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5/10/2018 Marcuse-Paraumacrticaaohedonismo-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/marcuse-para-uma-critica-ao-hedonismo 1/22 C ultura e Sociedade reline ensaios escritos pelo fil6sofo Herbert Marcuse entre 1934 e 1938 e publicados originalmente na Revista dePesquisa Social, editada pelo celebre Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Para recomendar sua leitura, nao fosse por nenhum outro motivo, bastaria certamente o modo originalissimo e p ro vo can te p el o q ua l Marcuse apreende - e, n um ce rt o s en ti do , reescreve - a hist6ria da filosofia, na melhor tradicao de urn enfoque materialista-hist6rico. ISBN 85-219-0256-5

Marcuse - Para uma crítica ao hedonismo

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Cu lt ur a e Soc ie dade reline

ensaios escritos pelo

fil6sofo Herbert

Marcuse entre 1934 e 1938

e publicados originalmente

na Revi st a d e Pe squi sa Soc ia l,editada pelo celebre

Instituto de Pesquisa Social

de Frankfurt.

Para recomendar sua leitura,

nao fosse por nenhum outro

motivo, bastaria certamente

o modo originalissimo

e provocante pelo qual

Marcuse apreende -

e, num certo sentido,

reescreve - a hist6ria

da filosofia, na melhor tradicao

de urn enfoque

materialista-hist6rico.

ISBN 85-219-0256-5

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©Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main 1965

TItulo do original: Herbert Marcuse: Kuttur und Gesellschaft f

Traduciio: Wolfgang Leo Maar,

Isabel Maria Loureiro,

Robespierre de Oliveira

Produciio Grdfica: Karia Halbe

Diagramafiio: Adra Cristina Martins GarciaCapa: Isabel Carballo

Dados Internacionais de Caralogacao na Publicacao (CIP)

(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Marcuse, Herbert 1898-1979

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

ISBN 85-219-0256-5

1. Cultura 2. Escola de Frankfurt de Sociologia

3. Erica 4. Materialismo 5. Sociedade

6. Teoria critica 1.TItulo

97-0640 CDD-306

fndices para caralogo sistematico

I. Culrura e sociedade: Sociologia 306

EDITORA PAZ E TERRA S.A.

Rua do Triunfo, 177

01212-010 - Sao Paulo - SP

Tel.: (011) 223-6522

Rua Dias Ferreira n.v 417 - Loja Parte

22431-050 - Rio deJaneiro-RJ

Tel.: (021) 259-8946

1997

Impresso no Brasil! Printed in Brazil

[ndice

Introdu~ao

Prefacio

oComb ate ao Liberalismo na Concepcao

Totalitaria do Estado

Sobre 0Carater Afirmativo da Cultura

Filosofia e Teoria Critica

II)

Para a Critica do Hedonismo -J

Bibliografia

7

37

47

137

161

201

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7. Hegel. Vorlesungen uber die Geschichte der Philosophie, a. a. 0 .•

Bd. XIII. S. 67.

8. Vgl. Max Horkheirner, Traditionelle und kritische Theorie. In:

Zeirschrift fiir Soeialforscnung, Jahrgang VI (1937). S. 245.

9. Kant. Werke hrsg. v, E. Casstrer, Berlin 1911 ff.• Bd. m. S. 540.

10. Kant. a . a . 0 .•Bd. vm. S. 344.

11. Hegel. Encyclopiidie I. § 166 a .a . 0 .•Bd. VI. S. 328.

12.Vgl. Zeitschrift fur Sozialforschung, Jahrgang VI (1937). S. 257 If.

13. Kant. Kritik der reinen vernunft, a .a . 0 .•S .625.

14. Hussert, Formale und transzendentale Logik;Halle 1929. S. 219.

160

Para a Crttica do Hedonismo

It ~ ....~ . J ;' - ~- " r~~/,

Sob 0nome de razao, a filosofia idealista da epoca bur-

guesa tinha tentado apreender 0universal , que deveria se afir-

mar nos individuos isolados. 0 individuo aparece como urn eu

isolado dos outros nos seus impulsos, pensarnentos e interes-

ses. A superacao desse isolamento, a construcao de urn mundo

comum realiza-se pela reducao da individualidade concreta ao

sujeito do mere pensar, ao eu racional. As leis da razao criam

finalmente entre homens - que, num primeiro momento, se-

guem somente seu interesse particular - uma comunidade.

Pelo menos, algumas formas da intuicao e do pensar podem

ser seguramente estabelecidas como universal mente validas e a

parti r da racionalidade da pessoa podem obter-se certas maxi-

mas universais do agir. Na medida ern que 0individuo devia

participar da universalidade daquelas s6 enquanto ser racional,

e nao corn a variedade empirica de suas necessidades e capac i-

dades, essa ideia de razao continha ja 0sacriffcio do individuo.

Seu desenvolvimento completo nao podia ser inc1uido no reino

da razao: a satisfacao de suas necessidades e capacidades, sua

fel ic idade. aparecia como urn elernento arbitrario, subjetivo,

que nao podia harrnonizar-se corn a validade universal do prin-

cipio superior do agir humano. "Onde cada urn ha de por.. sua

felioidade depende do sentimento de prazer e desprazer de

cada urn, e ate ern urn e mesmo sujeito depende da diversidade

das necessidades segundo as variacoes desse sentirnento, e

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uma le.i subjetivamente neoeasar-ia (como lei natural) e, ___!Lois,

objetivamente urn princfpio pratico muito contingente que

pode e deve ser muito diferente nos diferentes suje.itos e, por

conseguinte, nao pode nunca fornecer uma lei ... "· Essa lei nao

pode depender da felicidade, pois a felicidade nao vai alern do

indivfduo corn toda sua contingerrcia e irnperfeioao. Hegel viu

a historia da humanidade sob 0peso dessa infelicidade inefuta-

vel: os indivfduos precisam sacrificar-se ern nome do univer-

sal, pois nao ha nenhuma harmonia preestabelecida entre 0in-

teresse geral e 0particular, entre a razao e a felicidade. 0

progresso da razao se afirma contra a felicidade dos indivf-

duos: "Feliz e aquele que adequou sua existenoia a seu carater,

vontade e arbftrio particulares, desfrutando assim de si mesmo

na sua existericia. A historia universal nao e 0lugar da felicida-

de. Os perfodos de felicidade sao nela pag inas ern branco ... ,,2

o universal segue seu carninho por cima dos indivfduos e a

hisroria, quando apreendida, aparece como 0imenso calvario

do Espirito.

Hegel combateu 0eudemonismo ern riorne do progresso

historico, 0 princ!lli.-o eudemonista, "converter a felicidade e 0

prazer ern bern supremo", nao e falso como tal. A baixeza do

eudemonismo consistiria antes ern que "situa num mundo e

numa realidade vulgares" a satisfacao dos anseios e da felicida-

de dos indivfduos. De acordo corn esse eudemonismo, 0indivf-

duo deveria reconciliar-se corn aquele mundo e corn aquela

realidade: deveria poder "confiar neles e entregar-se a eles sem

pecado=P, Segundo Hegel, 0 pecado do eudernonismo contra a

razao historica.consiste -no fato de.o.bem supremo da.existencia

humana ser impas to e maculado pela rna realidade ernpfrica.

Na crftica de Hegel aO eudemonismo se anuncia a com-

p'reerrsao da requerida objetividade da felicidade. Se a felicida-

de nada mais e que a satisfacao imediata do interesse particu-

lar, 0 eudemonismo contern urn princfpio irracional, que

man tern os homens nas respectivas form as de vida dadas. Afelicidade humana deveria ser algo diferente da sari sfacao pes-

162

soal; segundo sua propria exf gerrc ia, a felicidade aponta para

7.1em da mera subjetividade.

Tanto 0eudemonismo an tigo quanta 0eudemonismo bur-

gues conceberam essencialmente a felicidade como urn tal es-

tado subjetivo; na rnedida ern que os homens podiarn e deviam

alcarica-Ia dentro do status imposto pela ordem social existen -

te, essa doutrina contern urn momenta de resrgnacao e reco-

nhecimento. 0 eudemonismo entra ern contradicao corn 0prin-

cipio da autonornia crftica da razao,

A._oposiS'~entre___fencidade._e_ .razao.xemcnra.jr.fijosofia

antiga. A referericia da felicidade ao acaso, ao iricontrolavel e

nao-dominado, ao poder irracional de relacoes essencialmente

exteriores ao indivfduo, de tal maneira que a felicidade quando

muito "se acrescenta" a seus fins e intencoes - essa relacao

resignada corn a felicidade esta contida no conceito grego de Ty-

che4• A felicidade e alcapcada no dornfnio dos "bens exter iores":

estes nao se encontram na liberdade do individuo, mas na contin-

gencia irnpenetravel da ordem social da vida. A verdadei ra felici-

dade a.realizacao das possibilidades supremas do individuo, nao

pode, pois, consistir no que comumente se chama felicidade: ela

precisa ser buscada no mundo da alma e do espfrito.Contra essa interiorizacao da felicidade, que aceita como

irreviravel a anarquia e a falta de liberdade das relacoes exterio-

res da exisrencia, protestaram as correntes hedonistas da filo-

sofia. Ao situar a felicidade no prazer, se exigiaSlue as poss'ibi-

lidades e-neCessidades sensiveis do homem tambern deviam

ser satisfeitas, que 0homem devia alcancar nelas a fruicao

(Genuss) da existencia - sem pecar contra sua essenc.la, sem

culpa nem vergonha. Corn 0principio do hedonisrno , a ex. ige.n-

cia de liberdade do indivfduo - numa forma abstrata e nao

desenvolvida - e levada ao dornfnio das relacoes materiais da

vida. Na medida ern que 0protesto mater ialista do hedonismo

preserva uma parte antes proscrita da lrbertacao humana, ele se

vincula ao interesse da teoria crftica.

Distinguem-se dois tip_os de hedonismo: a corrente eire-naica e a epicurista. Os cirenaicos partem do fato de que certos

163

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irnpul=os e carencias do indivfdu~ru:iam vjnctrlaclos na sua

satisfacao ao sentimento do prazer, A.felicidade consistiria em ter

esses prazeres tao _freqUentemente quanta possfvel. "0 fim (...)

seria 0prazer individual, a felicidade a soma das sensacoes indivi-

dua is de prazer, que compreendem tanto as passadas quanto as

futuras. 0razer individual e_nes_ejliYcl por si rnesmo, a felicida-

de, em____£;ontraQ__artida,aQ_e desejayel pqr si mes a. .mas por

causa das sensacoes individuais d~razer"s. Nao importa de que.tipo sao os impulsos e as necessidades individuais; sua valora-

<;:aomoral nao se funda na sua "natureza", e sim na origem,

nas normas socials"; s6 0prazer importa, ele e a unica felicida-

de dada ao indivfduo. "Entre prazer e prazer - dizem eles -

nao ha nenhuma diferenca e nada que se ja mais prazeroso que

uma outra sensacao de prazer"'". Eis agora 0protesto materia-

lista contra a interiorizacao: "Os prazeres ffsicos sao muito

melhores que os prazeres da alma, e as dores ffsicas sao piores

que as dores da a lma"s. Tambern encontramos aqui a rebel iao

contra 0abandono do indivfduo a universalidade tomada inde-

pendente: "1 3 racional que 0homem de valor nao se sacrifique

pela patria. Pois nao se deve desprezar a inteligencia em pro-

veito dos tolos?".

Esse hedonismo nao estabelece diferencas, nao somente

entre os prazeres individuais, como tampouco entre os iridivf-duos que deles desfrutam. Tais como sao, devem os indivfduos

satisfazer-se, e tal como 0mundo e. deve tornar -se obje to de

possfvel fruicao. Ao remeter a felicidade a entrega imediata e afruicao imediata, 0hedonismo obedece a urn estado de coisas

que reside na propria est rutura da sociedade antagonica e que

s6 se toma claro em suas formas desenvolvidas.

Nessa forma da sociedade, 0mundo, tal como e, s6 pode

tornar-se objeto de fruicao quando tudo nele, homens e coisas,

e aceito como aparece , sem que sua esserrcia - suas possibili-

dades suprernas , de acordo com 0estagio alcancado pelas for-

<;:asprodutivas e pelo conhecimento - esteja presente para

aquele que desfruta. Pois como 0processo vital nao e determi-nado pelos interesses verdadeiros dos indivfduos, configurando

164

solidariamente sua existencia na luta com a natureza, essas

possibi lidades nap sao real izadas nas relacoes sociais funda-

mentais: elas s6 se tornam conscientes enquanto possibilidades

perdidas, mutiladas e reprimidas. To.da..relalrao com, os homens

ou com as coisas que fosse ~da imediatez-,_toda compreen-

sao mais profunda chocar-se-iam imediatamente ..£ontra sua es-

sencia: com aquilo que poderiam ser e nao sao e, portanto,

;ofreriam com essa aparencia. Esta surge

aluz das possibilida-

des nao realizadas, nao sendo mais tanto urn bela momento

ent re outros e sim algo transi torio, que se perdera i rre rnedia-

velmente. Os defeitos e a fealdade dos objetos da fruicao

veem-se agravados com a fealdade e a infelicidade gera is, en-

quanto na imedia tez mesma podiam ser fonte de prazer, A con-

tingencia nas relacoes com os homens e com as coisas, e os

obstaculos, perdas e renuricias a ela inerentes tornarn-se ex-

pressao da anarquia e da injustica do todo: uma sociedade em

que ate as relacoes pessoais sao determinadas pela lei econo-

mica do valor.

Nessa sociedade, todas as relacoes humanas que vao alern

do contato imediato nao sao acompanhadas de felicidade. E

tampouco as relacoes no processo de t rabalho, que nao e regu-

lado em funcao das necessidades e capacidades dos indivfduos,

mas em funcao da va lor izacao do cap ital e da producao de mer-cadorias. As relacoes hurnanas sao relacoes de classe, e sua for-

ma tipica e 0l ivre contrato de t rabalho. Par tindo da esfera da

producao, esse carater contratual das relacoes humanas esten-

deu-se a toda a vida social : essas relacoes func ionam sornente

na sua forma reificada, mediadas pelo desempenho material das

partes contratantes disposto segundo a sua situacao de c1asse. Se

a rigidez fosse nelas rompida, nao somente como aquela afavel

cordialidade que precisamente evidencia a distancia objetiva, mas

como preocupacao solidaria e recfproca, seria irnpossfvel 0etor- Ino dos hornens ao seu lugar e a sua funcao sociais normais; a

estrutura contratual em que a sociedade repousa se romperia.

Contudo, 0contrato nao abarca todas as re lacoes inter-

humanas. A sociedade liberou toda uma dirnensao de relacoes.

165

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cujo valor cons is te precisamente em nao serem determinadas

por desempenhos cont ratuai s e services mate riai s: rela 6es em

~os indivfduos se encontram uns com os outroU;0lllo "pes-

soas" e nas quais devern.realizar sua.personalidade. 0arnor , a

amizade, a carnaradagem fazem a~dess~ til ll i. --de__(eIa~oes

pessoais a qu~a cultura ocidental relegou a suprema felicidade

terrena dos homens . Mas se essas relacoes sao realmente 0que

querem ser, nao podem conter a felicidade. Se elas devem ga- .

rant ir uma comunidade essencial, duradoura entre os indivf-

duos, precisam estar baseadas no entendimento compreensivo

(begreifenden Verstehen) do outro: precisam conter urn conhe-

cimento sem compromisso. Tal conhecimento most ra 0 outro

nao so na imedia tez intacta da aparencia (Erscheinung) sensf-

vel , que pode ser desejada e desfrutada por sua beleza, sat isfa-

zendo-se com a aparencia (Schein), mas na sua essencia: tal

como na verdade e. Mas assim sua imagem contem tambern 0

feio, 0 injusto, 0 ins tavel, 0 atrof iado e 0efemero - nao como

propriedades subje tivas, que pudessem ser superadas por urn

esforco do entendimento, mas antes como a intromissao de ne-

cessidades (Notwendigkeiten) sociai s naque las esferas pes-

soais, como necessidades que const ituem os impulsos, as ne-

ces~idades ,(BediirJnisse) e os interesses da pessoa nesta

sociedade. E precisamente a essencia da pessoa.que se exprime

nos comportamentos aos quais 0 outro (ou a propria pessoa) i Ireage com decepcao, preocupacao, compaixao, medo, infidelida-

de, ciume, tristeza. A cultura transfigurou esses sentimentos e

deu-lhes consagracao tragica: eles rompem de fato a reifica~ao:1

No comportarnento a que esses sentimentos respondem 0 indivi-

duo deseja l ibertar-se de uma situacao a cuja lei social ate entao

obedeceu: quer seja 0 casamento, ou a profissao, ou alguma outra

obrigacao na qual aceitou a moralidade. 0 indivfduo guer seguir.sua paixao, Mas numa ordem em que nau_ha liberdada.a.paixao eprofundamente desordenada e, por conseguinte, imoral; quando

nao e desviada para fins desejados por todos, leva a infelicidade.

Nao so sob esse aspecto estao as relacoes pessoais l igadas

a dor e a infelicidade. 0 desenvolvimento da personalidade

166

s ignifica tam bern 0 desenvolvimento do conhecimento, a com-

preensao das estruturas da realidade ern que se vive. Tais como

-se apresentam, cada passo pelo qual 0 indivfduo se afasta do

abandono imediato a aparencia (Erscheinung) e da aceitacao

complacente da ideologia que Ihes oculta a essencia tern de

destrui r a felic idade a ele oferec ida. Se 0 indivfduo agir real-

mente de acordo com sua cornpreensao, e levado, quer a luta

contra 0 existente, quer a remincia, 0 conhecimento nao Q aju-

da a ser feli z, e sem ele a~soa reca i nas rela~.fies...reificadas.

E urn dilema inevitavel. A fru~o e a verdade, a felicidadee as

relacoes essenciais entre os indivfduos sao inconciliaveis.

o hedonismo conseqtiente, ao nao esconder 0 inconcilia-

ve l, cumpriu uma funcao progressista. Ele nao procurou fazer

cre r aos homens que na soc iedade anarquica a feli cidade deve-

ria ser encontrada na "personalidade" harmoniosa, desenvolvi-

da, que se encontra no apice da cultura. 0 hedonismo nao e

u.. !ifuavel como ideologia, e naD admire de fanna algvma ser

empregado como jus tificacao de uma ordem ligada a opressao

da liberdade e ao sacriffcio do indivfduo, Para isso teria que serinteriorizado moral mente ou reinterpretado utilitariamente. 0

hedonismo reivindica a fel icidadepara todos os indivfduos

igua lmente; nao hipostasia nenhuma universal idade, em que,

sem consideracao pelos indivfduos , a felicidade fosse conser-

vada. Tern sentido falar do progresso da razao universal , que se

impoe apesar da infel icidade dos indivfduos, mas a fel icidade

universal separada da felicidade dos indivfduos e uma frase

sem senti do.

o hedonismo e 0polo oposto da filosofia da razao, Am-

bas as correntes de pensamento conservaram, de manei ra abs-

trata, poss ibil idades da sociedade existente, que apontam para

a sociedade humana real. A filosof ia da razao conservou 0 de-senvolvimento das forcas produtivas , a l ivre configuracao ra-

cional das condicoes vitais, a dominacao da natureza, a autono-

mia crftica dos indivfduos socializados; 0 hedonismo conservou

o desenvolvimento completo e a satisfacao das necessidade in-

dividuais, a ernancipacao de urn processo de trabalho desuma-

167

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no, a ent rega do mundo a fruicao. Ambas as teorias sao incom-

patfveis na sociedade atual, assim como ou~rincfpios que rep-

resentam. A ideia da razao visa a uma universalidade em que

os in teresses antagonicos dos indivfduos "empfr icos" sao su-

perados ; mas para essa universal idade, a verdadeira realizacao

dos indivfduos, sua fel icidade, permanece algo estranho, exte-rior, que p reci sa ser sacrifi cado. Nao ha nenhuma harmonia

entre 0 interesse geral e 0 interesse parti cular, entre a razao e a

felicidade; quando 0 indivfduo acredita ter encontrado a conci-

lia9ao entre ambos os interesses, e vft ima de uma ilusao neces-

saria e salutar: a razao ludibria os indivfduos. 0 verdadeiro

interesse (da universalidade) reifica-se em face dos indivfduos

e transforma-se num poder que os domina. Com a ideia de

felicidade, 0 hedonismo quer conservar 0 desenvolvimento e a

sa ti sfacao do ind ivfdl iOCoiTIo fim- dent ro de uma rea lidade

anarquica e miseravel , Mas 0 protesto contra a universalidade

re ifi cada e os sacri ffcios sem sent ido a ela o ferec idos condu-

zem mais profundamente ao isolamento e a oposicao entre osindivfduos, enquanto nao amadurecerem e nao forem com-

preendidas as forcas his toricas que podem transformar a socie-

dade existente numa verdadeira universal idade. Para 0 hedo-

nismo, a felicidade permanece algo exclusivamente.subjetivo:

o interesse particular do indivfduo, tal como e , Lafirmado

como 0 verdadeiro interesse e.justificado contra toda universa-

lidade, Este e 0 l imite do hedon ismo, sua vinculacao com 0

individualismo competitivo. Seu conceito de felicidade so

pode obter-se fazendo-se abs tracao da universal idade. A felici-

dade abstra ta corresponde a l ibe rdade abstrata do ind ivfduo

monadico. Para 0 hedonismo, a objetividade concreta da felici-

dade nao e urn conceito justificavel,Essa cornpl icacao inevitave l, tambem encontrada no eu-

demonismo mais radical , foi com razao cri ti cada por Hege l: 0

hedonismo reconcilia a felicidade particular com a infelicidade

geniC A inverdade dOhedonismo nao consiste em que 0 indivf-

duo deva buscar e encontrar sua felicidade num mundo de in-

justi ca e miser ia, 0 princ fpio hedonista como ta l rebe la -se an-

168

/

tes contra essa ordem, e se pudesse apoderar-se das massas,

elas mal suporta riam a fa lta de l ibe rdade , nem seriam comple-

tamente corrompidas por toda domesticacao her6ica. 0 mo-

mento justiflcador do hedonismo situa-se mais profundamente:

na sua concep£ao abstra~a d~ecto subjetivo da Ielicidade.

na sua inca acidade em _poder distinguir entre verdadeiras efal sas necessidades e inte resses, entre verdadeira e fal sa frui- I

yao. 0 hedonismo ace ita as necessidades e interesses dos indi-

vfduos como algo simplesmente dado e valioso em si. &£sas

necessidades e inte resses (e nao em sua sa ti sfacao) se esconde

ja a mutilacao, a repressao e a inverdade com que os homens

crescem na soc iedade de c lasses. A afi rmacao de um ja contern

a afirmacao do outro.

A incapacidade do hedonismo de poder aplica r a categoria '

da verdade a fel icidade, seu profundorelat ivismo, nao e nenhum

erro logico ou ep istemologico de urn si stema filo s6fico. Nao

pode ser corrigido no interior do sistema, nem eliminado por

meio de urn si stema fi los6fico melhor e mais abrangente. Re-monta a forma das relacoes sociais a que 0 hedonismo esta

vinculado e todas as ten tat ivas de evi ta -lo por meio de dife ren-

ciacoes imanentes levam a novas contradicoes. "

9 segundo tipo de hedonismo, 0 epicurista , const itui essa'' :' iJ

tentat iva de di ferenciacao imanente. Sustenta ue 0 ~e 0 r \ ,

bern supremo, orem opoe urn determinado til'Q_d~prazer, /

como 0 "verdade iro", a todos os outros. A sati sfacao indi fe-

renciada das necessidades dadas encont ra-se mui to amii ide ;

como consequencia, claramente vinculada a grandes despraze-

res para que nao seja necessario estabelecer uma diferenciacao

entre os prazeres ind ividuais, Ha necessidades e desej os cUjaJ

satisfacao tern como consequencia a dor, que s6 atica nova-mente 0 desej o, destruindo a tranqui lidade, da alma e a sai ide

do.homem. Por isso "nao nos decidimos simplesmente por

qualquer prazer, mas ha casos em que renunciamos a muitas

coisas agradavei s quando de las resul ta urn excesso de coisas

desagradaveis e, por outro lado, preferimos muitas dores as

coisas agradaveis quando, por suportar longamente estas dores,

o'J

169

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,,

v

result a urn prazer maior"lO. A razao ue , ao_£!"ever, permite

avaliar entre 0 valor de urn prazer rnomentaneo e urn desprazer

posterior, torna-se j uiz do prazer e a te mesmo 0 prazer supre-

mo: "nao sao as orgias e seus subseqiientes cor tejos delirantes

~ fazem a vida prazerosa, nem as relacoes com belos rapazes

e mulheres, nem tampouco deleit ar-se com peixe ou outras de-

lfcias, (. ..) mas urn entendimento s6brio, que exarnina cuidado-

samente as raz6es do que escolher e evitar em cada caso e :

rompe com todos os delfrios que sao a razao principal da per-

turbacao da tranqiiilidade da alma"!' ..A_razaq_p_ermite ao ho-

mem aquela fruicao moderada, dirninuindo 0 risco a fim de

mante r uma sai ide equil ibrada e permanente . As diferencas na

avaliacao do prazer se realizam tendo em vista a maior segu-

ranca e durabil idade possiveis do prazer. Nesse metodo se ex-

prime ja 0medo da inseguranca e a perversidade das condicoes

de vida, a insuperavel l imitacao da fruicao, ~ni smo

negative: seu principio consiste~em evitar 0 des razer

que em desejar 0 praze r , A verdade, pela qual 0prazer deve sermedido, consiste apenas em fggiLdo conflito com a ordem es-

tabelecida: e a forma do £razer socialmente tole rada, ate mes-

mo desejada . 0 obj etivo e a tranquilidade de alma do "sabio":

uma ideia em que tanto 0 conceito de prazer quanta 0 conceito

de sabio perdem 0 sentido. 0 prazer e mutilado na medida em

que a relacao cautelosa, ponderada, rese rvada do indivfduo

com os homens e as coisas recusa-se a aceitar a dominacao

destes sobre 0 individuo, ali onde realmente essa dominacao

traz fel icidade: como entrega ao deleite. A felicidade encontra-

se, na ordem antagonica da existencia, como algo que escapa aautonornia do individuo, que nao pode ser conquistado nem

controlado pela razao; 0que vern de fora, 0 contingente, 0quese oferece por si mesmo e urn momenta que pertence essen-

cialmente a fel icidade. A fruicao consiste precisamente nessa

exterioridade, nesse encontro inocente, despreocupado, harmo-

nioso do individuo com algo no mundo. Na atual situ~ao his-

t6rica dos individuos, nao se pode chamar felicidade (nessa

si tuacao, a feli cidade esta tingida de infelic idade) ao gue a ra-:

zao alcanca e ao que a alma vivencia (erlebt), mas s6 precisa- -

mente ao prazer "exterior", a sens ibil idade. Nas relacoes so-

ciais reificadas, 0 "orgao" da felicidade nao e a razao mas a

sensibilidade.

Assim como no desenvolvimento da fi losofia foi sendo

- -elaborada a oposicao entre razao e sensibilidade, esta adquiriu

cada vez mais 0 carater de uma faculdade humana inferior e

vulgar, de uma regiao aquern do verdadei ro e do fa lso, do certo

e do errado, uma regiao de impulsos cegos e indiscr iminados.

S6 na teoria do conhecimento se conservou a vinculacao entre

sensihilidade.e, verdade: aqui se manteve tarnbern 0 momenta

decisivo da sensibilidade, a receptividade aberta e que se abre

(que contradiz a suposta impulsividade cega da sensibilidade).

E_.llJ_,iliUnentem yjrtude dessa receptividade, dessa entrega de-

clarada da sensibi lidade aos objetos (homens e coisas) 9 ! l t : . a

sensihilidade parle tornar-se foote da [e licidade, pois nela, de

maneira total mente imediata., 0 isolamento do indivfduo e su-perado, e ele pode apreender os objetos sem que a mediacao

essencial deles pelo processo da vida social e, portanto, seu

lado infeliz , seja const itutivo da fruicao. No QIocesso do co-

~cimenJQ. na.razao, ocorre precisamente 0 contrario, Aqui a

espontaneidade do indivfduo se choca necessariamente contra /

o objeto como contra uma coisa estranha ; a_ razao tern.que su-

perar essa estranheza e captar 0 objeto na sua essencia: nao

apenas como ele se da e aparece, mas tambern no seu devir.

Sempre se considerou que 0metoda da razao consist ia em pro-

porcionar c1areza sobre a origem e 0 fundamento dos entes.

Esse metodo implicava recorrer a his t6ria. E mesmo quando

esta nao era entendida como a verdadeira hist6ria , mas t rans-cendentalmente, introduziu-se no conhecimento conceitual (be-

greifende Erkenntnis), que merece 0 t itulo de razao, bas tante

transitoriedade, inseguranca, conflitos e sofrimentos da realida-

de, fazendo com que 0 emprego do termo "prazer" aparecesse

como falso nesse dominio. Quando Platao e Arist6teles vincu-

170 171

/

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lam a razao ao prazer, isto nao signit ica que eles a considerem,

no sent ido dos hedonistas, como urn ou 0melhor dos prazeres

individuais. A ra~o e antes a ssibilidade suprema do ho-

mem e tern que ser, por conseguinte, 0 prazer supremo do ho-

mern, Aqui, na luta contra 0hedonismo, 0conceito de prazer e

eliminado da esfe ra a que os hedonistas 0 tinham relegado e

posto em confronto com essa mesma esfera.

A situacao e dife rente quando, como em Epicuro, dentro

do proprio hedonismo, a razao se converte em _Qrazer, o u 0

prazer se toma raciona l. Entao nasce aquele ideal do sabio que

desfruta, em que tanto 0 prazer quanta a razao perdem 0 senti-

do, 0 sabio seria aquele cuja razao (e cujo prazer) nunca vai

longe demais, nunca vai ate 0 tim (pois entao se chocaria com

conhecimentos que suprimiriam a fruicao). Sua razao seria desde

logo tao limitada que so se ocuparia com 0 calculo dos r iscos e

com a tecnica espi ritua l de ext rair de tudo 0melhor. ~azao

renunciou a retensao de verdade: ela aparece apenas como asnicia

subjetiva e como saber especial que deixa tranquilamente existir a

desrazao universal, mas tambern desfruta muito menos do que lhe

vern de fora do que de s i rnesma.

o hedonismo contern urn jufzo correto sobre a sociedade.

Que a receptividade da.sensibilidade e.nao a espontaneidade

da razao seja a fonte da fel icidade resulta das relacoesantago-

nicas de t rabalho. Elas sao a forma rea l do estagio alcancado

pela razao humana, nelas se decide acerca daJiberdade e da

fe lic idade possfvei s. Se essa forma e tal que nela as forcas pro-

dutivas estao dispostas no interesse dos menores grupos so-

ciais, que nela a maior parte dos homens esta separada dos

meios de producao e 0 trabalho nao se rea liza de acordo com

as capacidades e necessidades dos indivfduos, mas segunJ!9 as

exigencies do processo de valor izacao do capital , nessa formahistor ica da razao a fel icidade nao pode ser universal. A felici-

dade resta apenas a esfera do consumo. 0 hedonismo radical

foi formulado no mundo ant igo e ti ra uma consequencia mora l

da economia escravagista. ~ e felicidade estao essen-

cialmente separados : eles per tencem a modos de existencia di-

ferentes. Uns sao por essencia escravos, os outros Iivres. a

epoca modema, 0_principio do trabalho tomou-se universal .

Todos devem traba lhar e cada .um deve receber segundo a me-

dida do seu t rabalho. Mas como a divisao do t rabalho socia l se

realiza sob a necessidade irnpenetravel da lei capital ista do va-

lor, nao se cria nenhuma relacao raciona l entre producao e con-

sumo, traba lho e fruicao, A sati sfacao ocorre como uma con-

t ingenc ia que deve ser ace ita . A razao domina somente por t ras

das costas dos indivfduos na reproducao do todo, 0 qual se

rea liza apesar da anarquia. Para 0 indivfduo que busca seus

proprios inte resses, a razao poderia , no maximo, representar

urn papel enquanto calculo pessoal e escolha de possibilidades

dadas. E nessa forma at rotiada que e la e de fato depreciada no

ideal do sabio. Se a razao, como decisao livre e comunitaria

acerca da situacao da existencia humana no interior de condi -

~6es hi storic as e na turai s, nao a tua no processo de producao,

tampouco pode atuar no processo de consumo.

A limita ao da felicida e a era do consumo ue apa-

rece se arada do rocesso de Qrodu~ao,_refor~a a par ticularida-de e subjet ividade da fe lic idade numa soc iedade em que nao se •

estabelece a unidade racional entre 0processo de producao e 0

de consumo, entre 0 trabalho e a fruicao, Quando a et ica idea-

lista rejeita 0 hedonismo precisamente em virtude da particula-

r idade e subjetividade essenciais de seu princfpio, por tras dis -

so se oculta uma crf ticajust it icada: nao exige a fel icidade, com

a re ivindicacao de aumento e duracao que Ihe e imanente, que

nela se elimine 0 isolamento dos indivfduos, a reificacao das

re lacoes human as, a cont ingenc ia da sa tisfacao e que tambern

possa ser compatfvel com a verdade? Mas, por outro lado, 0

isolamento, a reificacao e a contingencia constituem precisa-

mente a dimensao da feli cidade na sociedade atua l. Por conse-guinte, 0 hedonismo tinha razao justamente na sua inverdade,

na medida em que sustentava a exigenc ia de fe lic idade contra

toda idealizacao da infel icidade. A verdade do hedonismo esta-

ria em sua superacao e conservacao (Aufhebung) num novo prin-

cfpio de organizacao social, nao num outro princfpio filosofico,

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A filosofia esfor~ou-se das mais divers eiras para

salvar a objetividade da fe licidade e para concebe-la sob a ca-

tegoria daverdade e da universalidade. Encontramos tentativas

desse tipo no eudemonismo antigo, na f ilosof ia cat6lica da Ida-

de Media, no humanismo e no Iluminismo frances. Quando a

pergunta acerca da possfvel obje tividade da feli cidade nao elevada ao plano da estrutura da organizacao social da humani -

dade, sua resposta est a condenada ao fracasso devido as pr6- .

prias contradicoes sociais. Porem, na medida em que a cri tica

filosofica se refere dec isivamente ao problema hist6rico em

questao como uma tarefa da praxis hist6rica, precisamos discutir

em seguida a primeira e maior controversia com 0 hedonismo.

A critica platonica do hedonismo (em duas etapas dife-

rentes no G6rgias e no Filebo) elabora ~la primeira vez 0

conce ito de necessidades verdadeiras e fa lsas e de prazer ver-

dadeiro e falso - verdade e falsidade como categorias que

devem ser aplicadas a cada prazer individual. 0ponto de parti-

da da critica e a conexao essencial entre prazer e desprazer:

junto com cada prazer esta dado 0 desprazer, pois 0 prazer e

superacao e real izacao de a lgo que falta (ausencia, privacao)

que, como tal, e sentido dolorosamente. Portanto, 0 prazer nao

pode ser "0 born" nem a felicidade. ._l2_oiscontem seu proprio

contrario - a menos que se encontre urn prazer "sem mistu-

ra" , essenciarmerr te separado do desprazer , No_Filebo (51 Be

ss.), s6 permanece _finalmente como prazer verdadeiro, sem

mistura, 0 prazer das linhas, sons e cores "belos em si mes-

mos", ou sej a, uma fruicao separada de todo desej o doloroso e

l imitada a obj etos sem vida - uma frui~ao que, evidentemen-

te, e vazia demais para poder constituir ~idade. A designa-

~ao das coisas sem vida como objeto do prazer puro mostra

c laramente que, na forma dada das condicoes de existencia, 0

verdadeiro prazer esta separado, nao s6 da alma (que como

lugar do dese jo e dos anseios e tambem necessariamente fonte

do desprazer), mas tambern de todas as re lacoes pessoa is es-

senciais. 0 prazer sem mistura encontra-se nas coisas. rnais

afastadas do processo de vida social . A receptividade do aban-

dono sincero ao objeto da frui~ao (que Pla tao considera como

pre-requisi te do prazer) s6 existe na completa exter ioridade, na

qual silenciam todas as relacoes essenciais entre os homens. A ,/

fel icidade encontra-se, ass iIDJjtuada no p610 oposto.da inte-

riorizacao e da interioridade.

A primeira solucao dada por Platao ao problema do pra- ,>t , j } .11zer verdadeiro va i por outro caminho. No G6rgias, ele conduz

imediatamente a questao acerca da ordem social dentro da qual /

~~o deve realizar-se. Essa ordem, como norma supre- Ai

rna em relacao a qual devem medir-se os prazeres individuais ,

esta fora de discussao: ela e aceita na sua forma dada. As mas' ~y

necessidades e os maus prazeres sao aqueles que destroem a r. f rt 1

ordem justa da alma e impedem 0 indivfduo de atingir as suas (

verdadeiras possibilidades. Mas sobre essas possibilidades e,

portanto, ~a verdade e falsidad~aU!ecessidades e dos

prazeres. decide a comunidade dent ro da.qual, os indivfduos

vivem e s6 por meio da qual "continuam existindo 0 ceu e a

terra, os deuses e os homens" (508 a). 0conceito de ordem da

alma transforma-se no conceito de ordem da comunidade e 0

conceito de ''justo'' individual no de justica (504): que aos

indivfduos caiba 0 prazer justo depende da organizacao.jus ta

daQQlis. A universal idade da fel icidade e posta como proble-

ma. S6 jlodem ser satisfeitas as necessidades que fazem do

individuo urn born cidadao: estas sao as verdadeiras necessida-

des e 0 prazer vinculado a sua sati sfacao e 0 verdadei ro prazer;

as outras nao devem ser sat is feitas . AJwefa do estadis t~on-

siste .em defender 0 interesse geral e em harmoniza-lo com a

satisfaylkLdo_s interesses par ticulares, A possibilidade dessa

harmonia, a verdadeira questao social, nao e explicitada no

G6rgias (embora a crftica aos grandes estadi stas gregos insi -

nue, ao menos, a crf tica social) .

Opondo-se 0 verdadeiro prazer ao falso prazer, a fel icida-

de fica submetida ao cri terio da verdade : se a existencia huma-

na deve obter no prazer a suprema realizacao, a fel icidade , en-

tao nao e possfvel que qualquer sensacao de prazer em si ja

sej a a felic idade. A crftica de Pla tao ao hedonismo retorna, da

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simples existencia das necessidades e do prazer, aos indivfduos

que os "possuem". Esse retorno concei tual e necessario pelo

fato de que tanto os doentes quanta os saos, os bons quanta os

maus, os loucos quanto os normais sentem prazer da mesma

mane ira'" (no que se refere ao fato do prazer). A_guilo que to-

dos conservam de manei ra indiferenc iada nao pode ser 0 bern

supremo. D~ haver uma verdade da felicidade, base para se

poder j ulgar a fel icidade dos Indivfduos. 0 prazer tern queser

acessfvel a distincao entre verdade e falsidade e entre justica e

injustica, se e que a felicidade do homem (no caso de 0prazer

ser a fel icidade) nao deve estar indi ssoluvelmente associ ada a

infelicidade. Entretanto, 0 fundamento de t~o nao

Q_~ na sensa ao individua! de prazer como tal , pais tanto

os doentes quanta os saudaveis, os maus quanta os bons sentem

prazer real. Contudo, assim como uma representacao pode ser

falsa embora 0 representar enquanto tal seja real, tarnbem urn

prazer pode ser falso, sem que se negue a realidade da sensa-

~ao de prazer (Filebo, 36). Isto e mais que uma simples analo-

gia ; confere -se aqui ao prazer, em senti do estrito, uma fun~ao

cognitiva, pois revel a 0 ente como prazeroso, como objeto da

fruicao. Em virtude de seu carater "intencional", 0 prazer eacessfvel ao problema da verdade: urn prazer e falso quando 0

objeto visado por ele nao e de forma alguma prazeroso "em

si" (segundo as explicacoes do Filebo: quando so pode ser en-

contrado misturado ao desprazer). Porem aJIuestao da,verdade

concerne nao so ao objeto, mas tarnbem a_Qsuje ito do prazer.

Isto e possfvel mediante a inte rpre tacao platonica do prazer

como algo que per tence nao s6 a sensibilidade (Aisthesis), mas

tambern a psique (Filebo, 33 e ss.): em cada sensacao de prazer

sao necessarias forcas da alma (desejo, expectativa, memoria

etc.), de tal manei ra que 0 prazer afeta 0 homem inteiro. Refe-

rida a ele, a questao da verdade volta ao ponto em que se en-

contrava no G6rgias: os homens "bons" tern verdadeiros pra-

zeres , os "maus" falsos prazeres (Filebo, 40 b, c).

A vinculacao essencial entre a bondade do homem e a

verdade do prazer, em que desemboca 0 debate de Platao com

o hedonismo, converte 0 prazer num problema moral. Pois so-

bre essa vinculacao decide finalm ente a forma concreta da

"comunidade": 0prazer esta sujeito as exigencias da socieda-

de e entra no dominio do dever: dever para consigo mesmo e

para com os outros. A verdade do interesse part icula r e de sua

satisfacao e determinada pela verdade do interesse geral. A

concordancia entre ambas nao e imediata: ela e mediada pela

submissao do par ticular aos imperativos do universal . Dentro

de uma sociedade que prec isa da moralidade (como c6digo et i-

co objet ivo, universal oposto as necessidades e interesses sub-

jet ivos dos indivfduos) para exist ir , urn comportamento amoral

e intoleravel , pois des tr6i os fundamentos da ordem comunita-

ria. Q homem amoral viola 0 direito de uma coletividade (All-

gemeinheit) que, mesmo numa r n a forma, garante a conserva-

~ao da vida social, sem que esse homem se vincule a uma

colet ividade melhor , verdadeira, uma vez que permanece den-

tro da estrutura dada, "corrompida", dos impulsos e necess ida-

des. A moral e a expressao do antagonismo entre 0 interesse

parfu:ular e 0 geral. E 0 codigo daquelas reivindicacoes que

tern importancia vital para a autoconservacao da coletividade' '' ,

Enquanto os interesses par ticulares nao forem realmente con-

servados e superados (aufgehoben) na coletividade, tais reivin-

dicacoes aparecem ao indivfduo como ordens vindas de fora. 0

prazer, como satisfacao imediata do mero interesse par ticular,

quando entregue a si mesmo, tern de ent rar em conflito com 0

interesse da colet ividade que se autonomizou. Frente ao indivi-

duo isolado, a colet ividade representa 0 direito hist6rico~ Ela

exige a repressao de todo prazer que fira 0 tabu social funda-

menta l. Proibe a sat isfacao daquelas necessidades que abala -

riam os fundamentos da ordem estabelecida.

. A moralizacao do prazer e imposta pela existencia da so-

ciedade antagonica. E a forma historica sob a qua l essa socie -

dade conc iliou a sa tisfacao das necessidades e dos impulsos

particulares com 0 interesse geral . Tratamos em outro lugar da

funcao progress is ta dessa solucao para 0 desenvolvimento do

processo social de trabalho". 0 rotesto hedonista do indivf-

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duo isolado em seu interesse part icular e amoral. 0comporta-

mento amoral, 0 estar alem do bern e do mal, so pode ser pro-

gressista no interior de uma praxis historica que realmente

conduza para a lern da forma ja atingida nesse processo e que

lute por uma n~va e verdadeira universalidade, contra a univer-

salidade existente. So assim esse comportamento representa

mais que urn mero interesse particular. Isolados .lntahistcri-

ca por uma melhor organiza9ao das condicoes de vida , luta em

que 0 indivfduo tern que engajar-se em grupos e tarefas sociais

concretos, renunciando a sua amoralidade, a a9ao e 0 pensa-

mento amorais podem - se 0 sujeito tiver suficiente inde-

pendencia economica -, em grande, parte, escapar a moral.

Mas a le i social dominante conserva seu poder sobre 0 indivf-

duo amora l, t anto no que se refere as necessidades, quanta aos

obj etos de sua sa tisfacao, Estes surgiram sob tal l ei e somente

a modificacao desta poderia superar a mora l. A rebel iao amo-

ral , contudo, detern-se precisamente frente a essa esfera decis i-

va. No inte rior da ordem estabe lec ida, quer escapar-lhe. Nao

mais que desviando-se das contradicoes des ta ult ima, lUebe-

l iao amoral ermanece_r_ealmente alern do bern e do mal: esca-

pa tambern aquela moral que vincula a ordem estabelecida

com uma ordem mais racional e mais fe liz .

.1( A tentativa _ge salvar a objetividade dafelicidade, exposta

pela primeira vez.na.cntica.platonica do hedonismo, avanca

em duas direcoes para uma formulacao obje tiva do conceito de

felicidade. Por urn lado, a satisfa ao do in ivfduo, a melhor

'7' forma possfvel de sua existenc ia, ~ medida se undo "essen-

cia do homem", de tal maneira que as possibilidades.supremas

ofe recidas ao homem em sua si tua~ist6c ica .-tem prioridade

em termos de desenvolvimento e satisfacao frente a todas as

outras em que 0 homem nao e livre, mas permanece dependentedo "exterior". Por outro lado, essencia do homem so pode

desenvolver-se dentro_da .sociedade cnja organiZ39ao efetiva

decide acerca da realizacao daquelas possibilidades e, portan-

to, decide tarnbem acerca da felicidade. a etica platonica e

aristote lica ainda se mantem unidos os dois momentos: 0 pes-

al e 0 social. Na moral da epoca moderna tal como prevale-

ceu desde a Reforma, a sociedade.e.consideravelmemz eximi-

da de sua responsabi lidade no tocante as possibi lidades huma- ' \

_~as.: , estas devem subsistir exclusivamente no proprio Iindivfduo, n~ autonornia. A liberdade.incondicionada da

pessoa torna-se a medida do "bern supremo". Mas como no

mundo real essa Iiberdade e apenas uma liberdade abstratacoexistindo com a falta de liberdade social e a infelicidade.

tambern na e tica ideal ist a ela e ro ramat icamente separada da

fe lic idade, que ad uire cada v~ais 0 carater.de uma satisfa-

~a~ corp~al, i.miciOnal, de.mera.fruicao e que, po~to. pos- /

. SUi va lor inferior: "A razao, porem, j amais se de ixara persua-

d~rde .que tenha em si urn va lor a existencia de urn homem que

vrve sirnplesmente para gozar C . . . ) Somente atraves do que 0

?omem faz sem consideracao do gozo, em inteira liberdade e \ 1 J )independenternente do que a natureza tambem pass ivamente

poder ia proporcionar-Ihe, da ele urn valor absoluto a sua exis-

tencia [Dasein] enquanto existencia [Existenz] de uma pessoa;

e a fel icidade, com a inteira plenitude de sua amenidade, nao ede lange urn bern incondicionadov", Aqui se exprime 0 lado

severo do processo de disciplinamento da sociedade moderna:

a felicidade do indivfduo e, no melhor dos casos, uma cont in-

gencia sem valor na sua vida. Na determina~ao_dQ_henLSupre-

!TI0,_afelicidade e_lQtalmente subordinada a virtude: a felicida-

de de~r a enas a "consequencia moral mente condlcionada,

mas entretanto necessaria" da moralidade. So a aceitacao de

urn "fundamento determinante puramente intelectual" do agir

humano e de urn "criador inte ligfvel da natureza" permite uma

"conexao necessaria" ent re a eti ca da conviccao tSittlichkeit

der Gesinnung) e a fel icidade". A harmonia entre vir tude e fel i- \

cidade pertence as be las relacoes cuja reali zacao necessi ta do~m. /

Mas a maneira incondicional com que 0 idealismo ale-

mao aderiu ao princlpio da l iberdade , como condicao do bern

supremo, serve para enfat izar mais que nunca a conexao inter-

na entre fel icidade e liberdade. A forma concre~Jiberdade

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humana decide ~I !Lfoona da.felicidade humana. Ja a crf tica

ant iga ao hedonismo exprimira a cornpreensao do nexo ent re

felicidade e liberdade. A felicidade - como realizacao de to-

das as possibilidades do indivfduo ~ pressupoe a liberdade;

sobretudo e ela mesma, no fundo, l iberdade: na sua determina-

~ao conceitual' ambas aparecem finalmente como a mesma coi-

sa . Porque a Iibe rdade nao domina nas condicoes mate riai s domundo exter ior, porque aqui fel icidade e contingencia sao pra-

ticamente identicas, e porque, por outro lado, a liberdade do

indivfduo e mantida como condi ao d " m sUPL~~ a feli-

cidade nao podia res idir no mundo exter ior. Encontramos esse

motivo nas e ticas pla tonica e aristoteli ca. Tarnbem na crftica

moral da epoca burguesa 0 hedonismo foi recusado a partir do

concei to de libe rdade . Kant reieitou 0 _rinei io do prazer

como algo meramente contingente e con tradi t6rio com a auto-

nomia da pessoa, e Fichte qualificou 0 prazer como essencial-

mente " involuntar io", pois pressupunha uma harmonia entre 0

"mundo exterior" e os impulsos e necessidades do sujeito,

cuja rea li zacao nao dependeria da l iberdade deste ult imo. Nafelicidade do prazer 0 indivfduo esta, pois, "alienado de si

mesrno?". Se da por acei to que a fa lt a de libe rdade do suje ito,

na sua relacao com os "bens de felicidade" (Gliicksgiiter) do

mundo exter ior, e insuperavel e que, por conseguinte, a pessoa

livre se degrada necessariarnente quando a sua felicidade e

posta nessa relacao. Mas enquanto para a crft ica ant iga 0 bern

supremo devia tambem ser realm ente a felicidade suprema,

agora a falt a de l ibe rdade factual e ontologizada e a liberdade,

ass im como a felicidade, sao inter iorizadas, de tal maneira que

a fel icidade f ica exclufda, Ja nao se procurara mais incorporar

a feli cidade ao desenvolvimento autonomo da pessoa; a libe r-

dade abstrata, que coexiste com a falta de liberdade social, econvertida em virtude.

A satisfa ao dos im _ulsos e necessidades.adquirema re-

putacao: e1a se situa em todo caso abaixo da esfera hurnana,

com a qual a filosofia se ocupa. Os mandamentos morais po-

dem ser obedecidos sem que as necess idades sejam satisfei tas

alem de urn mfnirno fisiol6gico - esse princ fpio obteve, con-

tudo, seu reconhecimento f ilos6fico como uma das realizacoes

decisivas da sociedade moderna. 0 homem educado para a in-

ter iorizacao nao se deixara tao facilmente conduzir a luta con-

tra 0existente, por mais pobre e injus to que seja.

No conceito moral do bern supremo deve ser eliminada

uma inverdade do hedonismo: a mera subje tividade da fe lic i-dade . A fe li cidade permanece urn "elemento" do bern supre-

mo, mas esta submetida a universalidade da le i moral. A le i euma lei da razao: a fel icidade esta vinculada ao conhecimento,

sendo reti rada da dimensao do mero sentimento. A fe li cidade

real pr.essupQe.o conhecimento da verdade: que os homens sai-

bam 0 que at ingir como possibilidade suprema da existencia e

qual e seu verdadeiro interesse. Os indivfduos podem sentir-se

fel izes, exper imentar uma sensacao de felicidade e, no entanto,

nao serem felizes, pois desconhecem completamente a feIicidade

real. Porem, cQ!!!Q.julgar a reaIidade efetiva da felicidade? Qual

e a Instancia da sua verdade? Na crfti ca ant iga do hedonismo

essa questao converteu-se na uestao pol ftica da correta orga-nizacao da p6lis. A e tica c rista da Idade Media considerou essa

questao.resolzida a traves da justica divina. A mora l rigori st a

da e~sa transformou a Iiberdade em instancia da ver-

dade, mas como liberdade abstrata do ser racional, perante 0qual

a fel icidade permanece exter ior e contingente. A interpretacao

mora l da feli cidade e sua suj eicao a uma lei universa l da razao

deixaram subsistir, tanto 0 isolamento essencial da pessoa au-

tonoma. quanta sua limitacao factual.

A teoria cntica" chega a questao da verdade e da univer-

salidade da felicidade ao explicar os conceitos com os quais

procura determinar a forma racional da sociedade. Com efeito,

uma dessas determinacoes, ci rcunscrevendo a associacao dehomens livres, con tern a re ivindicacao expl fci ta de que c a da ,

indivfduo deve ter par ticipacgo no produto social segundo suas

necessidades. Com 0 desenvolvimento completo dos indivf-

duos e das forcas produtivas, a sociedade pode escrever em

suas bande iras: "de cada urn segundo suas capacidades, a cada

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urn segundo suas necessidades". Aqui surge novamente a anti-

ga definicao hedonista que ve a feli cidade na sa ti sfacao plena

das necess idades. As necessidades dos indizidunsa.serem sa-

ti sfe it as devem tornar- se princfpio regulador.. do pmcesso de

trabalho. Mas as necessidades dos homens liberados e a frui-

crao ao satisfaze-las terao uma forma diferente da que tern as

necessidades e a fruicao sob a nao-liberdade - mesmo quefis iologicamente sejam as mesmas. Nurna organizacao social

que opoe os indivfduos isolados em classes uns contra os ou-

tros e abandona sua liberdade particular ao mecanismo de urn

sistema economico incont rolado, a nao- libe rdade atua ja nas

necessidades e a inda mais na fruicao. Necessidades e fruicao,

ta is como sao aqui , nem sequer ex igem a liberdade universal .

o desenvolvimento das forcas produtivas, 0 crescente domfnio

da na tureza, a extensao e 0ref inamento da producao de merca-

dorias, 0dinheiro, a reificacao universal criaram tambem, com

as novas necess idades, novas possibilidades de fruicrao._Mas

perante essas possibilidades dadas de fruicao encontram-se ho-

mens completamente incapazesde fruir, tanto objetivamente,em virtude de seu status economico, quanta subjetivamente,

em virtude de sua educacao,e disciplinamento. Da discrepancia

entre 0 que existe como objeto de possfvel fruicao, e a mane ira

como esses obje tos sao entendidos, ap reend idos e uti li zados,

surge a questao da verdade da condicao de fel ic idade (Glucks-

beziehung) nesta sociedade: os atos que se inclinam para a

fruicao nao chegam a realizar sua intencao, e mesmo quando

se realizam permanecem falsos.

A fruicao e uma at itude para com as coisas e os homens.

As primeiras (a menos que estejam colet ivamente disponfveis

gracas a natureza ou mediante uma regulamentacao social) sao

lJl~adori~fveis segundo.o.poder de compra. A maiorparte da humanidade so tern aCeSSOa parte mais barata dessas

j nercadorias. Como mercador ias e las se tomam obj eto de frui -

crao e sua origem se conserva nelas: mesmo a fruicao possui

carater de classe. 0 barato nao e tao born quanta 0 caro_,__f,.s

rel~oes entre os homens - precisamente enquanto permane-

182

cern exterio res ao processo de t raba lho - sao essenc ialmente

rela oes entre membros da sma classe. Para a maioria dos

homens, 0 parceiro na fruicao sent tarnbem 0parceiro na mise-

ria da mesma classe. Suas condicoes de vida saQ urn, palco

mesquinho para a feli cidade . A pressao constante sob a qua l as

gfandes massas precisam ser mantidas para areproducao dessa

sociedade s6 fez aumentar com a acurnulacao monopol ista dariqueza. Todo predomfnio da fruicao poria em perigo 0 disci-

plinamento necessario e dif icultaria a ordenacao exat~ e ~egura

das massas, a qual mantem em funcionamento a maquma ~o ).!todo. Para a regulacao economica da frui ao intervema polfcia -

e a [ust ica . 0 razer aspjra essencialrnente a sua pr_6priajnten-

s~finamento. 0 desenvolvimento da person~lidade

nao deve ser apenas urn desenvolvimento da alma. A sociedade

industrial diferenciou e intensificou 0 mundo objetivo de tal

maneira, que somente uma sens ibil idade diferenciada e inten-

si ficada ao extremo pode capta -lo. A tecnica modema contem

todos os meios para ext rair mobi lidade, beleza e elastic idade

das coisas e dos corpos, para traze-los mais perto e toma-lesu til izavei s. Ao mesmo tempo que as necessidades correspon-

dentes a essas possibilidades desenvolveram-se tambem os or-

gaos sensfve is ca~azes ~e cap ta-las. 0 que 0 home~, na CiVili-

racao desenvolvida, e capaz de perceber, sentir e fazer

corresponde a riqueza do mundo recentemente desc~bert_a .

Mas a ut il iza ao dessas maiores capacidades e sua sati sfacao-

so sao acessiveis aos grupos com maior poder de compra. 0

·desenvolvi~ento da sensibilidade e apenas uma parte do de-

senvolvimento das forcas produtivas; a necessidade de acorren-

ta-las funda-se no sistema soc~al anta?onico em que esse .de- "

senvolvimento se realizou. E ossfvel educar de muitas /

mane iras as.camadas dominadas para d istra t-la s e criar-lhesubstitutos de satisfacao; 0 esporte e urn grande numer~ ~e I

diversoes populates autorizadas cumprem aqui seu papel.hl.st~-

rico. Nos Estados autoritarios 0 ter ror sadico contra os rrurru-

gos do regime encontrou possibilidades insuspeitas de d~s~ar-

ga organizada. No cinema os pequenos podem partrcrpar

~rk \ 9?~ 183

~L~ )U:M~

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cotidianament 0 brilho do grande mundo, mas com a cons-

ciencia de gue tudo isso s6 acontece no filme e de que ta rnbern

ali exi ste brilho, amargura e preocupacao, culpa e expiacao e 0

triunfo do bern. 0processo de trabalho, cujo resultado 15a mu-

tilacao e 0 embrutecimento dos orgaos do trabalhador , garante

que 0 desenvolvimento da sensibilidade, nas camadas infer io-

res da piramide social, nao va alem da medida tecnicamenteexigida. 0que entao ainda 15permitido como fruicao imediata

15circunscrito pelo c6digo penal.

Mas nao 15somente para as massas que a fruicao nao pode

proporc ionar aqui lo a que tende: a sat isfacao de todas as possi -

bil idades objet ivas e subjetivas. Ali onde a rela ao social domi-

nante 15a re la ao ent re os homens como possuidores de rnerca -

dorias, e ali onde 0 valor de cada mercadoria 15determinado

pelo tempo de trabalho abstrato utilizado, a fruicao em si nao

tern valor. Pois nesta sociedade a frui~sla separada.do tra-

balho: na fruicao 0 indivfduo nao dispende nem reproduz ne-

nhuma forca de t rabalho; e le se comporta e se entrega a fruiyao

como pessoa privada . Se s6 0 trabalho abstrato cria 0 valor que

rege a equidade da troca, 0 prazer nao pode const itui r va lor

a lgum. Se assim fosse, a j usti ca socia l ser ia posta em questao e

se revelar ia mesmo como injus tica f lagrante. A legit imacao do

prazer como valor poria realmente de ponta-cabeca 0 que "15

apresentado atualmente ao lei tor de jomais" . "0 valor de uma

coisa 15,para todo homem moderno, 0 valor do trabalho neces-

sar io para a producao des ta coisa. 0valor esta, po is, co lado ao

suor do trabalhador , !ecobrindo a espada flamejante que separa

a cultura do parafso. E perigoso associar 0prazer e 0desprazer ao

valor ; pois neste caso podemos nos perguntar se aqueles que pro-

duzem valores tern mais prazer ou mais desprazer . E poder-se- ia

chegar a pensar que 0 valor poder ia estar em relacao inversa ao

prazer't'", 0 perigo dessa associacao de ideias ja era conhecido

no infcio da soc iedade burguesa: a fal ta de va lor do mero prazer

foi inculcada, por todos os meios, na consciencia dos indivfduos.

Em parte alguma se most ra tao cla ramente a conexao en-

tre a desvalorizacao da fruiyao e sua justificacao social pelo

184

trabalho do que na interpretacao do prazer sexual. Este 15-

pragmatica ou moral mente - racionalizado e aparece como

simples meio para urn tim que Ihe 15exter ior, a service da docil

subordina~ao do indivfduo a forma existente do processo de

trabalho. Como valor higienico, 0prazer sexual.deve contribuir

para a saude do corpo e da alma, que favorece 0 funcionamen-

to normal do homem no inter ior da ordem estabelecida. Segun-

do Spinoza, "0 prazer dos sentidos" s6 pode ser "desejado

como meio", sob retudo como meio higienico: "Devemos en-

tregar-nos aos prazeres s6 na medida em que servem para man-

ter a saude,,20. Leibniz 'explica que a "volupia dos sentidos _

deve ser usada, segundo as regras da razao, como alimento,

medicamento ou forti ficante ,,21. Fichte faz uma assoc iacao

imed iata ent re a sexualidade e a renovacao do processo de tra-

balho social: "A verdade ira hier arquia , a honra e a dignidade

do homem, muito par ticularmente na sua existencia moral men-

te natural, consiste, sem diivida, na sua faculdade de criar, a

partir de si mesmo, novos seres humanos, novos senhores da

natureza: estabelecer , para alem de sua existencia terrena e por

toda eternidade, senhores da natureza . .. A desonra absoluta, 0

abandono da verdadeira honra humana e viril consistiria em

fazer uso do privilegio que Ihe concedem estas faculdades,

transformando-as num meio de prazer dos sentidos. 0que esta

ac ima de toda natureza e dest inado a reproduzi r quem a domi-

na tornar-se-ia alga secundario, subordinado a urn de seus im-

pulsos, 0 do prazer . .. " . Es ta desonra absoluta 15a "Iuxiir ia - 0

I,lSO da faculdad~ de procriacao para 0 mero prazer, sem levar

em conta seu tim nem sua vontade consc iente'Y', So quando as

relacoes sexuais tern 0 tim expresso de procr iar novas forcas de

trabalho para 0 processo de dominacao social da natureza , 15a

sua fruicao reconhecida como digna do homem. Os repre-

sentantes pos teriores da etica idealis ta afastam-se dessa fran-

queza. Hermann Cohen considera a simples procriacao de se-

res humanos urn processo "animal" e exige a purificacao do

prazer sexual mediante urn tim verdadeiramente moral: s6 0

amor fundado na t idel idade eleva a re lacao sexual a esfera da

185

t

,h.

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moral e transforma 0 "amor sexual" num "trace essencial da

vontade pura de formar a aJJ1oconsci~n._ciamoral ,,23. Na fase

au torit ari a da ordem burguesa, a vinculacao do amor a forma

do matrimonio se apresenta em contradicao aberta com a ne-

cessidade de 0Estado possuir urn for te exercito de reserva rni-

litar e economico, A "experiencia amorosa" nao esta "sem

mais vinculada ao matr imonio" . Mas 0 amor deve "ser pressu-posto e condicao para que possa haver matrimonio e, dentro . do

matrimonio, filhos". 0 . fundamental nao e a rocria ao en-

quanta tal, mas a procria~ao de filhos~mpreendedores e ute is;

"a mglene racial, a antropologia social e outras disciplinas me-

dico-antropologicas" ref letem "de maneira altamente merito-

r ia sobre valiosos pontos de vis ta da reproducao humana'P',

A entrega nao racionalizada, nao sublimada (unverkliirte)

as re lacoes sexuai s const ituiri a a mais poderosa ent rega a frui -

~ao enquanto ta l e a total desvalorizacao do trabalho pelo t ra-

balho. Nenhum ser humano poderia suportar internamente a

tensao entre 0 valo r proprio do t raba lho e a l ibe rdade da frui -

~ao: a desolacao e a injust ica das relacoes de trabalho pene tra -

ri am vivamente na consciencia dos indivfduos e tornariam im-

possfve l sua integracao pacffi ca ao si stema soc ial do mundo

burgues.

A funcao do trabalho no inter ior dessa sociedade determi-

na sua atitude a respeito da fruicao: esta nao pode ter sentido

enquanto tal e permanecer nao racionalizada; em vez disso,

deve receber seu va lor de outro lugar. "Prazer ( ... ) e desprazer

~scapam a um'!..illstific1!~o, a uma fundament'!.£_ao pela vonta-

de de t raba lho, antes est imulando essa vontade para 0 traba-

Iho", que entao estar ia inteiramente si tuado sob 0 princfpio da

sat isfacao das necessidades. "0 hedonismo e 0 limite de uma

autojust if icacao da vontade de trabalho . .25 e contradiz os inte -

resses fundamentais da ordem estabelecida. A inter iorizacao e

espiritualizacao (Beseelung) mediante as qua is a fruicao e ele-

vada ao nfvel da cul tura , a qual aj uda a reproduz ir 0 todo, de-

monstrando assirn seu va lor social , e sta suje ita a essa conv ic-

186

~ao . Nos produ tores imediatos, a l imi tacao da fruicao, sem ne-

nhuma mediacao mora l, atua imedia tamen te por meio da jor-

nada de trabalho, que deixa somente 0 curto "tempo de lazer"

para a fruicao, pondo-a a service do descanso, de nova acurnu-

la~ao de energias e de forca de trabalho. Os que usufruem do

processo de trabalho sao afetados pela mesma valoracao,

Como estes, ao desfrutar, fazem e possuem algo que nao cria

propriamente valor algum, produz-se uma especie de senti-

mento social de culpa que conduz a uma racionalizacao da

fruicao, Enquanto representacao, descanso, exibicao do bri lho

daqueles que se encontram no topo e que tern a maior respon-

sabil idade, a fruicao e executada quase como uma carga ou urn /

dever.

A construcao do sentimento social de culpa e urn em-

preendimento decisivo da educacao. A l ei dominante do valor

re fle te-se na conviccao continuamente renovada de que cada

urn, inteiramente deixado a si mesmo, precisa ganhar a vida

numa luta de concorrencia generalizada, mesmo que seja so

para poder continuar a ganha-la, e que cada urn recebera se-

gundo a forca de trabalho gasta. Assim nao se pode ganhar a

felicidade. 0 fim do trabalho nao e a felicidade, nem sua re-

compensa a fruicao, mas 0 lucro ou 0 salario, isto e. a possibi-

lidade decont inuar trabalhando . Para a manutencao de urn pro- '

cesso de trabalho como este, aqueles impulsos e necess idades

~eriam destruir a relacao normal entre trabalho e fruicao

(como perfodo de nao-trabalho) ~ as ins ti tui~6es que g_arantem

essa rela~ao (como a famflia eo casamento) recisam ser des-

viados ou rep rimidos. Esse desvio e essa rep ressao nem sern-

pre estao l igados ao progresso cul tura l. Certos impulsos e ne-

cessidades so se tornam falsos e destrutivos em virtude das

form as fal sas para as quai s sua sat isfacao e canal izada, ao pas-

so que 0 estagio alcancado pelo desenvolvimento objet ivo per-

mitiria sua verdadeira satisfacao - verdadeira porque pode-

riam realizar-se naquilo a que tendiam originalmente: a urn

prazer "sem mistura". E a cruel dade reprimida que leva ao

terror sadico e a auto-reruincia reprimida que leva a submissao

187

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mcsoquista. Deixados na sua verdadeira intencao, como modos

do impulso sexual, podem acabar num prazer maior, nao so-

mente do sujeito, mas tambem do objeto. Eles nao estao mais

vinculados a des truicao" . Mas precisamente a maiordiferen-

c iacao do pr~er ~ in tole ravel numa sociedade que necessit a da

forma reP!i_mida da sat isfacao de tais necessidades. Prazer

maior signifi caria imedia tamente maior liberdade do indivi -

duo, pois aquele exigiria liberdade na escolha do objeto, no

conhecimento e na realizacao de suas possibilidades, l iberdade

no tempo e no espaco. Todas essas reivindicacoes infringem a

lei vita l da sociedade existente . Em vi rtude da intima vincula -

~ao entre fel icidade e liberdade, 0 tabu do prazer foi manti do

com a maior tenacidade, distorcendo a colocacao das questoes

.<,/ e as respostas, ate mesmo nas fileiras da oposicao historica

cont{a a ordem estabelecida",

\ )A de terminacao da fel icidade como estado de sati sfacao

completa das necessidades do indivfduo e abstrata e incorreta ,na medida em que acei ta como dado ul timo as necessidades na

sua forma presente. As necessidades, enquanto tai s, nao estaoa lern do bern e do mal, nem do verdadei ro e do falso. Enquan to

estado de coisas historico, estao sujeitas a pergunta sobre 0 seu

"direito": sao e las de tal t ipo que sua sa tisfacao pode rea li zar

as possibilidades objetivas e subjetivas do individuo? Para

muitas formas de necessidades, precisamente aquelas caracte-

rfs ticas do estado dominante da humanidade, esta pergunta, em

relacao ao estagio ja alcancado pe lo desenvolvimento social,

dever ia ser respondida negativamente, pois esse estagio perrni-

te uma felicidade mais verdadeira que a alcancada hoje pel o s

proprios homens. 9prazer na humi lha~ao dos outros e na pro-

1 p_riahumilha~ao sob uma vontade mais for te, 0prazer nos nu-

I merosos subs ti tutos da sexualidade, no sacrificio sem senti do,no heroi smo da guerra e, por conseguinte, urn fa lso _..Qfazer,

pQ!3ue ~mpulsos e necessidades ~ com ele ses;;-tisfazem

/ tornam os homens menos.Iivrescmais.cegos e.rnesquinhos do

~ que preci sa riam ser. Sao impulsos e necessidades dos indivi-

duos form ados numa sociedade antagonica. Na medida em que

/88

nao deveriam desaparecer inte iramente com uma nova forma

de organizacao social, poder-se- iam pensar maneiras de satis-

faze -los em que rea lmente as ext remas possibi lidades dos ho-

mens se desenvolvessem de manei ra fe liz . Essa l ibe rtacao das

possibilidades tern a ver com a praxis social; aquilo que os

homens podem empreender com os orgaos desenvolvidos dos

sentidos e da alma e com a riqueza criada pelo seu trabalho

para alcancar 0 maximo de feli cidade depende dessa praxi s.

Assim concebida, a felicidade nao pode mais ser algo mera-\

mente subjetivo: ela entra na esfera do pensamento e do agir

comunitario dos homens.

Quando as forcas prod utivas desenvolvidas sao utilizadas

pe la sociedade apenas de forma restri ta, se fal se ia rn nao so as

satisfacoes, como tambern as necessidades. Na medida em que

superam 0mfnirno necessario a existencia, manifestam-se so-

mente de acordo com seu poder aquisitivo. Nelas esta viva a

situacao de classe , em especial a situacao do individuo no pro-

cesso de trabalho. Essa si tuacao formou os orgaos (corpora is e

espiri tuai s) e as capacidades dos homens, assim como 0 hori-

zon te de suas reivindicacoes, Visto que estas aparecem como

necessidades somente na sua forma mutilada, com todas as

suas repressoes, remincias, adaptacoes e racional izacoes, podem

normalmente ser satisfeitas no interior do quadro social estabele-

cido; porque essas reivindicacoes ja nao sao livres enquanto tais,

e possfvel a falsa felicidade da sua realizacao na nao-liberdade.

Na teoria cntica, 0 conceito de feHcidade nao tern mais

n_~_aa xer,som 0 conformismo e 0 relat ivismo byrgpeses : ele e

uma parte da verdade universal , objet iva, valendo para todos os

indivfduos, na medida em que todos os in teresses destes estao

af preservados. S6 frente__l.possibilidade historica da.liherdadeuniyersal tern sentido qualificar como falsa a felicidade factual,

real rnente sent ida ate hoj e na s , cond ico e s de existencia, E 0

interesse do individuo que se exprime nas suas necessidades, e

, a sat isfacao destas corresponde a esse in teresse. De qualquer

maneira e uma ben~ao que exista fe lic idade numa soc iedade

/89

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III'

dominada por leis cegas: Q indivfduo ainda pade sentir-se se-

gura e nao cair nQdesespero total. A moral rigorista pecacon-

tra a forma mesquinha na qual a humanidade sobrexixeu: em

ogosiyao a ela todo hedonismo tern razao, S6 hoje, no ultimo

estagio do desenvolvimento do existente, quando amadurece-

ram as forcas objetivas que impulsionam para uma ordem su-

perior da humanidade, e s6 em conexao com a teoria e a praxis

hist6ricas vinculadas a essa transformacao, pode a felicidade,

junto com a totalidade do existente, tornar-se tambern objeto

da crftica, Fica claro que os indivfduos, educados para serem

integrados ao processo de trabalho antagonico, nao podem ser

jufzes da sua felicidade. Eles estao impedidos de conhecer seus

verdadeiras interesses. Assim, pode suceder que qualifiquem

como feliz a sua situacao e que, sem coercao exterior, aceitem

o sistema que os oprime. ili resultados das votac6es RQPulares

modernas demonstram que os homens. se,parados a verdade

pos.siYcl,...pode.m-serJeyadosotar contr~smos. Enquan-

to os indivfduos virem0

seu interesse apenas no progressodentro da ordem estabelecida, tais votacoes sao faceis para os

aparatos autoritarios. 0terror apenas reforca 0 engano em que

os governados se encontram. A invocacao do interesse e falsa.

Perante a possibilidade de uma constituicao real e mais

feliz da humanidade, 0 interesse do indivfduo nao e mais ne-

nhum dado ultimo: existem verdadeiros' e falsos interesses

mesmo no que concerne ao indivfduo. Seu interesse factual,

imediato, ja nao e seu verdadeiro interesse. Nao e que 0 verda-

deiro interesse seja aquele que, devido ao menor risco e as

maiores possibilidades de fruicao, exija 0 sacriffcio de urn in-

teresse imediato. Urn calculo de felicidade desse tipo mantem-

se dentro do quadro geral do falso interesse e pode, no melhordos casos, facilitar a escolha da melhor felicidade falsa. 0ver-

dadeiro interesse do indivfduo nao ode consistir em querer a

sua propria mutilacaa nem a dos outros, Nem sequer no verda-

deiro interesse daqueles cujo poder s6 pode ser mantido a custa

dessa mutilacao. No estagio de desenvolvimento alcancado 0

190

poder nao pode mais desfrutar do mundo por ele dominado: no

instante em que ele parasse de trabalhar, de renovar continua-

mente 0processo sangrento e extenuante de sua mera reprodu-

yao, estaria perdido. Tambern para el~ ai?~a ha al~o a ~anhar.

Que 0 verdadeiro interesse do individuo seja 0 mteresse-,

da liberdade, que a real liberdade individual possa coexistir

com a real l iberdade universal , meihor, que s6 seja possfvelcom eia, e que a felicidade consista em ultima instan.cia na

liberdade - tudo isto nao sao afirmacoes da antropologia filo-

s6fica sobre a natureza do homem, mas descricoes de uma si-

tuacao hist6rica que a humanidade obteve para si mesma e

luta com a natureza. Os individuos, cuja felicidade deoende do

usa dessa situas-ao,cresceram na escola do capitalismo: a alta

intensificacao e diferenciacao de suas capacidades e de seu

mundo correspondem a obstrucao (Fesselung) social desse de-

senvolvimento. Enguanto a falta de liberdade estjyer escondidt:::"

~ssiQ_ades ~nao somente n~sua sati~f~yao,aqpelas tern

ue ser l iberadas primeiro. Isto nao consntui nenhum ato de

educacao, de renovacao mor~l do homem,_m~s ~m p~o~essoeconomico e polftico. qs melDSde producao a d1SpOSl~1l0a

cQletividade. a reorganizacao do processo de produ£ao visando

as necessidades do conjunto, a redus-aodajornada de trabalho,

~ipayao ativlUios individuos_na admjnistra~ao do todo,

pertencem ao conteudo desse proce~so. Com a abertura. de to-

das as possibilidades subjetivas e objetivas de desenvolvirnento

existentes, as pr6prias necessidades se transformarao: aqu~l~s

baseadas na coercao social da repressao, na injustica, na SUJel-

ra e na miseria teriam que desaparecer. Mas nada impede que «:ainda existam doentes, loucos e criminosos. .Q Tejnnda neces-

sidade continua exist indo. assim como a pr6pria luta.com a

l\i!!ureza e_el}!reoLhomens. Assim, tam~m .a,reprod~yao do

todo continuara vinculada as privacoes do indivfduo; .QJD.ter~s-e

se particular nao cojncidira imediatam~nte com_o-v~rdadeiro

~e. Contudo, a diferenca entre 0 In~eressepartlcul~ e 0

interesse verdadeiro e algo diferente da diferenca entre 0 inte-

191

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resse par ticular e 0 interesse de uma universalidade autonomi-

zada, que oprime os indivfduos. Em sua rela~ao com 0 univer-

\ sa l, 0 indivfduo se conduzini realmente com rela~ao a yerdade:

r _ l~ivindica¥6es e decis6es do un~v~rsal pres~rvaraQ ~nteres-

~e do indivfduo e, por fim, sua febcldade se ra beneficiada , Se ,

alem disso, 0verdadeiro interesse precisar ser representado por

1 uma lei universal que profba necessidades e satisfacoes deter-

rninadas, por tni s dessa lei ja nao estani 0 interess~1W"ti ular

de grupos que mantern seu poder contra a pr6pria colet ividade

a traves da usurpa£ao , mas a decisi !o racional de individuos li-

\v res. Uma vez at ingida a maioridade , os homens terao que en-

lfrentar suas pr6prias necessidades. Sua responsabilidade sera

infinit amente maior, pois j a nao te rao 0 fa lso prazer da segu-

ranca masoquis ta sob a protecao poderosa de urn poder hetero-

nomo. A vincul~aQ intema, rea l (nao apenas estabelecida num

alem) entre dever e fel icidade, da qual duvidava a etica idealis -

t a, s6 e possfvel na liberdade. Era ao que Kant visava ao fundar

- I 0 conce ito de dever na autonornia da pessoa. Mediante a l irni -

I : t tacao a liberdade do querer puro, a autonornia lirnita-se a si

U V ' mesma em favor de uma ordem social que s6 pode adrnitir aV

- - -

autonornia na sua forma abstrata.

Se os indivfduos, t endo at ingido a maioridade, re jei ta s-

sem como maus deterrninadas necessidades e urn deterrninado

prazer, isso ocorreria a partir do conhecimento autonomo do

seu verdadeiro interesse' a preserya9iiQ da ibe[dade_~al.

Por tanto:isso ocorrer ia no interesse da sua pr6pria fel icidade,

que s6 pode consist ir na liberdade un iversa l, como rea lizacao

de todas as possibilidades desenvolvidas. 0 antigo de~o do

~ismo era peRSar conjllntamente a felicidade..e a verdade.

o problema era insohivel: enquanto uma sociedade anarquica,nao-livre decidia sobre a verdade, esta so podia consistir no

interesse par ticular do individuo isolado ou nas necess idades

da universal idade autonomizada. No primeiro caso, perdia-se a

sua forma (a universalidade); no segundo, seu conteiido (a par-

ticularidade). ~dade, com a qual-e-indWiduo Iiberado se

192 L

ire.~ion.a, n: fel icj,d~de. e tanto universal qllal l1lLrumi£ular. 0

sujeito ja nao esta isolado no seu interesse contra os outros

sua v ida pode ser fel iz para a lem da contingencia do momento,

porque suas condicoes de existencia ja nao sao dete rminadas

por urn processo de trabalho que s6 cria riqueza mediante a

manutencao da mise ria e da privacao , mas mediante a auto-ad-

mini st racao rac iona l do todo, na qual 0 sujeito participa ativa-

men te. 0 indiv fduo pode comportar-se em relacao aos outros

como se fossem seus iguais e em relacao ao mundo como se

Fosse seu mundo, pois este ja nao Ihe sera estranho. A com-

preensao recfproca ja nao sera dorninada pela infel icidade, pois

a inteleccao (Einsicht) e a pa ixao nao entra rao mais em confli-

to com a forma reificada das relacoes humanas .

A felicidade universal pressup6e 0 conhecimento do ver-

dadeiro interesse: pressupoe que 0processo de vida social seja

adrninistrado de tal maneira que a liberdade dos indivfduos

possa harmonizar-se com a conservacao do todo, com base nas

condicoes objet ivas dadas, his t6ricas e naturais. A conexao en-

tre fel ic idade e conhecimento foi ocul tada com 0 desenvolvi-

mento dos antagonismos soc ia is; a razao abst rata dos indivf-

duos isolados nada pode certamente com respei to a felicidade

entregue a contingencia, Porem, este mesmo desenvolvimento

tambern suscitou as forcas que podem restabe lecer aquela co-

nexao. Para os produtores imediatos, 0 isolamento no interior

da nao- libe rdade ja foi em grande parte superado. 0 indivfduo

nao tern aqui que conservar nenhuma propriedade que s6 pode

ser desfrutada a custa dos outros; seu inte resse nao 0 impele a )cQncorrencia...1lem a uniao de interesses or sua vez fundados ".

!@ concorrencia, mas a uma solidariedade combativa que luta, '-

e.Q1primeiro lugar, a enas ~Io interesse de uOJ. ..g!l!0 socialparticular por condi~6es de vida melhores e mais dignas .do

homem. Mas esse interesse par ticular nao pode ser perseguido

sem tornar melhores e mais dignas do homem as condicoes de

vida do todo e sem liber tar a colet ividade. Na fase monopolis ta

da sociedade burguesa, em que 0 interesse geral e suficiente-

193

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mente (offenbar genug) preservado nos grupos que lutam pela

rnudanca, os esforcos de quem se aproveita da ordem estabele-

cida sao dir igidos para a ruptura dessa solidariedade. A funcio-

narizacao (Verbeamtung), a burocratizacao, 0 aumento das di-

ferencas sala riai s e a co rrupcao imediata dos trabalhadores

f incarao oposicoes tarnbem entre essas camadas. 0 verdadeiro

interesse destas nao exige modificacao de ctetalhe, mas uma nova

configuracao do processo de producao, Aqui nao e mais a ra-

zao universal que, por tras das cos tas dos indivfduos, ludibria 0

interesse particular, mas justamente 0 contrario: 0 interesse

particular e a forca a tiva e cognoscente do processo, atraves da

qual a universa lidade avanca. S6 neste ponto da soc iedade "a

verdade das satisfacoes particulares e a satisfacao universal

que, enquanto felicidade, a vontade pensante poe como seu

fim, ,28. Hegel ass inalou que s6 mediante 0 interesse particular

pode realizar-se na his t6ria 0 progresso universal , poi s s6 0

interesse particular pode levar 0 indivfduo a paixao da luta hi s-

t6rica. "Q interesse particular da paixao e portanto inseparavel

da atividade do universal ; pois 0 universal resulta do particular

e d~terrninado, e de sua negayao,,29. Quando essa inseparabili-

dade s6 existe mediante a asnicia da razao, 0 resultado esta

ligado a infel icidade dos indivfduos: na paixao com que perse-

guem seus interesses parti cula res, e les se desgas tam e se des-

troem. Hegel disse que era urn "horrfvel consolo" que "os

homens na hist6ria nao foram 0 que se chama fel izes ,,30. Se

nao for possfvel nenhuma forma superior da razao hist6rica

diferente da organizacao antagonica da humanidade, entao esse

horror e inevitavel. E evidentemente verdade que os homens

nao visam a fe lic idade, mas sempre a fins determinados, cuja

rea lizacao traz consigo a fe lic idade. Nos fins dete rminados, a

que se asp i ra mediante a luta solidaria por uma sociedade ra-

cional, a fel icidade nao e mais simplesmente uma contingencia

simultanea. Na nova ordem das pr6prias condicoes de existencia

que se reivindica, a felicidade deixa de ser apenas urn estado

emocional subjetivo, ja que nas necessidades liberadas dos sujei-

tos atua a preocupacao geral pelas possibilidades dos indivfduos,

194

Segundo Hegel, a situacao tragica dos personagens da

hist6ria universa l consi ste em que a luta pela universal idade

superior do futuro e , no presente, a causa de grupos e indivf-

duos part iculares. Eles atacam condicoes sociais nas quai s -

ainda que mal - a vida do todo se reproduz; lutam contra uma

forma concreta da razao, sem que tivesse s ido empir icamente

demon strada a praticabilidade da forma futura que repre-sentam. Eles infringem aqui lo que , pelo menos dentro de cer-

tos I imites, se confirmou. Sua racionalidade opera necessaria-

mente numa forma particular, irracional, explosiva, sua crftica da

decadencia e da anarquia aparece como anarquica e des trut iva.

Os indivfduos que se submetem de ta l mane ira a Ideia, que sua

existencia esta impregnada por ela, sao intrataveis e teimosos.

A consciencia comum nao·sabe fazer nenhuma dis tins :ao entre

eles e os criminosos, e de fato, na ordem estabe lec ida , sao cri-

minosos como S6crat~ Atenas3J• A universalidade e a ra-

zao tomaram-se sua pr6pria paixao, 0 conformis ta formalista,

para quem tanto vale uma necessidade par ticular quanto outra,

sabe que sao cara teres egofstas e perigosos. Ve como a crfti ca

da aparencia (Schein) da liberdade no presente e 0 conheci-

mento da realidade futura da liberdade ja constituem a felicida-

de deles, pois a separacao brutal ent re 0 aqui e 0 ali, 0hoje e 0

amanha, 0 sentimento do eu exclusivo e repugnante da existen-

cia burguesa encontram-se neles superados - mas nao pode

cornpreende-lo. Nao importa 0 que diga, sao para ele exalta-

dos, no melhor dos casos rel igiosos, pois, pensa 0conformista,

os homens, po r na tureza, tern sempre em mente seu inte resse

privado. S6 poucos percebem sua situacao paradoxa!.

Assim como a forma da fel ic idade alcancavel s6 pode ser

conservada pelos interesses par ticulares daquelas camadas so-

c iai s cuj a emancipayao j~ao conduzi ra somente a cknninayao

titeresses par ticulares contra a universal idad_eLmas a eman-

clQayao geral da humanidade, 0mesmo sucede com 0 conheci-

mento rreto de que essa forma necessita, Esse interesse exi-

ge uma ideologia que oculte a forma da verdade, para se

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justificar como universal. Esse mesmo interesse implica em

pensar ate 0 fim todas as possibilidades realizaveis (0que na

epoca burguesa encontrou seus lirnites sociais no perigo de

uma t ransformacao materia l do todo) e em mante r 0 objetivo

da sua realizacao. Com 0 conhecimento correto se perderia

ta!!lbem a felicidade. e a necessidade de_uma situ§ao.J~con-

trolada obter i. !! n~mente seu poder conti '! ..ge~te sobre ..?~ ho-

~s. A liberdade do conhecimento e uma parte da liberdade

rea l que so pode ser compat ive l com as deci soes comuns e com

a obediencia ao que foi reconhec ido como verdadei ro. 0 papel

essenc ial da verdade para a fe lic idade dos indivfduos faz apa-

recer como insuficiente a determinacao da felicidade como

prazer e fruicao. Se 0 conhec imento da verdade nao est iver

~

mais vinculado ao conhecimento da culpa, da rniseria e da in-

justi ca, ja nao prec isara permanecer exter ior a fel icidade que

permanecia entregue as relacoes imediatas , sensfveis. Para urn

conhecimento realmente sem culpa, tarnbem podem as rela~s

mais pessoais dos homens estar abertas a fel icidilde: talvez etasconstituam de fato aquela comunidade livre na vida, da qual a

moral idealista esperava 0 desenvolvimento supremo da indivi-

dual idade. 0 conhec imento nao perturbani mais 0m:azer; tal-

vez possa ate mesmo se tornar prazer, 0 que a antiga ideia do

Nous tivera a ousadia de ver como a determinacao ultima do

conhecimento. No espantalho do homem entregue desenfrea-

damente a fruicao, que se abandonaria somente as suas neces-

sidades sensfvei s, ainda se oculta a separacao entr e as forcas

produtivas espirituais e materiais, entre 0 processo de trabalho

e 0 processo de consumo. Superar essa separacao faz parte dos

pressupostos da liberdade: 0/ desenvolvimenlo das necessida-

des materiais tern de ir junto com 0 deseDYoillimentQ das ne-

cessidades da alma e do eSIlfrito. A utilizacao da tecnica, da

c iencia e da arte se modifica ao modifica rem-se sua util izacao

e seu conte iido: quando e las nao estiverem mais sob a coercao

de urn sistema de produ~o v incu lado a infel icidade da maioria

e l is exigencias da racionalizacao, da inter iorizacao e da subli-

19 6

- - -acao, 0 espir ito so pode s ignificar urn aumento da fel icjdade.

o hedonismo e superado e conservado (Aufhebung) na teoria e

na prax is crft icas; se a l ibe rdade dorn inar tarnbern no ambito

da vida anirnica e espiri tua l, quer dizer , na cul tura , se esta nao

estiver mais sob a coercao da inter iorizacao, torna-se sem sen-

tido lirnitar a felicidade ao prazer sensfvel. IA real idade da fel icidade e a realidade da liberdade,"" '"

,£QillQ... aJJ todeterrnina~ao da humanidade emancip_ada na sua Iluta comum com a na tureza. "A verdade das sati sfacoes parti -I v

cuiares e a satisfacao universal que, enquanto felicidade, a

vontade pensante poe como seu fim." Mas essa felicidade e ,antes de mais nada, "a universa lidade abstra ta do con tei ido,

apenas representada, que apenas deve ser". Sua verdade "e a

deterrninidade universa l da vontade em si mesma, quer dizer,

seu proprio autodeterrninar-se, a l iberdade'Y' . Mas a liberdade

era tambern para 0 ideal ismo a "substancia" e 0 "iinico verda-

deiro do Espfrito, a essencia e a verdade da razao,,33. Em sua

forma acabada, fe li cidade e razao devem coinc idir . Hege l naoacreditou que a realizacao desta forma (Gestalt), como advento

de uma nova forma (Form) de organizacao social da humanida-

de , poderia tornar-se tare fa da praxis historica , Porem, sob 0

t itulo de "idea l" expos 0 "es tado do mundo" (Weltzustand) da

felicidade que, ao mesmo tempo, era urn estado da razao e da

felicidade, como superacao (Aufhebung) da oposicao - carac-

teristica do estado do mundo burgues - entre os indivfduos

isolados nos seus interesses par ticulares e a universal idade au-

tonornizada , que se man tern com 0 sacriffcio dos indivfduos:

"No ideal ( . .. ) a individualidade par ticular deve precisamente

permanecer em inseparavel harmonia com 0 substancial, e na

medida em que a liberdade e a autonornia da subjet ividade fa -

zem parte do ideal, nessa medida 0 mundo circundante .das

condicoes e relacoes nao pode ter nenhuma objet ividade essen-

cial independente do subj etivo e do individua l. Pois 0 indivf-

duo ideal deve ser encerrado em si, 0 objet ivo deve ser ainda

seu e nao deve estar separado da individualidade do sujei to , nem

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deve mover-se e real izar-se por si mesmo, porque entao 0 su-

jei to retrocede como mero subordinado ante 0 mundo prepara-

do para ele"34.

Traducdo: Isabel Maria Loureiro

Notas

I . Kant, Kritik der praktischen. vernunft, I. Teil, I. Buch, I. Haup-

ts tuck , pa ragra fo 3 , Anm. II . Werke, org. por E. Cassirer , Ber lim, 1912, vol .

V, p. 29.

2. Hegel, Vorlesungen iiber die Philosophie der Geschichte. Werke,

Originalausgabe, IX, p. 34.

3. Hegel , Glauben und Wissen. Werke, op. cit., I, pp. 8 SS.

4. Aristoteles, Politica, 1323 b 27 S5. ,Magna Moralia, 1206 b 30 SS. ,

Polltica, 1332 a 30.

5. Di6genes Laercio, livro II, 88. trad. alerna de O. Apelt, Leipzig,

1921, t . I, p. 101.

6 . Di6genes Lae rc io , II , 93; op. c it. , I, p . 103.

7. Idem, II, 87; op. cit., I, p. 100.

8. Idem, II, 90; op. cit., I, p. 102.

9. Idem, II, 98; op. cit., I, p. 106.

10. Ep icu ro, Car ta a Meno iqueo, Di6genes Laercio, X, 130; op. cit.,

II, p. 246.

I I. Epicuro , i bi dem; Diogenes Laer ci o, X, 132; op . ci t. , I I, p . 247 .

12. Gorgias, 497/498.

13.Cf. Zeitschrift f lir Sozialforschung, ano II, 1933, pp . 16955.

14. Cf. Zeitschriftfiir Sozialforschung, an a V, 1936, pp. 190 ss., 201 S5.

15. Kant, I. Critica dafaculdade de julgar. Rio de Janei ro, Forense

Universi tar ia, 1993 (trad. de Valerio Rodhen e Antonio Marques), parte I,

l ivro I , paragrafo 4, p. 53.

16. Kan t, I. Kritik der praktischen Vernunft, parte I, livro 2, cap. 2, II,

Werke, t. V, pp. 125, 129 .

198

17. Fichte, System der Sittenlehre, cap. II, par. II. Werke, ed. de F.

Medicus, Leipzig, sid., t. I I, p . 540.

18. Ent endemos aqu i po r teor ia cr ft ic a a t eo ria da sociedade t al como

foi apre sentada nos ensaio s fundamenta is da Zeitschrift fur Sozialforschung,

baseados na f ilosof ia dia le tica e na crf ti ca da economia pol ft ica.

19. Hermann Cohen, Ethik des reinen Willens, Berlim , 1931, p . 163.

20. Spinoza, Abhandlung uber die VervollkommnulIg des Yerstandes,

trad. ale rn a de J . S tem, Rec1am , Lei pz ig, pp. 9 ,12.

21. Leibniz, Vonder Gluckseligkeit. Opera philosophica, edi t. E. Erd-

mann, Ber lim, 1840 , p. 672.

22. Fichte, Die Staatslehre, 1813. Werke, t. VI, pp. 523 SS.

23 . He rmann Cohen , op. c it ., p . 584.

24. Bruno Bauch, Grundziige der Ethik, Stuttgart , 1933, pp. 240 ss.

25. A. Garland, Ethik als Kritik der Weltgeschichte. Leipzig, 1914,

pp. 119 5S.

26. Cf. Zeitschrift fur Sorialforschung, 1936, pp . 229 ss,

27. Mesmo nos defensores mais decididos de uma reforma sexual

burguesa0

t abu do prazer ainda aparece cainuflado em cer tas racionalizaco-es eticas ou psicol6gicas.

28. Hegel, Encyc/optidie,panigrafo 478. Welu, tVII, 2, p. 372. _

29. Hegel, Vorlesungen iiber die Philosophie der Geschichte, Introdu-

~ao. Werke, t. IX, p. 40.

30 . Op . c it ., p . 39.

31. Cf. Hegel, vorlesungen iiber die Geschichte der Philosophie.

Werke, op. cit ., XIV, p.IOI.

32. Hegel, Encyclopiidie, paragrafos 478, 480. Werke, op. cit ., t . VII ,

2, p. 372.

33. Hegel, Vorlesungen iiber die Philosophie der Geschichte. Introdu-

~ao. Werke, t . IX, p. 22.34. Hegel, vorlesungen iiber die Asthetik. Werke.t. X. 1. p. 232.

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