86

Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Trabalho de Conclusão de Curso - Comunicação Social - Hab. Jornalismo. Por Lenise Morgental. Orientador: Marco Bonito. 15/12/2011

Citation preview

Page 1: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre
Page 2: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Morgental, Lenise Maria do Carmo: Da Luxúria ao milagre --/ Lenise Morgental. – São Borja, RS : Ed. do Autor, 2011.

1.jornalismo, editoração e imprensa documen tária e educativa I. Título.

CDD- 070.449

Page 3: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

SumárioCAPÍTULO I

A vocação histórica de São Borja............................................................... 12O destino triste de uma mulher faceira....................................................... 16Na ponta da faca Maria morreu................................................................. 20De “prostituta” virou padroeira.................................................................. 28 CAPÍTULO II

O Bairro Maria do Carmo.......................................................................... 34Cinco anos de glória em São Borja............................................................. 38Os Guerreiros do Bairro............................................................................ 49Maria: A inspiração dos poetas.................................................................. 54

CAPÍTULO III

Quem vela pelas velas de Maria?................................................................ 61Religião x Culto Popular............................................................................. 65A devoção e os milagres............................................................................ 71As Marias do Rio Grande do Sul.................................................................. 77

Page 4: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Agradecimentos:

Agradeço a todas as pessoas que se envolveram junto comigo neste tra-balho, agradeço a minha família pela força e pelo incentivo.Agradeço a todos meus colegas de curso que pelo menos por alguns minutos pararam, me escutaram e incentivaram a continuação do tra-balho, mostrando que para todos existem dificuldades e o importante é não desistir.Agradeço ao meu orientador Marco Bonito, pela oportunidade de co-nhecê-lo melhor e ver o grande amigo que é, agradeço por mostrar que quando queremos muito uma coisa, com esforço e dedicação sempre conseguimos e que as tarefas mais difíceis são as mais recompensado-ras.Agradeço ao meu namorado Renato por ter suportado algum estresse causado pelo trabalho, por me dar força nas horas que tive dificuldades e por sempre dizer que sou capaz de realizar tudo aquilo que desejo.Agradeço a minha principal fonte, o pesquisador Clóvis Benevenutto que cedeu todo seu material sobre a história da Maria do Carmo, com certeza sem esta ajuda seria impossível realizar este trabalho em tão pouco tempo.Agradeço aos meus colegas de orientação Larissa Lucero, Luisa Ara-nha e Tiago Pereira que sempre estiveram juntos nos momentos de dis-cussão sobre nossos trabalhos, agradeço também por estarem sempre dispostos a ajudar.

Page 5: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Apresentação “Maria do Carmo minha padroeira

Até quarta feira me dê forças e fé

Quero dançar, quero brincar, pular

Na escola grande que dê samba é.

Quero viver, quero sentir a batucada

Até altas madrugadas quando dia clarear

Nas tuas benções não esqueças esta moçada

Que te pedem quase nada

é muito pouco e podes dar.

Pedem apenas que este mundo louco

Pare e pense um pouco antes de seguir

Que saiam as ruas nesta noite linda

Pois é tempo ainda para tentar sorrir.”Luiz Carlos Miranda Batista (Caéco Batista)

Page 6: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

06

Lenise Morgental passou por aqui buscando conhecimento para incluir em seu trabalho de conclusão de curso de jorna-lismo.

Sempre dizemos a mesma coisa, mas de modo diferente a cada pessoa que nos procura: tenha a paciência enquanto aquecemos as caldeiras da memória, pois a vida é um emaranhado de coisas e fatos e a memória é uma grande biblioteca que guarda tudo, nada lhe escapa de ser classificada, catalogada e arquivada. Um grande banco de dados que para ser acessado precisa de sua palavra cha-ve.

No trabalho que doravante lhes apresentará, em seu Maria do Carmo em Três Atos lhes dará uma visão cosmopolita da persona-gem investigada: Maria do Carmo em sombra e luz, Maria do Carmo quanto mulher e prostituta, Maria do Carmo ato e consequência.

Page 7: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

07

Lenise seguindo os ensinamentos de seus mestres usou dos métodos científicos que lhes foram passados e mergulhou no pas-sado em busca do nó de Górdio que circunda a criatura e sua lenda.

Fazendo uma prospecção procurando por lembranças das mais remotas da historiografia oral, trouxe o personagem para a berlinda colocou-a sobre foco, tal qual fizeram em seus tempos Moacir Mat-teus Sempé e Apparício Silva Rillo e faz hoje o professor Clovis Bene-venutto.

Maria do Carmo a santa prostituta ganhou com este esmerado trabalho de Lenise Morgental, a catalogação de toda esta memória que estava a necessitar que alguém lhes reunisse.

Nós que já cansamos os olhos procurando costurar a história, em páginas amarelecidas e em serões ouvindo relatos sobre velhos moru-bixabas a contar de tacapes e garruchas, quando o jesuíta demarcou

Page 8: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

08

a velha São Borja, estamos confiantes que esta juventude aqui repre-sentada por Lenise Morgental, neles teremos a voz do porvir.

Para encerrar deixo aqui meu depoimento sobre a fixação do nome do Bairro Maria do Carmo: “- trabalhavam na secção de dese-nho da prefeitura municipal de São Borja dando suporte a topografia, João Enor Teixeira (Dango) e o saudoso Ubirajara Fontoura. Trabalha-vam na elaboração do plano diretor, o Dango desenhou um túmulo e o Bira circundando o local com o dedo disse Maria do Carmo e o Dango desenhou um circulo sobre o mapa e escreveu Bairro Maria do Carmo.

Clemar Dias

Poeta e escritor

Page 9: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Há mais de um século, mais precisamente 121 anos, a histó-ria de vida de uma mulher ganha força e espaço dentro da cultura oral de um povo. Uma cidade que carrega e sustenta

histórias do passado foi escolhida pelo destino para suportar e propa-gar um mito, uma legenda: Maria do Carmo - A Santa Popular.

Assim como em várias cidades do Rio Grande do Sul, São Borja tem a história de Maria do Carmo como uma das mais importantes da cultura popular oral deste município, é o tipo de história que fica entranhada no dia-a-dia desta cidade e de visitantes que conhecem e que procuram se aprofundar nestes mitos e lendas seja por curio-sidade seja por devoção.

Este livro-reportagem tem como objetivo registrar de forma jor-nalística uma das mais importantes histórias da oralidade do municí-pio de São Borja, Rio Grande do Sul, Brasil.

Introdução

Page 10: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

10

O poeta são borjense Apparício Silva Rillo traduz esta sensação em seu livro Populário são-borjense: “É importante, até mesmo indispensável, à crônica comunal de qualquer município, o registro sistematizado de sua cultura popular do quanto armazenou, no trân-sito do tempo, a memória de seu povo.”

Buscamos mostrar a história de Maria do Carmo Fagundes, na sequência, o local onde foi morta, que hoje em dia é um dos bairros mais conhecidos da cidade e carrega seu nome e, por fim, mas não menos importante, a história de devoção que ultrapassa fronteiras. “Quando se pesquisa uma crença popular tão arraigada como a de Maria do Carmo, tão sem origens fixas e tão controvertidas como a de Maria do Carmo, todas as informações, todas as opiniões, todos os ‘ouvi dizer’ são importantíssimos.” Explica o colunista da Folha de São Borja, nos anos 70, Moacir Matheus Sempé.

Page 11: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

11

Nossa intenção ao documentar a história desta mulher foi justa-mente sanar alguns vazios informativos, procurar solucionar e reunir num único documento toda a pesquisa que fiz sobre esse fato, reu-nindo aqui a história desta personagem popular juntamente com a do bairro, além de alguns mistérios de devoção que perpassam uma das mais gloriosas lendas deste município.

Para isto, vamos nos valer de depoimentos, por intermédio de entrevistas, que colhemos durante a elaboração do projeto, relatos e documentos cedidos por nossos entrevistados, livros de pesquisado-res são borjenses, letras de músicas e poemas.

Convidamos a todos para a leitura deste importante fragmen-to da história de São Borja que merecia ser eternizada a partir de uma proposta jornalística a fim de que sirva como registro e também como base de informações aos pesquisadores, estudantes e aos fi-lhos desta terra.

Page 12: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Fronteira com a cidade de Santo Tomé, na Argentina, aproxima-damente 600 km da capital gaúcha, São Borja carrega como estigma ser a “Terra dos Presidentes”, uma cidade que respira

política no seu dia-a-dia. Foi aqui no oeste do estado do Rio Grande do Sul, que nasceram Getúlio Dornelles Vargas, João Belchior Marques Goulart e o atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro.

Getúlio Vargas nasceu em São Borja no ano de 1882 no dia 19 de abril e no dia 24 de agosto do ano de 1954 atenta à sua própria vida, acertando um tiro em seu peito entrando para a história e dei-xando milhões de brasileiros tristes com sua morte. Saiu de “São Borja para o mundo”, ficou conhecido como ‘pai dos pobres’ sendo adorado por uns e odiado por outros.

A vocação histórica de São Borja

Page 13: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

13

Além de Getúlio Vargas a cidade também foi berço de outro presi-dente: João Goulart, outro político expoente na história da cidade, que também saiu de São Borja para conquistar eleitores pelo Brasil. Nascido em 1º de março de 1919. Jango, como ficou popularmente conhecido morreu vítima de um ataque cardíaco, falecendo na Argentina, na cidade de Mercedes. Tal fato ocorrera no dia seis de dezembro de 1976, logo, seu corpo foi trazido para São Borja e enterrado no jazigo da família Gou-lart.

Entretanto, além destas nobres histórias a cidade cultiva também cultiva outras tantas criadas pelo imaginário popular como: “Os subter-râneos de São Borja”, “A procissão de São Joãozinho Batista”, “O túmulo do Anjinho” e obviamente, a história que tratamos aqui neste livro, Maria do Carmo: A Santa Popular.

Page 14: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

14

São Borja tem 329 anos de vida e de histórias, a cidade surgiu depois que o Padre Francisco Garcia que estava no aldeamento per-tencente à redução de Santo Tomé atravessou o Rio Uruguai para fundar uma colônia à sua margem esquerda, a colônia foi batizada como São Francisco de Borja. A cidade é o primeiro dos Sete Povos das Missões a ser instalado.

Durante todos estes anos a cidade foi desenvolvendo várias his-tórias lendárias e curiosas, que até nos dias de hoje existem questio-namentos sobre a veracidade delas.

A Guerra do Paraguai foi o maior conflito armado internacional ocorrido na América do Sul, a guerra foi entre Paraguai e a Tríplice Aliança, Argentina, Brasil e Uruguai. Dentre outras cidades do Rio Grande do Sul, São Borja também foi invadida, uma força com cer-ca de 10.000 paraguaios atravessaram a província da Argentina das Missões até alcançar o Rio Uruguai.

Page 15: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise MorgentalMaria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

Do mês de junho até agosto São Borja, Itaqui e Uruguaiana fi-caram ocupadas por tropas paraguaias. A Guerra do Paraguai durou seis anos, do ano de 1864 a 1870.

Acreditamos que durante essa batalha a personagem principal do nosso livro-reportagem estava nascendo e, quando a guerra ter-minou ela estava sendo trazida para São Borja, junto como outras pessoas para habitar o local que havia sido devastado pela Guerra do Paraguai. No próximo sub-capítulo confira como foi a história de vida da mulher que pelo destino veio parar em São Borja.

15

Page 16: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

São Borja, o Primeiro dos Sete Povos das Missões cultiva seus mitos e suas lendas através da oralidade, dentre estas histórias da cultura popular está a de Maria do Carmo.

Clóvis Benevenutto, um pedagogo por profissão e pesquisador por paixão, mostrou-nos alguns fatos que envolvem a história de Maria do Carmo. Além de pesquisador sobre esta história, Clóvis é morador do Bairro, onde a personagem do estudo está sepultada simbolicamente.

Entusiasmado por esta lenda, o pesquisador a cada entrevis-ta surgia com algo novo envolvendo este fato. Pai de três meninos ensina-os a respeitar esta lenda, fruto da oralidade deste povo. Be-nevenutto é reconhecido na cidade, como um dos pesquisadores que mais tem materiais (documentos, fotografias, jornais e vídeos) sobre a história de Maria do Carmo.

O destino triste de uma mulher faceira

Page 17: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

17

Desde o episódio da Guerra do Paraguai, a cidade de São Borja foi saqueada e desabitada, assim, algumas pessoas de várias cidades ao redor foram trazidas para povoar a cidade novamente. Com essa leva de moradores, uma mulher em especial estava no meio, Maria do Carmo Fagundes.

Natural de Bagé veio para São Borja, não se sabe até hoje se ela veio com familiares ou sozinha. “Maria do Carmo era de porte médio, mo-rena de cabelos compridos, gostava muito de fumar e de beber”, assim salienta o pesquisador Benevenutto.

Uma mulher diferente das mulheres daquela época, talvez por isso fosse conhecida como mulher de vida airada, ou melhor, uma mulher profana, mal vista aos olhos da sociedade daquela época. Não era uma dona de casa, não tinha filhos e nem um parceiro fixo. Era bonita e cha-mava a atenção de muitos homens, principalmente dos militares.

Page 18: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

18

Nas pesquisas e levantamento de informações sobre a história da vida de Maria do Carmo nos deparamos com alguns outros pes-quisadores sobre o tema. Dentre estes estão o poeta Apparício Silva Rillo, o antropólogo Antonio Augusto Fagundes, o escritor Moacir Ma-theus Sempé e o pesquisador Clóvis Benevenutto.

Ao que percebi a história da “Santa profana”, como ficou co-nhecida, foi pouco registrada oficialmente em documentos da épo-ca, embora seja amplamente reconhecida popularmente pela co-munidade são borjense.

Pelo pouco que se sabe e segundo as pesquisas de Benevenutto, Maria do Carmo gostava muito de ajudar os mais necessitados, pode-se saber, a partir dos relatos de Moacir Sempé, colunista da Folha de São Borja, que ela era uma mulher de bom coração e de vida simples. Ainda, segundo o imaginário popular, há uma certa confusão sobre as características físicas de Maria do Carmo.

Page 19: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

19

Ao entrevistar populares, alguns afirmaram ao colunista que ela era mulata de cabelo quase sarará, outros diziam que ela era morena de cabelos compridos e que na noite em que foi assassinada vestia um lindo vestido branco, bem do jeito do vestido de bailarina.

Segundo Apparício Silva Rillo, chegou-se a conclusão de que sua aparência física era: “porte médio, morena clara, com longos cabelos escuros que lhe chegariam à cintura”.

Como podemos ver, a história de vida desta mulher foi rápida, mas cheia de mistérios. Seu legado popular é recheado de histórias, assim como sua morte, que contaremos no próximo sub-capítulo.

Page 20: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

A morte é a única certeza que os seres vivos têm, sua defi-nição fria e denotativa é explicitada nos dicionários como a “cessação definitiva da vida” e pode ser dolorosa tanto para

quem morre quanto para quem sobrevive, ela é o fenômeno natural que mais suscita motivação à evolução humana.

A morte de Maria do Carmo não foi uma morte explícita, porém marcou a todos que ficaram sabendo e que se inconformaram com a

Na ponta da faca Maria morreu “No ódio do amante, no fim do machado, na

ponta da faca Maria morreu...

Maria do Carmo do amor e do bem, que sendo de

muitos não foi de ninguém...”Apparício Silva Rillo

Page 21: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

21

brutalidade do seu assassinato. Sobre a morte ninguém que foi en-trevistado tem dúvidas, todos creem que ela foi morta e esquarteja-da por um de seus amantes.

Segundo os fascículos escritos na Folha de São Borja nos anos de 1979 e 1980, pelo historiador Moacir Matheus Sempé, Maria do Carmo foi morta por um militar graduado baiano. É importante que se saiba que o termo baiano não se trata de uma designação ao local de nascimento, mas sim tem relação com uma gíria da época que signifi-cava os homens que não sabiam montar a cavalo.

Também não foi possível constatar a patente militar do algoz de Maria do Carmo, não há registros oficiais, contudo, os saberes popula-res que ajudaram a constituir a lenda afirmam, em várias declarações, a mesma história.

Page 22: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

22

Apesar de Sempé trazer em seus fascículos várias versões con-tadas por moradores de São Borja sobre a vida e a morte de Maria do Carmo, uma única versão prevaleceu, pois, a maioria dos entrevista-dos relatou a mesma ordem dos fatos, esta que contaremos a seguir.

Mulher bonita, vaidosa, cobiçada pelos homens, assim imagina-mos Maria do Carmo, podemos imaginar ainda, seu ritual antes de ir para o baile no dia em que foi assassinada.

Agosto de 1890, mais um baile acontecendo em São Borja, entre perfumes e batons Maria do Carmo se enfeita para chamar atenção de seus amantes, conseguindo também, atrair o ódio de seu assassi-no. Acostumada, gostava de festa, era uma mulher faceira, dava-se bem com várias pessoas, era mulher de vida livre, não era apegada aos padrões morais que naquela época eram bem rígidos.

Page 23: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

23

No local do baile encontravam-se soldados, tenentes, coronéis entre outros militares que provavelmente por eles Maria do Carmo já era conhecida, pois era neste mesmo local que os bailes acostumavam acontecer, e o público era quase sempre o mesmo, os próprios militares.

Como já era frequentadora, encontrou naquela mesma noite um de seus admiradores que em outro baile já havia se relacionado, como já havíamos dito, ela era mulher de vida livre e não se apegava a ninguém, porém, o militar que a cobiçou e a teve noite passada ainda estava cego de paixão por ela. As horas foram passando e Maria do Carmo conversa-va, bebia, fumava e ria junto com vários militares, afinal, era o que ela fazia todas as noites de festa; no baile é surpreendida por um de seus admiradores e lá ela fica, e seu amante da noite passada acaba ficando para trás, sendo dominado pelo ódio de um homem traído e trocado.

Page 24: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

24

No final da noite os militares vão seguindo seus rumos, cada uma para sua casa ou para outro destino qualquer, Maria do Carmo, fes-teira, era sempre uma das últimas a sair; e é justamente neste final de festa que seu maior admirador pede para acompanhá-la até em casa, mal sabia Maria do Carmo o que estava para acontecer. No meio do ca-minho ele a questiona perguntando por que ela o ignorou a noite intei-ra, sem dar chances para explicações ele acaba assassinando-a sem dó nem piedade. Maria do Carmo foi vítima do amor não correspondido.

Tudo indica que seu assassino usou para matá-la uma arma bran-ca, porque logo após o assassinato, o militar a esquarteja, deixando seus restos jogados no local do crime, Maria do Carmo foi encontrada espedaçada no Banhado denominado São João, aos arredores de onde seu túmulo está situado hoje.

Quando morreu, Maria do Carmo tinha mais ou menos 26 a 30 anos como acusa o atestado de óbito lavrado no dia 11-09-1890, escri-to por João Gonçalves Caminha delegado na época.

Page 25: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Atestado de óbito de Maria de Carmo, a cópia retradada aqui é de posse de Clóvis Benevenutto.

25

Page 26: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

26

Desta forma trágica como Maria do Carmo foi morta, sendo em vida uma mulher de costumes inadequados para a época, porém de ‘bom coração’ a história dela se tornou com o passar do tempo um mito para alguns e uma lenda para outros, ganhando força e ultrapassando fron-teiras. Por esse motivo, seu túmulo tornou-se um dos principais pontos turísticos de São Borja, sendo, então, construído pelos pedreiros Zózimo Gay e Algemiro Pinto Figueiredo a mando do proprietário das terras, Ge-neral Serafim Dornelles Vargas em 1940.

Nessa mesma época, o caminho para o túmulo era de difícil acesso, os devotos tinham que atravessar um matagal para chegar até lá, pois ainda não havia ruas que levasse até a Santa do Povo.

A partir de 1984, na gestão do Prefeito Arneldo Matter foram abertas ruas que davam acesso a Maria do Carmo e também foi feita a restauração em seu túmulo, assim, melhorando a peregrinação de seus devotos.

Page 27: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Prefeito Arneldo Matter inaugurando a placa alusi-va à restauração do túmulo de Maria do Carmo.

16/10/1984

27

Page 28: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo é uma lenda das mais importantes do nosso município e o local onde ela está sepultada sim-bolicamente é um dos principais pontos turísticos de

São Borja, sendo alvo de visitação e de peregrinação de várias pessoas não só da cidade, mas também, de outros países, como Argentina, Uruguai e Paraguai, prova disso são as placas de ho-menagem deixadas no túmulo por pessoas que tem crença nessa Santa Popular, Santa Profana, ou como também é conhecida San-ta Prostituta.

Caetano, proprietário de uma loja que fabrica e vende arte-fatos para túmulos afirma que várias pessoas procuram seu tra-balho para homenagear Maria do Carmo, e a frase que sempre está gravada nas homenagens é “Obrigada (o) Maria do Carmo

De “prostituta” virou padroeira

Page 29: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

29

por essa graça alcançada”, lembrando também que nessas home-nagens o nome da pessoa que fez a promessa nunca é escrito por extenso, é deixado somente as iniciais.

Jaqueline Cassafuz, historiadora, é hoje responsável pelo Memorial João Goulart, situado em São Borja, salienta a impor-tância da história oral para a cultura popular da cidade. “Dentro dessa lenda da Maria do Carmo que se propagou dentro do folclo-re ela tem todas as características de ser Cultura Popular, porque não foi combinada nem montada, é algo que partiu do popular, de ir lá e de fazer pedidos a essa mulher que foi morta tragicamente e que era uma mulher que na época era considerada prostituta, tinha vários amantes e que exatamente foi assassinada por um deles.”

Page 30: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

30

Desta forma, resgatando de tempos em tempos essa lenda ou mito, não deixamos que essa cultura popular se deteriorasse com o passar dos anos, buscando registrar as mudanças, as versões e os rumos que os contos tomam.

A história é oral, todavia, é de suma importância a sua docu-mentação para que a posteridade conheça como a oralidade se deu e ganhou diferentes formas.

Sendo assim, apresentamos outra história de que alguns anos após a morte de Maria do Carmo, foram construídos dois túmulos pe-quenos. Seu Caetano, proprietário da loja de artefatos e morador do Bairro Maria do Carmo, nos conta o que sabe sobre essa história.

Page 31: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

31

“Aqui no bairro tinha uma família pobre, eles moravam numa travessi-nha e tinham um pequeno comércio de bananas, mas era gente pobre, o nome dos pais era Severiano e Luzia, uma mulher bem magrinha. O an-jinho faleceu em casa e eles não tinham condições de sepultar em cemi-tério, então pegaram uma caixinha de madeira, ele mesmo fez o caixão na casa dele, feito daquelas caixas de tomate antigas. Naquela época o túmulo da Maria do Carmo não tinha essa atenção que há atualmente, enterraram a criança bem ao lado do túmulo da Maria do Carmo. O outro anjinho que também está por lá eu não sei a respeito, só sobre este. A fa-mília se mudou e nem identificaram o túmulo, óbito ocorreu pela criança ser prematura. A criança, batizada de anjinho era menina, esse fato faz uns 30, 40 anos atrás, eu lembro que a família eram todos magrinhos, o pai nem se fala, era uma palitinho, morava aqui no bequinho, era uma casinha simples de madeira com um baita janelão e mal tinham água em casa.”

Page 32: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

32

Seu Caetano foi o único dos entrevistados que nos falou sobre um dos pequenos túmulos e sobre a história desta família que perdeu uma criança recém nascida. Nos próximos capítulos, podemos acompanhar mais de perto a história de boa parte dos fatos que são relacionados com o nome de uma mulher que de prostituta é padroeira, segundo a cultura popular.

A história “Maria do Carmo - A Santa Profana” é relativamente mui-to pequena, são poucas as informações concretas que temos sobre este fato que ocorreu em 1890, por isso, não podemos deixar de contar tudo o que vem depois de sua morte, como, um Bairro que carrega o nome Maria do Carmo, uma escola de samba que foi por cinco anos foi à alegria do carnaval desta cidade, um time de futebol que nasceu nos anos 70 e até hoje joga carregando o nome do bairro, sem falar nos devotos que Maria do Carmo conquistou durante todos estes anos de história oral e cultura popular.

Page 33: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Túmulo de Maria do Carmo com os dois túmulos pequenos.

33

Page 34: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

O Bairro Maria do Carmo começou a ter este nome logo depois da morte trágica da mulher que em vida vivia de forma ‘irregular’ sem seguir os padrões de uma época rígida e que depois de

ser assassinada por um de seus amantes tornou-se uma santa popular. Não houve uma regra, uma nomeação oficial, este nome foi ganhando espaço naturalmente dentre os nomes de bairros mais conhecidos da ci-dade.

Segundo Clemar Dias, escritor e pesquisador do qual falaremos mais adiante diz: “O bairro é uma cidade a parte, o pessoal lá é muito bairrista, eles tem orgulho do lugar onde moram”.

Podemos citar aqui vários exemplos de pessoas que pelo bairro cul-tivam um imenso carinho e admiração. Antonio Augusto Fagundes, co-

O bairro Maria do Carmo

Page 35: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

35

nhecido também como Nico Fagundes, apresentador estimado do pro-grama gaúcho Galpão Crioulo, exibido todos os domingos pela manhã na RBS, também dedicou um trabalho sobre as “santas populares”.

No ano de 1987, para sua tese de mestrado em antropologia Nico Fagundes usou o tema “As Santas Prostitutas: Um estudo da De-voção Popular do Rio Grande do Sul” trazendo a tona a história de Maria do Carmo, Maria Izabel, a Irmãzinha Guapa e Maria Dego-lada. Nesse trabalho de Fagundes ele descreve o bairro Maria do Carmo da seguinte maneira: “O bairro mais populoso de São Borja – e o mais popular, certamente, - é aquele que tem como eixo a Rua Bompland, que o povo chama de ‘Bom Plano’ pelo conhecido fenômeno da ‘moléstia ver-bal’. Trata-se do Bairro Chamado ‘Maria do Carmo’. Ali vivem pequenos comerciantes, donos de ‘tendas’, biscateiros, jornaleiros, empregadas do-mésticas, lavadeiras, gente que planta alguma coisa no próprio pátio, cria galinhas, engorda porcos, e eventualmente tem até vaca de leite.

Page 36: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

36

O bairro tem um time de futebol amador que, na categoria, tem sido repetidamente campeão municipal. Igualmente conta com uma animada escola de samba, a ‘Unidos da Maria do Carmo’ com sucessivos prêmios no entusiasmado carnaval samborjense, ano após ano.” Nico Fagundes, consegue descrever em poucas palavras tudo que ele viu e ouviu sobre o bairro.

Quando se entra no bairro Maria do Carmo, podemos ver árvores grandes e casas bonitas, porém, sentimos uma mistura de tranquilidade e tensão, por parte sabemos que ali no bairro tem muita gente boa, mas a imaginação começa a fluir quando se pensa que foi por ali que uma grande história se formou, depois de um assassinato, mistérios de devo-ção e até mesmo, mistérios de outras mortes ressaltam na memória de quem pelo menos já ouviu falar sobre estas histórias.

Page 37: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

37

Sabe-se que em menos de 15 anos outras duas mortes ocorreram onde hoje é o túmulo simbolicamente de Maria do Carmo. Especula-se que uma das pessoas que lá morreram era do sexo feminino, pode-se dizer que era uma mulher muito bonita, e que até hoje não se sabe o motivo pelo qual ela findou sua vida, sua morte surpreendeu a todos, principalmente sua família que também reside no bairro Maria do Carmo, essa mulher, pôs-se fogo, e acabou morrendo ali no mesmo local em que a Santa Popular foi assassinada.

A outra morte, também foi um suicídio, onde um homem, de idade média, que também tem familiares residindo no bairro, tomou uma mis-tura de venenos, deixando uma carta para seus familiares, explicando o motivo pelo qual cessou com sua própria vida.

Procuramos parentes dessas pessoas, mas, pelo doloroso sentimen-to da perda, eles preferiam não se manifestar. Entre esses aconte-cimentos, destacaremos nos sub-capítulos a seguir histórias que foram e são motivos de alegrias e orgulho para moradores do bairro, como a escola de samba e o time de futebol.

Page 38: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

São Borja, ano de 1979 nasce a Escola de Samba do bairro, que foi criada a partir de um grupo musical, todos os componentes eram moradores do Bairro Maria do Carmo, assim nasce a Es-

cola de Samba Unidos da Maria do Carmo.

A ideia da escola de samba nasce na casa de um dos expoentes da música gaúcha do nosso Rio Grande do Sul, César Lindemeyer que também era morador do Bairro na época. Cesinha como é conhecido en-tre seus amigos, além de ser um grande admirador do bairro Maria do Carmo também é um grande devoto da Santa Popular, e claro, um dos fundadores da Escola de Samba Unidos Maria do Carmo. No mesmo dia em que decidiram montar uma escola de samba, decidiram que ela leva-ria o nome de Maria do Carmo, e também que as cores da escola seria as cores da bandeira do Brasil.

Cinco anos de glória em São Borja

Page 39: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

39

Um destes componentes, Clemar Dias, muito conhecido aqui na cidade conta com orgulho e alegria a história da escola de samba que ajudou a montar. Clemar Dias um apaixonado por livros e por música, filho de pescador e dona de casa, afirma que desde criança teve interesse pela poesia, há 15 anos assina uma coluna na Folha de São Borja, onde escreve histórias reais e fictícias.

Na entrevista procuramos falar sobre todos os assuntos que envol-vessem nome Maria do Carmo, no entanto, o assunto Escola de Samba de longe era o preferido do pesquisador. Pedimos a ele que nos conte um pouco desta história, e é com uma voz de saudade, com o olhar distante e com a memória a mil que ele conta:“Maria do Carmo teve uma trajetó-ria meteórica, durou cinco anos, mas nesses cinco anos ele foi laureado de vitórias, músicas compostas que marcaram época e que são conheci-das até hoje. A ideia surgiu depois do grupo de samba, isso era 1980, daí começou-sea trabalhar em prol de se construir uma escola.

Page 40: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Grupo Maria Carmo que ori-ginou a Escola de Samba.

40

Page 41: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

41

Como tudo é difícil numa escola de samba, só quem esteve no meio de uma coisa dessas sabe qual é a verdadeira dificuldade. Nós acabamos criando a maior escola de samba que São Borja já viu, Unidos da Maria do Carmo.”

Quando pedi para que ele cantasse um dos grandes sucessos da es-cola, ele prontamente começou a aquecer a voz, antes de cantar parou e disse: “Essa música que vou cantar não fui eu que escrevi, é considerada um hino da Escola de Samba Unidos da Maria do Carmo, foi musicada por mim e escrita pelo saudoso Caeco Batista um dos grandes nomes da po-esia que tivemos e que faleceu ano passado.” Pronto, ele volta a aquecer a voz... 1, 2, 3...

“Maria do Carmo minha padroeira até quarta-feira me da força e fé, quero dançar, quero brincar, pular, na escola grande que de samba é, quero dançar, quero brincar, pular, na escola grande que de samba é, quero sorrir quero viver a batucada até altas madrugadas quando o dia clarear. Nas tuas preces não esqueça essa moçada que te pede quase nada e muito poucos podes dar. Pede apenas que esse mundo louco pare, pense um pouco antes de sorrir...que saia as ruas nesta noite linda, pois a tempo ainda para tentar sorrir.”

Page 42: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

42

Depois desta cantoria, claro, só nos restou aplaudir, Clemar Dias é um apaixonado pela música, enquanto nos dava a entrevista, escutava em seu notebook Edith Piaf, uma cantora francesa, ainda no seu escritó-rio tinha um cavaco em cima de papéis antigos que provavelmente con-tinham histórias de um passado distante ou não.

Além da paixão pela música ele tem paixão pelos livros, pelos filhos, pela esposa e pela sogra, já falecida. Ela foi uma das principais mulheres da Escola de Samba Maria do Carmo. Ainda falando de mulheres, Clemar salientou o grande número de mulheres bonitas que concorriam pela es-cola de samba a Rainha do Carnaval de São Borja.

Escola de Samba Unidos da Maria do Carmo, nome que ficou regis-trado na memória de todos aqueles que tiveram a oportunidade de viven-ciar grandes momentos com a escola. Hoje, temos o time de futebol, que segundo Clemar Dias, “o time sempre está em pendenga com o mundo todo, os jogadores são muito guerreiros”.

Page 43: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Carro Abre Alas da Escola de Samba Unidos da Maria do Carmo. Enredo:Frutos Maravilhosos do Rio Uruguai - 1983

43

Page 44: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Bateria da Escola de Samba Unidos da Maria do Carmo - 1982

44

Page 45: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Clemar Dias ao lado de Sirio Fagundes e Loni Welter representantes da Escola de Samba Maria do Carmo, recebendo a premiação de melhor escola de samba de 1982.

45

Page 46: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Raquel Alvarez recebendo das mãos de Terezinha Weis, Miss Rio Grande do Sul e de Maria do Car-mo, jornalista, apresentadora do Jornal do Almoço na época a premiação de Rainha do Tricentenário de São Borja.

46

Page 47: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Rei Momo Paulinho Ponsi e Raquel Alvarez, Rainha do Tricentenário de São Borja, ambos representantes da Escola de Samba Unidos da Maria do Carmo.

47

Page 48: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

48

Depois de saber uma das importantes histórias que envolvem o nome Maria do Carmo, como da escola de samba que envolveu um bairro inteiro e deixou boas lembranças e nostalgias para centenas de são borjenses, concluímos que por mais que tenhamos nos esfor-çado para mostrar para a sociedade hoje e depois para a posteridade jamais conseguiríamos transcrever em pequenas linhas a alegria, o amor e a felicidade que ela proporcionou em tão pouco tempo, mais precisamente em cinco anos para as pessoas que participaram dela e tiveram a oportunidade de vivenciar grandes vitórias no carnaval de rua de São Borja.

Então, partimos agora, no próximo sub-capítulo, para conhecer ou-tra história, também interessante, sobre o time de futebol que carrega o nome do Bairro e orgulha a todos os moradores.

Page 49: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Desde fevereiro de 1974, com as cores verde, amarelo e azul o time Maria do Carmo ainda vive, podemos dizer, mais vivo do que nunca, com vários troféus arrecadados

durante 37 anos de vitórias. Os jogadores, na maioria das vezes sempre foram os próprios moradores do Bairro Maria do Carmo.

Numa tarde de inverno ensolarada, o pedagogo que nos aju-dou e foi fundamental para a realização desta pesquisa, Clóvis Benevenutto, nos leva para conhecer alguns dos pedaços íntimos do bairro Maria do Carmo. Como é morador e um grande conhe-cedor do local, ele nos abre as portas e os caminhos para conhe-cer de perto as histórias de pessoas que ali vivem.

Os Guerreiros do Bairro

Page 50: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

50

É na marcenaria nosso primeiro destino, no caminho, ele já vai adiantando a história, dizendo quem ele iria apresentar-nos e sobre qual assunto aquelas pessoas poderiam nos informar. An-tes de chegar à marcenaria já se podia ouvir de longe o barulho dos materiais usados neste serviço e quanto mais chegávamos perto, mais o cheiro da poeira da madeira ia tomando conta.

Neste mesmo local que conhecemos Beto e Roni Emmanueli, dois irmãos que tiram do mesmo ofício o sustento para suas fa-mílias e cultivam a mesma paixão: a Sociedade Esportiva Maria do Carmo. Moradores do Bairro desde crianças, sendo um deles ex-jogador do time, os dois são devotos da Santa Popular.

Os irmãos Emmanuelli, hoje, são os responsáveis pela dire-toria do time, Roni ocupando a presidência e Beto ocupando o lu-gar de primeiro secretário. Fundando em 1974 o time conseguiu

Page 51: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

51

criar uma raiz extremamente forte dentro do Bairro, os morado-res torcem pelo time e os jogadores jogam como se cada jogo fosse o último.

Indagado sobre a história de vida e de morte da mulher Maria do Carmo, Beto Emmanueli diz: “Apesar de morar aqui no Bairro desde criança eu sei muito pouco sobre a história desta mulher, eu sei o que eu ouvi falar, mas certo, não é muita coisa.”, apesar de não saber muita coisa os irmãos Emmanueli não escondem a devoção que o Time tem com a santa do povo.

“Temos até um ritual que a gente faz sempre, os responsá-veis pelo time, junto com alguns atletas, visitamos o túmulo e depois dos jogos quando a gente consegue a vitória, voltamos lá para agradecer, atribuímos nossas vitórias a ela.”, salienta Roni Emmanueli.

Page 52: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

52

Assim, a história deste time de futebol que já dura 37 anos vai se formando e se juntando a história do Bairro, a história de uma mulher que virou santa, a escola de samba e entre tantas outras histórias de devoção que se misturam enquanto umas vão virando mitos, outras vão virando lenda, mas cada uma com sua riqueza particular.

Foram vários títulos conquistados e acumulados durante os 37 anos de alegrias proporcionadas pelo futebol, por isso, também, os moradores que foram jogadores do time são conhecidos como “os guerreiros do bairro.”

Zé Maria, mascote oficial do Esporte Clube Maria do Carmo.

Page 53: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

53

O Esporte Clube Maria do Carmo, conta com vários títulos durante estes anos no futebol são borjense

No próximo sub-capítulo trataremos de um assunto que é bastante diferente de futebol, música e poesia, trazemos para este trabalho pes-soas expoentes neste quesito que dedicaram suas inspirações a Maria do Carmo, a Santa Popular de São Borja.

1975- Campeão Municipal

1993- Vice campeão Municipal

2000- Vice campeão Copa Sul

2001- Campeão Copa Sul

2003- Campeão Municipal (Bi)

2004- Campeão Municipal (Tri)

2005- Vice Campeão Municipal

2006- Campeão Municipal (Tetra)

2007- Campeão Copa São Borja

2007- Campeão Municipal (Penta)

2008- Campeão Copa São Borja

2009- Até as quartas de final

2010- Campeão Municipal (hexacampeão)

Page 54: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo um dos principais mitos de São Borja, é uma das poucas histórias que mesmo depois de 121 anos ainda chama a atenção de poetas e letristas da

cidade.

De forma carinhosa escritores ressaltam Maria em letras de músicas para o carnaval e até mesmo em poemas.

Desta forma, buscamos trazer para este sub-capítulo algu-mas obras de letristas e poetas da cidade que em algum momen-to de suas vidas reverenciaram o nome Maria do Carmo em suas obras.

Maria: a inspiração dos poetas

Page 55: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

55

Fantasia Operária

“Com pedaços de retalhos,Fiz minha fantasiaDe paz, alegria e emoção.Vou para avenidaCom a escola preferidaMaria do Carmo, do coraçãoVou sambar a noite inteiraSem sandálias – Pés no chãoQuero esquecer os meus diasA pet, a latinha e o papelão.Serei o dono da avenidaViverei a minha vida Sem ter hora para parar.Quarta feira é outro dia voltarei a reciclar.”

Autor: Eugênio Dutra, letrista de músicas para o carnaval, vereador e radialista.

Page 56: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

56

No palco das estrelas

“No passo lento de uma marcha ranchoPartiu o poeta para outro carnavalFoi recitar no palco das estrelasUm verso lindo que nos fez sonharNa flor da pele de um tamborimMaria do Carmo vai abençoarA quarta feira com sabor de fimQue nos trará um novo carnavalNão fique triste caro foliãoQue esse sonho não vai terminarPela avenida e pelos salõesReviverá em nossos corações”

Autor: Otorino Guilherme Côvolo- Proprietário de uma loja de peças agrícolas em São Borja, letrista consagrado em festivais nativista e festivais de música para o carnaval, ganhou prêmios inúmera vezes com suas obras.

Page 57: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

57

Autor: Reneu do Amaral Berni – escritor, poeta, autor de vários livros, letrista, já ganhou vários festivais entre eles o Festival da Canção Voluntária realizado pelo Regi-mento João Manoel de São Borja, autor do Primeiro Samba enredo da Escola de Samba Maria do Carmo, hoje reside em Goiânia – Goiás.

Maria do Carmo - A santa do povo “Maria do Carmo, MariaA promessa vim pagarNesta quase capela onde o povo vem rezar...O amor que eu pedi, MariaMe ajudaste a encontrarE, por isso, agradecido,A promessa vim pagar...O teu corpo cedias, MariaPor dinheiro e sem amor, Porém tua alma,Só entregaste ao criadorMaria do Carmo, agoraTua glória é tantaNão importa o que foste Nosso povo te fez santa...”

Page 58: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

58

Escola Grande “Maria do Carmo, minha padroeiraAté quarta feira me da força e féQuero brincar, quero sambar, pularNa escola grande que de samba éQuero viver, quero sentir a batucadaAté altas madrugadas quando o dia clarearEm tuas bênçãos não esqueça essa moçadaQue te pedem quase nadaÉ muito pouco e podes darPedem apenas que esse mundo loucoPare e pense um pouco Antes de seguir.Que saiam as ruas nesta noite lindaPois é tempo ainda de tentar sorrir...”

Autor: Luiz Carlos Miranda Batista – Caéco Batista – Foi o maior vencedor de marchas de carnaval de São Borja além de ter sido autor de várias músicas nativistas, muitas delas defendidas por César Linde-meyer.

Page 59: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

59

Canção para Maria “No ódio do amante, No fim do machado Na ponta da facaMaria do Carmo morreu...Maria do CarmoDo amor e do bem,Que sendo de muitosNão foi de ninguém...Na velha cidade a história é antiga, Reconto que a boca do povo passouDe avó para neta, de mãe para filha,Pra fé do menino através do avô...No túmulo simples, caiado de cal. A chama da vela, cigarro e cachaça,

Autor: Apparício Silva Rillo – Poeta, folclorista e escritor gaúcho, destaque no cenário cultural de São Borja.

E sempre a esperança na alma daqueles Que a ela recorrem pedindo-lhe graças.Há muitas Marias no altar das igrejas, Mas tu que me escutas te deves lembrar que a crença do povo também santificae elege uma “santa” sem cruz nem altar.”

Page 60: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

60

Lembrando que essas são apenas algumas das letras de músicas e poemas que encontramos sobre Maria do Carmo e servem para ilus-trar. Foram mais de dez outras canções e poemas, mas, já podemos perceber que além da devoção de algumas pessoas existe uma dispo-sição de autores para escrever sobre este tema que mesmo passando mais de um século ainda relembram o referido acontecimento.

Assim, com o final deste último poema passamos para o terceiro capítulo, em que falaremos de devoção e fé, da mulher que por meio da cultura popular, transformou-se em santa.

Page 61: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Neste capítulo abordaremos um dos temas que mais nos chamou atenção em relação a lenda, os conceitos adotados pelas religi-ões que aqui serão mencionadas e a devoção popular em torno

desta legenda que é Maria do Carmo. Na sequência buscamos em primei-ro lugar entender o que é Mito e o que é Lenda.

Quem vela pelas velas de Maria?“Quem vela pelas velas de Maria,

Frágeis e líquidas pétalas de fogo lucilando?

Por Maria do Carmo, protegei-as

Senhoras que conheceis o segredo dos homens,

Donzelas que tantos sonhais por conhecê-los” Apparício Silva Rillo

Page 62: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

62

A história de Maria do Carmo ainda é confundida entre mito e lenda, para conseguirmos designar a qual dessas designações ela de fato per-tence, procuramos primeiramente definir estes dois conceitos.

Com base nos seus estudos o Professor da Unipampa Gabriel Sau-sen Feil, doutor em educação especialista no pensamento Barthesiano, nos indica uma explicação para o que vem a ser o mito: “o efeito de sentido do mito, independentemente da sua legitimidade ou não, mesmo assim produz efeito e se produz efeito é porque produz sentido na socie-dade, isso já tem um valor.”

Nesse sentido, quando indagado sobre o fato de várias pessoas acreditarem no mito de Maria do Carmo, considerando a história contém informações vagas e cheias de desconfiança e é recheada de cultura po-pular, o professor diz: “o mito tem como característica o vago, ele age em função do vago, se não houvesse este caráter obscuro e nebuloso não

Page 63: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

63

teria se transformado em mito, o nebuloso é condição para o mito, o que mantêm o mito é a crença, e esta crença precisa ser vaga, se esta histó-ria ganhasse formas e deixasse de ser vaga perderia o status de mito.”

Já explicação sobre lenda, para entendermos o quanto ela e o mito estão interligados. “A lenda são as versões que as pessoas criam para preencher os vazios deixados pelo mito, as lendas são positivas, no sen-tido produtivo, porque elas acabam dando uma versão que não existia antes, a lenda acaba colocando no mundo uma coisa desconhecida para história. A questão não é se a lenda é verdadeira ou não, a questão é que a lenda da uma versão nova, ela acrescenta”, assim salienta Feil.

A lenda é transmitida oralmente, mexe com a imaginação, até mes-mo mistura-se a ficção com a realidade, é contada de tempo em tempo, recebendo impressões e representações de cada pessoa que a propaga. O mito sempre vai estar lá, na sua posição de origem, a lenda encarrega-

Page 64: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

64

se de passá-lo para a posteridade fixando-o na memória e na história oral de um povo que preza por seus valores culturais.

Sendo assim, o mito e a lenda andam juntos, cada um com sua perspectiva e funcionalidade, o mito dá conta de enaltecer figuras que de alguma forma ou de outra ganharam este status. Logo, podemos con-siderar que Maria do Carmo: a Santa Popular é mito e é lenda, já que o mito é o status e a lenda é tudo aquilo que foi construído pelas pessoas com o decorrer dos tempos sobre o mito.

Depois de abordarmos aqui o assunto mito e lenda, no próximo sub-capítulo trataremos de um assunto polêmico, onde as três principais religiões de São Borja falam sobre suas perspectivas em relação à Maria do Carmo, trazendo possibilidades e explicações do porquê de muitas pessoas serem devotas da Santa popular mesmo ela não sendo reconhe-cida religiosamente.

Page 65: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo nunca foi “adotada”, considerada ou reconhecida por nenhuma religião, apenas seus devotos a reconhecem como uma “santa milagrosa”, a historiadora Jaqueline Cassafuz em

entrevista realizada havia indicado que esta é uma história que o populá-rio criou, não precisou de nenhuma aprovação divina, as pessoas apenas começaram a acreditar que ela era padroeira e santa e pronto.

Para o Padre José Augusto Paz Nunes, pároco responsável pela Igre-ja Matriz de São Borja, a história da Maria do Carmo é completamente desconhecida perante a igreja católica, ele nos explica como deveria ser trajetória para a santidade: “A igreja quando fala dos santos ela tem dois porquês: a primeira motivação para alguém ser santo, tanto é que ele te-nha tido uma vida exemplar, dentro daqueles princípios que Deus ensina e propõe para nossa vida, por isso essa pessoa é representada como um modelo de vida a ser seguido.

Religião x Culto Popular

Page 66: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

66

E a segunda coisa, por a gente acreditar que alguém que vive exemplar-mente, vive a vontade de Deus, ao morrer vai viver com ele, a vida dele, ter união com ele, a igreja também apresenta esses santos que juntos de Deus podem ser nossos intercessores. A questão dos milagres que são atos bem estudados, bem aprofundados, coisas que humanamente pelo estágio de ciências que a gente está, a gente não consegue explicar de maneira normal. Então, para igreja declarar alguém santo tem que ter essas duas coisas, vida exemplar para ser apresentada como modelo e milagres de verdade confirmados sem explicação da ciência, para que nos mostre que essa pessoa junto de Deus pode interceder por nós.”

Por isso, entendemos os preceitos definidos pela igreja católica, en-tretanto, ainda existem católicos que também são devotos de Maria do Carmo e que acreditam naquilo que o pesquisador Clemar Dias nos dis-se: “Eu acredito sim, não me diminui, se não cura também não faz mal, tanta gente acredita.”

Page 67: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

67

Na tese de mestrado em antropologia feita pelo apresentador do Galpão Crioulo, Nico Fagundes, há uma relação entre o nome Maria e suas diversas personagens, igualando-as a Virgem Maria e Maria Madale-na. “O nome de Maria, a rosa mística, é mágico. Tem carisma e empatia, com brilho, cor, som e odor de santidade. É o nome da mulher, seja ela santa, como a Virgem Maria, ou prostituta, como Maria Madalena. Só po-deria ser esse o nome das três santas-prostitutas do Rio Grande do Sul: Maria do Carmo, Maria Isabel e Maria da Conceição.” Além disso, a cor predominante dentre estas histórias de Marias, é a cor azul, do tom mais escuro ao mais claro.

Além de termos trazido para nosso livro-reportagem a visão da igre-ja católica, pesquisamos mais outras duas opiniões, a da doutrina espírita e da igreja evangélica.

Page 68: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

68

Segundo Pedro Bouchet, Presidente da Associação Espírita Ferreira de Moraes, Maria do Carmo não é um espírito de luz, sendo assim ele con-sidera que: “Essa alma que reencarna que vem com o nome de Maria do Carmo, poderia ter traçado alguma atividade no bem, só que por algum motivo, pelas condições econômicas e/ou precariedade ela até poderia ter se prostituído, há uma versão sobre isso, não sabemos se é verdade. Também não sabemos o que esse espírito tinha na sua programação re-encarnatória, com tudo que aconteceu com Maria do Carmo o povo pode ter ficado constarnecido com os fatos, e a partir de então criou-se uma devoção, mas o culto vem das religiões tradicionais. O espiritismo não acredita no culto externo, acredita sim no culto interno.”

Bouchet, além de ser Presidente da Associação Espírita Ferreira de Moraes é o Administrador da Comunidade Terapêutica Espírita Chico Xa-vier e faz um alerta para as pessoas que vão até ao túmulo da Maria do

Page 69: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

69

Carmo pagar suas promessas com bebidas e cigarros: “Há uma série de alcoolistas e dependentes químicos que buscam bebidas no túmulo de Maria do Carmo, com a falta de dinheiro eles sabem que lá sempre en-contraram, estes casos são narrados dentro da Comunidade Terapêutica pelos próprios dependentes químicos”.

Portanto, com este depoimento Bouchet afirma que além de fazer mal para o espírito de Maria do Carmo receber este tipo de agradecimen-to, também acaba agravando um problema social, que é a dependência química.

O entendimento dos evangélicos sobre a vida, a morte e a devoção em relação a Santa do Povo. Buscamos dois membros para explicar a vi-são da igreja evangélica, o casal Maria Iolanda Ortiz e Menélio Ortiz que participam frequentemente de cultos e a pouco tempo cursaram o Curso de Teologia Corbã onde aprenderam ainda mais sobre essa religião.

Page 70: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

70

Quando questionados sobre Maria do Carmo foram convictos em suas respostas “Isso é pura invenção do povo, eles buscam respostas no cultismo e no misticismo ao invés de procurar as respostas na bíblia. Nós evangélicos não cremos nesses santos populares e nem mesmo nos be-atificados pela igreja, nós cremos em Jesus Cristo” assim salienta Dona Iolanda e seu Menélio, um complementando a resposta do outro, eles terminam a entrevista com a seguinte provocação: “Como que uma mu-lher que foi chamada de prostituta e recebe como oferenda bebidas pode ser considerada santa e milagrosa?”

Acreditando ainda mais ou cada vez menos na história da santa po-pular é com estas declarações que fechamos este sub-capítulo. Para mui-tos não passa de uma lenda e ou mito, para outras é uma religião que ga-nhou e ainda ganha admiradores curiosos por sua história e devotos que lhe dedicam alguns minutos fazendo pedidos e pagando promessas. No próximo sub-capítulo trataremos da devoção, que mesmo sem o apoio das religiões tornou-se uma das maiores crendices populares do Rio Grande do Sul.

Page 71: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Até hoje não se sabe ao certo como começou a devoção em torno da “Santa do Povo”, “Santa Profana”, ou “Santa Prosti-tuta” como também é conhecida, dizem que ela ganhou esta

alcunha por sua “propaganda” ter sido passada de boca em boca, até chegar em outros estados até mesmo nos países vizinhos. Em seu túmulo podemos observar placas com homenagens de pessoas de cidades distantes de São Borja como da Argentina, Uruguai, Paraguai e também de outras regiões do Rio Grande do Sul.

No dia 27 de agosto, dia da morte de Maria do Carmo, seu tú-mulo recebe visitas, alguns levam batons vermelhos, outros levam fitas coloridas, espumantes, cigarros, flores, e até mesmo tinta para pintar o túmulo. Neste ano alguns moradores do bairro foram até o túmulo e fizeram uma limpeza geral no local, um destes moradores é o protético José Paulo Lopes, que diz ser devoto da Maria do Carmo,

A devoção e os milagres

Page 72: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

72

e conta que estava com dificuldades de achar uma casa para morar, então, fez uma promessa para a santa popular e conseguiu hoje ele mora próximo ao túmulo, e sempre que pode faz algum agrado para sua padroeira.

Entre algumas histórias do protético sobre o pagamento de pro-messas, ele nos conta um fato curioso “Numa manhã de verão, bem cedo, aí pelas sete horas, eu estava tomando mate na frente da mi-nha casa com meu irmão, quando escuto barulhos gaita, olhei para um lado não tinha nada, olhei em direção ao túmulo, lá vi um ho-mem tocando gaita e até comentei com meu irmão ‘olha lá, tem um louco tocando gaita’, logo fomos em direção ao túmulo, entramos lá, e constatamos que era o cantor Borghettinho, ele estava prestando sua homenagem a Maria do Carmo”, o protético não soube nos dizer qual seria o pedido de Borghetti, mas sabemos que esta atitude foi para pagar alguma graça alcançada.

Page 73: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

73

Na Avenida Salgado Filho, no bairro do Passo, perto do Aero-clube, em uma casa cor de laranja mora a costureira Neli Barbosa Teixeira, ela nos conta com muita emoção e gratidão a sua história. “Algum tempo depois que me casei queria muito ser mãe, engravidei e tive a tristeza de perder meu primeiro filho, com isso, vieram os problemas, o médico disse que eu não poderia mais engravidar, como fiquei inconformada, mesmo com essa notícia ainda continuei fazen-do os tratamentos para que um dia eu pudesse realizar o sonho de ser mãe. Minhas amigas, que moravam aqui perto de minha casa, me disseram ‘Neli, porque você não faz uma promessa pra Maria do Car-mo? ’ eu fiquei na dúvida, mas mesmo assim fiz, disse a ela em uma oração ‘Maria do Carmo, se eu conseguir ter um filho, se for menina, prometo dar o teu nome à ela’, em menos de dois meses depois que fiz a promessa consegui engravidar e no dia que fiz o ultrassom tive a maravilhosa notícia que era uma menina, a minha Maria do Carmo.”

Page 74: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

74

É com lágrimas escorrendo pelo rosto que Dona Neli fala da fi-lha e de sua protetora, hoje Maria do Carmo Teixeira tem 24 anos, é formada em administração de empresas, é noiva, mora na cidade de Santo Ângelo, 187 km de São Borja.

Destaque na cultura gaúcha, César Lindemeyer, cantor tradicio-nalista que também foi integrante da Escola de Samba Unidos da Ma-ria do Carmo e antigamente morador do bairro, é devoto e nos conta uma de suas histórias de fé: “Eu sempre acreditei que de alguma forma ou por fé ou devoção a Maria do Carmo torna os pedidos em realidade, foram várias as promessas em horas de apuros, principal-mente nos estudos ou namoro que recorria até ela. Depois da graça alcançada por várias vezes levava a ela cachaça ou cigarro e sempre visitava o túmulo com amigos. Eu tinha outra forma de pagar as pro-messas, tocava violão, me colocava no costado do túmulo e cantava algumas canções, na época músicas da MPB.”

Page 75: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

75

Neste sub-capítulo podemos observar que mesmo sem o reconhe-cimento de religiões em relação à santidade da Maria do Carmo, ela se tornou um ponto de referência, de devoção e de fé para todos aqueles que um dia precisaram e acreditaram que ele poderia lhes ajudar.

Percebemos também, o quanto é difícil e particular o pedido e as promessas destes devotos, quando abordamos pessoas para falar sobre este assunto, muitas delas disseram que suas promessas não poderiam ser reveladas, nas homenagens, nas placas que são deixa-das no túmulo, como já havíamos dito antes, são escritas somente as iniciais do nome e dos sobrenomes.

São muitas as homenagens, às vezes de pessoas que não tem condições de mandar fazer uma placa, mas mesmo assim acabam escrevendo em folhas de caderno rabiscadas e mal recortados, ou-tros preferem usar batom, escrevendo no túmulo mesmo “obrigada (o) Maria do Carmo por esta graça alcançada”.

Page 76: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

76

Não importa a forma de como é paga a promessa, mas sim, o sin-gelo gesto e a humildade de reconhecer a singularidade desta história.

No próximo e último sub-capítulo faremos um breve resumo do que foi dito ao longo deste trabalho e traremos características de outras duas lendas que junto com a de Maria do Carmo, tornaram-se referências mi-tológicas na cultura Rio Grandense.

Esta foi a forma que um devoto encontrou para agradecer Maria do Carmo.

Page 77: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Ao longo dos capítulos viemos contando a trajetória de uma mulher que foi assassinada e esquartejada por um de seus amantes, contamos também, um pouco da história do Bairro

que carrega o nome da Santa popular, por fim, deixamos para regis-trar alguns fatos de devoção, as diferenças entre mitos e lendas e a visão da igreja sobre Maria do Carmo.

No Rio Grande do Sul, tivemos três histórias, podemos dizer que tivemos três lendas que representaram o destino triste de mu-lheres que hoje são exemplos de histórias populares e resultados positivos da oralidade.

Nico Fagundes, publicou em sua tese de mestrado, semelhan-ças entre estas três lendas que ainda continuam vivas na memó-ria dos seus povos.

As Marias do Rio Grande do Sul

Page 78: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

78

Semelhanças, segundo Nico Fagundes:

“- Maria do Carmo, Maria Isabel e Maria da Conceição eram prostitutas ou, pelo me-nos, promíscuas. - As três foram assassinadas por homens e os três assassinos eram militares. - As três foram assassinadas por ciúmes. - As três eram moças, bonitas e brancas, ou com aparência de brancas. - As três deixaram fama de bondade. - As três têm como centro de devoção uma capelinha própria. - As três recebem flores, velas e placas de agradecimento, sem assinatura, por graça alcançada. - As três têm cor própria – o azul. - A devoção as três é ignorada pelas religiões de possessão, até o momento. - A devoção as três, embora essencialmente local, tem projeção em outras cidades. Ninguém conhece efetivamente qualquer parente de qualquer uma delas. - As três devoções ocorrem em meio ao catolicismo ‘oficial’. - As três têm clientela geral (gente de poucos recursos) e clientela especial (pessoas de classe média-alta) - As três se chamam Maria.”

Page 79: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

79

Como podemos observar de 1987, quando foi publicada a tese de Fagundes, até hoje, 2011 não existe muita diferença, a história oral vem sido registrada e resgatada de tempo em tempo, por isso a história nunca muda e cada vez mais este mito é fortalecido, com isso são acrescidos detalhes aqui outros ali, dando uma imaginação a mais para o ouvinte ou leitor.

Fechando aqui este capítulo, destaco a grande importância que alguns autores tiveram para realização deste trabalho, por ser uma história relativamente muito pequena e que aconteceu ha 121 anos atrás, perdendo assim, depoimentos e registros de pessoas que pu-dessem ter conhecido de perto esta história.

Sem o registro de Moacir Matheus Sempé, Apparício Silva Rillo, Antonio Augusto Fagundes e catalogação de todo este material feito por Clóvis Benevenutto eu diria que, seria quase impossível a reali-zação deste trabalho.

Page 80: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Moacir Matheus Sempé e amigo pagando promessa no túmulo de Maria do Carmo.

80

Page 81: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Durante quatro anos aprendemos na faculdade qual é a tarefa do Jornalista dentro da comunidade, da sociedade em que ele vive, aprendemos que cabe a nós ajudar no resgate, na docu-

mentação, no registro e na divulgação de informações, de histórias que de alguma forma foram importantes.

Foi exatamente com este pensamento que iniciei minha pes-quisa neste tema, um assunto que por mais de um século permeia a história de São Borja que ainda é falado, relembrado e enaltecido por muitas pessoas.

Com isso, tive a oportunidade de conhecer fatos que contei para vocês e outros que houve pedido de sigilo, no qual tive que exercitar minha condição jornalística para poder relatar sem ferir a ética da pro-

Considerações Finais

Page 82: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

82

fissão. Também pude conhecer pessoas que me mostraram gratidão, atribuindo acontecimentos bons em suas vidas à Santa do Povo, pude conhecer pessoas que tem a ânsia de ajudar a registrar a história.

Quem pensa que Maria do Carmo foi apenas uma mulher morta pelo ódio de um de seus amantes está enganado, Maria do Carmo há muito tempo transformou-se em bairro, escola de samba, time de fu-tebol e até mesmo meninas acabaram ganhando este nome por suas mães terem realizado o tão sonhado desejo da maternidade que se-gundo elas, foi Maria do Carmo que intercedeu nos pedidos diante de Deus. A devoção emociona a todos aquelas que nela acreditam, Maria do Carmo não é de religião, Maria do Carmo é do povo.

Concluí que dificilmente alguém poderá explicar este fenômeno de devoção que acontece em torno de Maria do Carmo, ela é um mito, consagrado por uma lenda que passa de geração para geração.

Page 83: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

83

Para as religiões ela é desconhecida, mas mesmo assim o povo que nela crê, jamais esquecerá. Espero ter contribuído com essa lenda, transcrevendo minhas impressões e interpretações sobre o fato. Sinto-me privilegiada por ter tido a oportunidade de trabalhar este tema em dois trabalhos da faculdade, sendo um deles, um dos maiores desafios que tive em 21 anos de vida.

“Botaram ela de porre, judiaram da coitadinha, no fim da tarde ela morre, nasce ali mesmo à santinha, sob a humilde sepultura, quem recebeu uma graça, vai lá despejar cachaça e lágrimas de amargura, quanta sofrida senhora vai lá pedir pelos seus e a santinha colabora como ajudante de Deus, Maria do Carmo vela, Maria do Carmo atende, cuida os rumos da donzela que a luz das orações acen-de. Maria do Carmo a graça aos teus crentes derrama e eles lhe trazem cachaça, cigarros e luz de chamas, maior que Deus não é, mas prontamente intercede e atende ao pobre que pede se o pobre é rico na fé.” José Hilário Retamoso Professor, ensaísta, poeta e compositor

Page 84: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Maria do Carmo: Da luxúria ao milagre Lenise Morgental

84

Desta forma, encerramos aqui nossa contribuição com esta histó-ria e com a cultura popular de São Borja, uma história que não tem final e cada vez que é contada é vista de maneira completamente diferente.

“Embora não desprezando a verificação dos defeitos que podem ter ensombrecido uma vida, curvam-se reverente diante das virtudes mila-grosas que vestem de branco a sombra das almas. É curvado perante a tua branca memória e é reverente diante do teu culto que meu povo te consagra, te peço perdão por ter pretendido devassar o teu mistério. Lembra-te de mim, se tanto te for permitido” Moacir Matheus Sempé

Page 85: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Referências

- RILLO. Apparício Silva - São Borja em perguntas e respostas – 1982

- FAGUNDES, Antonio Augusto. Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992.

- FAGUNDES, Antonio Augusto. As Santas Prostitutas: Um estudo de devoção popular no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987

- SEMPÉ, Moacir Matheus. História de Maria do Carmo. Fascículos pu-blicados na Folha de São Borja, na coluna São Borja de Ontem e de Hoje. 18 edições 14-11-1979 a 19-04-1980.

Page 86: Maria do Carmo: da Luxúria ao Milagre

Projeto Experimental de Conclusão de Curso Comunicação Social - Habilitação Jornalismo

Autora Lenise Morgental [email protected]

Orientador Ms. Marco Bonito [email protected]