud y el aseguramiento privado. El primero

basado en el enfoque de derechos, irrenunciable, inalienables, universales e inherentes a la persona

humana, con gran preponderancia de la salud colectiva y pública; y los otros basados en premisas

de mercado, de costo beneficio, de coberturas “universales”, de planes limitados de servicios, de

exclusiones, de copagos, cuotas moderadores y cuotas de recuperación, de lógicas afincadas en el

aseguramiento de tipo privado y en la capacidad de pago de las personas y lógicamente de barreras

de acceso de todo tipo en aras de maximizar las ganancias y de hacer más rentable el negocio de la

salud.

1 Este artículo es un producto derivado de la investigación registrada en el CODI con el título: Seguridad Social:

Reconstruyendo Conceptos.

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INTRODUCCIÓN

El derecho a la salud en un verdadero derecho. No es caridad, ni es beneficencia. No es una

mera expectativa o promesa vacía. Tampoco es igual a un Sistema, ni tampoco es solo un servicio.

La salud es un derecho fundamental garantizado por los estados, que además de sus características

como un verdadero derecho, también presenta una dimensión prestacional en su carácter de servicio

público esencial.

Como derecho, normalmente se encuentra consagrado en las diferentes constituciones de

los países latinoamericanos. En Colombia en la Constitución de 1991. En Brasil en la Constitución

de 1988 y en Chile en la de 2005. No obstante ello, también se encuentra determinado en múltiples

instrumentos jurídicos internacionales, que hoy hacen parte, en la mayoría de los países de su

normativa interna por vía del llamado bloque de constitucionalidad.

No obstante la hoy pacifica concepción del Derecho a la Salud como un Derecho

Fundamental directo, autónomo y per se2, la tendencia en casi toda Latinoamérica parece ser la del

aseguramiento de la salud. Por ello, la dicotomía lo es entre los sistemas únicos de salud basados

en el derecho y los sistemas de cobertura basados en el aseguramiento. En ese marco de ideas, el

negocio y el mercado de la salud han ido adquiriendo fuerza como actores importantes en los

sistemas de salud actuales, en los cuales los agentes privados, como en el caso de Colombia,

parecen haber cooptado el poder de gobernanza, y aun de control del Estado en bien de sus propios

intereses y no del beneficio general de las personas, de su dignidad y de la aplicación del Principio

Pro Homine.

2 En Colombia, por ejemplo, se acaba de reconocer el derecho a la salud como un derecho fundamental directo y

autónomo a través de una Ley Estatutaria. Véase el Comunicado 021 de la Corte Constitucional en relación a la

sentencia C-314 de 2014.

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1. Derecho a la salud como Derecho Seriamente Fundamental autónomo, directo per

se.

Precisamente por su relación directa con la dignidad, por ser universal, inherente a la persona

humana, indisponible, irrenunciable, por entrañar libertades y derechos, por su esencialidad en la

materialización de una vida digna y con calidad, por ser un derecho integral e integrador de otros

derechos y condiciones vitales, por tener una dimensión individual, pero también una dimensión

colectiva es que el derecho a la salud, sin lugar a dudas, es un derecho fundamental; y como derecho

seriamente fundamental debe ser objeto de todas y cada una de las garantías constitucionales y

legales previstas para tal tipo de derechos en las normas internacionales y en aquellas de cada

Estado, y no sólo para efectos de su justiciabilidad vía acción de tutela o de otro tipo de protección

especial.

En consecuencia, el Derecho Fundamental a la Salud emerge como un derecho integral e

integrador. Integral por el objeto que garantiza: la salud, e integrador por su relación sistémica e

íntima con la mayoría de los derechos constitucionales, en especial con el derecho a la dignidad

humana, al igual que con deberes y libertades. Derecho que debe ser garantizado por el Estado en

su universalización: Cobertura y acceso real y efectivo para todas las personas. A través de los

instrumentos jurídicos internacionales y de los convenios internacionales en seguridad social se

expande el concepto de derecho a la salud desde su concepción individual a una de tipo colectivo3.

El Derecho a la salud como derecho fundamental directo, autónomo y per se lógicamente no es

ilimitado, pero si debe responder a claros criterios de concertación de políticas públicas, de

normativas, de evidencias que permitan una estructuración a largo plazo de su contenido esencial

3A través de múltiples instrumentos internacionales de tipo general, como la propia Declaración Universal de Derechos

Humanos o el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales o los instrumentos específicos

referidos a la salud de una población en especial, como: Declaración de las Naciones Unidas sobre la eliminación de

todas las formas de discriminación racial, Declaración sobre la eliminación de la discriminación contra la mujer,

Declaración de los Derechos del Niño, Reglas mínimas para el tratamiento de los reclusos. Pero también a través de

tratados y convenios entre países.

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como asunto de Estado y no solo como un asunto de gobiernos, estructural y no solo de reformas

coyunturales. Debe responder a la teoría de que los derechos fundamentales son principios o

mandatos de optimización4, y en ese sentido deben responder, también, a la efectivizar principios

tan importantes como los de progresividad y prohibición de reversibilidad5. Principios que se bien

son en principio referidos a los derechos sociales, en la actualidad deben ser leídos con relación a

todos los derechos en función del mejoramiento continuo de la calidad de vida de todas las personas

y comunidades, y por supuesto de la búsqueda continua de la calidad de la dimensión prestacional

de los derechos fundamentales en torno de la concepción de servicios públicos esenciales.

Precisamente, en cuanto la dimensión prestacional de los derechos fundamentales, y especialmente

en lo relacionado con el Derecho a la Salud es importante resaltar los elementos esenciales que a

la luz del Bloque de Constitucionalidad deben tener los servicios esenciales para que se materialice

en forma real el supuesto que subyace de vida digna en cada uno de tales derechos.

En tal contexto, los elementos esenciales del derecho a la salud se encuentran, según la Observación

General 14, dentro del contenido normativo del artículo 12 del PIDESC6 y constituyen el marco de

condiciones fácticas que propenden por la eficacia real del derecho a la salud7. En tal sentido la

Observación General 14 determina como elementos esenciales la disponibilidad, la accesibilidad,

la aceptabilidad y la calidad. La existencia real de las condiciones de los elementos esenciales

referidos debe invitar, en palabras de la OMS y de la propia Observación 14, al disfrute del más

alto nivel posible de salud que le permita vivir dignamente a cada individuo.

4 Véase Robert Alexy. Teoría de los derechos fundamentales. Pág. 67. 5 Confróntese con la Observaciones 3 y 14 de Comité del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y

Culturales. 6 Véanse también las medidas, que según el artículo 10 del Protocolo de San Salvador, los Estados deben adoptar para

garantizar el derecho a la salud en él contemplado y reconocido como un bien público en tal instrumento. 7Se interrelacionan en procura de hacer efectivo tal derecho, de acuerdo con las condiciones prevalecientes de cada

país, sin que ello implique que estas, en un momento determinado, busquen la inactividad total o permanente de dicho

Estado.

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Complementario a los elementos esenciales definidos por la Observación 14 están los definidos

por la Observación General 38, de los cuales se resaltan para este análisis la no discriminación, la

equidad, la progresividad, la irreversibilidad, la gratuidad y la participación.

En resumen, los Estados partes tienen con base en lo consagrado en la Observación General 14

unas determinadas obligaciones con respecto al derecho fundamental a la salud, a saber: las de

respetar, proteger y cumplir9.

Teniendo en cuenta todo lo arriba expresado, es determinante que siendo el derecho a la salud un

derecho fundamental autónomo, debe compartir con los demás derechos fundamentales la esfera

de garantía y de protección que ella les otorga a nivel internacional y local. En el caso de Colombia,

los otorgados por la Constitución de 1991. Esto es: vincula a todos los poderes públicos10, debe ser

un derecho de aplicación directa por los jueces y órganos administrativos11, debe estar dotado de

la garantía de la reserva de ley12 y ser un derecho protegido aun frente al poder constituyente

secundario, en Colombia13, debe gozar de la garantía del contenido esencial frente al poder

legislativo y estar garantizado mediante acciones de amparo constitucional14 y no podrá ser

suspendido durante los estados de excepción15.

2. Derecho vs Aseguramiento (Sistemas Únicos de Salud vs. Sistemas de

Aseguramiento Universal en Salud)

8 Referida a la índole de las obligaciones de los Estados Partes (párrafo 1º del artículo 2º del Pacto), 1990. Aplicable a

todos los compromisos y derechos estipulados en el Pacto. 9II. Obligaciones de los estados partes. Observación General 14. 10 Artículo 4º de la Constitución de 1991. 11Artículo 85 de la Constitución de 1991. 12 Por lo cual requeriría que su regulación legislativa sea por medio de ley estatutaria –artículo 152 de la Constitución

de 1991– 13 Debe someterse a referendo las reformas constitucionales aprobadas por el Congreso, cuando se refieran a tal derecho

y a sus garantías, a los procedimientos de participación popular, o al Congreso, si así lo solicita, dentro de los seis

meses siguientes a la promulgación del Acto Legislativo, un cinco por ciento de los ciudadanos que integren el censo

electoral. Artículo 377 de la Constitución de 1991. 14 Por ejemplo por medio de la acción de tutela. Artículo 86 de la Constitución de 1991. 15 Artículo 214, numeral 2º de la Constitución de 1991.

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Históricamente los países han optado por dos tipos de modelos para organizar la salud de sus países.

De una parte, por los Sistemas Nacionales de Salud o Sistemas Únicos de Salud (SUS), basados en

la universalidad del tal derecho, en el cual la financiación de los servicios de salud es totalmente a

cargo del Estado. Este modelo ha sido liderado por países como Inglaterra. De otra parte, por los

sistemas basados en la tradicional lógica del seguro social obligatorio o de Seguridad Social o de

Aseguramiento Universal de la Salud (AUS), precisamente bajo el esquema del aseguramiento

universal, en el cual la financiación, o bien es tripartita, Estado, empleador, trabajador, actualmente

por los asegurados, o bien, es por aportes privados. No obstante, podríamos afirmar que en la

actualidad los países no presentan modelos puros sino que se encuentran enmarcados en sistemas

mixtos con prevalencia de lo público o por el contrario de lo privado.

Las tendencias generales en Latinoamérica desde 1986 con el Consenso de Washington, y a veces,

bajo la presión directa o indirecta de organismos e instituciones internacionales o multilaterales, ha

sido en el sentido de la creación de sistemas de salud bajo el esquema del aseguramiento universal

con una alta participación de agentes privados, ya sea en la prestación de los servicios de salud y/o

en la administración de algunos esquemas o regímenes de salud creados en tal contexto. También

parece ser una tendencia, la estructuración de Planes o Beneficios de salud de tipo cerrado,

taxativos o de listado. Ejemplo el Plan Obligatorio de Salud colombiano, conocido más

comúnmente como POS. El mismo que ha sido muy regulado y en forma frecuente actualizado o

reformado.

En muchos casos, en especial en el de Colombia, el Sistema ha operado bajo el control casi total

del aseguramiento privado y bajo la lógica del mercado, esto es bajo las concepciones doctrinales

del Pluralismo Estructurado y el de la Competencia Regulada16. Este esquema ha determinado que

en no múltiples ocasiones el Sistema niegue el derecho en aras de comunes barreras de acceso de

16 Véase Pluralismo estructurado: Hacia un modelo innovador para la reforma de los sistemas de salud en América

Latina. Londoño de la Cuesta, Juan Luis y Julio Frenk Mora. Banco Interamericano de Desarrollo. Oficina del

Economista Jefe. Documento de Trabajo 353.

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todo tipo: económicas, administrativas y legales. Barreras que han implicado fenómenos adversos

a la población conocidos como los “paseos de la muerte” o “Los muertos de Ley 100”17.

En ese orden de ideas, no solo por la estructuración de los Sistemas con estructuras claramente de

corte comercial y basadas en la libertad económica, más que en el derecho fundamental a la salud,

sino por los reiterados comportamientos de los agentes privados de aseguramiento en la negación

de servicios, medicamentos y otros, es que en países como Colombia, los jueces, en especial la

Corte Constitucional, hayan tenido que tutelar en forma especial el derecho a la salud sobre el

propio Sistema General de Seguridad Social en Salud. Según el último informe de la Defensoría

del Pueblo en Colombia cada 5 minutos se interpone una acción de tutela en el tema de salud y

según tal Organismo la mayoría lo son por servicios o medicamentos que se encuentran

efectivamente detallados en la lista del POS.

Tal como se refiere, un alto número de acciones de tutela fueron interpuestas, entre otras razones,

por los aplazamientos y dilaciones que las EPS e IPS han puesto al acceso efectivo de los servicios

esenciales de salud y que se han constituido en barreras administrativas, económicas y materiales

para la garantía del derecho fundamental a la salud, en especial para las poblaciones especialmente

vulnerables y vulneradas.

Tal ejemplo, evidencia las profundas diferencias de tipo conceptual y estructural entre los dos

modelos citados. En voz de la Dra. Asa Cristina Laurel18, y a manera de resumen, podemos citar

que mientras en él SUS la responsabilidad social deriva de la garantía constitucional de los Estados

con relación al Derecho fundamental a la Salud, en el modelo de aseguramiento su base conceptual

deriva de los Consensos de Washington que basan su concepción en la lógica del aseguramiento

privado y en las teorías de la economía neoclásica. Así mismo, basados en la competencia entre

actores y en la teoría de que el Estado solo será un regulador.

17 Véase Los Muertos de Ley 100. Prevalencia de la Libertad Económica sobre el Derecho Fundamental a la Salud.

Caso del POSC. Una razón de su ineficacia. Caso del POSC. 2013. Editorial Universidad de Antioquia. 18 Véase Presentación: SUS vs AUS.

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3. Innovación, Negocios, Libertad económica.

Quizás a nivel general en el tema de la salud, la innovación tiene un especial componente en lo que

se refiere a la invención de medicamentos y en el desarrollo de nuevas tecnologías para la

prestación de los servicios de salud, ya sea en su fase de promoción y prevención, diagnostico,

tratamiento o rehabilitación.

En cuanto a los medicamentos podrá afirmarse, en un comienzo, que el acceso a ellos es un derecho

fundamental de cada persona humana y un derecho fundamental colectivo de todas las poblaciones.

Un bien público. No obstante, el tema de los medicamentos a nivel mundial ha suscitado grandes

conflictos y se ha demostrado una preocupante y constante tensión entre el derecho fundamental a

la salud, la salud pública y la protección de la libertad económica, los negocios y lógicamente la

protección a la propiedad intelectual. Igual podría afirmarse de las nuevas y especializadas

tecnologías médicas.

La innovación e investigación en medicamentos se encuentra regulada básicamente por medio del

Acuerdo sobre los ADPIC que considera la “generalización del sistema de patentes, de una

duración mínima de veinte años, es indispensable para permitir que las empresas farmacéuticas

privadas sigan investigando.”19 En concepto del Dr. Velásquez, el argumento es el siguiente: “la

investigación es costos, pero será financiada por las patentes que, al garantizar a las empresas

farmacéuticas un monopolio, les permite mantener precios elevados, para poder continuar la

investigación y el desarrollo de nuevos productos”

Si bien la innovación en el tema específico de los medicamentos es necesaria y debe ser objeto de

protección, también es cierta la afirmación que por su importancia para el desarrollo de la salud

pública de los estados, tal innovación e investigación debería ser orientada en procura del bienestar

general de los pueblos y de la posibilidad real de asequibilidad a dichos medicamentos20.

19 Véase Acceso a Medicamentos. Germán Velásquez. Editorial Universidad de Caldas. 20 En caso contrario y tal como lo determina la Declaración de Doha: “El Acuerdo sobre los ADPIC no impide ni

deberá impedir que los Miembros adopten medidas para proteger la salud pública” Por tanto que los Estados puedan

hacer uso de las “flexibilidades” contenidas en tal Declaración en favor de la salud pública de sus países cuando la

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Si retomamos el esquema de modelos de salud, también se podría colegir que es en el modelo de

aseguramiento universal en el cual podría haber un especial campo de desarrollo de la libertad

económica y de los negocios en favor de las grandes farmacéuticas y en disfavor de la salud pública

y del Derecho Fundamental a la Salud.

En el caso de Colombia, parte de la crisis de la salud ha sido motivada por el tema de los

medicamentos. No solo por tener prácticamente los medicamentos más costosos del mundo21 sino

por la negación reiterada de los medicamentos “requeridos con necesidad”22.

4. Caso Colombia.

Sin duda Colombia ha sido un caso paradigmático y sui generis en el tema del Derecho a la Salud

y en el proceso de estructuración y desarrollo del Sistema General de Seguridad Social Salud.

Quizás para algunos, un modelo a seguir, quizás para otros, un modelo para aprender de los efectos

negativos que se pueden desprender de esquemas liderados por el sector privado, por la libertad

económica, por el ánimo de lucro y por la falta de gobernanza, inspección, vigilancia y control

fuerte por parte del Estado.

mercantilización y ánimo de lucro de la empresas farmacéuticas desborden la posibilidad de acceder a sus invenciones

en bien de la comunidad en general.

21 Como ejemplo, en un estudio realizado por laHealth Action International (HAI) en 93 países se encontró que en

Colombia se pagan los más altos precios por los medicamentos, en algunos casos hasta doscientas veces. El estudio

referido en la página web http://www.finanzaspersonales.com.co/consumo-inteligente/articulo/colombia-pais-

medicamentos-mas-caros/38092, relata, entre otros casos, que :” En la Drogaria Minas-Brasil, por ejemplo, una caja

de Aprovel (150 MG con 28 comprimidos) de Sanofi-aventis, que se utiliza para tratar pacientes con tensión arterial

alta, cuesta 78,97 reales, más o menos $85.000, mientras en Drogas la Rebaja se consigue en $169.900. Es decir que

los colombianos pagamos $84.900 más que los brasileros, monto que alcanzarían para comprar otra caja.” 22 Termino utilizado por la jurisprudencia de la Corte Constitucional para referir a las prescripciones médicas remitidas

por el médico tratante y que son esenciales para conservar la vida y la salud integral de los pacientes. Véanse en

especial la Sentencia T-760 de 2008.

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El derecho a la salud se constitucionalizó de forma expresa en Colombia en los artículos 4423 y 49

de nuestra actual Constitución Política como un derecho inherente a la persona. Este derecho fue

reglamentado por la Ley 100 de 1993 que creó el Sistema de Seguridad Social Integral24

colombiano. Este sistema está compuesto por tres subsistemas, entre ellos, el Sistema General de

Seguridad Social en Salud o SGSSS.

A pesar de estos desarrollos jurídicos, con frecuencia, el derecho a la salud no satisface todavía a

sus titulares, por parte de las Entidades Promotoras de Salud25 o EPS o por parte de las Instituciones

Prestadoras de Servicios de salud26 o IPS.

Un indicador de esta falta de satisfacción del derecho a la salud es el ingente número de sentencias

de revisión de acciones de tutela que por más de quince años dan cuenta de los conflictos jurídicos,

administrativos y económicos que se presentan en la aplicación del SGSSS con respecto al POS.

No en vano se ha acuñado el término despectivo “muertos de Ley 100”27, para designar a las

muertes o el agravamiento de pacientes que por innumerables factores de tipo normativo o fáctico

no recibieron en forma oportuna o eficiente los servicios de salud o de atención en salud

correspondientes, por parte de las entidades responsables de administrar, financiar28 o de prestar

tales servicios.

23 Este artículo se refiere a los derechos fundamentales de niños, niñas y adolecentes, dentro de ellos consagra

expresamente el de la salud. 24Artículo 1º y artículo 5º de la Ley 100 de 1993. 25 De acuerdo con el artículo 177 de la ley 100 de 1993, las EPS son las entidades responsables de la afiliación, y el

registro de los afiliados y del recaudo de sus cotizaciones. Su función básica es organizar y garantizar, directa o

indirectamente, la prestación del POS a los afiliados. 26 El artículo 185 de la Ley 100 de 1993 determina que las IPS tienen como función prestar los servicios de salud en

su nivel correspondiente a los afiliados y beneficiarios. Según el numeral 3 del artículo 155 de la citada ley, las IPS

pueden ser públicas, privadas o mixtas. 27 Término utilizado por el autor de este paper en su tesis doctoral: Los muertos de la Ley 100. Prevalencia de la

Libertad económica sobre el derecho fundamental a la salud. 2011. De manera análoga la Contraloría General de

Medellín utiliza el término “tren de la muerte” para referirse al registro de 502 pacientes fallecidos en el año 2007 y

primer semestre del 2008 por la no ubicación oportuna de dichas personas para la atención pertinente en otras IPS

especializadas. De tal número el 68.13% de los casos corresponde al grupo de población mayor de 60 años. Véase El

Auditor, medio informativo de la Contraloría General de Medellín. 2009, p. 6. 28 De acuerdo con el artículo 155 de la Ley 100 de 1993, las EPS y las Direcciones Seccionales, Distritales y Locales

de Salud son organismos de administración y financiación del SGSSS.

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Efectivamente, el SGSSS, creado en el marco de las reformas neoclásicas, materializadas en la Ley

100 de 1993, se basa en un modelo de mercado con competencia regulada29, el cual tiene como

supuesto básico que el mercado operará y producirá mejores servicios a mejor precio, en

condiciones controladas por un Estado optimizador de los beneficios30. En ese marco de

competencia regulada y de pluralismo estructurado, el SGSSS tiene como base el modelo de

aseguramiento y concurrencia de particulares en función de articuladores, denominados como

patrocinadores en la teoría original de la competencia administrada, en específico en su calidad de

EPS o de prestadores del servicio en su calidad de IPS31. Particulares, que fundamentados en la

libertad económica, en la libertad de empresa y de libre competencia lógicamente, prima facie

actúan en aras de los principios económicos propios de la empresa privada: eficiencia y ánimo de

lucro32.

En ese contexto, desafortunadamente, la eficiencia para el logro de mayor equidad se convirtió en

la eficiencia bajo los parámetros de la libertad económica, la mercantilización de la salud y el ánimo

de lucro desbordado y en muchas veces injusto. En efecto, las múltiples barreras de acceso real y

efectivo por parte de, principalmente, de las entidades articuladoras, en su papel de administradoras

del los diferentes regímenes, se convirtieron en barreras de decisión de vida o muerte para las

personas que estaban “afiliadas” a ellas. Barreras y problemáticas que han sido de gran espectro y

29 Acosta Ramírez, señala: “Con la reforma de 1993, Colombia adopta un nuevo sistema de salud. Este modelo conlleva

cambios organizacionales como la creación de aseguradoras y la instauración del modelo de atención gerenciada

(managed care) para la intermediación en la prestación de servicios. Adicionalmente, se instaura un mercado de

competencia regulado en el aseguramiento y prestación de servicios (managed competition).” Reforma colombiana de

salud basada en el mercado: una experiencia de “Managed care y managed competition”. Documento de Trabajo.

ASS/DT 004-03. Centro de Proyecto para el Desarrollo. CENDEX. 30 El Estado básicamente actúa como regulador de servicios. 31Según Ramírez Rodríguez, este modelo de salud simula un mercado competitivo regulado a través de la fijación del

precio y del producto. El producto es el POS y el precio la UPC que cubre el costo promedio del producto y de la

administración. La oferta la realiza las EPS y la demanda los afiliados de los regímenes existentes y de los “vinculados.

El funcionamiento del mercado depende de la interacción del producto, la oferta y la demanda. El mediador en la

interacción de la oferta y el producto es el Gobierno a través del Fosyga. Confróntese Ramírez Rodríguez, Carolina.

Ganarles en su propio juego. Los determinantes del éxito de Salucoop. Bogotá: Universidad Externado. 2005. 32 Según Ramírez Rodríguez, la organización industrial que caracteriza al mercado de salud es el oligopolio.

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que no en pocas ocasiones han estructurado continuas colisiones entre el Derecho Fundamental a

la Salud y el derecho a la libertad económica. Confrontaciones que generalmente ha tenido que

resolver la Corte Constitucional de Colombia en aplicación, generalmente, de la ponderación entre

derechos y del principio de proporcionalidad al estar enfrentados dos derechos de rango

constitucional.

Con relación a los principales temas de confrontación se puede afirmar que han sido en forma

principal sobre: sostenibilidad económica y equilibrio financiero de las empresas e instituciones,

integración vertical patrimonial, independencia técnica y administrativa, contenido del POSC,

cuotas moderadoras y copagos, periodos mínimos de cotización, mora en el pago de aportes y

cotizaciones, reconocimiento y pago de licencias de maternidad, reconocimiento y pago de

incapacidades médicas de carácter no profesional, y planes adicionales de salud-preexistencias.

A manera de ejemplo se exponen los siguientes casos reales de conflicto. En estos han muerto o se

han agravado las personas por la negativa de las entidades administradoras o de las prestadoras de

servicio por medio de barreras de acceso real y efectivo33.

Caso 1. T- 107 de 2007.

Niño. Jhon Alejandro Angel Roncancio (q.e.p.d). (Tres meses y medio)

Tipo de Barrera. De acceso. Económica. No POS. “…Fallecimiento de bebé como consecuencia

de vacunas que no le fueron aplicadas y que requería con urgencia para su enfermedad

Patología. “BRONQUIOLITIS

Decisión Corte Constitucional. Carencia de Objeto. DECLARAR la carencia actual de objeto,

comoquiera que el beneficiario de la acción de tutela, el menor Jhon Alejandro Angel Roncancio,

falleció durante el trámite de la misma.

Caso 2. T-756 de 2006.

33 Estas acciones de Tutela fueron revisadas por la Corte Constitucional de Colombia.

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Adulto mayor. Pablo Emilio Arias Echeverry (q.e.p.d). (83 años)

Tipo de Barrera. Administrativa. Dilación del procedimiento. “…dilatado injustificadamente

la atención médica que requería con urgencia, visto el crecimiento acelerado de una masa tumoral

en su rostro la cual debía ser operada con prontitud…”

Patología. Tumor cancerígeno en Cara.

Decisión Corte Constitucional. Carencia de Objeto. “…el paciente falleció el pasado 16 de

mayo de 2006 esperando la realización de la mencionada intervención quirúrgica…” (Resalto fuera

de texto)

5. Casos Brasil y Chile.

Latinoamérica, como antes se refirió, no ha sido ajena a las tendencias y presiones mundiales de

tratar la salud en el marco de la teoría de los mercados. Por ende, de la mercantilización de la salud

como un bien privado y las invenciones como productos de mercado de libre oferta y demanda.

Presiones que normalmente son de origen extranjero, ya sea por medio de Organismos de la banca

internacional o de grandes empresas farmacéuticas o de tecnología en salud como antes se había

enunciado.

Pese a que las presiones y la tendencia han sido generalizadas, la participación de actores privados

no ha sido igual en todos los países de la Latinoamérica. En unos se observa mayor

empoderamiento del concepto de derecho y una regulación fuerte estatal, y en otros una

participación más decidida de los agentes privados bajo la concepción del aseguramiento de la

salud, algunos más controlados y otros más desbordados.

En tal sentido los casos referidos a Brasil y Chile son bastante interesantes por sus diferencias

conceptuales y por la estructura de sus sistemas.

Brasil por ejemplo, presenta un sistema Universal denominado como él SUS, que es un sistema

tripartito basado en un modelo de atención familiar. Participa el Estado, las federaciones y los

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Municipios, Financian y gobiernan. Existe gran regulación y control. La participación de los

actores privados está concebida de manera complementaria. De su parte Chile presenta un esquema

más afincado en lo privado. No obstante ello, en la actualidad existe una importante gobernanza de

tipo gubernamental y un especial control a los particulares en tal país.

Con relación a Brasil, puede decirse que es un caso paradigmático de los sistemas únicos de salud

con universalidad fundamentada en el Derecho34 y no solo en la cobertura. No obstante ello, desde

la creación del SUS, parece existir una fuerte tensión con los agentes privados desde la

estructuración del Sistema de Atención Médica Suplementaria (SAMS)35.

El SUS como modelo de salud en el mundo es considerado como un sistema público de salud,

nacional y de carácter universal con una fuerte gobernanza, inspección, vigilancia y control, y con

amplia participación de la ciudadanía en la gestión y control social del Sistema.

Precisamente La Carta de los Derechos de los Usuarios de la Salud en Brasil, define varios

principios básicos del derecho a la salud, tales como: derecho al acceso ordenado y organizado al

sistema de salud; derecho a un tratamiento adecuado; respeto a la persona, sus valores y sus

derechos; responsabilidades del ciudadano, y compromiso de todos los gestores de la salud..

De su parte, el derecho a la protección de la salud en Chile36 se encuentra determinado como un

derecho, por tanto, con la estructura típica de un derecho a algo; está catalogado en el artículo 19,

34 Véase El Art. 196 de la Constitución Federal de Brasil que define: “La salud es derecho de todos ydeber del

Estado...”. Aquí se define de manera clara la universalidad de la cobertura delSistema Único de Salud.” 35 Según Víctor Becerril Montekio y otros, en el artículo Sistema de Salud en Brasil: “El sector privado complementa

la asistencia de losservicios públicos. El SAMS es un sistema de esquemasde aseguramiento que comprende la

medicina de grupocon planes de salud para empresas y familias, lascooperativas médicas, los Planes

Autoadministrados osistemas de aseguramiento de las empresas, y los planesprivados individuales.” 36 A diferencia de Colombia, Chile no tiene un solo sistema de seguridad social, tiene alrededor de 15 programas

destinados a la seguridad social, y estos hacen parte del sistema de protección chileno.

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numeral 9 de su Constitución de 1980, actualizada en 200537. El Decreto con Fuerza de Ley 1 de

2005 regula el “nuevo sistema de salud chileno”38.

El sistema público de salud chileno es mixto tanto en el financiamiento como en la prestación39.

En el financiamiento combina un esquema de seguridad social con un sistema de seguros de

carácter competitivo.

En Chile existe el denominado Plan AUGE que instruye los sistemas de salud público y privado,

para dar atención prioritaria a un grupo de patologías específicas40, determinadas por su alto y

frecuente impacto en la salud del pueblo chileno. Estos beneficios corresponden a las GES

(Garantías Explicitas de Salud) que aseguran, respecto a tales patologías, el acceso a la atención

médica, como también a un máximo de copago por parte del beneficiario.

Es de anotar que en Chile con la entrada del sistema democrático de gobierno se fortalece el

equilibrio entre lo privado y lo público respecto al tema de la salud y se pasa de una prevalencia

del aseguramiento privado a una participación mayor de lo público en beneficio de la salud

colectiva. Por ello, podría afirmarse que teniendo en cuenta los indicadores de gasto y de resultados

sanitarios Chile hoy presenta unos muy buenos niveles de salud pública e individual.

Brevemente, en cuanto a otros países de la región es de resaltar el caso de México como ejemplo

actual de la aplicación de las teorías del aseguramiento universal vía competencia de mercado, el

37 Precisamente se encuentra consagrado en el marco del capítulo III, De los Derechos y Deberes Constitucionales, sin

que se haga ninguna distinción entre los derechos allí establecidos. 38 De acuerdo con el artículo 131 del DFL 1 de 2005, el ejercicio del derecho constitucional a la protección de la salud

comprende el libre e igualitario acceso a las acciones de promoción, protección y recuperación de la salud y a aquellas

que estén destinadas a la rehabilitación del individuo, así como la libertad de elegir el sistema de salud estatal o privado

al cual cada persona desee acogerse. 39Véase Documento Perfil del Sistema de Salud en Chile. Programa de organización y gestión de sistemas y servicios

de salud. División de desarrollo de sistemas y servicios de salud. OPS. 2002. 40 Plan de Acceso Universal con Garantías Explícitas. Ley 19.966 de 2003. El Plan AUGE se puso en marcha en Chile

el 1 de abril de 2005 como proyecto piloto. Hoy cuenta con 56 patologías.

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de Perú en tal sentido y el de Ecuador que ha migrado desde su Constitución a los Sistema Únicos

de Salud basados en la salud como derecho al buen vivir.

REFLEXIONES

La tensión entre Sistema Únicos de Salud y sistemas de aseguramiento son una realidad en casi

toda Latinoamérica, con prevalencia en países como Colombia. Una tensión casi permanente entre

el Derecho Fundamental a la Salud y el aseguramiento privado. El primero basado en el enfoque

de derechos, irrenunciable, inalienables, universales e inherentes a la persona humana, con gran

preponderancia de la salud colectiva y pública y con prevalencia de los conceptos de promoción

de la salud y prevención de la enfermedad como un compromiso real, publico y social de cada

Estado ; y los otros basados en premisas de mercado, de costo beneficio, de coberturas

“universales”, de planes limitados de servicios, de exclusiones, de copagos, cuotas moderadores y

cuotas de recuperación, de lógicas afincadas en el aseguramiento de tipo privado y en la capacidad

de pago de las personas y lógicamente de barreras de acceso de todo tipo en aras de maximizar las

ganancias y de hacer más rentable el negocio de la salud.

Una visión integral y sistémica de los conceptos de seguridad social y de salud, una concepción

jurídica del derecho a la salud como un derecho seriamente fundamental, un sistema normativo

acorde a tal concepción, claro, preciso y coherente, una jurisdicción especializada en el tema de la

seguridad social y la salud, unos actores en función de la eficacia del derecho fundamental a la

salud antes que en función de meros intereses económicos, unos afiliados y beneficiarios

conocedores de sus derechos y deberes y unos órganos de dirección y control actuantes en función

del derecho fundamental a la salud en el marco de un Estado Social, son los fundamentos, entre

otros, para que el derecho fundamental a la salud sea protegido y respetado por los diferentes

Estados en procura del bienestar, la vida digna y con calidad de todas la personas.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFÍCAS

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HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HEIDEGGER

Cleyson de Moraes Mello1

RESUMO: É necessário o esclarecimento da experiência do direito como (um) modo de ser-pensar do homem. A investigação da realização do direito alinhado a partir da tutela da dignidade humana é enfrentada pela reconstrução fenomenológica. Daí a necessidade de compreender o Direito a partir do ser-no-mundo. Esta abordagem permite aprofundar um certo ponto de vista fenomenológico, de que o ser do homem (pessoa) está em jogo no seu existir, permitindo vislumbrar mais nitidamente a sua relação com o direito. Especialmente interessante é refletir o direito compreendido a partir do homem (pessoa) em seu próprio acontecer, historicamente situado. É na medida em que o ser-aí humano existe como fundamento do direito – e somente nesta medida -, é que o julgador poderá compreender a questão prévia do ordenamento jurídico pautado nos elementos da historicidade, mundanidade e personalisticidade.

Palavras-chave: Direito. Pessoa. Dignidade humana. Fundamento do direito. Historicidade. . SINTESI: È necessario chiarire l'esperienza di diritto (un modo) di essere uomo di pensiero. L'inchiesta della realizzazione della linea fin dalla protezione della dignità umana si trova di fronte alla ricostruzione fenomenologica. Di qui la necessità di comprendere il diritto da essere nel mondo. Questo approccio consente inoltre un certo punto di vista fenomenologico, che è l'uomo (persona) è in gioco nella sua esistenza, permettendo più chiaramente immaginare il loro rapporto con la legge. Particolarmente interessante è quello di riflettere il diritto periodo dall'uomo (persona) nel suo caso, storicamente situata. In quanto dell’essere-ci umano, vi è il fondamento del diritto - e solo in tal senso - è che il giudice può comprendere l'obiezione del sistema giuridico guidati da elementi di storicità, mondanità e personalistico. Parole chiave: Diritto. Persona. Dignità umana. Fondamenti del diritto. Storicità.

1 Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; Professor de Direito Civil, Hermenêutica e Introdução ao Estudo do Direito (Pós-Graduação e Graduação) UNESA, FAA-FDV, UNISUAM e UNIPAC (Juiz de Fora-MG); Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre – RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. E-mail: [email protected]

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Introdução

Com o advento do Código Civil Brasileiro de 2002 ganham destaque às cláusulas gerais

e os direitos da personalidade. A pessoa humana está inserida no direito sobre diversas

possibilidades, já que passa a colorir a exegese da fundamentação jurídica na contemporaneidade.

O direito deve ser interpretado em sintonia com as cláusulas constitucionais protetivas da

personalidade, quais sejam: dignidade humana como valor fundamental da Constituição da

República (art.1o, III, da CRFB/88) e igualdade substancial (art. 3o, III, da CRFB/88).

Ora, daí a necessidade de o jurista conhecer o que é o homem, saber o que significa a

dignidade humana e realizar o amálgama com a realidade jurídica.

É na esteira da filosofia existencialista que a pessoa ganhar status de questão prévia para

o ordenamento jurídico, já que esta não pode ficar aprisionada ao rol de direitos subjetivos

encontrados no sistema jurídico. A pessoa não pode ser considerada como um reduto do poder do

indivíduo, mas sim “como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz

de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de legitimidade”.2 Nesse sentido que o

autor fala de uma verdadeira “cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana”, tomada

como valor máximo pelo ordenamento.3

FRANCISCO AMARAL, antes do advento do novo Código Civil de 2002, já alertava

sobre as tendências do direito civil contemporâneo, em especial, quanto à personalização do direito

civil, no sentido da crescente importância da vida e da dignidade da pessoa humana, elevadas à

categoria de direitos e de princípio fundamental da Constituição. É o personalismo ético da época

contemporânea.4

É neste ponto que se desvela o sentido existencial do próprio ser humano, visto como valor

fundamental de nosso ordenamento jurídico. Neste caso, é o princípio da dignidade da pessoa

humana ressoando em sua mais nobre originalidade.

2 TEPEDINO, Gustavo. Crise de Fontes Normativas e Técnica Legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo. (Org.) A Parte Geral do Novo Código Civil – estudos na Perspectiva Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.XXV. 3 Ibid.,p. XXV. 4 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.151-153.

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É a hermenêutica ontológica (modo de ser) que ajudará o interprete a conduzir o

entrelaçamento entre Pessoa e Direito. No mundo pós-moderno, o jurista não pode ficar adstrito

ao conceito de pessoa (sujeito) abstrata, tal como os atores mitológicos: Tício, Mévio e Caio. Ora,

na maioria das vezes o que se vê é um completo esvaziamento do conceito de pessoa.

Um Novo Viés Epistemológico

O Direito, instruído pela hermenêutica filosófica, deve desenvolver um discurso mais

sólido com a história, a cultura, a fenomenologia, a psicanálise, a antropologia, a filosofia, a moral,

de forma a ter uma visão mais completa a respeito do homem.

A cultura jurídica operada em salas de aula e nos tribunais de justiça deve ser

desconstruida (visão de um sistema fechado codicista) em busca de uma postura metodológica mais

aberta, prospectiva que dê suporte a uma sociedade complexa e pluralista. Isso não quer dizer que

o julgador desconsidere a segurança jurídica e passe a decidir de forma arbitrária (neste caso,

estaríamos diante de um Estado-Judiciário). Pelo contrário, a jurisprudência deve reconhecer a

eficácia normativa dos princípios constitucionais, bem como recorrer a hermenêutica jurídica não

como um conjunto de metódos (hermenêutica metodológica), mas sim como condição de

possibilidade (hermenêutica filosófica).

O locus hermenêutico constitucional esta fincado no princípio fundante da proteção da

dignidade da pessoa humana. Daí que mais do que aplicar, torna-se necessário compreender o

Direito. O direito deve estar relacionado à pessoa, de acordo com as suas exigências, o seu

ambiente e a sua cultura. Mas como relacionar o Direito a um mundo multicultural? Esta é uma

das mais árduas questões na atualidade. Assim, o direito deve ser dotado de mundanidade e

personalisticidade, respeitando o multiculturalismo e os direitos humanos.

Ora, é a concepção do fenômeno jurídico alinhado ao mundo da vida ou mundo vivido

(Ernildo Stein). É o interfaceamento do direito com a idéia de ser-no-mundo (Dasein, na concepção

heideggeriana). Melhor dizendo: é a possibilidade de análise do fenômeno jurídico a partir de suas

vicissitudes totalitárias concretas no mundo da vida. É a relação jurídica ajustada a uma nova

dinâmica social de inter-relação humana vista a partir de suas especificidades concretizantes. É o

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Direito inserido na pós-modernidade. Por exemplo, não podemos compreender o direito somente

lendo os manuais, devemos também praticá-lo, analisar e refletir acerca da concretude judicial,

adaptá-lo de forma que a pessoa seja o epicentro do ordenamento jurídico, realizando um

entranhamento da pessoa na esfera jurídica.

Outro ponto importante para o direito é inseri-lo em sua historicidade. O Direito é um

sendo, é um acontecer, é uma abertura de possibilidades. O direito deve ser compreendido a partir

do homem em seu próprio acontecer, historicamente situado. A hermenêutica, com o viés da

ontologia fundamental, procura interrogar o ser por meio da historicidade e da temporalidade do

ser-aí, ou seja, compreender a questão do ser fora do contexto da tradição metafísica. Dessa

maneira, a compreensão do direito não é nunca uma tabula rasa, senão um substrato que já possui

uma pré-compreensão (uma questão prévia).

A historicidade é um dos elementos que constituem o ser do homem. GADAMER, em

Verdade e Método, tratou da consciência história.

Daí a importância do julgador inserido e compreendido no processo de criação do direito

a partir de um horizonte histórico. É o deixar que a pré-compreensão, os preconceitos falem por si

na conformidade de uma situação hermenêutica. Na verdade, o que importa é que o interprete

jurídico fique atento à fusão de horizontes. GADAMER afirma que “o horizonte do presente está

num processo de constante formação, na medida em que estamos obrigados a pôr à prova

constantemente todos os nossos preconceitos. Parte dessa prova é o encontro com o passado e a

compreensão da tradição da qual nos mesmos procedemos. O horizonte do presente não se forma

pois à margem do passado. Nem mesmo existe um horizonte do presente por si mesmo, assim como

não existem horizontes históricos a serem ganhos. Antes, compreender é sempre o processo de

fusão de horizontes presumivelmente dados por si mesmos. Nós conhecemos a força dessa fusão

sobretudo de tempos mais antigos e de sua relação para consigo mesmos e com suas origens. A

fusão se dá constantemente na vigência da tradição, pois nela o velho e o novo crescem sempre

juntos para uma validez vital, sem que um e outro cheguem a se destacar explicitamente por si

mesmos.”5

5 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997. p.457.

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É justamente por isso que precisamos ajustar a dogmática jurídica ao novo, ao efêmero,

ao poder-ser, a diversidade, à diferença, ao pluralismo, bem como enfrentar as relações jurídicas a

partir de sua dinamicidade espaço-tempo cultural.

Para compreender o homem é, pois, necessário a compreensão de sua historicidade. Da

mesma forma, para compreender o direito a partir da pessoa é necessário se colocar no lugar do

outro (Hermenêutica do Tu).

Assim, se este entrelaçamento entre direito e pessoa é um entrelaçamento necessário e

originariamente uno, a questão do fundamento do direito perpassa esta discussão que deve ser uma

questão prévia do ordenamento jurídico. Ora, desta forma, o problema do fundamento do direito é

o problema da essência da dignidade da pessoa humana.

É necessário, pois, a realização do ultrapassamento do ente (texto legal normativo) em

direção ao ser do direito (o direito visto a partir do próprio ser-aí humano). Melhor dizendo: o

direito entificado (objetificado, coisificado) é ultrapassado por algo designado pelo fenômeno da

(re)personalização do direito.6 É um modo de compreender o direito como constituição

fundamental do próprio direito, uma constituição que acontece previamente antes de todo o

fenômeno jurídico.

Direito e pessoa coexistem na estrutura prévia do fenômeno jurídico. O sujeito nunca

existe antes como “sujeito abstrato”, para então subsistir no caso concreto decidendo; mas ser

sujeito (pessoa) quer dizer coexistir na própria fundamentalidade do direito. A pré-compreensão já

é muito mais a decisão judicial fincada no binômio direito e pessoa.

Destarte, a estrutura fundamental do direito não pode mais ser determinada a partir da

“relação sujeito-objeto”. Na exegese jurídica, o texto legal normativo deve ser ultrapassado de

forma que a compreensão e o fundamento do direito esteja umbilicalmente atrelado ao ser-aí

humano.

É no momento do ultrapassamento (momento em que o ser ultrapassa o ente) que a pessoa

vem primeiramente ao encontro do texto legal. É uma espécie de dignificação e ontologização do

direito. É só na ultrapassagem e por meio dela que o julgador poderá realizar correções normativas

com vistas a priorizar a dignidade da pessoa humana. Na medida em que o ser-aí humano existe

como fundamento do direito – e somente nesta medida -, é que o julgador poderá ter um

6 Também conhecido como fenômeno da despatrimonialização do direito.

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comportamento exegético de forma a alinhar a decisão judicial aos elementos de historicidade,

mundanidade e personalisticidade intrínsicos ao mundo jurídico na pós-modernidade.

É o direito inserido no ser-no-mundo, isto é, o direito (re)encontrado em sua essência.

Vale lembrar que de acordo com as lições heideggerianas, o ser-no-mundo não está atrelado a uma

situação fática, senão ontológica. Heidegger afirma que “o discurso que trata do ser-no-mundo não

é uma verificação da ocorrência fática de ser-aí; ele não é, aliás, de maneira alguma uma enunciação

ôntica. Ele se refere a um estado de coisas essencial (Wesensverhalt) que determina o ser-aí em

geral e tem como conseqüência o caráter de uma tese ontológica. Por conseguinte, o que importa

é: o ser-aí não é um ser-no-mundo pelo fato de, e apenas pelo fato de existir faticamente; mas, pelo

contrário, ele só pode ser como existente, isto é, como ser-aí, porque a sua constituição essencial

reside no ser-no-mundo.”7

Direito e Pessoa

Como visto acima, o direito não pode ser explicado a partir de uma relação sujeito-objeto,

em que se instaura a subjetividade do sujeito com a objetividade do objeto.

A superação da relação sujeito-objeto é à busca do homem em sua essência, como

possibilidade e modo de ser-no-mundo, ou seja, é o caminho em direção a uma humanização do

Direito.

Ora, o que é ser pessoa para o direito? Estaríamos limitados ao direito da personalidade na

esfera juscivilística ou seria necessário aplicarmos o princípio da dignidade da pessoa humana em

toda e qualquer relação jurídica interprivada? Ou melhor: o que é o homem para o direito? Nas

investigações antropológicas abandonou-se o terreno metafísico em busca de novas imagens para

o homem. Vejamos: a) o homem econômico (Marx); b) o homem instintivo (Freud); c) o homem

angustiado (Kierkegaard); d) o homem utópico (Bloch); e) o homem existente (Heidegger); f) o

7 HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2008, p.153.

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homem falível (Ricoeur); g) o homem hermenêutico (Gadamer); h) o homem cultural (Gehlen),

etc.8

Como restaria a aplicação do direito? O sentido jurídico da pessoa estaria limitado aos

comandos do nosso ordenamento jurídico ou seria necessária uma ampliação na exegese jurídica

no exercício da tutela jurisdicional?

A relação entre direito e pessoa é uma questão prévia do ordenamento jurídico! É uma

questão de pré-compreensão (viés ontológico) que perpassa a análise dos fundamentos do direito.

Levando-se em consideração as complexas e difusas relações do mundo vivido, torna-se evidente

a necessidade de procurar uma (re)fundamentação do pensamento jurídico. O direito não pode mais

ser visto como um objeto cognoscível, da mesma forma que o julgador não será como um sujeito

cognoscente passivo e desinteressado.

No momento da prestação jurisdicional, o homem, a sociedade, o mundo, os valores, a

cultura, a historicidade e a temporalidade não podem ser desconsiderados.

Um sistema jurídico axiologicamente neutro, a-temporal, a-histórico já representa um

perigo a ser evitado, uma vez que as funções judicativo-decisórias devem considerar a pergunta

sobre o direito e a pessoa.

É comum no mundo pós-moderno que a norma jurídica abstrata não agasalhe o problema

do caso concreto decidendo ou que decisões judiciais se tornem esdrúxulas ou descontextualizadas

se a metodologia jurídica aplicada for aquela de cariz dedutivística. Verifica-se, também, que

soluções normativas são construídas por magistrados que conseguem vislumbrar os parâmetros

jurídico-constitucionais de aplicabilidade necessária em cada caso concreto, em especial, naqueles

que reflitam o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Caso contrário, imperar-se-á por toda a parte uma atitude de subserviência ao texto legal,

representando, assim, a inautenticidade do Direito, isto é, a reificação do direito. Isso representa

uma prestação jurisdicional restrita às atividades lógicas, científicas, cuja visão objetivista dos

entes está em distonia com o mais digno de ser pensado, qual seja: o pensar o ser e a verdade da

faticidade do ser-aí.

8 MONDIN, Battista. O Homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. 13.ed. Tradução Leal Ferreira e M.A.S. Ferrari. São Paulo: Paulus, 2008, p.13.

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É necessária a busca pela essência do Direito. O que essencializa a ciência jurídica já não

pode ser uma ciência, já que esta essência é algo de meta-ciência. Isto se dá porque a essência de

alguma coisa só pode ser pensada. É algo existencial; logo, não é um ente.

Daí que o Direito não pode mais ser concebido como uma ordem normativa isolada, cujo

fundamento de validade seja encontrado em si mesmo, alheio ao homem real e concreto inserido

no tecido social. Ao contrário, o Direito deve ser compreendido a partir de um pressuposto

constitucional, de caráter existencialista.

É nesse sentido que o Direito seria entendido como de-cadente e em si alienante, já que

ocorreria o encobrimento do seu poder-ser mais próprio, desatrelado ao modo de ser-no-mundo.

Essa alienação gera um aprisionamento do próprio julgador, uma vez que sua decisão estaria

distanciada de seu sentido mais originário.

A dinamicidade social é complexa e plural. Neste sentido, situações existenciais humanas

conflituosas exsurgem do mundo da vida fazendo com que o direito tutele tais colisões jurídicas a

partir de um horizonte ontológico-existencial.

Nestes termos, não se pode dispensar o desenvolvimento de toda uma crítica ao direito posto

e o empenho na construção de um novo horizonte fundacional para o ordenamento jurídico,

sobretudo, face à complexidade social do novo milênio.

Assim, o direito se revela fortemente problemático. Apresenta-se normativamente

inadequado e institucionalmente ineficiente frente a uma sociedade hodierna alinhada por uma alta

complexidade estrutural, que suscita uma série de questões novas.9

Essas questões são fruto de uma radical mutação dos referentes axiológicos e culturais de

nossa sociedade. É preciso, pois, “uma efetiva renovação dos esquemas interpretativos, que se

caracteriza pela redefinição dos valores jurídicos e de categorias tradicionais do Direito.”10 Nesta

linha, afirma François Ost que a vida do direito “está longe de representar esse longo rio tranqüilo

que muitos imaginam talvez do exterior: nele se agitam as forças vivas da consciência social e se

enfrentam os mais variados tipos de práticas e interesses.”11

9 NEVES, Antonio Castanheira. O Direito hoje e com Que Sentido?: O problema actual da autonomia do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p.10. 10 BARRETTO, Vicente de Paulo. Apresentação da Coleção Díke. In: OST, François. Contar a Lei: As Fontes do Imaginário Jurídico. Tradução Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2005. p.7. 11 OST, François. Contar a Lei: As Fontes do Imaginário Jurídico. Tradução Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2005. p.19.

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Por exemplo, o Direito da Bioética é na atualidade um solo fértil para o debate acerca do

direito, da pessoa, da ética, da filosofia, da sociologia, etc. Questões como o início da vida, a

procriação assistida, a reprodução pós-morte, a clonagem, a utilização de embriões para fins de

pesquisa e terapêuticos e a apreciação ética da proteção do embrião são assuntos em pauta no

mundo do direito.12 Estes exemplos permitem demonstrar que, na maioria das vezes, direito e

pessoa devem estar em sintonia com a racionalidade normativa do sistema jurídico. Melhor

dizendo: direito e pessoa estão entrelaçados aos conteúdos normativos materiais historicamente e

temporalmente considerados. O sistema das normas jurídicas não pode ficar dissociado de sua

realização concreta. Não há como enfrentar aquelas questões no anonimato da pessoa humana.

Os conceitos de vida, do direito e da pessoa sofrem um redimensionamento com os avanços

da biologia e da biotecnologia. Neste sentido é possível perguntar: qual a influência dos novos

cenários trazidos pela biotecnologia na definição dos conceitos de direito e pessoa?

Mais uma vez frise-se que o direito fechado sobre si mesmo numa ambiência formal e

abstrata fomenta uma alienação de uma realidade social em mutação e se afasta cada vez mais do

contexto sociocultural contemporâneo.

Neste sentido, Castanheira Neves tem ensinado que a abertura para um funcionalismo

jurídico é o meio para superar o normativismo, com o seu formalismo e o seu lógico-sistematismo.

Nessa linha do funcionalismo, o direito deixa de ser um sistema auto-susbsistente e passa a ser um

“instrumento e um meio ao serviço de teleologias que de fora o convocam e condicionalmente o

submetem”.13

Talvez o grande desafio seja o de pensar o Direito e a Pessoa com vistas na profunda

mutação dos valores, da moral, da ética e dos novos comportamentos sociais.

Os valores de índole liberal-individualista passam a ser sopesados por valores de cunho

solidarista e de justiça social. Vê-se, portanto, a necessidade de re-flexão acerca da

jusfundamentalidade jurídica. Refletir não é trancar-se isoladamente em um conjunto de normas

em si e por si. É na reflexão do direito que se retorna ao seu fundamento sem fundo, seu abismo.

12 ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos de Direito da Bioética. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2008. 13 NEVES, op.cit., p.31.

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Conclusões

A decisão judicial não pode ficar limitada a ser a simples resultante da lógica dedutiva. É

necessário, pois, haver horizontes, ou seja, o julgador não pode ficar limitado ao direito positivo,

ao texto da lei.

Os conceitos de direito e pessoa devem dialogar com as dimensões culturais, sociais e

históricas de seu tempo.

Pensar o Direito em sua forma mais profunda, mais originária, a partir do pensamento mais

digno de ser pensado, é um caminhar em direção aos cânones constitucionais, em especial,

respeitando a tutela da proteção da dignidade da pessoa humana. É um caminhar ontológico e não

metodológico.

O caso concreto decidendo deve ser ontologicamente analisado a partir da hermenêutica

ligada ao modo de ser-no-mundo, a uma essência do Ser que é a Essência do homem, ao homo

humanus.

A compreensão do fenômeno jurídico deve ocorrer a partir de uma forma originária, através

de uma pre-compreensão jurídica em que o intérprete está inserido numa tradição histórica na qual

se insere (círculo hermenêutico).

É através de uma situação hermenêutica que o intérprete e aplicador do direito deve

compreender a pessoa na unidade do ordenamento jurídico, articulando as normas jurídicas entre

si e com outras disciplinas afins relativas aos estudos da pessoa humana. Somente então será

possível a reelaboração da dogmática jurídica pautada na pessoa, de forma a adequar a aplicação

daquela às situações flexíveis e mutáveis da vida humana.

Os comandos normativos rígidos aliados a uma forma mecanicista de ser e pensar o direito

distancia o direito da pessoa. Daí o motivo de a norma jurídica requerer sempre uma interpretação.

O magistrado não pode proferir sua decisão judicial por meio apenas do procedimento lógico-

formal, segundo um modelo clássico do silogismo lógico-dedutivo. A dimensão hermenêutica deve

habitar o espaço jurídico, visto que a pré-compreensão do intérprete “entra em jogo”, como modo

de ser da condição humana de ser-no-mundo. Por isso a fenomenologia hermenêutica se faz

presente na estrutura e na organização do pensamento jurídico.

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É a proeminência do como hermenêutico, em que o ser do Direito é entendido como

condição de possibilidades. Nesse sentido, as lições de LENIO STRECK, “é exatamente por isto

que não se pode confundir hermenêutica, entendida como filosofia hermenêutica ou ontologia

fundamental, com qualquer teoria da argumentação jurídica ou ‘técnicas, métodos ou cânones’ de

interpretação, que são procedimentos discursivos que vão se formando numa sucessão de

explicitações que nunca se esgotam, e que cuidam de outra racionalidade, que é apenas

discursiva.”14

A missão do juiz é atuar como um agente de transformação que não se limita a ser um

aplicador passivo de regras e princípios preestabelecidos, mas sim um instrumento de mudança

social, pautado pelos objetivos socioeconomicos atuais, levando-se em consideração a

complexidade e a pluralidade da sociedade.

Neste momento, cabe ao julgador a máxima cautela no processo decisório com vistas a

proteger-se das opiniões prévias inadequadas, da arbitrariedade e do subjetivismo. Ao interprete

cabe realizar sempre um projetar.15 Nesse sentido, GADAMER afirma que a compreensão do texto

consiste na elaboração de um projeto prévio que deve ser constantemente revisado à medida que

se penetra em seu sentido.16 É desta forma que o interprete jurídico deve proceder, ou seja, a partir

do primeiro sentido do texto legal, o julgador prelineia um sentido do todo. Isto quer dizer que deve

analisar o caso concreto em todas as suas possibilidades, elaborando um projeto prévio que vai

sendo constantemente revisado a partir da releitura do texto à luz dos princípios constitucionais. É

esse constante reprojetar no qual os conceitos prévios são substituídos por outros mais adequados

que protege o intérprete dos erros de suas opiniões prévias.

O desvelamento de um direito autêntico torna-se um processo gradativo através do qual os

magistrados, isoladamente ou em combinação com os demais operadores do direito, procuram

superar as técnicas tradicionais de hermenêutica, juntamente com as operações lógicas utilizadas

para dizer o Direito. Digamos que é a superação das crenças, mitos e superstições do Direito.

14 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.256. 15 Gadamer afirma que “quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 402. 16 Ibid.

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As normas jurídicas não ficam mais relacionadas a uma norma fundamental kelseniana,

norma pressuposta, mas sim, devem ser pensadas a partir do entrelaçamento dos conceitos de

direito e pessoa.

É a partir de um nível antropológico-existencial que o direito vai desfazer o abismo que o

separava do ser humano.

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A PARCIALIDADE DO JUIZ NAS CONCEPÇÕES DE DUNCAN KENNEDY E DE RICHARD POSNER: UMA

BREVE EXPOSIÇÃO

Mariana Azevedo Comello Oliveira1

RESUMO: O trabalho pretende verificar os critérios de tomada de decisão tanto em Richard

Posner, quanto em Duncan Kennedy. A partir dessa verificação dos critérios, pretende encontrar

elementos que indicam, tanto no plano positivo, quanto no plano normativo (quando possível),

notas que levam à defesa ou à admissão de um juiz parcial. A questão que se pretende responder

nesse trabalho é, se nessas teorias funcionalistas, que se afastam de uma pretensão de conferir

autonomia ao Direito, os juiz são ou devem ser parciais.

ABSTRACT: This paper aims to verify the criteria for decision making in both Richard Posner,

as Duncan Kennedy. From this verification criteria, it wants to find elements that indicate both

- the positive level, as the normative level (when possible) - notes that lead to the admission or

a defense of a partial judge. The question that is present here is: if for those functionalists

theories that deviate from a claim to an autonomy of the law, the judge is or should be partial.

Introdução

O objetivo deste trabalho foi identificar a parcialidade do juiz em dois autores que se

contrapõem entre si e, ambos, se contrapõem à autonomia do direito. Eles são contra essa

autonomia porque acreditam que o Direito não é um sistema metódico completo para resolver

todos os problemas que a ele (Direito) são submetidos. Por isso, nessas visões, são importadas

para o Direito outras propostas metodológicas, como as da economia e das ciências sociais.

Os autores escolhidos para essa tarefa foram:

a) Richard Posner, que formulou, primeiramente, uma teoria do direito capaz de explicar as

propostas da análise econômica do direito desenvolvida pelos economistas da Escola de

Chicago. Suas propostas serão melhor esclarecidas à frente. Posner começou a dar aulas em

1968, em Stanford e, em 1969, na Universidade de Chicago, até tornar-se, em 1981, juiz do

1 Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas/Menção em Direito Internacional Público e Europeu.

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tribunal de apelação para a 7ª região (U.S. Court of Appeals for the Seventh Circuit), tribunal

do qual foi presidente (chief Justice) entre 1993 e 2000. Hoje, continua dando aulas na

Universidade de Chicago em meio período.

É um dos principais expoentes da Law and economics, uma corrente de pensamento jurídico

segundo a qual os processos legais, mais do que assegurar direitos, devem produzir a mais

eficiente alocação de recursos. A teoria de democracia de Posner inspira-se no trabalho do

economista austríaco Joseph Schumpeter. O livro fundamental de Posner é Economic Analysis

of Law (1972), no qual lança as bases do programa de pesquisas de Law & Economics2, e

b) Duncan Kennedy: nascido em Washinton em 1942, é um dos juristas responsáveis pelo

movimento denominado Critical Legal Studies. É professor na universidade de Harvard, nos

EUA, desde 1976, e, desde 1996, Carter (catedrático) Professor of General Jurisprudence.3

Começo com uma pergunta lançada por Posner que ao mesmo tempo que provoca os

formalistas, dizendo que os juízes são humanos e se comportam de acordo com suas tendências,

personalidade e etc..., também provoca a proposta de Duncan Kennedy porque, se admitirmos

que os juízes são parciais, por que eles sempre têm que decidir em favor dos pobres em

detrimento dos ricos?

Uma vez que os juízes são humanos, não podemos esperar por

uma administração perfeitamente imparcial da justiça; e, se a

predisposição é inevitável, por que se deveria considerar que

uma administração da justiça que pende sutilmente para os ricos

é mais indecorosa do que outra que pendesse para os pobres?4

Essa pergunta formulada por Posner é aqui utilizada, para os propósitos desse texto, como

forma de expor o problema: a parcialidade do juiz. A resposta a essa questão não será dada

2 Informações disponíveis no sítio da Universidade de Chicago: http://www.law.uchicago.edu/faculty/posner-r

Acesso em: 1/7/2014. 3 Informações disponíveis no sítio da Universidade de Havrad:

http://www.law.harvard.edu/faculty/directory/10469/Kennedy Acesso em: 1/7/2014. 4 Posner, Richard A. Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins

Fontes. 2007. P. 206

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pelas teorias da dogmática do Direito mais tradicionais (principalmente a processualista e a

constitucionalista)5. Isso porque considero que nessas perspectivas o dogma da imparcialidade

não é aberto à reflexão com a mesma dimensão que o viés analítico que assumirei evidência.

Assim, irei utilizar dois pensamentos distintos para o esforço de refletir sobre a questão.

Primeiramente, trabalharei com um dos autores, da escola dos Critical Legal Scholars, mais

especificamente com alguns escritos de Duncan Kennedy sobre o tema: a parcialidade do juiz.

Depois, trabalharei com a tese adversa: a análise econômica do Direito, especificamente, com

alguns pensamentos de Posner expostos na obra “Problemas de Filosofia do Direito e na obra

“Como os Juízes Pensam”, cuja evolução do pensamento do autor é retratada no texto de Aroso

Linhares, intitulado “O pensamento tecnológico-social económico – a análise económica do

direito (Law and Economics)”.

Tendo em conta a própria evolução no pensamento de Richard Posner, é de se observar que

entre a publicação da primeira obra em referência, em 1990, e a publicação da segunda obra

referida, em 2008, Posner parece deixar o eficientismo, como critério decisivo nas decisões

judiciais e assumir uma postura mais pragmática (como ele a denomina).6

Por fim, nas considerações finais, procurarei encontrar as potencialidades e as fragilidades

existentes em cada perspectiva analisada.

5 Uso o termo dogmático no sentido de uma verdade inquestionável, um dogma do direito, que pretendo

desconstruir ao longo desse trabalho. 6 Para Aroso Linhares, importa acrescentar que esta orientação pelas consequências, iluminada por uma opção

pragmática, se distancia uma vez mais da «lógica» de um consequencialismo utilitarista. Agora decerto porque se

trata de defender que nem todas as consequências são possíveis. O problema não é de resto de um pragmatismo

jurídico quanto o de um pragmatismo juridicamente relevante e (ou) juridicamente possível (adequado ao meio-

milieu institucional do direito e aos policy judgments que este permite, ou mais rigorosamente, capaz de respeitar

as «regras» do «jogo judicial»), numa palavra, o problema de um «pragmatismo limitado» (constrained

pragmatism)… que se nos oferece simultaneamente como um «rule» pragmatism (the word that best describes the

average american judge is «constrained pragmatist»), the pragmatic judge must play by the rules of the judicial

game, just like other judges (…)[and] the rules permit the consideration of certain types of consequence but forbid

the consideration of other types ) (In Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico

– a “análise económica do direito (Law and Economics). Texto não publicado. P. 30).

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A visão de Duncan Kennedy

Antes de entrar propriamente no pensamento de Kennedy sobre a parcialidade do juiz, faço um

breve enunciado de texto extraído das lições de Aroso Linhares sobre os CLS.

(...) na breve incursão que ensaiámos pelas modalidades do funcionalismo político, esta se nos

impõe em último lugar: se é certo que as intenções partilhadas por este movimento (e pela

escola e pela teoria que lhe sucederam) nos expõem, por um lado, sem equívocos, a uma

compreensão do direito como política — e com esta tanto a uma denúncia do carácter

insuperavelmente ideológico da jurisdição quanto à exigência de submeter as práticas e os

discursos jurídicos a um «uso puramente instrumental (comprometido com «objectivos de

esquerda), não o é menos que a concepção assim proposta se distingue, por outro lado,

significativamente, de todas as modalidades do funcionalismo material que já considerámos

(bem como daquelas que ainda iremos considerar).7

Essa breve nota de introdução serve a demonstrar o caráter ideológico de jurisdição, ou seja,

uma jurisdição “parcialmente” comprometida com os projetos políticos de esquerda, no caso

dos CLS. E no caso do outro funcionalismo aqui também tratado, uma denúncia que a pretensa

neutralidade ideológica de uma teoria que se aproxima da ciência econômica acaba por

camuflar uma ideologia: é em última análise a ideologia de não se ter uma ideologia.

Contextualizando Duncan Kennedy, no movimento e escola CLS, segue que ele, dentre outros

autores como Roberto UNGER, Peter GABEL, Karl KLARE, Mark TUSHNET, Morton J.

HORWITZ, Mark KELMAN, Dave TRUBEK e Robert GORDON, desenvolvem-se

(estabelece o seu patrimônio de recursos-cânones) entre os finais dos anos 70 e a primeira

metade da década seguinte… e corresponde a uma inequívoca concentração de forças em torno

do compromisso transformador — se quisermos, a uma acentuação privilegiada do que

KENNEDY virá a dizer the left element (the left element means radical egalitarianism and

participatory democracy). Essa, a primeira etapa da evolução dos CLS, mobilizando (entre

muitos outros) os founding fathers . Em realidade, para Aroso Linhares, essa divisão em três

7 Aroso Linhares, José Manuel. Teoria do Direito: Critical Legal Studies. Artigo não publicado.

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etapas, dentre as quais, Kennedy situa-se na primeira, não são como compartimentos estanques,

fáceis de se identificar.8

Já, agora, entrando no cerne do problema proposto na introdução do presente paper, esclareço

que Duncan Kennedy inicia o capítulo intitulado “A distinção entre Adjudication (decisão

judicial) e legislação9, enfatizando uma importante e recorrente distinção feita em teoria política

e em teoria jurídica, em particular, entre o processo de decisão judicial e o legislativo, acusando

que grande parte da literatura especializada denega o elemento ideológico na formação das

decisões judiciais, isolando-o no processo legislativo. Afirma, ainda, que examinará algumas

formas em que o elemento ideológico toma parte nas decisões judiciais, ao contrário do que

pensa a grande maioria dos juristas.10 Adverte que, há duas maneiras que as Cortes excluem ou

deveriam excluir o elemento ideológico de suas decisões: a primeira delas é acreditar em um

processo legislativo objetivo; a segunda, é que as decisões judiciais não podem ser pessoais

(com base em valores pessoais).

Para os fins desse trabalho, que é contestar a imparcialidade do juiz, utilizando-se, para tanto,

de dois referenciais teóricos não formalistas, o fato de Duncan Kennedy trabalhar com o

elemento ideológico no processo de formação das decisões judiciais, penso, já apontar para a

parcialidade do juiz nesse espaço teórico. Ainda aqui, é um pouco cedo, para afirmar se essa

parcialidade é descritiva e ou normativa.

Mas, aprofundando um pouco mais no pensamento dos CLS e do próprio Kennedy, segundo

Aroso Linhares, esse movimento tem por objetivo denunciar a concepção tradicional da rule of

law e do constitucionalismo liberal — e esta concepção enquanto assimila a montante uma

compreensão global da societas e do seu mega market-place, mas também enquanto se projecta

a jusante numa institucionalização-conformação das práticas juridicamente relevantes

(distribuindo papéis distintos à legislação e à jurisdição e confiando ao pensamento dogmático

e metadogmático tarefas de legitimação imprescindiveis). De a denunciar em que termos?

Reconstruindo-a sob as máscaras (mais unívocas ou mais complexas) do que se poderá dizer

um liberal legalism ou uma rationalizing legal analysis: o que aqui e agora significa

8 Aroso Linhares, José Manuel. Teoria do Direito: Critical Legal Studies. Artigo não publicado. 9 Kennedy, Duncan. A critical of adjudication. E. Ed. Boston: Harvard University Press. 1998. P. 23. 10 Kennedy, Duncan. A critical of adjudication. E. Ed. Boston: Harvard University Press. 1998. P. 23.

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comprometê-la aproblematicamente com um «falso concreto» e com a «conspiração colectiva»

(«inconsciente» embora) que o reproduz. Ora um «falso concreto» que se identifica (no seu

núcleo) com a crença «reificada» (se não mesmo «fetichizada») na «necessidade» de um direito

e de um pensamento jurídico livres da política, como tal iluminados pela possibilidade de um

discurso racionalmente determinado (law as reason) — um discurso que «feche» as respostas e

evite a abertura infinita das discussões filosóficas e ideológicas (formalism as (…) a belief in

the possibility of a method of legal justification that contrasts with open-ended disputes about

the basic terms of social life), na medida precisamente em que (confessada ou

inconfessadamente) pressuponha a representação de uma «ordem inteligível» e a procura

(persistentemente recomeçada) de uma «linguagem universal» (formalism pressuposes at least

a qualified objectivism). 11 A partir dessas considerações, já se vê um elemento de

normatividade na proposta de parcialidade do juiz. Parcialidade no sentido de não se conformar,

de ser progressista.

Sobre essa visão mais tradicional e formalista, Duncan Kennedy descreve: o que os legisladores

fazem são as leis, enquanto que os Tribunais aplicam as leis aos fatos.12 Essa visão mais

tradicional e formalista, aparenta para mim estar ancorada em um conceito mais abstrato, um

conceito iluminista: a separação dos poderes (das funções do Estado). Essa construção é fruto

das teorias liberais, segundo acusa o autor. Nesse caso, o autor exemplifica, que no processo de

decisão judicial, essa distinção de funções do Estado continua clara, mesmo quando se

reconhece que as normas, para serem aplicadas, devem ser reconstituídas. Isso, porque, segundo

ele, esse processo de reconstituição passa pela definição das palavras que integram o texto legal,

processo esse que pode ser semântico ou dedutivo. Esse processo de busca pelo significado da

terminologia não é compreendido pelos formalistas, como um processo de construção de

normas: seria parte do método de aplicação das leis aos fatos, mesmo nos casos difíceis.13

Mais à frente, justifica essa teoria liberal. A decisão sobre valores é uma decisão política,

subjetiva, e por ser política e subjetiva, deve ser feita por políticos eleitos com essa finalidade.

Nessa perspectiva, na visão mais tradicionalista da Teoria do Direito, as decisões judiciais

11 Aroso Linhares, José Manuel. Teoria do Direito: Critical Legal Studies. Artigo não publicado 12 Kennedy, Duncan. A critical of adjudication. E. Ed. Boston: Harvard University Press. 1998. P. 26. 13 Kennedy, Duncan. A critical of adjudication. E. Ed. Boston: Harvard University Press. 1998. P. 26.

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(adjudcation) envolvem questões de significado e de fato, que são independentes da discussão

sobre valores (objetividade). 14

Esse esquema liberal, parece defeituoso para Duncan Kennedy, já que no mínimo, juízes

frequentemente têm que resolver lacunas, conflitos ou ambiguidades encontrados no sistema.

Para esse autor, quando isso acontece, os juízes que resolvem tais problemas constroem uma

nova norma e a aplicam aos fatos, ao contrário da simples aplicação de normas preexistentes

aos fatos.15 Para ilustrar essa assunção de ideologias pelos juízes da Suprema Corte Americana,

Duncan Kennedy cita uma matéria jornalística (Boston Globe) em que os juízes do caso são

classificados como: liberais, liberais moderados, moderados, conservadores moderados e

conservadores.16 Tais tipologias parecem, ao meu ver, demonstrar o elemento ideologia em

seus julgamentos e, portanto, afastar a tese formalista da imparcialidade.

Para Ana Margarida Simões Gaudêncio o projeto de Kennedy consiste em mobilizar a decisão

judicial como parte do que designa por (socio-legality), usando os meios conceituais

disponibilizados por diversas metodologias, com o objetivo de atrair uma audiência e provocar

nela um impacto político-cultural de esquerda.17 Esclarece, na terminologia de Kennedy, que a

socio-legality é compreendida como uma massa caótica de dados ou input ou fenômenos, que

Kennedy recolhe e depois reconfigura como partes da sua representação da sua adjudication,

incluindo as regras jurídicas, o discurso jurídico, os comportamentos dos operadores jurídicos

institucionais e o comportamento social geral que parece sofrer o impacto de exercer o impacto

sobre a adjudication.18

Agora, Kennedy está sendo normativo, está explicando como deve ser a formação de uma

decisão judicial e aponta, segundo a autora citada anteriormente, seu critério: a adjudication

deve provocar um impacto político-cultural de esquerda. Nesse momento, Kennedy sai da

posição de fazer uma crítica à metodologia formalista, que sofre a influência da teoria política

liberal e passa a dizer que uma decisão judicial não deve ser objetiva, não deve ser a simples

aplicação de uma norma ao fato e livre de valores pessoais do decisor, mas, ao contrário,

14 Kennedy, Duncan. A critical of adjudication. E. Ed. Boston: Harvard University Press. 1998. P. 27. 15 Kennedy, Duncan. A critical of adjudication. E. Ed. Boston: Harvard University Press. 1998. P. 28. 16 Kennedy, Duncan. A critical of adjudication. E. Ed. Boston: Harvard University Press. 1998. P. 28. 17 Gaudêncio, Ana Margarida Simões. Entre o Centro e a Periferia. Tese de Mestrado. P. 151 18 Gaudêncio, Ana Margarida Simões. Entre o Centro e a Periferia. Tese de Mestrado. P. 151

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normatiza, podendo-se dizer que a adjudication deve ser contaminada por valores pessoais, mas

não quaisquer valores, mas aqueles tendentes a uma tomada de posição de esquerda. Aqui, a

meu ver, ele deixa de ser meramente descritivo e passa a ser normativo sobre o que ele

denomina adjudication. Portanto, o juiz não deve ser um mero ator tático19, atuando no plano

judicial e cumprindo (aplicando) as tendências políticas que a maioria (no processo legislativo)

decidiu sobre os valores de certa sociedade. Ao contrário, ele, o juiz, deve ser politicamente

atuante, encontrando nos casos por ele apreciados as construções que reproduzem a hierarquia

de uma sociedade desigual e as descontruindo, aplicando uma “justiça distributiva e não

retributiva” (essa terminologia não é empregada pelo autor e se diferencia da ideia de policy).

Ilustrando esse pensamento, transcrevo trecho de Kennedy: the judge is a cultural figure

engaged in the task of persuading adversaries, in spite of the arbitrariness of values. More, he

is at work on the indispensable task of imagining an altruistic order.20 (o juiz é uma figura

cultural envolvida na tarefa de persuadir os adversários, apesar da arbitrariedade de valores.

Mais, ele está trabalhando na tarefa indispensável de imaginar um fim altruísta). Aqui, nesse

trecho, fica evidente que o juiz deve ser parcial, ele deve estar ideologicamente comprometido

com um fim, que é ideológico (o altruísmo).

Kennedy, citado por Ana Margarida Simões Gaudêncio21, constrói sua proposta baseada em

uma teoria das policy, que seria diferente: da argumentação consequencialista, que apela a um

bem estar social ou eficiência ou crescimento econômico; da argumentação baseada na

moralidade, fundada no axiológico e no razoável; e da argumentação fundada em Direitos

(rights), que pressupõe a universalidade dos direitos. Policy foi introduzida no pensamento

jurídico americano durante o período de “recepção” do direito inglês, enquanto um dos dois

fatores que os juízes poderiam convocar no momento de decidir que regras adotar,

particularmente em situações em que haveria uma regra inglesa que poderia ser ou não

apropriada. Segundo uma distinção convencional entre abordagens liberal e técnica das

questões jurídicas, a primeira atenderia ao objetivo das rules à intenção das partes à equidade

das soluções, enquanto elementos legítimos no processo interpretativo, pelo que policy

(conveniência, utilidade) se oporia de princípio à moralidade, então compreendida com base no

19 Conforme esclarece o Professor Doutor Aroso Linhares em suas aulas de mestrado na Faculdade de Direito da

Universidade de Coimbra sobre os funcionalistas. 20 Kennedy, Duncan. Form and Substance in private law adjudication. P 1778. 21 Gaudêncio, Ana Margarida Simões. Entre o Centro e a Periferia. Tese de Mestrado. P. 149.

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paradigma da ética cristã; e a segunda, posterior, e fruto de uma formalização geral do Direito

Americano, compreenderia policy, por vezes, como englobando todos os fatores não dedutivos

e por outras o conjunto das razões instrumentais, não intrínsecas da escolha de regras. Nesse

sentido, policy, seria por vezes, oposta à “justiça,” ou a moralidade ou a Direitos. Kennedy

pretende utilizar o termo policy em sentido amplo, incluindo todos os valores não dedutivos.

Penso que quando se refere a valores não dedutivos, trata daqueles valores que não decorrem

do precedente ou da lei, mas são valores do juiz que está comprometido com uma política

altruísta.

Lembro que, segundo Aroso Linhares, a perspectiva de Kennedy difere da de Unger22, na

medida em que:

a) Kennedy está preocupado com uma especialíssima «teoria» das práticas jurídicas e das

lutas políticas que nelas se manifestam (theory is expressive, rather than determinative

of the content of political struggle) — uma «teoria» que, não certamente por acaso,

encontra na exemplaridade microscópica do discurso judicial (se não na fenomenologia

da decisão de casos difíceis) o seu núcleo decisivo (critique of adjudication). Está

preocupado com a luta no nível microscópico, nas decisões judiciais. É por isso que ele

defende que, já que no nível positivo (explicativo, descritivo), as decisões são parciais,

que elas sejam tomadas a favor dos mais necessitados. Enquanto que

b) Unger está preocupado com uma perspectiva condutora, um tratamento filosófico-

político da relação direito/sociedade e da estrutura institucional macroscopicamente

auto-reflexiva (do programa institucional) que deverá corresponder-lhe… No plano

22 Roberto Mangabeira Unger, em 1971 tornou-se um dos mais jovens professores da Universidade Harvard. Sua

obra de filosofia, teoria social e direito é citada por intelectuais do porte de Jurgen Habermas, Richard Rorty, Cui

Zhiyuan e Perry Anderson. Segundo este último, Mangabeira Unger, "como Edward Said ou Salman Rushdie, faz

parte daquela constelação de intelectuais do Terceiro Mundo, ativa e eminente no Primeiro Mundo, sem ser

assimilada por ele, cujo número e influência estão destinados a crescer". Para Anderson, Unger é "uma mente

filosófica do Terceiro Mundo que vira a mesa para se tornar um sintetizador e profeta do primeiro mundo".

Paralelamente ao desenvolvimento de seu projeto teórico, Mangabeira tem atuado na política brasileira desde a

abertura política durante o regime militar, na década de 1970.3 Em 2007, após ter sido um crítico do primeiro

mandato do presidente Lula, passou a integrar o ministério do governo federal, em outubro de 2007 e permaneceu

até junho de 2009 como ministro de Assuntos Estratégicos.

Informações podem ser encontradas no sítio da Universidade de Havard. Disponível em:

http://www.law.harvard.edu/faculty/directory/10910/Unger. Acesso em 1/7/2014.

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estrutural legislativo, o protagonista não é o juiz, mas o cidadão. Faz uma crítica

reformista e pluralista, baseada em uma social-democracia desenvolvida, atuando na

forma da sociedade se organizar. São as teses de Unger 23 , como por exemplo o

experimentalismo democrático, a revisão da própria forma de distribuir a propriedade,

a eliminação do direito de sucessão (a propriedade não seria transferida pela herança).

Em linhas mais definidas, Aroso Linhares24 sublinha que KENNEDY fixa como território

privilegiado (aquele em que importa investir teoreticamente!) o da fenomenologia crítica da

decisão do juiz e o desta como um processo ideologicamente específico de criação do direito

(judicial law making (…) is an ideologically oriented legal work (…) different from

ideologically oriented legislative work).

Esse, acredito, ser o ponto central da discussão nesse texto: como Kennedy enfatiza e constrói

sua teoria da adjudication – é um direito construído ideologicamente (há ai o conteúdo de

parcialidade) pelo juiz, no momento de sua aplicação. Veja, a visão de Kennedy é duplamente

parcial sobre a jurisdição: no aspecto positivo de sua análise, ele acredita que o rule of law, ao

pretender uma neutralidade ideológica na aplicação do direito ao fato, está, em realidade,

comprometido ideologicamente. Nesse caso, com a ideologia liberal; já no aspecto normativo

de sua teoria, ele pensa que o remédio está também no comprometimento ideológico no

processo de decisão judicial, mas uma ideologia específica – de esquerda e progressista.

Kennedy, ao iniciar sua construção da Adjudication (posso traduzir como uma teoria sobre

como devem ser construídas a decisão judicial) inicia por uma crítica ao formalismo. Identifica

que em seu método (o método do formalismo), a aplicação de leis postas (já construídas) sobre

os fatos, em que a conclusão seria a decisão judicial, se esconde uma ideologia liberal. A

ideologia liberal que separa, tanto na teoria política, quanto na teoria jurídica, as funções

legislativas, das funções jurisdicionais. É formalista porque entende que todo o elemento

ideológico deve ficar contido (preso) nas discussões e deliberações do legislativo e ao juiz

caberia um papel formal de mero aplicador de leis (frutos de programas políticos, decididos

pela maioria no legislativo) aos fatos.

23 Para um maior aprofundamento sobre esse assunto ver em: Unger, Roberto Mangabeira. Democracia Realizada:

a alternativa progressista. São Paulo: Editora Boitempo. 1991. 24 Aroso Linhares, José Manuel. Teoria do Direito: Critical Legal Studies. Artigo não publicado

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Ele entende que o formalismo atua de duas maneiras. A primeira delas é entendendo que o

processo legislativo é objetivo, fruto de decisões racionais entre as diversas posições políticas

e ideológicas (o que ele não acredita porque ele entende que o poder econômico pode ser

transformado em poder político na formação das maiorias. Os lobbys da indústria tabagista, por

exemplo, ilustraria esse movimento). A segunda maneira é a de que os formalistas pensam que

os juízes atuariam impessoalmente, neutros em relação aos seus valores pessoais (Kennedy

também não acredita nisso). Veja para o formalismos, as decisões políticas, que são subjetivas,

devem ser tomadas pelos políticos que, segundo a democracia representativa, representariam

os interesses da sociedade, enquanto que as decisões judiciais se limitariam ao significado dos

enunciados normativos e aos fatos.

A partir dessas considerações, Kennedy, acredita que a rule of law (a prisão à legalidade em

seu sentido formal – a lei está pronta e acabada, não podendo ser reconstruída pelo juiz) e o

constitucionalismo liberal (esse constitucionalismo que defende a separação das funções do

legislador e do juiz) assimila, acriticamente, a sociedade e sua racionalidade de mercado. Mas

também faz com que essas práticas de diferenciar fortemente os papéis do juiz e do legislador

institucionaliza e conforma com essa visão da sociedade e de sua racionalidade de mercado.

Isso, para Aroso Linhares representa o pensamento fetichista do formalismo, que é a

necessidade de conservar essas funções separadas, para que a sociedade não se transforme, para

que as hierarquias sociais sejam conservadas. Ou seja, esse modelo de sociedade liberal, de

mercado, de um lado reforça o modelo formalista, mas de outro a própria sociedade de mercado

é reforçada por esse modelo formalista. Esse mecanismo fecharia, evitaria a abertura para as

discussões filosóficas e ideológicas sobre o próprio modelo de sociedade de mercado. Quer

dizer, esse modelo (de uma sociedade de mercado, de uma sociedade liberal) que tem um

legislativo controlado pela maioria e pelo poder econômico, que defende a sociedade de

mercado, também tem o controle sobre os juízes que somente podem aplicar as leis construídas

por esse legislativo.

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A visão de Posner

Conforme sublinha Aroso Linhares25, em sua reconstrução da viragem pragmática de Posner,

esse autor faz suas análises em dois planos: o primeiro plano é o positivo (descreve a realidade

de como os juízes decidem). É nesse plano que o autor explica o processo de tomada de decisão

judicial. Nesse campo, alguns conceitos são formulados por Posner e contrastados entre si. Cito:

Casos fáceis/casos difíceis; Os casos fáceis são aqueles que para Posner a resposta

jurídica do problema apresentado pode ser resolvido pela subsunção do fato à norma

(numa lógica formalista). Não conduz à área aberta. Os casos, difíceis, por outro lado,

não podem ser resolvidos somente com a metodologia do direito. Caso, em que se faz

necessário, recorrer a outras metodologias. São indeterminados na própria lei.

Indeterminação dos materiais jurídicos em si. O caso comporta mais de uma solução.

casos de rotina/casos duros; A lógica aqui é parecida. O tratamento jurídico é aquele

tratado com as metodologias tradicionais do Direito: a subsunção e a analogia. Enquanto

que o tratamento não jurídico é aquele que requer a importação de metodologias de

outras áreas do conhecimento humano, a análise empírica, por exemplo.

tratamento jurídico/ tratamento não jurídico;

aplicação do direito/criação do direito. Aqui a distinção se faz, no primeiro caso, pelo

uso da subsunção e da analogia, enquanto que no segundo caso, a norma precisa de ser

criada pelo juiz no momento da decisão.

Posner inicia sua lógica, reconhecendo que: como não se trata apenas de defender que a

plausibilidade «pragmática» da opção formalista se esgota irrecuperavelmente no tratamento

de tais casos de rotina — descobrindo neles problemas já cognitivamente assimilados pelo

sistema (casos fáceis em que a subsunção e a analogia poderiam resolver), trata-se também e

muito especialmente de esclarecer o papel que tais materiais jurídicos (jurisdicionalmente

relevantes) desempenham quando confrontados com todos os outros casos (ditos difíceis ou

duros), em que os problemas já não estão cognitivamente assimilados pelo sistema. Veja, nos

casos fáceis ou de rotina, há para Posner uma aparência da suficiência dos recursos

metodológicos do Direito. Mas quando esses casos de rotina são contrastados com os casos

25 Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito

(Law and Economics). Texto não publicado. P. 27.

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duros, há a possibilidade de surgir incoerências: o que parecia perfeitamente assimilado pelo

sistema, após esse contraste, deixa de se-lo.

Para Aroso Linhares, tais conceitos/contrastes são condições delimitadoras (e como desafio

programático) da teoria positiva em questão. Tais conceitos/contrastes revelam uma autêntica

regularidade estrutural (tão evidente quanto aproblemática). Não se trata apenas de confirmar

o número limitadíssimo de decisões que «o direito»… ou «o direito» reconduzido a um acervo

de materiais dados (normas, precedentes… mas também princípios e policies!) —

convencionalmente tratados (submetidos às «vidas» sucessivas de um certo Método Jurídico e

às pretensões de autonomia de outros tantos cânones e esquemas metódicos) — está afinal em

condições de «determinar» ou de determinar satisfatoriamente («Law» in judicial setting is

simply the material, in the broadest sense, out of which judges fashion their decisions ). Como

não se trata apenas de defender que a plausibilidade «pragmática» da opção formalista se esgota

irrecuperavelmente no tratamento de tais casos de rotina — descobrindo neles problemas já

cognitivamente assimilados pelo sistema (the routine cases are those that can be decided by

legalist techniques ), trata-se também e muito especialmente de esclarecer o papel que tais

materiais jurídicos (jurisdicionalmente relevantes) desempenham quando confrontados com

todos os outros casos (ditos difíceis ou duros).26

Com isso Posner evidencia a impossibilidade de se resolver os casos, mesmo os casos fáceis, a

partir de uma perspectiva interna do Direito. Penso que há aqui um distanciamento das teorias

que defendem a autonomia do Direito. É a partir dessa lógica, que Posner definirá seu conceito

de área aberta, como sendo a área em que o material jurídico não é capaz de fornecer, com

segurança, um critério para a decisão judicial. É nessa área aberta que há a discricionariedade.

A questão que se põe, agora, é a que, uma vez reconhecida a área aberta e a impossibilidade

dos materiais jurídicos oferecerem uma resposta única (ou um critério interno de solução), qual

a alternativa para a discricionariedade (senão arbitrariedade) nas decisões judiciais?

As conclusões a que chega Posner, segundo Aroso Linhares:

26 Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito

(Law and Economics). Texto não publicado. P. 27.

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1) aquela que a discricionariedade do juiz (as an (…) exercise of legislative-like (…) discretion

), sob fogo de intenções e de motivos, de constrangimentos e de estímulos, mas também de

modelos operatórios não jurídicos — se não invocando modelos de assimilação-organização

que (enquanto teorias compreensivas) excluem a possibilidade de um direito materialmente

autónomo —, se verá constrangida a percorrer… e a vencer. Even if judges wanted to forswear

any legislative, any political, role and be merely the «oracles» of the law (…) they could not do

so (…). A combination of structural and cultural factors imposes a legislative role on our judges

that they cannot escape.27 Após essa reflexão, Posner parece chegar à seguinte conclusão: Os

materiais jurídicos são indeterminados e oferecem-se-nos como um acervo-continuum

intencional e prescritivamente indiferenciado (incompatível com as pretensões de unidade

associadas à categoria de inteligibilidade sistema).

Compreendendo os elementos dessa primeira conclusão:

a) O continuum em que os princípios se reduzem às políticas, as quais são, por sua vez,

programas de fins;

b) O continuum no qual a distinção entre precedentes/regras/princípios de política

(princípios parece não ser utilizado como princípio, oriundo de valores de uma

determinada comunidade e que, também normatiza o Direito, ou como uma categoria

de normas jurídicas, mas como princípio político, orientado, portanto, aos fins) aparece

reduzido ao contraponto regras/standards e ao espectro da indeterminação linguística.

Ou, como melhor explica Aroso Linhares, a um processo de interpretação-assimilação

do novum que (em função das marcas intensionais e extensionais dos tipos de

enunciados pressupostos) oscila manifestamente entre dois pólos exemplares. 28 Os

pólos em referência no texto são as regras e os standards.

2) Há um número reduzidíssimo de casos fáceis, sendo estes os únicos que se solucionam

lógico-dedutivamente (com o uso exclusivo de materiais jurídicos). Aqui Posner parece admitir

a metodologia tradicional do Direito.

27 Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito

(Law and Economics). Texto não publicado. P. 29. 28 Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito

(Law and Economics). Texto não publicado. P. 30.

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3) Para solucionar os casos duros, o juiz opta por uma alternativa de decisão inscrita na

(delimitada pela) área aberta e fá-lo quase sempre pragmaticamente, entenda-se, atendendo aos

previsíveis efeitos empíricos dessa alternativa — se quisermos, a estes efeitos iluminados por

um programa de fins (selecionado ou pressuposto), quando não já diretamente justificados por

uma teoria compreensiva (a teoria que o juiz, mais ou menos conscientemente, privilegia, pela

qual ao fim e ao cabo «ideologicamente» opta).29 Veja aqui, também, um traço de parcialidade

em Posner.

4) No que diz respeito ao problema dos tipos de racionalidade, o modus operandi do juiz expõe-

nos assim a uma alternativa inescapável — desenhada pelas possibilidades da racionalidade

lógico-dedutiva (para os casos fáceis) e pelas exigências da racionalidade finalística (judges

(…) decide cases by logic or instrumental reason ), as primeiras assimiladas pela «técnica» de

aplicação do silogismo subsuntivo (lógica silogística formal: regra abstrata, fato, conclusão),

as segundas reconduzidas à pragmática-techné de um teleologismo instrumental-estratégico

(estratégia de meios e fins) (a uma policy-analysis prosseguida enquanto especificação de

alternativas transitivamente diferenciadas).30

A partir desse momento, cabe a pergunta: como o juiz deve se orientar na área aberta, nos casos

difíceis? A resposta a tal pergunta foi, em um passado, a Law and Economics. Essa resposta

acabava por conduzir a Teoria do Direito de Posner a uma pretensa neutralidade, já que estaria

fundada em modelos de uma ciência (econômica, no caso), que libertaria o juiz de decidir

arbitrariamente. Nesse caso, em se tratando do tema aqui proposto, a resposta à questão sobre

a parcialidade ou não do juiz na Teoria desenvolvida por Posner seria a de um juiz imparcial,

escudado pelas respostas da ciência. Entretanto, em tempos atuais, parece não ser essa a

resposta de Posner e, consequentemente, a própria parcialidade ou imparcialidade do juiz para

essa sua nova proposta deve ser revisitada. Veja:

Para Aroso Linhares, na virada pragmática de Posner, importa acrescentar que esta orientação

pelas consequências, iluminada por uma opção pragmática, se distancia uma vez mais da

«lógica» de um consequencialismo utilitarista. Agora decerto porque se trata de defender que

29 Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito

(Law and Economics). Texto não publicado. P. 30 30 Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito

(Law and Economics). Texto não publicado. P. 31.

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nem todas as consequências são possíveis. O problema não é de resto de um pragmatismo

jurídico quanto o de um pragmatismo juridicamente relevante e (ou) juridicamente possível

(adequado ao meio-milieu institucional do direito e aos policy judgments que este permite, ou

mais rigorosamente, capaz de respeitar as «regras» do «jogo judicial»), numa palavra, o

problema de um «pragmatismo limitado» (constrained pragmatism)… que se nos oferece

simultaneamente como um «rule» pragmatism (the word that best describes the average

american judge is «constrained pragmatist» , the pragmatic judge must play by the rules of the

judicial game, just like other judges (…)[and] the rules permit the consideration of certain types

of consequence but forbid the consideration of other types ).3132

Mais à frente, Aroso Linhares conclui sobre a nova proposta metódica de Posner: (...) Notas

que nos bastam para sublinhar o carácter ideológico (não necessariamente político, muito

menos partidário, mas ideológico, nesta sua unilateralidade seletiva) das representações que tal

composição constrói — e o carácter não menos ideológico (no mesmo sentido) da escolha do

juiz que a privilegia como método (a judge’s choice to use it to generate outcomes in the open

area is an ideological choice ) —, mas também e ainda para exigir que a discussão da sua aptidão

positiva, longe de se esgotar num exercício de adequação correspondencial ou na discussão dos

enunciados descritivos e explicativos que o sustentam se exponha inevitavelmente a um critério

de convergência ou de consenso (empiricamente experimentados).

Parece-me, aqui, claro que esse segundo Posner (pragmático e não utilitarista) aceita um

comprometimento ideológico do Juiz, ao permitir que ele, o tomador de decisões, ao selecionar

o material (não estritamente o ortodoxo jurídico) escolhe entre policies mais ou menos

consensuais. Um pouco mais à frente, encontra-se um espaço de liberdade para o juiz, que se

conduzirá de acordo com aspectos ideológicos, de personalidade, de conhecimento tácito: Se o

julgador optar por ouvir as recomendações do economic analyst (se entender que estas, com

forte probabilidade, propiciam consequences that he likes), a sua tarefa há de cumprir-se

reconstituindo (na perspectiva do mercado competitivo perfeito) as pretensões de valor das

partes (tratando-assimilando a controvérsia como um contraponto ficcionado de pretensões de

valor). Ora, isto na medida em que — dentro do campo de possibilidades criado pela

31 Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito

(Law and Economics). Texto não publicado. P. 29. 32 Pela importância desse fragmento, repete-se no corpo do texto.

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indeterminação dos materiais jurídicos (possibilidades que serão pragmaticamente mais

extensas nas chamadas common law decisions) — se tratará ao fim e ao cabo de escolher a

alternativa de decisão e o contexto de justificação que mais se aproximem de uma solução de

market mimicking. Para que, na medida do possível, os legal entitlements em disputa sejam

atribuídos ao rational maximizer que mais os valoriza…33

Penso, a partir desse material bibliográfico, que Posner ao abrir mão de um único critério para

a tomada de decisão judicial (a análise econômica do direito), passando a admiti-lo como uma

das informações que o juiz do caso pode atender, ele, Posner, abre mão do escudo da pretensa

neutralidade de uma ciência econômica, que sempre justificaria a decisão mais neutra, mais

imparcial. Aqui, Posner parece reconhecer a parcialidade do julgador.

Posner admite, portanto, que nos casos difíceis o juiz é um formulador de políticas públicas34,

mas sujeito ao critério da razoabilidade. Mas, ao afirmar essa função e esse critério, não afirma

o dogma da imparcialidade do juiz. Pelo contrário, ao longo de sua obra, “Problemas de

Filosofia do Direito.”, procura desconstruir os métodos formalistas, em especial a analogia e a

subsunção, mas traz em seu funcionalismo, agora pragmático, toda a carga de um juiz humano

e sujeito, portanto, às suas crenças pessoais, que estarão impressas em suas decisões.35

33 Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise económica do direito

(Law and Economics). Texto não publicado. P. 34. 34 O juiz deve fazer uma escolha entre políticas públicas, e a escolha é ditada pelos resultados do levantamento e

da avaliação das consequências das opções alternativas: consequências para o Estado de Direito, para as partes,

para a economia, para a ordem pública, para a civilização, para o futuro – em suma, para a sociedade. Em

contextos não comerciais, pode-se preferir descrever a análise como ética, não como de políticas públicas.

Contudo, isso não alteraria a questão fundamental: os materiais estritamente jurídicos só são usados para ajudar

a estabelecer uma orientação inicial e fornecer dados específicos, e como fontes posteriores de possíveis

limitações. Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes.

2007. P. 178. 35 Um juiz que concebe seu papel nos casos difíceis como o de um formulador de políticas públicas, e não o de

canal de decisão sobre políticas públicas tomadas em outras partes do sistema político, não precisa, a esse

propósito, ser um ativista judicial. A autoconstrição judicial, no sentido de hesitação em derrubar as decisões de

outros ramos do governo, pode ser parte da concepção que o juiz tem da boa sociedade. Contudo, a autoconstrição

judicial é uma teoria política, e não um resultado de raciocínio jurídico; não pode ser deduzida a partir dos

materiais jurídicos ou, de outra maneira, rigorosamente (ou mesmo de modo bastante convincente) deles

derivadas. Esses materiais podem determinar quão ampla é a área de discricionariedade do juiz, mas não irão

determinar quão ousado ou tímido o juiz deve ser nessa área ao tomar decisões que incomodem outros

seguimentos do governo. (Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:

Martins Fontes. 2007. P. 177).

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Essas considerações feitas por Posner revelam sua não conformação com o que ele denomina

por crenças exageradas na autonomia e na força do raciocínio jurídico.36 Entretanto, Posner,

também, se posiciona contrariamente ao que ele entende por exagero contrário (o da

indeterminabilidade e da subjetividade do Direito). É a partir desse momento que o autor inicia

suas críticas e divergências mais contundentes, na obra Problemas de Filosofia do Direito, às

teorias dos Critical Legal Scholars. Para essa escola, todo o Direito seria política num sentido

estrito, sendo que para Posner, tal afirmação é feita de um modo não falseável, isso porque para

os CLS sempre que se encontra um juiz agindo de modo contrário a seus supostos interesses

políticos, seu comportamento é explicado como se ele estivesse jogando areia nos olhos do

público, forjando laços ideológicos ainda mais estreitos ao passar a impressão de ser

imparcial.37

Uma diferença apontada por Posner em relação à sua proposta e a proposta dos CLS é a

seguinte: mesmo que os motivos psicológicos que levam o juiz a aderir às regras do Direito

sejam políticos, no momento em que ele, o juiz, adere à essas regras, ele está fazendo Direito e

não política.38 Ou seja, para Posner, o juiz pode ser orientado por consequências (esse é o

espaço da política), mas não pode justificar suas decisões com considerações política-

iedológicas. É por essa razão que Posner distancia sua proposta da dos CLS, já que, segundo

ele, para os CLS a decisão judicial poderia muito bem ser tomada por um estudioso da ética,

totalmente estranho ao Direito, mas comprometido ideologicamente.

Uma outra diferença seria que os CLS exageram a existência dos casos difíceis e menosprezam

a existência dos fáceis, esquecendo que entre uma extremidade e a outra, há um campo enorme

para a aplicação dos métodos da razão prática. Lembrando que para Posner, a razão prática cria

um objetivo – o prazer, o bem viver, etc – e a escolha dos meios adequados para alcança-los.

Cita, como exemplos, os métodos: a indução, a dialética, a retórica, que são métodos por meio

dos quais pessoas que não são crédulas articulam crenças sobre questões que não podem ser

verificadas pela lógica ou pela observação.39

36 Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 2007. P.

205. 37 Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 2007. P.

206. 38 Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 2007. P.

206. 39 Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 2007. P. 95.

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Posner utiliza um trecho dos ensinamentos de Duncan Kennedy para, a partir daí, explicar suas

diferenças em relação aos métodos do direito propostos por esse último. Em razão dos objetivos

desse trabalho, que é o de contrastar as ideias de dois funcionalistas, que criticam as propostas

da pretensão da autonomia do Direito, será transcrito o de Duncan Kennedy40, citado por

Posner, para depois serem demonstrados os pontos de discordância desse último autor.

Os professores ensinam absurdos quando convencem os alunos de

que o raciocínio jurídico é diferente, enquanto método de se obter

resultados corretos do discurso ético e político em geral (isto é, da

análise de políticas públicas). É verdade que, no caso dos

advogados, existe um corpus específico de conhecimento das

regras em vigor. É verdade que os advogados dispõem de técnicas

argumentativas especiais para descobrir lacunas, conflitos e

ambiguidades nas regras, para questionar decisões judiciais

amplas e limitadas, e para produzir argumentos sobre políticas

públicas favoráveis e contrários. Contudo, trata-se aqui apenas de

técnica argumentativa. Não existe nunca uma solução jurídica

correta que não seja outra senão a solução ética e politicamente

correta de um determinado problema jurídico.

Veja, por um lado, o pensamento de Duncan Kennedy transcrito por Posner, demonstra sua

aproximação, em um primeiro momento, com o pensamento desse último autor, no que é

referente à negativa da autonomia do Direito para resolver os problemas jurídicos. Já, no

momento em que reduz todo o discurso jurídico a uma técnica argumentativa que o leva para

considerações éticas e de política, independentemente do caso em estudo tratar explicitamente

de questões ligadas às políticas públicas, parece haver um distanciamento. Posner distingue as

posições do juiz das posições do legislador de forma mais extremada do que aparece no discurso

de Duncan Kennedy.

40 Kennedy, Duncan. Apud Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:

Martins Fontes. 2007. P. 209/210.

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Posner critica a proposta de Duncan Kennedy, em suma, porque esse último parece dizer que a

solução correta de todo problema jurídico, é a solução que chegaria um eticista que não

soubesse nada de Direito. A meu ver, para Posner essas posições são diferentes: as posições do

eticista e do juiz. O juiz é e o eticista não, um tomador de decisões num sistema de governo, e

esse tomador de decisões deve preocupar-se não apenas em fazer justiça no caso em questão,

mas também em manter uma estrutura jurídica que inclua considerações acerca dos

precedentes, da autoridade legislativa, da articulação por deliberações e assim por diante41.

Aqui, Posner retorna ao seu método de razão prática, distanciando o jurídico da ética, o que

parece não fazer Duncan Kennedy. Esse, no meu pensar, é o maior ponto de divergência entre

essas posições não formalistas do Direito.

Considerações finais

Quanto à Kennedy, retorno à pergunta formulada por Posner: Uma vez que os juízes são

humanos, não podemos esperar por uma administração perfeitamente imparcial da justiça; e,

se a predisposição é inevitável, por que se deveria considerar que uma administração da justiça

que pende sutilmente para os ricos é mais indecorosa do que outra que pendesse para os

pobres?

Na realidade, Kennedy está comprometido com um ideal vinculado às políticas de esquerda e

penso que quer levar para o judiciário essa luta – uma luta ideológica. Mais, penso que essa

característica está tão presente no autor, que ele formula sua teoria da decisão judicial

estrategicamente. Explico: apesar das disputas e conclusões presentes no legislativo e dos

direitos que são oriundos dessas disputas, em que vence o majoritário, o mais influente (política

ou economicamente), o judiciário deve intervir de maneira a corrigir tais políticas majoritárias,

aplicando também uma política, só que voltada para o altruísmo, para a alteridade.

A proposta estratégica de Kennedy, penso, que trás em si uma contradição com as propostas de

uma sociedade democrática. Não, propriamente, com a sociedade liberal, por ele atacada. Isso,

porque ele reduz todo o espaço de tensões políticas, tradicionalmente, existente no legislativo

e, as tensões por ele proposta para o judiciário, em uma pauta ideológica única. Exemplo. Hoje,

41 Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 2007. P.

210/211.

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no Brasil, o Congresso é majoritariamente comprometido com políticas de centro-esquerda.

Nesse caso, o judiciário estaria acentuando essa posição e tornando-a permanente no tempo.

Penso, que tais consequências da utilização da Teoria sobre a decisão judicial, no plano político,

apresenta esse problema. Essa parcialidade comprometida ideologicamente, no plano jurídico,

quando despe totalmente o Direito de qualquer pretensão a uma autonomia metódica, o

subordina a política de tal forma que acaba por relegar a um plano ínfimo o papel do jurista.

Ao contrário do Posner pragmático, apesar de não concordar com as propostas de Kennedy

pelas razões acima elucidadas, acho que há um critério definido para a tomada das decisões

judiciais, por meio de sua proposta de política. Posner, por outro lado, quando se retira do

eficientismo e caminha para a construção de seu pragmatismo não constrói elementos claros de

controle das decisões judiciais. Digo isso porque os conceitos de Posner sobre conhecimento

tácito e sobre sentido, deixam, no que ele chama de área aberta, ainda um grande espaço para a

arbitrariedade na tomada das decisões judiciais. A área aberta continua aberta, quando o

eficientismo não é mais seu critério de decisão. Em seu manifesto ao pragmatismo, Posner deixa

claro que: se não existe verdade objetiva, torna-se mais importante ainda manter as condições

necessárias à indagação voluntária de que se necessita para contestar e invalidar todas as

falsas alegações de que a verdade foi finalmente encontrada42. No caso de Posner, o problema

da área aberta por ele proposto e da parcialidade do juiz ao escolher as consequências possíveis

(o caso citado do mercado dos bebês pode ser possível numa cultura americana, mas não numa

portuguesa, por exemplo), acaba levando-o, ainda, a uma aproximação com a provisoriedade

da verdade científica. Veja, a ciência trabalha com um concurso de teorias, com propostas de

verdades também concorrentes. Isso não é um problema para a verdade científica. Na verdade,

isso é uma solução de evolução. Agora, trazer a provisoriedade da verdade para o método de

decisão do Direito, já que o juiz ao poder escolher entre consequências possíveis, acaba por

escolher entre verdades possíveis, não condiz (combina) com a tendência de permanência das

decisões judiciais no tempo (a coisa julgada). A decisão judicial não evolui no tempo como a

decisão científica.

Assim, descritivamente, concordo que o juiz é parcial. Mas, todavia, não concordo com as

propostas de parcialidade no plano normativo (ele descritivamente é parcial porque ele tem uma

42 Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 2007. P. 623.

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personalidade própria, um caráter, valores próprios e, também conhecimentos próprios que por

si só já induzem a uma parcialidade).

É um trabalho preambular, mas, penso que apesar das propostas serem interessantes, elas,

ambas e por razões diversas, não resolvem o problema dos limites do poder judiciário.

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REFERÊNCIAS

Aroso Linhares, José Manuel. O pensamento tecnológico-social económico – a “análise

económica do direito (Law and Economics). Texto não publicado.

Aroso Linhares, José Manuel. Teoria do Direito: Critical Legal Studies. Artigo não publicado.

Gaudêncio, Ana Margarida Simões. Entre o Centro e a Periferia. Tese de Mestrado. Coimbra

2004.

Kennedy, Duncan. A critical of adjudication. E. Ed. Boston: Harvard University Press. 1998.

Kennedy, Duncan. Form and Substance in private law adjudication.

Posner, Richard A. Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São

Paulo: Martins Fontes. 2007.

Unger, Roberto Mangabeira. Democracia Realizada: a alternativa progressista. São Paulo:

Editora Boitempo. 1991.

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PESSOA, JUSTIÇA E HISTORICISMO AXIOLÓGICO Bruno Amaro Lacerda1

RESUMO: Este artigo pretende investigar o sentido e a ligação dos conceitos de pessoa e de justiça a partir das reflexões do filósofo do direito brasileiro Miguel Reale. Sua concepção, o historicismo axiológico, fornece interessantes elementos para a compreensão do Direito como intersubjetividade ordenada. A pessoa é o valor-fonte que orienta historicamente os demais valores que importam para o pleno desenvolvimento humano. A justiça, por sua vez, é o valor-meio, a condição transcendental que possibilita a atualização axiológica da pessoa na coexistência, por meio dos limites que impõe às liberdades em sociedade. Pessoa e justiça são, assim, valores complementares, inseparáveis conceitualmente. Palavras-chave: Valor; Direito; Liberdade. ABSTRACT: This paper investigates the meaning and connection of the concepts of person and justice from the theory of the Brazilian philosopher Miguel Reale. His axiological historicism provides interesting elements to the understanding of Law as normative intersubjectivity. The person is the source value that historically guides other values that matter for full human development. Justice, on the other hand, is the transcendental condition that allows for constant axiological improvement of person in coexistence, by placing limits on liberty in society. Person and justice are therefore complementary values, conceptually inseparable. Keywords: Value; Law; Liberty.

Introdução

Filósofos e juristas discutem há séculos os conceitos de pessoa e de justiça, indagando

sobre sua compreensão e interligação. Embora divergentes entre si, as conclusões obtidas

apontam para uma constante: para ser sujeito de justiça (isto é, merecedor de um tratamento

justo), deve-se antes ser uma pessoa. A justiça surge, assim, como exigência ética em razão da

pessoa.

Esse debate apresenta hoje novas tensões, motivadas pelas reflexões bioéticas e pelo

desenvolvimento da Teoria da Justiça. Alguns questionamentos feitos são bastante inquietantes,

por exemplo: os animais são merecedores de um tratamento justo? O embrião humano deve ser

considerado pessoa? A consciência da dignidade pessoal gera deveres de justiça universais? A

justiça é um ideal a ser perseguido ou um mínimo axiológico do qual se deve partir?

                                                            1 Professor Adjunto da UFJF. Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG.

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São questões difíceis, que exigem grandes esforços intelectuais e desafiam

pesquisadores de diversas formações e orientações. Em comum, porém, todas elas pressupõem

a mesma indagação: o que são a pessoa e a justiça?

Esse desafio requer o encontro de referenciais teóricos adequados, a partir dos quais

possamos clarear os problemas e nos aproximarmos das soluções. Levando isso em

consideração, pretendo neste artigo expor algumas reflexões de Miguel Reale (1910-2005),

maior expoente da Filosofia do Direito brasileira, sobre a pessoa como valor-fonte e a justiça

como valor-meio, em busca de elementos que possam auxiliar na elucidação de questões como

as acima apontadas.

A pessoa como valor-fonte

Criticando os autores que colocam a sociedade como fonte de todos os valores, Reale

afirma que ela é condicionada por algo que lhe é anterior, inerente a todo ser humano: a

sociabilidade ou “condição transcendental de ser pessoa”. O autor não nega que a consciência

da personalidade foi adquirida ao longo da história, mas ressalta que essa conquista só se tornou

possível porque já existia no homem uma disposição para a sociabilidade:

A ideia de sociedade, longe de constituir um valor originário e supremo, acha-se condicionada pela sociabilidade do homem, isto é, por algo inerente a todo ser humano e que é a ‘condição de possibilidade’ da vida de relação. O fato de o homem só vir a adquirir consciência de sua personalidade em dado momento da vida social não elide a verdade de que o ‘social’ já estava originariamente no ser mesmo do homem, no caráter bilateral de toda atividade espiritual: a tomada de consciência do valor da personalidade é uma expressão histórica de atualização do ser do homem como ser social, uma projeção temporal, em suma, de algo que não seria convertido em experiência social se não fosse intrínseco ao homem a ‘condição transcendental de ser pessoa’ (REALE, 2009, p. 214).

É controversa a relação entre indivíduo e sociedade. De um lado estão as posições

individualistas, que sobrevalorizam o indivíduo como um “eu” livre e irredutível, e, de outro,

as posições coletivistas, que exageram na defesa de uma “personalidade coletiva” que

necessariamente deve pairar acima das individualidades. Recusando essa oposição, ele propõe

uma compreensão da pessoa que busca conciliar a radical liberdade humana de afirmação de

valores com o drama histórico da convivência, harmonizando indivíduo e coletividade em uma

unidade integrante.

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A melhor atitude, portanto, é negar o predomínio do individuo e o predomínio do todo,

buscando uma composição dos dois elementos por meio de uma regra simples: “O indivíduo

deve ceder ao todo, até e enquanto não seja ferido o valor da pessoa, ou seja, a plenitude do

homem enquanto homem. Toda vez que se quiser ultrapassar a esfera da ‘personalidade’ haverá

arbítrio” (REALE, 2009, p. 279). A pessoa não pode ser pensada afastada de sua constitutiva

liberdade, nem dissociada da teia de relações sociais na qual está necessariamente envolvida.

Isso se dá porque o homem é possibilidade, abertura ao futuro, é a história por fazer-

se. As afirmações de que “o homem é o único ente que originariamente é e deve ser” e de que

“o ser do homem é o seu dever ser”, presentes em muitos dos textos de Reale, devem ser

compreendidas pela perspectiva da liberdade humana. É a percepção de sua carência, de seu

senso de finitude e incompletude que faz com que o homem mova-se culturalmente, buscando

transcender-se e atualizar-se como pessoa, sempre em busca de um valor absoluto que é

antevisto, mas nunca alcançado definitivamente em sua comunhão com os outros homens. Por

isso, o conceito de pessoa representa como nenhum outro a “polaridade do ser humano, que o

singulariza pela possibilidade de ser para si e de ser para outrem, de ser o que é e o que deve

ser (...)” (REALE, 1963, p. 75).

É pela relação, pela intersubjetividade que o homem toma consciência de si e do seu

valor, percebendo que possui uma singularidade radical se comparado com os demais entes que

estão no mundo. O homem não é meramente um ente natural, pois é capaz de transcender-se,

e, por meio de sua subjetividade, conferir um sentido à sua existência. Por essa razão ele é

pessoa e o valor fonte de todos os valores:

Daí a minha afirmação fundamental de que o homem é o valor-fonte de todos os valores porque somente ele é originariamente um ente capaz de tomar consciência de sua própria valia, da valia de sua subjetividade, não em virtude de uma revelação ou iluminação súbita de ordem intuitiva, mas sim mediante e através da experiência histórica em comunhão com os demais homens (REALE, 1991, p. 144).2

                                                            2 Essa ideia da pessoa como valor-fonte parece ter suas raízes no personalismo axiológico de Max Scheler, como mostra esta passagem: “Valor inestimável porque subsistente na ordem do espírito, a pessoa é, portanto, absoluta na ordem axiológica: essa está no vértice da hierarquia dos valores, como justamente afirma Scheler” (MONDIN, 1988, p. 386). A ideia de Reale, porém, diverge da de Scheler, porque ele não compreende os valores como objetos ideais, mas como uma categoria distinta de objetos, situados na ordem do dever ser.

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Em Experiência e Cultura, Reale esclarece que sua afirmação de que o ser do homem

é o seu dever ser implica uma tomada de posição deontológica, pela qual o ser do homem deve

ser respeitado e atualizado no curso da história. A pessoa é subjetividade, e, como tal, capaz de

reconhecer em outra pessoa a mesma subjetividade. Esse reconhecimento, que também pode

ser chamado de intersubjetividade, realiza-se historicamente pela gradual tomada de

consciência da pessoa como valor e da consequente identidade ontológica de todos os homens

como livres. A pessoa, então, “é o homem em sua concreta atualização (...) enquanto o eu toma

consciência de si mesmo e dos outros, na sociedade do nós (...)” (REALE, 1977, p. 196).

Por estar no centro da experiência jurídica, a pessoa não pode ser pensada separada do

valor e da historicidade. A historicidade da pessoa, para Reale, é de caráter axiológico, pois a

vida humana é uma “contínua e renovada opção entre valores do mais amplo e variado espectro.

No fundo, viver é optar, escolher entre fins opostos e conflitantes, prevendo-se de meios

adequados à realização dos fins visados” (REALE, 1990, p. 44). Por isso, sua posição foi

denominada por Luigi Bagolini de “historicismo axiológico”, expressão vista como adequada

pelo próprio Reale (1990, p. 45).

Deste modo, a pessoa não deve ser compreendida com base em um fundamento

meramente ôntico, na linha de Boécio e Tomás de Aquino (que a definiam como uma

“substância individual de natureza racional”), mas por meio de um fundamento também

axiológico, como sendo o “único valor incondicionado, mas que necessariamente condiciona o

processus espiritual da atualização de suas virtualidades criadoras (...)” (REALE, 1990, p. 61).3

A pessoa, assim, é o valor-fonte que se atualiza historicamente, condicionando as estimativas

humanas e a busca por uma ordem social justa, que possa permitir o livre desenvolvimento de

cada homem no interior de uma comunidade concreta. Levando isso em consideração, Reale

propõe uma pequena modificação no imperativo ético hegeliano, que prescrevia: “Sê uma

pessoa e respeita os outros como pessoas”. Ele acrescenta: “Sê uma pessoa e respeita os demais

como pessoas, tudo fazendo para propiciar-lhes as condições necessárias ao seu espontâneo e

pleno desenvolvimento” (REALE, 1963, p. 76).

                                                            3 Reale reconhece que coube a Kant, com suas noções de autonomia da pessoa e ação justa, dar os passos decisivos para a superação do conceito de Boécio e Tomás de Aquino (REALE, 1990, p. 17).

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Essa adição ao famoso imperativo hegeliano mostra que a concepção de Reale

estrutura-se como um humanismo jurídico. A pessoa é o valor fonte que deve nortear os

esforços dos juristas porque o papel do Direito não é meramente o de ordenar a conduta humana,

mas o de ordená-la propiciando condições justas de coexistência, a partir das quais todos

possam livremente buscar o seu desenvolvimento pessoal. Nesse sentido, a correta observação

de Legaz y Lacambra, ao comentar os traços gerais da reflexão realeana:

A pessoa humana é o valor fonte de todos os valores. Por isso, quando o homem estuda a cultura, só faz estudar a si mesmo, na riqueza imprevisível de suas energias criadoras, como se o espírito se reencontrasse ou se reconhecesse refletindo-se nos fatos da história (...) porque estamos obedecendo a nós mesmos, em nosso significado universal de homens (LEGAZ E LACAMBRA, 1966, p. 367).

De fato, a teoria de Reale não se limita a dizer que o Direito serve à pessoa, nem apenas

que concretiza valores sociais. Ela é mais precisa: afirma que a pessoa é um ser histórico porque

continuamente busca realizar-se através dos valores que incessantemente elege; e também que,

como a liberdade é necessariamente coexistencial, existe o Direito para assegurar o convívio

dessas liberdades pela instituição, sempre renovada, de uma ordem justa. Daí a definição:

“Direito é a concretização da ideia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico,

tendo a pessoa como fonte de todos os valores” (REALE, 2002, p. 67). A justiça, assim, garante

os diversos valores que o homem, ser pessoal e histórico, escolhe continuamente em sociedade.

Ela é, portanto, o valor-meio que assegura o valor-fim.

A justiça como valor-meio

A problemática da justiça como campo autônomo do conhecimento começa, segundo

Reale, quando o homem percebe que possui algo de próprio, inconfundível com o poder das

divindades. Até esse momento, a justiça era vista simplesmente como uma conformação à

ordem cósmica estabelecida (REALE, 2001, p. 122), sendo destituída de qualquer

subjetividade.

Para o autor, na primeira concepção filosófica organizada sobre a justiça, a de Platão,

ainda há a presença de uma objetividade que absorve a subjetividade, pois o grego “via a justiça

como a imperativa adequação da conduta humana à ordem ideal do cosmos, constituindo ela a

lei suprema da sociedade organizada como Estado” (REALE, 2001, p. 122). Somente com

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Aristóteles, em seu entender, é que aparece uma percepção mais clara da justiça, com o

estabelecimento de alguns parâmetros definitivos para o tratamento do tema. Ao partir da ideia

de natureza humana, Aristóteles sustenta que o homem é uma realidade diferente das demais,

por ser um ente (visão ontológica) que ao mesmo tempo tem que ser (visão deontológica), já

que possui um bem (fim) a realizar. A justiça, na Ética à Nicômaco, visa a uma articulação dos

bens individual e coletivo no interior da polis, em razão dessa compreensão do humano.

Depois de Aristóteles, a Teoria da Justiça passou por diversos momentos, desde o

subjetivismo da filosofia cristã medieval até a afirmação neopositivista de que a justiça seria

apenas uma intuição afetiva ou emocional. Para a teoria de Reale, entretanto, foi fundamental

o desenvolvimento da Filosofia dos Valores, que abriu caminho para o culturalismo jurídico de

Lask e Radbruch e para a compreensão da justiça como fenômeno histórico e axiológico. E é

no âmbito da Axiologia que Reale situa a Teoria da Justiça.

Pensando axiologicamente, importa menos encontrar uma definição cabal para a

justiça (pois para Reale ela é um valor variável segundo a cosmovisão de cada época) e mais

compreender seu desenrolar histórico como atualização constante de valores como a igualdade,

a liberdade e a segurança, em função da pessoa como valor-fonte. A justiça, adverte Reale, não

deve ser confundida propriamente com nenhum desses valores, nem com outros que os

ordenamentos jurídicos protegem (como a saúde, a propriedade, o trabalho etc.). Ela deve ser

vista antes como a condição transcendental de todos eles, como uma intencionalidade constante

que possibilita socialmente a atualização da pessoa (do homem como dever ser): “A nosso ver,

a Justiça não se identifica com qualquer desses valores, nem mesmo com aqueles que mais

dignificam o homem. Ela é antes a condição primeira de todos eles, a condição transcendental

de sua possibilidade como atualização histórica” (REALE, 2002, p. 375).

Nenhuma concepção de justiça pode ser destacada da história, pois esta é o terreno

onde germinam continuamente novas possibilidades humanas de valoração. O valor da

igualdade, por exemplo, que desde cedo esteve vinculado à justiça, não é hoje compreendido

do mesmo modo como o era ao tempo de Aristóteles. Naquela época, não havia consciência da

igualdade dos sexos, por exemplo. Impedir uma mulher de participar da política não era uma

injustiça, ao contrário dos dias atuais. A justiça, assim, varia segundo a visão de mundo

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dominante em um determinado período da história, como o valor-meio que permite que os

demais valores valham, tendo a pessoa como valor-fonte:

É por tal razão que, em meu curso de Filosofia do Direito, qualifico a justiça como valor franciscano, vendo nela um valor-meio, sempre a serviço dos demais valores para assegurar-lhes seu adimplemento, em razão da pessoa humana que é o valor-fim (REALE, 2001, p. 125).

Considerações finais

O historicismo axiológico de Miguel Reale não coloca a justiça como um ideal

inalcançável, nem tampouco a liga a um direito natural fixo e imutável que, como tal, deva ser

reproduzido pelos direitos positivos. Em sua concepção, tudo se encaixa bem: se o homem

escolhe constantemente valores, tem a percepção do seu próprio valor; logo, compreende-se

como fonte de todos os demais valores. Por outro lado, ele também tem a consciência de que

não está só, mas que convive com outras pessoas, ou seja, com outros seres que também têm

uma vida, no sentido existencial da expressão. Para que as escolhas de todos possam valer

socialmente, sem se anularem reciprocamente, faz-se necessário um valor elementar, cujo papel

é a garantia dessa coexistência (intersubjetividade), mas não de uma maneira estática e

definitiva (como sustentava certa versão do direito natural), mas de um modo dinâmico,

correspondente às variações da autocompreensão humana.

Esse valor-meio é a justiça, que Reale define então como a “constante coordenação

racional das relações intersubjetivas, para que cada homem possa realizar livremente seus

valores potenciais visando atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com os da

coletividade” (REALE, 2002, p. 377). Em outro texto, partindo da mesma ideia, afirma que “a

Justiça é a medida social da pessoa, assim como esta é a forma social do indivíduo” (REALE,

1990, p. 40). Justiça e pessoa são, portanto, valores conceitualmente inseparáveis, porque o

segundo é garantido pelo primeiro.

A teoria de Reale, contudo, não é a defesa de um relativismo. A justiça não pode ser

vista como qualquer conteúdo socialmente realizado, pois ela visa garantir o valor-fim que é a

pessoa. Uma ordem normativa que não proteja a pessoa como um fim, mas que trata ou

possibilita tratar certos indivíduos exclusivamente como meios para os interesses de outros,

estaria afrontando a liberdade e não poderia, desta maneira, ser entendida como justa. Quando

Reale afirma que cada época histórica tem a sua ideia de justiça, não desvincula essa afirmação

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do fato de que historicamente o homem vem, gradativamente, realizando cada vez mais o valor

da igualdade, cerne da justiça (REALE, 2001, p. 125). Se olharmos retrospectivamente para a

experiência jurídica ocidental, veremos uma tomada de consciência progressiva do valor da

igualdade, acompanhada de uma tutela cada vez maior da pessoa. Abandonar essa consciência

seria violar o que os teóricos dos direitos humanos chamam de “proibição de retrocesso” (o

dever de não desprezar os direitos revelados historicamente). Isso seria abominável porque a

justiça não é relativa: ela serve a um valor que, forjado historicamente, vigora hoje como se

fosse inato: a pessoa humana.

REFERÊNCIAS

LEGAZ E LACAMBRA, Luis. La filosofia del derecho de Miguel Reale. Revista Brasileira

de Filosofia, v. XVI, fasc. 63, p. 362-368, 1966.

MONDIN. La persona e le sue proprietà essenziali. Sapienza, v. XLI, fasc. 4, p. 361-387, 1988.

REALE, Miguel. Experiência e cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência.

São Paulo: EDUSP, 1977.

______. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

______. Invariantes axiológicas. Estudos Avançados, v. 05 (13), p. 131-144, 1991.

______. Lições preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

______. Nova fase do Direito moderno. São Paulo: Saraiva, 1990.

______. Pluralismo e Liberdade. São Paulo: Saraiva, 1963.

______. Problemática da justiça. Revista CEJ, n. 14, p. 121-126, 2001.

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ANIMAIS NÃO SÃO COISAS

Júlia Martins Rodrigues1

Denis Franco Silva2

RESUMO: A proposta deste artigo é fazer uma breve análise a respeito da posição ocupada

por animais em uma ordem jurídica. Busca-se compreender, para tanto, o conceito de pessoa

para o direito, diante de um momento de crise das categorias tradicionais do pensamento

jurídico e de desafios da sociedade moderna. Seguindo a lógica especista que rege o raciocínio

humano e uma visão antropocêntrica, não houve espaço, até então, para que a ideia de

reconhecimento fosse trabalhada entre espécies diferentes. É feita análise, portanto, se deveriam

os animais ser tratados pela sociedade e pelo ordenamento jurídico como coisas. Em seguida,

investiga-se acerca da possibilidade e bases para personificação. Apesar das atuais tentativas de

atribuir o status de pessoa aos animais, essa questão perpassa por obstáculos teóricos e práticos

delicados que devem ser repensados. Acredita-se que a abordagem do problema a partir da ideia

de antropodecentramento proposta por Marchesini (2009) possa elucidar alguns desses

problemas.

Palavras-Chave: animais; pessoa; antropodecentramento

ABSTRACT: This article intends to make a brief analysis of the position nowadays occupied

by animals on a legal order. We aim to understand, for that matter, the concept of "person"

before the Law, on a moment of crisis of the traditional categories of juridical thought due to

the challenges of modern society. Following the speciesist logic that guides human reasoning

and an anthropocentric approach, there has been no room, until now, for the development of the

idea of recognition among different species. The starting point is analyzing if animals should

be seen by society and legal order as goods. Afterwards, investigating the possibilities and basis

for personification. One can see some attempts of conceding the status of person to animals,

but this discussion runs through delicate theorical and practical obstacles that must be

reconsidered. It is believed that an approach on the problem from the idea of

anthropodecentrism offered by Marchesini may elucidate some of these issues.

Keywords: animals, person; anthropodecentrism

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2000), mestrado em Direito pela Universidade

Federal de Minas Gerais (2004), doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(2009) e pós-doutorado pela Universitá Degli Studi di Camerino (2010). Professor adjunto da Universidade

Federal de Juiz de Fora (2010).

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Introdução

O presente trabalho, por meio de uma pesquisa qualitativa do tipo teórica, tem como

proposta discutir brevemente a possível extensão da qualidade de pessoa aos animais. Como

fundamento teórico, apresenta-se a ideia de antropodecentramento e alteridade,

especificamente, alteridade não-humana, proposta por Marchesini (2009).

Para realizar esse intento, pretende-se partir do seguinte questionamento: São os

animais coisas? Se não, seriam os animais agentes e pacientes morais e, principalmente, devem

ser estas posições necessariamente vinculadas? Ou seriam dissociáveis? A abertura, portanto,

para a alteridade não humana não implicaria em reconhecimento da posição de pacientes morais

aos animais sendo, assim, suficiente para reconhecimento do status de pessoa para o Direito?

Nesse contexto, intenta-se discutir a atribuição ou não de personalidade jurídica a esses entes,

temática esta que não mais ser evitada. É evidente que tal questão já fora anteriormente

confrontada por autores como Singer (2002) e Spaemann (2007). Entretanto, sob uma

perspectiva utilitarista para aquele e especista para este, ambas insuficientes para uma resposta

satisfatória no campo moral.

A partir do marco teórico pós-humanista, que pressupõe uma expansão do conceito

de alteridade, discute-se, do ponto de vista teórico, a tendência de incorporação de referências

externas na formação da identidade humana, caminhando para a concepção de uma alteridade

não-humana. Um dos fundamentos dessa nova teoria é o estreitamento inevitável da relação

entre humanos e animais, evidenciada por uma crescente preocupação da sociedade na proteção

destes entes. A partir desse referencial teórico intenta-se construir a possibilidade de se

reconhecer em outros entes capacidade moral e, por extensão, personalidade jurídica.

Para que o tema seja desenvolvido com clareza, o presente artigo divide-se em três

partes. Primeiramente, questiona-se acerca da posição de objeto, como coisa, normalmente

atribuída aos animais em relações jurídicas. Em uma segunda seção, apresenta-se o conceito de

personalidade, seus requisitos e suas atuais implicações. Em um terceiro item, desenvolve-se a

questão à luz de uma nova perspectiva, ancorada no marco teórico proposto. Não se pretende,

portanto, buscar uma solução definitiva à questão dos animais, mas propor um novo viés moral

para o debate, a partir de um raciocínio categorial e não utilitário.

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O atual status conferido aos animais pelo Direito

Qual o status atribuído aos animais pelo Direito? Após um processo de redefinição,

o termo "pessoa" passou a ser dotado de um sentido técnico-específico, correspondente à

ciência do direito, sem estar, necessariamente, interligado à ideia de ser humano. Sendo assim,

para o Direito, tradicionalmente a atribuição de personalidade é feita pelo ordenamento jurídico

a partir de um critério político e está relacionada à aptidão genérica que determinado ente possui

de ser titular de direitos e deveres em uma relação jurídica (Mota Pinto, 2005).

Isto ocorre justamente porque a própria definição de "ser humano" possui limites

indefinidos, variáveis ao longo do tempo, devendo ser abarcado por um conceito mais amplo,

qual seja, o de personalidade jurídica. Importante analisar que o conceito de "pessoa", em um

sentido técnico-específico, não se liga necessariamente ao conceito de Homem.

Todavia, apesar de a ordem jurídica conceder personalidade a toda pessoa natural e

aos entes morais por ela criados, a mesma não é conferida a outros seres vivos. Note-se que a

existência de um direito especial de proteção aos animais não é suficiente para tanto. Segundo

Caio Mário, os animais são legalmente defendidos de maus-tratos, mas não são, contudo,

portadores de personalidade (2012).

Isto indica que, apesar de possuir um direito objetivamente estabelecido, não

possuem os animais direitos subjetivos em uma acepção técnico-jurídica. Desta forma, carecem

de ampla tutela pelo ordenamento, a qual teriam direito caso lhes fossem concedido status

paritário com o de seres humanos.

Para Mário Emílio Bigotte Chorão, "são sempre os bens e interesses dos homens

concretos, dos indivíduos de carne e osso que estão na raiz da ordem jurídica". Pode-se dizer

que, como herança do antropocentrismo, o raciocínio feito acerca dessas questões sempre se

baseou no especismo, ao argumento de que os membros da espécie humana devem ser mais

bem tratados que os de outras espécies (Peter Singer, 2006). Todavia, "mais bem tratados"

implicaria necessariamente em um dualismo excludente entre pessoas e coisas?

Na lição de João Baptista Villela:

No direito brasileiro, os animais, a que a doutrina chama também de

semoventes, sempre foram considerados coisas. O Código Civil de

2002, recente no tempo, mas velho nas ideias, perdeu excelente

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oportunidade de corrigir essa distorção. Áustria, Alemanha e Suíça,

países cujos códigos civis oriundos do século XIX, já os modificaram

para estabelecer o que pode ser o início de uma nova categorização dos

personagens que atuam na cena jurídica. Até agora, os seres de que se

ocupava o direito se repartiam fundamentalmente em pessoas e coisas.

(2007)

De fato, em 1990, o Código Civil Alemão3 inovou ao reconhecer uma nova categoria

jurídica dos animais, compreendida entre "coisas" e "pessoas”. Isto indica que em alguns países

o debate já atingiu outro estágio, em que diversas questões aqui discutidas já foram superadas

e incorporadas pelo ordenamento jurídico.

No Brasil, apesar da legislação vigente e das construções doutrinárias clássicas,

nota-se o surgimento de mudanças no que tange ao tratamento dos animais e a posição ocupada

por eles no ordenamento jurídico. Percebe-se o surgimento de uma nova perspectiva em relação

aos animais que, no ordenamento jurídico alemão, já ocupam um espaço intermediário entre

entes morais e instrumentos. Mas, apesar desse avanço, as consequências práticas de tal

previsão se mostram nebulosas e de difícil compreensão.

Se, por um lado, a instrumentalização sofrida pelos animais para a realização de

anseios humanos já é vista como moralmente incorreta, teme-se que a atribuição de

personalidade a esses entes possa provocar uma profunda crise na estrutura econômica, fazendo

surgir a necessidade de elaboração de alternativas eficientes e menos impactantes para o

desenvolvimento científico. Resta claro, portanto, que ainda que não se possam dizer "coisas",

enormes óbices teóricos e, especialmente, práticos, se impõem à atribuição do status de pessoa

a esses entes.

Coisas ou pessoas?

Diante dos obstáculos teóricos para definir qual o status jurídico ocupado pelos

animais no ordenamento, é essencial trabalhar a questão "o que é ser pessoa?". Para isso, dois

autores se destacam ao analisar essa definição plurívoca, quais sejam, Peter Singer e Robert

Spaemann.

3 §90ª Animais não são coisas. Eles serão tutelados através de legislação específica. Serão aplicados a estes os

dispositivos relativos às coisas, até onde não for disposto em contrário.

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Peter Singer, professor da Universidade de Princeton nos Estados Unidos,

conhecido, sobretudo, por suas obras "Animal Liberation" e "Practical Ethics", argumenta

contra a lógica "especista" adotada na sociedade, segundo a qual a discriminação contra certos

seres se baseia no fato de pertencerem a outra espécie (SINGER, Peter.2002).

O termo "especismo" foi criado pelo psicólogo britânico Richard D. Ryder, em

19734, para designar um preconceito contra não-humanos com base em diferenças físicas. A

consequência do especismo na sociedade é a consideração dos animais não-humanos como

meras propriedades do homem e, indiretamente, isso provoca um imensurável impacto

ecológico, o que, de acordo com o princípio de igual consideração dos interesses adotado por

Singer, é inaceitável (SINGER, Peter.2002).

Para o autor, a essência desse princípio implica na atribuição do mesmo peso aos

interesses semelhantes de todos os que são atingidos pelos atos humanos, independentemente

das aptidões ou de outras características. Este princípio ganha especial destaque na medida em

que os próprios seres humanos podem a ter diferenças físicas tão grandes entre si que surgem

preconceitos semelhantes ao especismo, excluindo aqueles que não são reconhecidos como

iguais (SINGER, Peter. 2002).

Ao mesmo tempo em que o princípio de igual consideração de interesses

proporciona uma base adequada para a igualdade humana, que leva a uma condenação radical

do racismo e do sexismo, esta base não pode ficar restrita aos seres humanos. Infere-se que se

este princípio é aceito como uma sólida base moral para as relações intersubjetivas, ele deveria

se estender da mesma forma para com as relações entre estes e aqueles que não pertencem à

espécie humana, isto é, aos animais não humanos.

Em sua obra, Peter Singer indaga se um animal não-humano pode ser uma pessoa e

reconhece que uma resposta positiva pode parecer estranha em um primeiro momento,

ressaltando que "essa estranheza não pode ser mais que um sintoma do nosso hábito de manter

a nossa espécie extremamente separada das outras" (Singer, 2006). Entretanto, resta evidente

que esta concepção de reconhecimento deve ser revista, haja vista os supramencionados

exemplos hodiernos.

O ponto de partida de Singer em prol da defesa dos animais encontra-se na teoria de

Jeremy Bentham, criador do utilitarismo como filosofia moral. O princípio utilitarista

4 Primeiramente, o conceito foi encontrado em um panfleto em defesa dos animais, publicado por Richard D.

Ryder em Oxford em 1973. Em seu livro editado em 1975, Victims of Science, o termo especismo (em inglês

speciesism) é formulado definitivamente e adotado, então, por Peter Singer

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desenvolvido por Bentham, em linhas gerais, fundamenta-se na sujeição do homem à dor e ao

prazer, conceitos capazes de avaliar moralmente as ações humanas.

Em 1823, em sua obra "An Introduction to the Principles of Morals and Legislations"

, Jeremy Bentham já especulava que:

"Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a

adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não

ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da

pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado,

irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum

dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a

terminação dos sacrum são motivos igualmente insuficientes para se

abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria

determinar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a

capacidade de falar? Mas para lá de toda comparação possível, um

cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais

sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo de

um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim; que

importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de

raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de

sofrimento"(BENTHAM, 1823).

Nesse sentido, Singer defende que o fato de os animais possuírem capacidade de

sofrer leva à existência de interesses legítimos que merecem ser considerados de forma

igualitária. Todavia, como veremos a seguir, um critério que leva em consideração apenas o

sofrimento de um ser sob uma ótica utilitarista é insuficiente, na medida em que falha em obter

uma resposta satisfatória no campo moral.

Em linhas gerais, Singer conclui que o uso de animais na sociedade moderna para

alimentação e pesquisas científicas é injustificável, pois se um ente sofre, não pode haver

nenhuma justificativa de ordem moral que impeça de levar esse sofrimento em consideração

(2006).

Em oposição à proposta de Peter Singer, é necessário trabalhar com o conceito

relacional apresentado por Robert Spaemann, filósofo alemão conhecido por seus trabalhos

sobre bioética, ecologia e Direitos Humanos. A pesquisa de Spaemann sobre a noção de pessoa

se insere no campo da filosofia prática. Nesse sentido, sua proposta é pensar os conceitos de

"ser", "natureza" e "razão", tendo em vista a reformulação do conceito de pessoa. Em sua obra

Persone - Sulla differenza tra "qualcosa" e "qualcuno", o autor promove um exame de destaque

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sobre o status moral de animais não-humanos.

Para o autor, esclarecer o que quer dizer pessoa significa ir ao encontro do

significado de humano, trabalhando o princípio da "transcendência" (2007). O homem seria a

imagem e a representação do incondicionado, em virtude de sua capacidade de abertura racional

infinita, de distanciamento de sua própria natureza e auto-transcendência. Spaemann defende,

em linhas gerais, que a personalidade está intrinsecamente ligada à humanidade, isto é, que todo

ser humano é pessoa (2007). E, sendo assim, a posição particular ocupada peos humanos seria

incompatível com a atribuição do status de pessoa para os animais (2007).

As posições antagônicas adotadas por Peter Singer e Robert Spaemann indicam uma

urgente necessidade de mudança de paradigma na dogmática jurídica. A filosofa Sônia T. Felipe

ressalta que, como legado do antropocentrismo-especista, tem-se a tutela das coisas pelo

ordenamento jurídico como instrumentos a serviço da cidadania, sem que haja a defesa da

preservação da vida por seu valor inerente (FELIPE, 2006). Contudo, o mundo jurídico não é

formado apenas por seres humanos, sendo que não deveriam estes ser os únicos possuidores de

direitos. Sob esta ótica, busca-se a atribuição de personalidade jurídica a todos os animais, não

apenas aos seres humanos, consequentemente tornando-os também possuidores de direitos.

Diferentemente da proposta de Peter Singer em sua obra "Ética Prática", o

sofrimento aqui não será utilizado como fator de cálculo utilitarista, mas como um fato

moralmente errado. Se o ente sofre a partir de uma ação equivocada, ilegítima do ponto de vista

moral, ele é paciente. Basta que o ente seja paciente moral para que a ele seja atribuído o status

de pessoa, vide o que ocorre com crianças muito pequenas ou pessoas em coma, incapazes de

executar uma norma.

Martha C. Nussbaum, professora de direito e ética da Universidade de Chicago, em

sua obra "Para além de compaixão e humanidade - Justiça para animais não-humanos" (2004),

aborda questões de justiça básica e titularidade para a construção de princípios políticos

fundamentais no que diz respeito aos animais não-humanos.

A necessidade de se estender direitos fundamentais para além da barreira de nossa

espécie segue a iniciativa da Corte Superior de Kerala (Nair V. Union of India, 2000) que, ao

tratar das condições vividas pelos animais de circo, defendeu o reconhecimento de seus direitos,

visto que embora não homo sapiens [sic], eles também são seres com direito a uma existência

digna e tratamento sem crueldade e tortura.

Para Martha Nussbaum, o tratamento cruel e opressivo de animais levanta questões

de justiça, tendo em vista que, embora a racionalidade acaba por ser um critério para a

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condição de membro na comunidade moral, seria possível a inclusão de criaturas que sofrem.

Afinal, o sofrimento é analisado como uma ação equivocada do ponto de vista moral que

desperta compaixão.

"Quando digo que o mau-trato de animais é injusto, não quero dizer

apenas que é errado de nossa parte tratá-los mal, mas também que eles

têm um direito, um crédito moral, de não serem tratados de tal modo.

É injusto para com eles. Creio que pensar nos animais como seres

ativos, que possuem um bem e o direito de persegui-lo, naturalmente

nos leva a perceber as importantes lesões causadas a eles como

injustas." (NUSSBAUM, 2004, f.92)

Embora reconheça que o utilitarismo tenha contribuído mais que qualquer outra

teoria ética para o reconhecimento de direitos dos animais, a autora alerta que o compromisso

desta doutrina abarca concepções que medem princípios de justiça pelos resultados que eles

produzem, discordando do cálculo empírico de bem-estar médio ou total proposto. Cada direito

fundamental é algo próprio e não está subordinado sequer por uma grande quantidade de outro

direito (NUSSBAUM, 2004).

O ponto central desta questão é que, ao serem também pacientes morais, os animais

fazem jus à tutela pelo ordenamento jurídico, possuindo direitos, mesmo que não possam ser

compelidos à execução de deveres. Trata-se de uma nova maneira de proteção aos animais pelo

direito, por serem pacientes morais e, portanto, dotados também de personalidade jurídica. Esta

nova forma de análise da condição dos animais, como já evidenciado acima, requer cuidadosa

fundamentação teórica e prática.

A discussão acerca da agência está ligada à capacidade de direito, que, por sua vez,

está relacionada à capacidade de racionalidade autônoma. A ausência de agência pode ser

solucionada, tecnicamente, pelo mecanismo da representação (Trajanoem, 2012). Os animais

poderiam ser admitidos em juízo substituídos pelo Ministério Público ou pelas sociedades

protetoras dos animais; ou ainda representados por seus guardiões, quando se tratar de animais

domesticados (2012).

Ser pessoa pressupõe ser um ente moral. Apesar do baixo grau de autonomia e

discernimento dos animais não-humanos, em geral, que impede a classificação deles como

agentes morais, fato é que os animais são capazes de suportar ações tidas como equivocadas do

ponto de vista moral, possuindo, assim, status de pacientes morais. Nesse sentido, Ricardo

Timm de Souza pontua a experiência animal ao longo da história do poder humano:

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“(...) Os animais não tem podido ser: coautores da sustentabilidade

ético-ecológica do planeta, ou seja, “outros”. Máquinas vivas, alvos

fáceis da vontade de destruição racional, objetos de exploração de todos

os tipos, de tortura, de decoração e uso, sem falar em alimento sempre

à mão, os animais experimentaram desde sempre todo tipo concebível

de violência humana.”(SOUZA, 2008. p.21-54)

A proteção que deve ser conferida a esses pacientes morais não deve ser uma

proteção instrumental, que visa a proteger os interesses transversos da própria

coletividade. Afinal, não é a repugnância causada no Homem pelo maltrato dos animais que

justifica a proteção dos mesmos, mas o fato de os animais, capazes de suportar ações

moralmente inaceitáveis, terem o interesse de não sentir dor. Sendo assim, os animais deixam

de ser instrumentos da ação humana e passam a ser pacientes, como condição de

reconhecimento deles como pessoas.

Em “Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e

sobre a dignidade da vida em geral”, Ingo Wolfgang Sarlet corrobora com essa crítica,

estabelecendo a necessidade de se repensar a concepção individualista e antropocêntrica de

dignidade e avançar a uma compreensão ecológica da dignidade da pessoa humana e da vida

em geral. Nesse sentido, a vedação de “objetificação” do humano deveria ter seu espectro

ampliado no sentido de contemplar outras formas de vida.

Alteridade não-humana

O desenvolvimento tecnológico promovido nos últimos 50 anos desencadeou

profundas rupturas com o paradigma humanista, que não admite o conceito de alteridade e que

pressupõe uma prevalência da racionalidade humana sobre tudo. A pressuposição de uma

completa autonomia humana, cuja identidade se realiza em um processo de purificação e

separação, se distinguindo de qualquer outro elemento externo, decaiu progressivamente.

Concomitantemente, o conceito de alteridade passou a revelar sua pluralidade,

consoante com a luta pelos Direitos Humanos e sua respectiva busca por pleno reconhecimento

da diversidade, o qual é a base do pós-humanismo (Marchesini, 2010).

Segundo a análise feita por Michele Farisco (2002) a respeito da obra do filósofo

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italiano, Roberto Marchesini, o antropocentrismo é interpretado como uma tentativa de proteger

os seres humanos como algo especial e substancialmente diferente do resto da natureza.

Esta tentativa se tornou inócua a partir do momento em que se estreitou a relação do

Homem com os animais e as máquinas, fazendo surgir uma crescente necessidade de

contaminação incompatível como o "mito da pureza". Esse "mito da pureza", ou seja, a

concepção humanista de uma subjetividade autônoma e fechada para a contaminação externa,

historicamente, tem levado a desvios racistas e xenófobos, exigindo uma reavaliação da

alteridade.

A partir do Renascimento, o Universo passou a ser avaliado de acordo com a sua

relação com o Homem. A busca por uma natureza ou essência humana parte de uma ontologia

antropocêntrica que se projeta para níveis éticos e epistemológicos, segundo a qual o homem

seria um ser auto-referido, medida para todo o resto e auto-suficiente.

Assim, a partir do pensamento antropocêntrico, uma rígida separação entre humano

e não humano emerge em uma dimensão ontológica – a existência de uma essência humana que

se opõe a tudo que é não-humano –, ética – o homem, portador de dignidade, é o único agente

e paciente moral e todo o resto assume uma conotação instrumental –, e epistemológica –

aceitação ou repulsa a objetos cognitivos através da antropomorfização ou instrumentalização

com base em uma dualidade categorial simplista humano versus não-humano (FARISCO,

2008).

Com o advento do pós-humanismo e a ideia de antropodescentramento, entretanto,

novas avaliações morais se tornam necessárias em relação ao espaço que o Homem ocupa,

sobretudo, diante de outros entes (Marchesini, 2010).

O chamado antropodecentrismo aqui proposto trata da substituição do conceito de

humano pelo conceito de pessoa como centro gravitacional de um sistema de referências a partir

do qual o homem se relaciona consigo mesmo e com o mundo.

Dentre as reavaliações provocadas por essa nova concepção, tornou-se necessário

construir uma base moral sólida para as relações com os animais não-humanos, questionando o

uso que é feito deles na sociedade atual, tendo em vista as atrocidades sofridas por eles para

saciar as carências humanas, seja como alimento ou objeto científico. Ademais, para além deste

uso reprovável, a concepção em vigência fere mortalmente princípios de moralidade e

alteridade do ser.

Christine M. Korsgaard, na palestra Fancing the animal you see in the mirror, fala

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sobre a ética em torno das nossas relações com animais não-humanos. Para isso, ela deixa de

lado questões ecológicas e explora porque temos deveres frente a estes entes e como estes

deveres podem não ser tão fracos como muitos costumam pensar (KORSGAARD, 2009).

"Então, por que importa como nós nos relacionamos com os animais

não-humanos individuais? Importa porque muitos desses indivíduos

são centros complexos de subjetividade, seres conscientes, que

experimentam prazer e dor, medo e fome, alegria e pesar, conexões com

outros particulares, curiosidade, diversão e graça, satisfações e

frustrações, e gozo da vida. E essas são todas as coisas que, quando nós

as vivenciamos, derrubamos as pretensões morais na consideração dos

outros."(KORSGAARD, 2009)

Diariamente, somos confrontados por questões éticas sobre animais não-humanos.

Korsgaard acredita que poucas pessoas ainda concordam com a ideia do filósofo francês René

Descartes de que animais são incapazes de pensar ou sentir dor.

Paulatinamente, nota-se uma tendência da sociedade atual em questionar as ações

moralmente equivocadas dirigidas aos animais não-humanos, criando a necessidade de

reformulação das pesquisas científicas e da própria alimentação humana para poupar os animais

de maus-tratos.

Estudos desenvolvidos na Universidade de Maastricht, Holanda, apresentaram ao

mundo o primeiro hambúrguer feito em laboratório5. Pesquisadores usaram células retiradas de

uma vaca para reconstituir os músculos da carne bovina, que foram combinados a outros

ingredientes para fazer o hambúrguer. O professor Mark Post, chefe da pesquisa, ressaltou que

um dos incentivos para a realização dos estudos é o fato da criação de animais para o abate ser

prejudicial para o meio ambiente e para o próprios animais, além de não suprir a demanda

mundial por alimento.

Da mesma forma que é possível desenvolver alternativas no que tange a alimentação

humana, a ciência pode se desenvolver ao ponto de otimizar a própria produção interna sem o

sacrifício ou a exploração de outros entes capazes de sofrer.

Dessa forma, percebe-se que a teoria de Marchesini se sobressai, sendo a que mais

5 Pallab Ghosh, “Cientistas 'degustam' o primeiro hambúrguer de laboratório do mundo” em BBC Brasil.

Publicado em 05/08/13. Disponível em:

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/08/130805_hamburguer_laboratorio_gm.shtml

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se aproxima da resposta moral. Pode-se utilizar do princípio da igual consideração de interesses,

não como um conceito utilitário, mas sim fundada sob a égide de uma nova perspectiva de

alteridade não-humana, para desenvolver uma nova teoria acerca da atribuição do status de

pessoa para animais não-humanos. Esta resposta surge na forma de um processo silogístico, que

se estrutura a partir das teses e antíteses apresentadas, apenas para obter como resultado a

desejada síntese fundada em uma perspectiva moral.

Considerações finais

O percurso teórico até aqui desenvolvido permite, neste momento, que sejam

esboçadas algumas conclusões que, longe de pretender esgotar o tema, apresentam-se como

pontos de partida.

Na análise da doutrina brasileira, foi possível perceber que o debate em torno da

possibilidade de atribuição de personalidade jurídica aos animais não-humanos encontra-se

incipiente, distante de ordenamentos jurídicos de vanguarda como o da Alemanha, onde o tema

já apresenta contornos legislativos mais fortes. No Brasil, nota-se que pessoa ainda é um termo

intrinsecamente ligado ao humano e seus interesses diretos, como resquício de um raciocínio

antropocêntrico.

Observamos a existência internacional de duas correntes antagônicas principais. A

primeira delas, apoiada no utilitarismo, entende a possibilidade de extensão do status de pessoa

aos animais não-humanos a partir do princípio da igual consideração de interesses, proposta por

Peter Singer. Por outro lado, uma segunda proposta que vai de encontro a essa possibilidade,

restringindo aos seres humanos a personalidade jurídica, conforme defendido por Robert

Spaemann.

Essa discordância teórica, contudo, pode ser superada com o advento do pós-

humanismo trabalhado, sobretudo por Roberto Marchesini por meio do conceito de alteridade

não-humana em busca do reconhecimento da diversidade. A análise da proposta pós-humanista

permite que fossem superadas lógicas especistas e utilitaristas que regiam o assunto até então,

promovendo o debate ao campo moral.

Verifica-se que paulatinamente a sociedade se convence, mesmo que intuitivamente,

que embora não sejam considerados pessoas, os animais não-humanos não poderiam ser

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equiparados a coisas. As inquietações e estranhezas geradas pelo tema levaram a discussão ao

campo teórico a ponto de se concluir, que os conceitos de agência e paciência moral, abarcados

pela ideia de pessoa podem ser dissociados proporcionando o reconhecimento da posição de

pacientes morais aos animais a partir da alteridade não-humana.

Portanto, é justamente a abertura para a alteridade não-humana e a consideração dos

interesses legítimos dos animais que, somados, seriam suficientes para proporcionar a esses

entes o status de pessoa para o direito.

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100  

DIREITO E DIVERGÊNCIA TEÓRICA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE HEIDEGGER

Lucas Salgado Macedo Gomes de Carvalho1

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo investigar o problema: “o que torna possível que a divergência entre os juristas com relação aos fundamentos do direito não seja perceptível?”. Para responder à questão, primeiramente será apresentado um julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal como um exemplo de divergência comumente suscitada entre os juristas. A partir desse caso mostrar-se-á a, com base no pensamento de Ronald Dworkin, que os diferentes posicionamentos acerca do que o direito diz sobre um caso determinado, na verdade são divergências com relação aos fundamentos do direito, isto é, dizem respeito àquilo que o direito é. Por fim, utilizando a analítica existencial do ser-aí desenvolvida por Martin Heidegger, se buscará encontrar uma resposta para o problema por meio de uma radicalização das ideias do direito como ciência e prática argumentativa. Palavras-chave: Filosofia do Direito; Ontologia; Martin Heidegger; Ronald Dworkin. ABSTRACT: This paper aims to investigate the following problem: “What makes it possible that jurists do not recognize their own divergence regarding the fundamentals of law?” .To answer that question, firstly a judgment carried out the Brazilian Supreme Court is presented as an example of a common disagreement occurring among jurists. This case, based on Ronald Dworkin’s thought, demonstrates that the differing views among jurists in a specific case are, in fact, divergences regarding the fundamentals of law, in other words, about what the law is. Finally, the existential analytic of Dasein, developed by Martin Heidegger, is used to find a solution to the problem through a radicalization of the ideas of law as science and as argumentative practice. Keywords: Philosophy of law; Ontology; Martin Heidegger; Ronald Dworkin.

A divergência no direito

O Supremo Tribunal Federal, no dia cinco de maio de dois mil e onze, julgou a Ação

Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF) 132, que buscavam o reconhecimento da união estável para casais

homoafetivos, estendendo a esses os mesmo direitos e deveres dos companheiros de relações

heteroafetivos.

                                                            1 Mestrando em Filosofia pela UERJ.

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101  

O Ministro relator das ações, Carlos Ayres Britto, afirmou ter aplicado a “técnica de

interpretação conforme a Constituição” para realizar seu voto2. Segundo o ministro, os incisos

II e V do art.19, e art. 33 do Decreto-Lei nº 220/1975 possuem mais de um significado, devendo,

então, serem interpretados de modo a se compatibilizarem com a Constituição, e essa, por sua

vez, asseguraria de modo objetivo em seu artigo 3°, inciso IV que “constituem objetivos

fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) promover o bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. De

acordo com Ayres Britto, tal dispositivo constitucional veda explicitamente o “tratamento

discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento

discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo

próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de ‘promover o bem

de todos’” 3. Tal bem de todos, prossegue o Ministro, enquanto valor objetivamente posto pela

Constituição, é uma “situação jurídica ativa a que se chega por meio da eliminação do

preconceito de sexo” 4. Assim, seu voto foi pelo reconhecimento da união entre pessoas do

mesmo sexo como entidade familiar, e pelo seu tratamento igual à união estável heteroafetiva.

O Ministro Ricardo Lewandowski, apesar de ter reconhecido como aplicáveis às uniões

homoafetivas as mesmas prescrições legais relativas às uniões estáveis heteroafetivas, e de

também ter afirmado que seu voto era conforme a Constituição, divergiu do Ministro Ayres

Britto com relação à fundamentação de sua decisão5. O tratamento igualitário entre as duas

formas de união não se deve, segundo Lewandowski, principalmente à vedação constitucional

da discriminação sexual e ao objetivo de promoção do “bem comum”, mas sim à existência de

uma lacuna normativa, pois, segundo o Ministro, a união entre pessoas do mesmo sexo não

pode ser enquadrada em nenhuma das espécies de família descritas pelo ordenamento jurídico

brasileiro, quais sejam: a constituída pelo casamento, a união estável entre homem e mulher, e

a família monoparental. Estando diante de uma situação não prevista pelo ordenamento, cabe

aos magistrados, afirmou o Lewandowski, suprir o vácuo normativo por meio de técnica

hermenêutica de integração analógica. Essa técnica tem o objetivo de reger uma realidade social

que não é abarcada por nenhum dispositivo legal através de uma analogia com a disciplina

                                                            2BRITTO, Carlos Ayres. Disponível em: www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277re - visado.pdf. Acesso em: 22/08/14, pag. 1. 3 Ibidem, pag.10. 4 Ibidem, pag.11. 5 LEWANDOWSKI, Ricardo. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo - /ADI4277 RL.pdf. Acesso em 22/08/14.

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normativa mais próxima à situação examinada, sempre observando os limites objetivamente

delineados dos parâmetros legais, e principalmente buscando se conformar à vontade original

constituinte, de modo que o judiciário não atue como substituto do legislador. Deste modo, o

Ministro procurou dar a essa situação não abarcada pelo direito brasileiro, isto é, as uniões

homoafetivas, prescrições legais análogas às conferidas pelo poder constituinte originário às

uniões heteroafetivas.

Verifica-se que ambos os votos dos Ministros retiraram sua fundamentação de um

mesmo lugar, o ordenamento jurídico brasileiro, principalmente a Constituição, mas, apesar

disso, eles divergiram com relação àquilo que o direito diz sobre o referido caso. Diante desse

tipo de divergência, tão comum entre os juristas, normalmente se procura verificar qual

posicionamento realiza a interpretação correta do ordenamento. Essa verificação da correção

dos posicionamentos é feita por meio da análise das proposições jurídicas emitidas em relação

aos textos legais, de modo a averiguar quais proposições são verdadeiras e quais são falsas, ou

quais possuem uma melhor fundamentação. Essa análise, contudo, é insuficiente para aclarar

as divergências existentes entre os operadores do direito em relação ao conteúdo das normas

jurídicas, pois o verdadeiro fundamento de tais discordâncias permanece encoberto. Os

diferentes posicionamentos em relação ao que diz o direito sobre um determinado fato se deve

a uma divergência quanto a quais são os critérios que devem ser utilizados para verificar se uma

determinada proposição jurídica é verdadeira ou falsa, ou seja, uma divergência em relação ao

que é o direito.

Em um primeiro momento pode parecer absurdo que exista uma discordância entre os

juristas quanto ao significado do direito. Para alguns filósofos a discussão e a crítica racionais

só são possíveis caso haja um consenso acerca das questões fundamentais; a racionalidade

dependeria da aceitação de uma linguagem e um conjunto de suposições comuns. Karl Popper

nomeia esse pensamento como a tese do relativismo6. Ronald Dworkin descreve uma ideia

semelhante que é compartilhada por alguns juristas e filósofos do direito, denominando-a como

aguilhão semântico7. O aguilhão semântico é o argumento presidido pela lógica de que uma

discussão jurídica sensata somente é possível se forem aceitos e seguidos os mesmos critérios

para decidir quando as proposições são bem fundadas, mesmo que não se possa afirmar com

exatidão que critérios são esses. É preciso contestar a tese do relativismo e mostrar que os

                                                            6 POPPER, Karl. A ciência normal e seus perigos. In: LAKATOS I.; MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979, p. 69. 7 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 55.

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juristas de fato divergem sobre o significado do direito. Para tanto, o presente artigo realizará

uma exposição da ideia desenvolvida por Dworkin em seu livro O império do direito de modo

a caracterizar o direito como uma prática interpretativa, e assim poder evidenciar a existência

de tal divergência.

A divergência teórica

Os processos judiciais, normalmente, suscitam três tipos de questões: questões de fato,

que buscam responder à pergunta “o que aconteceu?”; questões de direto que verificam qual é

a lei pertinente para o fato ocorrido; e questões interligadas de moralidade política e fidelidade,

que interrogam se a lei pertinente ao fato é justa ou não, e se os juízes deveriam aplicá-la ou

ignorá-la. As questões do segundo tipo são as mais frequentes e problemáticas entre os

profissionais do direito, e é delas que se originam as proposições jurídicas.

Dworkin designa como proposições jurídicas “todas as diversas afirmações e alegações

que as pessoas fazem sobre aquilo que a lei lhes permite, proíbe ou autoriza” 8. Tais proposições

são classificadas como podendo ser verdadeiras ou falsas, sendo que, a constatação da sua

veracidade sempre se dá com relação a outras proposições. Essas, de onde as proposições

jurídicas retiram seus conteúdos, são os chamados “fundamentos do direito”, sendo, então, os

enunciados responsáveis por tornarem uma proposição jurídica verdadeira.

Deste modo, Dworkin mostra que o direito consiste em uma prática argumentativa, na

qual os que nela estão envolvidos “compreendem que aquilo que ela permite ou exige depende

da verdade de certas proposições que só adquirem sentido através e no âmbito dela mesma; a

prática consiste em grande parte em mobilizar e discutir essas proposições” 9. Fica agora um

pouco mais claro em que consistem as questões de direito. As discordâncias entre os juristas

em relação ao que diz o direito sobre um determinado fato são, em maioria, divergência quanto

aos fundamentos do direito. Os juristas chegam a resultados diferentes quanto ao significado de

um texto legal, quanto ao que diz uma lei, o que ela permite ou proíbe, por estarem utilizando

critérios distintos para verificar a veracidade das suas proposições jurídicas. Essa divergência

com relação aos fundamentos do direito, quanto àquilo que o direito realmente é, Dworkin dá

o nome de “divergência teórica sobre o direito” 10. Se a ideia de que os aplicadores do direito

                                                            8 Ibidem, p. 6. 9 Ibidem, p. 17. 10 Ibidem, p. 8.

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divergem sobre o que é o direito, inclusive os ministros do Supremo Tribunal Federal, continua

parecendo absurda, é porque ainda não se explicou como cada um daqueles que se relacionam

com a prática jurídica constroem seu significado.

O direito é caracterizado por Dworkin como uma prática interpretativa, sendo a

interpretação uma atitude em que o intérprete identifica um objeto naquilo que ele é, e adota

comportamentos adequados a esse objeto. O filósofo divide esquematicamente a atitude

interpretativa em três etapas11. Na primeira etapa são identificados as regras e os padrões que

se consideram fornecer o conteúdo da prática jurídica. Essa etapa é denominada “pré-

interpretativa”, ainda que com ressalvas, já que nela seria necessário algum tipo de interpretação

para se identificar quais regras sociais são consideradas normas jurídicas e quais não.

Admitindo-se que já em um primeiro momento é realizada uma interpretação do direito,

também será preciso admitir que é necessário um mínimo consenso inicial acerca da prática

jurídica para que todos interpretem as mesmas regras e padrões. Dworkin admite a necessidade

desse consenso inicial forte sobre quais práticas são práticas jurídicas para o florescimento do

direito como um empreendimento interpretativo, ressalvando que tal consenso não é absoluto e

tampouco eterno, mas contingente e local12. Porém, não se pode depreender da necessidade da

existência desse consenso inicial que exista um significado compartilhado por todos do que é o

direito, pois, como se demonstrará, tal significado consiste em muito mais do que esse primeiro

acordo.

Na segunda etapa o intérprete se concentra em encontrar o significado da prática

jurídica, a justificativa geral para os principais elementos que são identificados como a ela

pertencentes. Dworkin ressalta que a justificativa não precisa se ajustar de forma exata a todos

os aspectos e características da prática estabelecida, devendo ser uma adequação suficiente para

que o intérprete se veja como alguém que interpreta a prática, e não como alguém que está

inventando uma prática nova13.

Com as duas primeiras etapas, identificação do objeto e seu significado, são colocados

diante do intérprete uma série de possibilidades de comportamentos que ele pode adotar com

relação àquilo que é interpretado. É então que se tem a terceira é ultima fase, chamada de pós-

interpretativa, na qual o intérprete assume determinados comportamentos dentre os que lhe são

possíveis. Essas atitudes buscam se adequar a ideia que o intérprete possui daquilo que a prática

                                                            11 Ibidem, p. 81-82. 12 Ibidem, p. 113. 13 Ibidem, p. 81.

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realmente requer para melhor servir à justificativa por ele aceita na etapa interpretativa14. É

fundamental enfatizar que a atitude interpretativa se dá, quase que sempre, de forma automática

e irrefletida pelo intérprete. Raras são as vezes e aqueles que fazem esse agir se tornar explícito.

Com essa rápida delineação de uma atitude interpretativa apresentada por Dworkin já

deve ter ficado um pouco mais visível do que se tratam as questões de direito. Para se evidenciar

mais ainda que esses desarcodos entre os juristas são fruto da pluralidade de significados

atribuídos ao direito, resta explicar como seu significado é composto.

Tomando-se mais detidamente a interpretação realizada acerca de uma prática social

complexa como o direito, Dworkin identifica no significado composto pelo intérprete duas

partes. A primeira seria um enunciado central, genérico e abstrato sobre o objeto interpretado,

que fornece uma espécie de patamar a partir do qual todas as demais proposições se formam15.

Sua abstração decorre da sua finalidade, que é interpretar o ponto essencial, a estrutura da

prática, ou seja, descrever seu sentido mais geral. Dworkin denomina esse primeiro elemento

do significado como conceito. A segunda parte, chamada de concepção, consiste em

subinterpretações do conceito, um refinamento mais concreto daquilo que exige a prática, do

que ela é. Elas são um aprimoramento da interpretação inicial abstrata.

A distinção entre conceito e concepção surge de um contraste entre níveis de abstração

em que se pode analisar uma determinada prática. O primeiro nível, o dos conceitos, tem por

base ideias distintas que são utilizadas na maior parte das interpretações; no segundo, o das

concepções, as controvérsias entre diferentes ideias acerca das interpretações abstratas são

identificadas e assumidas, sedo possível, assim, aprimorar-se a interpretação do conceito da

prática. A ideia do conceito, que também pode ser definida como sentido, propósito, objetivo,

ou princípio justificativo, é o fundamento do objeto interpretado como um todo, sendo que,

cada intérprete constrói sua teoria interpretativa a partir de suas convicções acerca do que é essa

justificativa do objeto, o que faz com que cada interpretação seja diferente das visões de outros

intérpretes16. Como já dito, um mínimo de consenso entre os que estão envolvidos na

interpretação do direito é necessário para que eles dirijam seu olhar para as mesmas práticas e

normas.

Se retomarmos os votos acima expostos dos Ministros do STF, é possível agora perceber

que as divergências suscitadas derivam de interpretações distintas acerca do que é o direito.

                                                            14 Ibidem, p. 82. 15 Ibidem, p. 86. 16 Ibidem, p. 110.

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Dificilmente se pode afirmar com precisão qual significado do direito está por trás de cada

proposição jurídica, já que um intérprete normalmente não expõe quais são os fundamentos das

suas afirmações, ou, o que ocorre na maioria das vezes, sequer tem consciência expressa deles,

mas é possível ao menos esboçar quais foram os critérios utilizados para avaliar se uma

proposição jurídica é verdadeira ou falsa.

O posicionamento defendido pelo Ministro Ayres Britto pode ser definido, grosso modo,

como aquilo que Dworkin denomina como uma concepção pragmática do direito17. O direito

consistiria em um instrumento para a promoção de um futuro melhor da sociedade, sendo os

critérios utilizados para a avaliação daquilo que ele permite ou proíbe, por exemplo, a

concretização dos princípios e dos valores compartilhados pela comunidade, e assim, a

promoção do bem de todos. Dessa forma, o direito teria um compromisso com a transformação,

com o avanço e desenvolvimento no sentido da formação de uma comunidade melhor e mais

justa, e não com o passado, com a manutenção de um status quo. Já o posicionamento do

Ministro Ricardo Lewandowski pode ser classificado como compartilhando de uma ideia

convencionalista do direito18. O direito seria o resultado de decisões políticas tomadas no

passado que criariam para uma comunidade direitos e deveres exigíveis de forma coercitiva, ou

seja, uma prática cujo valor reside em assegurar comportamentos esperados. Os direitos e

deveres criados pelas decisões tomadas no passado devem poder ser conhecidos por todos, ou

por qualquer um que possua a técnica jurídica, não podendo ser alterados pela vontade pessoal

do juiz. Assim, o significado de uma lei não pode depender das apreciações acerca da

moralidade e da justiça que diferentes juízes poderiam fazer em diferentes contextos.

As descrições dos conceitos e concepções do direito acima foram apenas esboçadas,

pois tinham somente o intuito de mostrar que existe de fato uma divergência entre os juristas

em relação ao que é o direito. Além disso, como já dito, elas tiveram de ser feitas grosso modo

devido ao fato de aqueles que possuem as referidas interpretações do direito, não as exporem,

e, na maioria das vezes sequer as terem de uma forma explícita para si mesmos. Assim, surge

um questionamento: como é possível que todas as proposições jurídicas retirem seu fundamento

de uma ideia acerca do que é o direito, sem que se possua uma compreensão expressa de tal

ideia? O que torna possível que os juristas sustentem proposições jurídicas divergentes sem

perceberem que na verdade estão divergindo quanto aos critérios utilizados para verificarem

                                                            17 Ibidem, p. 119. 18 Ibidem, p. 118.

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quais proposições são verdadeiras? Ou seja, qual o fundamento da possibilidade de

encobrimento dos conceitos fundamentais do direito?

O direito como ciência

O direito foi definido acima como uma prática argumentativa: um contexto de

mobilização e discussão de proposições acerca do que a prática jurídica autoriza ou impede em

decorrência de outras proposições - os fundamentos da prática -, que só adquirem sentido

através e no âmbito da própria prática. Desse modo, a atividade jurídica consiste precipuamente

em verificar quais afirmações acerca do que o direito permite ou proíbe são verdadeiras. Tal

caracterização do direito se assemelha a uma descrição usual da ciência. A ciência pode ser

definida como a unidade do nexo de fundamentação de proposições verdadeiras19. Segundo

Martin Heidegger, tal conceituação segue a lógica de que sendo a ciência um conhecimento que

visa à verdade, mas a verdade é uma propriedade das proposições, então a ciência enquanto

uma conexão de conhecimentos é uma conexão de proposições verdadeiras20. Tal conexão é

uma conexão de fundamentação, o que permite afirmar que a atividade científica é a unidade

da conexão de fundamentação de proposições verdadeiras.

Nas décadas passadas, alguns juristas, como Hans Kelsen, alcançaram grande

notoriedade ao se empenharem em elevar a Jurisprudência à altura de uma genuína ciência, de

uma ciência do espírito21. Não há como negar a importância de tais esforços para o

desenvolvimento da ciência do direito, no entanto, cabe questionar se a visão da atividade

científica como unidade da conexão de fundamentação de proposições verdadeiras é completa

e alcança o sentido da ciência e, consequentemente, da prática jurídica.

A definição corrente de ciência é inegavelmente correta. Porém, como afirmou

Heidegger em sua conferência A questão da técnica22, embora o correto constate sempre algo

exato e acertado naquilo que se dá na frente dele, ele não descobre a essência do que se dá e

apresenta. O correto não é o verdadeiro. Somente onde se dá o descobrir da essência acontece

o verdadeiro em sua propriedade, e apenas este nos leva a uma atitude livre com aquilo que a

partir de sua própria essência nos concerne. É preciso encontrar uma definição verdadeira da

atividade científica, a partir da qual possamos nos relacionar livremente com a ciência. No livre

                                                            19 HUSSERL, Edmund. Investigaciones lógicas. Madri: Alianza Editorial, 2001, p.42. 20 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 50. 21 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XI. 22 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2006, p.12.

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relacionar-se a nossa existência se abrirá à essência da ciência, e, então, essa se mostrará como

possibilidade essencial da existência do homem. Somente assim se poderá fazer a experiência

de tudo que diz respeito à ciência, e então se conseguirá encontrar o fundamento do

encobrimento da divergência teórica no direito. A busca pelo conceito verdadeiro da ciência se

dará a partir da sua correta definição.

As ciências movimentam-se dentro de certos enunciados, proposições e conceitos que

são determinados em seu conjunto por meio de proposições e conceitos fundamentais23. Como

dito acima, essa visão da ciência como o todo de um conjunto de fundamentação de proposições

verdadeiras se funda na concepção de que o lugar da verdade é a proposição. Qual o significado

dessa concepção? Kelsen afirma que o ideal de toda ciência é a objetividade e a exatidão24. Se

objetividade e exatidão forem tidas como expressões sinônimas de determinabilidade

matemática, então não se pode dizer que elas são o ideal de toda ciência, já que nem todo objeto

pode ser apreendido matematicamente. Melhor seria então dizer que o rigor é o ideal de toda

ciência. Por rigor deve-se entender “o modo como pode ser conquistado e determinado o

conhecimento adequado ao objeto” 25. Nesse sentido, ciência é conhecimento investigador, um

modo determinado de apropriar-se de um conhecimento correto ao objeto. A adequação do

intelecto ao objeto é a definição escolástica de verdade, o que faz com que se possa definir a

pesquisa e doutrina científicas como atividades cuja meta é a verdade. E como se chega à

concepção de que a verdade está nos enunciados?

Enunciar é ligar. Em toda enunciação ocorre uma ligação entre sujeito e predicado, na

qual o predicado é atribuído ao sujeito. O lugar da verdade na proposição está justamente nesse

ligar. Caso as representações sujeito e predicado se impliquem reciprocamente, ou, dito de outra

forma, caso o predicado seja conveniente ao sujeito, a proposição será verdadeira, o que torna

a verdade uma propriedade do enunciado. A lógica desse raciocínio é correta, no entanto ela se

esquece de algo essencial. A mútua implicância entre sujeito e predicado não pode se

fundamentar apenas no enunciado em si mesmo. Se for dito que uma proposição é verdadeira

por nela ocorrer uma ligação pertinente, a pertinência desse ligar é dependente de um outro que

não a própria proposição. Quando estamos no contexto de uma atividade científica, um

enunciado emitido não é tido como verdadeiro em si mesmo de modo último. Como dito, a

ciência é o todo de um conjunto de fundamentação de proposições verdadeiras, assim uma

                                                            23 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 38. 24 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XI. 25 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 47.

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proposição retira o fundamento da pertinência do predicado ao sujeito, ou seja, da sua verdade,

de outras proposições, a saber, das proposições fundamentais. Desse modo, deve-se então dizer

que a fundamentação da verdade de um enunciado é retirada das proposições fundamentais.

Heidegger define os conceitos fundamentais das ciências como “determinações em que

o âmbito dos objetos, que serve de base a todos os objetos temáticos de uma ciência, é

compreendido previamente de modo a guiar todas as pesquisas positivas” 26. As proposições

fundamentais colocam as estruturas fundamentais que delimitam o campo de investigação da

atividade científica, de modo que toda investigação possa encontrar um fio condutor até seu

objeto. Como essas proposições fundamentais realizam a primeira abertura concreta do âmbito

de investigação científica, não é possível que esses conceitos retirem seu fundamento de outros

enunciados; o lugar da verdade deles tem de ser outro.

Quando se diz algo como “o céu é azul” ou “o giz é branco”, não se emite tais enunciados

a partir de outros mais originários. Na proposição “o giz é branco” a sua veracidade, ou seja, a

pertinência do predicado ao sujeito não se deve a outras proposições fundamentais, tampouco

a um caráter implícito da representação de giz, pois a palavra “giz” não carrega consigo uma

determinada cor. A implicação recíproca de sujeito e predicado nesses enunciados se dá pela

pertinência da proposição àquilo que está se enunciando, o “sobre o que” do enunciado. Ao se

dizer “o giz é branco”, o fazemos a partir do próprio giz branco. Desse modo, Heidegger

afirma27 que esse tipo de enunciado só pode ser realizado em vista do que já se encontra diante

de nós. É importante salientar que esse “estar diante de nós” não se refere a algo físico, a um

sentido espacial, e sim a um ter acesso ao que se enuncia, um estar manifesto em si mesmo

desse algo sobre o qual se emite uma proposição.

Retornando para os conceitos fundamentais que estruturam a ciência, é possível agora

ver que, se eles conservam a forma de toda proposição – ligação entre sujeito e predicado –, a

implicação recíproca desses retira seu fundamento do próprio “sobre o quê” do enunciado,

daquilo que já se encontra diante de nós de modo manifesto e que somente por isso podemos

emitir proposições sobre. Caso as proposições fundamentais retirem seu fundamento da coisa

mesma, daquilo que já se encontra diante de nós mostrando-se naquilo que é em si mesmo,

então se tem de concluir que o enunciado não pode ser o modo originário de se ter acesso ao

objeto, mas o contrário: só porque já temos acesso ao objeto enquanto o que ele é nele mesmo

é que podemos emitir enunciados adequados a esse objeto. Antes da emissão de uma proposição

                                                            26 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.46. 27 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 55.

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já estamos imediatamente relacionados com a coisa mesma, e, em verdade, não de um modo tal

que só teríamos da coisa uma “representação” em nossa alma. Ao fazermos a enunciação, já

estamos antes nos mantendo junto à própria coisa desvelada nela mesma. Se apresentando dessa

forma, podemos emitir enunciados sobre ela, e mesmo comprovar esses enunciados. O mostrar-

se em si mesmo de um objeto nós o denominamos desvelamento, que é expresso em grego pela

palavra ἀλήϑεια (alétheia), que se traduz como verdade. Verdadeiro, isto é, desvelado, é o

próprio objeto. Não é, então, a proposição nem o enunciado que são verdadeiros no sentido

mais originário, mas a coisa mesma. Somente porque a coisa mesma é verdadeira, as

proposições sobre ela podem ser verdadeiras em um sentido derivado, podendo se adequar ao

modo de ser daquilo sobre o que esse enunciado pode versar28.

Inicialmente foi dada uma definição de direito como contexto de fundamentação de

proposições acerca do que a prática jurídica permite ou autoriza em virtude de outras

proposições denominadas fundamentais, e equiparou-se essa definição à de ciência. Essas

definições repousavam sobre o entendimento de que o lugar da verdade era o enunciado. Agora

mostrou-se que se um enunciado é verdadeiro, ou seja, se o predicado corresponde de fato ao

sujeito, essa verdade não é a mais originária. A verdade só pode residir no enunciado de modo

derivado. A pertinência recíproca entre sujeito e predicado é, em primeiro lugar, dependente da

adequação àquilo que está se enunciando, o “sobre o que do enunciado”, a coisa mesma. É

preciso que antes de qualquer enunciação já se esteja diante da coisa nela mesma, e essa deve

já ter se mostrado naquilo que ela é para então ser feita a correta correspondência entre o objeto

que se enuncia e enunciado. Com essa passagem da ideia de verdade proposicional para a

verdade como desvelamento, é possível agora ver que se a ciência é o todo de um conjunto de

fundamentação de proposições verdadeiras, ela só pode sê-lo caso já se esteja diante da coisa

em si mesma sobre a qual se emitem enunciados. Assim, só se pode conquistar uma

compreensão verdadeira da ciência a partir da compreensão verdadeira do ser-em-meio-ao-

desvelamento como modo de ser do homem. Para tanto, o presente artigo realizará de forma

breve e esquemática uma exposição da analítica existencial do ser-aí-humano desenvolvida por

Martin Heidegger.

A analítica existencial do ser-aí

                                                            28 Ibidem, p. 82.

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Como dito, o fundamento mais originário da verdade de uma enunciação está no manter-

se junto ao desvelamento daquilo que se anuncia. Antes de qualquer verbalização de um

enunciado, ou de qualquer ocupação expressa com as coisas é necessário que já exista um estar

em meio ao desvelamento. No ocupar-se com algo expressamente ocorre uma mudança no

permanecer junto à verdade, de modo que a atenção passa a ser direcionada para as coisas em

meio às quais já se mantinha. Se as coisas já estavam presentes antes de se direcionar a atenção

a elas, então esse ocupar-se expressamente com o que já era presente, ou o emitir enunciados

sobre elas não lhes traz ou altera nada, não acrescenta ou retira coisa alguma da coisa mesma.

Esse prestar atenção é segundo sua essência um tornar aparente enquanto um deixar vir ao

encontro, um acolher aquilo que se mostra em si mesmo 29. Enquanto receptividade, o ser em

meio ao desvelamento é um deixar-ser como se é, um entregar as coisas a elas mesmas na

ocupação. É possível enxergar esse entrega das coisas a elas mesmas na forma de uma certa

indiferença, no entanto não como um não fazer nada. Heidegger afirma que “esse deixar-ser é

um ‘fazer’ do tipo mais elevado e originário e só é possível em razão de nossa essência mais

íntima, em razão da existência, da liberdade” 30. Tendo-se dito que para o acolhimento da coisa

nela mesma, ela precisa já ter se mostrado, deve agora ser dito que esse desvelamento não é

algo que subsista na coisa mesma como se dela fosse uma propriedade. O mostrar-se não é uma

característica por si subsistente na coisa, e sim algo que a ela advém ou pode advir.

Com essas considerações, cabe colocar, com relação ao desvelamento que determina a

essência da ciência, a pergunta: se para construirmos os enunciados fundamentais que

estruturam toda a atividade científica é necessário que já se tenha acesso à coisa enquanto o que

ela é nela mesma, mas essa não carrega consigo um desvelamento, como então se dá esse

mostrar-se? Muito da dificuldade de se encontrar a resposta para esse questionamento está na

forma como enxergamos o que é o homem.

O ser humano, ainda hoje, é visto como uma “coisa pensante”. O homem seria algo que

ocorre concomitantemente às demais coisas que existem e que se situam dentro de um mundo.

Enquanto “coisa pensante”, o homem se diferenciaria das demais coisas por ter a capacidade

de conhecer o mundo no qual está inserido e também a si mesmo. Quando se procura

compreender esse conhecimento humano, o principal problema está em determinar como se dá

sua estrutura de funcionamento. O conhecimento não é algo que se dá no mundo como as

demais coisas subsistentes, mas algo que pertence àquele que tem capacidade de conhecer.

                                                            29 Ibidem, p. 78. 30 Ibidem, p. 108.

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Porém, sendo uma propriedade da “coisa pensante” e se referindo às coisas que ela mesma não

é, como é possível que o sujeito faça essa ligação entre a sua esfera “interna” e a esfera das

demais coisas, a “externa”? Não há dúvida que a “coisa pensante” não é tida como sendo um

casulo, algo encapsulado e hermético, contudo, ao se problematizar esse movimento de saída e

de uma possível adequação entre as duas esferas, permanece sem esclarecimento o fenômeno

do conhecimento enquanto um modo de ser do homem enquanto um ser-no-mundo.

O esclarecimento do que é e de como é em si mesmo o conhecimento foi desenvolvida

por Martin Heidegger através de uma analítica existencial do ser-aí-humano, no sentido de uma

interrogação na qual esse ente é questionado em seu ser na tentativa de, a partir dessa

investigação, ser possível conquistar a resposta para a pergunta acerca do “sentido de ser”. O

filósofo utiliza a palavra Dasein (ser-aí) para se referir ao ser humano31, sem que isso signifique

um sinônimo de homem, ou que seja apenas um preciosismo filosófico. Ao interpretar a

atividade cognitiva, Heidegger afirma:

“Ao dirigir-se para... e apreender, o ser-aí não sai de uma esfera interna em que antes estava encapsulado. Em seu modo de ser originário, o ser-aí já está sempre ‘fora’, junto a um ente que lhe vem ao encontro no mundo já descoberto. E o deter-se determinante junto ao ente a ser conhecido não é uma espécie de abando no da esfera interna. De forma nenhuma. Nesse ‘estar fora’, junto ao objeto, o ser-aí está ‘dentro’, num sentido que deve ser entendido corretamente, ou seja, é ele mesmo que, como ser-no-mundo, conhece. E, mais uma vez, a percepção do que é conhecido não é um retorno para o casulo da consciência com uma presa na mão, após se ter saído em busca de apreender alguma coisa. De forma nenhuma. Quando, em sua atividade de conhecer, o ser-aí percebe, conserva e mantém, ele, como ser-aí, permanece fora. Tanto num mero saber acerca do contexto ontológico de um ente, num “mero” representar a sim mesmo, num ‘simples’ ‘pensar’ em alguma coisa, com numa apreensão originária, eu estou fora no mundo, junto ao ente” 32.

Enquanto ignorar esse modo de ser essencial do ser-aí (manter-se fora junto a...) o

entendimento sobre o homem enquanto coisa, substância, objeto, ainda que pensante,

permanecerá aleijado. Pertence ao ser do ser-aí ser-no-mundo, sem que com isso esteja se

referindo a um caráter espacial, no sentido ser simplesmente dado na totalidade de um todo. O

ser-no-mundo deve ser entendido como um ser-junto-ao-ente retirando-o do encobrimento. Na

medida em que existe, o ser-aí já des-cobriu, a todo o momento, as coisas. Nesse ter sido

descoberto, o ente vem ao encontro do ser-aí, o que não significa que ele o apreenda ou que

com ele se ocupe. Ser-no-mundo significa retirar o ente do velamento, manter-se em meio ao

desvelamento, como quer que dele se possa fazer uso33. Ser um “ente descobridor junto ao

                                                            31 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.42. 32 Ibidem, p.109. 33 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 127-128.

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mundo de modo desvelado” é trazer consigo de maneira primordial um círculo de manifestação,

no qual o ente na totalidade pela primeira vez é retirado do velamento. Por promover através

da irrupção de seu ser um campo de manifestação dos entes ao longo de todo tempo que existe,

e não de modo ulterior e ocasional, o ser-aí deve ser visto como um ser desvelado a partir de si

mesmo34.

Anteriormente quando foi empreendida a busca pela essência da ciência, fez-se a

pergunta sobre o lugar da verdade. Nesse questionar encontrou-se um conceito mais originário

de verdade, ἀλήϑεια, verdade como um retirar do velamento. Após essas breves considerações

sobre o ser-aí, se consegue ver que o lugar da essência da verdade é o ser do ser-aí. Com isso,

se quer afirmar que a partir da existência do ser-aí se torna possível o acontecimento da verdade

enquanto desvelamento. Como ente desvelado a partir de si mesmo, o ser-aí torna manifesto o

ente na totalidade por mais estreita que seja a esfera em que isso venha a ocorrer e por mais

manifestamente rudimentar e desarticulado que seja o modo das determinações35.

Sendo o ser-aí essencialmente na verdade e, consistindo a essência da ciência em um

ser em meio ao desvelamento (verdade), faz agora sentido a afirmação que a definição

verdadeira da ciência abriria nossa existência à essência da ciência enquanto algo que nos

concerne. Mas o questionamento central desse trabalho ainda permanece sem resposta: como é

possível que nesse ser em meio ao desvelamento os fundamentos da ciência permaneçam

velados?

A essência da ciência reside em um já estar em meio ao mostrar-se do ente nele mesmo.

Contudo, se já se tem acesso ao ente enquanto o que ele é, parece que deixa de ter sentido

qualquer investigação científica. Para que a ciência possa ser o que é, uma investigação para se

conhecer o ente nele mesmo, é preciso que ainda exista algum tipo de velamento que precisa

ser arrancado pelo ser-no-mundo em seu modo de ser científico. No ser em meio à verdade,

vêm ao encontro do ser-aí, com amplitudes, estágios de clareza e distinção diversos, aqueles

entes que possuem o modo de ser da existência (o ser-aí); os entes que possuem o modo de ser

da vivência (os demais seres vivos); os entes com o modo de ser da subsistência por si (as coisas

materiais); os entes que são à mão (coisas de uso nos sentido mais amplo possível); e os entes

com o modo de ser da consistência (o número e o espaço). Além disso tem-se também aqueles

entes que ainda não foram desvelados, não se possuindo deles nem conhecimento nem

desconhecimento,e os que estão obstruídos: entes que tinham sido descobertos, mas voltaram a

                                                            34Ibidem, p. 145. 35 Ibidem, p. 161-163.

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se encobrir totalmente, ou mostrando-se visíveis só que agora como aparência 36. Sendo-em-

um-mundo, o ser-aí retira o ente do velamento sem que nesse processo exista necessariamente

uma entrega completa daquilo que o ente é nele mesmo. Em meio à diversidade de entes e de

desvelamentos, o ser-aí sempre se relaciona com os entes. Como já dito, para ser possível

qualquer emissão de enunciado ou comportamento com relação a algum ente, é necessário que

anteriormente o ente já esteja desvelado diante de nós. Qual é então o velamento do ente

arrancado pela ciência?

Para que ocorra uma modificação no modo como algo se mostra para nós não pode

apenas ter acontecido uma ampliação da experiência técnico-prática para além dos contextos e

circunstâncias em meio aos quais nos movimentamos cotidianamente. Uma ampliação das

regras cotidianas de lida com as coisas, da experiência técnico-prática para além do campo de

visão mais restrito em nada ajuda para que se dê uma transformação no modo como essas coisas

se entregam nelas mesmas. Assim, não pode apenas ocorrer uma ampliação do âmbito de

aplicação das regras de utilização dos entes, pois o desvelamento científico ocorre justamente

quando se abstrai da ocupação cotidiana com as coisas, e se passa a fixar o olhar no modo como

elas são nelas mesmas, de forma que se consiga apreender que só foram adotadas as referidas

regras de comportamento prático por serem elas exigências das coisas mesmas devido às suas

propriedades37.

O novo modo da coisa se mostrar é uma completa transformação da postura fundamental

do ser-aí em relação ao ente, em que se fixa o olhar nas coisas elas mesmas, sem que tal postura

contemplativa se confunda com um não fazer nada. Ainda que o ser-aí sempre descubra e se

mantenha em meio ao ente retirando-o do velamento, é preciso que ocorra uma mudança em

seu modo de ser no mundo para que uma nova forma de descoberta possa ocorrer e, assim, lhe

seja propiciado a ocasião para o ente mostrar-se em outro âmbito. Quando esse novo âmbito do

ente se mostra, não ocorre uma substituição de entes, e sim uma nova determinação desse ente

em meio ao qual já nos mantínhamos. Heidegger afirma que ao se mostrar sob uma nova luz o

ente deixa de ser visto como, por exemplo, somente um giz, e é então visto como massa, coisa

“simplesmente” material sujeita à ação de forças, corpo sujeito à alteração de lugar no tempo.

Em conjunto com essa determinação de um âmbito fundamental do ente também se dá uma

outra concepção de seu modo de ser, deixando de ser tomado como instrumento, ente que está

à mão para o processamento técnico, e passando a se mostrar, por exemplo, como coisa apenas

                                                            36 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.76. 37 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 195.

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presente, o ente qua natureza. Retendo-se a afirmação de que essa determinação o modo de ser

não é uma troca de uma coisa por outra, mas a configuração de um outro âmbito ontológico do

ente em meio ao qual o ser-ai já se mantinha, se consegue enxergar melhor quais podem ser os

estágios de clareza, amplitude e distinção em que as coisas se mostram e, assim, se torna mais

nítido qual o velamento do ente a ciência tem de retirar.

Desenvolvendo a compreensão da atividade científica, Heidegger afirma que “toda

ciência precisa ter em vista o fato de o ente que ela transforma em objeto já precisar estar, de

antemão, suficientemente definido em sua essência, para que toda questão concreta possa

encontrar um fio condutor para localizar o que é objeto nessa ciência” 38. A ciência autêntica é,

então, aquele conhecimento investigador que se desenvolve em meio à prévia definição

ontológica do que será tomado como objeto (definição do ser do ente), ou seja, é a interrogação

do ente que, antes de qualquer experimentação e investigação dos fatos, já está de posse de uma

compreensão do que é esse ente. Essa determinação da constituição ontológica do ente, do seu

ser, daquilo que ele é e de como ele é, antecede a investigação científica concreta do ente, pois

reconhece que só é possível comparar os entes como, por exemplo, coisas naturais, caso já se

saiba de antemão o que é próprio a uma coisa natural39.

Em Ser e tempo Heidegger afirma:

“Ser é sempre ser de um ente. O todo dos entes pode tornar-se, em seus diversos setores, campo para se liberar e definir determinados âmbitos de objetos. Estas, por sua vez, como por exemplo história, natureza, espaço, vida, existência, linguagem, podem transformar-se em temas e objetos de investigação científica. A pesquisa científica realiza, de maneira ingênua e a grosso modo, um primeiro levantamento e uma primeira fixação dos âmbitos de objetos. A elaboração do âmbito em suas estruturas fundamentais já foi, de certo modo, efetuada pela experiência e interpretação pré-científica do setor de ser que delimita a própria região de objetos. Os ‘conceitos fundamentais’ assim produzidos constituem, de início, o fio condutor da primeira abertura concreta de âmbito. Se o peso de uma pesquisa sempre se coloca nessa positividade, o seu progresso propriamente dito não consiste tanto em acumular resultados e conservá-los em ‘manuais’, mas em questionar a constituição fundamental de cada âmbito que, na maioria das vezes, surge relativamente do conhecimento crescente das coisas” 40

O que caracteriza propriamente a atividade científica é, antes de qualquer realização de

experimentos, ocorrer a delimitação de um setor de entes que resulta na circunscrição de um

âmbito temático de investigação e decide o que pertence a determinado campo, servindo como

guia para toda pesquisa positiva. Essa delimitação de um setor de ser do ente se dá sob a mesma

                                                            38 Ibidem, p. 201. 39 Ibidem, p. 202. 40 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.44.

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forma que todas as representações científicas possuem: a delimitação de conceitos, a

formulação de enunciados sobre algo. A diferença é que essa delimitação é produtora dos

conceitos fundamentais da ciência, o que significa uma interpretação do ente na constituição

fundamental de seu ser41. Porém, as definições dos conceitos fundamentais apenas fornecem as

linhas limítrofes e as regras para a investigação do ente. Os conceitos fundamentais só são

discutidos até o ponto em que, para todo questionamento científico concreto, já esteja

previamente estabelecido em que consiste esse ente. Assim, essência do ente é delimitada de

maneira prévia sem que essa constituição ontológica do ente seja expressamente objeto de

questão. Heidegger sintetiza essa tese com a afirmação de que na ciência se dá um projeto

prévio não-objetivo demarcador de campo da constituição de ser42.

Quando esse trabalho iniciou a busca pela razão do velamento da divergência teórica no

direito, a prática jurídica foi definida como um contexto de mobilização e discussão de

proposições acerca do que própria prática autoriza ou impede em decorrência de outras

proposições que só adquirem sentido através e no âmbito da própria prática. Após serem feitas

algumas considerações sobre a ciência, as proposições científicas e a verdade, pôde se entender

melhor porque um enunciado não pode ser verdadeiro por si mesmo. Toda afirmação que se dá

no interior da prática jurídica só pode ser verdadeira caso seja adequada à outra proposição.

Desse modo, no direito enquanto ciência subsiste um conjunto de proposições aos quais todos

os demais conceitos e enunciados jurídicos remontam por meio da retirada de seu fundamento,

os chamados conceitos fundamentais, os quais, como visto, não são o lugar originário da

verdade. Agora que mais alguns passos foram dados na busca que está sendo desenvolvida, se

consegue enxergar melhor porque somente a partir dos conceitos fundamentais é possível

desenvolver uma atividade científica. É nesse direcionamento, ainda que não-objetivante, para

os conceitos fundamentais que se dá justamente a mudança necessária no modo de ser do ser-

aí de forma que possa ocorrer outro tipo de desvelamento do ente que já se tinha descoberto. É

por meio da definição de ser que o ente, que antes se mostrava como um objeto com o qual

estávamos familiarizados nas nossas atividades cotidianas, pode agora se revelar como, por

exemplo, um corpo dotado de massa, uma coisa material. Com relação à ciência do direito pode-

se dizer, por exemplo, que o que antes era nascimento de um ser humano agora passa a se

mostrar como o acontecimento no qual se adquire personalidade jurídica, ou seja, os eventos

que se dão na cotidianidade deixam de ser enxergados apenas como fatos naturais e passam a

                                                            41 Ibidem, p.46. 42 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 209.

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ser vistos como fatos jurídicos. Desse modo, o projeto não-objetivo da constituição de ser não

altera em nada o ente ou o acontecimento, apenas faz-se com que ele se mostre sob outra luz e

assim seja passível de uma investigação científica.

Os conceitos fundamentais da ciência definem o ente em seu ser ainda que de modo

não-objetivo. Mas o que é o ser? Caso se peça a um jurista que defina o direito em sua essência

e modo de ser, ou seja, em seu ser, é muito provável que ele enfrente dificuldades. Porém, ele

entenderá uma a pergunta do tipo “o que é o direito?” e, ainda que não consiga conceituar

expressamente e com precisão a prática jurídica, é certo que ele carrega consigo uma

compreensão do que ela é, do seu ser. Como já afirmado diversas vezes ao longo desse texto,

só é possível emitir proposições no interior da prática jurídica caso se possua critérios que

permitam verificar a veracidade dessas proposições. Tais critérios são os conceitos

fundamentais, definições do que é o direito, do seu ser. Contudo, não são só os juristas que

entendem a pergunta “o que é o direito?”. Não apenas os profissionais do direito sustentam

posicionamentos divergentes com relação às decisões do Supremo Tribunal Federal: o

julgamento acima exposto foi amplamente debatido em todos os setores da sociedade. Desse

modo, também os que não são juristas compreendem o que é a prática jurídica. Indo para além

do direito é preciso afirmar: toda pessoa enquanto ser-aí carrega consigo uma compreensão

de ser.

Anteriormente foi visto que o ser-aí é o ente que já está sempre “fora” junto a um ente

que lhe vem ao encontro no mundo já descoberto. É preciso agora dizer: à essência do ser-aí

que se mantém em meio ao desvelamento do ente pertence originariamente o fato de

compreender algo assim como o ser. Apenas a compreensão de ser permite que o ente se mostre

nele mesmo e, assim, que sejam colocadas todas as possibilidades de comportamento em

relação ao ente, ou, como afirma Heidegger: “só nos deparamos com o que deixamos vir ao

nosso encontro como ente a partir do ser já compreendido” 43; somente a partir de tal

compreensão é possível que o ente venha ao nosso encontro, se torne manifesto. Detendo-se

nessas considerações, se for observado que todo ser-aí já permanece junto ao ente comportando-

se em relação a ele, mas que tal modo de ser só é possível pela compreensão de ser, se verá que

o ser-aí já sempre realizou uma ultrapassagem ôntica (do ente). O ser do ser-aí ultrapassa de

antemão o ente em direção ao ser desse ente. Nesse movimento, ocorre uma compreensão do

ser do ente, a partir do qual é possível que o ente se manifeste como ente. Estando “fora” junto

                                                            43 Ibidem, p. 221.

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ao ente desvelado, o ser-aí precisa sempre realizar e continuar realizando o ato de ultrapassagem

no fundo de seu ser. Heidegger denomina esse ato prévio de ultrapassagem do ente como

transcendência e, desse modo, a “essência fundamental da constituição ontológica do ente que

nós mesmos somos é a ultrapassagem do ente” 44. O ser-aí é como tal transcendente.

Afirmou-se que o traço distintivo da ciência está no fato de ela realizar um projeto prévio

não-objetivo demarcador de campo da constituição de ser. Contudo, se em seu ser todo ser-aí

já entregou a si mesmo uma compreensão do ser do ente na totalidade, mais uma nova

formulação precisa ser feita: o projeto não ocorre apenas em um modo de ser científico, mas

todo ser-aí é projetante45. Ser projetante é dar a si mesmo o ser, ainda que não ocorra uma

apreensão expressa na qual o ser é tematizado. A diferença entre um projetar não científico e

um científico é que o último realiza uma definição e delimitação de ser para que seja possível

a apreensão do ente nele mesmo. Porém, como ciência é conhecimento do ente e não do ser,

esse não é expressamente concebido, não se tornando objeto de investigação e de apreensão.

Daí reside que a clareza do conhecimento científico do ente permanece envolta a uma certa

obscuridade do ser. O modo de ser na verdade da presença científica é justamente um estar

rodeado pelo velamento, o que leva Heidegger a afirmar que “necessariamente, o desvelamento

sempre segue lado a lado com o velamento” 46.

Do fundamento do encobrimento da divergência teórica

Questionou-se inicialmente o fundamento do encobrimento da divergência teórica no

direito. Para chegar-se à resposta foi percorrido um caminho no qual se desvelou o que nós

mesmos somos e nossos modos de ser, algo que estava tão próximo, mas que permanecia

encoberto. Em meio ao percurso o ser humano deixou de ser algo pensante presente em um

mundo, onde também subsistem outras coisas que podem ser conhecidas, e o direito não é mais

apenas um contexto de fundamentação de proposições jurídicas; eles agora se mostram como

ser-aí e um modo de ser do ser-aí.

O ser-aí é o ente transcendente, que em seu contínuo movimento de transcendência

projeta-se, entrega a si mesmo o ser dos entes que são ultrapassados. Na verdade, não somente

o ser do ente que o ser-aí não é, mas também o seu próprio ser sempre é entregue a si mesmo,

                                                            44 Ibidem, p. 221. 45 Ibidem, p. 220. 46 Ibidem, p. 228.

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e, assim, como momento estrutural constitutivo do ser do ser-aí está sempre o ter de possuir o

próprio ser47. Ser a cada vez um si próprio, ter de ser, não se trata de um ter o conhecimento à

mão, mas colocar diante de si mesmo, por meio da compreensão de ser, ainda que de forma não

expressa para si, possibilidades de ser, e ter de decidir-se com relação a essas possibilidades. O

ser-aí é sempre um sendo, ele a todo o momento “precisa decidir-se quanto ao que pode seu ser

mais próprio em relação às possibilidades de ser que essencialmente lhe pertencem” 48. Em

meio aos possíveis modos de ser, o ser-aí pode decidir ir para as coisas mesmas, mover-se para

onde elas se mostram enquanto o que são. É nessa aproximação do ente em seu desvelamento

que pode acontecer algo como a prática jurídica enquanto atividade científica.

Em sua busca por resultados, pela enunciação de proposições jurídicas verdadeiras, o

direito teve de formular previamente conceitos fundamentais de modo a servirem de critério

para verificação da validade das demais proposições. No entanto, os enunciados fundamentais

não são objeto de estudo da prática jurídica, eles são desenvolvidos somente até o ponto em que

possam guiar as atividades que nela se dão. Deste modo, ainda que o direito só possa existir

devido à formulação de suas proposições fundamentais, essas permanecem, de certo modo,

encobertas para o próprio direito enquanto ciência. Só consegue se entender a possibilidade de

encobrimento da divergência teórica no direito caso esse seja tomado como modo de ser na

verdade de um ente que em sua essência carrega consigo, sempre, uma compreensão de ser do

ente. Por ser projetante o ser-aí já sempre entregou a si mesma o ser do ente na forma de uma

compreensão, o que quer que faça com tal compreensão. A maioria de nós carrega consigo a

compreensão de ser em uma forma pré-ontológica, ou seja, sem nunca ter dirigido sua atenção

para ela; alguns a possuem em uma espécie de grau intermediário, na qual ela foi desenvolvida

apenas para responder a outras perguntas, sem que se tornasse tema de investigação, isto é, os

cientistas; outros se ocupam expressamente dessa compreensão de ser e, ao buscarem entender

o ente na totalidade, transformam-na em concepção de ser. Esses últimos são os filósofos.

Somente na filosofia o ser é objeto de investigação expressa. Por serem, portanto, modos

diferentes de ser no desvelamento, é que se dá a diferença entres as posições do filósofo na

filosofia e do cientista na ciência.

Karl Popper diz em A lógica da pesquisa científica que um cientista pode atacar

diretamente o problema que enfrenta, tendo a possibilidade de penetrar imediatamente no cerne

de uma estrutura organizada, por contar sempre com a existência de uma estrutura de doutrinas

                                                            47 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.48. 48 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 345.

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científicas já existentes e com uma situação-problema que é reconhecida como problema nessa

estrutura49. No caso do direito, só é possível existir uma estrutura organizada, que se mostra

como um edifício consolidado, e que fornece ao jurista uma situação-problema amplamente

aceita, por não ser essa estrutura mesma objeto de investigação em suas atividades normais; por

ser a prática jurídica um determinado modo do ser-aí ser em meio a verdade, um comportamento

em que o ser do ente ainda permanece de certo modo encoberto. Na prática jurídica, não sendo

o ente em seu ser objeto de investigação expressa, não se evidencia que cada um dos envolvidos

na ciência do direito possui uma compreensão própria do que é o direito, do seu ser. Porém,

essa divergência teórica não impede o desenvolvimento da ciência. Como o próprio Popper

afirma, sempre é possível o surgimento de uma discussão crítica e uma comparação dos vários

referenciais, na verdade, nada é mais proveitoso que uma discussão dessa natureza.

REFERÊNCIAS

DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf. ___________. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009. ___________. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2011. HUSSERL, Edmund. Investigaciones lógicas. Madri: Alianza Editorial, 2001. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2008. ___________. A ciência normal e seus perigos. In: LAKATOS I.; MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979, p. 69.

                                                            49 POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2008, p.23.

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KANT E O HISTORICISMO AXIOLÓGICO: UMA ANÁLISE ONTOGNOSIOLÓGICA DA PESSOA

ENQUANTO VALOR-FONTE

Rafael Bezerra de Souza Moreira1

RESUMO: Neste trabalho nos propomos a analisar como se constitui a unidade da teoria kantiana (a unificação das três Críticas) e quais relações aí se estabelecem entre esta unidade (defendida expressamente na Crítica da faculdade do juízo) e o conceito de pessoa, segundo o Historicismo Axiológico. Nosso objetivo é demonstrar que a unidade da teoria kantiana só é possível devido ao conceito de fim terminal, que em Kant, é a própria Humanidade. Neste sentido, nossa hipótese é que Kant lança importantes bases para a formação teórica daquilo que veio a se consolidar por Historicismo Axiológico, cuja característica essencial consiste na consideração da pessoa enquanto valor dos valores, ou valor-fonte. Para tal, na primeira parte deste trabalho, vamos perquirir a teoria kantiana, sobretudo, no que se refere à unidade lançada na Crítica da faculdade do juízo, para em seguida chegarmos às noções de homem e de fim terminal. Na segunda parte, vamos expor os lineamentos gerais desta teoria que se denomina Historicismo Axiológico, concluindo pela identificação da força que Kant irá desempenhar na consolidação do conceito mais caro à Axiologia, o conceito de pessoa, garantidor desta unidade dos mundos dos conceitos da natureza e dos conceitos da liberdade. Utilizamos neste trabalho o método compreensivo através da análise bibliográfica das principais obras selecionadas. Palavras-chave: Kant; Humanidade; Historicismo Axiológico; Pessoa; Valores. ABSTRACT: In this work we’ll analyze how the unity of Kant’s theory is structured (as exposed by Kant in his Critics) and which relations are formed between this unity and the modern concept of person (according to the Historical-Axiological Theory). Our hypothesis consists in demonstrating that this unity of Kant’s theory only is possible because of the concept of final end (Endzweck), which, according to Kant, is the Humanity itself. In this way, Kant lays the foundations of the modern philosophical current known as Axiological Historicism, an important theory which main feature is the elevation of the concept of person in value of the values, or source-value. In the first part of the research, we’ll focus in this unity of Kant’s theory. In the second part, we’ll focus in the main concepts of the Axiological Historicism, i.e., the concept of person, values, culture and temporality. At last, we’ll conclude that the person, in Axiological Historicism, has the same role that Humanity has in the Kantian Theory: both concepts guarantees unity and systematicity, like a bridge uniting the world of nature concepts with the world of freedom concepts. For Axiological Historicism, the person is the synthesis of this complex dialectic relationship: the world of culture encompassing nature and freedom. In this work has been used the qualitative comprehensive method, with the bibliographical analysis of Kant’s and Axiology’s most expressive works in this field. Keywords: Kant; Humanity; Axiological Historicism; Person; Values.                                                             1 Mestrado em Direito e Inovação pela UFJF.

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I- A UNIDADE DA TEORIA KANTIANA E O FIM TERMINAL 1.1- Kant, o filósofo das três Críticas

Nunca é demais começar relembrando a importância do filósofo Immanuel Kant na

tradição filosófica. Pode-se dizer que influenciam a Filosofia até hoje duas das mais

consagradas classificações adotadas por Kant: (i) a divisão dos objetos de estudo da Filosofia e

(ii) a distinção da Filosofia entre teórica e prática (esta distinção herdada de Aristóteles).

Comecemos, pois, pela divisão dos objetos de estudo da filosofia.

Kant, em 1781, publica sua Crítica da razão pura (CRP). Neste tratado é levantada a

questão gnosiológica referente “ao que posso conhecer”, tanto em relação ao sujeito

(cognoscente) quanto ao objeto (cognoscível). A razão humana é o lugar dos a priori, cuja

existência é universal, necessária e transcendental, posto que condição mesma do pensar a

natureza, quer dizer, condição de possibilidade da experiência e da cognoscibilidade das leis

empíricas (KANT, 2001). Assim, Kant, ao fundar seu criticismo, une empirismo e

racionalismo, pendendo mais para este, é verdade.

Em 1788 é lançada a segunda crítica, a Crítica da razão prática (CRPr). Esta obra

versará especialmente sobre a moral, a vontade e a liberdade, ou melhor, sobre as leis que

restringem a vontade em favor da liberdade. A grande questão que se coloca é: que devo fazer?

(KANT, 1997; 1986; ALMEIDA, 2004).

Por fim, em 1790 é escrita a Crítica da faculdade do juízo (CFJ), a qual, como veremos,

é a tentativa de unificação das duas Críticas anteriores, indicando, por sua vez, a abordagem de

questões como a estética, a arte e questões últimas da busca de sentido para a natureza e o

universo – e a própria criação do mundo. Segundo Kant, é com a Crítica da faculdade do juízo

que a Crítica da razão pura se completa (KANT, 1995).

Para o Historicismo Axiológico, tais questões levantadas por Kant nas suas três Críticas

podem ser vinculadas às grandes questões eminentemente filosóficas que se inter-relacionam e

se intercomunicam, quais sejam, a Gnosiologia, a Axiologia (enquanto teoria dos valores), e a

Metafísica, todas imbricadas entre si (REALE, 1998).

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1.2- A filosofia teórica e a filosofia prática

Neste ponto, abordaremos a segunda grande classificação mencionada, a da distinção

entre Filosofia teórica e Filosofia prática, centrada nos conceitos de natureza e liberdade.

A Filosofia teórica está ligada à questão central da CRP, isto é, à faculdade de

conhecimento (de uma forma geral) “a partir de princípios a priori”, em outras palavras, à

“investigação da possibilidade e dos limites gerais da razão pura” (KANT, 1995). Nesta

primeira Crítica, Kant preocupa-se somente com a pura faculdade do conhecimento, excluindo

o sentimento de prazer e desprazer (tratada na CFJ) e a faculdade de apetição (tratada na CRPr),

todas integrantes do gênero faculdades gerais do ânimo.

Aqui, o conceito chave é o entendimento, cujas leis são aplicadas à natureza, originando

o domínio dos conceitos de natureza, através de legislações já dadas. A CRP englobaria a CRPr

e a CFJ, pois aquela prescreve leis a todas as faculdades de conhecimento. Kant (1995) afirma:

“A CRP (...) consiste em três partes: a crítica do entendimento puro, da faculdade de juízo pura

e da razão pura, faculdades que são designadas puras porque legislam a priori”. Neste sentido,

só o entendimento pode fornecer princípios a priori constitutivos (KANT, 1995). Segundo Kant

(1995): “a legislação mediante conceitos de natureza ocorre mediante o entendimento e é

teórica. A legislação mediante o conceito de liberdade acontece pela razão e é simplesmente

prática”.

Assim, a Filosofia prática é aquela expressa na CRPr, cujo conceito chave é a razão,

que fornece, não princípios constitutivos, mas princípios regulativos, à própria razão, aplicados

à liberdade (aqui o objeto não é a natureza e sim a liberdade). Enquanto a CRP trata das

faculdades de conhecimento em geral, a CRPr trata de uma faculdade específica, a faculdade

de apetição (facultas appetitionis), relacionada à vontade (wille), ao arbítrio (willkür) e ao

desejo (wunsch). Como dito, a Filosofia teórica e a Filosofia prática se conectam, posto que “a

vontade, como faculdade de apetição, é uma dentre muitas causas da natureza no mundo”

(KANT, 1995). Há princípios determinantes da vontade vindos da natureza (daí se falar em

regras técnico-práticas) ou vindos da liberdade (regras moral-práticas) (KANT, 1995). Estas

últimas se fundam não no sensível, como categorias da natureza, mas no suprassensível, que é

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a liberdade. Conforme Kant (1995): “As regras moral-práticas que se fundam exclusivamente

no conceito suprassensível de liberdade chamamos também leis, tais como as regras que advêm

exclusivamente do conceito sensível de natureza”.

Portanto, a faculdade de conhecimento está sob dois domínios (de duas legislações), o

dos conceitos de natureza e o do conceito de liberdade (KANT, 1995; 1997; 2001). Ambas as

legislações habitam o mesmo sujeito (KANT, 1995).

Contudo, o conceito de liberdade influi no mundo dos sentidos, numa fundação de uma

“unidade do suprassensível, que esteja na base da natureza com aquilo que o conceito de

liberdade contém de modo prático” (KANT, 1995). É assim que abordaremos, em seguida, a

unificação das duas partes da Filosofia efetuada pela Crítica da faculdade do juízo.

1.3- Da crítica da faculdade do juízo e seu papel unificador

A CFJ se compõe (i) na crítica da faculdade de juízo estética (que por sua vez se

subdivide na analítica da faculdade de juízo estética e na sua dialética), e (ii) na crítica da

faculdade de juízo teleológica (que também se subdivide nas partes analítica e dialética).

Diz Kant (1995) que a faculdade do juízo é o termo médio entre o entendimento e a

razão, e tal como as outras duas faculdades superiores de conhecimento, também possui

princípios a priori, produzindo “uma passagem da faculdade de conhecimento pura, isto é, do

domínio dos conceitos de natureza, para o domínio do conceito de liberdade”.

Kant (1995) define a faculdade de juízo em geral como a faculdade de pensar o

particular como contido no universal. Caso o universal seja dado, fala-se em faculdade do juízo

determinante, que só subsume, mediante leis transcendentais universais dadas pelo

entendimento. Ao revés, se o dado for particular, fala-se em faculdade do juízo reflexiva.

Este a priori da faculdade do juízo determinante é a própria possibilidade de

conhecimento dos objetos que compõem a natureza, a natureza posta como objeto dos sentidos

e do estudo: “encontramos certamente nos princípios da possibilidade de uma experiência, em

primeiro lugar, algo de necessário, i. e., as leis universais, sem as quais a natureza em geral

(como objeto dos sentidos) não pode ser pensada” (KANT, 1995).

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Entretanto, igualmente necessário para a compreensão da natureza é o a priori referente

à faculdade do juízo reflexiva. Mas esta, ao contrário, necessita “de um princípio que ela não

pode retirar da experiência, porque este precisamente deve fundamentar a unidade de todos os

princípios empíricos sob princípios igualmente empíricos, mas superiores, e por isso,

fundamentar a possibilidade de subordinação sistemática dos mesmos entre si” (KANT, 1995).

Isto significa que além do a priori fornecido pela faculdade do juízo determinante, e

pelo a priori fornecido pelas leis universais da natureza pelo entendimento, há também um

outro a priori, este fornecido pela faculdade do juízo reflexiva, não retirado diretamente da

natureza, mas que igualmente é conditio sine qua non de toda experiência possível. A este a

priori, Kant (1995) deu o nome de Conformidade a fins da natureza (Zweckmässigkeit), não no

sentido de submeter a natureza ao conceito (não se trata de Conformidade a fins prática), e sim

de “somente utilizar este conceito, para refletir sobre eles no respeitante à conexão dos

fenômenos na natureza”. Neste sentido, este a priori é essencial, pois garante a unidade da

multiplicidade invocada pela natureza e suas múltiplas leis empíricas, unidade esta que é

condição de possibilidade do pensar a natureza e da experiência.

Isto porque, segundo Kant (1995), “temos que pensar na natureza uma possibilidade de

uma multiplicidade sem fins de leis empíricas (...) [mas] quando as tomamos em representação,

ajuizamos a unidade da natureza segundo leis empíricas e a possibilidade da unidade da

experiência contingente (como de um sistema segundo leis empíricas) (...). Tal unidade tem que

ser necessariamente pressuposta e admitida”.

Este conceito de conformidade a fins da natureza trata-se de um juízo sintético, e,

portanto, acrescenta algo de novo, não ao objeto, mas ao pensar sobre o objeto, representando

a única forma segundo a qual nós temos que proceder na reflexão sobre os objetos, com o

objetivo de uma experiência exaustivamente interconectada. Estamos, pois, diante de uma

tarefa: achar todas as interconexões possíveis diante de infinitas leis empíricas. Kant já adianta:

isso é impossível. Daí porque afirmamos que o conhecimento depende “da suficiência ou

insuficiência das nossas faculdades, no que respeita a esse objetivo” (KANT, 1995). A forma

com que nosso conhecimento vai sendo guiado deriva da lei da especificação da natureza,

fornecida pela faculdade do juízo reflexiva. Quer dizer, a partir dos a priori vamos descobrindo

empiricamente a natureza, a qual nos indicará uma certa ordem, cujas leis vão se

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particularizando, e nós descobrimos outros a priori, no sentido do universal ao particular e vice-

versa, numa pretensão de unidade, ordem e até coerência, só possíveis mediante a faculdade do

juízo (KANT, 1995).

A Conformidade com fins da natureza é intenção, é intencionalidade. Neste ponto, não

se fala mais em faculdade do conhecimento em geral, nem da faculdade de apetição (volitiva),

se fala agora em sentimento de prazer e desprazer, como a terceira faculdade geral do ânimo.

Conforme Kant (1995), “a realização de toda e qualquer intenção está ligada com o sentimento

do prazer”. O conhecimento e a ciência da natureza não seriam possíveis se a união do particular

ao universal e do universal ao particular na natureza não fossem, antes de tudo, uma atividade

vinculada ao prazer (KANT, 1995).

Nesta toada, Kant afirma que todo conhecimento de um objeto sensível é permeado por

duas relações. A primeira é a representação de ordem puramente subjetiva (que o sujeito faz)

do objeto. Esta é a natureza estética da representação. Já quando estão presentes elementos

que permitem o conhecimento do objeto ou sua determinação, então se fala em validade lógica

da representação. Enquanto a sensação exprime precisamente o que seja subjetivo nesta

relação, o material real das coisas, por outro lado, está presente na simples possibilidade a

priori de podermos intuí-las, ainda que só consigamos enxergá-las enquanto fenômenos

(KANT, 1995).

É possível identificar uma ponte que une as duas partes da filosofia, e tal união reside

na Conformidade a fins. Isto significa que a natureza está subordinada à capacidade das

faculdades do entendimento, e é moldada subjetivamente, pela necessidade transcendental de

dotação de uma coerência e unidade, ela mesma não inferida da natureza, mas da faculdade de

conhecimento. Em sua apreensão, coexistem o juízo estético e o juízo teleológico, este,

diferentemente, não calcado no prazer, e sim no entendimento. Kant acentua o caráter estético

dos conceitos de natureza, e a interferência do conceito de liberdade no mundo.

É assim que, com a introdução do conceito de fim terminal (Endzweck), para o qual

todas as coisas tendem, a unidade da teoria kantiana desdobrada nas três Críticas é garantida.

E este fim terminal, em Kant, é o próprio Homem, que é o senhor titulado da natureza (HÖFFE,

2009).

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II- O HISTORICISMO AXIOLÓGICO E A PESSOA ENQUANTO VALOR-FONTE

2.1 - Introdução

O Historicismo Axiológico, teoria apresentada por Miguel Reale, se insere naquilo que

o autor denomina problemas máximos da Filosofia. Pode-se dizer que Reale prossegue na

tradição herdeira do idealismo alemão kantiano e pós-kantiano, em cotejo com a tradição

fenomenológica e seus sucessores. Assim, estão fortemente presentes na teoria realiana as ideias

de Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Husserl, Lavelle e Spranger. Mas quais seriam os problemas

máximos da Filosofia?

Segundo Miguel Reale (1977; 1998), os problemas máximos da filosofia, embora

presentes desde a tradição filosófica da Antiguidade, ganham ênfase e contornos de

sistematicidade somente a partir das formulações kantianas, esposadas justamente nas três

Críticas. Neste sentido, Reale compartilha da rejeição da pretensão positivista de reduzir a

Filosofia a mero apêndice das Ciências ditas “empíricas”, alegando que as questões filosóficas

representam questões inabordáveis exclusivamente pelos métodos típicos das ciências físico-

naturais, posto que as questões filosóficas estão irremediavelmente vinculadas à metafísica,

possuindo, assim, objeto e método próprios à sua investigação.

Três, portanto, são as questões eminentemente filosóficas, as quais, segundo Reale

(1998), podem ser remetidas às ideias de Kant, tratadas sucessivamente nas três Críticas. O

Historicismo Axiológico, inspirado em Kant, estabelece as três questões: (i) a Teoria do

Conhecimento2 (desdobrada em Lógica e Ontognosiologia3 – esta a fusão da Ontologia stricto

sensu com a Gnosiologia), (ii) a Axiologia (e a Ética, enquanto valor da conduta humana) e (iii)

                                                            2 O que Kant faz é um raciocínio logicamente válido que leva a necessidade do universal, tratando-se de juízos analíticos (que não acrescentam), o universal é uma necessidade lógica.

3 Deve-se observar que Kant não faz Ontologia. Para Kant, não podemos conhecer “as coisas em si”. Reale então pega a Gnosiologia herdada de Kant e a une à Ontologia em sentido estrito (Teoria dos Objetos, sobretudo a perspectiva ôntica da Fenomenologia), que para Reale (1977; 1998) possui uma íntima vinculação com a Cultura. Kant contribuiu bastante para uma Gnosiologia e uma Antropologia Filosófica.

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a Metafísica propriamente dita (a busca do sentido integrador e de unidade de todas as coisas)4.

Reale (1998) adverte que todas estas questões estão intimamente imbricadas, pois embora sejam

distinguíveis, não são dissociáveis, e ao fim, todas se resolvem na questão última do ser

enquanto ser, ou Ontologia lato sensu.

A Teoria do Conhecimento é expressa, como dito, na Lógica e na Ontognosiologia. Esta

última trata das questões referentes ao sujeito cognoscente e aos objetos cognoscíveis, ou

melhor, às complexas relações que se estabelecem entre ambos, na fusão da Ontologia em

sentido estrito (Teoria dos Objetos) com a Gnosiologia.

Pode-se dizer que Kant opera aquilo que se intitulou por “revolução copernicana” ou

“revolução antropocêntrica”, que influencia, sobretudo, a Gnosiologia e a Antropologia

filosófica. Isto significa dizer que, tal como Copérnico superou o sistema ptolomaico, ao afirmar

que não é o Sol que gira em torno da Terra mas o contrário, Kant afirmou que não são os sujeitos

que circundam os objetos, são os objetos que circundam os sujeitos.

Para o Historicismo Axiológico, a Ontologia se aproxima da Gnosiologia e deixa de ser

uma Ontologia puramente metafísica (ontológica lato sensu) tal como encontrada na tradição

platônico-aristotélica, para se tornar uma Ontologia voltada aos objetos (ôntica, ou ontológica

stricto sensu).

Desta forma, as questões ontognosiológicas estão vinculadas a problemas básicos como

a origem do conhecimento (Empirismo, Racionalismo e Criticismo), a essência do

conhecimento (Realismo e Idealismo), as formas de conhecimento (Lógica e Metodologia) e

da própria possibilidade de conhecimento (Dogmatismo, ceticismo e relativismo) (REALE,

1998).

2.2 – Ontologia e Axiologia: os valores como objeto e a pessoa como valor dos valores

Um dos fenômenos recentes apontados por Miguel Reale (1977; 1998) é o resgate da

Ontologia pela filosofia contemporânea, obviamente, já com as ponderações gnosiológicas

elaboradas por Kant e as ponderações da Hermenêutica moderna e da Fenomenologia do início

do século XX. Obras como “Ser e Tempo”, de Martin Heidegger, e “O Ser e o Nada”, de Jean-

                                                            4 Segundo classificação conhecida, a Metafísica seria integrada pela Ontologia (em sentido lato, do “ser enquanto ser”), pela Gnosiologia e pela Teologia.

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Paul Sartre, bem indicam quais rumos a Filosofia adotaria a partir de então. A parte objecti,

que é a Ontologia, encontra-se imbricada com a parte subjecti, que é a Gnosiologia. Neste

plano, como veremos adiante, tais ponderações abrem lugar ao sujeito (que dará passagem ao

conceito de pessoa) e consequentemente ao elemento histórico-axiológico viabilizado pela

introdução da temporalidade e dos valores, que juntos, integram o cerne do Historicismo

Axiológico. Neste sentido, a afirmação da Historicidade, sem prejuízo de cairmos em um

relativismo, é garantida justamente pelo conceito de pessoa, como valor-fonte dos valores, que

expressa aí sim uma capacidade universal objetivada (a universalidade do espírito objetivante)

na História e nas obras humanas, como um espelho refletindo o espírito em si mesmo. Mas não

adiantemos.

A Ontologia, como brevemente aludido, pode ser compreendida em seu sentido lato ou

em seu sentido estrito. A Ontologia em sentido lato é aquela próxima da metafísica, que

especula sobre a essência mesma do ser. Neste passo, fala-se rigorosamente em questões

ontológicas. Já a Ontologia em sentido estrito é aquela mais próxima da Ontognosiologia, onde

se fala em Teoria dos Objetos, segundo a divisão entre objetos naturais (físicos e psíquicos) e

objetos ideais. Na Ontologia em sentido estrito estamos tratando de questões propriamente

ônticas, isto é, referentes aos objetos, já satisfazendo uma abordagem destes ainda que em sua

fenomenalidade.

Para o Historicismo Axiológico é por esta perspectiva ôntica que adentramos a

perspectiva ontológica (eminentemente metafísica)5. Segundo Reale (1963; 1977; 1998),

bastante influenciado pela fenomenologia, penetramos no ser através da análise do ente (do ser-

no-mundo [sein-in-der-welt], do ser-sendo), daí porque descobrimos o que é a pessoa

observando onde a Humanidade se reflete, quer dizer, no mundo das coisas valiosas (ciência,

ética, religião, artes etc.).

Dentro da Teoria dos Objetos, o Historicismo Axiológico adota a classificação que

divide os objetos em objetos naturais (que por sua vez se subdividem em objetos físicos e

                                                            5 Repetimos que, ao contrário da Fenomenologia, para Kant isso não seria possível, dada a inacessibilidade da “coisa em si”.

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objetos psíquicos) e objetos ideais. Segundo esta classificação6, objetos físicos são aqueles

dotados de espacialidade e temporalidade: uma pedra, uma cadeira, um corpo humano. Já os

objetos psíquicos são aqueles dotados apenas de temporalidade, sem espacialidade, como as

sensações e as emoções (alegria, tristeza, raiva, prazeres, desprazeres), as quais embora

dependam de um elemento físico para se manifestar, com estes não se confundem, posto que

são apenas enquanto duram. Os objetos ideais, por outro lado, são aqueles objetos a-espaciais

e atemporais, que só existem enquanto pensados, muito embora possam se realizar no mundo

fenomênico de forma espaço-temporal, por exemplo, em categorias lógicas como os números,

as figuras geométricas, as normas jurídicas. Tradicionalmente, os valores também eram

inclusos na categoria dos objetos ideais. Reale (1998), entretanto, opera uma importantíssima

ruptura, ao estabelecer os valores enquanto categorias autônomas.

Deste modo, se delineará com clareza a divisão dos objetos em duas grandes ordens: a

dos objetos segundo o prisma do Ser (os objetos físicos, psíquicos e ideais) e a dos objetos

segundo o prisma do Dever-ser (os valores).

A grande marca do Historicismo Axiológico é compreender todos os objetos como

pertencentes a um gênero maior, ao dos objetos culturais. Todos os objetos, sejam naturais

(físicos ou psíquicos) ou ideais, assim como os valores enquanto categoria autônoma, são

objetos culturais. Assim, toda a Ontologia é Cultura, entendendo-se por Cultura o “cabedal de

bens objetivados pelo espírito humano, na realização de seus fins específicos; ou com palavras

de Simmel: - ‘provisão de espiritualidade objetivada pela espécie humana no decurso da

História’” (REALE, 1998).

A Cultura, neste sentido, representa a unidade da objetivação do espírito universal na

História segundo valores (valor do verdadeiro, do bom, do belo, do útil, do sagrado etc.), em

uma objetivação guiada, não caótica: guiada pela objetivação do espírito segundo o valor

fundamental da pessoa, que por sua vez instaura e garante a unidade da Cultura e de todos os

                                                            6 É preciso dizer que esta classificação é inspirada em Edmund Husserl. Mas para o mestre fenomenólogo, são os atos de consciência que se dividem em corpóreos, psíquicos e espirituais, que intencionam os objetos reais, ideais e formais.

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demais objetos e bens existentes. A pessoa é, portanto, tal como em Kant, uma categoria

integradora de sentido e unidade de todas as demais coisas.

O valor da pessoa atua como móvel da Cultura, não em uma evolução fundamentada na

“empiria”, mas em um desenvolvimento axiológico, a partir da constante comunicação entre as

diversas civilizações no tempo histórico e no consequente intercâmbio transcultural milenar de

valores, no sentido da maximização e do acúmulo de posições que enalteçam o valor da pessoa

(e não nos referindo à Teoria da História de Hegel ou a um empirismo sociológico). Neste

sentido, estamos nos referindo ao plano do dever-ser, ao plano da Axiologia e dos valores, que

funcionam como molas propulsoras no plano do ser. Por outro lado, isto não implica, como

aponta Reale (1977; 1998), uma cisão radical entre ambos os planos, mas sim uma distinção

segundo uma complementaridade, pois ser e dever-ser são “como que olho esquerdo e olho

direito”, que se retroalimentam, numa coordenação para melhor compreender, descrever,

narrar, prescrever e integrar a realidade.

A Axiologia e os valores representam o plano do dever-ser na História, inseridos

juntamente com os outros objetos da Cultura, que é a soma dos bens da Humanidade. E a

Cultura, como conjunto de todos os bens e objetos existentes, é guiada por um valor

fundamental, que é o valor da pessoa (o valor-fonte). A condição transcendental de ser pessoa

é, pois, tal como em Kant, condição de possibilidade mesma de se pensar o mundo.

Realmente, do ser não se passa ao dever-ser. Em outras palavras: porque uma coisa é,

não significa que ela deva ser. Mas o contrário é verdadeiro: se do dever-ser não se passasse ao

ser, os valores nada significariam para os seres humanos (é característica dos valores a

realizabilidade, ainda que os valores sejam inexauríveis). Sob este prisma, a Ética representa

justamente a superação de instintos puramente biológicos ou de estados deletérios do espírito

(que podem ser), para formas de conduta consideradas melhores, mais consentâneas com certos

valores, e, principalmente, com o valor da pessoa (que devem ser), uma vez que o homem é o

único ente cujo ser é o dever ser. Quando não nos deixamos levar pelos impulsos e refletimos

o certo, estamos escolhendo eticamente, num processo em muito distinto aos dos demais seres,

embora, claro, compartilhemos certos elementos, enquanto animais pertencentes a

determinadas categorias biológicas. De qualquer forma, é importante fixar que “o mundo do

valioso é do superamento ético” (REALE, 1998).

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Os valores se constituem por certas características. Ao contrário do que possa indicar

uma perspectiva simplista do plano exclusivamente empírico, os valores não perdem sua força

por sua inobservância, pelo contrário, a cada violação, sua força surge como uma “estrela

brilhante e radiante”, a indicar o caminho a se seguir, posto que estamos tateando uma área

pautada na prescrição e na normatividade. Como diz Reale (1977; 1998), um psicólogo, um

sociólogo, ou um biólogo podem até me explicar como um valor surge, mas sua metodologia,

por si só, não me fala sobre a compreensão dos valores (sua inserção e relação com os outros

domínios da vida e sua integração no plano mais geral das visões de mundo, ou por que os

valores motivam, ou de onde vem sua força vinculante).

São características dos valores a polaridade e a implicação, numa relação dialética. Ou

seja, um valor depende de seu antagonista – o desvalor – como condição de sua manifestação

e existência, assim como o dia só faz sentido em referência à noite, a vida em relação à morte,

o quente em referência ao frio, e assim por diante. Valores negativos e positivos existem

segundo um ideal nunca realizável (e por isso mesmo propulsor de inovação segundo a

característica da inexauribilidade), sabendo que a realização de um implica na realização ou

não realização de outro.

Outra característica dos valores é a referibilidade, isto é, todo valor vale para algo (em

sentido de algo) e para alguém, como entidades vetoriais das condutas. Há também a

preferibilidade (ou possibilidade de ordenação hierárquica), a incomensurabilidade (indicada

naquelas situações em que dizemos que algo “não tem preço”), a objetividade, a realizabilidade

e a historicidade. A pessoa, como projeção histórica dos valores, instaura o mundo cultural, de

todos os bens culturais. E todo bem cultural possui um viés axiológico em sua estrutura.

A estrutura de todos os bens culturais é dividida em suporte e significado, cuidando-se

de se acentuar a ligação íntima entre ambos. O suporte pode ser natural (físico ou psíquico), ou

ideal. Já o significado é a expressão particular de um ou mais valores. Refutando tanto o

subjetivismo, que prega serem os valores meras entidades psicológicas de desejo e preferência,

quanto o objetivismo exacerbado, que afirma a existência per si dos valores (habitando um

“mundo das ideias”), Miguel Reale diz que o Historicismo Axiológico entende os valores a

partir de uma objetividade relativa, quer dizer, os valores vão sendo revelados a partir das

experiências históricas, assumindo diversas expressões, e se manifestando nas coisas valiosas,

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sem perder, contudo, sua imperatividade moral e vinculação ética. Quais seriam, então, os

valores basilares?

Primeiramente, é preciso compreender os valores como inseridos nos ciclos históricos

de cultura, cada qual representando uma constelação axiológica. Ou seja, não se podem

conceber os valores fora da história. Cada período histórico nos mostra uma tábua de valores

próprios, sendo de fundamental importância compreender a ordenação hierárquica dos valores

de cada época.

Entretanto, alguns valores possuem uma proeminência na história das ideias, por serem

referidos pelos mais diversos filósofos nas mais variadas épocas. Neste sentido, os principais

valores, para o Historicismo Axiológico são o valor do Verdadeiro, representado pela Lógica e

pela Ciência; o valor do Belo, expresso na Arte e na Estética; o valor do Útil, segundo a

Economia; o valor do Sagrado, representado pela Filosofia da Religião; e pelo valor do Bem,

expresso na Ética (e dentro desta o valor do Justo, objeto do Direito). É desta forma que se diz,

por exemplo, que em determinada época ou em determinada ideologia sobressai um valor, como

no Medievo, onde se evidenciou o valor do sagrado; ou no Iluminismo, onde sobressaiu o valor

do verdadeiro (e a expansão científica); e hoje, onde diz-se que vivemos na era econômica do

valor do útil.

Uma das grandes perguntas, portanto, resta respondida: a de se podemos dizer que um

valor se sobressai a outro. Isto depende, como visto, do momento histórico. Mas, segundo

Reale, independente das contingências históricas, um valor é sobressalente: o valor da pessoa,

posto que fonte dos demais valores, sendo, portanto, o valor-fonte dos valores.

A pessoa compõe o cerne do Historicismo Axiológico. O ser humano se singulariza por

ser o único ser dotado da capacidade de inovação e de valoração. E só podemos, efetivamente,

falar de liberdade em referência ao Homem. A natureza se repete, segundo a famosa fórmula

de Antoine Lavoisier. Mas o homem, sobre um mundo de coisas já dadas, constrói um segundo

mundo, o mundo da Cultura, sendo um agente inovador e modificador da natureza. Conforme

Reale (1998): “Há possibilidade de valores porque quem diz homem diz liberdade espiritual,

possibilidade de escolha constitutiva de bens, poder nomotético de síntese com liberdade e

autoconsciência”. O que caracteriza a pessoa é o fato de que seu ser é o seu dever-ser (REALE,

1963; 1977; 1990; 1998).

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Neste sentido, a pessoa representa um acréscimo à natureza através de sua capacidade

de síntese, instaurando novos objetos e novas formas de se viver, modificando a própria

natureza. Este poder nomotético da pessoa é esta capacidade simbolizante de outorgar sentido

às coisas e à natureza, inovando-a e inovando-se:

“O homem, como ser natural biopsíquico, é apenas um indivíduo entre outros indivíduos, um ente animal entre os demais da mesma espécie. O homem, considerado na sua objetividade espiritual, enquanto ser que só se realiza no sentido de seu dever ser, é o que chamamos de pessoa. Só o homem possui a dignidade originária de ser enquanto deve ser, pondo-se essencialmente como razão determinante do processo histórico” (REALE, 1998, p. 220).

Segundo Reale, quando o homem estuda a Cultura, no fundo, ele estuda a si mesmo, o

espírito se reencontrando e se reconhecendo na História, constituindo-se em uma invariante

axiológica no processus histórico. O mundo da Cultura englobando o mundo da natureza.

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CONCLUSÃO

Tanto Kant quanto o Historicismo Axiológico estão cientes do poder de síntese que o

homem opera na natureza. Kant apresenta dois mundos interconectados, o da natureza e o da

liberdade, e garantindo a unidade destes mundos está o homem. Heiner Klemme (2009) chama

a atenção para o fato de que, em Kant, “o dever moral torna-se claro, por existirmos

simultaneamente como seres racionais e dos sentidos. (...) Kant esclarece a existência do dever

moral pela qualidade própria de nossa razão prática”. A razão exprime, assim, uma necessidade,

não através de um ser, mas de um dever-ser.

O Historicismo Axiológico, seguindo tais passos, assevera que embora existam tais

mundos, no fundo, o mundo natural pertence ao mundo cultural. E nisso Kant põe-se em certo

acordo, uma vez que a busca por integração de sentido e unidade na própria natureza só é

possível mediante um ajustamento desta à razão, que é o princípio da Conformidade a fins, este

mesmo não retirado da natureza, posto que condição mesma de se pensar a natureza. É

interessante observar que ambos os autores, numa aproximação, colocam a pessoa no centro de

todo conhecimento. Miguel Reale afirma que “o ato de valorar é componente intrínseco do ato

de conhecer”, e a própria instauração radical da linguagem indica esta indissociabilidade.

Por outro lado, Kant possui uma visão claramente naturalista e jusnaturalista que o

Historicismo Axiológico não assume com tanta veemência. Embora Kant distinga fatos e

valores, no fundo, sobressai um quadro naturalista, a própria natureza contendo significados

práticos perceptíveis em nós mesmos (KLEMME, 2009). Segundo Otfried Höffe (2009), Kant

acena para a provocativa tese de que o homem é o senhor titulado da natureza, e mais, o homem

é o fim terminal absoluto de toda a natureza. Tal ideia não é nova em Kant, estando presente

desde a primeira crítica, mas se antes este antropocentrismo restringia-se à moral, agora se

vincula à natureza, ou melhor, à unidade sistemática da natureza, tratada na terceira Crítica. Isto

só confirma a força do conceito kantiano de pessoa, garantidor da unidade e sistematicidade de

sua teoria.

O Historicismo Axiológico, por sua vez, está consciente que, ao fim e ao cabo, toda a

Axiologia se resolve em metafísica, onde a distinção ontognosiológica entre ser e dever-ser fica

suspensa, por se colocar com toda intensidade o problema do ser enquanto ser, subsumindo

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todas as questões do ser enquanto bem, do ser enquanto belo, do ser enquanto verdade, do ser

enquanto sagrado, etc. E o próprio conceito de pessoa encobre-se nesta perspectiva última da

metafísica.

Pode-se dizer, em tom de conclusão, que a aproximação de ambos os autores reside na

busca e encontro da unidade sistemática da civilização no conceito de pessoa. Neste sentido,

Miguel Reale (1998) arremata: “Quando Kant dizia – ‘Sê pessoa e respeita os demais como

pessoas’ –, dando ao mandamento a força de um imperativo categórico, máxima fundamental

de sua Ética, estava reconhecendo na pessoa o valor por excelência”.

BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Guido Antônio de. Kant e as “fórmulas” do imperativo categórico. In: Lógica e ontologia: ensaios em homenagem a Balthazar Barbosa Filho. São Paulo: Discurso Editorial, 2004.

FRONDIZI, Risieri. ¿Qué son los valores?: Introducción a la axiología. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 1972.

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DIREITO À SAÚDE E PATENTE DE MEDICAMENTOS DA FUNCIONALIZAÇÃO DAS PATENTES À

SUPERAÇÃO DE UM DILEMA

Thaís Fernanda Tenório Sêco1

Fellipe Guerra David Reis2

RESUMO: Frente ao problema dos mandados de segurança que visam o fornecimento de

medicamentos não ofertados pelo Sistema Único de Saúde, trata o presente estudo da

aplicabilidade do licenciamento compulsório – presente na lei nacional que regulamenta a

propriedade industrial e corroborado internacionalmente pela Declaração de Doha – intentando

solucionar, ou mesmo amenizar, o referido problema do acesso da população a bens essenciais.

A partir do marco teórico proposto por Pietro Perlingieri, no que toca a subsunção dos valores

infraconstitucionais à sistematicidade conferida pela Carta Magna, e a funcionalização dos

institutos, elucidada por Norberto Bobbio, analisa-se a hipótese da licença compulsória por

abuso de poder econômico, especificamente, pela prática de preços abusivos por parte do

detentor da patente. Por fim, enuncia-se qual deve ser a postura do Estado Social frente à

preservação tanto das garantias presentes no direito à patente quanto, e notadamente, aos

valores fundamentais do ordenamento traduzidos no princípio da dignidade da pessoa.

Palavras-chave: acesso à tecnologia, direito à saúde, patente, licenciamento compulsório,

abuso de direito, funcionalização, dignidade humana.

ABSTRACT: Face the issue of injunctions aimed at the provision of medication not offered

by the Sistema Único de Saúde, this study addresses the applicability of compulsory licensing

presented in the law that regulates national industrial property and supported internationally by

the Doha Declaration attempting to solve or even alleviate this problem of access to essential

goods for the population. From the theoretical framework proposed by Pietro Perlingieri

regarding the subsumption of the infra constitutional values towards the systematicity given by

the Constitution and the functionalization of the institutes elucidated by Norberto Bobbio, is

examined the hypothesis of a compulsory license for abuse of economic power, specifically the

practice of overpricing by the patent holder and, further, that possibility against the emergency

and relevance of public interest. Finally, sets out what should be the attitude of the Welfare

State against the preservation of the safeguards present in both patent law and, notedly, in the

fundamental values of the legal system reflected in principle of human dignity.

Keywords: technology access, right to health, patent, compulsory licensing, abuse of rights,

functionality, human dignity.

1 Mestre em Direito Civil pela UERJ. 2 Mestrando em Direito e Inovação na UFJF.

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Introdução

A doutrina jurídica brasileira tem se mostrado cada vez mais preocupada com o

conhecido problema dos mandados de segurança que visam o fornecimento de medicamentos,

muitas vezes extremamente caros, necessários à manutenção da vida e da saúde de indivíduos.

Os juízes que decidem tais casos e os juristas que buscam fornecer substratos argumentativos

para resolvê-los se veem entre interesses relevantes nos quais direitos fundamentais e valores

da República estão em pauta.

Tal como na abordagem proposta por Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo (2011), pesa,

de um lado, o argumento da reserva do possível e, de outro, o mínimo existencial. Luís Roberto

Barroso (2011) chama a atenção para o fato de que por trás da reserva do possível estão também

direitos fundamentais de outros indivíduos que não os impetrantes de mandados de segurança,

ou seja, os demais membros da comunidade. Ainda ressalva que, em contexto de recursos

escassos, é preciso respeitar as escolhas políticas de alocação dos recursos existentes vez que

estas são feitas pelos órgãos constitucionalmente competentes e democraticamente legitimados

e não pelo poder Judiciário.

Diante de tais circunstâncias, este trabalho visa a proposição de uma solução jurídico-

política alternativa voltando os olhos para o agente que, até agora, esteve fora do discurso,

quando o problema toca especificamente o fornecimento de medicamentos pelo poder público:

a farmacêutica. Subjacente aos altíssimos custos de aquisição de um medicamento está o

altíssimo preço cobrado pela indústria que o produz em posição dominante no mercado, por

deter a propriedade do conhecimento necessário à sua produção.

Contudo, cumpre alertar que não se intentará uma subversão ou desconsideração do

diploma normativo que regula o instituto da proteção patentária. Seguindo a imagem do

romance em cadeia ilustrado por Ronald Dworkin (2007), parte-se de um capítulo já escrito na

história jurídico-dogmática e que diz respeito à proteção do conhecimento via possibilidade de

apropriação, para, interpretando-o construtivamente, propor a forma como deve ser escrito o

capítulo seguinte, ou seja, será proposta uma leitura evolutiva do instituto da propriedade

industrial de patentes de modo coerente com o sistema normativo proporcionado pela Carta

Constitucional. Buscar-se-á demonstrar, assim, que o Estado Social não precisa se ver dividido

entre o dever legal de respeito à propriedade privada e os direitos sociais promocionais como

são a vida e a saúde. Em outras palavras, as funções protetiva e promocional do Estado não

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precisam ser vistas como contrapostas, mas como complementares à partir do reconhecimento

de que a primeira não pode se realizar plenamente sem a segunda.

No contexto jurídico do ordenamento brasileiro, vida, saúde e dignidade são valores

morais e positivados, colocados em alta posição na hierarquia de valores. Não bastasse isso, e

face à reconhecida relevância do valor segurança jurídica, a lei que trata do regime jurídico da

propriedade industrial e prevê expressamente o licenciamento compulsório para hipóteses de

abuso de direito e abuso de poder econômico. Trata-se, assim, de analisar a aplicabilidade dessa

solução dita alternativa à questão brasileira do acesso a medicamentos, notadamente no que

toca a configuração de preço abusivo e, contribuir com a formação de uma estratégia política

de controle de preços de produtos patenteados e de acesso à tecnologia. Muito embora, não

raras vezes, tal solução seja objetada como inviabilizadora da política de patentes como um

estímulo à Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).

Para tanto, será realizada uma leitura funcionalista do direito de patentes como

proposto por Norberto Bobbio (2007) com base no método do Direito Civil-Constitucional, que

tem em Pietro Perlingeri (2008) seu precursor e principal representante.

Esses serão os paradigmas teóricos a embasarem uma compreensão desmistiticada do

mercado que possibilite uma leitura funcionalizada do instituto das patentes. Proceder-se-á,

após, com considerações interpretativas acerca da adequada aplicação do licenciamento

compulsório no que diz respeito à prática de preços abusivos. Por fim, se demonstrará que, não

obstante a plausibilidade do argumento da reserva do possível no que toca recursos financeiros,

cujo mérito não é objeto de análise, há ainda pelo menos um recurso jurídico que se

adequadamente explorado pode gerar um avanço no sentido de uma solução para a questão do

acesso a medicamentos, qual seja, o licenciamento compulsório de medicamentos patenteados

com sugestões acerca da forma mais apropriada de utilização desse recurso.

1. Estado promocional, função dos institutos e valores constitucionais

A análise a que se presta este trabalho parte da ideia de que, para além do estudo da

estrutura de um direito (ou do Direito como um todo) é preciso também indagar-se acerca de

sua função. Como explica Norberto Bobbio, a tradição jurídica pós-kelseniana ocupa-se

primordialmente da questão de “como é feito o direito” tratando com menor importância a

questão de “para que o direito serve” (BOBBIO, 2007).

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Uma abordagem funcionalista do direito – contraposta àquela estruturalista – se faz

pertinente tendo em vista, principalmente, o contexto histórico-político ora vivido pela

sociedade, qual seja, a superação do Estado protetivo e a busca do Estado promocional

(BOBBIO, 2007) e justificando-se, além, pela normatividade dos direitos sociais enquanto

direitos fundamentais constitucionalmente protegidos.

Para o jurista italiano, Pietro Perlingieri, a compreensão de um ordenamento jurídico

formado por fontes plúrimas e unificado pelos valores constitucionais encadeia um processo

construtivo de interpretação da norma que implica uma leitura funcionalizada dos institutos

jurídicos como um todo. Isto porque, face à complexidade e às rápidas modificações da

sociedade, fez-se necessário conceber uma abertura cognitiva do sistema normativo que passou

a receber como fontes de Direito, além da lei, outros dados da realidade que vão até o

entendimento da relação que existe acerca do Direito que forma a sociedade ao mesmo tempo

em que é formado por ela (PERLINGIERI, 2008).

Neste sentido, não há identidade entre norma e texto da lei. Este é um importante dado

para se chegar à norma propriamente, mas não é o único. O ordenamento se abre para fontes

diversas, verdadeiros vetores que influenciam diretamente na construção do conteúdo das

normas jurídicas. Entre tais vetores, o principal é, certamente, a Constituição, cujos valores

clareiam a leitura do texto legal. A compreensão da lógica social é , por sua vez, outro vetor

necessário para que sejam compreendidos os verdadeiros obstáculos à realização daqueles

valores e para que, assim, seja deduzida a norma, fruto do equilíbrio de tantas forças

(PERLINGIERI, 2008).

Não obstante o reconhecimento da necessidade de aceitação da abertura do Direito à

sociedade, o que não deixa de associá-lo a imagem de líquida fluidez típica da pós-

modernidade3, Perlingeri defende a manutenção do seu caráter sistemático com base na unidade

que os valores constitucionais lhe proporcionam4.

3 Cf.: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plinio Dentzien. Zahar: Rio de Janeiro, 2001. 4 Embora as considerações do jurista se voltem especificamente para o ordenamento italiano e face ao contexto

histórico vivido pelo autor, tais considerações se mostraram mais do que adequadas à realidade jurídica brasileira

pós 88 que, tal como a italiana, via a necessidade de compatibilização dos valores e princípios eleitos por uma

Constituição democrática, fruto da superação de um momento histórico opressor, com o ordenamento jurídico

vigente legado por este momento histórico superado. Some-se a isso o próprio conteúdo desses valores e princípios

constitucionais que remetem à realização da pessoa, e à necessidade de aplicação substancial de princípios como

a liberdade, a igualdade e a solidariedade, desde já definindo como direitos fundamentais aqueles ditos sociais

como a saúde, a educação e a moradia.

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Em posição de destaque dentre os valores constitucionais encontra-se o a dignidade da

pessoa, que prega pela necessidade de consideração concreta dos indivíduos, de conhecimento

e entendimento de suas bases empíricas para que a dignidade possa ser efetivamente realizada5.

O conteúdo da dignidade da pessoa, por sua vez, abrange diversas construções e

articulações que, ao mesmo tempo se diferenciam e se complementam, dado que tal valor em

si tem, de fato, irradiações diversas. Maria Celina Bodin de Moraes (2007), a partir do

imperativo categórico de Kant, identifica como irradiações do princípio da dignidade aqueles

referentes à liberdade, igualdade, solidariedade e integridade psicofísica, todos eles de alguma

forma ligados ao dever do Estado de proteger a saúde dos indivíduos. Vale ainda mencionar a

definição de Ingo Sarlet transcrita por Fachin e Pianovsky segundo a qual a dignidade da pessoa

é:

qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo

respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste

sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa

tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a

lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de

propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria

existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (FACHIN e

PIANOVSKI, 2008).

No conceito de dignidade da pessoa, a missão do Estado Social se mostra mais

explícita no que toca a garantia das “condições existenciais mínimas para uma vida saudável”,

sem prejuízo dos demais aspectos inerentes à dignidade. Entretanto, não se restringe a esta. Ao

revés, também jaz em assegurar o valor da autonomia pessoal, intimamente ligado ao valor da

dignidade na medida em que determina que aos indivíduos deve ser reconhecida sua capacidade

de fazer escolhas – eleger fins – cabendo ao Estado a função de propiciar meios de persecução

dos fins eleitos por tais indivíduos.

Deste modo, os valores fundamentais previstos constitucionalmente não se

contradizem entre si, mas se complementam e, quando investigados a fundo em seus

fundamentos, remetem a um mesmo valor geral e irradiante que é a dignidade da pessoa.

5 Cf.: Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovsky (2008). Segundo os autores, parte da tradição neokantiana,

atribuindo uma leitura específica à ideia de transcendência do sujeito racional, acabou por desconsiderar a ligação

deste mesmo sujeito às suas bases empíricas. Note-se, por exemplo, o próprio conceito de pessoa para o Direito

que é reduzido à ideia de centro de imputação de direitos e deveres. Essas leituras e reduções da ideia de pessoa

explicam em parte o distanciamento entre norma e realidade. Sua superação está ligada à abertura cognitiva do

Direito e à necessidade de superação da redução da norma ao texto da lei.

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Portanto, retomando-se a visão de Perlingieri, a interpretação das leis e a

funcionalização dos institutos jurídicos à promoção dos valores constitucionais tomam papel

de grande relevância. Tendo em vista que os valores constitucionalmente eleitos dizem respeito

à dignidade da pessoa e à construção de sua identidade, defende que os valores ditos existenciais

são fins em si mesmos enquanto aqueles ditos patrimoniais são funcionalizados à promoção

dos primeiros. Portanto, em sede de direitos patrimoniais, principalmente, faz-se necessário

compreender o por que de sua proteção e também a forma como eles são úteis à realização da

pessoa, base fundamental da construção de todo o Direito, em verdadeira superação da mera

análise estrutural, como tradicionalmente feita pela Ciência Jurídica.

Tomando-se, assim, o direito à saúde – essencial para a realização das pessoas não só

como fim em si mesmo, uma vez que saúde é também bem-estar, mas também como condição

necessária para que a pessoa possa fazer suas escolhas e persegui-las, e, em última instância,

como tradução da dignidade – analisar-se-á o direito de patente dentro da sistemática do

ordenamento brasileiro funcionalizado tendo em vista não só uma pluralidade das fontes que

interferem na sua interpretação como também, e principalmente, a unidade do sistema calcada

na Constituição.

2. A patente e seu valor instrumental

2.1. Patente e contexto: o mercado desmistificado

Diante dos pressupostos teóricos construídos é preciso antes de tudo superar a visão

da patente como fim em si mesma. A patente consiste em um direito subjetivo de propriedade

sobre um certo conhecimento. Como o conhecimento é um bem público, no sentido empregado

pela teoria econômica, eis que não-exclusivo (MANKIN, 1999), a lei o torna apropriável

atribuindo-lhe exclusividade por meio de abstração jurídica. Dessa forma, tornando-o

propriedade privada, garante-se o monopólio da exploração econômica deste6.

Não é, contudo, qualquer conhecimento que pode ser alvo de patente. Na sistemática

brasileira, este regime jurídico se destina exclusivamente aos conhecimentos que apresentem

inovação, atividade inventiva e aplicação industrial. Segundo define a lei brasileira, novo é

6 Cf.: BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução a Propriedade Intelectual. Disponível em <

http://denisbarbosa.addr.com/umaintro2.pdf>. Acesso em 20 de fev. de 2010.

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aquele conhecimento que não é abrangido pelo estado da técnica. Por sua vez, se o

conhecimento decorre de forma óbvia deste estado da técnica, ele se encontra carente de

atividade inventiva, não podendo, também ser patenteado. A aplicação industrial é o requisito

que torna a patente um direito de índole claramente econômica, eis que o conhecimento que

não pode ser utilizado e produzindo em qualquer tipo de indústria não é patenteável.

Não se desconhece que além de ser um direito patrimonial, a patente desempenha

também um papel existencial para o inventor na medida em que liga a pessoa à sua invenção e

também na media em que pode significar, por meio da compensação econômica, um

reconhecimento social atribuído àquele no contexto da sociedade Capitalista. Neste aspecto, a

patente poderia ser tida como fim em si. Por outro lado, é fato que existem institutos jurídicos

mais adequados a este tipo de proteção, principalmente no âmbito das demais propriedades

intelectuais e do direito autoral, de forma que o tratamento jurídico dado a patente enquanto

política pública de pesquisa e desenvolvimento (P&D) deve focar predominantemente o

aspecto econômico nos termos da função social da propriedade e do controle jurisdicional de

tutela.

Os requisitos para a concessão de patente dizem muito sobre a função deste direito.

Em primeiro lugar, os requisitos de inovação e atividade inventiva apontam para o tipo de

atividade que se visa estimular: a pesquisa e o desenvolvimento. De fato, este é um conhecido

significado da patente que visa, inclusive, o desenvolvimento de um parque industrial

tecnológico no país que o torne mais competitivo no mercado internacional. Mas essa razão

ainda é intermediária e não abrange o fim último da política de patentes, qual seja, o acesso à

tecnologia. De fato, toda a interferência do poder público no mercado deve ter em vista

necessariamente o acesso a bens úteis à satisfação das necessidades humanas.

Não se ignora aqui os problemas que existem no seio do mercado, muitas vezes o

grande culpado pelas contradições sociais regionais e globais. O mercado, contudo,

desmistificado, é apenas mais um microssistema social que, como tal, opera com sua lógica

própria. Cabe ao Direito interferir nessa lógica, no que for necessário, tendo em vista a

realização da pessoa humana, fim essencial a ser perseguido também pela Política e pelo

Estado.

Neste sentido, afirma Pietro Perlingeri:

A lei, enquanto escolha política, pode e deve aspirar a uma maior moralidade em

relação ao mercado e ao lucro, contribuindo para realizar uma economia social de

mercado, ciente de que ‘não há antinomia alguma entre as razões da economia e

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aquelas da equidade e da justiça’ e que a harmonização entre umas e outras dependerá,

sim, das intervenções legislativas, mas sobretudo, da produtividade das

administrações públicas, da sua eficácia em permitir a utilização dos recursos públicos

e privados, da qualidade dos serviços de utilidade social, do funcionamento das

instituições (PERLINGIERI, 2008, p. 533).

Toma-se, portanto, o mercado como um dado, um fato social que não pode ser

eliminado e com o qual é preciso lidar. É sabido que há no ordenamento jurídico uma série de

normas que dizem respeito à manutenção do funcionamento das práticas mercadológicas,

normas sem as quais a lógica do mercado seria inviável. A questão que se põe é: tendo em vista

a unidade do ordenamento centrado no valor da pessoa, o que visa o Direito quando propicia e

interfere nessa lógica?

A virtude do mercado, segundo a teoria econômica, é que dentro de sua lógica de

organização, não só a produção como também a distribuição de bens é a melhor que se pode ter

(MANKIN, 1999). Essa função maior do mercado é muitas vezes esquecida ou ignorada, talvez

por aquilo que Karl Marx tratou como sendo uma transfiguração dos bens materiais úteis às

pessoas em mercadorias em relação às quais o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso. Marx

chama a atenção para essa transformação que, segundo ele mesmo afirma, é fundamental para

a compreensão do significado que o mercado representa na estrutura social. O curioso dessa

transfiguração dos bens é que, à rigor, é o valor de troca que só existe quando há valor de uso,

e não o contrário (MARX, 2008). O que disso se conclui é que, se o mercado gira em torno da

produção e distribuição de mercadorias que são, na verdade, bens úteis à realização da pessoa,

é na garantia da maior produção e melhor distribuição de bens possível que está o fundamento

do interesse do Direito, do Estado e da Política na garantia de funcionamento adequado do

mercado e correção de suas falhas.

Ainda, tendo em vista o valor de uso das mercadorias ou, melhor dizendo, o valor de

troca dos bens da vida, o que se encontra na base do requisito de aplicação industrial da patente

é a exigência de invenção de uma utilidade para o ser humano. O valor da patente está em que

ela é uma política que visa o acesso à tecnologia sem perder de vista que a forma como ela visa

gerar este acesso é a compensação eminentemente econômica do inventor7, o que por sua vez

estimula a P&D e, consequentemente, o acesso à tecnologia.

7 A patente assim, ao mesmo tempo em que representa uma compensação econômica ao agente inventor por sua

invenção, compensação essa que não deixa de ser uma forma de reconhecimento social, é mais do que tudo um

estímulo à pesquisa e desenvolvimento tendo vista a potencialização do acesso à tecnologia na forma de artefatos

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O acesso à tecnologia promovido pela política de patentes, contudo, diz respeito

principalmente ao acesso a bens ainda não existentes, que dependem de investimentos e

pesquisa para serem desenvolvidos. O propósito da política de patentes é estimular, por

exemplo, – não só a nível nacional, como também global – o desenvolvimento de curas, vacinas,

tratamentos e terapias para doenças cuja cura não se conhece. Mas, uma vez desenvolvida essa

tecnologia, uma vez criado o produto da política e da pesquisa, o mesmo instrumento se

transforma em uma barreira ao acesso ao garantir o monopólio de exploração do detentor. É

por isso que Denis Borges Barbosa (2010) afirma que a correção da primeira falha de mercado

se dá pela criação de uma segunda. Mas, uma postura interpretativa construtiva da norma não

admite que um direito ou um instituto jurídico seja um instrumento usado contra seu próprio

fundamento. É, portanto, necessário persistir na interpretação do instituto até que se

compreenda e defina a estrutura que visa, de fato, o cumprimento da função.

É por isso que o licenciamento compulsório, também previsto na lei de propriedade

intelectual não deve ser entendido como sanção ou mesmo como meio de correção de uma

segunda falha de mercado, mas como parte integrante e essencial do direito de patente ao

correto desempenho de sua função.

3.2. Preço abusivo, funcionalização da patente e licenciamento compulsório

São quatro as hipóteses legais de licenciamento compulsório, conforme os art. 68 e

seguintes da lei 9279/96: 1) abuso de direito ou de poder econômico; 2) insuficiência de

comercialização; 3) hipótese de patente dependente na qual não foi viável ou razoável a

negociação de licenciamento voluntário e 4) emergência nacional e interesse público.

Exceto na hipótese de abuso, nas demais, a questão do acesso à tecnologia é manifesto.

Curiosamente, a preocupação com o acesso é menos visível nas hipóteses de abuso justamente

porque a compreensão do que seja abuso precisa passar pela compreensão da função do

instituto, ou seja, por todas as considerações até aqui feitas.

À hipótese ‘1’ será dispensada atenção especial adiante.

tecnológicos cuja entrada no mercado se estimula. Isso é particularmente verdadeiro em relação aos medicamentos,

tidos como bens essenciais.

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Na hipótese ‘2’ a relação com a necessidade de entrada do produto no mercado é

evidente. Ela se aplica quando a comercialização do bem se dá em termos insuficientes para as

demandas sociais. Nesses casos, é lítico o licenciamento que garanta o atendimento à demanda.

Por sua vez, em ‘3’ trata-se de situação na qual um processo patenteado mais simples

é parte integrante de um outro processo mais complexo desenvolvido posteriormente. Nesses

casos, para que a detentora produza o artefato fruto do processo mais complexo, ela precisa da

autorização da outra detentora via licenciamento voluntário. Havendo frustração injustificada

das tentativas de negociação, é possível o licenciamento do processo mais simples tendo em

vista, mais uma vez, que se o produto da patente não entra no mercado, ela não está cumprindo

sua função.

Na última hipótese (4), é completamente suprimida a etapa do mercado na distribuição

de bens. Nesta, face a extrema relevância do bem em questão para realização de direitos

fundamentais e da dignidade da pessoa, e cumpridos certos pressupostos procedimentais, o

Estado declara o interesse público para produzir ou autorizar que algum particular produza o

artefato que só pelo detentor da patente poderia ser produzido. Foi o que ocorreu no Brasil em

relação ao medicamento Efavirenz, importante componente do coquetel de tratamendo da

AIDS8.

Faz-se pertinente ressaltar neste ponto que todo licenciamento compulsório se dá

mediante procedimento específico e com garantia do contraditório ao fim do qual, se se decidir

pelo licenciamento, o detentor terá direito a indenização no montante do valor de mercado da

patente licenciada, o que lhe confere a contrapartida financeira pela P&D realizada. Assim, não

se trata de uma supressão irresponsável de um direito subjetivo, e sim de um processo que visa,

ao fim e ao cabo, a garantia do cumprimento da função social de um direito patrimonial, nos

termos em que prevê o texto constitucional, ligado, pode-se dizer, ao chamado controle de

merecimento de tutela.

Todas essas considerações são relevantes para se adentrar a análise da hipótese ‘1’ de

licenciamento, que diz respeito mais diretamente ao objeto de investigação do presente estudo

e que trata das hipóteses de abuso de direito e abuso de poder econômico da patente.

Ante as considerações tecidas acerca da função social do mercado, pode-se afirmar

que o poder econômico, mais do que mero fato, é também um direito. Não se pode negar que o

poder econômico só pode se fazer exercer diante de uma série de garantias e prerrogativas

8 Conforme exposto pelos Profs. Marcos Vinício Chein Feres e Denis Franco Silva (2009)

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garantidas pelo Estado, em verdadeira infraestrutura indispensável ao seu exercício. Exemplo

irrefutável dessa infraestrutura jurídica indispensável às práticas econômicas é o próprio direito

dos contratos também submetido a uma ideia de função social e controle de merecimento de

tutela. O poder econômico, portanto, não é sequer exercitável na falta de uma base jurídica que

o permita e assegure. Se o ordenamento tolera o poder econômico, mesmo quando o agente se

encontra em posição dominante, ou seja, quando invulnerável aos mecanismos de autocontrole

do mercado, essa tolerância também possui seu fundamentos. E, se o ordenamento se propõe a

limitar o poder econômico sempre que o considera abusivo, é preciso ter em conta o uso do

poder que o direito visa tutelar para que esse se distinga do abuso. A ideia de um abuso de poder

econômico a ser combatido pelo ordenamento traz consigo a ideia de um controle de

merecimento da proteção da conquista de certa posição no mercado. Enfim, a posse de poder

econômico é um direito protegido pelo ordenamento e, como tal, funcionalizado à realização

de valores outros, extrínsecos a ele. O abuso de poder econômico é, portanto, espécie do gênero

abuso de direito9.

O abuso de direito se configura, como se sabe, sempre que um direito é exercido de

forma destoante da razão pela qual é protegido ou de forma contrária (ou apenas não

coincidente) com o seu fundamento. O abuso de poder econômico, enquanto espécie do abuso

de direito, ocorrerá, assim, sempre que um sujeito econômico agir de forma efetivamente capaz

de prejudicar a eficiência do mercado. Isso só é possível quando tal sujeito se encontra em

posição dominante, ou seja, quando invulnerável aos mecanismos de autorregulação econômica

(FORGIONI, 1998).

O desafio que se põe ao discernimento dos limites que configuram o abuso de preços

nos casos de bens frutos de processos patenteados está em que, de fato, o direito de patente visa

propiciar lucro para o detentor como forma de incentivo à P&D, notadamente. Assim, a

obtenção de lucro em si não significa um exercício destoante dos propósitos e fundamentos do

direito. Ameaçar a lucratividade da patente, aliás, é inviabilizar a política de incentivo. Na

verdade, como foi dito, a aptidão do conhecimento para gerar lucro é até condição para a

concessão de patente. Sendo assim, não haveria de ser nesse ponto que se encontraria uma

configuração do abuso de direito e do poder econômico.

Por outro lado, tendo em vista que a patente representa a aquisição de uma posição

dominante no mercado – em conformidade com a qual há somente um fornecedor de

9 Posição contrária não acatada no presente trabalho é defendida por Paula Forgioni (1998).

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determinado bem que, não poucas vezes, é de vital importância para seus consumidores em

potencial, em especial no caso de medicamentos – é inadmissível que as práticas de fixação de

preços fiquem imunes a qualquer limite. Por isso, para se investigar em que medida um preço

abusivo representa uma ameaça à funcionalidade do direito, é preciso investigar mais a fundo

a forma como ele pretende, em coerência com a totalidade do ordenamento, realizar a pessoa

humana, chegando-se, desta forma, à questão do acesso a tecnologia10.

Não obstante o valor que o acesso aos bens toma para as digressões aqui construídas,

a inadmissão de uma privação aceitável, significa uma completa subversão do contexto social.

Isso quer dizer que o preço fixado pelo produto deve obedecer os limites de privação aceitável

conforme a lógica própria do sistema de mercado que se sintetiza no seguinte gráfico:

A curva de oferta é, em regra, crescente porque quanto maior o preço que as pessoas

estiverem dispostas a pagar por um produto, maior quantidade do produto o mercado estará

disposto a produzir. A curva de demanda é, por sua vez, decrescente, porque quanto maior for

o preço, menor a quantidade de pessoas dispostas a consumi-lo. O valor da concorrência é fazer

com que preço e quantidade tendam para o ponto em que as curvas se encontram, o que

representa a situação ótima para os padrões da lógica econômica (MANKIN, 1999). A receita

10 Tal posição é, inclusive coerente com o tratamento dispensado pelo ordenamento às questões de regulação da

concorrência conforme se pode verificar na lei 8884/94. O entendimento legal é de que a constatação da posição

dominante não configura por si abuso ou ilícito econômico. Se, todavia, a posição dominante é exercida de forma

a causar prejuízos para os consumidores no que toca o acesso a bens da vida, fica configurado o ilícito e autorizada

a aplicação das correspondentes medidas e sanções. Ressalte-se ainda, que a mesma lei em seu art. 20, inc. II prevê

como ilícito econômico o “aumento arbitrário de preços”. O texto da lei neste ponto não é o mais apropriado, uma

vez que as decisões estratégicas no âmbito do mercado são, por natureza, unilaterais, embora influenciadas por

fatores diversos, de forma que, provavelmente, todo aumento de preço é arbitrário. Uma interpretação sistemática,

contudo, indica que o que se visa combater é, justamente, que agentes econômicos em posição dominante se

valham disso de forma prejudicial para os consumidores.

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total auferida pela venda de certo produto em um mercado é dada pela área do retângulo

formado e consiste na multiplicação destes dois elementos.

Assim, de acordo com a teoria econômica, o equilíbrio autorregulado do mercado se

dá na situação ‘2’ representada no gráfico acima. Entretanto, no caso de produtos patenteados,

a concorrência reguladora do mercado não existe ou é demasiado precária, o que confere ao

detentor da exclusividade a possibilidade de agir em pontos acima da linha de oferta. E, sendo

o agente econômico maximizador de lucro, tenderá à situação ‘1’. Isto se dá, notadamente, no

caso de produtos essenciais, como medicamentos, devido à inelasticidade da curva de demanda,

proporcionando um significativo aumento de preço sem que se prejudique – ou que se

prejudique muito – a quantidade do produto demandado11.

A patente – a abstração jurídica que confere a exclusividade ao conhecimento – coloca

o agente econômico em posição dominante no mercado, o que significa a necessidade de

controle jurídico de suas ações econômicas estratégicas, especialmente visando garantir o

próprio fundamento do direito a sua titularidade, qual seja, o acesso à tecnologia pelo maior

número de sujeitos.

Poder-se-ia argumentar que, sendo justamente neste monopólio que se encontra a

viabilidade do lucro para o investidor, seria errado estabelecer a regulação jurídica de mercado

sobre ele. Mas isso é falacioso. O monopólio de exploração concedido visa garantir a

lucratividade da atividade dentro do eixo da quantidade e não no eixo no preço, vez que o

retângulo que representa a receita diz respeito ao valor total que o comércio de certo bem gerou

em certo mercado e este valor é fruto da soma das receitas auferidas por cada um dos agentes

econômicos que atuaram como fornecedores. Havendo somente um agente vendedor, a área do

retângulo inteiro representará a sua receita.

Isto posto, tendo em vista a promessa do Capitalismo de proporcionar um melhor

acesso a bens produzindo-os mais e distribuindo-os melhor, pode-se entender que, no contexto

do mercado, o critério que permite discernir o uso do abuso deve ser consciente das relações

que se estabelecem entre oferta e demanda. Considera-se abusivo o preço fixado ao longo da

curva de demanda em ponto muito superior à linha de oferta à exemplo do ponto ‘P1’

representado no gráfico.

11 Cf.: ÁVILA, Jorge de Paula Costa. Patentes e o acesso a medicamentos. Disponível em: <

http://inovacao.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-23942005000300013&lng=es&nrm=iso>

Acesso em 5 de maio de 2011.

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3. O dilema entre patentes e acesso a medicamentos

O dilema com cuja resolução visa-se contribuir no presente trabalho diz respeito à

manutenção da política de patentes versus o acesso a medicamentos de alto custo e, como

consequência deste, o fornecimento de medicamentos caros pelo Estado às pessoas que não têm

condições de adquiri-los versus a reserva do possível.

Os dados são preocupantes. Exemplo eloquente e útil para a compreensão da dimensão

do problema pode ser fornecido com o caso das chamadas doenças negligenciadas, aquelas que

se mostram economicamente desinteressantes para a iniciativa privada e não são pesquisadas.

A doença do sono, por exemplo, que atinge 36 países da África possui o mesmo tratamento

desde 1949. Ele é altamente tóxico, se mostra inefetivo em 30% dos casos, e leva a óbito em

5% deles (FIGUEIREDO, 2010). A leishmaniose, por sua vez, é quase sempre tratada com o

mesmo medicamento desenvolvido há mais de 70 anos. Este, além de em alguns casos levar ao

óbito e de em muitos casos ser ineficaz, demanda um tratamento longo que gera efeitos

colaterais dolorosos e diversos. Outro medicamento mais eficaz existe para o tratamento desta

doença, a anfotericina B, que além de não causar efeitos colaterais tão severos como o primeiro,

é bem mais eficiente e pode significar a cura do paciente em até 10 dias. Trata-se, porém de um

tratamento extremamente caro que pode chegar a custar U$2.400,00, preço inviável para muitos

dos que sofrem com a doença (FIGUEIREDO, 2010).

Não é só no caso das doenças negligenciadas, contudo, que os dados preocupam. No

caso da diabetes tipo 1, uma das doenças mais pesquisadas no mundo, existem várias insulinas

diferentes e de tipos diversos, cada qual com maiores vantagens ou desvantagens e cada qual

mais ou menos apropriada para o estilo de vida ou para as especiais condições de saúde do

paciente. O Sistema Único de Saúde fornece gratuitamente a insulina regular que, contudo, é

uma das insulinas mais antigas e não é tida, em muitos casos, como apropriada. As pesquisas

sobre desenvolvimento de novas insulinas já evoluíram significativamente, mas estas

permanecem inacessíveis aos mais pobres, pois os preços cobrados por muitas delas são altos,

e por algumas delas, exorbitantes.

Constata-se, pois, que o problema dos preços abusivos é particularmente grave

justamente em relação a bens da vida essenciais à existência das pessoas. Uma notícia do INPI12

explica que no caso dos medicamentos mais importantes existe uma situação de extrema

12 ÁVILA, Jorge de Paula Costa. op. cit.

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necessidade dos consumidores o que faz com que, ainda que sejam poucos, sempre existam

pessoas dispostas a pagar preços exorbitantes pelo bem. Isso pode ser explicado no gráfico que

ilustra as relações entre oferta e demanda pelo que a teoria econômica denomina inelasticidade

da curva de demanda. O grau de inclinação da curva de demanda varia conforme o produto e

conforme o mercado. Quando ele é próximo da paralela do eixo dos preços é possível levar a

efeito grandes aumentos de preço com pequenas reduções de quantidade correspondente. Ou

seja, o agente monopolista pode atuar ao longo de toda a curva de demanda e escolher a fixação

do preço no local no qual o retângulo tiver a maior área possível. Ocorre que, conforme noticiou

o INPI, face a dimensão da relevância que o medicamento possui para a vida do consumidor, e

diante das profundas desigualdades globais, maior será a inelasticidade da curva de demanda

por medicamentos quanto mais importantes e raros forem eles. Se somado ainda o dever de

fornecimento estatal, a curva poderá se tornar ainda mais inelástica, permitindo a fixação de

preços cada vez maiores.

Sendo a patente um direito que só faz sentido quando inserido no sistema de mercado,

a lógica própria desse sistema deve ser levada em conta para compreensão de sua estrutura e

função. Assim, dentro do sistema de mercado, não há objeções à privação aos bens, desde que

o acesso seja o maior que se possa ter. Dentro do paradigma do Estado Social, contudo, isso

não significa nem pode significar a instrumentalização de um indivíduo de menos recursos em

benefício do todo, pois quando o indivíduo não tem acesso aos bens que integram seu mínimo

existencial, seu fornecimento é dever do Estado, fazendo-se desnecessária e até perversa a

intervenção do mercado nesses casos. Esse é, justamente, o caso dos medicamentos essenciais.

Não há, quanto a muitos deles, níveis aceitáveis de privação, até porque eles dizem respeito a

direitos profundamente existenciais como vida, saúde, bem-estar e, principalmente, a

integridade psicofísica, inerente à dignidade da pessoa (MORAES, 2007). O princípio da

solidariedade, neste caso, impõe, nos moldes do que ocorre no Código de Defesa do

Consumidor que o custo para o tratamento das pessoas nessas situações seja rateado pela

sociedade (MORAES, 2010), ou seja, o fornecimento deve ser por parte do Estado.

Consciente dessa relevância, é comum a defesa de licenciamento e até da quebra de

patentes13 de medicamentos vitais. De fato, o licenciamento pode ser uma solução facilmente

13 Há quem defenda a aplicabilidade da quebra de patentes – hipótese não prevista expressamente pela legislação

pátria. Contudo, acredita-se que esta quebra, que ocorre sem a contrapartida econômica ao inventor comprometa

a eficácia do instituto especialmente no que toca o incentivo à pesquisa e desenvolvimento e, como consequência

o acesso à tecnologia. Desta forma, não será tratada como hipótese válida ao que se propõe aqui.

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justificada face o peso dos argumentos que dizem respeito à tutela da pessoa no ordenamento

jurídico contra um direito patrimonial. Tal entendimento, porém, poderia causar – e, em alguma

medida já causa – uma inversão nos propósitos da política que visa principalmente o acesso a

tecnologia ainda não desenvolvida. O temor de licenciamento e quebra de patentes de produtos

essenciais por parte das indústrias farmacêuticas tem feito com que elas prefiram a pesquisa de

fármacos de relevância bem menos direta para a promoção da pessoa como cosméticos e as

chamadas follow on drugs que visam tratar doenças com pequenos saltos de inovação em

relação ao que já existe no mercado (como as insulinas). O desafio está na busca da

compatibilização dessa política de patentes com o acesso às tecnologias que já foram

desenvolvidas e que dependem de processos patenteados para serem produzidas, sem deixar de

levar em conta que a patente é um direito subjetivo do inventor, embora funcionalizado.

Tudo isso significa que o nível de relevância do produto para a tutela existencial dos

indivíduos não é argumento suficiente para justificar o licenciamento ao mesmo tempo em que

é inadmissível que uma pessoa acometida por uma enfermidade seja privada do tratamento em

função de um interesse patrimonial. Afinal, se é em benefício dessa sociedade ou dessa

coletividade que a política deve ser mantida, é também essa sociedade que deve arcar com os

custos de manutenção dessa política. O fornecimento estatal será, portanto, necessário sempre

que em questão estiver situação abaixo da linha de demanda, justamente por se tratar do mínimo

existencial. Essa solução ampara o primeiro dilema que contrapõe ao mínimo existencial a

reserva do possível e, é neste ponto que uma política de controle de preços de produtos

patenteados se mostra especialmente útil à solução do segundo.

Nos moldes do que foi proposto no item acima, sempre que o preço cobrado por um

produto patenteado for muito superior ao preço economicamente ótimo das relações entre oferta

e demanda, é lícito o licenciamento compulsório com base no argumento do abuso de poder

econômico. Sua aplicabilidade é questão política e não simplesmente uma questão jurídica, isto

é, como norma já posta, deve o poder público valer-se de tal prerrogativa sempre que a

utilização do direito à patente estiver em dissonância com a sua função dentro do ordenamento

jurídico sistemático. Ao ser licenciado, amplia-se a oferta do bem no mercado fazendo com que

o preço por ele cobrado se aproxime da situação ótima descrita graficamente acima, garantido

reflexamente um maior acesso a tal bem. Essa solução é, na verdade, um recurso

insuficientemente explorado para a questão do fornecimento gratuito de medicamentos,

notadamente aqueles mais caros que são alvo de pleitos judiciais via mandado de segurança.

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Embora, a sociedade seja solidária e tenha o dever de fornecer o medicamento, não é justo que

o preço cobrado seja exorbitante.

Quanto à possibilidade de licenciamento compulsório não há que se objetar em relação

a viabilidade da política. Em primeiro lugar, porque o controle de agentes em posição

dominante no mercado é, necessariamente, dever do Estado14. Em segundo lugar, porque, como

dito, o licenciamento compulsório deve ser entendido como parte integrante da política de

patentes, essencial para a efetiva correção da falha de mercado. Por fim, o licenciamento

compulsório além de previsto em lei e além de estar de acordo com as disposições do TRIPS,

tem sua idoneidade internacionalmente reconhecida no âmbito da Organização Mundial de

Comércio desde a declaração de Doha.

Uma propensão maior ao licenciamento de fármacos essenciais pode agravar, como já

se afirmou, a situação das chamadas doenças negligenciadas, fazendo parecer economicamente

mais viável a pesquisa de outros tipos de químicos menos essenciais como os cosméticos que,

podem, perfeitamente, alocar o capital que se destina à investimento em P&D. Ou seja, convém

dispensar a todos os produtos fruto de patentes em uma política estatal clara que mostre aos

agentes econômicos que preços abusivos não serão tolerados. Um tipo de atuação estatal como

este proposto pode representar uma relevante variável nos cálculos econômicos desenvolvidos

pelas empresas de forma que, espera-se, os preços tendam a se manter no ponto em que oferta

e demanda se encontram. Controlados os preços de medicamentos, não só será economicamente

mais viável o fornecimento de medicamentos por parte do Estado, como também será menor o

número de pessoas a necessitarem do fornecimento estatal uma vez que poderão, elas mesmas,

adquirir os medicamentos com recursos próprios.

Claro que não basta isso para que se considere este tipo de atuação estatal efetiva. É

preciso também uma parceria com setores públicos e privados nacionais ou internacionais que

garantam, após o licenciamento, a produção dos produtos para entrada no mercado nacional e

acesso das pessoas a eles, que é a preocupação inicial até aqui expressada. Acredita-se que isso

não seja obstáculo ao funcionamento da política nos moldes aqui propostos a exemplo do que

está sendo feito em relação ao medicamento tenofovir que faz parte do tratamento para AIDS e

14 Vide lei 8884/94 que dispõe sobre o controle das práticas de mercado.

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hepatite e cuja versão genérica começará a ser produzida pela Fundação Ezequiel Dias (Funed)

que pertence ao governo do estado de Minas Gerais15.

Além disso, a participação estatal não deve se limitar ao momento depois de

determinado bem ser patenteado, ao contrário, ela se mostra ainda mais relevante no momento

da P&D. Nos Estados Unidos, a análise da importância da participação pública indica que sem

ela, 60% dos medicamentos existentes não teriam sido descobertos ou teriam demorado mais

tempo para chegar ao mercado (TARGA, DEITOS e SOUZA, 2008). É, portanto, também

função do Estado Social cujo fim jaz na dignidade da pessoa, corrigir a falha de mercado

geradora do desinteresse por parte das instituições privadas nas chamadas doenças

negligenciadas, se a proteção à propriedade industrial através da patente não se mostrar

suficiente, investindo ativamente na busca de novos tratamentos.

Importa, porém, deve-se repetir, que a prática de controle de preços não se restrinja

aos produtos essenciais. Não só porque segundo a lei de concorrência o controle de preços diz

respeito a qualquer produto, mas também porque um controle exercido somente sobre bens

essenciais pode gerar efeito inverso na política.

4. Conclusão

Ante ao exposto, conclui-se que a política de proteção à propriedade industrial deve

ser entendida com base na leitura funcionalizada do ordenamento jurídico calcado nos valores

constitucionais, isto é, tal política deve atender a função a que se propõe dentro do sistema, qual

seja, o incentivo à pesquisa e desenvolvimento (P&D) e, reflexamente, a garantia do acesso à

tecnologia aos indivíduos, fim último do ordenamento.

Se assim não se der, a própria lei garantidora de tal direito, prevê hipóteses em que

este poderá ser afastado mediante o contraditório e a indenização ao inventor, preservando-se,

em certa medida, o estímulo à P&D.

A cobrança de preço abusivo por parte da detentora da patente é, per si, uma forma de

abuso de direito e abuso de poder econômico – dado que este é espécie daquele – e, portanto,

hipótese ensejadora de licenciamento compulsório do produto patenteado vez que é contrária

ao próprio fundamento da proteção: o acesso à tecnologia.

15Brasil produzirá versão genérica de medicamentos para AIDS e hepatite. Disponível em

<http://www.fenafar.org.br/portal/genericos/63-genericos/747-brasil-produzira-versao-generica-de-

medicamento-para-aids-e-hepatites.html>. Acesso em 20 de abril de 2011.

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Para a caracterização do preço abusivo, contudo, há que determinar se a detentora da

proteção patentária cobra preço muito acima da linha da demanda, ou seja, se por conta da

inelasticidade desta se está auferindo lucro demasiado às custas de restrições inaceitáveis ao

acesso a tal bem no mercado, e não que o mero custo do produto seja elevado.

Cabe ressaltar ainda que a aplicação do licenciamento compulsório por hipótese de

cobrança de preço abusivo não deve estar adstrita a medicamentos ou mesmo bens essenciais,

mas ao contrário, deve se dar como todo e qualquer produto que se constatar o abuso de direito.

Se assim não se der, pode ocorrer um estigma na pesquisa e desenvolvimento de novos bens

essenciais pela possibilidade do licenciamento.

Além disso, para o caso dos medicamentos (produtos essenciais que são), a emergência

e o interesse público também caracterizam hipóteses legais ensejadoras da licença compulsória,

sempre mediante o devido processo e a indenização do inventor. Contudo, se não houver a

incidência de alguma das hipóteses legais de licenciamento, cabe ao poder público garantir o

acesso ao melhor tratamento possível devendo o custo ser rateado pela sociedade, pelo princípio

da solidariedade e da relevância dos bens da vida em questão: a vida; a saúde; e a integridade

psicofísica, valores irradiados pela dignidade humana.

A postura do Estado Social dá-se, então, mediante a fiscalização dos preços cobrados

pelos produtos patenteados, a aplicação do licenciamento compulsório sempre que se estiver

diante das hipóteses legalmente previstas e, ainda, quando não for possível romper com a

patente por não haver a incidência das hipóteses legais, tratando-se de bens essenciais, provê-

los aos deles necessitados.

Deste modo, o argumento da reserva do possível perde força, uma vez que, antes do

dever de provisão do Estado, pode este se valer da própria lei de proteção à propriedade

industrial para ampliar o acesso ao produto o que, consequentemente, já reduz o número de

indivíduos que, efetivamente, necessitarão que o Estado forneça o tratamento.

Ademais, a postura Estatal, no momento da Pesquisa e Desenvolvimento,

incentivando-a ativamente é, como se constatou no modelo norte-americano, o método mais

efetivo para se solucionar o problema das doenças negligenciadas, notadamente, aquelas em

que o setor privado não investe em novos tratamentos ou que este ainda não existe em absoluto.

Pode-se concluir, portanto, que o problema tratado neste estudo, como já se afirmou,

é um problema eminentemente político, isto é, instrumentos jurídicos já existem para solucioná-

los (ou mesmo amenizá-los). Resta somente uma efetiva postura do Estado no sentido de os

combater com as armas jurídicas que possui.

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160 

 

RESENHA

Resenha da obra A essência do Estado de Direito, de David M. Beatty. São Paulo:

Martins Fontes, 2014, 349p.

Bruno Goulart Cunha1

O livro “A essência do Estado de Direito” é a primeira obra lançada no país e em língua

portuguesa, do jurista e professor emérito da Faculdade de Direito, da Universidade de Toronto

no Canadá, David M. Beatty. Como o próprio título sugere, o jurista canadense tem como objeto

de investigação o Estado Democrático de Direito, mais precisamente, a tensão existente em seu

interior entre a democracia e o direito, ou ainda, entre o direito e a política.

Abraham Lincoln definiu democracia como o “governo do povo, pelo povo e para o

povo”. Nestes termos a democracia representa um avanço se comparada a outros modelos como

a monarquia ou a teocracia, mas ainda assim não se pode dizer que ela não padeça de alguns

males, inerentes à sua própria estrutura constitutiva. É que a vontade majoritária, quando

absoluta e incondicional, pode apresentar-se como ameaça potencial à direitos e garantias

individuais, notadamente de grupos minoritários.

Não por outro motivo, tendo em vista que o Estado moderno é democrático mas também

é de direito, se tem empreendido nos últimos cinquenta anos a uma busca cada vez maior pelas

cortes e pelos tribunais como forma de se controlar a atuação de políticos eleitos, membros dos

outros dois poderes. Assevera Beatty que se vivencia uma época marcada pela fé das pessoas

no Poder Judiciário (BEATTY, 2014, p.03). Ao Poder Judiciário ainda, foi conferida a

prerrogativa de proferir a última palavra em termos de conflitos sociais e políticos. Esta

prerrogativa é trabalhada no livro sob a face do controle judicial de constitucionalidade, fruto

de contribuições do direito americano, austríaco e alemão, da adoção pelos estados modernos

de uma Constituição escrita, rígida e suprema, e de uma declaração forte de direitos.

Neste ponto começa a emergir a questão a ser examinada no livro, como conciliar a

atividade judicial, expressa através do controle de constitucionalidade, com a soberania

popular? A questão é sensível porque o controle de constitucionalidade é feito tendo-se como

                                                            1 Mestrando em Direito e Inovação pela UFJF.

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161 

 

parâmetro o texto constitucional, que não fornece orientações objetivas aos juízes sobre como

resolver todas as questões práticas apresentadas em juízo. As Constituições, mesmo as mais

prolixas, não delimitam estritamente os limites do direito à vida, à igualdade e à liberdade, por

exemplo.

O grande risco do controle de constitucionalidade aparece aqui, no momento em que o

magistrado delimita o conteúdo dos conceitos (vagos) presentes no corpo da Constituição com

base em sua própria visão de mundo, sobre o que considera ser certo ou ser errado, justo ou

injusto. Em tal hipótese, se observa o seguinte panorama: de um lado, uma norma legitimamente

elaborada pelos representantes do povo, e de outro, um determinado dispositivo constitucional

com alcance e conteúdo definido por uma interpretação particular, própria do julgador. Há que

se ter em mente que os juízes, bem como as minorias, não detêm a “autoridade moral decorrente

da soberania popular” (BEATTY, 2014, p.08).

Com a finalidade de se resguardar a própria integridade do Direito, faz-se necessário

apresentar uma teoria que concilie, controle judicial de constitucionalidade e soberania popular,

que explique o modo pelo qual o controle pode ser desenvolvido como uma atividade objetiva

e imparcial, e que extirpe a concepção de que os juízes são guiados em suas decisões por suas

próprias crenças e valores.

O primeiro passo consistiu em identificar quais são as principais teses que abordam o

tema, expondo de que modo elas explicam o funcionamento do controle judicial de

constitucionalidade, para então aferir se elas propõem um modelo no qual o subjetivismo é

eliminado. Nesse ínterim foram abordadas a Teoria do Contrato, a Teoria do Processo e a Teoria

Moral.

Em síntese apertada, os adeptos da Teoria do Contrato, denominados “originalistas”,

dentre os quais se destacam Anotonin Scalia e Roberto Bork, preconizam que os juízes ao

interpretarem a constituição, devem fazê-lo do mesmo modo pelo qual se deve interpretar um

contrato, procurando preservar o sentido original do texto e a vontade e intenção daqueles que

o redigiram. Por sua vez, os entusiastas da Teoria do Processo, dentre os quais destacam-se

John Hart Ely, Cass Sustein, Patrick Monahan e Jürgen Habermas, defendem que o juízes

devem estar voltados para a tarefa de se garantir a integridade do processo social de tomada de

decisões, que tem de ser democrático e acessível a todas às pessoas e grupos, sem adentrarem

em discussões morais ou de valor, que ao fim e ao cabo seriam de competência do povo e de

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seus representantes. Por fim, a obra contém ainda uma análise do que o jurista denomina de

Teoria Moral, que tem em Ronald Dworkin seu principal expoente. Segundo esta visão os juízes

devem promover uma leitura moral da Constituição, de modo que o raciocínio moral é algo

ínsito ao controle judicial de constitucionalidade.

Beattty reconhece a importante contribuição que as três teorias ofereceram ao debate,

que busca, em última instância, entender o que é o próprio Direito. Afirma, todavia, que todas

elas falharam na tentativa de “explicar e justificar convenientemente nossa decisão de conferir

tanto poder aos tribunais” (BEATTY, 2014, p.61).

A fim de tentar mostrar o controle judicial de constitucionalidade como um

procedimento neutro e objetivo, que não está fundado em procedimentos subjetivos de

interpretação, o jurista propõe que se mude a perspectiva tradicional de abordagem do tema.

Ao invés de se iniciar a análise pelo questionamento sobre “como a democracia e o direito

deveriam ser” (BEATTY, 2014, p.62), para em seguida chegar em respostas a respeito de como

devem decidir os juízes, Beatty propõe que se comece levando em conta as decisões que vem

sendo produzidas pelos tribunais constitucionais, para em seguida deduzir quais são as

implicações dessas decisões para a democracia (BEATTY, 2014, p.63). Ou seja, o jurista

substitui a perspectiva tradicional de abordagem do tema, que é “de cima para baixo”, ou de

dedução a partir de premissas, pelo método de trabalho mais utilizado pelos juristas da

“common law”, que é de “de baixo para cima”, ou de indução. Logo, a teoria proposta David

Beatty tem em seu núcleo o estudo da prática judicial.

Se o Capítulo 1, foi utilizado para pôr em termos a questão a ser trabalhada, pode-se

dizer que os Capítulos 2, 3 e 4, contém análise de jurisprudência, extraída de tribunais

constitucionais situadas em países diversos como África do Sul, Alemanha, Austrália,

Botsuana, Canadá, Cingapura, Estados Unidos, Hungria, Índia, Israel, Japão, Nova Zelândia,

Suíça e Zimbábue, e extraída também do Comitê de Direitos Humanos da ONU, do Tribunal

Europeu de Direitos Humanos e do Tribunal Europeu de Justiça. As decisões tem como pano

de fundo questões de caráter universal e atemporal, referentes a liberdade religiosa, igualdade,

discriminação sexual, direitos dos homossexuais, fraternidade, direitos sociais e justiça

distributiva.

A partir da análise de casos, David Beatty conclui que os “juízes não precisam se apoiar

na história, na semântica nem na filosofia para saber se o ato do Estado respeita a Constituição

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ou não” (BEATTY, 2014, p.308), nem mesmo devem basear suas decisões em interpretações

gramaticais, nas intenções do legislador, no que dizem os precedentes ou na utilização do

raciocínio analógico. De que modo então devem os juízes decidir, sem que o façam com base

em suas próprias razões?

A resposta é estruturada em torno da correlação entre Pragmatismo e Princípio da

Proporcionalidade. Ao longo do livro Beatty revela-se um adepto da corrente de pensamento

denominada Pragmatismo Jurídico, chegando até mesmo a citar seus principais expoentes,

como Oliver Wendell Holmes, Benjamin Cardozo, Richard Posner e John Dewey. No decorrer

da obra percebe-se que o destaque que o Poder Judiciário vem ganhando nas sociedades

modernas não é necessariamente um problema, o problema surge quando os juízes não

conseguem exercer corretamente a atividade jurisdicional, quando se valem de técnicas

interpretativas para julgar, que imprimem na decisão suas próprias crenças e valores.

O jurista entende que o controle judicial de constitucionalidade pode ser reduzido à

aplicação do princípio da proporcionalidade (BEATTY, 2014, p.291), que seria um “critério

universal de constitucionalidade” (BEATTY, 2014, p.294). A utilização do princípio consistiria

um avanço, por determinar que o caso seja avaliado de forma objetiva, centrada nos fatos e nas

partes, à luz dos “princípios em jogo”. O princípio da proporcionalidade seria um método

neutro, lógico e justo mediante o qual a vigência e a legitimidade de uma lei seriam aferidas

através de um procedimento rigoroso de avaliação de seus fins, meios e efeitos.

Na visão de Beatty a “proporcionalidade reflete uma concepção pragmática do direito”

(BEATTY, 2014, p.322). A relação parece ser circular: a proporcionalidade reflete o

pragmatismo e o juiz pragmático, analisando um caso de cada vez, otimiza a objetividade e a

imparcialidade com que é capaz de julgar, ao se valer da proporcionalidade, atingindo o melhor

resultado possível para o caso concreto.

A simbiose entre o princípio e a teoria parece perfeita, tanto é que o fato de se poder

obter decisões diferentes mediante a utilização da proporcionalidade, não contraria o raciocínio

pragmático, que preconiza que “os julgamentos são contextuais, contingentes e relativos às

circunstancias particulares em que se realizam” (BEATTY, 2014, p.344).

Em síntese, “A essência do Estado de Direito” é uma obra na qual o leitor é convidado

a repensar o papel do juiz e da atividade judicial, e de como esta atividade é vital na proteção a

direitos humanos. David Beatty desce às profundezas do Estado Moderno e atinge o “ponto

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nevrálgico” no qual Democracia e Direito medem forças, e não se furta à tarefa de propor um

ponto de equilíbrio, que concilie controle judicial de constitucionalidade e soberania popular:

pragmatismo e proporcionalidade. Em meio a esta jornada, o leitor beneficia-se da originalidade

de ideias, do diálogo que o autor estabelece com as teorias rivais e com grandes nomes do

universo jurídico, e beneficia-se ainda, do competente estudo de direito comparado, no qual

uma rica e vasta gama de jurisprudência é analisada em pormenores.