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Maria Antonieta de Sofia Coppola A arte moderna primava pela originalidade; é possível identificar as idiossincrasias de todos os grandes autores modernos. Da mesma forma, era responsabilidade dos artistas modernos a coerência e a lógica, em uma palavra, a seriedade de suas obras. Pois é justamente com isso que a arte pós-moderna se propõe a romper. Em vez de artistas compromissados com a seriedade, temos artistas brincalhões; em vez de homens que tem na arte uma missão, um veículo para a transmissão de uma mensagem, muitas vezes humanista e libertadora, temos artistas que deliberadamente constroem obras desprovidas de propósito ou de mensagem, obras que existem simplesmente por existir, destinadas apenas à decoração; no lugar das obras densas e profundas dos artistas modernos, temos as obras de confessada futilidade e leveza, sem as pretensões de genialidade que outrora norteavam as ambições dos artistas. 1

Maria Antonieta - O filme

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Resenha do filme "Maria Antonieta", de Sofia Coppola

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Corao de Cavaleiro: Um Conto Ps Moderno

Maria Antonieta de Sofia CoppolaA arte moderna primava pela originalidade; possvel identificar as idiossincrasias de todos os grandes autores modernos. Da mesma forma, era responsabilidade dos artistas modernos a coerncia e a lgica, em uma palavra, a seriedade de suas obras. Pois justamente com isso que a arte ps-moderna se prope a romper. Em vez de artistas compromissados com a seriedade, temos artistas brincalhes; em vez de homens que tem na arte uma misso, um veculo para a transmisso de uma mensagem, muitas vezes humanista e libertadora, temos artistas que deliberadamente constroem obras desprovidas de propsito ou de mensagem, obras que existem simplesmente por existir, destinadas apenas decorao; no lugar das obras densas e profundas dos artistas modernos, temos as obras de confessada futilidade e leveza, sem as pretenses de genialidade que outrora norteavam as ambies dos artistas.

Com a arte moderna, devido s idiossincrasias dos autores, era possvel fazer imitaes, e essas imitaes tinham um sabor de ironia, de acidez e de crtica; era a chamada pardia. Dentro do que poderamos chamar de proposta ps-moderna, na qual a originalidade goza de pouco prestgio (e rara), a prpria pardia perde muito de seu sentido, tornando-se uma figura de linguagem um tanto descontextualizada. Dessa forma sem a originalidade dos autores modernos, e sem a possibilidade da imitao irnica e crtica que linguagem falaria a arte ps-moderna? A arte ps-moderna cria uma nova figura de linguagem: o pastiche. O pastiche tambm uma imitao, mas no tem as intenes crticas da pardia; segundo Jameson, ele plido, ou seja, incuo, gratuito.

Outra caracterstica da arte ps-moderna que tem parentesco com o pastiche o eterno presente. Ou seja, o passado, na arte ps-moderna, se mescla com o presente, os elementos prprios de cada um esto sempre contaminando o outro. Podemos ouvir grias atuais na boca de personagens do sculo XVII, ou (como em Romeu e Julieta) personagens contemporneos falando uma linguagem do sculo XVI. O passado visto como um depsito, uma prateleira da qual se pode extrair aquilo que se desejar, da forma como se achar mais (in)conveniente. O anacronismo chega a se tornar uma virtude.Seguindo este mesmo princpio, temos um descaso com relao ao fato. De acordo com os ps-modernos (e seguindo tendncias tericas baseadas em estudiosos da linguagem como o estruturalista Saussure, ou os ps-estruturalistas Derrida e Foucault), no existiria uma diferena significativa entre o fato e a fico. Como diz Linda Hutcheon, a ps-modernidade trouxe consigo a meta-fico historiogrfica, que consiste, basicamente, numa tcnica narrativa em que o autor, propositalmente, embaralha em sua trama personagens e fatos que realmente existiram com personagens e fatos que s existiram na imaginao. Com isso, segundo Hutcheon, denuncia-se o carter estritamente lingstico da realidade.

Sendo assim, no mais um crime contra a histria pr na boca de personagens como Luiz XIV palavras que ele nunca disse, ou contar a sua histria de uma forma que ela nunca aconteceu (como no filme O Homem da Mscara de Ferro) a verdade aquilo que se diz.

imbuda destes princpios estticos que Sofia Coppola constri a narrativa (se que se pode chamar assim) de seu filme Maria Antonieta. A diretora e roteirista do filme lana mo de uma personagem histrica e conta sua biografia (ou sua verso descompromissada e propositalmente irresponsvel desta biografia) mesclando elementos anacrnicos, como a trilha sonora, que atualssima, as formas de sensibilidade (que no tem nada a ver com a poca em que se ambienta a histria), alm de outros elementos que veremos a seguir.

No dia 24 de Maro de 2006, o filme foi lanado no festival de Cannes. Era um filme esperadssimo, no por ser uma obra da filha do conhecido e reconhecido Francis Ford Copolla, mas por que era um filme da autora de dois filmes anteriores que tinham sido sucesso absoluto de crtica Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros e que, alm do mais, tinha, com seu ltimo filme, recebido um Oscar de melhor roteiro original. O filme sobre a vida da ltima rainha da Frana teve um oramento milionrio, sendo que foram gastos mais de trezentos mil dlares apenas com os aluguis dos cmodos de Versalhes, incluindo o quarto da rainha, para serem transformados em locaes. Os figurinos, os planos e, bvio, os cenrios estavam soberbos, alis, Maria Antonieta ganhou o Oscar de melhor figurino. Mas o fato que, em Cannes, o filme no agradou. Na revista VEJA de 14 de Maro de 2007, a colunista Isabela Boscov nos informa que a imprensa francesa recebeu com vaias o filme de Sofia Coppola. Segundo a mesma colunista, que tenta dar, no entanto, uma interpretao moderna ao trabalho da cineasta americana, o filme muito mais poltico do que realmente quer ser. Segundo Boscov, o filme de Sofia trata da alienao, e uma crtica social sociedade que, como Maria Antonieta, no consegue ser algum por si mesma e precisa dos apetrechos da indstria (de roupas e penteados) e da gastronomia para projetar uma imagem aceitvel de si para si e para o mundo. Boscov toma por irnica a brincadeira de Sofia, o retratar a corte e a arquiduquesa da ustria como nvoas de frivolidade. Em suma, o arremate de Boscov que ap construir sua narrativa da biografia da delfina da Frana, a diretora e roteirista estava na verdade produzindo uma cida crtica sobre aqueles que, como Antonieta, vivem vidas inteis (Uma vida intil o ttulo do artigo).Mas, otimismos parte, o que o filme de Sofia no passa de uma grande (cara e de gosto duvidoso) brincadeira. Ela baseia seu roteiro na biografia de Maria Antonieta produzida pela escritora inglesa Antonia Fraser, rejeitando deliberadamente por considerar rigorosa demais a biografia da mesma personagem histrica do escritor que, inclusive, era lido com entusiasmo por Sigmund Freud Stefan Zweig. De cara evidencia-se o fato de que a cineasta no est interessada em Histria, no est interessada em rigor, veracidade, ou mesmo verossimilhana. O que ela queria era poder contar a histria frvola de uma pessoa frvola e estava disposta a fazer qualquer coisa para manter essa frivolidade, afastando todas as referncias a fatos que pudessem trazer densidade e profundidade sua personagem. Alis, a recusa da profundidade, da transcendncia uma outra caracterstica da esttica ps-moderna. Outra coisa que as falas de Sofia Coppola deixam claro que o seu interesse estava mesmo muito mais nos aspectos visuais do filme do que propriamente no narrativo. Numa das entrevistas do making-off ela fala de uma determinada cena que iria sair do filme, mas que no saiu, segundo ela, porque o vestido vermelho ficava muito bem na tela.Foram muitas as crticas relacionadas infidelidade histrica do filme. Principalmente o fato de no haver durante toda a pelcula nenhuma referncia aos fatos polticos de extrema importncia que tinham lugar ao mesmo tempo em que as festas, penteados e banquetes de Antonieta: a Revoluo Francesa. Como no filme no h qualquer referncia ao mundo que existia fora do Palcio ou do recanto romntico da rainha, os crticos o acusaram de ser inteiramente descontextualizado. Ma a verdade que a descontextualizao faz parte da prpria proposta de Sofia, comeando pela trilha sonora moderna que se impe logo no princpio do filme e que, alis, muito elogiada pela crtica. Mas tambm pela linguagem utilizada pelos personagens uma linguagem leve e casual, muito distante das impostaes de juma aristocracia absolutista; ou ainda, numa cena meio vdeo-clip em que vo aparecendo os sapatos da delfina e, entre eles, enquanto a rainha prova um ou outro exibindo as belssimas pernas de Kirsten Dunst aparece, ao fundo, um par de All Stars cor de rosa. Nada mais deliberadamente anacrnico e revelador do tipo de proposta levado a cabo por Sofia.

H ainda um outro comentrio de Sofia numa entrevista no making-off, quando ela tenta explicar s atrizes em que consistiam as intrigas entre as aristocratas na cena em que a amante do rei Luiz XV passa por Maria Antonieta e d um esbarro proposital nela. Sofia disse: como no colegial. Ou seja, ela reduziu as intrigas dos aristocratas ao mesmo nvel das antipatias das patricinhas das escolas de ensino mdio; de fato, se tirarmos os vestidos magnficos, o que ficar nos grupinhos de ninfetas se encarando de braos cruzados do filme de Sofia no ser outra coisa alm de panelinhas envolvidas em briguinhas adolescentes.

Estes e outros tipos de pastiche esto recheando o filme. Inclusive alguns clichs da linguagem cinematogrfica, como o choro da personagem encostada na porta, ou o incio de um romance seria melhor dizer paquera em um baile de mscaras. Tambm no podemos esquecer do cachorrinho de Maria Antonieta no comeo do filme, clara referncia aos filmes de patricinhas vide Legalmente Loira I e II. Por estas e outras razes podemos considerar o filme Maria Antonieta de Sofia Coppola como um excelente exemplo de obra de arte integrada ao estilo ou linguagem ps-moderna. O pastiche, o anacronismo, a frivolidade, a superficialidade dos tipos humanos, o desprezo pela originalidade, profundidade e densidade so evidenciados nesta obra. Mas a caracterstica principal que pode associar definitivamente o filme da filha de Francis Ford Copolla esttica ps-moderna aquela mencionada no incio deste texto e que celebrada por Linda Hutcheon sob o termo meta-fico historiogrfica em outras palavras, a fuso (ou confuso) de personagens e eventos pertencentes e no pertencentes realidade histrica. Assim como a maioria dos romances ps-modernos, no romance num sentido estrito, mas assim chamada por falta de designao melhor, se levarmos em conta o que se entende tradicionalmente por filme, talvez Maria Antonieta seja uma obra que nem possa ser chamada assim.Referncias

JAMESON. Fredric. Ps-modernidade: a lgica cultural do capitalismo tardio.

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