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MARIA DAS DORES PEREIRA SANTOS A FIGURAÇÃO POÉTICO-ALEGÓRICA DA MORTE EM AS MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA PUC-SP SÃO PAULO 2006

MARIA DAS DORES PEREIRA SANTOS · Salete Amada, Dimas, Daniel e Saulo, pelo acolhimento nas plagas do Oeste. Risomar e Dena, pela acolhida, força, leveza, dedicação e amizade e,

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MARIA DAS DORES PEREIRA SANTOS

A FIGURAÇÃO POÉTICO-ALEGÓRICA DA MORTE EM AS MENINAS, DE LYGIA

FAGUNDES TELLES

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS

EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

PUC-SP

SÃO PAULO

2006

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MARIA DAS DORES PEREIRA SANTOS

A FIGURAÇÃO POÉTICO-ALEGÓRICA DA MORTE EM AS MENINAS, DE LYGIA

FAGUNDES TELLES

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Professora Dra. Vera Bastazin.

SÃO PAULO

2006

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Banca Examinadora:

________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

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DEDICATÓRIA

Dedico este estudo

Aos meus pais, Adeval Pereira dos Santos (in memorian) e Maria José da Silva Santos,

fontes de coragem para minha trajetória;

A Maira e Inaê, duas razões que embelezam minha vida;

A Nelma, prazer diário de um encontro muito esperado.

Aos meus irmãos e irmãs, tio(a)s e primo(a)s, que me ensinaram o paradoxo da

unidade na fragmentação do olhar.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Vera Bastazin, minha orientadora, pela aceitação e leitura atenta

desta proposta de trabalho;

Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária:

Professora Doutora Maria José Gordo Palo;

Professora Doutora Maria Aparecida Junqueira;

Professora Doutora Maria Rosa Duarte;

Professora Doutora Olga de Sá;

Professor Doutor Fernando Segolin

Pela contribuição teórica de cada um para meu enriquecimento intelectual.

Ao apoio imprescindível de Ana Albertina no percurso do mestrado.

Aos amigos e amigas;

Tunico, presença verdadeira da amizade;

Lourdes e Manoel, pelo apoio constante, apesar da distância geográfica;

Ana, Juracy, Cainã e Clara, pela convivência amorosa;

Salete Amada, Dimas, Daniel e Saulo, pelo acolhimento nas plagas do Oeste.

Risomar e Dena, pela acolhida, força, leveza, dedicação e amizade e, principalmente,

pelos belos “encontros nordestinos” que suavizaram o rigor do estudo.

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Jô Alves, vizinha maravilhosa em Perdizes;

Lourdes e Ana, pela acolhida sempre muito especial em SAMPA;

Ivanísia, pela atenção e carinho.

Aos muitos que, de alguma maneira, estão presentes no TEMPO-ESPAÇO de minha

memória.

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Dai-nos o veludo vermelho e essa veste florida, e o negro cetim, para que em nossas roupas transpareça tanto o que alegra os sentidos como o que aflige o corpo; vede quem fomos nesta peça, na qual a lívida morte costura o vestuário final.

W. Benjamin

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RESUMO

Esta dissertação tem por objetivo rastrear os modos de elaboração de uma poética da

morte no romance As Meninas, de Lygia Fagundes Telles. O interesse pela temática

resultou do reconhecimento de aspectos referentes a homologações entre o texto

literário e o contexto da ditadura Militar internalizado na escritura lygiana. A análise

pautou-se nos procedimentos artístico-literários de elaboração de uma poética da morte

à luz do conceito de alegoria moderna sistematizado por Walter Benjamin. O conceito

de alegoria como expressão que opera a síntese entre crise social e criação artística

presentifica a condição de uma linguagem romanesca edificada pela fragmentação,

evasão e percepção traumatizante da existência. Para elucidar esses procedimentos, o

estudo pautou-se nos aspectos estruturais da linguagem, tais como personagem, tempo

e discurso. A hipótese que norteou a leitura foi que tais aspectos configuram uma

poética fragmentária arquitetada pelo paradoxo da construção/ruína. A conclusão a que

chegamos neste estudo foi a de que esses procedimentos articulam, na obra, um efeito

neobarroco da imagem da morte e propõem questões relativas à crise da narrativa e do

sujeito na pós-modernidade.

Palavras-chave: literatura brasileira; romance; alegoria; neobarroco; Lygia Fagundes Telles

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ABSTRACT

The objective of this dissertation is to track the ways poetical death is constructed in the

novel As Meninas, by Lygia Fagundes Telles. The interest for this

theme resulted from recognizing homologous aspects in the literary text and the military

dictatorship context internal to lygian writing. The analysis is guided by the artistic-

literary procedures of poetical death construction using the concept of modern allegory

systemized by Walter Benjamin. The concept of allegory as an expression that

articulates the synthesis between social crisis and artistic creation shows the condition

of a romantic language built by the fragmented, evasive, and traumatizing perception of

existence. To illustrate these procedures, the study focused on the structural aspects of

the language, such as character, time and speech. The guiding hypothesis throughout

the reading was that these aspects configure a fragmented poetry, designed using the

construction/ruin paradox. The conclusion of this study is that these procedures

articulate, in the novel, a neo-baroque effect on the image of death and puts forth

questions related to the crisis of the narrative and of the post modern individual.

Keywords: Brazilian literature; novel; allegory; neo-baroque; Lygia Fagundes Telles

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................10

CAPÍTULO I – A COMPOSIÇÂO DO MÉTODO ALEGÓRICO..............................17

1 O jogo discursivo especular.................................................................................17

2 A (con) textualização da violência no corpo romanesco......................................24

CAPÍTULO II – A ANAMORFOSE COMO ARTIFÍCIO POÉTICO DA

EVASÃO.................................................................................................................32

1 A droga................................................................................................................32

2 Uma poética da devoração.................................................................................38

3 A temporalidade da morte....................................................................................49

CAPÍTULO III – O TRAUERSPIEL DO CORPO ESCRITURAL.............................54

1 Simulacro e Melancolia: a dupla face do corpo trágico.......................................54

1.1 Disfarces da Morte...........................................................................................56

1.2 O estado melancólico......................................................................................59

2 O corpo-emblema da escritura ruínica..............................................................65

2.1 Primeiro Ato: O abismar-se narcísico...............................................................66

2.2 Segundo Ato: A alegorização da physis...........................................................68

2.3 Terceiro Ato: a apoteose do artifício.................................................................72

CONCLUSÃO.........................................................................................................77

Bibliografia.............................................................................................................80

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INTRODUÇÃO

Nosso interesse em apresentar uma leitura do romance As Meninas com base na

reflexão sobre as relações entre literatura e morte surgiu da observação de que há,

nesta obra, a presença obsessiva de elementos estruturais que sugerem a existência

de uma poética da morte erigida pela escritura romanesca.

A publicação do romance As Meninas (1972) é contemporânea da Ditadura

Militar no Brasil. Essa temática é incorporada pela obra na figuração das protagonistas,

Lorena, Lia e Ana Clara, jovens universitárias que moram em um pensionato para

moças e testemunham o drama do período.

No levantamento da fortuna crítica sobre a obra, encontramos breves referências

que se limitam a relacioná-la ao fato político, como acontece, por exemplo, em Nelly

Novaes Coelho (1971), para quem Lygia “fixa a angústia contemporânea e o

desencontro de seres aparentemente normais, mas que no fundo são desajustados,

frustrados ou fracassados” (p.144) e em Alfredo Bosi (1991), quando afirma que nela,

Lygia desenhou o perfil de um momento da vida brasileira, em que o fantasma da

guerrilha é apreendido no cotidiano de estudantes burgueses “(p. 475).

Não discordamos do caráter testemunhal inerente à temática desse romance.

Não obstante, entendemos que ao termo “testemunho” caberia acrescentar um adjetivo

que redirecionasse nosso olhar para o texto: ruiniforme. O termo ruína tem o sentido de

desmoronamento, na acepção dicionarizada, e é este sentido que tomamos como ponto

de partida para a abordagem que pretendemos desenvolver.

Ao partirmos da hipótese de que a escrita lygiana dá à obra uma feição

ruiniforme, deslocamos intencionalmente nosso interesse da aproximação direta da

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ficção com o real, recurso cuja conseqüência metodológica é a fixação do

acontecimento e a obliteração do discurso, ou, conforme TODOROV (2003, p.114) “é a

tentativa de atribuir ao discurso literário uma ‘transparência ilusória’, característica da

‘linguagem-sombra’, de ‘formas quem sabe mutáveis’, mas que nem por isso deixam de

ser conseqüência direta dos objetos que elas refletem”.

Nossa tentativa de leitura da obra trilhará outro caminho: diferentemente do

discurso-reflexo denunciado por Todorov, nosso interesse é observar, por meio da

refração operada pela arte verbal constitutiva do literário, não um mundo narrado, mas

um mundo criado pela linguagem do romance. Nesta perspectiva, tomamos como

iluminação a contra-fala do próprio BOSI (2004):

”Não que se deva calar a presença do nexo entre poesia e ideologia. Mas, ao descobrir os pontos de cruzamento, convirá ir mais longe, sabendo que a abordagem dialética, porque é dialética, não pode deter-se no momento da tese (literatura, espelho da ideologia); ela deve avançar firmemente para a antítese, que está na vida social e na linguagem poética (poesia, resistência à ideologia). É essa negatividade que redime os momentos em que o verso parece apenas oratória ou variante alienada do pensamento do opressor (p. 140)

Neste trabalho, apresentamos alguns procedimentos de elaboração poética

dessa negatividade como resistência presente nos artifícios de elaboração de um efeito

de imagem da morte à luz do conceito da alegoria moderna1, entendida como meio de

expressão da dialética entre crise social e criação artística.

1 O conceito benjaminiano de alegoria moderna foi brilhantemente sintetizado por Lúcia HELENA (1985) que, em seu texto “A arte alegórica ou do engajamento não planfetário,” distingue três grandes momentos nos quais a arte se utilizou dos procedimentos da alegoria para compor seus produtos: 1) A Idade Média, na qual a alegoria surge como convenção da expressão, cujo relevo é dado à preocupação dominante de estabelecer a codificação de uma mensagem cristã, transformando-se a alegoria, enquanto expressão, no veículo fundamental da convenção a ser firmada; 2) A alegoria barroca, vista como expressão da convenção, cujo sentido místico-histórico advém do fato de não mais estar comprometida com o didatismo medieval e de desviar sua visão maniqueisticamente concentrada na figura de Satã para a história representada na figura do soberano, do mártir, do intrigante e do cortesão. Nesse

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Uma questão decisiva que se colocou para nossa investigação foi o

reconhecimento da conjuntura da ditadura como época de crise, e neste sentido,

prenhe de possibilidades aproximativas com a leitura benjaminiana da alegoria barroca,

por “conotar o momento de decadência que se atribui à própria história, a qual se

mostrava sempre mais problemática enquanto palco de sofrimentos e privações”

(DUARTE, 2002, p.73). É importante destacar que essa conotação do sofrimento

humano e histórico é codificada na linguagem com a expressão estética do sofrimento

e, como resultado disso, a linguagem passa a representar o medium por meio do qual

se torna possível representar a situação dolorosa do homem:

O cerne da visão alegórica é a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento; significa apenas nos episódios de declínio. Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação.” (BUCK-MORSS, 2002, p.203).

A compreensão da condição sine qua non da arte alegórica – a expressão da

dor da criatura humana – foi iluminada pelas reflexões de Walter Benjamin em seus

estudos crítico-analíticos sobre o drama barroco. A partir de sua leitura das formas de

representação desse gênero, ele apresentou procedimentos similares em obras de

autores modernos, como a do poeta Charles Baudelaire. Uma de suas maiores

contribuições encontra-se na observação de aspectos ligados à efemeridade e ao

aspecto ruínico da história, presentes na poética baudelaireana.

período, a alegoria adquire um caráter metamorfoseável e ambìgüo, concentrando estados de tristeza e ostentação. A melancolia é a figura por meio da qual se revela essa ambigüidade da arte alegórica no Barroco. 3) A alegoria moderna, que surge na crise do mundo burguês – fins do século IX . Nascida sob o signo de uma violência (a da ruptura com a experiência e a tradição, substituída pela vivência de choque), esta alegoria prestar-se-á à valorização do escatológico, do excessivo, do grotesco e da devoração, aspectos que também aparecem na alegoria barroca. (Cf. HELENA: 1985, p.157-158).

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A acuidade do pensamento de Benjamin encontra-se, portanto, em seu

reconhecimento de que a arte alegórica é a arte que expressa as épocas de crise,

podendo, desse modo, ser reconfigurada nas produções artísticas de diferentes

épocas, por ser capaz de operar a síntese entre crise social e criação artística. É dessa

relação da alegoria com a imagem de um tempo histórico em declínio que nasce o

entrelaçamento da expressão alegórica com a morte.

A alegoria cava um túmulo tríplice: o do sujeito clássico que podia afirmar uma identidade ainda coerente de si mesmo, e que, agora, vacila e se desfaz; o dos objetos que não são mais os depositários da estabilidade, mas se decompõe em fragmentos; enfim, o do processo mesmo de significação, pois o sentido surge da corrosão dos laços vivos e materiais entre as coisas, transformando os seres vivos em cadáveres ou em esqueletos, as coisas em escombros e os edifícios em ruínas (GAGNEBIN: 2004, p.39)

Conforme podemos atestar no fragmento, a alegoria é, em síntese, a expressão

da dissolução, do despedaçamento nas suas mais variadas formas de manifestação –

seja na representação do sujeito (homem) ou das coisas. Essa capacidade da alegoria

para revelar a face fragmentária dos “objetos” é o que interessa diretamente ao nosso

estudo. Queremos ressaltar, ainda, um traço determinante da arte alegórica que será

fundamental para nossa leitura do romance: a idéia da história como palco, espaço

topológico no qual se encena a “peça” dramática da existência.

A idéia de palco traz consigo a idéia de espetáculo. É essa a perspectiva do olhar

benjaminiano para a alegoria: seu conceito de trauerspiel2 revela a possibilidade de

encenação, via linguagem, do drama de uma palavra que só pode se revelar como fragmento,

2 O conceito de trauerspiel (trauer = luto / spiel = jogo, espetáculo), sistematizado por W. Benjamin, pode ser sintetizado como espetáculo de luto. Benjamin utiliza esse conceito em contraposição à tragédia grega, pois entende que, enquanto a tragédia tem nascimento no solo mítico e está relacionada à culpa trágica do herói mítico, o trauerspiel sintetiza o caráter absurdo da vida vivenciado pela consciência da perda da palavra adâmica e da tristeza de um homem privado de transcendência. (Cf. Walter Benjamin. Drama Barroco alemão, p.17-18-21).

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ruína. Foi essa perspectiva que conduziu nossa visão da obra como página/palco onde se

desenrolou uma ”peça de luto” romanesca na qual os caracteres da morte (des)velaram a face

precária de uma linguagem poética que só pôde ser construída pelo viés antitético da

destruição. É isto que uma personagem do romance reconhece, já na abertura da narração,

ao falar de uma escritura que tenta se erigir por meio de um idioma ruínico, morto, o latim:

Dedicou a história a Guevara com um pensamento importantíssimo sobre a vida e a morte, tudo em latim. Imagine se entra latim no esquema guevariano. Ou entra? E se ele gostava de latim. Eu não gosto? Nas horas nobres deitava no chão e ficava latinando, a morte combina muito com latim, não tem coisa que combine tanto com latim como a morte. (AM, p. 3-4) 3.

Outra contribuição para a compreensão das relações entre literatura e morte

pode ser encontrada no pensamento de Irlemar Chiampi (1998), que afirma a presença

de uma ”síndrome do barroco”, uma reapropriação ou “reciclagem” de seu modus

operandi em obras latino-americanas contemporâneas, que tornou possível, pelo viés

do neobarroco, revitalizar essa estética nas obras produzidas nas décadas de 70 e 90.

Segundo a autora, esse reencontro com o barroco pode ser localizado em dois

momentos da história literária, a Modernidade e a Pós-modernidade. O primeiro,

denominado por ela como modernidade, ocorre no auge do boom dos anos 60, quando o

novo romance recupera as origens barrocas em sua linguagem narrativa como fator de

identidade cultural representada na prática da fragmentação, da celebração do novo, do

afã de ruptura e experimentação; o segundo - entendido como Pós-modernidade - situa-

se nos anos 70-90 e está voltado para a apresentação de temática feminista, histórica e

testemunhal, representando a ruptura com os Grandes Relatos (do Progresso, do 3 Utilizaremos a abreviatura AM para indicar o nome da obra As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, conforme referência completa na bibliografia apresentada.

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Humanismo, da Ciência, da Arte, do Sujeito). (Cf. CHIAMPI. Barroco e Modernidade.

Prefácio, p. XVI).

Balizada por esse viés teórico-crítico, nossa leitura do romance As Meninas

rastreou as relações entre literatura e morte à luz do conceito de alegoria e suas

conseqüências para a compreensão dos modos de elaboração do romance

contemporâneo. O foco analítico concentrou-se na organização triádica das

personagens protagonistas com base na suposição inicial de que elas corporificavam

procedimentos neobarrocos configuradores de uma linguagem poética fragmentária

pautada no paradoxo da construção/ruína.

Essa hipótese tornou possível a construção de um percurso investigativo dos

procedimentos artístico-poéticos referentes à construção das personagens e à

homologação entre literatura/escritura e morte. Foram esses dois pressupostos que

aproximaram nosso foco de análise dos procedimentos da arte alegórica, por

entendermos que esse modo de expressão artística dramatiza os traços fisionômicos do

homem e da linguagem em um mundo em crise.

Uma característica central da alegoria é a percepção traumatizante da existência

que passa a valer como princípio formal de elaboração de produtos artísticos e, nesse

sentido, ela representa uma forma expressiva capaz de tornar visível uma experiência do

sofrimento, da opressão, do negativo. O reconhecimento desta capacidade expressiva da

arte alegórica para tornar visível a condição humana constituiu-se no ponto de partida

para o rastreamento de um efeito neobarroco nos aspectos da linguagem romanesca.

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CAPÍTULO I

A composição do método alegórico

Colo teus pedaços. Unidade estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.

Carlos Drummond de Andrade

1. O jogo discursivo especular

A obra As Meninas abre-se à leitura por um pórtico epigráfico retirado do corpo

do romance: “’Ana Clara, não envesga! disse Irmã Clotilde na hora de bater a foto. Enfia

a blusa na calça, Lia, depressa. E não faça careta, Lorena, você está fazendo careta!’ A

pirâmide.”

A utilização da fotografia como “porta de acesso” à obra traz uma questão central

para compreendermos os modos de construção da narrativa à luz da alegoria: a sugestão

do método fragmentário, pois a fotografia representa um fragmento cristalizado de um

objeto na tentativa de conter sua efemeridade.

Além desse aspecto diretamente relacionado à associação da técnica fotográfica

com o método escritural do romance, o instantâneo fotográfico posto na abertura da obra

também pode ser visto como um primeiro ato de presentificação da violência na narrativa,

pois, conforme Figueiredo (2003)

Na fotografia, o dedo que dispara a máquina “atira” contra a série da realidade, fragmentando-a, e cada foto, cada imagem, aponta metonimicamente para o todo, onde residiria uma verdade total que nos

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escapa. Vista desse ângulo, a técnica fotográfica é ela própria uma violência, mas uma violência que se pratica tentando aprisionar o real, fixá-lo, em nome da busca de uma verdade (p.31).

Nessa fixação do objeto pela fotografia, Roland Barthes (1989) vê uma forma

potencial da morte pois

...aquele que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, eídolon emitido pelo objeto, Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o espetáculo e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto (p.20).

A pertinência dessa afirmação barthiana para uma proposta de leitura do

romance As Meninas à luz dos conceitos da alegoria, verifica-se na nossa observação

de que a figura diagramática tri-angular da “pirâmide” composta pelas três personagens

funcionará, em toda a obra, como eixo emblemático disseminador da tematização da

morte. Nessa perspectiva, a emolduração fotográfica das três personagens parece

corresponder alegoricamente ao que diz Sodré (1990) sobre a fotografia: é “o

reconhecimento simultâneo, numa fração de segundo, da significância de um

acontecimento bem como de uma organização precisa de formas que dão a esse

acontecimento sua expressão adequada”. E, continua o autor:

Não estamos aqui na esfera clássica da duplicação representativa (do real) pela imagem, mas no âmbito da duplicação simuladora, onde a imagem se assume como tal, dispensando ou abolindo a caução de uma referência real. (...) fotografado, o objeto morre para seu tempo e espaço históricos e reaparece como simulacro. (BRESSON apud SODRÉ, p. 29-30).

Além da relação do fragmento fotográfico com a morte e com o simulacro, outra

questão de interesse para o entendimento da construção do método em As Meninas

refere-se ao que Cortázar observou ao aproximar a fotografia e o conto: “ambos viveriam

de um aparente paradoxo: Partem de uma limitação prévia, imposta pelo campo reduzido

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sobre o qual o olhar repousa, e utilizam esteticamente essa limitação”. (CORTÁZAR apud

FIGUEIREDO, 2003, p.32).

Analogamente a esse procedimento, o método de escritura lygiano parte de uma

limitação: a do contexto opressivo ditatorial. Entretanto, esse contexto não será o tema,

mas um recurso sobre o qual a linguagem literária irá operar poeticamente.

Outro aspecto relacionado a fotografia que também serve ao método é a

referência ao “olhar vesgo” da personagem Ana Clara. O artifício da visão sugere, a

nosso ver, o aparecimento de uma imagem discursiva especular, resultante do

entreespelhamento das três personagens. Com base nessa premissa, tentaremos

rastrear os traços indiciais desse modus operandi na obra, mormente no que se refere à

configuração de um diagrama discursivo tríádico.

Nos doze capítulos do romance, as meninas montam turnos discursivos

revezando-se como narradoras e instaurando um jogo caleidoscópico de observação. O

discurso estruturante da fala dessas personagens, o monólogo interior, permite que elas

girem o olhar reciprocamente entre si como personagens ”percebidas, mas também

perceptoras, ‘refletoras’ (TODOROV, 1970, p.65).

O reconhecimento da existência de uma organização narrativa marcada pela

visualização recíproca, remete-nos tanto à figura poliangular da pirâmide, presente na

epígrafe, quanto a outro modo de entreespelhamento do ângulo de visão, a mediação do

olhar pela figura do espelho:

Aquilo que pensamos se reflete em três espelhos do absurdo leio no poeta que abri por acaso, consulto poesia como o paizinho consultava O Velho Testamento, sempre ao acaso: Três espelhos do absurdo. Esse é o meu. E os outros dois? (...) Apenas um terço de nós é visível, a senhora sabia? O resto não se vê. O avesso. Só um terço visível? Só um terço, querida. Vejo

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seu manto, seu rosto, suas mãos segurando esse pano. É pouco, não? E o resto? Onde está o resto que não posso ver? (AM, p. 139).

Inicialmente importa destacar, conforme o primeiro fragmento, que a experiência

visual é problematizada pelo desdobramento do reflexo em três espelhos do absurdo.

Cremos que é possível ver nesse trecho a manifestação de um método de construção

deformador da visão como totalidade, os princípios de uma arquitetura romanesca

neobarroca, que instaura na narrativa o descentramento do olhar e o estilhaçamento da

imagem em fragmentos, conforme podemos observar no segundo trecho: “apenas um

terço de nós é visível. E o resto?”.

Essa relação olho/espelho, que resulta numa visão especular, é recorrente em

todo o romance e será responsável pela construção fisionômica do drama das

personagens:

Ana Clara apoiou-se na banheira. Olhou-se no espelho (...) Examinou no espelho a face brilhante (AM, p.160). Lorena: “Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa e não esta feia ressentida que me olha do fundo do espelho” (AM, p.136). Lia: “Na parede, os altos espelhos refletindo-a em todos os ângulos. ‘Como tomar um porre de si mesma.’ (AM, p. 201).

A relação recíproca de olhar e ser olhado pelo espelho cria uma dupla ilusão

perspectiva. Mas esta também é problematizada pelo jogo entre olho/espelho/página

que emoldura o sujeito da cena, definindo o ângulo de sua projeção imagética: “olhou-

se / me olha / refletindo- a. Esse exercício de perspectiva, viabilizado pela posição de

cada personagem diante do espelho, aponta para um aspecto neobarroco da escritura:

a visualização de sujeitos fracionados que encenam posições diante do espelho como

um olho a mais” (SANT’ANNA, 2000, p. 190) (Grifo nosso).

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Essas questões colocam-nos o problema da visualidade como ponto nodal na

escritura e remetem nossa análise para as reflexões sobre a função do olho nas artes.

A visão é uma faculdade que opera desde o mais imediato plano sensível (percepção sensorial) até o mais elevado plano intelectual (conhecimento intelectivo, intuição, etc.) [...] Estar no mundo implica em ver (saber de si, saber do outro), situação que se torna cada vez mais complexa quanto maior a capacidade de visão a ser considerada. No caso do homem, em particular, essa complexidade é proporcional à extensa gama de suas atuações ‘visuais’, que culminam na consciência. (CHARDIN apud BARROS 2002, p. 35)

Nessa perspectiva, a arte apresenta-se como discurso inserido entre o sujeito e o

mundo, “discurso efetuado por meio da visão e atualizado por signos visuais”

(BARROS, 2002, p.37). No plano da arte verbal, a atualização da visualidade ocorre

predominantemente no discurso agenciado pelas personagens, conforme foi possível

atestar nos fragmentos do romance.

No que concerne ao nosso interesse de apresentar uma leitura dos

procedimentos de estruturação de uma poética da morte, a idéia de um espelho do

absurdo desdobrado em três – metáfora das personagens – traz conseqüências

estruturais e semânticas que podem estar relacionadas à dissolução de uma linguagem

estritamente mimética em relação ao real, bem como à atitude de perplexidade da

linguagem poética perante o contexto da ditadura.

A visualidade relacionada à limitação do espaço, estratégia artística que recria a

atmosfera opressiva, aparece na descrição de um quarto feita pela personagem Lia, a

guerrilheira:

— Sim? — disse o copeiro entreabrindo a porta. [...] Com um gesto evasivo, ele apontou uma cadeira no vestíbulo penumbroso. O olhar voltou a boiar indiferente na superfície meio estagnada dos olhos (AM, 200).

[...]

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Corredores e salas até o túnel ir se apertando mais secreto, mais escuro. O vestíbulo dava para um quarto trevoso. Quarto? Pela primeira vez entrava numa verdadeira alcova onde não vi janelas mas cortinas e panejamentos de um dossel lânguido, sustentado por quatro colunetas. Aproximei-me. Os panos desciam, compondo uma espécie de casulo [...] A luz do abajur de cabeceira estava acesa. O sol explodia lá fora mas ali era noite (AM, 205). [...] O teto baixo não oferece a menor visibilidade (AM, 210) ― O banheiro? Vou entrar um instante. A sala de banho lilás resplandece como se a noite do quarto tivesse entrado até ali (AM, 218). Entrou a empregada numa lufada de ar. Respirei como um condenado na câmara de gás. (AM, 225).

Conforme podemos observar, os fragmentos destacados criam uma atmosfera

espacial asfixiante por meio da apresentação de elementos visuais e cromáticos que

concorrem para o efeito de fechamento. Além desses recursos, a informação de que as

personagens moram em quartos de um pensionato para moças reforça a “ansiedade de

espaço” 4 no romance.´

Entretanto, é na estruturação do foco narrativo que a visualidade diagramática da

tensão entre interior/exterior vivenciada pelas personagens se explicita, pois, não

obstante a predominância do monólogo interior como estrutura discursiva que provoca

como efeito o ensimesmamento de cada personagem, o casulo de cada micro-narrativa

é rompido pelo comparecimento de cada personagem no discurso da outra,

respectivamente:

Lia: “A Loreninha acrescentaria: coitadinhos. Mas quando ela fala em tom

poético não usa diminutivos” (AM, p.119). Penso imediatamente em Ana Clara.Tenho

que amá-la. Difícil, fico impaciente, irritada”. (AM, p.217).

Lorena: “Lião fica uma vara se falo em cartomantes, sou vidrada em

cartomantes. Disse que não tem destino, não tem nada, porque somos livres,

4 Expressão utilizada por Lúcia Helena no texto “A tradição reinventada”, no qual analisa as produções de autoras dos séculos XIX e XX. (CF. VIANNA. 1998, p. 292).

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completamente livres.” (AM,p.105). “Ana Clara falava tanto em Jaguar, coitadinha. Tão

superado o Jaguar”. As coisas que tomava seriam para substituir o casaco de onça? O

Jaguar? (AM, p. 54-107).

Ana Clara: “Ana Clara Conceição você está me ouvindo? Estou Lorena Vaz

Leme. Descendente de bandeirantes”. (AM, p.70). Lião contou que o pilhento foi lixado

assim. Se me convidassem para entrar no grupo quando eu era menina sabe que eu

entrava?”(AM, p.69).

Esse monólogo interior dialogizado refrata a visão de cada personagem em

múltiplos ângulos, permitindo que componhamos vários focos de observação. Como

conseqüência, a narrativa se descentra, engendrando os estilhaços de um espelho que

forja perfis não fixos. Entendemos, ainda, que nesses recortes dialógicos as

personagens refletem fisionomias do tempo opressor e é isto que tentaremos

apresentar nas próximas análises.

Para elucidar esse pressuposto, consideramos em nossa perspectiva de

abordagem, a categoria da personagem como a define Walter Benjamin no drama

barroco: “os personagens da ficção só existem na ficção. Como os personagens de

uma tapeçaria, eles estão de tal forma integrados na tessitura total da obra que não

podem de forma alguma ser destacados dela.”(op. cit., p. 128)

Tentaremos complexizar a afirmativa de Benjamin, acrescentando a concepção

de personagem-texto, tal como a apresenta Fernando Segolin (1978): “um complexo

sígnico dotado de uma natureza verbal, diferentemente da personagem-função, que

mantém uma estreita relação referencial com o mundo, construindo a ilusão do

referente” ( p.79).

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Em consonância com o pensamento desses teóricos, tomaremos em nossa

abordagem a personagem como “método de composição”, conforme afirma Bradbury,

citando Nabokov (1989, p. 162) e, portanto, como linguagem por pertencer “mais a um

processo do que a um mundo produzido por imitação, parecendo participar do ato de

sua própria criação” (FLETCHER, 1989, p. 325).

2. A (CON)TEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NO CORPO ROMANESCO

Além do aspecto referente à fragmentação, apresentado no tópico anterior, outra

característica da arte alegórica é permitir à linguagem incorporar as temáticas com as

quais trabalha ao procedimento construtivo da própria obra. Neste sentido, o interesse

deste tópico é apresentar os modos de inscrição da violência e morte na palavra literária

do romance As Meninas, com base na hipótese de que o modo de incorporação poética

dessa palavra estabelece diálogo com o método alegórico.

Uma premissa central que se coloca no que tange à temática da violência é a de

que em toda organização social a manutenção da ordem e a tentativa de controle da

conduta dos indivíduos pressupõem seu uso como fator de regulação dos valores

institucionais.

Não obstante, quando se faz necessário balizar as fronteiras do poder, a

simbolização que media as restrições impostas aos indivíduos é substituída pela violência

explícita. A Ditadura Militar (1964 –1972) representou um momento da vida sócio-política

brasileira em que a repressão imposta pelo Estado-segurança funcionou como força

motriz dessa violência sanguinária, e a morte, seu resultado mais aparente, inscrevem-se

nas produções artísticas do período, com diferentes feições diagramáticas. Conforme

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depõe Fábio Lucas (1989), em diversos gêneros ficcionais, a exemplo do conto e do

romance, manifestam-se imagens dessa violência como reflexo temático e projeção das

práticas repressivas no discurso literário.

Refletindo sobre a manifestação da violência ditatorial no Brasil como núcleo

temático de narrativas ficcionais, esse autor apresenta duas questões de interesse para

nossa leitura do romance As Meninas: o problema da repressão como interdição do

desejo e o exercício da violência indisciplinada vigente no período.

Para nossa abordagem, centrada na análise das relações entre escrita e morte,

esses dois tópicos são significativos por corresponderem, respectivamente, a dois tipos

de violência: a psicológica e a física, ambas presentes no romance.

Ainda segundo Fábio Lucas, enquanto uma grande parcela de ficcionistas

brasileiros dos decênios de 60-70 se encontra inapelavelmente limitada pelos traços da

época e pelos horizontes da vida coletiva, outra “distanciou-se da preocupação de

transcrever meramente a realidade social, pondo em declínio a narrativa centralizada na

‘crônica de costumes’ e provocando a ascensão daquela que cria a personagem dividida

interiormente, mutilada e impotente, em choque com os valores que a esmagam” (1989,

p.106).

Dentre os autores brasileiros que elaboram suas narrativas com base nessa

tendência, conforme o autor, encontra-se Lygia Fagundes Telles, cuja produção traz

marcadamente traços de indagação sobre o destino humano numa perspectiva de

reflexão especulativa. Resulta como conseqüência derivada desse modo de construção

ficcional, uma atenção maior ao próprio processo narrativo, o que faz com o que o

discurso tome a si mesmo como referente.

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Analogamente ao que propõe o crítico em suas análises, no romance As

Meninas, obra contemporânea da Ditadura Militar no Brasil, é possível observar que

Lygia Fagundes Telles opera artisticamente por meio da internalização de procedimentos

de criação que agenciam homologações entre o contexto social violento e o discurso

literário. Um exemplo desse recurso pode ser observado em trechos que conferem à

narrativa, pela fala monologal das personagens, um caráter auto-especulativo:

Estava contente pensando só em letras e de repente elas foram se compondo, tão perigosas quando se juntam. As letras também levam facadas no ventre, tiros no peito, socos,agulhadas, coices – também as letras são atiradas ao mar, aos abismos, às latas de lixo, aos esgotos, falsificadas e decompostas, torturadas e encarceradas. Algumas morrem, mas não importa, voltam sob nova forma, como os mortos (AM, 57-8).

Essa homologação entre letra (escritura) e violência, espécie de inscrição textual

da morte, é recorrente em outras passagens da obra:

— Está liquidando o canteirinho — sussurrou Lorena enquanto dobrava o guardanapo [...] No guardanapo branco, as iniciais do pensionato estavam bordadas em linha vermelha: P. N. F. F. Ponto de cruz. A letra P era a mais caprichada. Já o N meio torto se aproximara demais do S que para compensar o defeito, abandonara o F ilhado na auréola rosada da linha que desbotou. — Um mato duro de tirar — resmungou a freira vergando o corpo para trás. [...] A senhora faz jardinagem como borda — digo passando o dedo no F tão mais pálido do que as outras letras, a se esvair sanguinolento em meio a nódoa rosada. Como um ferido de morte. (AM, p.57).

O dilaceramento presentificado na personificação dos sinais gráficos, conforme

os dois fragmentos, autoriza uma leitura deste romance como corpo no qual a inscrição

da morte se faz tatuagem. Violentado pela repressão, resta ao discurso (con)figurar-se

metalingüisticamente, assumindo como condição de existência a convivência pari passu

com a morte. Do reconhecimento desse processo, advém nossa interpretação desse

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romance como espaço reflexivo no qual se organizam poeticamente diferentes formas de

composição de uma creación dolor.

As ressonâncias da violência na obra podem ser vistas também em passagens

que estruturam jogos polifônicos, a exemplo do diálogo da personagem Lia, a

guerrilheira, com madre Alix, freira do pensionato onde “as meninas” moram:

— Não, Madre Alix. Confesso que estou mudando, a violência não funciona [...] mas já que a senhora falou em violência vou lhe mostrar uma — digo e procuro o depoimento que levei pra (sic) mostrar a Pedro e esqueci. — Quero que ouça o trecho do depoimento de um botânico perante justiça, ele ousou distribuir panfletos numa fábrica. Foi preso e levado à caserna policial, ouça aqui o que ele diz, não vou ler tudo: Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam, traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de tortura. Iniciou-se um cerimonial freqüentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios em redor de meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse então morrer. Mas resistia e resisti também às surras que me abriram um talho fundo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar choque em mim mesmo e em meus amigos.Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos. Após algumas horas, a cerimônia atingiu seu ápice. Penduraram-me no pau-de-arara: amarraram minhas mãos diante dos joelhos, atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no ar. Enfiaram-me então um fio no reto e fixaram outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência. Os tapas que me davam eram tão fortes que julguei que tivessem me rompido os tímpanos: mal ouvia. Meus punhos estavam ralados devido ás algemas, minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas. E etcétera, etcétera. (AM, p.131-2).

No fragmento acima, é possível observar o artifício de incorporação do texto-

depoimento do torturado pelo romance e a performance de sua leitura pela personagem

Lia, marcada pelas locuções verbais “Vou lhe mostrar, ouça aqui e ouça aqui o que ele

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diz”. Esses recursos possibilitam a interatividade com os interlocutores - Madre Alix e o

leitor. Entendemos que essa leitura de um texto trazido ao nosso conhecimento pela

personagem compromete uma referencialidade direta e aponta para a artificialização

literária do testemunho da violência.

Não obstante o depoimento-testemunho sobre a violência, explicitado no

fragmento acima, o discurso lygiano rompe com a univocidade discursiva sobre a

temática ao apresentar ironicamente, pela fala da mesma personagem, Lia, a atitude

dos intelectuais diante do fato político da ditadura:

Os intelectuais com seus filminhos sobre o Vietcong. Há tanta fome e tanto sangue na tela de lençol. Tão terrível ver tanta morte, putz, como pode? Revolta e náusea. “Náusea sartriana”, murmura uma convidada bisonha. Que se cala quando sente no escuro os olhares gelados em sua direção. [...] As luzes se acendem mas as caras demoram pra acender, que horror. Uísque e patê pra (sic) aliviar o ambiente. Considerações sobre prováveis nomes nas próximas listas. Voltam os filminhos ás latas enquanto aos poucos voltam todos às respectivas casas. [..] São bem humorados os intelectuais. Até piadas. Mas, justiça seja feita, estão vigilantes. Sobretudo informados, pudera, se reunindo como se reúnem. Sabem que você foi preso e torturado, menino corajoso esse Miguel, é preciso ter coragem, bravo, bravo. [..] Os intelectuais estão comovidos demais pra (sic) falar, só ficam sacudindo a cabeça e bebendo. A sorte é que o uísque não é nacional. (AM, p.22-3).

Podemos visualizar em procedimentos artísticos como Fábio Lucas (1989)

aponta em obras que classifica como “contos de repressão”: nelas “é possível

aprofundar o estudo da violência, sua tipologia, seu exercício, assim como as formas de

que se reveste, incluindo-se aí a sua utilização no discurso literário, no interminável

jogo entre o texto e o contexto” (p.153).

Ainda segundo esse autor, as obras inscritas nessa categoria “curiosamente não

apontam para a utopia, nem se transformaram em armas ideológicas para se lograr

uma revolução social ou uma sociedade perfeita. O seu conteúdo é crítico, milita mais

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na área da negatividade e da desesperança do que na idealização de um mundo

corrigido. Somente por linha reflexa é que dizem da emancipação humana” (1989,

p.154). Esse posicionamento revela um distanciamento da preocupação de transcrever

meramente a realidade social.

As conseqüências advindas desse modus operandi da obra literária se fazem

observar numa atitude escritural que é própria das obras produzidas no período

imediatamente posterior à ditadura, o chamado Pós-64: a auto-contemplação do

processo de construção do texto literário. Renato Franco (1998) afirma que é próprio

desse período histórico-político “a conquista, por parte da elaboração romanesca, de

uma aguda autoconsciência estética acerca das próprias condições sobre sua atual

natureza ou a do ato narrativo e também sobre a condição particular do escritor em uma

sociedade que parece conspirar contra sua mera existência” (p. 122).

No romance As Meninas, a personagem Lia representa, conforme vimos nos

fragmentos anteriores, o sujeito actancial que agencia as falas e o olhar sobre os

modos de opressão social internalizados na narrativa. Além de sua função testemunhal

direta da violência – como guerrilheira -, ela encena, como escritora, o questionamento

sobre a (im)possibilidade da escritura no período. Além dessa personagem outras

questionam polifonicamente esse lugar da literatura, orquestrando na narrativa uma

espécie de “voz autoral” auto-avaliativa:

(...) Muito bem, muito bem. E o livro? Disseram-me que tem um livro quase pronto. Segundo a informação, trata-se de um romance, Não? — Rasguei tudo, entende — disse ela soprando a fumaça na minha cara. — O mar de livros inúteis já transbordou. Ora, ficção. Quem é que está se importando com isso (AM p.18).

(...)

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Rasguei o meu romance, eu disse. (AM, p.21).

(...)

Contei que rasguei meu livro e foi como se dissesse que rasguei o jornal. Não gosta do que eu escrevo. Ninguém gosta, deve ser uma bela merda. Mas as pessoas sabem o que é bom? O que é ruim? Quem é que sabe? E se for válido? Não devia ter rasgado coisa nenhuma. Mas sei de cor, posso aproveitar o texto talvez num diário. Gostaria de escrever um diário. Estilo simples, direto. (AM p.22).

(...) Quem sabe um dia ainda vou escrever bem. Se isso acontecer. Tenho pensado num diário, diário deve ser mais simples, uma coisa assim despojada, a Lorena me aconselhou a escrever despojado, me acha barroca. Sou barroca por dentro e por fora, aceito. (AM, p.122).

Os trechos acima apresentam como característica comum algo que se aproxima

do que Telma Borges da Silva (1996) afirmou em seu texto “Inventário de ruínas”, no

qual analisa a feição alegórica da poesia de Baudelaire e Cesário Verde: “A cena escrita

(tenta) fazer-se sob o signo da visibilidade, traduz-se no ‘dar a ver’, mas se volatiliza” (p.

177). Esse desaparecimento de uma escrita que nem chega a se concretizar é

incorporado ao romance não apenas como linguagem, mas, pelo viés do método

alegórico, “penetra no logos poético e se manifesta como escrita ruínica que é a

absorvida no que é lido como figura do lido” (BENJAMIN: 1984, p.236).

O questionamento das personagens sobre o lugar da ficção no contexto

repressivo, apresentado nos excertos acima, sugere possibilidades de leitura sobre as

estratégias de elaboração do gênero romance no referido período, pois é peculiar ao

romance Pós-64, segundo Renato Franco, a consciência da impossibilidade de construir

uma sólida ilusão de realidade. Essa consciência faz com que ele se desnude,

“desmascarando suas pretensões, expondo seus procedimentos e sua arquitetura e

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revelando que é constituído por um sentimento de desorientação cuja análise pode ser

proveitosa” (1998, p.150).

Um pensamento análogo pode ser encontrado em Linda Hutcheon (1991), para

quem “A interação do historiográfico com o metaficcional em textos contemporâneos

coloca em evidência a rejeição de pretensões de representação autêntica e da

referencialidade histórica” (p. 141-162).

Serão esses pressupostos que nortearão as análises constitutivas dos próximos

capítulos. Neles tentaremos observar como as personagens protagonistas encenam

poeticamente uma vivência da morte na linguagem romanesca.

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CAPÍTULO II

A anamorfose como artifício poético da evasão

Neste capítulo, observaremos como o artifício poético da anamorfose permite à

narração movimentos internos de ruptura com as coerções contextuais, próprias da

ditadura, a partir de três recursos criativos: o delírio que se manifesta no discurso da

personagem usuária de drogas, as rasuras operadas em textos da cultura incorporados

intertextualmente ao romance e a onipresença da morte na temporalidade.

1. A droga

A temática da droga manifesta-se na linguagem pela personagem Ana Clara,

jovem que se droga e cuja imagem é trazida à visualização pela imbricação narrativa

das falas das personagens Lia e Lorena:

Vai mal a Ana Turva. De manhã já está dopada. E faz dívidas feito doida, tem cobrador aos montes no portão. As freirinhas estão em pânico. E esse namorado dela, o traficante... O Max? Ele é traficante? Ora, então você não sabe resmungou Lião arrancando um fiapo de unha de unha do polegar. E não é só bolinha e maconha, cansei de ver as marcas das picadas. Devia ser internada imediatamente. O que também não vai adiantar no ponto em que chegou (...) Lião está com medo. Ana Clara também posa de indiferente mas se não toma tranqüilizante recomeça naquele delírio ambulatório (AM, p. 13-9).

(...)

Enfim com Ana Turva é tudo sobre o delírio. (AM, p.152).

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A droga, artifício de desarticulação da lógica narrativa, terá como função, no

romance, o desencadeamento da virtualização da morte. Segundo Lévy (1996), a

palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado, por sua vez de virtus, potência,

força. Sendo assim, o virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, à

concretização efetiva ou formal. Entendemos, desse modo, que, no plano poético, a

droga presentifica um recurso viabilizador da potencialização narrativa, a anamorfose,

isto porque permite à linguagem uma performance delirante.

A anamorfose consiste num artifício de construção barroca que compromete o

princípio da simetria e da verossimilhança. Segundo SANT’ANNA,

a perspectiva simétrica renascentista desvirtua-se no Barroco. As proporções tornam-se mais expressionistas, o olho do pintor ou do espectador parece estar às vezes em estado alucinatório (...) em muitas obras barrocas ocorre um tumulto na superfície lisa, que deixou de ser espelho ou lago plácido para ser reflexo de agitação, sinuosidades e dramas que expõem o interior dos personagens e não apenas sua tranqüila face. (...) O espelho barroco, então, ao invés de simetria, passa a reproduzir tortuosidades; ao invés da objetividade, subjetividades. O espelho se converte em lente deformadora do real (2000, p.43)

A informação de que a personagem Ana Clara droga-se, conforme o fragmento

inicial, representa um elemento decisivo para compreendermos alguns procedimentos

da linguagem poética na obra. Por meio desse artifício, adentramos num caleidoscópio

discursivo, gerado pelo fluxo de consciência da personagem e deparamo-nos com uma

“palavra desatinada que se apresenta na escritura como [...] evasão compensadora das

opressões coerções e repressões” (CORTÁZAR apud YURRIEVICH, 1997, p. 22). Tal

“desatino da palavra” pode ser visto em passagens, como:

Os santos são transparentes que nem água. Tinha uma porção de agüinhas coloridas lá nos tubinhos de vidro. Lá no laboratório de

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química. Eu limpava e vinha o judeu velhinho que gostava de mim e me dava o avental para vestir e deixava eu lidar com as agüinhas. Me explicava as coisas das cores azul vermelho verde. As agüinhas mudavam de cor (...) os vidrinhos mudando de cor que nem nós. Olha, amor, bebo e viro arco-íris azul, amarelo, ai! Não me pega senão derramo. Eu sabia a música, como era? (AM, p.35).

(...)

As agüinhas escorrendo e eu verde amarela azul ah vou me tingindo de mar. Um mar amor. Vou boiando e as línguas verdes dos peixes me lambendo as pernas não! Grito me cobrindo porque a língua lambe meu ventre e me penetra tão quente ah amor. (AM, p.37)

As conjunções aditivas destacadas, que marcam a presença do polissíndeto,

iniciam várias orações e sintaticamente são necessárias, mas semanticamente são

oralizantes, além de melódicas. A repetição sucessiva desse “e”, chamado “e” de

movimento, dá fluidez ao texto, sugere movimentos ininterruptos e marca uma seriação

redundante e pleonástica, presentificando a perturbação mental da persoangem.

Entendemos, além disto, que essa marcação excessiva pelas coordenativas funciona

como esteio para dar suporte a ilogicidade do discurso.

Não obstante, é na figura da anamorfose barroca5 que podemos ancorar uma

possível leitura desse fragmento, pois, segundo SANT’ANNA, na anamorfose “a cena

retratada abandona a homologia com o real e rompe-se a linearidade entre o olhar e o 5 A anamorfose é definida por Affonso Romano de Sant’Anna como um recurso artístico ligado à perspectiva que exige do olhar o rompimento com a posição centralizadora. O efeito criado por esse artifício é perturbador, porque produz figuras enigmáticas diante do olhar convencional que só poderão ser vistas por um olhar oblíquo. Ainda segundo esse autor, as correspondências entre as anamorfoses e as alucinações e fantasmas da mente humana foram estudadas por alguns cientistas, como Thomas Willis, da Universidade de Oxford, em 1712, a partir da consideração da medula central como ‘câmara da alma’. Outros autores aproximaram a anamorfose de ’manias’, ‘melancolias’ ‘frenesis’. Na literatura, fora da época estritamente barroca, a anamorfose pode ser encontrada em obras de autores modernos como Henry James e a palavra foi utilizada por Lacan e pelo crítico Roland Barthes, para quem a atividade crítica é uma espécie de anamorfose, por guardar um efeito especular, porém autonomamente deformante e revelador. A arte expressionista também tem algo a ver com esse recurso, pois, sua obrigação não é com a verossimilhança total e imediata. A deformação de um detalhe fala pelo resto do conjunto. Nisso essa arte é eminentemente alusiva, metafórica e alegórica. (CF. SANT’ANNA: 2000, p. 54-5).

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quadro. O olho olha, mas não reconhece o que vê retratado; os traços lhe parecem algo

caótico, os volumes se assemelham a um turbilhão de formas retorcidas e sem sentido”

(op. cit., p. 49).

No romance, o processo da anamorfose é gerado pelas distorções de foco do

olho da personagem drogada. O estrabismo desse olho está presente em construções,

como: “Agora ela ria, a face corada, os olhos brilhantes, ligeiramente estrábicos” (AM,

p.223) “Passou um anão agora mesmo no canto do meu olho mas já sumiu” (AM,

p.77). Ela então me olhou em silêncio. E seu olhar que em geral é oblíquo ficou reto.”

(AM, p.55).

O olhar enviesado, transtornado e perturbado pela droga, instrumento de uma

percepção visual distorcida que instaura uma perspectiva diagonal de observação,

configura-se como espaço da transgressão da linguagem e sugere que o artifício da

anamorfose no romance pode estar relacionado a uma idéia de experiência visual

internalizada no sujeito observador, revelando que: “A visão e seus efeitos são sempre

inseparáveis das possibilidades de um sujeito que observa, o qual é tanto um produto

histórico quanto local de certas práticas, técnicas, instituições e procedimentos de

subjetificação” (BARROS: 2002, p.39).

Nessa perspectiva, podemos afirmar que a “alucinação discursiva” da

personagem desencadeia um processo de subjetificação irracional, como forma de

contraposição barroca à tentativa de imposição da ordem, própria do (con)texto

ditatorial. Sendo assim, o princípio da evasão surge porque:

No lugar da disciplina em que cada coisa está em seu lugar, surge o ajuntamento, o aglomerado. No lugar do pré-visível, o in-previsível; no lugar da ordem estratificada, uma espécie de não-ordem em ebulição,

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quase caótica; onde havia imobilidade, estabilidade, tranqüilidade, irrompe a instabilidade, a insegurança, a vertigem. (SANT’ANNA, 2000, p.48).

A viagem vertiginosa viabilizada pela droga ganha proporções cada vez maiores

na narrativa:

Os diabinhos ainda voam por aqui e brincam comigo e eu dou beliscões em Max que nem sente. É festa? Esqueça esqueça. Levanto a cabeça e entro na estratosfera podre de azul grito azul e deslizo azul até o chão rastro veludo-e-ventre a gente devia andar só assim liquefeita e azul colada ao chão escorrendo os braços de rio sem nenhum perigo de cair nem nada. (AM, p.73).

Uma tentativa de explicação para a irracionalidade presente nessa pura imagem

como expressão poética, pode ser encontrada em Bachelard (apud LAFETÁ, 1986),

que depõe:

O espelho sem moldura que é um céu azul desperta um narcisismo especial, o narcisismo da pureza, da vacuidade sentimental, da vontade livre. No céu azul e vazio, o sonhador encontra o esquema dos sentimentos azuis da clareza intuitiva, da felicidade de ser claro em seus sentimentos, seus atos e seus pensamentos. O narciso aéreo mira-se no céu azul (p.168-9).

Uma leitura complementar das imagens derivadas do “céu azul”, ainda à luz das

contribuições teóricas de Bachelard, revela que os “devaneios aéreos” baseados neste

tropo tendem todos à desmaterialização e à dissolução do ser, construindo uma visão

poética em que “o mundo imaginado é posto antes do mundo representado e em que o

conhecimento poético precede o conhecimento racional dos objetos. (Bachelard apud

LAFETÁ, 1986, p.166).

Esse ponto de vista aéreo pode ser visto também como a evanescência, a

desmaterialização, a liberdade do texto numa cultura que nega esse valor. Assim,

apropriando-nos das palavras de Marcuse (1975) “o clima que desprende do texto é tão

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propositalmente irreal, a direção que segue é tão forçada no rumo do sonho, que ele se

ergue como verdadeiro antípoda das relações sociais existentes, revelando o conteúdo

arquetípico: a negação da não-liberdade” (p.135).

A droga permite à linguagem empreender uma viagem em liberdade, uma

peregrinação aérea e fantástica:

― Aterrissar! Aterrissar! ― Gritou Max abrindo os braços e desabando de bruços no travesseiro (AM, p77). Ana Clara: (..) A gente tem que conhecer as coisas todas chegar ao fundo do poço e depois dar aquela arrancada de avião uiiiiiiiim! (AM, p.73). Procuro no chão um cigarro. Bebo na garrafa e fico tragando até chegar à estratosfera. (AM, p.71). Rolo nas nuvens

O deslocamento do ponto de vista da horizontalidade para o alto possibilita a

visão ilusória da plenitude. Cremos que o ponto de vista aéreo na escritura de Lygia se

aproxima da ânsia pela liberdade, ainda que às custas da ilusão criada pelo jogo ótico

entre a aparência e a realidade gerado pela droga.

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2. A poética da devoração no romance

Além da evasão propiciada pela droga, a personagem Ana Clara agencia outro

modo de manifestação da anamorfose: o excesso narrativo resultante da apropriação

de fragmentos narrativos pertencentes aos contos populares e fábulas tradicionais.

Nosso interesse, neste capítulo, é destacar e analisar as dominantes desse artifício de

construção na obra, na tentativa de reconhecer mais um traço de ruptura do texto

literário com o discurso unívoco da ditadura, além de tentar demonstrar um traço

neobarroco presente no romance: a unidade esfacelada e irrecuperável da palavra

tradicional.

A personagem-narradora Ana Clara arquiteta um discurso auto-reflexivo tecido

pela (re)apropriação de restos, fragmentos e repetições de textos que circulam na

cultura. Para a elaboração desse procedimento é utilizado um traço compositivo

característico do neobarroco: a estrutura da repetição e da citação.

Queria ter uma abóbora em lugar da cabeça mas uma abóbora bem grande e amarelona. Contente. Semente torrada com sal é bom pra lombriga ainda tenho o gosto e também daquele remédio nojento. Não quero a semente mãe quero a história. Então à meia-noite a princesa virava abóbora. Quem me contou isso ? Você não mãe que você não contava história contava dinheiro. A carinha tão sem dinheiro contando o dinheiro que nunca dava pra nada. (AM, p.27).

É possível observar, de acordo com o fragmento acima, que a estrutura da

repetição em Lygia subverte o conto tradicional. O fragmento “à meia-noite a princesa

virava abóbora” difere da informação do conto: “à meia-noite a carruagem viraria

abóbora se a gata borralheira esquecesse o aviso da fada madrinha. No romance, além

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da permuta lexical carruagem/princesa, a forma verbal no pretérito imperfeito – virava

- indica que o fato ocorrido é habitual, caracterizando-se, portanto, pela repetição do

acontecimento, o que elimina o aspecto condicional. Essas permutas sintático-

semânticas, estabelecem uma rasura em relação ao conto popular e geram uma

tensão dialógica intertextual. Como conseqüência desse procedimento, a linguagem

conota um indício de dissolução da história verdadeira, substituindo-a por uma história

possível.

Uma leitura possível dessa tensão dialógica operada pelo discurso da

personagem pode ser explicada pela apropriação, na alegoria moderna, das “ruínas de

dicção poética” pois, segundo Vianna (1985, p. 159) “Nascida sob o signo de uma

violência (a da ruptura com a experiência e a tradição, substituídas pela vivência de

choque) a alegoria presta-se à valorização do escatológico, do excessivo, do grotesco e

da devoração”.

Além da apropriação do conto popular, presente no fragmento analisado acima,

outra forma de devoração intertertextual aparece na usurpação, pela personagem, de

diferentes identidades com as quais tenta, provisoriamente, construir a sua:

Rasgo a certidão com o pai não sabido e ignorado e quero só ver. Certidão nova pago uma certidão nova com pai conhecido e sabido. Batizo meu pai pra me casar não posso? Nome de imperador. Então. (...) Caio César Augusto. Caio César Augusto Conceição.

A hibridização do nome do antigo imperador romano com parte do nome da

personagem, “Conceição”, revela-se como artifício poético de comprometimento de uma

mímesis ético-representativa, em favor de uma linguagem cujo pendor permutacional

revela seu caráter de signo vazio: ”Meu pai era francês. Jean Pierre Lariboisière.

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Lariboisière? Sei lá na hora decido meto o nome que entender não estou pagando?

O Conceição é da mãe.“ (AM, p.73).

A apropriação de estruturas de histórias de amor novelescas é outro recurso

utilizado pela personagem para construir sua história:

Então a velha quis saber por que eu andava assim quietinha. (...) Então a velha quis saber. Meu pai morreu num desastre de avião e minha mãe está com câncer. Ela então se benzeu meu Deus que horror. Que horror ficou repetindo e sacudindo a cabeça e me consolando porque eu já comecei a chorar “ah minha pobre menina minha pobre menina.” Vai acontecer que nem nas besouragens da mulher importante que adota uma órfã pobre e bonita. E vem um sobrinho orgulhoso e cruel porque me visto mal mas logo fica vidrado de amor e se atira em mim que nem. (AM, p. 76)

O decalque explícito de categorias narrativas que fazem parte do repertório

tradicional, de acordo com o trecho destacado “Vai acontecer que nem” é recuperado

em eco na última construção “que nem”. Esse artifício de incorporação da repetição na

estrutura sintática possibilita ao texto uma abertura semântica para a leitura bem como

para a incorporação de outros textos possíveis, apontando para uma incorporação

textual ad infinitum.

Não obstante, num processo de construção antitética, o texto que mal começou a

ser construído ameaça ruir: conforme podemos ver no trecho, a velha, que parecia

ocupar a categoria proppiana6 de auxiliar da heroína, acaba por ocupar a posição de

antagonista:

“Mas isso tudo é mesmo verdade?” estranhou a mulher enquanto ia tecendo um tapete fazia um tapete e era exigentíssima tanto no trabalho como no questionário. Antes de falar eu precisava falar mas

6 Referimo-nos aqui às categorias dos contos populares russos sistematizadas por Wladimir Propp (2006). Em seu estudo sobre as funções dos agentes narrativos, o autor apresenta como uma das categorias a do coadjuvante, ocupada nos contos de fadas pela fada madrinha, personagem que auxilia a heroína em sua trajetória. No romance, é possível observar que há uma ruptura: a velha que ouve a história da personagem passa a ocupar outra categoria proppiana: a da antagonista. Vale ressaltar que a atitude interrogativa que ela assume no discurso é definida por Propp como Interrogatório e consiste num meio utilizado pelo antagonista para obter uma informação.

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ela trabalhava tão depressa com a agulha que comecei a me enredar nos fios. Aconteceu quando meu pai guiava um Opala e ela parou a agulha. “Opala? Mas não foi num avião?” Recomecei a chorar para ganhar tempo. Primeiro foi com um Opala e depois.”Mas seu pai tinha um avião?” ela se espantou. Ele era o aviador. O avião era de um velho que lidava com petróleo. “Petróleo?” Petróleo sim senhora. “Como se chamava esse homem. Esse patrão do seu pai.” Ah lá sei. Sei que era um homem importantíssimo tinha avião tinha iate. Ah. “Ah ― fez ela recomeçando o maldito tapete. ― E depois” Depois o avião se espatifou nas pedras tinha caído uma horrível tempestade e meu pai perdeu o controle foi isso. Então minha mãe piorou lá do câncer dela e perdemos tudo e fomos morar com meu tio que é um grande médico. “Médico? Qual é o nome dele?” Fui ficando com raiva então era só ir fazendo a vontade dela? Um grande médico sim senhora importante á beca tio Clóvis. Já ia perguntar o nome dele quando entrou a vesguinha. Tinha uma concha na mão. Clóvis Conchal respondi sem pestanejar. Clóvis Conchal repeti e antes que ela me cutucasse com mais perguntas como cutucava o pano dei um grito sacudindo a mão uma vespa! Saí correndo ai que dor ai que dor. Não se voltou a falar no meu pai não sabido e ignorado nem na minha mãe que tive a idéia de sentar na sala de espera da morte nada melhor que a morte para apagar as pegadas como a onda apaga toda a escrita da areia. (AM, p.76-7).

Essa “atitude” da personagem pode ser explicada, numa aproximação com a

análise do teatro pós-moderno apresentada por Steven Connor (2000), por uma “recusa

da narrativa” que resulta numa concentração de forças não mais “no ímpeto e coerência

narrativos, mas sim na “superposição ou ‘arrumação de camadas’, o repisar, a citação,

a repetição (...) a duplicação, a ‘fantasmagoria’, a tradução, a transferência”. (p.117),

processos que desnudam o procedimento da bricolagem textual.

Outra forma de manifestação da intertextualidade como recurso estruturador do

drama da linguagem neste romance é, conforme se deduz do trecho citado, a

incapacidade de narrar. A personagem inventa uma história para enganar uma outra

personagem, duplicando a ficção; não obstante, é desmascarada por aquela a quem

deveria enganar. Ao contrário de Scherazade que consegue, em suas Mil e Uma

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Noites, uma narrativa infinita, Ana Clara vê sua história-trapaça questionada, conforme

vimos no fragmento.

O erro na tessitura dos fios é fatal. A mulher-Penélope traz em si a ambigüidade

do tecer / destecer. O “tapete”, mal se constrói, é desfeito. A história desmorona. A

pergunta da tecelã “Mas isso é mesmo verdade?” força o reconhecimento do estatuto

ficcional. O artifício narrativo utilizado pela personagem - a sobreposição de textos – e a

contrapartida de sua interlocutora, a desconstrução do fio narrativo, conduz-nos à idéia

de Roland Barthes de texto como jogo,

... engendramento perpétuo de significantes. Não segundo uma via orgânica de maturação, ou segundo uma hermenêutica de aprofundamento; mas antes de tudo segundo um movimento serial de desencaixes, de imbricações, de variações; a lógica que define o texto não é interpretativa mas metonímica; o trabalho das associações das contigüidades, das relações, coincide com uma liberação da energia simbólica. O Texto é deste modo restituído à linguagem; como ela é também estruturado, mas desfocado, sem fechamento. (apud SEGOLlN,1978, p.101)

Essa perspectiva de construção textual aponta, segundo Segolin (1978) para a

textualização da personagem, em detrimento de sua presença na obra como “função”.

Resulta desse processo que, do ponto de vista funcional, os agentes narrativos sejam

desfigurados definindo-se como “atores-discurso que dão vida ao texto mediante o jogo

metalingüístico de seus conceitos” (p. 102).

Outra problematização gerada pelo jogo estabelecido entre a personagem e sua

interlocutora, a mulher que “quer saber a verdade da mentira”, pode estar relacionada

ao problema da verossimilhança, aspecto responsável pela coerência da narrativa. A

escritura lygiana aponta, nessa perspectiva, para a questão da coerência verossímel,

ausente na fala da personagem, remetendo-nos ao necessário reconhecimento de que

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“a narrativa literária é uma fala mediada e não imediata e que, ademais, está submetida

às restrições da ficção” (TODOROV, 2003, p. 41).

Outra interpretação possível para o fracasso da narrativa construída pela

personagem pode estar relacionada ao “não contar mais?” benjaminiano. Assim, o

encontro da personagem com essa “velha” que “sabe” remete-nos à relação entre

narração/experiência na modernidade. Esta última, conforme depõe o teórico, nos foi

subtraída, gerando uma “pobreza de experiência que não é mais privada, mas de toda

a humanidade” (BENJAMIN, 1994, p.115).

Sobre essa busca desesperada por uma história redentora, embora

conscientemente “falsa” e, por isso, sempre ameaçada pelo desmascaramento, é

interessante atentar para o que nos diz Richard Sheppard (1989), ao tratar da crise da

linguagem nas obras literárias modernas: “O poeta deixa de ser o celebrador de uma

ordem humana, e torna-se o experimentador que busca uma ‘imagem redimida e

redentora’ quase impossível em meio a um universo mutável, num processo

aparentemente caótico, como que tentando manter um equilíbrio na beira de um

penhasco em desmoronamento” (p.269).

Desmoronamento, ruína; do romance e da personagem. Escritura e morte

imbricam-se mutuamente na imagem do “apagamento”, instaurando o drama da

linguagem na fala da personagem, como podemos ver neste trecho do fragmento citado

acima: ”tive a idéia de sentar na sala de espera da morte nada melhor que a morte pra

apagar as pegadas como a onda apaga toda escrita da areia”.

Entendemos, ainda, do fragmento anteriormente destacado, que ele expõe a

face do sujeito pós-moderno e revela-nos que

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o sujeito em crise, problematizado, é o das práticas discursivas, entre as contradições, sem identificação: sua subjetividade está entre as malhas da narrativa (tapete/tessitura), inserida nos/entre gêneros textuais. Na página branca do texto, inscreve seu diagrama humano com as marcas corporais, gestuais e performáticas de tensão expressiva, a fazer de toda palavra uma citação ou variável de arquétipo em estado de virtualidade que preexiste a toda produção textual (PALO, 2004, p. 7).

Atestando essa condição de sujeito contraditório, cuja identidade é sempre

forjada no/pelo discurso e cuja função é, conforme depõe Benjamin sobre a função da

personagem no Drama – servir meramente aos propósitos da peça-tapete - é no

diálogo parodístico com a fábula que se dá a continuidade, sempre ameaçada, da

“diagramação” narrativa desse sujeito:

Eu iria à festa com meus trapos mas quando o príncipe me visse entre as debilóides das princesas. Na minha história nem faltava a amiga vesga e rica já se esquivando porque a comparação era inevitável. “Quando meu amor completar quinze anos vai ser operada da vista na Inglaterra não é amor?” E o amor envesgando ainda mais de pura alegria o bocão rindo rindo. (AM, p. 78 ).

(...) Tenho que contar uma história bem contada. Sou a Gata Borralheira meu príncipe. Chegou minha tia rica com minhas primas peitudas e me proibiram de sair de puro capricho a mais velha e mais nojenta fazendo beicinho “mamã mamã a prima é mais bonita do que eu! Uá uá!”... Cobriram minha cabeça com tanta porcaria que quando chegou o cara da corneta aquele dos avisos só se viu no borralho um monte de cinza. “Além das vossas bigodudas filhinhas não existe no vosso palácio nenhuma outra donzela que possa ser a dona deste sapatinho?” A tia então puxou as filhas para o meio do palco: “Nenhuma meu senhor. Na realidade só temos na cozinha uma trapenta bastarda que jamais poderia calçar tal mimo. Vamos meus tesouros cortem as pontas dos vossos dedinhos e o sapatinho vai servir como uma luva.” ― Que horas são? As horas, tenho de saber as horas! (AM, p.89-90).

O reconhecimento da personagem, conforme o fragmento, de que necessita

articular uma história com base na reapropriação de uma preexistente para simular a

sua, e a idéia de “palco,” presente na releitura do conto, apontam para o jogo artificioso

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da criação e para o traço parodístico do diálogo intratextual. Esses recursos discursivos

“constroem na narrativa o jogo contrapontístico fixidez/mobilidade, permitindo que o

texto oscile entre a alteridade e a dialogia; identidade e não-identidade, ego e não-ego“

(ELIAS,1989, p.112).

Vemos como resultado dessa busca obsessiva da personagem por uma história

possível, ainda que conscientemente falsa, a narração como

a não-orientação do homem em um mundo fragmentado e opaco. As indas e vindas do movimento narrativo, descaminhos de uma narração sem alvo. Esses movimentos desconexos são absolutamente necessários, são tentativas de reconhecimento, vagaroso estabelecimento da consciência de que algo se perdeu e foi esquecido. Assim recupera a transmissibilidade da narração. (FRANCO, 1998, p.153).

Nesses “descaminhos da narração”, a proximidade do desfecho ruínico ronda o

percurso escritural da personagem e sua figuração é inserida pelo encontro de Ana

Clara com um homem que logo ocupa a função, sempre aberta, da figura que “falta” - o

pai:

― Boa noite. Tem um velho na minha frente dizendo boa noite. Mas o que quer esse velho. Parece um mendigo com esse impermeável as pessoas estão ficando confiadas. Quer minha companhia o vagabundo. Está desacompanhado. Eu também. A noite dos desacompanhados. Esvazio o cálice. Estou serena como uma rainha é glorioso se sentir rainha. Se sentir outra. Chega de Ana Clara. Sou Lorena (...) ― Vou encontrar meu marido. Ele quer dizer Alguma coisa e não diz. Saiu esfregando no ladrilho sujo as solas do sapato sujo. E se for meu pai. Se de repente é meu pai. Corro atrás dele. Toco no seu ombro. Fico me procurando na sua cara. ― O senhor sabe que horas são? Ele mostra o pulso de pêlos grisalhos o homem que podia ser meu pai não tem relógio. Preciso me segurar porque senão caio em prantos. Que felicidade. Estou feliz feliz. Talvez seja. Talvez não. Não interessa ele não sabe que é dois o que fica no bar e o que sai de braço comigo. Perdoei tudo. Eu tinha certeza que a gente ia se encontrar. Os homens na porta se multiplicam num jogo de

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espelhos. (...) A voz a voz me chamando. Me viro e ele está ali de braço dado comigo. Meu pai e eu na noite do mar. Ele não sabe de nada. Sou menina e ele nem sabe. (AM, p.173).

Com a aproximação do desfecho duplicado - da narrativa da personagem, que

desmorona, e do romance - o jogo ilusionista atinge o paroxismo e aproxima-se do

simulacro. A presença do pai parece significar, para a personagem, a restauração do

equilíbrio e conseqüente recuperação de seu status de heroína, conforme o trecho:

“estou serena como uma rainha”. No entanto, a dúvida posta nas condicionais: “e se for

meu pai se de repente é meu pai”, “Talvez seja. Talvez não seja,” compromete a

verdade do reconhecimento. Essa verdade é posta em xeque pelo fato de termos

conhecimento de que a personagem está drogada, daí o embaralhamento da

perspectiva de sua observação, que resulta na duplicação da figura: “ele não sabe que

é dois o que fica no bar e o que sai de braço comigo”.

Essa imagem paterna hipotética e duplamente fictícia – fruto da construção

romanesca e do imaginário da personagem – afirma a instauração decisiva da cisão do

sujeito e da linguagem poética, problematizando o estatuto da referencialidade objetiva

pois, segundo JAKOBSON (1999), “A supremacia da função poética sobre a referencial

não oblitera a referência, mas torna-a ambígua. A mensagem de duplo sentido encontra

correspondência num remetente cindido, num destinatário cindido e, além disso numa

referência cindida” (p. 150).

Além da ambigüidade, outro traço poético pode ser encontrado na recorrência ao

espelho como elemento que aprofunda o ilusionismo ótica da personagem e evoca um

traço barroco da linguagem. A construção: “Os homens na porta se multiplicam num

jogo de espelhos”. concretiza o estado de vertigem do olhar e presentifica o processo

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da anamorfose que estrutura a dramaticidade da criação da trajetória/identidade da

personagem.

Além das questões apresentadas acima, observamos que o pai “suposto” figura,

na narrativa, mais uma modalidade textual de (re)construção dialógica da identidade da

personagem, pois é pela fala dele que reconhecemos uma sugestiva toponímia: o termo

Bela. Vejamos:

Você é bela. Bela! (AM, p. 167) (...) Não é preciso táxi, minha bela. Mas meu Deus, você é mesmo bela, parece uma deusa. (...) A gente podia quebrar a perna, beleza. Se machucou? (...) ― Chorando, minha Bela? ― Meu nome é Lorena. Lorena Vaz Leme. ― Pra mim é Bela, só vou te chamar de Bela. Ganhava fácil num concurso de beleza. (...) Bela, Bela. Assim, quero você rindo... (...) Cuidado, Bela, segura em mim, torceu o pezinho? ― Que físico. Seu físico, Bela. (...) Não quero que tire nem as meias nem os sapatos, tenho paixão por meias pretas, assim bem compridas, estas vão até lá em cima? Vão sim ― murmurou beijando-lhe respeitoso as fivelas do sapato. ― Bela, Bela. ― Sim, Bela (...) deixa o mundo lá fora e aqui o nosso cantinho... Mas descansa, vem, deita aqui, bota a cabecinha aqui na almofada, pura paina. Não é macia? Está confortável assim? Bela. Vamos tomar um uisquinho pra esquentar, que tal um uisquinho? Escocês, minha Bela (...) Me deixa te olhar... Bela! ― Tenho que ir ― gemeu ela se agitando. Ameaçou levantar-se: ― Que horas são? ― Que é isso, que bobagem é essa? A noite é uma criança, Bela, vamos, bebe. Cuidado, não vai derramar na blusinha... ah, já derramou. Não faz mal, seca logo. Bela! ― Quero que fique bem quietinha, assim mesmo como está, inteira vestida ― murmurou com voz pesada. (...) Mansamente ela ficou rolando a cabeça na almofada. Cruzou no peito as mãos fechadas. ― Tenho que ir. Meu pai. Não interessa porque meu pai. (...) Gemendo, ele rastejou até quase tocar a boca espumosa na face da Ana Clara que dormia.

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Entendemos, com base nas marcas textuais destacadas, que o discurso poético

Lygiano “reorganiza”, transcria a história da Bela Adormecida por meio de um processo

de semantização do vocábulo Bela e de alguns traços indiciais da narrativa tradicional

presentes nos fragmentos apresentados: sapatos/urgência de ir embora/almofada

sob a cabeça/mãos cruzadas sobre o peito/sono/beijo na face. Observa-se, porém,

no que se refere à função do príncipe, que ela se hibridiza com a função paterna,

problematizando o dialogismo intertextual estruturador do romance.

Ainda conforme o fragmento citado acima, o sono da personagem, performance

estática do corpo em posição horizontal, aponta para o esquecimento do aviso já posto

no início da narrativa: “à meia-noite a princesa virava abóbora,” e estabelece outro

elemento o caráter mortal da linguagem: Para os princípios estruturadores do conto

popular essa ameaça é condicional e compromete apenas o status provisório da

heroína: o esquecimento resultará no retorno à condição anterior ao encontro com o

príncipe; no romance, o sono/esquecimento é prenúncio da morte iminente da

personagem.

Conforme foi possível observar na análise deste tópico, o agenciamento das

diferentes estruturas textuais, operado pelo romance, revela um jogo especular que, ao

compor uma “arquitetura de empréstimos e recriações textuais”, gera uma estrutura

aberta que questiona o fechamento de um discurso e contempla o exercício de

construção de um texto cultural infinitamente possível.

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3. A temporalidade da morte

A captura de uma visão do tempo em As Meninas é realizada com base nas

observações de imagens espaciais. Uma dessas imagens aparece como marca

temporal da onipresença da morte: a figura do relógio. Numa aparente tentativa de

conferir à imago mortis sua materialidade, esse objeto marcador do tempo que corre

sem cessar e compromete o destino da narrativa é referido obsessivamente no

percurso textual. Trazida à cena narrativa por referência direta ou indireta, sua inscrição

diagramática (circular), já se observa na organização estrutural da obra: Doze capítulos,

cuja numeração por extenso é posta como título.

Esse recurso numérico provoca um efeito paradoxal de progressão/regressão do

tempo na trajetória da personagem, conforme é possível perceber na sua urgência em

saber as horas:

― Max, que horas são? Seu relógio? Onde está seu relógio? ― Comprei um suíço que tem até cineminha. Aperto um botão e sai o horóscopo, [...] que relógio! As viagens, Coelha. O botão vermelho é dose de cinco horas, o azul dá uma viagem de um dia com direito a baldeação, desço e continuo noutro trem. E o botão preto, ai, esse botãozinho. Que medo! A piruleta branca já vem de traja preta no braço, vem de luto a marota”. (AM, p. 34) ― Que horas são? Que horas são, Max?

[...] ― Que horas são? ―Só relógio. Parece a Mademiselle Germaine atrás da gente com o reloginho de ouro, hora disto, hora daquilo, Maximiliano, tu es en retard! tu es en retard! [...] o andarzinho igual ao relógio, tique-taque, tique-taque. (AM, p. 40). ― Tinha um relógio grande assim na torre e eu queria me agarrar nos ponteiros, segurar as horas,por que é que o tempo não parava um pouco? Queria ficar lá dependurado, segurando o tempo. (AM, p. 69)

[...] ― Onde estou? Que horas são? ―Que horas são? As horas, tenho de saber as horas! [...] Entro e ele olha o relógio. Mas seu relógio não está adiantado

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amor? Nem me responde só fica batendo no mostrador a ponta da unha. [...] “meu relógio não adianta nunca”. Alma de relojoeiro devia ter nascido na Suíça. Aproveita e dá corda roque-roque. (AM, p. 90) ―Fico olhando o relógio em formato de oito, dependurado na

parede caiada de branco. O som também é antigo. (AM,129) ― Que horas são? Preciso ir embora já. Que é que eu digo, que é que eu digo. Não interessa. [...] Avise que me atrasei por que sofri um ligeiro acidente. E preciso prestar depoimento milhares de depoimentos. [...] Mas gastou todo esse tempo? (AM , p.164) ― Desde as oito e meia nessa esquina! O senhor tem horas? ― Desde as oito e meia? ― o homem estranhou. Apontou o dedo para o relógio embutido no painel do carro: ― Mas são quase onze horas menina. Aconteceu alguma coisa? (AM , p.168) ― O senhor sabe que horas são?

Do ponto de vista da visualidade, o signo que fecha as frases interrogativas

marcando seu “tom” de pergunta, o ponto de interrogação (?), sugere o pêndulo

oscilante do relógio, que marca o movimento paradoxal progressivo/regressivo do

tempo, de que falamos no parágrafo anterior. Sua função parece constituir, além disso,

a urgência do tempo do desfecho, que escoa sem cessar, e o retardamento da

narrativa, ao “quebrar” seu ritmo linear, comprometendo, conseqüentemente, sua

continuidade prosaica.

Sobre a função do relógio como expressão do tempo efêmero, Afonso Romano

de Sant’Anna (2000) afirma que, no período barroco, os relógios não apenas indicavam

as horas, mas tinham também uma função discursiva, polivalente, dizendo várias coisas

ao mesmo tempo, como, por exemplo, indicar informações relativas aos planetas. Além

disso, na Europa, muitos relógios tinham dentro de sua mecânica a figura móvel de

uma caveira exibindo aos fiéis o aterrador memento mori (op. cit., p.137).

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Podemos perceber essa “função discursiva” do relógio na cadência repetitiva das

perguntas sobre as horas, que revelam um percurso no qual o homem é determinado

pela compressão do tempo. A metáfora do tempo também é recuperada em outros

objetos que ocupam a função de marcadores temporais. Um exemplo disso pode ser

observado na referência à ampulheta, presente no monólogo de outra protagonista da

obra, Lia:

― Lembro da ampulheta quebrada, entrei no escritório do pai e para pegar o lápis vermelho e esbarrei no vidro do tempo. Fiquei em pânico, venço o tempo estacionado no chão: dois punhados de areia e os cacos. Passado e futuro. E eu? Onde ficava eu agora que o era e o será se despedaçara? Só o funil da ampulheta resistira e no funil, o grão de areia em trânsito, sem se comprometer com os extremos. Livre. Sou ― digo (AM , p. 245).

A ampulheta quebrada evoca os cacos – fragmentos significativos, resíduos

emblemáticos – com os quais a alegoria opera suas significações. Podemos entender

desse fragmento, ainda, o movimento que pulveriza uma concepção compacta do

tempo como totalidade. Ao estilhaçar-se, a ampulheta/vidro-do-tempo arremessa a

temporalidade a várias direções, marcando, com isso, mais uma vez, a tentativa de

descompressão evasiva do tempo pelo homem.

Esse poder de vaticínio presente em objetos como a ampulheta, também pode

ser explicado à luz das reflexões benjaminianas sobre as diferentes formas de

composição do drama barroco e da tragédia. Segundo afirma, o drama barroco é

movido pelo destino e marcado pela fatalidade. Mas, diferentemente do destino trágico,

fruto da maldição que se abate, geração após geração, sobre o herói trágico, no drama

de destino o que há são figuras não-trágicas, mas adequadas a peças consagradas ao

luto. Nesta perspectiva,

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a fatalidade não é distribuída apenas entre os personagens, ela está igualmente presente entre todas as coisas [..] Pois mesmo a vida das coisas aparentemente mortas adquire poder sobre a vida humana. A efetividade das coisas, na esfera da culpa, é sinal precursor da morte” BENJAMIN, 1984, p. 155).

Esta consciência da fatalidade está marcada na própria carne da escritura, em

outra imagem-metáfora temporal tecida num tapete:

Os olhos acostumados à penumbra viam melhor o tapete enrodilhado mas nítido: o tigre perseguia a gazela até montá-la nos dois lances seguintes, cravando garras e dentes em seu flanco de onde escorria um filete de sangue aguadamente azul. Outras gazelas perseguidas e abocanhadas se multiplicavam na lã e seda da miniatura oriental. Por mais que corressem ― como corriam! ― estavam todas condenadas. Alisou a cabeça espavorida da que saltava na moita. Procurou no intrincado do arabesco de folhas um caminho diferente que ela pudesse fazer para escapar do tigre iminente: teria que sair fora do tapete. A volúpia com que os homens criam e descriam a fatalidade em tudo quanto tocam. E depois atribuem a responsabilidade aos deuses [...] O lustre de pingentes de cristal rosado era outra fatalidade no teto. Também o relógio de parede dentro do longo esquife dourado e preto (AM, p. 209).

A idéia de texto como tapete, cujo desenho é “um intricado arabesco de folhas”

evoca a forma barroca, é recuperada na descrição do confronto entre a gazela e o tigre.

Presa deste, resta como única alternativa àquela “ter que sair fora do tapete”, ou seja,

sair da história. Entretanto, a gazela é parte do tapete/peça e foi tecida junto ao tigre,

conseqüentemente, advém daí o caráter fatal de sua condição, análoga à da linguagem

dramática que estrutura a obra: servir aos princípios organizadores da peça/texto.

A densidade dramática do tempo devorador e mortal emulada nesse relógio,

cuja caixa é “um longo esquife preto”, de acordo com o fragmento, eclode em todo o

seu esplendor figural no trecho: “O pêndulo tinha a forma de uma lira mas os ponteiros

eram setas agressivas “Só valem os números que apontamos” ― avisavam

empoladas, espetando o alvo. O som enérgico do coração mecânico batendo

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dentro do esquife. Que coisa mágica o tempo.” (AM, p. 209). A figura poética da

aliteração, presente na repetição da consoante fricativa “v” destacada, sugere a

velocidade e turbulência do tempo veloz.

A personificação do objeto/relógio no trecho do fragmento: “som enérgico do

coração mecânico batendo...” aponta para o valor expressivo da alegoria, qual seja o de

tornar perceptíveis certas características de realidades abstratas, relacionadas com

outras, concretas. Neste caso, por meio da figura do relógio dentro do esquife, a

natureza da relação tempo/morte emulada no objeto torna-se mais visível e se inscreve

alegoricamente no corpo da escritura.

Mas é no último capítulo – o Doze – que a referência ao relógio como metáfora

do tempo e alegoria da finitude surge dramaticamente, marcando a presença inexorável

do destino na morte da personagem — Tem tudo na bolsa de Ana [...] Tem até um

relógio de homem. [...] Olho o relógio: parado na meia-noite. Também pode ser no

meio-dia, não tem mais o tempo, não tem mais a morte. (AM, p. 254 –5).

A anulação da cronologia e a negação da morte estabelecem na narrativa um

espaço infinito de realização e rompem com as limitações do tempo historicamente

determinado. Temos aqui sugerido mais um movimento evasivo e contra-ideológico em

relação ao contexto da ditadura militar.

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Capítulo III

O trauerspiel do corpo escritural

“Dai-nos o veludo vermelho e essa veste florida, e o negro cetim, para que em nossas roupas transpareça tanto o que alegra os sentidos como o que aflige o corpo; vede quem fomos nesta peça, na qual a lívida morte costura o vestuário final.”

W. Benjamin

1. Simulacro e melancolia: a dupla face do corpo trágico

Uma leitura do corpo como locus de manifestação alegórica da linguagem

dramática em As Meninas, exige, inicialmente, que retomemos a idéia contida nos

capítulos anteriores de que os aspectos estruturais da obra agregam princípios

poéticos que visam à encenação, na narrativa, de uma “peça da morte. Sendo assim,

neste capítulo apresentaremos a figuração da mise-en-cène da morte nas páginas-

palco do romance.

Nessa incorporação poética da morte, a personagem Ana Clara agencia, mais

uma vez, o vórtice (des)agregador de funções que presentificam algumas categorias

referentes à constituição/dissolução do sujeito e da narrativa na pós-modernidade: a

fusão entre ser e aparência / concreto e abstrato / real e imaginário / sonho e realidade,

todas elas categorias do barroco, reconhecidas na arte atual.

A análise da idéia do corpo da personagem como recurso que emula, pela

visualidade, sentidos ligados ao seu valor de suporte imagético e analógico da

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figuração da morte está amparada pela premissa de que os artifícios artísticos de

constituição do corpo da personagem no romance (in)corporam, dois procedimentos de

construção aparentemente antagônicos que se enfrentam e se aliam na fatura da obra

de arte: o impulso da forma e o sentimento de caos, aspectos responsáveis pela

justificação da existência pelo estético, segundo Merquior (1969, p.129).

A apropriação de nossa leitura desses dois princípios apresentados por Merquior

justifica-se por entendermos que eles podem ancorar nossa leitura do simulacro e da

melancolia como pólos centrais da trajetória do corpo trágico na narrativa. Com base

nisso, rastrearemos uma géstica ou performance do corpo que instaura um duplo e

contraditório modo de aparição: a encenação do artifício, gerando um movimento para

fora – corpo para ser visto – e a eclosão do estado melancólico - que gera um

movimento para dentro (des)mascarando a artificialização.

Esse duplo movimento será analisado como as duas faces do espetáculo do luto

no romance; o spiel, instaurado na teatralização presente na géstica e na performance

da personagem (ênfase na imagem externa) e o trauer, como o semblante interior e

obscuro, que desconstrói a máscara dessa imagem espetacular.

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1.1 Disfarces da morte

O processo de construção da géstica da personagem Ana Clara, obedecendo

aos princípios do jogo narrativo especular, ora se apresenta pela auto-referencialidade,

ora pela fala das outras personagens:

Tenho um metro e setenta e sete. Sou modelo. Uma beleza de modelo. (AM, p. 26).

(...) Não está vendo meu cabelo ruivo? Minha pele. Tudo autêntico. Branquíssima. (AM, p. 71). (...) “Então em dezembro me costuro e em janeiro. Valdo faz o vestido o vestido. Quero branco. Estilo medieval. Pérolas um fio de pérolas brancas. Enormes.” (AM, p. 34). (..) Passo soberana entre as alas passo entre todos levando meu segredo como um navio. Sou um navio passando lá longe todo iluminado me vejo passando lá longe e é um espetáculo me ver passando no mar. Levanto a gola do casaco e fico um navio embuçado.(AM, p.167). (...)

Escovou os cabelos com energia renovada, eriçando-os para o alto até formarem uma coroa de anéis. Umedeceu na língua a ponta do lápis e acentuou a linha cor de ferrugem das sobrancelhas. Pingou colírio nos olhos. A mão tremia. Segurou o pulso enquanto passava nas pestanas o bastão de rímel. O bastão resvalou borrando a pálpebra. Recomeçou o duro movimento de guindaste, a mão esquerda sustentando a outra, o braço colado ao corpo, a boca entreaberta. Cerrou os olhos. “Estou bêbada?” (...) Sentou-se no chão para calçar as meias e a malha de seda preta. Foi enfiando no pescoço as correntes de prata espalhadas pelo tapete. (...) Vestiu o casaco de veludo preto que lhe chegava até quase os sapatos de verniz com uma antiquada fivela de prata. (AM,p. 161).

Apanhou o cigarro queimando no cinzeiro, fechou no peito

a gola do casaco e saiu devagar, pisando em zigue-zague mas aprumada, a cabeça erguida.(AM, p.162).

(...)

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Vai passar por nós com aquele andar de transatlântico, os ossos dos quadris furando as águas. E a cara oca de capa de figurino, ‘por acaso já nos vimos antes?’ Turbante de cetim branco com uma esmeralda combinando com o verde dos olhos tão mais belos do que a esmeralda, tem olhos lindos, ela é inteira linda, (AM, p.52).

(...) Ana Clara, pintadíssima e afetadíssima, mentindo a idade e o resto, as mãos sempre fechadas, é do gênero de mentiroso que fecha as mãos. (AM, p.53). (...) “Sei lá”, murmurou enquanto colocava o cílio postiço, operação que exige atenção integral porque sua mão treme demais. (AM, p. 55).

Os fragmentos evidenciam o fascínio operado pela aparência física da

personagem, seu “efeito” sobre o “outro” e sua condição narcísica. Muniz Sodré (1990),

em A Máquina de Narciso, no capítulo em que relaciona a droga e o sexo com o

simulacro, explica o narcisismo como “uma imersão do indivíduo e seu aniquilamento

num teleuniverso funcional e abstrato, mas fascinante porque narcísico – gerador de

sentimentos de auto-conservação e onipotência, liberação de consciência e

gratificação hedonista ( p.67). (Grifo Nosso).

Todavia, depõe ele mais adiante:

Uma contradição se instaura nessa condição narcísica, pois o narcisista depende dos outros para validar sua auto-estima. Ele não pode viver sem um público admirativo (...) sua aparente liberdade não o liberta para ficar sozinho ou glorificar-se de sua individualidade. Ao contrário, contribui para sua insegurança que ele só poderá superar vendo seu ’ego grandioso’ refletido nas atenções dos outros. (op. cit., p.68)

Conforme os fragmentos destacados da obra, é possível constatar na

personagem essa contradição de que fala Sodré, pois as vozes das outras

personagens instauram o contraponto de sua condição narcísica nas construções:

“pintadíssima e afetadíssima; a mão que treme demais; mentindo a idade e o resto, os

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cílios postiços”. Esse desmascaramento dos gestos artificiosos compromete a

verossimilhança da imagem e sua integridade formal, além de remeter nosso olhar para

um conjunto de fragmentos que compõem um espécie de bricolagem do corpo.

Um outro aspecto que pode ser observado nas marcas desconstrutivas da “pose”

narcísica apontadas anteriormente pode estar relacionado ao que Santaella (2004)

considera como uma estratégia escritural que apresenta uma tendência crítica em

relação à mercantilização dos corpos e dos egos do pancapitalismo. Segundo depõe a

autora,

muitos artistas exageram, de maneira parodística e potencialmente crítica, os simulacros do eu e do corpo em um mundo artístico reificado. É característico dessa estratégia tornar visível tudo aquilo que o verniz dissimulador das mercadorias oculta, como por exemplo, as subjetividades em sofrimento, incoerentes e errantes (p. 73).

O cenário é outro aspecto que também concorre para o efeito artificioso:

No dia seguinte fui saber se queria ir ao cinema. Não estava mas estava o vidro de perfume, o espelho e o vidro de colírio vazio. Um monte de roupa suja embolada debaixo da cama. As jóias, verdadeiras e falsas, espalhadas por toda parte. Um longo de cetim verde num cabide dependurado na porta do armário. O caos dos sapatos escapando por entre a fresta do gavetão. A peruca negra e o casaco de couro em cima da cadeira. A caixa de maquilagem esvaziada na cama, devia estar procurando alguma coisa que não encontrou. Nas paredes, retratos seus e de very important person. Fiquei comovida quando vi que pregara na cabeceira da cama a gravura de Chagall que eu lhe dera na véspera, um anjo verde abençoando o pecador roxo, ajoelhado no azul. O rosário de Madre Alix também estava ali exposto mas a presença do Anjo Sedutor pairava no quarto. Vulgaridade e beleza se misturavam no poster que tirou de biquíni colante e meias pretas, pose mais agressiva do que sensual. Chamei Sebastiana e lhe dei a trouxa de roupa para lavar. Aproveita e varra um pouco este chão, eu disse mas a mulher não despregava os olhos do poster. A beleza de Ana iluminou-lhe a expressão. A cara encardida clareou no impacto. ‘É artista?’ ― quis saber. Mais ou menos respondi.(AM, p. 55-6).

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Neste quadro cênico no qual se aglomeram diferentes imagens, é possível

localizar uma prática barroca que opera pela justaposição simultânea do sagrado e do

profano, do belo e do vulgar, do verdadeiro e do falso, obtendo, como efeito, um quadro

polifônico da personagem. A polifonia está presente também na apropriação de

expressões idiomáticas como “Very important person”, bem como no entrecruzamento

de diferentes linguagens, como a religiosa e plástica, que compõem a tela/página. No

excesso desordenado que se evidencia como efeito do conjunto, eclode a

(des)estruturação neobarroca do horror vacui na linguagem romanesca.

A saturação do artifício presente nos fragmentos oferece-nos, ainda, a imagem

performática da personagem como pouser e permite, como traço da modernidade, que

a gênese artificiosa da criação artística seja revelada. É possível localizar no “quadro

ótico” apresentado, a presença de uma metalinguagem visual reveladora da imagem de

um criador que se compraz em revelar os artificialismos de suas máscaras em

metáforas teatrais que criam “efeitos de vitrine” 7.

1.2 . O estado melancólico

COELHA! Ei, Coelha, você está dormindo? – perguntou ele. Sacudiu-a pelos ombros, — Que é que você tem que não se mexe. Ana Clara esforçou-se por abrir mais os olhos. Em torno do olho esquerdo desenhara-se uma orla de carvão na medida do aro negro de um soco. Esfregou os olhos com os nós dos dedos e o delineador das pálpebras marcou também o outro olho. Voltou-se sonolenta para a

7 Muniz SODRÉ explica que o termo surge no bojo da crescente produção de aparências gerada pela necessidade de exposição que a lógica da produção capitalista e da racionalidade moderna produziu. Para oautor, o vidro, com sua miraculosa transparência, bem como o espelho, fizeram com que o indivíduo começasse a ver com perfeição a sua própria imagem, exaltiva do eu. Nesse contexto, as vitrinas adquirem uma nova importância, na medida em que modificam o estatuto da mercadoria, convertendo-a em objeto-signo porque dotada de uma significação pregnante. (Cf. SODRÉ,1990, p.20).

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fumaça espessa que o abajur projetava no cone de luz. Beijou o ombro nu do jovem, disfarçando o bocejo numa mordida. Estou quase desmaiando, amor. Tão bom, Max. ―Então por que está assim gelada? Ahn? Parece que estou trepando num pingüim, você já viu um pingüim? ― Ela enrolou e desenrolou no dedo um anel de cabelo ― É que hoje não estou brilhante. ― Queria que me dissesse o dia em que está brilhante — resmungou ele sentando-se na cama . (AM, p.25).

(...) ― Estou com frio, Max, me cubra. Me cubra, amor ― disse ela. Debateu-se fracamente sob o corpo do jovem. ― Um frio. (AM, p.39). (...) Arrastando-se penosamente ela debruçou-se sobre o corpo dele e apanhou a garrafa do chão. (...) Voltou ao seu lugar, recuando de rastros como avançara (AM, p.44).

A figuração da acedia melancólica8 na performance da personagem, aspecto que

instaura o contraponto com a artificialização analisada no tópico anterior, é instaurada

na narrativa por meio de vocábulos caracterizadores de ações verbais relacionadas a

estado, como: Esforçou-se por abrir os olhos; voltou-se sonolenta; disfarçando um

bocejo; estou quase desmaiando e “É que hoje não estou brilhante”.

O esforço visível dessa performance simulada é questionado pelas falas

pertencentes ao namorado, destacadas no fragmento do diálogo: — Então por que está

assim gelada? E Queria que me dissesse quando está brilhante. Além desse

desmascaramento da inércia corporal, seu movimento ”sentando-se na cama” marca

uma oposição espacial em relação à Ana Clara e estabelece a relação

vertical/horizontal. É possível observar que a horizontalidade marcada pela inércia, eixo 8 O termo melancolia, até o século XVII, era concebido como uma disposição humoral-patológica, pela influência da doutrina estabelecida por Hipócrates no século V a. C. e difundida por Galeno para a Idade Média e o Renascimento, tanto na cultura árabe como na cristã. No decorrer dos séculos, o temperamento melancólico foi concebido como uma má disposição, intrinsecamente mórbida e propensa a diversas taras físicas e a temíveis doenças mentais. Foi Dürer quem contribuiu para a modificação dessa visão, ao criar sua obra Melencolia I, na qual figura plasticamente a dor de existir no gesto do homem que segura a cabeça com as mãos. Esse gesto, antiqüíssimo, presente em sarcófagos egípcios e templos clássicos gregos, foi recuperado também por Rodin em sua obra O Pensador. No século XVII, o termo caiu nas mãos dos literatos, que passaram a empregá-lo, num sentido lato, como um estado de ânimo subjetivo, vindo a ser às vezes, intercambiável com os termos ‘dor’, ‘tristeza’, ‘ensimesmamento’. Desengano é a denominação adequada que adquire a melancolia no período barroco, que toma a figura do Príncipe como paradigma alegorizante da perplexidade, tristeza, impotência e fragilidade humanas. (Cf. LINO, 2004, p. 182-3).

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sintagmático que permanece ocupado pela personagem, pode ser lida como índice de

sua morte no final da obra.

Além da permanência no plano horizontal, há nesse corpo “gelado” um elemento

indicador de uma imagética que Benjamin considera adequada para a alegoria:

natureza petrificada, objetos decadentes, objetos morbidamente frios, ruínas” (BUCK-

MORSS: 2002, p.43)

Não podemos perder de vista, do ponto de vista da narração, que o estado inerte

do corpo implica o comprometimento do movimento diegético, relacionado ao decorrer

do tempo e da ação narrativa e, desse modo, torna-se legítimo afirmar que “sobrepõe-

se à linearidade e temporalidade um verdadeiro espaço relacional, fruto do

privilegiamento das relações de equivalência entre predicados verbais e/ou atributivos,

que altera a fisionomia da personagem e da narrativa” (SEGOLIN: 1978, p.61).

O melancólico é o sujeito enlutado pela perda e pela falta de algo que o constitui

como unidade. De posse dessa ausência, torna-se presa da dor que passa a vivenciar

doentiamente. A personagem Ana Clara vivencia a situação da perda da mãe e do

desconhecimento do pai e, pelo recurso da memória involuntária, hiper-ativada pela

droga, “mergulha” nos abismos vertiginosos da rememoração, fazendo vir à tona a

infância nos subterrâneos dos edifícios inacabados da construção civil:

[...] “Cresci naquela cadeira com os dentes apodrecendo e ele esperando apodrecer bastante para fazer uma ponte pra mãe e outra pra filha. Bastardo. Sacana. As duas pontes caindo na ordem da entrada em cena. Primeiro o da mãe que se deitou com ele em primeiro lugar e depois. Fui passando pela ponte a ponte estremeceu água tem veneno maninha quem bebeu morreu. Quem bebeu morreu. Ela cantava pra me fazer dormir mas tão apressada que eu fingia que dormia pra ela poder ir embora de uma vez (AM, p. 28). [...] A mão gelada e fala quente mais rápida mais rápida a ponte. A ponte. Fechei a boca mas ficou aberta a memória do olfato. A memória tem um olfato memorável. Minha infância é inteira feita de cheiros. O cheiro da construção mais o cheiro de enterro morno daquela floricultura onde

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trabalhei. [...] o que eu quero é a ponte a ponte. A ponte me levaria pra (sic) longe de minha mãe e dos homens baratas tijolos longe longe (AM, p. 30-31).Mas esconder a minha marca. A marca escatológica. A Lião fala demais em escatologia [...] Diz que é a visão do fim do mundo escatológico sei lá. Mundo deles que o meu é outro. Me viro pra fazer sumir a marca (AM, 82). O mar. No mar esqueci minha mãe inesquecível (AM, p. 80).

Conforme pode ser observado no trecho destacado, a figura da mãe surge pelo

movimento rememorativo. Não obstante, sua aparição está associada ao desejo

impossível de esquecimento de um tempo doloroso que marca a infância. É importante

ressaltar que a associação dos vocábulos mãe/mar, presente no final do fragmento, traz

conotações simbólicas de interesse para nossa abordagem da melancolia e do luto,

pois Chevalier (1990) constrói um paralelo entre a homofonia das palavras francesas

mère = mãe e mer = mar, afirmando que elas mantêm a relação ambigüa da criação e

dissolução do criado.

A morte da mãe, obsedante nas impressões da infância é descrita pela

ruminação monologal da personagem:

Não tive pena nem nada quando ela veio me dizer que tinha de tirar mais um filho porque o Sérgio não queria nem saber nesse tempo era o Sérgio. “Não quero nem saber” ele disse dando-lhe um bom pontapé. Uivou de desgosto o dia inteiro e nessa noite mesmo tomou formicida. Morreu mais encolhidinha do que uma formiga nunca pensei que ela fosse assim pequena. Escureceu e encolheu como uma formiga e o formigueiro acabou. [...] Quando voltei de noitinha a primeira coisa que vi foi a lata aberta no chão. Fiquei olhando. Não chorei nem nada mas por que havia? Não senti nada. Tinha a cara no travesseiro manchado de preto e o corpo encolhido e retorcido como a formiga no rótulo da lata. (AM, p.72).

Não obstante afirmar que “não sentiu nada” pela morte da mãe, a personagem

vive um estado melancólico de perda presentificado na incapacidade de esquecer a

cena da morte. A imagem materna e sua associação com a dissolução é retomada nas

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cenas que dão continuidade às tentativas de esquecimento da figura materna por parte

da personagem melancólica.

Queria tanto esquecer e não esqueço. [...] Eu não quero lembrar e lembro. Sei que a infância acabou e que ela era uma.(AM, p.71). [...] Joguei longe lá onde passam os barcos minha mãe o quarto os homens as baratas as roupas. [...] Que frio quero o tapete. Vem Aninha, vem aqui no tapete eu chamo e eu obedeço. Não chora vem. A garrafa boiando na onda tem uma mensagem dentro se eu rastejar mais um pouco [...] Estou acesa com um holofote aberto no ventre. Deslizo e o ventreporto me leva às furnas onde me penetro e me escondo. Cuidado! A voz me avisa e abaixo a cabeça e vou remando abaixada porque o teto é baixíssimo. [...] O escuro das gretas [..] Levanto o remo e bato com força mas as ventosas se enrolam em minhas pernas e me puxam para o fundo mais fundo me larga! Arrebento os fios nos dentes e fico batendo até a dor ficar insuportável. Acordo. Estou molhada de suor. Fico olhando o meu ventre latejante. Limpo a cara no tapete. Tinha que engravidar? Tinha. Debilóide. Engravidando igualzinho (AM, p. 79).

A fanopéia9 cria o efeito imagético do corpo da mãe – lugar escuro - do qual a

personagem foge, mas para o qual retorna, agora pela repetição do ato materno: a

gravidez. A dor da repetição do erro, sintetizada no trecho: “debilóide, engravidando

igualzinho”, ganha carnalidade poética na cena do aborto que pratica:

“Lena, me dá sua mão’, pediu Ana Clara. Deu-lhe a mão, constrangida: sabia que ela transpirava demais na mão e tinha horror de suor. Um suor frio como a sala, frio como a luz do holofote. Na estrita faixa entre o gorro e a máscara os olhos do médico eram frios. A voz branca de Ana Clara parecia vir filtrada através dos algodões: ‘Um, dois, três, quatro, cinco ... seis... sss...’ A luta metálica dos ferros se entrechocando. O peso do sangue na gaze. O hálito de éter se desfazendo no ar. Not to be.(AM, p.53).

9 Ezra Pound explica o conceito de fanopéia como um recurso por meio do qual é possível projetar o objeto (fixo ou em movimento) na imaginação visual. (Cf. POUND, 1973, p.63).

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A poeticidade dramática do último trecho estrutura uma imagética adequada à

concreção da morte pelo entrecruzamento sinestésico dos vocábulos “frio/luz/algodão”

e pela imagem da diluição gradativa do ser: ”peso do sangue/hálito de éter/ar/not be. O

efeito expressivo do som sibilante presente em ”sss” sugere a dor, mas também o

silêncio presente nesse ambiente ”branco”, página que registra, paradoxalmente, a

nulidade da vida.

No plano das relações entre literatura e morte, a anulação da vida pelo aborto,

presente no fragmento, pode ser relacionada à homologação escritural da violência da

ditadura, recuperando aquilo que Foucault, citado por Machado (2000) afirma ser a

característica constituinte da historicidade da literatura:

Assassinar, matar, recusar, negar, silenciar, conjurar, profanar o que é tido como essência da literatura,e, ao mesmo tempo, voltar-se, apontar, fazer sinal para algo que é literatura, mas que nunca será dado, que introduz sempre uma ruptura, que é um espaço vazio que nunca será preenchido, objetivado” (p.292-4).

Numa linha de pensamento similar ao de Foucault, Fernando Segolin (1978), ao

tratar da “anti-personagem” na literatura moderna como agenciadora da desfunção

textual e conseqüente problematização da função representativa da personagem,

afirma que

Ao se constituir para destruir, ao destruir para explicitar um nada que é negação do destruído, o texto, no caso, se propõe como um universo desfuncionalizado, como um grau zero ou como um silêncio.E a anti-personagem, que na sua desfunção e desintegração em relação à personagem tradicional se identifica com o texto, evidencia-se igualmente como um silêncio ou, o que dá no mesmo, com o um ruído que interpõe o branco de sua descomunicação ou o negro das palavras que a desconstroem ao significado multicolorido e comunicativo das personagens miméticas, construídas à luz de uma lógica rigorosa e de uma referencialidade apaziguadora (p.92).

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Nessa perspectiva, não podemos perder de vista a intertextualidade explícita,

criada pela palavra romanesca, com a obra crítica de Roland Barthes e presentificada

pelo discurso do monólogo interior da personagem-escritora, Lia: “Queria só saber com

quem está meu Grau Zero da Escritura que nem li”. (AM, p.207).

A zerificação, o nada gerado pela identificação da personagem com a atitude da

mãe, cria o vazio da falta e instaura o luto e a melancolia. LINO (2004), em seu estudo

sobre a melancolia em Grande Sertão: veredas e em Paradiso, afirma a existência de

uma metaforização negativa que proporciona a negação do próprio ser, anulando

qualquer pretensão de ser. Com base nos estudos de Freud sobre o luto e a

melancolia, a autora afirma ainda que:

A identificação é uma etapa preliminar pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em confomidade com a fase oral e canibalista do desencolvimento libidinal, deseja fazer isso devorando-o. É assim que ele internaliza o objeto amado e perdido, anulando-se como tal e propiciando o aparecimento da melancolia. Freud explica a identificação como a expressão da existência de algo em comum que pode significar amor. Sendo assim, a melancolia gerada pela perda gera um desânimo profundamente penoso, em que há cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, culminando numa expectativa delirante de punição. Diferentemente do luto, a melancolia manifesta um empobrecimento do ego em larga escala. As auto-acusações que o melancólico dirige a si mesmo são queixas dirigidas ao outro, a alguém a quem o melancólico ama, amou, ou deveria amar. São recriminações contra o outro que retorna ao próprio ego. Dando queixa do outro, o melancólico queixa-se a si mesmo (p.186-7).

2. O corpo-emblema da escritura ruínica

Não obstante a apresentação no capítulo anterior do argumento de que a figura

circular do uroboro está sugerida no relógio que pára à meia-noite, anunciando o fim

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trágico da personagem, no capítulo doze, o último (uma possível indicação das doze

badaladas do relógio do conto de fadas?), o fechamento dessa figura circular, que

assinala o fim da trajetória do herói, é problematizada pela teatralização da cena da

morte no quarto de Lorena, uma das personagens:

― Ela está morta. Estendo a mão querendo agarrar sua voz através do nevoeiro ― O que, Lorena. O que você está dizendo. O sussurro é álgido como o hálito de hortelã: ― Ana Clara está morta. (AM, p.237).

A partir dessa constatação, as personagens passam a encenar a peça da morte.

Para fins elucidativos, apresentamos três momentos dessa encenação que

denominamos três atos:

2.1 Primeiro Ato – O abismar-se narcísico

Mas não parecia uma piada? ― pensou Lia deixando-se conduzir pelo olhar aparvalhado. Os sapatos de fivela prateada colocados lado a lado, na porta do banheiro. A bolsa de verniz no chão (...) sem resistência o olhar se abateu sobre a face da morta. “Morta? Mas ela não está morta!” ― Lia quis gritar. Aproximou-se mais. Ana Clara as espionava pela fresta verde dos olhos. “Brincadeira, não é Aninha?” A meia-luz de vidro estrábico estava prestes a se abrir, o meio sorriso da boca prestes a se declarar, ensaiando qualquer coisa divertida, mas por que não dizia! Como se de repente achasse mais engraçado não dizer. (...) Lia aproximou-se. Dedilhou o pulso estático numa busca tão intensa que acabou por transferir para o pulso da morta o latejar do próprio dedo inflamado. Disse da morta? (...) ― Continua, Lena, não pára, acho que ela respirou! A voz de Lorena era um murmúrio de mãe que fala já cansada à filha brincando de esconder em algum canto escuro: ― Ana, Aninha, você está me ouvindo? Ana, volta. Volta, Ana, obedece, eu sei que você está aí, eu sei que está. Vamos, volta. (AM, p. 239). ― Hein, Ana Clara? Não vai mesmo voltar? (...) Vamos ver com o espelhinho. “Não adianta, chega!” ― pensou Lia tapando a cara com as mãos, ô! A maldita cena do espelhinho refletindo luminoso a boca da boneca,

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aprendera com o tio, ele fizera assim na avó Diú e depois não veio aquela sem olhar nos olhos, a vovó viajou comprido? (...) ―Tenho uma idéia, digo depois, mas por enquanto não grite, pelo amor de Deus, calma. ― Calma? Mas não vamos acordar Madre Alix? Acordar imediatamente todo mundo? Não é isso que vamos fazer? ― Espera, Lião. Por enquanto não vamos acordar ninguém, já disse, tenho um a idéia. Calma, sim? Esfrego a cara na almofada mas antes que os olhos fiquem outra vez transbordantes vejo Lorena apanhar o missal, largou o espelhindo e abriu o missal preto. (...) Ana Clara também já está numa posição formal, o chambre fechado, os braços dobrados na altura dos seios. Simplesmente dormindo depois do banho e do talco. Lorena devia estar satisfeita, conseguiu dar-lhe um banho antes da morte. (AM, pp. 341-2).

A morte da personagem marca seu desaparecimento enquanto identidade

original e revela a aparição poética do duplo. O simulacro e a duplicação com os quais

constituiu sua trajetória exigem, em contrapartida, sua extinção enquanto identidade

primeira. Segundo Sodré (1990) “Narciso abisma-se e morre em sua própria imagem,

porque esta efetivamente implica a morte de sua identidade primeira. A morte está

presente na sedução operada pela imagem especular. Ao ser e a sua verdade, opõe-

se, como força de extermínio simbólico e negação, o duplo” (p.41).

Para a escritura romanesca, a morte da personagem e independência do

simulacro – sua imagem - representa a morte das referências clássicas do real, dos

modelos de representação, onde ainda se poderia pretender equivalências entre signo

e realidade. Essa realidade estabelece para a linguagem o lugar do desejo, da ausência

desse “outro” que marca sua presença pela ausência. É nesse “espaço” da linguagem

que a leitura alegórica ganha legitimidade, pois ao marcar a ruptura da unidade e “falar

o outro elidido”, torna-se testemunho de sua existência.

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2.2 Segundo Ato – A alegorização da physis

Rezava no missal empertigada, os lábios se movendo quase silenciosos, os olhos transparentes. Total beatitude. (...) Em meio da leitura imperturbável, pousou a mão na testa de Ana Clara: ― Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona ei reqiem sempiternam. ― Lorena, tenha juízo e pára com esse teatro, entende. Você vai chamar Madre Alix e eu vou desaparecer (...) não posso ficar nem nas imediações quando essa morte explodir e a polícia se instalar nessa mansarda! Conforme os jornais ela morreu devido a uma dose excessiva de barbitúricos, sabe o que isso significa, não sabe? (...) ― Você é perfeita, as freiras são santas mas e eu? Deixamos o corpo lá no quarto, não chamamos ninguém, melhor ainda, carregamos o corpo... Não posso continuar (...) Ana Clara já virou corpo. Nomes, apelidos, tudo desapareceu e ficou só o corpo. Eu disse o corpo. Aceitei sua morte. E Lorena tomando providências sem maior aflição (...) toda composta acendendo seu incenso e pedindo calma. ― Lógico que você precisa sumir, querida. Deixa o resto por minha conta. ― Que resto? Ela sopra a brasa. O incenso começa a escapar em fios tênues pelos furos da ânfora dourada. (...) Abriu o armário e está escolhendo um vestido. Então a idéia maravilhosa é vesti-la? Evidente que não, deve vir mais coisa por aí, o modo como me olhou com aquele ar de sacerdotisa. A voz de vitral. Lorena estendeu na cadeira um longo preto com bordados prateados que começam na gola alta e descem com a fileira de botõezinhos até a barra. (AM, p.243). (...) já separou a meia-colante cor de fumaça e o biquíni de renda. (...) ― Tive a intuição. Disso que aconteceu, digo mais ― murmurou ela pondo as mãos sobre o vestido. Está lívida: ― Meu irmão Remo que me mandou este Kaftan de Marrocos, eu juro que pensei, é Aninha que vai usar isto não vou usar nunca nem me serve, imagine. Quem vai usar é a Aninha. Para sempre, intuí. Tive um estremecimento enquanto fechava a porta do armário, era como se estivesse fechando seu caixão. Pronto, começaram as iluminações. Desvio o olhar de Lorena. ― Podre de chique, hein, Ana Turva? Marrocos. ― E combina com os sapatos dela , pobrezinha. Pena que não tenha argolas de prata. Ela disse argolas? Vai fazer-de-conta que Ana está viva. (AM, p.244). (...) ― Mas o que você vai fazer? Não era preciso perguntar, seus gestos são nítidos. Ordenados. Tirou o creme-base rosado e começou a maquilar Ana Clara. (...)seus movimentos são rápidos. De uma eficiência exemplar. (...) sem

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cansaço, sem desfalecimento prepara o freguês como se não tivesse feito outra coisa na vida. ― Venha, Lião, venha ver. Ah, como ela está ficando bonita. Ajoelhada na cabeceira da cama, Lorena está sombreando de verde a pálpebra de Ana Clara. Às vezes se afasta um pouco para ver melhor o efeito. Parece satisfeita, o pincel na mão esquerda e a caixinha na direita, é canhota. Luminosa sob a base rosada,a face me parece agora mais distante. Desinteressada. Será só impressão minha ou a meia-lua dos olhos diminuiu? Está ligeiramente encoberta, como se a névoa da noite tivesse chegado até ali. Não me lembro de tê-la visto tão bem vestida e tão bem maquiada como nesta hora. Na poltrona, as correntes de prata. ― e os colares? ― pergunto. ― O vestido já tem muito bordado, fica mais fino assim (...) Os cabelos. Atenção especial para os cabelos. Vou buscar o frasco de perfume, faço questão de trazer o perfume. (...) não me seguro mais. Respiro bem fundo antes de falar: ― Você está exagerando, entende. Você sabe que está exagerando, não sabe? Estamos aqui feito duas dementes completas, presta atenção, Lena: vão botar ela numa padiola ou sei lá o que e daqui vai reto pra autópsia, sabe o que é autópsia? O médico vem e retalha tudo e depois costura. Fim. Tudo isso que você está fazendo vai ser desfeito na mesa de mármore, não tem sentido, Lena. Não tem sentido! ― tem sentido sim. Me solta, querida, estamos atrasadas. ― Mas ela não vai pra festa! Apanhou no chão os sapatos de fivela e delicadamente calçou-os na morta (...) ― Lena, daqui a pouco amanhece, tenho que ir embora antes que amanheça, certo? Mas não quero te deixar sozinha, diga logo qual é essa sua idéia e eu ajudo mas depressa, depressinha que no seu relógio já passa das três! ― Sim, vamos imediatamente ― murmurou ela entrando no banheiro, o chambre vermelho apertado contra o peito. ― Vamos, Lena. Essa bolsa atrapalha, você leva depois. Mas a bolsa tem que estar com ela, querida. ― Na cama? ― Mas ela não vai ficar na cama ― disse Lorena. Encarou a amiga: ― Ana Clara não vai ficar na cama. ― Não? ― Lógico que não. Ela não vai ser encontrada no quarto, ela não morreu no quarto, morreu noutro lugar. ―Onde? ― Numa pracinha. Mas por que você pensa que fiz esses preparativos todos? Vai ficar numa pracinha, tem um banco debaixo de uma árvore, é a praça mais linda que existe (...) ― veja que as coisas todas vão se ajustando, o carro, a neblina. Nunca vi uma neblina tão providencial, a noite estava claríssima, lembra?. (AM, p.248-9).

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Nos trechos destacados evidencia-se a tensão entre duas forças, dois vetores

simbolizados pelas falas das duas personagens, Lia e Lorena. O primeiro vetor está

representado em Lia, personagem que “aceita” a morte e gera um movimento para a

separação, o distanciamento (grande espaço da morte); o segundo vetor tem em

Lorena o valor que puxa para a presença, co-relação/co-munio (grande espaço da

vida). O corpo de Ana Clara funciona como o vórtice poético que concentra essas duas

forças relacionais.

No plano da linguagem, esses dois vetores presentificam uma prerrogativa da

linguagem literária como expressão que:

De um lado, reserva-se aos medos e desejos humanos em articulação com as experiências e os modos adotados por uma cultura; de outro, seu poder para desafiar as normas vigentes dessa cultura, contradizer e gerar tensões dialógicas dentro de si mesma, sabendo ser a linguagem essencialmente diálogo (PALO, 2004, p.5).

Além dessa primeira observação, é possível ver que o corpo morto de Ana Clara

abandona-se aos cuidados de Lorena, artífice que tem consciência de sua técnica e de

seu método, conforme os trechos destacados em negrito. Podemos ver nessa

consciência do artifício a presença do alegorista, para quem a visão da transitoriedade

das coisas e a preocupação de salvá-las para a eternidade estão entre seus temas

mais fortes (BENJAMIN, 1984, p.246).

Há, também, nesse embelezamento da morte operado pela personagem Lorena,

a presença de uma deliberação artística reveladora de que o artista é aquele que, em

vez de imitar a natureza, se permite retocá-la para corrigir suas imperfeições. Também

o poeta se torna, assim, um poderoso interventor capaz de tudo remodelar a seu bel-

prazer. Sobre essa tarefa do artista, Baudelaire declarou que ‘será sempre útil mostrar

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os benefícios que a arte pode extrair da deliberação e mostrar ao mundo que trabalho

exige este objeto de luxo que se chama poesia. (JUNQUEIRA, 2003, p. 38).

Esse “abandono do corpo” a uma técnica compositiva - vestuário, maquilagem

etc - é explicado por Santaella (2004), como um movimento que possibilita ao homem

lançar ao exterior suas funções,

se desprender do aqui e agora das circunstâncias, das imposições do meio ou das urgências vitais e projetar o que não estava aí. Desse modo, não é o corpo nu ou natural que estabelece a mediação ou fronteira entre o homem e o mundo, mas um corpo atravessado, modulado pela técnica, não sendo por acaso que esta se define como mediação. (...) Ao disseminar suas funções no espaço externo, nem o corpo nem o mundo permanecem os mesmos – o interior e o exterior, bem como a mediação entre eles, ganha novos contornos (p. 56).

A técnica do artifício, presentificada na ornamentação do corpo da personagem,

está relacionada à teatralização porque, analogamente à arte cênica, gera uma

duplicação: da trama da vida pela trama do drama, do espaço físico pela cena e do ser

humano pelo ator. Além disso, seu sentido primordial é

... dar visibilidade ao invisível, expô-lo como máscara e encarnação. A exteriorização – os elementos, as moldagens e as ações que a tecem – é sua anteface pública. Mas ela só pode existir, pela sua própria natureza projetiva, por uma relação orgânica e, no entanto, não poucas vezes opositiva, com sua outra face: a interioridade – alma, sentimentos , emoções, experiências íntimas e páthos de seu agente-paciente.. (GUINSBURG, 2001, p. 7).

A atitude de Lorena parece metaforizar também a atitude (re)criadora do artista,

em sua luta contra o curso inexorável e “natural” do tempo, pois, conforme Gagnebin o

artista “tenta, por assim dizer, adiantar-se ao tempo pela rapidez, criando imagens ao

mesmo tempo efêmeras e duradouras que dizem a junção do temporal e do eterno”

(2004, p.49).

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2.3 Terceiro Ato – A apoteose do artifício

― Lorena, você está brincando, não está? Quer dizer que vamos levar Ana Clara pra rua, ou melhor deixá-la sentada numa pracinha muito jóia e voltarmos? É essa sua idéia maravilhosa, Lena? (...) depois que tive essa idéia cheguei a sentir uma certa paz. Posso mudar, querida. Se a morte não tem remédio, posso ao menos salvar as circunstâncias! ― Você quer dizer as aparências.(AM, p.249). ― Lião, querida, compreendo perfeitamente, não estou pedindo que me ajude, é lógico. Mas eu vou fazer tudo exatamente como eu calculei. (AM, p. 250) (...) A rua está deserta, pelo menos até o limite onde podemos enxergar porque além é só um muro esfumaçado. (...) Sustento o corpo de Ana Clara contra o portão enquanto ela (Lia) abre a porta (...) bendita seja a noite e as casas com seus olhos fechados. (AM, p.252). ― Você é imaginosa, Lena, cabecinha privilegiada a sua. Mas tem uma coisa que se chama autópsia, o legista vai dizer que ela está morta há mais tempo do que você afirmou. Ou não? Quase me esqueço dessa palavra. Autópsia. O final fino como um estilete. O mármore. O rigor da mão profissional cortando tão profissionalmente, ainda o perfume do sabonete, ainda o talco. De qualquer maneira, ela está bonita, não está doutor? Tão bem maquilada, tão limpa. Eu sei que o senhor executa sua tarefa a frio mas desta vez vai recebê-la com mãos diferentes, a beleza ainda emociona. (AM, p.253). (...) Quando desço, Lião a enlaça como se fossem sair dançando as duas, o braço estendido para a frente procurando agarrar-lhe a mão. Conseguiu, palma contra palma. Flexionou-o e trouxe-o para o ombro num movimento tão doce que por um instante tive a sensação de que Ana Turva, comovida, resolveu colaborar, enlaçando-a (...) A pracinha redonda com a copa azul-cinza da árvore me pareceu mais íntima, mais secreta assim fechada pela neblina. (...) precisamos ir falando, falando em voz baixa mas falando como duas delirantes amparando uma terceira, a mais trôpega e a mais bonita, onde foi a festa? (AM,p. 254). Os bicos dos sapatos de Ana Clara resvalam pela areia tão branca quanto a neblina. Adivinho os sulcos que os bicos dos sapatos vão deixando na areia e penso que na volta preciso desfazer esses rastros. (AM, p. 254). A pedra do banco está gelada. Mas seu rosto está igual ao banco. Depois de sentada contra a árvore ela mesma tombou para o lado que quis e ali ficou equilibrada, a face na pedra, as mãos aconchegadas contra o peito. Faço da bolsa o travesseiro tomando cuidado de não marcar-lhe o queixo com o fecho. Cubro seu tornozelo com o vestido. Arrumo a fivela do sapato que entortou na caminhada. Limpo a poeira. ― Lena, vamos! Vamos! Aperto suas mãos geladas, penso em abri-las mas se ela quis assim.

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Não posso falar. Estou chorando e desfazendo nas solas das sandálias a marca que ela deixou. Entramos no carro. Ouço o queixo de Lião batendo. Ou é o meu? Contorno a pracinha mas já não vejo nem o banco nem a visitante, só a copa da árvore no nevoeiro (AM, p. 255).

A morte expõe o paroxismo do simulacro. O corpo-eídolon se oferece à

admiração, exposto em praça pública. O admirable visu eclode em todo o seu vigor.

Lorena, ao enfeitar o corpo, retirá-lo do quarto e expô-lo em praça pública (arena),

reencena o movimento barroco de ruptura do círculo perfeito, pois, conforme Sant’Anna

“ao se caminhar para fora do círculo, o movimento do corpo se transfere para os objetos

e figuras do cenário. O que estava oculto, elidido, expõe-se. E o que era um círculo

estático se transforma numa elipse em movimento, gerando a cena espetacular de

trompe-l’oeil que integra o ser e o parecer” (op. cit., p. 19).

O campo sintático-semântico dos termos frio/branco/neblina/nevoeiro/mármore

evoca a morte que ocorre num “final fino como um estilete”. A neblina, para Jean

Cohen(1987), representa um fenômeno poético que ele denomina “efeito de

velamento”. O nevoeiro “dissolve as formas, atenua as cores e apaga as diferenças

configurando uma verdadeira anunciação espiritual” (p. 237).

A referência textual ao doutor e sua função de autopsiar/dissecar o

corpo/cadáver - “o rigor da mão cortando tão profissionalmente” - parece autorizar uma

leitura da atividade crítica, pois, de acordo com a síntese construída por Gagnebin

(2004) do pensamento de Benjamin sobre a relação crítico/obra, também esta não deve

“preservar a beleza da aparência sensível, mas, uma vez estando esta beleza reduzida

a ruínas, prender-se a seus destroços e deles fazer objetos privilegiados de sua

meditação”. (p. 45)).

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A cena da morta deixada na ”praça mais linda que existe”, maquiada,

ornamentada e vestida com um belo “kaftan de Marrocos”, recupera poeticamente o

ritual da tragédia grega. Nesta destacavam-se “as vestimentas, responsáveis pelo

sentido de “real e irreal” (o próprio Dionísio) e a máscara, que tinha como “função

capital a ilusão trágica, mistura de desumanidade e humanidade. Atualmente, no drama

burguês, a máscara tem como substituta a maquiagem” (BARTHES:1982, p.75).

A “composição” pelo vestuário e maquiagem evoca, ainda, a figura do

manequim,

... símbolo de identificação do homem com uma matéria perecível, com uma sociedade, com uma pessoa; a identificação com um desejo pervertido, um erro. É assimilar um ser à sua imagem (...) ‘queimar em efígie’. (...) Tomar a imagem pela realidade (...) Esses manequins são destinados a desaparecer dos vestidos que usam como imagens admiráveis, mas efêmeras (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1990, 587).

No jogo entre o “ser e o parecer” instaura-se a ambigüidade do fim / começo da

vida da personagem e da obra. A aparência ‘desinteressada’ de Ana Clara, morta, pode

ser aproximada das “formas negativas de mudez, a mudez da letargia, da perda de

interesse, do desalento avassalador” ou o outro extremo do final “lacônico”, não o não

sei dizer mais, mas o “preciso dizer mais?”, que Clive Scott (1989) vê em alguns

poemas de Arthur Rimbaud. (p. 288).

O cenário escolhido para a exposição do corpo - a praça, ambiente ao ar livre -

pode ser associado também à dimensão existencial da tragédia pois, segundo

Barthes, “ao ar livre, o espetáculo não pode ser um hábito, é vulnerável, e por isso

insubstituível: a polifonia complexa do ar livre, vento, pássaros, sol, devolve ao drama

a singularidade de um acontecimento, é o lugar não da evasão, mas da participação”

(op. cit. p.72) . Não será esta também a dimensão existencial da Literatura?

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A praça dentro do romance representa, ainda, um dos espaços de manifestação

artística do theatro mundi barroco; o encontro entre o interior e o exterior - a criação

de praças e fachadas dentro do espaço do palco – que permite amplos exercícios de

urbanismo imaginário. “Ao reunir o interior e o exterior, o teatro tanto invade a cidade

quanto a traz para dentro do espetáculo” (SANT’ANNA: 2000, p.192).

No espaço do comunio (praça) torna-se também possível dialetizar a figura de

Narciso: como antagonista de Eros, o princípio do prazer, Narciso simboliza o sono, a

morte, o silêncio e o repouso. Mas não são esses traços, tomados de maneira

absoluta, que a poesia preservou. Conforme Lafetá (1986), citando Bachelard e

Marcuse:

Ao mirar-se na fonte e nela submergir, Narciso não está apenas abandonado à sua própria imagem, mas é o “centro do mundo. Com Narciso, por Narciso, é toda floresta que se mira, todo o céu que vem tomar consciência de sua grandiosa imagem. No cristal das fontes, um gesto perturba as imagens, um repouso envolve-as. O mundo é refletido é a conquista da calma. Um narcisismo cósmico prossegue muito naturalmente ao narcisismo egoísta. O narcisismo generalizado converte todos os seres em flores e dá a todas as flores a consciência de sua beleza. Todas as flores narcisam-se e a água é para elas o instrumento maravilhoso do narcisismo (p.193).

“A pedra do banco está gelada”, diz a personagem do romance. A morta, a

praça, a pedra, a perenidade. A beleza do corpo-ruínico: monumento que testemunha

os restos (mortais) do que “já foi e que já se foi; restos alegóricos do pretérito,

presentificados e presenteados a presentes posteriores” (KOTHE:1986, p.68). Corpo-

metáfora da Literatura: ruína transformada em documento; Não-ruína: índice de

possibilidades, concretização de um mundo possível, reconhecimento do existente,

alternativa ao status quo e oportunidade de dizer o que o poder vigente não quer que

se diga.

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A beleza durável da personagem morta alegoriza a beleza da palavra literária,

que jaz à espera de quem queira arrancá-la da mudez letárgica. Como nos diz Jean

Cohen (1987) “o que a ruína representa para o tempo, representa-o o navio para o

espaço. O navio é um aqui-além, como a ruína é um presente passado. O navio que

eu olho está aqui. Repousa docemente nas águas calmas do porto. E ao mesmo

tempo está além. Transcende as oposições espaciais, como a ruína às oposições

temporais” (p.242) .

O corpo durável e integrado à paisagem, encarna enfim, a Imago Mortis, pois,

Somente a partir do que os atores fizerem, isto é, ‘performarem’, poderá corporificar-se no palco a outra corporeidade, que não é a deles, mas sim a de uma idéia cuja realidade objetiva e abstrata, e que, no entanto, deverá de algum modo sensível, mesmo que ilusório, ser recebida como se fosse concretamente corporal, ou seja, ‘fisicalizada’ no corpo. (GUINSBURG: 2001, p.22).

Embora a morte revele sua violenta aparição no corpo petrificado como ruína, o

romance recusa-a como última palavra. Pleiteando uma abertura tantas vezes

ensaiada, a despeito da precariedade do discurso, a narrativa permite-se continuar

exercendo o direito a outros tipos de evasão. Vemos isso na figura do exílio, saída

possível para a personagem Lia, que planeja a fuga para a Argélia. Para Lorena, a

evasão surge numa “brutal vontade de alegria”. Como pseudo-desfecho, a linguagem

emblematiza sua palavra infinita no diálogo final (?) dessas duas personagens:

“— Temos milhares de coisas que falar, Lião. Milhares!

— Evidente. Ficaríamos aqui falando até o fim dos tempos”.

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CONCLUSÃO

As reflexões apresentadas sobre a presença de uma poética da morte na

linguagem do romance As Meninas conduzem-nos a algumas conclusões. A partir da

observação dos modos de organização discursiva da linguagem literária no contexto

ditatorial dos anos 60-70 desenhado na obra, foi-nos possível acompanhar, no decorrer

das análises, uma construção discursiva fragmentária desveladora do diagrama de uma

narração que tenta encenar modos possíveis de evasão em um período opressor.

A intenção de observar uma forma de composição romanesca erigida pela

alegoria foi contemplada basicamente em três aspectos: o primeiro, referente à

composição triádica das personagens protagonistas, tornou visível uma auto-

organização que opera pelo fracionamento e descentramento do ponto de vista. Não

obstante, a figura poliangular evocada pela “pirâmide” de personagens revelou, pela

imbricação de suas três faces, um jogo construtivo por meio do qual a fragmentação

constitui-se, paradoxalmente numa única metáfora, a da morte, desmembrada em

diferentes dobras: a dobra do discurso monológico em tensão com o diálogo, a dobra

da temporalidade ruiniforme, e a dobra da espetacularização do corpo morto, emblema

da efemeridade.

A dominante da organização discursiva em monólogo, ao articular

expressivamente a subjetivação do conflito interior das personagens, presentificou no

plano da narração a imagem tensiva da opressão contextual. Não obstante, foi possível

observar que a manifestação da dialogia, presente no artifício da inter-relação entre as

personagem, configura um espaço poético que possibilita ao discurso movimentos de

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ruptura e distensão, permitindo que os lugares dos sujeitos envolvidos no processo

discursivo pareçam deslocados de uma situação do “si” para o outro.

Não obstante, constatamos que essa dialogia estruturada pelos ecos

encadeados das falas das personagens denuncia a precariedade de um discurso que

ao registrar especularmente o fracasso da experiência existencial dos sujeitos, revela a

si mesmo sua incapacidade para construir-se. Disso resulta a crise identitária que

permitiu ao texto “devorar” neobarrocamente a tradição, na busca por uma história

provisória para esse sujeito.

Os procedimentos de construção da categoria narrativa referente à

temporalidade emulada em diferentes “objetos ruínicos”, a exemplo do relógio-esquife e

da ampulheta, também viabilizaram na narrativa práticas de figuração próprias do

neobarroco, ao presentificar a marca da temporalidade como evocação da

inexorabilidade e convivência simultânea de vários tempos e lugares. Esse “tempo

outro”, presente na figura da ampulheta, estabeleceu a escritura como um lugar de

exílio, lugar do não-lugar, espaço metafórico que viabiliza analogias possíveis com um

outro não-lugar evocador do paroxismo da evasão: a morte.

Outro emblema da onipresença da morte observado na linguagem foi o corpo.

Sua imagem petrificada na figura da morta recupera a cristalização da imagem

fotográfica posta como epígrafe da obra, mas, ao mesmo tempo, ao ocupar a cena

aberta da praça, amplia o espaço de visualização da imagem da violência,

testemunhando-a. Entendemos, ainda, que essa exposição do corpo-eídolon figura

mais um não-lugar evasivo (vivo /morto, presente / ausente) na escritura lygiana.

As reflexões apresentadas autorizam uma síntese desse romance como lugar

poético de práticas de evasão: pela via da temporalidade, droga, exílio e morte as

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personagens agenciam modalizações de vivências possíveis, homologando as

experiências dolorosas de seu tempo e dando testemunho da pergunta angustiante a

que as narrativas modernas tentam incessantemente responder: o que contar?

Entendemos, à guisa de conclusão, que o conjunto de recursos poéticos

analisados estilizam alegoricamente uma tentativa de escritura poético-testemunhal

composta por indícios da fatalidade que se abateu sobre a linguagem artística numa

conjuntura em que, para toda e qualquer manifestação da palavra restava somente

duas saídas excludentes: eliminar ou ser eliminada. Numa atitude de resistência, a

palavra poética de Lygia testemunha um paradoxo: utilizar a morte como condição para

o nascimento da obra.

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