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MARIA NAZARETH DA PENHA VASQUES MOTA GUILHERME GUSTAVO VASQUES MOTA CELSO LINS FALCONE Organizadores SOCIOLOGIA JURÍDICA AUTORES Antonio José Cacheado Loureiro

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SOCIOLOGIAJURÍDICA

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MARIA NAZARETH DA PENHA VASQUES MOTAGUILHERME GUSTAVO VASQUES MOTACELSO LINS FALCONEOrganizadores

SOCIOLOGIAJURÍDICA

AUTORESAntonio José Cacheado LoureiroCamila Bertoni Carneiro dos SantosCarla ThomasCarlos Antonio de Carvalho Mota JúniorCelso Lins FalconeDevane Batista Costa Edmara de Abreu Leão Fernando Figueiredo PrestesGracireza Azedo de FariasHigor Luís de Carvalho SilvaJuliana Mayara da Silva SampaioLenice Maria de Aguiar Raposo da CâmaraMarcelo Antunes SantosMárcio Alexandre SilvaMaria Nazareth da Penha Vasques MotaMário Vinícius Rosário WuMonique de Souza ArrudaRômulo de Souza Barbosa Tiago Oliveira LopesTimóteo Ágabo Pacheco de AlmeidaVinícius Ribeiro de Souza

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© Maria Nazareth da Penha Vasques Mota; Guilherme Gustavo Vasques Mota; Celso Lins Falcone, 2018

editor ¶ Isaac Maciel

coordenação editorial ¶ Tenório Telles/Neiza Teixeira

projeto gráfico e diagramação ¶ André Martins

capa ¶ Lícia Gonçalves

revisão ¶ Núcleo de editoração Valer

normalização ¶ Ycaro Verçosa – CRB – 11/287

M917s Mota, Maria de Nazareth da Penha Vasques. Sociologia Jurídica. / Maria de Nazareth da Penha Vasques Mota; Guilherme Gustavo Vasques Mota; Celso Lins Falcone. – Manaus: Valer, 2018.

310 p.

ISBN 978-85-7512-868-8

1. Direito 2. Sociologia Jurídica I. Título II. Mota, Guilherme Gustavo Vasques III. Falcone, Celso Lins

CDD 340.115 22. ed.

2018

Editora VALER

Av. Rio Mar, 63, Cj. Vieiralves – Nossa Senhora das GraçasCep: 69053 180 – Manaus, AMTel.: [92] 3184 4568www.editoravaler.com.br

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Sumário

ApresentaçãoEid Badr 7

Cotas x outsiders: análise do sistema brasileiro de cotas sob a ótica de Howard S. Becker.Antonio José Cacheado LoureiroHigor Luís de Carvalho Silva 11

Função Social da Ciência JurídicaCamila Bertoni Carneiro dos SantosCelso Lins Falcone 33

A Vulnerabilidade dos Direitos Humanos Diante da Desigualdade como Fato Gerador de Violência UrbanaCarla ThomasLenice Maria Aguiar Raposo Câmara 51

Os Reflexos da Pós-Modernidade da Sociedade de Consumo de Massa no Indivíduo, no Trabalho e nas Relações SociaisDevane Batista CostaMonique de Souza Arruda 77

Agrotóxicos, Alimentos Transgênicos, Informação e a Sociedade de Risco no Contexto AtualEdmara de Abreu LeãoMárcio Alexandre Silva 105

Direito Alternativo ou uso alternativo do Direito em Diálogo com o Direito AmbientalFernando Figueiredo Prestes 125

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Principais Teorias Criminológicas e suas Contribuições à Ciência da Criminologia no Que Se Refere ao Entendimento do Fenômeno DelitoGracireza Azedo de Farias 145

Pós-Modernidade, Pluralismo Jurídico e o Desafio da Crise Ambiental Juliana Mayara da Silva SampaioRômulo de Souza Barbosa 175

Da Biopolítica à Conformação da EcopolíticaMarcelo Antunes Santos 203

As Barragens de Rejeitos de Mineração e o Direito Ambiental na Sociedade de RiscoMário Vinícius Rosário Wu 221

Críticas ao “Homem Médio” à Luz de BeckerTiago Oliveira LopesVinícius Ribeiro de Souza 253

Desenvolvimento Sustentável: Utopia da Sociedade de Risco, Marca da Modernidade Líquida ou Ideia Democrática Válida? Timóteo Ágabo Pacheco de Almeida 271

A visão de Norberto Bobbio na Solução de Antinomias entre a Lei Indígena e a Lei PátriaCarlos Antonio de Carvalho Mota Júnior Maria Nazareth Vasques Mota 297

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APRESENTAÇÃO

A presente obra, produto do esforço de seus organizadores, da dedicação e da profunda reflexão de seus autores, comprova a importância e o acerto da op-ção pela introdução da Sociologia Jurídica como disciplina obrigatória no proje-to pedagógico do curso de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (no ano de 2015), bem como o denodo demonstrado pela Profª. Drª. Maria Nazareth Vasques Mota responsável por ministrá-la.

A prof.ª dr.ª Maria Nazareth Vasques Mota, o doutorando Guilherme Gus-tavo Vasques Mota e o mestrando Celso Lins Falcone foram extremamente fe-lizes ao tomarem a inciativa de organizar e buscar editar este livro, fruto das pesquisas realizadas no âmbito da disciplina mencionada.

Os temas desenvolvidos nos doze capítulos desta obra revelam, por parte de seus autores, todos alunos do curso de Mestrado citado, um mergulho na pes-quisa de diversas obras fundamentais do Direito e da Sociologia, o que, decerto, propiciou-lhes a escolha e desenvolvimento de temas igualmente relevantes.

Com efeito, o estudo sobre as políticas afirmativas e seus reflexos jurídicos e sociológicos, função social da ciência jurídica como elemento de pacificação social, a desigualdade social e seus impactos negativos sobre a efetivação dos direitos fundamentais, o consumo de massa e seus impactos sobre o meio am-biente e direitos fundamentais, o risco à saúde e à biodiversidade decorrente do uso de agrotóxicos e alimentos transgênicos, o chamado direito alternativo em diálogo com o direito ambiental, a análise da contribuição de teorias crimino-lógicas à ciência da Criminologia, o pluralismo jurídico e o desafio da proteção ambiental, Michel Foucault e a biopolítica, o risco ambiental resultante da cons-trução de barragens de mineração, a crítica ao termo &ld quo; homem médio” no direito penal e a teoria de Becker e, por fim, a análise crítica do conceito de “desenvolvimento sustentável” obriga-nos à reflexão e demonstra o rigor e a di-ligência dos autores em relação à pesquisa realizada.

Além disso, restam evidentes a coerência e a pertinência temática entre os capítulos da obra e destes com a disciplina em tela e as linhas de pesquisa de nosso mestrado. Neste sentido, este livro tem a qualidade de contribuir para o efetivo debate dos temas propostos, os quais têm grande relevância para a Socio-logia Jurídica e a Ciência do Direito.

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Ao encerrar estas breves linhas à guisa de apresentação, registro os meus efusivos parabéns aos organizadores, aos autores e ao Programa de Pós-Gra-duação Stricto Sensu em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Ama-zonas, o qual propiciou as condições necessárias para o desenvolvimento deste relevante trabalho científico.

Prof. dr. Eid BadrProfessor adjunto da Universidade do Estado do Amazonas

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COTAS X OUTSIDERS: ANÁLISE DO SISTEMA BRASILEIRO DE COTAS SOB A ÓTICA DE HOWARD S. BECKER

QUOTAS X OUTSIDERS: ANALYSIS OF THE BRAZILIAN QUOTA SYSTEM FROM THE PERSPECTIVE OF HOWARD S. BECKER

Antonio José Cacheado Loureiro1

Higor Luís de Carvalho Silva2

SUMÁRIO: Introdução; 1. Sistema de Cotas no Brasil (e no Exterior); 1.1 Histó-

rico das Cotas no Exterior; 1.2 Histórico das Cotas no Brasil; 1.3 Conceituação;

1.4 Espécies de Cotas; 1.4.1 Cotas Raciais; 1.4.2 Cotas Sociais; 1.4.3 Cotas para

portadores de Necessidades especiais; 2. Análise do outsider de Howard Becker;

2.1 Construção Conceitual do outsider; 2.2 O outsider na Sociedade Brasileira;

3. Os outsiders e o sistema brasileiro de cotas; 3.1 Empreendedorismo Moral do

Legislativo Brasileiro; 3.2 Novos Grupos Desviantes no Brasil e a Análise das Pro-

postas Legislativas Pertinentes ao Sistema de Cotas; 3.2.1 Cotas para Mulheres em

Cargos Políticos; 3.2.2 Cotas para Idosos em Concursos Públicos; 3.3.3 Cotas para

Usuários de Substâncias Entorpecentes; Conclusão; Referências.

RESUMO: O artigo tem por objeto analisar a questão do sistema de cotas brasileiro em suas diversas categorias, sob a ótica da obra Estudos de Sociolo-gia do Desvio – Outsiders, de Howard Saul Becker. Além disso, o artigo expõe conceitos fundamentais para entender a questão, bem como aprofunda aspectos determinantes acerca do tema, apontando os pontos positivos e negativos, apre-sentando críticas e posicionamentos doutrinários sobre o sistema. Vale ainda ressaltar que o artigo analisa o sistema brasileiro de cotas desde sua origem e em como o modelo adotado adequa-se às ideias de Howard Becker.

PALAVRAS-CHAVE: Sistema de Cotas. Sociologia do Desvio. Outsiders.

1 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Professor de Direito da Universidade do Estado do Amazonas. Advogado.

2 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Delegado de Polícia Judi-ciária do Estado de Pernambuco.

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ABSTRACT: This paper has as its object the analysis of the Brazilian quo-tas system, under the optics of Howard Saul Becker’s “Outsiders; studies in the sociology of deviance”. Although, this paper tries to expose fundamental con-cepts to understand the problem, as well as deeply exam on aspects about the theme, pointing positives and negatives views, showing critics and doctrinaires positions that use to circle the problem. It is worth mentioning that this paper seeks to analyze the Brazilian quotas system since its origins and how the Brazi-lian model matches Becker’s ideas.

KEYWORDS: Quotas System. Sociology of Deviance. Outsiders.

INTRODUÇÃO

Hodiernamente, um tema tem, novamente, ganhado destaque no cenário político do Brasil. Tal tema referem-se ao sistema de cotas, que é um conjunto de ações afirmativas promovidas pelo Poder Público com o objetivo equiparar de-terminados grupos sociais ao grupo majoritário de uma determinada sociedade, primando, assim, pela isonomia em sentido material.

Este artigo analisa a questão das cotas no Brasil (vagas para ingresso em universidades públicas, em concursos públicos e no mercado de trabalho) em contraste com a ideia de outsider, termo criado pelo sociólogo americano Ho-ward S. Becker.

É importante compreender a relação entre os outsiders e o sistema de cotas, uma vez que eles são aqueles que vivem às margens da sociedade, sofrendo as consequências provenientes do seu não enquadramento com os padrões fixados por ela. Dessa forma, faz-se necessário a observância dos conceitos e dos dispo-sitivos legais que serão apresentados.

O tema tem grande importância, uma vez que se correlaciona, como supra-citado, ao princípio constitucional da isonomia, como será tratado em momento oportuno. Além disso, mostra-se bastante atual frente às opiniões divergentes que cercam o tema cotas, bem como no que tange à elaboração de leis buscando pinçar novas classes sociais, ou seja, novos outsiders para a tutela do sistema de cota.

Assim, busca-se estabelecer um paralelo entre o sistema brasileiro de cotas e o trabalho do sociólogo Howard S. Becker, com ênfase para a obra Estudos de Sociologia do Desvio – Outsiders, de 1973. Nesse sentido o objetivo da análise crí-

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tica do referido sistema e em como as ideias do sociólogo americano refletem-se sobre ele.

O primeiro capítulo trata sobre o sistema de cotas, no Brasil e no exterior, trazendo aspectos históricos, classificações e espécies de cotas, bem como a le-gislação pertinente ao tema exposto. Já o segundo capítulo versará sobre a obra Estudos de Sociologia do Desvio – Outsiders, sobretudo no que diz respeito aos conceitos e espécies de outsiders. Por fim, o terceiro capítulo traz perspectivas futuras acerca do tema, além de determinar o ponto de intercalamento entre os dois objetos de estudo do artigo: cotas e outsiders.

1. SISTEMA DE COTAS NO BRASIL (E NO EXTERIOR)

1.1 Histórico das Cotas no Exterior

De acordo com Juliana Marton (2010, p. 1) “a história das ações afirmati-vas teve seu início nos EUA, durante a época das lutas pelos direitos civis, em meados da década de 1960, como forma de promover a igualdade social entre os negros e brancos norte-americanos”.

Logo, a partir desses eventos, o presidente americano John F. Kennedy hou-ve por bem validar ações que tinham como objetivo auxiliar as pessoas pobres e diminuir a desigualdade entre classes. No entanto, poucos sabem que tais sis-temas, adotados pelos Estados Unidos da América criaram benefícios apenas para a classe média negra, negligenciando todas as demais classes em estado de hipossuficiência da população do país.

Segundo Jessé de Souza, o crescimento da classe média negra entre 1970 e 1980 não interferiu na diminuição da porcentagem de famílias negras pobres, que atualmente oscila entre 30% da população negra do país. Esse percentual de crescimento dos Estados Unidos é explicado por meio da pesquisa que o econo-mista americano Thomas Sowell realizou pela Universidade Stanford. O estudo de Sowell conclui ser errôneo atribuir às ações afirmativas a evolução social dos grupos beneficiados, uma vez que estes se desenvolveram no período anterior ao implemento delas.

A intenção exordial pretendida com a implementação dessas políticas era reduzir a discriminação social, decorrente da raça (étnica) e dos conflitos arma-

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dos entre os Estados do norte e sul do país. Mas o que restou claro foi a ineficácia de tais ações para abarcar toda a população negra.

Para Adriano Lesme (2010, p. 1), “a liderança do movimento de direitos civis tinha em mente propor reformas econômicas, além da execução de leis an-tidiscriminativas. Mas o declínio da economia na década de 1970 não permitiu que essas ideias fossem colocadas em prática”.

Hoje, os sistemas de cotas raciais, que eram adotadas principalmente em escolas nos EUA, foram abolidos. Em junho de 2007, a Suprema Corte dos Esta-dos Unidos decidiu que a raça de uma criança não seria mais requisito prepon-derante para determinar onde ela deveria estudar.

Vale ainda aduzir que as cotas são, também, realidade em outros países, sobretudo no que diz respeito aos portadores de necessidades especiais, ou seja, são cotas em razão de condições físicas, não são cotas raciais, uma vez que tais cotas (raciais) são consideradas inconstitucionais em grande parte desses Esta-dos, conforme o apanhado realizado por Juliana Marton:

PORTUGAL

Art. 28, da lei n.º 38/2004, estabelece a cota de até 2% de trabalhadores com defi-

ciência para a iniciativa privada e de, no mínimo, 5% para a administração pública.

ESPANHA

A lei n.º 66/97 ratificou o Art. 4.º do Decreto Real n.º 1.451/83, o qual assegura o

percentual mínimo de 2% para as empresas com mais de 50 trabalhadores fixos.

Já a lei n.º 63/97 concede uma gama de incentivos fiscais, com a redução de 50%

das cotas patronais da seguridade social.

FRANÇA

O Código do Trabalho Francês, em seu Art. L323-1, reserva postos de trabalho

no importe de 6% dos trabalhadores em empresas com mais de 20 empregados.

ITÁLIA

A lei n.º 68/99, no seu Art. 3.º, estabelece que os empregadores públicos e privados

devem contratar pessoas com deficiência na proporção de 7% de seus trabalhadores,

no caso de empresas com mais de 50 empregados; duas pessoas com deficiência, em

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empresas com 36 a 50 trabalhadores; e uma pessoa com deficiência, se a empresa

possuir entre 15 e 35 trabalhadores.

ALEMANHA

A lei alemã estabelece para as empresas com mais de 16 empregados uma cota

de 6%, incentivando uma contribuição empresarial para um fundo de formação

profissional de pessoas com deficiência.

ÁUSTRIA

A Lei Federal reserva 4% das vagas para trabalhadores com deficiência nas em-

presas que tenham mais de 25 anos, ou admite a contribuição para um fundo de

formação profissional.

BÉLGICA

Existe sistema de cotas, porém não há um percentual legal para a iniciativa pri-

vada. Este é negociado por sindicatos e representantes patronais para cada ramo

da economia.

HOLANDA

O percentual varia de 3% a 7%, sendo este firmado por negociação coletiva, de-

pendendo do ramo de atuação e do tamanho da empresa.

IRLANDA

A cota é de 3%, sendo aplicável somente para o setor público.

REINO UNIDO

O Disability Discrimination Act (DDA), de 1995, trata da questão do trabalho,

vedando a discriminação de pessoas com deficiência em relação ao acesso, à

conservação e ao progresso no emprego. Estabelece, também, medidas organi-

zacionais e físicas para possibilitar o acesso de pessoas com deficiência. O Poder

Judiciário pode fixar cotas, desde que se constate falta de correspondência entre

o percentual de empregados com deficiência existente na empresa e no local

onde a mesma se situa.

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ARGENTINA

A lei n.º 25.687/98 estabelece um percentual de, no mínimo, 4% para a contrata-

ção de servidores públicos. Estendem-se, ademais, alguns incentivos para que as

empresas privadas também contratem pessoas com deficiência.

COLÔMBIA

A lei n.º 361/97 concede benefícios de isenções de tributos nacionais e taxas de

importação para as empresas que tenham, no mínimo, 10% de seus trabalhadores

com deficiência.

EL SALVADOR

A Lei de Equiparação de Oportunidades, o Decreto Legislativo n.º 888, em seu

Art. 24, estabelece que as empresas com mais de 25 empregados devem contratar

uma pessoa com deficiência.

HONDURAS

A Lei de Promoção de Emprego de Pessoas com Deficiência, o Decreto n.º 17/91,

em seu Art. 2.º, fixa cotas obrigatórias para a contratação de pessoas com deficiência

por empresas públicas e privadas, na seguinte proporção: uma pessoa com deficiên-

cia, nas empresas com 20 a 40 trabalhadores; duas, nas que tenham de 50 a 74 fun-

cionários; três, nas empresas com 75 a 99 trabalhadores; e quatro, nas empresas que

tenham mais de cem empregados.

NICARÁGUA

A lei n.º 185 estabelece que as empresas contratem uma pessoa com deficiência a

cada 50 trabalhadores empregados.

PANAMÁ

A lei n.º 42/99 obriga os empregadores que possuam em seus quadros mais de 50

trabalhadores a contratar, no mínimo, 2% de trabalhadores com deficiência. O

Decreto Executivo n.º 88/93 estabelece incentivos em favor de empregadores que

contratem pessoas com deficiência. O governo também está obrigado a empregar

pessoas com deficiência em todas as suas instituições.

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PERU

A Lei Geral da Pessoa com Deficiência, em seu capítulo VI, estabelece a conces-

são de benefícios tanto para as pessoas com deficiência quanto para as empresas

que as contratem, como a obtenção de créditos preferenciais e financiamentos de

organismos financeiros nacionais e internacionais; preferência nos processos de

licitação e dedução da renda bruta de uma percentagem das remunerações paga

às pessoas com deficiência.

URUGUAI

A lei n.º 16.095 estabelece, em seu Art. 42, que 4% dos cargos vagos na esfera

pública deverão ser preenchidos por pessoas com deficiência e, no Art. 43, exige,

para a concessão de bens ou serviços públicos a particulares, que esses contratem

pessoas com deficiência, mas não estabelece qualquer percentual.

VENEZUELA

A Lei Orgânica do Trabalho, de 1997, fixa uma cota de uma pessoa com deficiên-

cia a cada 50 empregados.

CHINA

A cota oscila de 1,5% a 2%, dependendo da regulamentação de cada município.

JAPÃO

A Lei de Promoção do Emprego para Pessoas com Deficiência, de 1998, fixa o per-

centual de 1,8% para as empresas com mais de 56 empregados, havendo um fundo

Mantido por contribuições das empresas que não cumprem a cota, fundo este que

também custeia as empresas que a preenchem.

1.2 Histórico das Cotas no Brasil

No Brasil, o sistema de cotas ganhou destaque no início dos anos 2000, foi primeiramente utilizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que foi a universidade pioneira do país a adotar um sistema de cotas em vestibu-lares para cursos de graduação por meio de uma lei estadual que disponibilizava 50% (cinquenta por cento) de suas vagas no processo seletivo para alunos egres-sos de escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro.

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Após a experiência da UERJ, foi a vez da Universidade de Brasília (UnB) implementar uma política de ações afirmativas para negros em seu vestibular de 2004, ou seja, cotas raciais, em meio a muita polêmica, discussões e dúvidas le-vantadas pelos próprios vestibulandos. A instituição em comento foi a primeira no Brasil a utilizar o sistema de cotas raciais.

Com o passar dos anos, apesar de poucas, outras universidades também foram aderindo às cotas em seus processos seletivos, reservando parcela de suas vagas não apenas para negros, como também para indígenas, pardos e mem-bros de comunidades quilombolas (cotas raciais), bem como para portadores de necessidades especiais (PNE’s) e estudantes de baixa renda advindos de escolas públicas (cotas sociais). Percebe-se, então, que no Brasil, o sistema de cotas não tutela, alcança exclusivamente a questão racial (MARTON, 2016, p. 1).

Hodiernamente, esse cenário encontra-se bem diferente, visto que prati-camente todas as instituições de ensino superior públicas destinam vagas para o sistema de cotas em seus processos seletivos. No início, muitas viam no siste-ma uma medida provisória e que não duraria por muito tempo. No entanto, ele acabou tornando-se fixo, já que as universidades observaram que o processo para uma melhora efetiva e significativa por meio de uma reforma no ensino das escolas públicas seria lento e acompanhado de muita inércia.

De acordo com Lesmes (2016, p. 1),

O funcionamento do sistema de cotas nas instituições pode ser definido de acordo

com as suas próprias políticas e regulamentos, tendo hoje variados modelos pelo

Brasil. O que se tem geralmente é a reserva de uma parcela das vagas para aqueles

candidatos que estudaram no ensino médio da rede pública de ensino.

Essa medida fortaleceu-se ainda mais com a aprovação da lei n.º 12.711, de agosto

de 2012, conhecida também como Lei de Cotas. Por meio dela, as instituições de

ensino superior federais têm até agosto de 2016 para destinarem metade de suas

vagas nos processos seletivos para estudantes oriundos de escolas públicas. A dis-

tribuição dessas vagas também leva em conta critérios raciais e sociais.

Regulamentada pelo Decreto n.º 7.824/2012, essa lei propõe 25% das vagas para

estudantes oriundos da rede pública com renda igual ou inferior a 1,5 salário mí-

nimo, 25% para candidatos que estudaram integralmente no ensino médio e que

possuem renda igual ou superior a 1,5 salário mínimo e, ainda, um percentual

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para pretos, pardos e indígenas, conforme o último Censo Demográfico do Insti-

tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na região.

Como citado no início do texto, o sistema ainda divide opiniões no país. Para muitos, as cotas ferem, de certa forma, a autonomia da instituição, partindo do princípio de igualdade. Além disso, faz com que seja desconsiderado qual-quer investimento de melhoria na Educação Básica.

No ano de 2014, entrou em vigor a lei n.º 12.990, que reserva uma porcen-tagem das vagas de concurso público para negros e pardos. A intenção é mi-nimizar desigualdades sociais, econômicas e educacionais criadas pela história brasileira que, por sua vez, foi marcada por eventos históricos que contribuíram para um distanciamento entre as classes sociais e, por consequência, as classes raciais também, visto que as classes mais baixas confundem-se com as raças afe-tadas pelo processo histórico de segregação.

A lei n.º 12.990/2014 reserva 20% (vinte por cento) do total de vagas em concursos para a administração pública federal direta e indireta, para autar-quias, agências reguladoras, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União.

1.3 Conceituação

Cota, também conhecida por ação afirmativa, é uma maneira de reservar vagas para determinados grupos. O sistema de cotas foi elaborado para propiciar acesso a diversos grupos considerados, socialmente, prejudicados pelo processo histórico de formação da sociedade brasileira, tais como negros, índios, deficien-tes, estudantes de escola pública e de baixa renda, em universidades, concursos públicos e mercado de trabalho.

O sistema de cotas implementado nas universidades brasileiras é o exem-plo mais emblemático dessa política no Brasil. As medidas de cotas raciais e cotas sociais implantadas pelo Estado brasileiro auxiliam no ingresso de cer-tos grupos na disputa com o resto da população, em observância ao princípio constitucional da isonomia. No entanto, é uma alternativa que provoca bastante debate, uma vez que alguns enxergam as cotas como a redução da exclusão des-ses grupos supracitados, já outros grupos a enxergam como uma nova forma de discriminação.

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Vale ainda ressaltar que o ideal de raça utilizado nas ações afirmativas não é o superado conceito biológico, mas sim o de construção social. A justificati-va para o sistema de cotas é que certos grupos específicos, em razão de algum processo histórico depreciativo, teriam maior dificuldade de mobilidade social e oportunidades educacionais ou que surgem no mercado de trabalho, bem como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade (LESMES, 2016, p. 1).

1.4 Espécies de Cotas

1.4.1 Cotas Raciais

As cotas raciais têm por escopo o critério da raça, ou seja, do grupo étnico. Logo, enquadram-se nessa espécie de cota, as ações que visem reservar vagas aos negros, pardos, indígenas, descendentes de quilombolas, bem como outras a serem privilegiadas por lei.

No Brasil, como já citado, no ano de 2014, passou a vigorar a lei 12.990, que reserva uma porcentagem das vagas de concurso público para negros e pardos, no âmbito do executivo da União. A lei em comento traz alguns critérios de admissão e operação dessa reserva, conforme dispõe o artigo 1o da referida lei:

Art. 1.º – Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empre-gos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta lei.

§ 1.º – A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas

no concurso público for igual ou superior a 3 (três).

§ 2.º – Na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas

a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subse-

quente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído

para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5

(cinco décimos).

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§ 3.º – A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais

dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes

à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido.

Art. 2.º – Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que

se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, con-

forme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geo-

grafia e Estatística - IBGE.

Parágrafo Único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será

eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da

sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo

em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de

outras sanções cabíveis.

Cumpre ressaltar, que a lei 12.711/12, diploma que trata das cotas em uni-versidades federais, também traz um dispositivo que dispõe sobre a reserva de cotas em razão da raça. Assim, vale colacionar o artigo 3.º da lei em comento:

Art. 3.º – Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o Art.

1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos

e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção

ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indí-

genas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está

instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística – IBGE (Redação dada pela lei n.º 13.409, de 2016).

Parágrafo Único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios

estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completa-

das por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas

públicas.

1.4.2 Cotas Sociais

As ações afirmativas ligadas a esta espécie de cota são direcionadas, em regra, às pessoas de baixa renda. São exemplos os egressos de escolas públicas ou os grupos familiares de baixa renda. Logo, percebe-se que são alvo dessas cotas

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os hipossuficientes econômicos, ou seja, aqueles que necessitam de uma equipa-ração, de uma tutela econômica por parte do Estado.

De acordo com Arabela Olive (2005, p. 5) “as vagas para estudantes de es-cola pública são vistas como a melhor forma de política de cotas, uma vez que os argumentos de quem discorda da medida são de que o problema brasileiro é social e não racial”. Assim, as cotas sociais iriam abranger, indiretamente, todas as raças e beneficiar aqueles que realmente não têm condições de concorrer no vestibular com alunos vindos de escolas particulares.

Dentro desse cenário, foi elaborada e passou a vigorar a lei 12.711, a emble-mática Lei de Cotas, que trata sobre a reserva de 25% das vagas em instituições e universidades federais para alunos que tenham cursado integralmente o Ensino Médio na rede pública de ensino. Desse percentual, 50% é destinado a estudantes de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita.

Não obstante, vale aduzir trechos do diploma normativo em análise para ilustrar o exposto:

Art. 1.º – As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério

da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de

graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas va-

gas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas

públicas.

Parágrafo Único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo,

50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de fa-

mílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário mínimo e

meio) per capita.

Art. 4.º – As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em

cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50%

(cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente

o ensino fundamental em escolas públicas.

Parágrafo Único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo,

50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de fa-

mílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e

meio) per capita.

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1.4.3 Cotas para portadores de Necessidades Especiais

A Constituição Federal, no artigo 37, garante ao deficiente físico o direito de concorrer a vagas em concursos públicos:

Art. 37, CF/88:

VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas

portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;

Já pela lei 8213/91, regulamentada pelo Decreto 3298/99, é garantida a porcentagem mínima de 5% e máxima de 20% do total de vagas oferecidas aos candidatos com deficiência. No entanto, se o cargo público exigir do candidato aptidões que a deficiência física o impeça de realizar as atribuições, o processo seletivo não deve oferecer a reserva de vagas.

Os candidatos devem observar nos editais as atribuições e tarefas referentes ao cargo, emprego ou função. Caso não haja incompatibilidade, haverá reser-va destinada a pessoa portadora de deficiência física. Além disso, o edital deve conter a previsão de adaptação das provas, do curso de formação e do estágio probatório, conforme a deficiência.

Para comprovar a deficiência, o candidato deverá apresentar laudo médico atestando a espécie e o grau, ou nível da deficiência, que pode ou não ser exigida no ato da inscrição. No atestado também deverá constar o código CID – Classi-ficação Internacional de Doenças – e a provável causa da deficiência.

As informações supracitadas podem ser fundamentadas de acordo com os seguintes dispositivos albergados pelo Decreto n.º 3.298/1999:

Art. 37 – Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscre-

ver em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos,

para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência

de que é portador.

§ 1.º O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de

condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual

de cinco por cento em face da classificação obtida.

Art. 39 – Os editais de concursos públicos deverão conter:

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I – o número de vagas existentes, bem como o total correspondente à reserva

destinada à pessoa portadora de deficiência;

II – as atribuições e tarefas essenciais dos cargos;

III – previsão de adaptação das provas, do curso de formação e do estágio proba-

tório, conforme a deficiência do candidato; e

IV – exigência de apresentação, pelo candidato portador de deficiência, no ato da

inscrição, de laudo médico atestando a espécie e o grau ou nível da deficiência,

com expressa referência ao código correspondente da Classificação Internacional

de Doença – CID, bem como a provável causa da deficiência.

Art. 41 – A pessoa portadora de deficiência, resguardadas as condições especiais

previstas neste Decreto, participará de concurso em igualdade de condições com

os demais candidatos no que concerne:

I – ao conteúdo das provas;

II – à avaliação e aos critérios de aprovação;

III – ao horário e ao local de aplicação das provas; e

IV – à nota mínima exigida para todos os demais candidatos.

A lei reserva um percentual de vagas para deficientes, exceto quando o cargo ou

emprego público exija aptidão plena do candidato.

2. ANÁLISE DO OUTSIDER DE HOWARD S. BECKER

2.1 Construção Conceitual do Outsider

O termo outsider tem a ver com a transgressão de uma norma social. Tal norma é um modelo, uma regra de comportamento que se refere a um determi-nado grupo social. Uma vez que alguém incorre contra a norma em comento, torna-se um estrangeiro dentro do grupo social ao qual pertence. Outra forma de ser considerado um outsider é, dentro de seu próprio grupo, pensar de forma diferente dos demais membros (BECKER, 2008, p. 27).

O termo, em tela, é fruto do trabalho do sociólogo americano Howard S. Becker, que por meio dos seus estudos, tornou-se um expoente no tema “desvio”, desenvolvendo ideias acerca da relação crime e desvio, supondo, sempre, uma relação social e sendo este o foco, ou seja, o crime relaciona-se com as relações e não com o indivíduo analisado de per si. Assim, temos as regras sociais que de-

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vem ser observadas e, uma vez descumpridas, gera-se o desvio. Vale ressaltar que para Becker (2008, p. 27) “Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele”.

De acordo com Cristina Moura (2009, p. 1):Becker nos leva a conhecer usuários de maconha, músicos de casas notur-

nas, “quadrados” e empreendedores morais, todos esses “tipos” sendo agentes em processos que produzem carreiras, estilos de vida e visões de mundo que não deixam de ser reais por serem socialmente construídos. O mundo social, ou me-lhor, os mundos sociais concebidos por Becker são compostos por pessoas que, agindo juntas, com diferentes graus de comprometimento, produzem realidades que também as definem.

Segundo Becker, regras, desvios e rótulos são sempre construídos em pro-cessos políticos, nos quais alguns grupos conseguem impor seus pontos de vista como mais legítimos que outros.

2.2 O Outsider na Sociedade Brasileira

As sociedades têm grupos dominantes e grupos desviantes, assim como tipos diferentes de desvio. Logo, não seria diferente na sociedade brasileira. Existem diversos grupos desviantes no seio da referida sociedade, tais como: usuários de drogas, comunidade LGBT, “artistas de rua”, seguidores de religiões minoritárias, entre outros.

Não obstante, ainda existem os outsiders históricos, ou seja, aqueles que no processo de construção do país, nunca conseguiram se adequar à situação ou aos padrões impostos pelos grupos dominantes, podemos citar, como exemplo, os negros e os indígenas. Ambos sofreram com o processo histórico, escravidão, marginalização, não integração, ilustrando as mazelas que compõem a carga his-tórica desses grupos, culminando em um flagrante desequilíbrio social.

Todavia, nos últimos cinco anos, os outsiders brasileiros estão em uma crescente, ganhando espaço em diversos campos da sociedade, como a mídia, política e na academia. A mídia brasileira vem dando maior destaque aos outsi-ders, as chamadas minorias, uma vez que é crescente o movimento no Brasil de proteção aos grupos minoritários, e os meios de comunicação têm contribuído para isso, têm auxiliado e noticiado as reivindicações desses grupos.

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Já no campo político, é possível vislumbrarmos o surgimento de políticos outsiders, ou seja, aqueles que possuem ideias e defendem pontos de vista contra majoritários, frente aos grupos dominantes. Tais ideias refletem como os grupos desviantes estão presentes na sociedade brasileira e que os referidos políticos, parte desses grupos, paulatinamente vêm ocupando posições de destaque nas últimas eleições, como Jean Willys e Jair Bolsonaro, ambos representam grupos minoritários, sendo o segundo o maior exponente da extrema direita no Brasil.

A academia é um ambiente favorável aos outsiders, uma vez que suas ideias podem ser difundidas e, muitas vezes, acabam encontrando guarida na comuni-dade acadêmica. No entanto, é possível que alguns grupos desviantes não encon-trem acesso facilitado a este ambiente, já que o acesso ao ensino no Brasil, sobre-tudo ao ensino superior, é bastante restrito, sendo considerado um privilégio, em regra, alcançado por quem possui melhores condições econômicas.

3. OS OUTSIDERS E O SISTEMA DE COTAS BRASILEIRO

3.1 Empreendedorismo Moral do Legislativo Brasileiro

O Poder Legislativo do Brasil tem ao longo da última década dado preferência aos projetos de lei que envolvam o tema “cotas” e tais entes quando atuam nesse sentido são chamados de empreendedores morais, conforme expõe Becker (2008, p. 151):

As pessoas que apresentam iniciativas no sentido de criar novas classes de outsiders são denominadas empreendedores morais. São esses os “reformadores cruzados”, por exemplo, que acreditam na sacralidade de suas missões, apesar de muitas vezes contarem com a concordância daqueles que pretendem “salvar”. Mas os cruzados recorrem a especialistas, como psiquiatras ou advogados, que têm seus próprios interesses em jogo. Uma cruzada bem-sucedida tem como possíveis consequências não somente a criação de um novo conjunto de regras, mas a criação de novas agências, que institucionalizam o empreendimento e, finalmente, podem agir por meio de uma força policial.

Os empreendedores morais no Brasil estão nos mesmos âmbitos sociais em que os outsiders encontram guarida, ou seja, a academia, os meios de comunica-ção e o meio político-partidário, como já supracitado. De acordo com Duarte e Zackseski (2011, p. 1) “são aqueles sujeitos que procuram impor a sua moral aos

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outros pensando que assim lhes farão bem, sem nunca se questionarem sobre a vontade ou necessidade dos outros de incorporarem o sentido moralizante das suas regras, ou seja, desde uma perspectiva superior dirigida a seres inferiores”.

Para Nilo Batista e Raúl Zaffaroni (2010) “os empresários morais tanto podem ser comunicadores sociais, políticos, religiosos, policiais ou organizações que re-clamam da impunidade exigindo sempre medidas mais duras para os criminosos”.

Fomentar novos grupos desviantes é um ato de coragem e ousadia, pois no caso está se incentivando o surgimento de opiniões fora do padrão dentro da sociedade.

Anualmente, surgem Projetos de Lei com o objetivo de criar novas ações afirmativas visando prestigiar novos grupos desviantes. Assim, o Legislativo age ratificando a existência desses grupos que vão ganhando destaque, por meio de iniciativas que buscam tutelar os desviantes, sempre em razão da observância do princípio constitucional da isonomia, sobretudo em seu aspecto material.

3.2 Novos Grupos Desviantes no Brasil e a Análise das Propostas Legislativas Pertinentes ao Sistema de Cotas

3.2.1 Cotas para Mulheres em Cargos Políticos

A questão que envolve o gênero feminino é sociocultural e decorre de sécu-los de desequilíbrio entre homens e mulheres nos mais diversos setores da socie-dade, sobretudo no mercado de trabalho e no campo político. Logo, o Legislativo brasileiro houve por bem editar normas que garantam a isonomia entre homens e mulheres, desde o âmbito constitucional até às leis infraconstitucionais.

Em junho de 2016, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 98/2015) foi proposta com o objetivo de garantir um percentual de vagas para mulheres nas cadeiras da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Assembleias Legislativas, da Câmara Distrital e das Câmaras Municipais.

Não obstante, o Congresso Nacional analisa atualmente cinco projetos que preveem número de mínimo de mulheres entre os parlamentares. Nessas propos-tas, a principal justificativa é promover maior participação feminina na política. Na composição atual da Câmara, somente 55 dos 513 deputados são mulheres (10,7%). No Senado, o percentual é um pouco maior. Dos 81 senadores, 12 são mulheres, o que representa 14,8%. Na última eleição, a municipal de 2016, o nú-

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mero de mulheres eleitas prefeitas diminuiu. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, as mulheres representaram 7,39% dos prefeitos eleitos em 2000; 11,84% em 2012; e 11,57% em 2016.

Como visto, as mulheres no campo político-partidário são consideradas outsiders por excelência, uma vez que não se adequam às normas do grupo do-minante da situação, ou seja, os pertencentes ao grupo do gênero masculino, ocupando posições minoritárias nos rankings políticos.

3.2.2 Cotas para Idosos em Concursos Públicos

A PEC 69/2009, em trâmite no Senado Federal, de autoria do senador An-tônio Carlos Valadares (PSB-SE), dispõe que ao menos 5% das vagas de Concur-sos Públicos deverão ser destinadas a candidatos com mais de 60 anos, excep-cionados os casos em que a natureza do cargo impedir essa cota. Para defender a iniciativa, o senador ressalta o crescente envelhecimento da população brasilei-ra. De acordo com o parlamentar: os idosos são hoje 14,5 milhões de pessoas, ou seja, 8,6% da população total do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O IBGE considera idosas as pessoas com 60 anos ou mais, mesmo limite de idade utilizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para os países em desenvolvimento.

Os idosos também revelam-se outsiders, uma vez que não conseguem se inserir no mercado de trabalho e em alguns outros âmbitos da sociedade con-temporânea, o que, como visto, merece mudar, pois a tendência atual é o enve-lhecimento da população mundial.

No entanto, tal cota não vem sendo muito bem recepcionada, o que pode-mos perceber a partir da morosidade de seu trâmite, que está prestes a completar 10 anos. Logo, é perceptível o padrão desviante desse grupo e a necessidade do implemento do empreendedorismo moral do Poder Legislativo.

3.2.3 Cotas para Usuários de Substâncias Entorpecentes

Os dependentes químicos são citados na obra de Becker como exemplo de grupo outsider, uma vez que o referido autor analisa os usuários de maconha no seu trabalho. Todavia, o Legislativo brasileiro, hodiernamente, é tendente a criar ações afirmativas para equiparar a situação dos dependentes no mercado de trabalho.

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Existem, atualmente, dois projetos de Lei que visam cumprir os manda-mentos isonômicos. O primeiro tramita na Câmara dos Deputados, que aprovou a criação de uma cota em licitações públicas para a contratação de dependentes químicos em processo de recuperação. A medida foi aprovada dentro do projeto que altera o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, permitindo a internação involuntária de dependentes com base em pedido de familiares ou trabalhadores da área da saúde.

A reserva de vagas é de 3% dos empregos em licitações de obras públicas que gerem mais de 30 postos de trabalho. O plenário, porém, manteve a exi-gência de abstinência do uso para ser beneficiado. Além de se manter longe do vício, o dependente em recuperação terá de atender os requisitos solicitados pela empresa, cumprir as normas do empregador e seguir seu plano individual de atendimento.

Já o segundo refere-se a uma proposta legislativa do Estado de Minas Ge-rais, em que os políticos cogitam a hipótese de ser criada uma cota de 10% para usuários de drogas, considerados dependentes químicos nas vagas de concursos públicos.

Ambos geram bastante polêmica, visto que receberam duras críticas nega-tivas da sociedade civil e do próprio corpo político do qual surgiru, uma vez que “prestigiam” algo considerado imoral pelo grupo dominante.

CONCLUSÃO

A questão envolvendo o sistema de cotas brasileiro merece ser melhor ex-plorada, uma vez que se coaduna com os ideais previstos pela Constituição Fe-deral de 1988 de isonomia, ao passo em que também revelam a história social brasileira, criando uma ponte reparadora entre o passado e o presente.

As ações afirmativas agregam valores à sociedade civil, uma vez que visam reparar problemas decorrentes da construção social do Estado brasileiro. Tais problemas encontram-se, sobretudo, no âmbito racial, no qual negros e indíge-nas foram situados à margem da sociedade, sofrendo ainda hoje com os reflexos de séculos de desigualdade.

O abismo social está sendo, paulatinamente, superado por meio do imple-mento de programas como as cotas, permitindo o acesso ao mercado de traba-

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lho, ao funcionalismo público e ao ensino superior àqueles que estão inseridos em grupos sociais não dominantes. Logo, é, de fato, positivo para a sociedade brasileira a execução de tais programas.

No entanto, o sistema brasileiro de cotas não é isento de críticas, pelo con-trário. Algumas críticas pontuais merecem ser tecidas. A primeira é a duração do programa de cotas no Brasil. Outra é o âmbito em que o sistema é aplicado. Por fim, a terceira crítica é a constante criação e inclusão de novos grupos sociais abrangidos pela tutela do referido sistema, sendo aplicáveis neste ponto os con-ceitos de Howard Becker.

Sobre a primeira crítica, vale ressaltar que a duração do sistema de cotas brasileiro é indeterminada, o que gera grande insegurança jurídica, uma vez que as ações afirmativas visam sanar os reflexos gerados por anos de desigualda-de social entre os grupos divergentes e o grupo social dominante. Logo, deve ser marcado um prazo razoável de duração dessas ações para que não ocorra a perpetuação do sistema, o que não se mostraria adequado perante o princípio constitucional da isonomia.

Sabe-se que o âmbito de aplicação das ações afirmativas, no Brasil, é bas-tante amplo, envolvendo o mercado de trabalho, ou seja, a iniciativa privada, o ingresso em universidades públicas e os certames para preenchimento de cargos públicos. Críticos ao sistema afirmam que o espaço de incidência das cotas é de-masiadamente amplo, o que conjugado com duração indeterminada do sistema pode prejudicar, justamente, o princípio foco do sistema, ou seja, a isonomia.

A terceira crítica é contra o “empreendedorismo social”, termo criado por Howard Becker, que, por sua vez, significa a criação de novos grupos sociais des-viantes. O sistema de cotas brasileiro baseia-se na isonomia e para isso traz ações afirmativas visando equiparar os grupos desviantes ao grupo social dominante. No entanto, o Poder Legislativo brasileiro é um exemplo de empreendedor so-cial, uma vez que constantemente cria, por meio de Leis, novos grupos desvian-tes e os inclui no sistema de cotas.

O sistema de cotas deve ser operado por exceção. Dessa forma, a criação de novos grupos desviantes deve ser medida excepcional, e não como tem sido utilizada pelos membros do Poder Legislativo, sem parâmetros, desproporcio-nalmente, ferindo, em alguns casos, o próprio princípio informador do sistema, qual seja, a isonomia.

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Diante do exposto, percebe-se que o sistema de cotas brasileiro se coaduna com as ideias de Howard Becker, desenvolvidas na obra supracitada. O referido autor constrói sua emblemática figura, o outsider, e este é a síntese daqueles que são albergados pelas cotas no Brasil, ou seja, são aqueles que não se adequam, são os grupos sociais marginais e por questões de isonomia recebem a tutela do Estado brasileiro.

Por fim, reitera-se que o sistema de cotas merece elogios, já que, frente às políticas atualmente adotadas, tem mostrado-se eficaz. É um modelo moderno, vanguardista e que busca sanar as desigualdades históricas que marcam o Brasil, tendo por princípio guia, informador, a isonomia, positivada na Constituição Federal de 1988.

REFERÊNCIAS

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_______. Lei 12.711/2012. Sítio eletrônico internet – planalto.gov.br

_______. Lei 8.213/1991. Sítio eletrônico internet – planalto.gov.br

_______. Decreto 3.298/1999. Sítio eletrônico internet – planalto.gov.br

LESMES, Adriano. O que são as reservas de vagas?. Publicado em 1 de abril de 2010. Disponível em: http://vestibular.brasilescola.uol.com.br/cotas/o-que-sao--as-reservas-vagas.htm

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MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 17 ed. São Pau-lo: Malheiros, 2009.

MARTON, Juliana. Lá fora: A história das cotas raciais nos EUA. Publicado em 31 de março de 2010. Disponível em: http://vestibular.brasilescola.uol.com.br/cotas/la-fora-historia-das-cotas-raciais-nos-eua.htm

OLIVEN, Arabela Campos. Ações afirmativas nas universidades brasileiras: uma questão política, um desafio. Porto Alegre: EdiPucrs Série RIES/PRONEX, vol. 1, p. 151-160, 2007.

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FUNÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA JURÍDICASOCIAL FUNCTION OF JURIDICAL SCIENCE

Camila Bertoni Carneiro dos Santos1

Celso Lins Falcone2

Sumário: Introdução; 1. Desenvolvimento histórico da dogmática jurídica e sua

função social; 2. A Dogmática Jurídica contemporânea: seus desafios e críticas; 3.

Características da dogmática jurídica; 4. Instrumentos dogmáticos e sua função;

5. A função social da ciência jurídica; Conclusão; Referências.

RESUMO: O Direito e a sociedade vivem um processo virtuoso de adap-tação: de um lado o ordenamento jurídico deve se adaptar às condições de meio e, de outro, o povo condiciona seu comportamento aos novos padrões de con-vivência. Nesse sentido, a dogmática procura instaurar uma sociedade política e juridicamente segura aos seus cidadãos, possibilitando que a decisão esteja pre-viamente estipulada não pelo arbítrio, mas pelos limites daquilo que foi imposto pela ordem jurídica. Este artigo visa demonstrar que as incertezas geradas pela complexidade das relações pessoais são trazidas a um grau de menor perturba-ção social se controladas pela via dogmática, que consiste em prever as conse-quências pragmáticas para todos os casos concretos, de modo a trazer a melhor solução possível para minimizar a perturbação social. Para tanto, foi utilizada uma metodologia indutiva, alicerçada, quantos aos meios, em pesquisa biblio-gráfica e, quanto aos fins, no método qualitativo.

PALAVRAS-CHAVE: Função Social. Ciência Jurídica. Dogmática Jurídi-ca. Decidibilidade.

ABSTRACT: Law and society are living a virtuous process of adaptation: on the one hand the legal system must adapt to the conditions of the environ-ment and, on the other, the people condition their behavior to the new patterns of coexistence. In this sense, dogmatics seeks to establish a political and legally

1 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Professora e Coordenado-ra do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Nilton Lins/AM.

2 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Advogado. Presidente da Comissão de Orientação em Gestão Pública da OAB/AM.

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secure society for its citizens, making it possible for the decision to be stipulated in advance not by arbitrariness, but by the limits of what was imposed by the legal order. This article aims to demonstrate that the uncertainties generated by the complexity of personal relationships are brought to a degree of lesser social disruption if they are controlled by the dogmatic way, which consists in predic-ting the pragmatic consequences for all concrete cases, in order to bring the best possible solution to Minimize social disruption. For that, an inductive methodo-logy was used, based on how many to the means, in bibliographical research and, for purposes, in the qualitative method.

KEYWORDS: Social Role. Legal Science. Legal Dogma. Decidability.

INTRODUÇÃO

Para se instaurar uma situação comunicativa é preciso que o emissor, em seu discurso, utilize sinais aptos a gerar ao seu receptor o sentido e o alcance do que se pretende. Por isso, antes de adentrar-se à complexidade que o tema requer, mostra-se necessário pautar as ideias centrais que se propõe chamar de “função social da ciência jurídica”.

Convém inicialmente refletir sobre o que se entende por função para, a partir daí aprofundar-se ao entendimento de função social.

Pode-se dizer que tudo que existe é para alguma finalidade. Significa, por-tanto, que aquilo que obviamente desperta uma consequência específica lhe re-vela uma função. Assim, infere-se, por exemplo, que o coração tem a função de bombear o sangue às demais partes do corpo, beneficiando outros órgãos para que estes desempenhem suas funções.

Função social, via de consequência, entende-se como o produto do inte-resse de determinada atividade humana ou de organizações humanas, atingindo patamares da convivência social, tendo em vista que estes ultrapassam os do agente, sobrepondo-os aos interesses do indivíduo.

Na atualidade, a função social ganha notoriedade, uma vez que a República Federativa do Brasil se constitui por um Estado Democrático de Direito, pauta-do na busca da Justiça Social.

O postulado básico se remonta alicerçado ao princípio da isonomia ma-terial entre os homens em possibilitar melhores condições aos hipossuficientes

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para compensar circunstâncias sociais desiguais. Aliás, isso se considera prima-do da própria República e possui, portanto, cunho constitucional.

Logo, vê-se claro que o pensamento iluminista e sobretudo os movimentos sociais do século XIX foram os responsáveis por possibilitar, no século XX, a passagem do Estado liberal (individualista e patrimonialista) para o Estado So-cial Democrático, matriz geradora das teorias das funções sociais, seja no âmbito público, seja no privado.

Dessa forma, é preciso se investigar qual o papel da Dogmática Jurídica no desenvolvimento da sociedade. No entanto, para chegar à correta apreensão da-quilo que se entende por “função social da dogmática jurídica”, principalmente num mundo complexo e dinâmico como o atual, torna-se imprescindível inves-tigar seu conceito ao longo da história, especialmente a partir da construção do pensamento romano que indubitavelmente é o grande responsável pela estrutu-ração do pensamento jurídico nos Estados Ocidentais.

1. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA DOGMÁTICA JURÍDICA E SUA FUNÇÃO SOCIAL

Sob o aspecto histórico, é inegável a necessidade de voltar os olhos ao pas-sado romano, apto que esteve a resgatar e dar utilidade pragmática à sabedoria grega, baseado não nos argumentos racionais e coerentes, mas na legitimidade que se deu pelas tradições e manifestações da autoridade de seus antepassados.

Tem-se clara a ideia de que no pensamento romano o amadurecimento da consciência do papel da jurisprudência foi visto como um dos mais importantes para a preservação de sua comunidade. Sua serventia irradiava tanto para fir-mar-se como instrumento de autoridade, como para outorgar hegemonia social, permitindo a integração de seus cidadãos.

Nos dizeres de Tércio Sampaio,3 a tríade - “religião/autoridade /tradição” - que permeou o pensamento romano, foi a fórmula que possibilitou o resgate e a aplicação generalizada, utilitarista e universalista da filosofia grega, que culmi-nou no conhecimento universal do Direito.

3 FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Max Limonard, 1998, p.35.

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Na Idade Média, a ciência do Direito se desenvolveu no mundo ocidental pelo advento da Universidade de Bolonha, Itália, cuja data de fundação se deu em 1088. O estudo aprofundado de obras romanas, notadamente do corpus iuris civilis, pelos glosadores, cultivou o nascimento do Direito como uma expressão de pensamento dogmático. O trabalho desses pensadores era a elaboração de glosas, anotações interlineares e marginais com alto conteúdo filosófico ou gra-matical, que possibilitou uma atividade altamente exegética.

No entanto, não se pode esquecer que no processo de comentários e adaptações dos glosadores houve a influência direta de aspectos históricos vi-venciados, já que a Igreja, ao difundir sua ideologia, resgatou a fronesis grega, assumindo-se como poder dominante no lugar do Império Romano. Nesse momento, inicia-se o pensamento racional que irá dominar nos séculos se-guintes. Trata-se do pensamento jurídico dogmático que “se transforma em um instrumento de poder”.4

A técnica desenvolvida pelo jurista da época, baseada na análise de casos e textos, cria o estilo “argumentativo da retórica prudencial” apta a reduzir a teoria jurídica como disciplina universitária, dando preponderância racional ao “bem comum” em detrimento dos “interesses individuais”. Tal pensamento tornou-se a gênese do Estado Moderno e, nessa época, ocorreu, pois, a progressiva tecni-zação da teoria jurídica como instrumento político, porquanto “só o jurista é que domina, àquela altura, as operações analíticas através das quais a complexa realidade política pode ser devidamente dominada”.5

A teoria jurídica da Era Moderna é marcada pelos estudos clássicos que se iniciam no fim do século XV. O ponto de partida do pensamento desse período é o de restaurar a verdade romana construída na busca de soluções técnicas para o controle da natureza, para a sobrevivência harmônica social.

A fórmula aqui encontrada foi a da positivação do Direito Natural, até en-tão fortemente arraigado. Mormente após o desenvolvimento da teoria sistêmica baseada na razão proposta por Pufendorf,6 a teoria jurídica tem sua serventia

4 Ibid., p. 40.5 Ibid., p. 41.6 SAMUEL VON PUFENDORF (1632 - 1694) “A principal contribuição de Pufendorf foi a ênfase na “socia-

bilidade” da humanidade como fundamento do Direito Natural. “Qualquer homem deve, na medida em que possa”, escreveu, “cultivar e manter frente aos outros uma sociabilidade pacífica, consistente com sua característica natural e a finalidade da humanidade em geral.” A sociabilidade, no entanto, está ameaçada pela característica decaída da condição humana. “O que teria sido a vida dos homens se não houvesse a lei para os conciliar?”, pergunta o autor, “uma matilha de lobos, leões e cães lutan-

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social na medida em que se organiza para almejar seus propósitos. Buscou-se a “funcionalidade jurídica”.

A lei passou a ser considerada como um instrumento com caráter formal e genérico na procura da convivência dos cidadãos. Houve o afastamento da tradição romana de até então e instaurou-se um novo modelo revolucionador da técnica jurídica: o empírico-analítico. Sob o ponto de vista pragmático, o Direito Natural passou então a servir de paradigma para que, no plano ideológico, se possibilitasse a reprodução artificial dos processos naturais.7 Isso significa que pela experiência sensorial, é possível conhecer de forma abstrata a essência hu-mana e se fazer proposições para o controle de suas reações.

Dessa forma, numa concatenação de pensamentos entre causa/efeito foi possível se chegar a fórmulas jurídicas funcionais e obrigatórias para a convi-vência humana. Este mecanismo de controle se colocou a serviço do Estado, o que gerou sua unidade e seu domínio. A sistematização se tornou muito clara a ponto de eliminar a prudência romana, paulatinamente, enquanto ocorria a reconstrução do Direito.

Essa forma particular de pensar encontra sua função social na medida em que criou sistemas normativos com propósitos próprios como, por exemplo, o estabelecimento da paz, bem-estar social, vida atrelada aos ditames da dignida-de, etc. Isso significa que as leis passaram a regular a ordem jurídica por meio de critérios formais e gerais, aptos a balizar e harmonizar as relações sociais.

No entanto, nesse momento, descobriu-se um problema já esperado: nem sempre é possível se fazer abstrações diante da enormidade de condutas e que-reres humanos. A sociedade estava se tornando por demais complexa a ponto de que nem sempre haveria possibilidades de prever suas expectativas e gerar seu controle. Começou a ocorrer a perda da sua funcionalidade, o que atacou diretamente os próprios métodos utilizados até então e passou a gerar o questio-namento da Dogmática Jurídica8 ser ou não uma teoria científica.

do até o fim.” Por isso Deus, o divino legislador, instituiu as leis para ordenar a vida social do homem. Como escreve Pufendorf: “Assim como a vida dos homens sem a sociedade seria semelhante à vida das feras, da mesma forma, a lei da natureza se baseia, principalmente, no princípio da preservação da vida social dentre os homens”. Disponível em: <http://pt.acton.org/historical /samuel-von-pufen-dorf-1632-1694>. Acesso em 5 ago. 2017.

7 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Op. cit., p. 50.8 Nos dizeres de Miguel Reale, a Ciência Jurídica se manifesta como Dogmática Jurídica, quando aquela

tem por objeto de estudo o Direito Positivo. Esclarece-se que a palavra dogma traduz a ideia daquilo

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Esses questionamentos nortearam os séculos a seguir.A partir do século XIX, a Dogmática passará por profundas revoluções,

sobretudo em virtude da necessidade de seu diálogo com as demais ciências, bem como decorrente de seu desdobramento com o positivismo. A ciência jurí-dica passa a receber novas funções, qual seja a atividade de fazer e de construir os objetos que conhece. Nos dizeres de Camon de Passos,9 função é “um atuar a serviço de algo que nos ultrapassa”.

Aqui, o plano do ideal perde sua característica metafísica e adquire a feição de valores, estes mutáveis de acordo com a alteração das concepções sociais e necessidades de adaptações funcionais.

Inicia-se, nesse particular, a negação sistemática jusnaturalista e seus ar-gumentos passam a ser fundamentados na razão humana. Com Gustav Hugo gera-se um marco daquilo que veio a influenciar Savigny e a Escola Histórica.

Hugo criou em seu pensamento a distinção da Ciência do Direito e Dog-mática Jurídica, esclarecendo que esta é apenas uma continuidade histórica daquela, como se a dogmática fosse uma contextualização funcional histórica e momentânea do querer social traduzido em lei. Surge, então, o racionalismo com uma postura mais ampla.

No racionalismo não se deve construir a Dogmática apenas em expe-riências e fatos obtidos pelos cinco sentidos, pois estes são insuficientes e não oferecem condições de certeza. Quem faz a captação e ordenação do conhe-cimento dos dados obtidos pelos sentidos humanos é a inteligência. Segundo Miguel Reale,

se a inteligência tem função ordenadora do material que os sentidos apreendem,

é claro que a inteligência, por sua vez, não pode ser o resultado das sensações,

não podendo ser concebido com ‘tabula rasa’, onde os sentidos vão registrando as

impressões recebidas.10

que é posto como princípio ou doutrina, ou seja, traduz a afirmação de certo aspecto absoluto como cognoscível (In: Filosofia do Direito. V. 1, São Paulo: Saraiva, 1975, p. 145).

9 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Função social do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n.º 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/3198>. Acesso em 5 ago. 2017.

10 REALE, Miguel. Op. cit., p. 85.

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Nesse pormenor teorizado, entre os séculos XVI e XVIII, o Direito viven-ciou o crescente aumento de leis escritas, bem como o reconhecimento da exis-tência de fontes hierarquizadas de Direito. Pela cultura racionalista preponderou a importância da legislação escrita sobre a costumeira. Experimentou-se ainda no século XIX a crescente Codificação do Direito.

Esses fatos acabaram por conceder ao Direito grande autonomia, uma vez que cumpria sua função, como a de aumentar a segurança jurídica, divulgar e dar maior precisão de seu conhecimento, além de limitar sua aplicação. Notada-mente, verificou-se que para se atingir à complexidade decorrente das relações humanas, o Direito positivado precisa ser genérico de forma a abordar a maior gama de situações.

Nada obstante, por mais paradoxal que seja, isso acabou legitimando a con-centração de Poder para o Estado, o que fez surgir o Estado Absolutista e a concen-tração do ato de legislar. As consequências históricas dessas atitudes são notórias.

Paulatinamente, também por conta de só se valer o direito posto, os juristas da época começaram a perceber o surgimento de outros problemas, como as lacunas, sendo necessárias propostas para sua solução.

Pode-se concluir, segundo Tércio Sampaio, que todos esses fatores, em con-junto, foram os responsáveis pela transformação do raciocínio dogmático em Teo-ria Dogmática, marcado essencialmente por uma nova forma de pensar: a reflexão.

Ressalta-se, ainda, que a Revolução Francesa foi um grande marco na de-monstração da complexidade social como reação ao Absolutismo. No intento de conquista das liberdades individuais, a Revolução veio a substituir a “estabi-lidade” das relações sociais para trazer outros instrumentos de rápida e efetiva solução: notadamente a maior positivação abstrata de leis.

Isso significa dizer que os preceitos tradicionais que davam a legitimidade ao Direito (como sinônimo de sua estabilidade) se deixaram substituir por mecanis-mos dinâmicos de solução, especialmente quando advindos de situações injustas, ou seja, novas leis traçadas conforme se justificasse o interesse em sua criação.

Assim, constata o autor:

A dogmática se revelou como um instrumento importante no alargamento da

possibilidade de solução de conflitos, sem o rompimento nem com o princípio da

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vinculação aos dogmas, nem com a exigência da decisão de conflitos – proibição

do non liquet.11

Surge aqui também o que Tércio Sampaio denomina como a maleabilidade do Direito. O que significa que a positivação do Direito denotou sua importância na capacidade de dinamizar o corpo social, implicando o desenvolvimento da Dogmática, conforme os interesses humanos. Inaugurou-se, com isso, uma nova forma de pensamento, o de que a lei existe para o homem e não o contrário.

Por outro lado, parte-se do ponto de vista de que o Direito é concebido como um sistema e, como tal, para ser coerente, lógico e, portanto, aplicável, é preciso não possuir lacunas ou contradições. Os juristas da época viviam in-quietações, posto que precisariam criar métodos para resoluções das dúvidas, omissões e conflitos existentes no sistema.

Nesta ocasião ganha enorme relevância a chamada Escola da Exegese. Sa-biam os exegetas, no século XIX, que não era possível, valendo-se apenas da letra da lei, aplicá-la ao caso concreto e, partindo-se do pressuposto de que a legitima-ção de sua aplicação estava justamente em conceber o direito como um sistema fechado e unitário, seria necessário interpretar o sistema.

A Escola da Exegese foi a grande responsável por deixar o legado, até os tempos atuais, das mais diversas formas de interpretação, como a histórica, teleológica, sistemática etc. tudo de maneira a evitar que os aplicadores da lei inovassem a ordem jurídica criando leis, o que poderia infringir o princípio da separação dos Poderes.

Sobre esse ponto, Tércio Sampaio:

[...] no século XIX, a Dogmática se instaura como uma abstração dupla: a própria

sociedade, na medida em que o sistema jurídico se diferencia como tal de outros

sistemas – do sistema político, do sistema religioso, do sistema social stricto sensu

–, constitui, ao lado das normas, conceitos e regras para a sua manipulação autô-

noma. Ora, isto (normas, conceitos e regras) passa a ser o material da Dogmática,

que se transforma numa elaboração de um material abstrato, num grau de abs-

tração ainda maior, o que lhe dá, de um lado, certa independência e liberdade na

manipulação do Direito [...] pois tudo aquilo que é Direito passa a ser determi-

11 FERRAZ JR. Tércio Sampaio, Op. cit., p. 190.

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nado a partir de suas próprias construções. [...]. De outro lado, porém, paga-se

um preço por isso: o risco de um distanciamento progressivo, pois a Dogmática,

sendo abstração da abstração, vai preocupar-se de modo cada vez mais preponde-

rante com a função de suas próprias classificações, com natureza jurídica de seus

próprios conceitos.12

Pelo que até aqui foi delineado, mostra-se claro que a função social da Dogmática do século XIX está ligada justamente ao caráter abstrato dado às leis, pois ela foi capaz de emancipar as necessidades cotidianas, trazendo novas fórmulas a permitirem a liberdade, criando elementos sistêmicos para dar total autonomia ao Direito, desvinculando-o do Direito Sagrado.

2. A DOGMÁTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA: SEUS DESAFIOS E CRÍTICAS

O contexto metodológico advindo do século XIX repercutiu intensamente no século XX. Demonstrou-se acima que numa sociedade de baixa complexi-dade, a estabilidade de sua sistematização é a forma de manutenção e exercício de sua própria efetividade. Na contemporaneidade, contudo, isso não se mostra mais possível.

Na medida em que a Dogmática exercia abstrações contínuas, surgiu a difi-culdade de trazer sua própria completude, sendo necessário criar critérios para a sua resolução. Isto, como se disse, por um lado foi preponderante para a solução dos primeiros conflitos.

Assim, muitos pensadores preocuparam-se com a necessidade de revisão dos conceitos da Dogmática Jurídica.

Isto porque, sobretudo diante de um Estado Democrático de Direito, no instante em que a lei é criada pelo legislador ou quando o administrador ou julgador a aplicam, procura-se alcançar o interesse da sociedade. Dessa forma, as atividades legislativas, administrativas e judiciais são exercidas tendo como pedra angular o interesse da coletividade que é próprio do Estado, como real res-ponsável por dizer em que consiste o interesse social. É claro que nesse ensejo o

12 Ibid., p. 76.

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povo tem papel fundamental de interferir no rumo ou no resultado dessas deci-sões, pela via direta ou indireta. Tem-se como questão de fundo a decidibilidade.

Mas como se falar em decidibilidade se: a) na atualidade está-se diante de uma sociedade de massas?; b) se o campo de aplicação jurídica está diante de infindável inflação legislativa, com o crescente número de abstração de conceitos, dito esses abertos?; c) se, pela pragmática, cada receptor pode fazer um juízo de valor diferente?; d) se ouve-se dizer na ruptura da clássica dicotomia público/pri-vado?; e) se verifica-se um insustentável crescimento demográfico; f) se há cada vez mais necessidade de diálogo da Dogmática Jurídica com as outras ciências?

Questiona-se, portanto, a própria essência da Dogmática Jurídica e suas capacidades de mutabilidade para atender a seus próprios reclames. Será ela, como instrumento de solução de conflitos, capaz de atender à complexidade so-cial atual? A Dogmática ainda está apta a atender suas funções?

A crítica pode ser exemplificada no contexto da área acadêmica, em uma breve exposição de Tércio Sampaio sobre o tema “Visão crítica do ensino jurídico”:

A ideia do próprio profissional como ente especializado, que começou a ser reque-

rido pela sociedade, cada vez maior. Na verdade, esse tipo de especialização ocorre

também com a manifestação do ensino, a partir dos anos setenta. A explosão de-

mográfica ocorre dentro das universidades brasileiras e essa especialização acaba

ocorrendo no momento em que também a massificação do ensino ocorre pela

pressão da demanda estudantil e o desaparecimento daquela velha elite estudan-

til. Ora, o ensino massificado, junto com essa tendência à especialização acabou

transformando o Direito em objeto – ciência do Direito em disciplina que o estu-

da, e o profissional do Direito naquele que o exerce, numa espécie de instrumento

de segundo grau para todas as demais disciplinas.13

Por outro lado, no escopo de solucionar esses problemas, pensadores como Hans Kelsen se preocuparam com uma concepção renovada da Dogmática. Pro-curou Kelsen justamente em fazer com que a Ciência do Direito não perdesse seu caráter científico, propondo uma teoria da pureza, segundo a qual o método e o objeto deveriam ter como premissa básica o enfoque normativo.

13 Revista do Advogado, AASP, São Paulo, 1983, p. 39-50. Disponível em: <http://www.terciosampaiofer-razjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/50> . Acesso em 5 ago. 2017.

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Sob esse horizonte, muitos pensadores creem que a Dogmática se encontra em crise, precisando descobrir se na atualidade há realmente uma Função Social da Dogmática Jurídica.

3. CARACTERÍSTICAS DA DOGMÁTICA JURÍDICA

Interessante se mostrar, na atualidade, que a Ciência do Direito assuma como característica principal a possibilidade de se verificar, analisar e operar pe-rante o Direito pela via cognoscível ou empírica ou, ainda, perquirir seus valores por meio da lógica transcendental.

O jurista, nesse aspecto, está a serviço da realização do Direito. Isto de-monstra que o operador do direito nada mais é do que um operador dos sinais. Cabe à dogmática dar os instrumentos para orientar a ação do jurista e possibi-litar sua decidibilidade com base em premissas e pressuposto válidos conforme a lógica, a experiência e os fundamentos do Direito.

Para tanto, num mundo de normas cada vez mais abstratas, mostra-se ne-cessário estabelecer critérios para que não haja modificações arbitrárias a ponto de gerar a instabilidade social.

Justamente nesse contexto é que ganha enorme importância o princípio da legalidade para se conceder segurança jurídica à sociedade.

O princípio da legalidade encontra-se na maior parte dos Estados Moder-nos como princípio fundamental associado intimamente às noções de Estado de Direito e Estado Democrático. Com efeito, se numa democracia todo o poder emana do povo, a consequência lógica é que somente o povo, conforme sua von-tade, é capaz de obrigar a si para fazer ou deixar de fazer algo, para sofrer ou não sofrer uma sanção.

Nesse sentido, são as palavras de Tércio Sampaio:

A legalidade num mundo em que a crença em princípios abstratos (como por

exemplo, do Direito Natural) se desgastavam tornou-se a pedra angular que dava

ao Direito e ao Estado aquele mínimo de segurança e certeza, numa situação em

que a mudança era superior à permanência.14

14 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Ob. cit. , p. 193.

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Dessa forma, se faz crer que apenas as premissas ou pressupostos só poderão ser modificados caso ocorra a alteração da Dogmática pela autoridade compe-tente e vias hábeis, ou seja, conforme o que está presente no Texto Constitucio-nal ou mesmo nas normas infralegais incidentes.

Conclui-se, portanto, que a Dogmática procura instaurar uma sociedade política e juridicamente segura aos seus cidadãos, possibilitando que a decisão esteja previamente estipulada não pelo arbítrio, mas pelos limites daquilo que foi imposto pela ordem jurídica.

Outro grande ponto de apoio se encontra no legado deixado pela Escola da Exegese que nada mais é do que permitir ao operador do direito uma interpreta-ção coerente do sistema, respeitando-o.

Nessa perspectiva, são oportunas as palavras de João Maurício Adeodato:

A dogmática jurídica preocupa-se com possibilitar uma decisão e orientar a ação,

estando ligada a conceitos fixados, ou seja, partindo de premissas estabelecidas.

Essas premissas ou dogmas estabelecidos (emanados de autoridade competente)

são, a priori, inquestionáveis. No entanto, conformadas as hipóteses e o rito esta-

tuídos na norma constitucional ou legal incidente, podem ser modificados de tal

forma a se ajustarem a uma nova realidade. A dogmática, assim, limita a ação do

jurista condicionando sua operação aos preceitos legais estabelecidos na norma

jurídica, direcionando a conduta humana a seguir o regulamento posto e por ele

se limitar, desaconselhando, sob pena de sanção, ou comportamento contra legem.

Mas não se limita a copiar e repetir a norma que lhe é imposta, apenas depende da

existência prévia desta norma para interpretar sua própria vinculação15.

Nesse mesmo sentido Miguel Reale orienta que pela construção de princí-pios basilares é capaz de diminuir crises evidenciadas na atualidade, reduzindo as angústias, havendo de se enxergar a Dogmática Jurídica como sinônimo de Ciência do Direito, pois aquela

corresponde ao momento culminante da aplicação da Ciência do Direito, quando

o jurista se eleva ao plano teórico dos princípios e conceitos gerais indispensáveis

à interpretação, construção e sistematização dos preceitos e institutos que com-

15 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 32.

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põem o ordenamento jurídico. [...] quando esta determina as estruturas lógicas da

experiência jurídica, no âmbito e em função das exigências normativas constantes

do ordenamento em vigor, toma o nome de Dogmática Jurídica.16

Assim, na explanação de Tércio Sampaio, deve-se atentar que a Dogmáti-ca possui funções próprias da tecnologia, pois o cientista, como técnico, e não possível de encontrar-se em contradição, tem de analisar as decisões dando res-postas aptas e idôneas para demonstrar uma “solução solucionadora” capaz de reduzir a complexidade social. Aqui encontra a Dogmática a sua função social, ou seja, a de causar a menor perturbação social possível.

Segundo o autor, a função da Dogmática Jurídica “repousa, outrossim, no controle de consistência de decisões tendo em vista outras decisões; em outras palavras, no controle de consistência e decidibilidade, sendo, então, a partir dela que se torna viável definir as condições do juridicamente possível”.17

Por meio desses critérios, portanto, é que se torna admissível a estabilidade social, trazendo a segurança jurídica almejada.

A Zetética jurídica, por sua vez, tem como fundamento principal a dúvida, propondo questionamentos, sendo mais um mecanismo para pensar e, assim, chegar à justificativa da decidibilidade. A Zetética procura o processo de funda-mentação promovendo a quebra de dogmas, de caráter informativo, desconsti-tuindo o pensamento, capaz de especulações, por vezes, infinitas. Por outro lado, a Dogmática busca respostas, com caráter informativo e diretivo, procurando soluções às questões.

4. INSTRUMENTOS DOGMÁTICOS E SUA FUNÇÃO

De forma sucinta, mostra-se importante demonstrar em que plano se dá a questão da decidibilidade da norma jurídica. Parte-se do pressuposto que na sociedade complexa da atualidade há a mutabilidade da Dogmática muitas vezes por conveniência e, nem sempre, quando se está diante de conflitos.

16 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo, 2005, p. 322-323.17 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Op. cit., p. 100.

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No entanto, a articulação da Dogmática Jurídica se dá por diferentes mo-delos teóricos que estão agrupados em três grupos para proporcionar subsídios à decidibilidade. São eles:

A. Modelo analítico que pode ser resumido à função organizatória com a ordem vigente, no sentido de que “a Dogmática do Direito aparece como uma sistematização de regras para a obtenção de decisões possí-veis, o que lhe dá um caráter até certo ponto formalista”;18

B. Modelo hermenêutico no sentido de interpretar a norma jurídica para encontrar o seu sentido e o alcance, bem como investigar se há ou não lacunas no sistema e também trazer critérios normativos para a sua so-lução. Por depender do papel investigativo do operador do direito que “a dogmática do Direito, aqui, se assume como uma atividade inter-pretativa, construindo-se como um sistema teórico compreensivo do comportamento humano”.19

C. Modelo empírico no sentido de buscar uma previsão, este modelo está ligado a força dos elementos probantes, indicando as presunções nor-mativas, auxiliando a função do convencimento do aplicador do direito, pois “a norma está encarada, neste caso, como procedimento decisório, constituindo-se então a teoria jurídica como um sistema explicativo do comportamento humano enquanto controlado por normas”.20

5. A FUNÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA JURÍDICA

O Direito é o organismo ao qual se confere a importante missão de estabe-lecer a ordem e a paz, manter o bem comum no seio social. Em relação à impor-tância do Direito, explicita Paulo Nader:

No presente, o Direito não representa somente instrumento de disciplinamento

social. Sua missão não é, como no passado, apenas de garantir a segurança do

homem, a sua vida, liberdade e patrimônio. A sua meta é mais ampla, é a de pro-

18 Ibid., p. 121.19 Ibid., p. 121.20 Ibid., p. 121.

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mover o bem comum, que implica em justiça, segurança, bem-estar, progresso.

O Direito na atualidade, é fator decisivo para o avanço social. Além de garantir

o homem, favorece o desenvolvimento da ciência, da tecnologia, da produção de

riquezas, o progresso das comunicações, a elevação do nível cultural do povo. Pro-

movendo ainda a formação de uma consciência nacional.21

Vivem, o Direito e a sociedade, um processo virtuoso de adaptação: de um lado o ordenamento jurídico deve se adaptar às condições de meio e, de outro, o povo condiciona seu comportamento aos novos padrões de convivência. Nesse sentido, a própria Ciência do Direito compreende que deve haver uma constante reformulação de seus princípios e conteúdo, pois seu estudo vincula a oposição entre norma e realidade. Deveria o Poder Legislativo, órgão legitimado a dar dinamismo social, estar sensível às mudanças sociais, registrando por meio de comandos normativos, o novo Direito.

Dessa feita, o processo legislativo evitaria que a própria Ciência Jurídica se tornasse obsoleta. Tércio Sampaio confere ao fenômeno da positivação do Direi-to a característica fundamental da Dogmática. Esta também é a responsável pela mutabilidade que a ciência jurídica possui, conforme os procedimentos formais adequados.

Para entendermos a Dogmática Jurídica contemporânea, é necessário reconhe-

cer que ela nasce pelo fenômeno da positivação. Este, como já vimos, é caracte-

rizado pela liberação que sofre o Direito de parâmetros imutáveis e duradouros,

de premissas invariáveis, apresentando uma tendência a um certo formalismo e

institucionalização da mudança e da adaptação através de procedimentos cambiá-

veis, conforme as diferentes situações. [...] Deste modo, a positivação força, de um

modo especial, a tematização do ser humano como objeto central de preocupação

do jurista, fazendo da própria Dogmática Jurídica uma disciplina, ligada às ciên-

cias humanas no sentido moderno da expressão.22

Percebe-se, assim, que a lei positivada é a problemática da Dogmática, de forma a delinear seu problema central. Dado os infindáveis objetos observados, sempre se estará diante de uma questão de decidibilidade. Logo, a função da

21 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 27.22 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Op. cit., p. 84-85.

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Dogmática consiste em prever as consequências pragmáticas para todos os casos concretos, de modo a trazer a melhor solução possível para minimizar a pertur-bação social.

O papel do aplicador do Direito é justamente iniciar a investigação pela via da lógica-dialética lançando-se mão da tópica, desembocando-se em dois métodos investigativos diferentes, qual seja a zetética e a dogmática. Se o método colimado dá-se a partir de questionamentos, pois se está diante de uma postura crítica, hipotética, problemática, visualiza-se a Zetética. Por outro lado, se há a predominância de decidibilidade, afetando propriamente o caso concreto, tem--se a Dogmática.

Assim, a função social da Dogmática não é a de engessar o arbítrio do apli-cador do Direito, mas sim de legitimar a elasticidade de sua decisão, interpre-tando aquilo que foi decidido. Isso significa que a Dogmática não consiste na “inegabilidade dos seus pressupostos fundamentais”, mas é seu dependente para movimentar o sistema. As incertezas geradas pela complexidade das relações pessoais são trazidas a um grau de menor perturbação social controladas pela via dogmática.

Tércio Sampaio pondera que “a Dogmática se estabelece como um instru-mento mediador entre a generalidade das normas e a singularidade dos casos concretos”.23 Por isso, deve-se relacionar o que é ou não juridicamente possível, tendo na decidibilidade a máxima liberdade do jurista.

CONCLUSÃO

É ordeiro que muitos pensadores creem que a Dogmática encontra-se em crise face às inúmeras complexidades e indagações decorrentes da sociedade atual. Nesse escopo investigativo buscou-se se na atualidade há ou não realmente uma função social da Dogmática Jurídica.

Num momento em que as normas jurídicas estão cada vez mais abstratas, mostra-se necessário estabelecer critérios para que não haja modificações arbi-trárias a ponto de gerar a instabilidade social. A questão fundamental é trazer uma decidibilidade coerente para colimar a harmonização social. Justamente

23 Ibid., p. 98.

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neste contexto é que ganha enorme importância o princípio da legalidade para se conceder segurança jurídica à sociedade. Verificou-se que o aplicador do di-reito deve estar atento a duas premissas essenciais para a efetivação da decidibi-lidade: a Dogmática e a Zetética.

Entende-se que o questionamento sem fim, típico na Zetética, atrapalharia a decisão e a ação, o que pode causar excessiva impossibilidade a justiça. Por isso é necessário o respeito à Dogmática, posto que procura instaurar uma sociedade política e juridicamente segura aos seus cidadãos, possibilitando que a decisão esteja previamente estipulada, não pelo arbítrio, mas pelos limites daquilo que foi imposto pela ordem jurídica.

Há de se concluir, pois, que a função da Dogmática consiste em prever as consequências pragmáticas para os casos concretos, de modo a trazer a melhor solução possível para minimizar a perturbação social.

REFERÊNCIAS

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FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Max Limonard, 1998.

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NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

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REALE, Miguel. Filosofia do Direito. V. 1, São Paulo: Saraiva, 1975.

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SAMUEL VON PUFENDORF (1632-1694). Disponível em: <http://pt.acton.org/historical/samuel-von-pufendorf-1632-1694>. Acesso em 5 ago. 2017.

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A VULNERABILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS DIANTE DA DESIGUALDADE COMO FATO

GERADOR DE VIOLÊNCIA URBANATHE VULNERABILITY OF HUMAN RIGHTS DUE THE INEQUALITY AS GENERATOR OF URBAN VIOLENCE

Carla Thomas1

Lenice Maria Aguiar Raposo Câmara2

Sumário: Introdução; 1. Breve digressão histórica da positivação dos direitos hu-

manos; 2. Pensamentos contemporâneos sobre a desigualdade; 3. A desigualdade

como pilar de sustentação da violência urbana geradora da violação dos direitos

humanos; Conclusão; Referências.

RESUMO

No presente artigo pretende-se verificar, a partir de breve digressão his-tórica, acerca do surgimento dos direitos humanos até sua consagração como direitos fundamentais e observar a desigualdade como fator gerador da violência urbana e causa da violação dos direitos humanos. O tema revela-se importante diante das notícias divulgadas pela mídia que apresentam dados sobre o cresci-mento da desigualdade no mundo, bem como diante das notícias sobre a vio-lência urbana cotidiana. Pôde-se, assim, averiguar sobre a vulnerabilidade dos direitos humanos fundamentais diante da realidade que demonstra um quadro de desigualdade crescente a contribuir para fomentar a violência que atinge os direitos declarados constitucionalmente. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa, que consiste em identificar e interpretar as informações necessárias sobre o assunto investigado e promover uma análise, bem como o método dedu-tivo por meio da pesquisa bibliográfica, com uso de doutrina e texto legal.

1 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais de Manaus/AM.

2 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Amazonas.

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PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Vulnerabilidade. Desigualdade. Violência Urbana.

ABSTRACT: In the article, we intend to verify, from a brief historical di-gression, the emergence of human rights until their consecration as fundamental rights and to observe inequality as a factor that generates urban violence and causes human rights violations. The subject is important in the face of the news released by the media that present data on the growth of inequality in the world, as well as the news about everyday urban violence. It was possible to find out about the vulnerability of fundamental human rights to the reality that shows a growing inequality that contributes to fomenting violence that affects consti-tutionally declared rights. The methodology used was the qualitative research that consists of identifying and interpreting the necessary information about the investigated subject and promoting an analysis, as well as the deductive method through bibliographical research, using doctrine and legal text.

KEYWORDS: Human Rights. Vulnerability. Inequality. Urban Violence.

INTRODUÇÃO

Ao longo da história da humanidade e, também, de nosso país, tivemos avanços na legislação protetiva e positiva dos direitos humanos, considerados como aqueles inerentes à condição humana. Gradativamente foram adquiridos e reconhecidos formalmente como meio de garantir que a convivência humana seja possível com um mínimo de justiça, a fim de assegurar a pacificação social. Com o advento da fase constitucionalista os direitos humanos foram-se incor-porando às Constituições. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 disciplinou o rol de direitos fundamentais e introduziu a dignidade da pessoa humana como princípio republicano fundamental.

Contudo, em que pese à previsão dos direitos humanos em normas in-ternacionais e também constitucionalizados internamente como direitos funda-mentais, percebe-se ainda, no cotidiano contemporâneo, inúmeras situações de desigualdades que geram violência e, consequentemente, afrontam os direitos humanos. Todos os dias noticiam-se, nos principais meios de comunicação, tra-gédias que envolvem homicídios, feminicídios etc., o que revela a brutalidade

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humana que se espraia de forma generalizada no seio da sociedade e denota a violência gerada diante do modo de vida vigente.

Dentre as mazelas que atingem o convívio social, têm-se destacado a cres-cente violência urbana, que fere de morte direitos humanos e, em muitos casos, tolhe abruptamente o indivíduo do direito à própria existência, ao lhe retirar o bem mais precioso que é a própria vida. Dentre os fatores que podem ser aponta-dos como causa da violência urbana, um dos principais que se verifica é a ques-tão da desigualdade, mormente a desigualdade econômica geradora de outras tantas, trazida corriqueiramente para discussão por muitos estudiosos, dentre sociólogos, filósofos e economistas.

No Brasil, se por um lado, no plano idealista a Constituição prevê como sendo um de seus objetivos fundamentais a redução das desigualdades sociais e regionais e consagra dentre os direitos individuais o direito à igualdade, por outro lado, em realidade, vimos sendo assolados diariamente por problemas atrelados direta ou indiretamente à questão da desigualdade, em suas mais va-riadas formas: acesso à alimentação, à saúde, à educação, à moradia, todos estes revestidos formalmente de direitos sociais constitucionalizados.

Trazer à reflexão a questão da desigualdade mostra-se relevante e atual, mormente num país que acolhe os direitos humanos e traz na Constituição di-reitos fundamentais, incluído o direito à igualdade, assim formalmente declara-do, e que busca, dentre seus objetivos fundamentais, a redução da desigualdade, pois atrelado a uma das mais repetidas notícias, veiculadas diuturnamente nos meios de comunicação de massa, que é a crescente violência urbana. Por sua vez, tal reflexão induz a outra reflexão: quanto ao modo de vida e valores, pautados numa sociedade de mercado e consumo, em que, por vezes, parece preterir, em nome de direitos de liberdade – embora estes também estejam incluídos no rol de direitos humanos –, outros direitos humanos, tão arduamente conquistados ao longo da história da civilização humana, como o é o direito à igualdade.

1. BREVE DIGRESSÃO HISTÓRICA DA POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Desde a antiga Babilônia que se tem notícia da existência de um conjunto de regras talhadas em pedras (monólito), com o objetivo de punir atos de violência

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que ocorriam naquela sociedade. Trata-se do Código de Hamurabi “uma compi-lação de 282 leis da antiga Babilônia (atual Iraque), escrito por volta de 1772 a.C.. Hamurabi era o sexto rei da Babilônia, responsável por decretar o código conheci-do com seu nome”.3 Considerado pela maioria como precursor do próprio Direito.

O Código de Hamurabi foi uma legislação composta por vários fragmen-tos: de direito de família, patrimonial, sucessão, penal, direito do trabalho, regu-lamentação profissional, dentre outros, bem como aplicado no contexto de uma sociedade estratificada em classes desiguais, inclusive de escravos. Embora fosse uma lei extremamente rígida, evidencia-se, ao menos, a busca por uma justiça, embora pautada num idealismo social de época, isto é, marcada por dispositivos que hoje são tidos como severos e intransigentes, os quais não encontram mais correspondência com as ideias contemporâneas de justiça. Uma de suas leis mais conhecidas era a Lei do Talião, do que se originou o dito popularmente conhe-cido do “olho por olho, dente por dente” que nos remete exatamente à ideia do rigor daquela lei.

Ao avançar na linha do tempo, para d.C., encontra-se a publicação da Mag-na Carta da Inglaterra de 1215, firmada pelo Rei João Sem-Terra, bispos e barões ingleses, consoante Sarlet (2017, p. 309). Esta Carta tem sido considerada por muitos como os primeiros acordes positivados dos direitos humanos. Em seu artigo 39 dispõe o seguinte: “Nenhum homem livre poderá ser mantido preso, privado de seus bens, posto fora da lei ou banido, ou de qualquer maneira mo-lestado, e não procederemos contra ele nem o faremos vir, a menos que por jul-gamento legítimo de seus pares e pela lei da terra”.4 Essas declarações passaram a ser absorvidas pelas Constituições, pois revelavam direitos, os quais deveriam ser acolhidos e respeitados, de molde a assegurar a limitação do poder do Estado e a garantia de direitos individuais.

Destarte, pode-se dizer, consoante Sarlet (2017, p. 309), que os direitos hu-manos são os precursores dos direitos fundamentais, ou seja, os direitos funda-mentais podem ser tidos como os direitos humanos abarcados pelas Constitui-ções na fase constitucionalista dos Estados. No mesmo sentido é o que se retira de Arruda Jr. e Gonçalves (2002, p. 166): “[...] os direitos humanos tornam-se

3 SANTIAGO, Emerson. Código de Hamurabi. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/co-digo-de-hamurabi/>. Acesso em: 20 jul. 2017.

4 KERSTEN, Vinicius Mendez. O Código de Hamurabi através de uma visão humanitária. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4113> Acesso em 20 jul. 2017.

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também direitos fundamentais, justificáveis de modo objetivo a partir de suas positivações em Constituições, que são textos essencialmente nacionais [...]”. Assim, percebe-se que, ao falarmos de direitos humanos tratamos dos direitos surgidos inicialmente antes da fase constitucionalista dos Estados, no âmbito internacional, o que não exclui a introdução deles no âmbito interno dos Esta-dos, em suas Constituições, ao passo que, internalizados constitucionalmente, passam a denominarem-se direitos fundamentais.

Já no século XVIII, exsurgem dois importantes documentos responsáveis a ordenar a vida em sociedade, são eles: Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (USA),5 publicada em 16 de junho de 1776, e A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, publicada na França em 26 de agosto 1789, ambas formuladas por representantes do povo, reunidos em assembleia geral e livre, cujo objetivo era positivar direitos usuais daquela sociedade, como base e fun-damento do Estado, bem como limitação ao poder, garantindo-se direitos aos indivíduos governados.

A Declaração de Direitos da Virgínia, composta por 16 ordenamentos, pre-gava direitos que vemos positivados nas Constituições atuais, tais como a liber-dade, a vida, a igualdade e independência entre os homens. Que todo poder seria inerente ao povo e, consequentemente, dele procederia e que seria instituído, ou deveria sê-lo, para proveito comum, proteção e segurança do povo, resguardan-do o direito de opor-se a ele quando inadequado ou contrário a tais princípios. Estes direitos, por maioria da comunidade, poderiam ser reformados, alterados ou abolidos da maneira considerada mais condizente com o bem público. A se-paração dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário foi prevista, os homens teriam o direito de sufrágio e não poderiam ser submetidos à tributação, nem pri-vados de sua propriedade por razões de utilidade pública sem seu consentimento. Quanto ao Direito Penal, o acusado teria o direito de saber a causa e a natureza da acusação, preservando-lhe de obrigá-lo a testemunhar contra si próprio. Os cidadãos jamais poderiam ser submetidos a castigos cruéis ou inusitados. Quanto à imprensa, lhes seria assegurada a liberdade. A prática da religião seria voltada para a crença de um Criador e a maneira de cumprimento dos rituais regidos

5 Declaração de direitos do bom povo da Virgínia – 1776. Disponível em: <http://www. direitoshu-manos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Socieda-de-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-bom-povo-de-virgi-nia-1776. html> Acesso em 20 jul. 2017.

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pela razão e pela convicção, não pela força ou violência. Esse documento teve um significado muito importante para o estado da Virgínia, foi elaborada para proclamar os direitos naturais inerentes ao ser humano, positivando-os, dentre os quais o direito de se rebelar contra um governo “inadequado”.

Posteriormente à Declaração da Virgínia, em 1789, na França, foram de-clarados solenemente os direitos naturais do homem, através da Declaração de direitos do homem e do cidadão, com o objetivo maior de zelar pela conservação dos direitos naturais, inalienáveis e imprescritíveis do homem. Tais direitos mui-to têm a ver com a Declaração de Virgínia, pois também defendiam a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Previam a soberania da Nação e asseguravam que o exercício dos direitos naturais de cada homem não tinha por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites deveriam ser determinados pela lei. Assim, como tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado, ninguém poderia ser constrangido a fazer o que a lei não ordenasse.

Naquela Declaração pode-se confirmar a presença de direitos, hoje consi-derados e reconhecidos como fundamentais por muitas Constituições no mun-do afora, tal como a presunção de inocência: “todo acusado é considerado ino-cente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”.6 A expressão ou manifestação de ideias e opiniões foi assegurada. Além dos direitos, surgiram, ainda, deveres de contribuição para manter a força pública e a administração.

Mais à frente, já no séc. XX, em 1948, no contexto do pós-guerra, entre-meio ao choque vivenciado pela humanidade diante das atrocidades cometidas pelo ser humano contra o próprio ser humano, emerge a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, aprovada em Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU. Trata-se de diploma internacional que em seu preâmbu-lo reconhece a “dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.7

6 Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. Comissão de Direitos Humanos. In: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em: <http://escoladegesto res.mec.gov.br/site/8-biblioteca/pdf/direitos_homem_cidadao.pdf> Acesso em 10 ago. 2017.

7 Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Disponível em: <http://www.pcp.pt/ actpol/temas/dhu-manos/declaracao.html> Acesso em 10 ago. 2017.

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Revela-se, assim, que a partir daí a preocupação da sociedade para com os Direitos Humanos passou a ser tão evidente que, hodiernamente, tais preceitos encontram-se positivados em diversas Constituições – inclusive na CRFB/88, Art. 5.° – como forma de buscar assegurar a proteção dos direitos humanos, considerados inerentes ao indivíduo.

Vale lembrar que a doutrina traz uma classificação quanto ao surgimen-to dos direitos fundamentais nas Constituições, relacionando-os em direitos de primeira, segunda e terceira geração ou dimensão8 e, para alguns, pode-se falar até em quarta, quinta e sexta geração ou dimensão (SARLET, 2017, p. 312).

Nesse sentido, Sarlet (2017, p. 312-313) informa que o surgimento dos di-reitos fundamentais de primeira dimensão ocorreu a par do Estado Liberal, isto é, a partir do século XVIII, mormente com a Revolução Francesa, e são tidos como direitos civis e políticos que se caracterizam por seu cunho abstencionista ou negativo do Estado, isto é, são ligados ao valor liberdade, por exemplo, liber-dade de ir e vir, liberdade de culto e de opinião etc.

Quanto aos direitos de segunda dimensão exsurgem dos movimentos em busca da efetividade dos direitos de liberdade e igualdade, ocorridos desde o século XIX, cujo objetivo era a busca por uma ação positiva do Estado, daí de-nominados “prestacionais”, são os direitos denominados sociais que buscam as-segurar a saúde, alimentação, moradia, educação etc. Contudo, Sarlet (2017, p. 315) alerta para o fato de que os direitos de segunda dimensão não se restringem somente aos direitos de cunho positivo, mas também englobam as denominadas “liberdades sociais”, tais como a liberdade de sindicalização, direito de greve, di-reito a férias e limitação de jornada.

No que se refere aos direitos fundamentais de terceira geração ou dimen-são, Sarlet (2017, p. 316) aduz que se traduzem nos direitos de fraternidade e solidariedade, cuja nota distintiva advém do desprendimento da figura homem--indivíduo como titular para envolver grupos humanos como sujeitos desses direitos, daí denominarem-se direitos transindividuais, mas adverte que outros entendem que tais direitos tomam o gênero humano como sujeito, dentre os

8 Insta observar que o termo gerações de direitos por vezes tem sido criticado por remeter à ideia da so-breposição ou substituição de um conjunto de direitos por outro, daí muitos consideram inadequada a sua utilização e optam pelo termo dimensões de direitos, o qual reflete melhor, semanticamente, a ideia de que os conjuntos de direitos que surgem são complementares aos anteriores e não excluden-tes, havendo coexistência, por exemplo, Sarlet (2017, p. 312).

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quais exemplifica com o direito à paz, à autodeterminação dos povos, desenvol-vimento, meio ambiente e qualidade de vida entre outros.

Finalmente, Sarlet (2017, p. 317) aponta que a admissão de novas dimen-sões de direitos, além das três já discorridas, enseja controvérsias, pois que, na essência, as demandas relacionadas aos direitos fundamentais ligam-se ou entrelaçam-se “em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na base, o princípio maior da dignidade da pessoa humana.”

Feita essa breve digressão acerca do que a doutrina aponta sobre as dimen-sões dos direitos fundamentais, retorna-se aos direitos humanos. Segundo Cas-tro (2005, p. 121) há três grandes grupos de direitos humanos:

Os que concernem à livre disposição do corpo (e aí se incluem o direito à vida, à

segurança, à liberdade de movimentos, à saúde, ao trabalho, a não passar fome;

e, em seu nome, condena-se a tortura, a apartheid e a escravidão). Os que estão

afetos à livre disposição do espírito (que compreendem a liberdade de pensamento,

consciência e opinião, e o direito à educação e à cultura). Os que dizem respeito à

livre disposição dos meios para pôr em prática os direitos anteriormente citados,

basicamente o direito de igualdade perante a lei e o direito político de votar e ser

votado; mas, especificamente, o direito à existência de um recurso processual para

fazê-los valer.

Os Direitos Humanos acima descritos exsurgiram como forma de regu-lamentar as relações interpessoais estabelecidas na vida em sociedade e encon-tram-se abarcados pela Constituição brasileira. Estes direitos reputam-se im-prescindíveis à coexistência pacífica da humanidade.

No rol dos Direitos Humanos constitucionalizados no Brasil, inclui--se a dignidade da pessoa humana, garantido como direito fundamental pela CRFB/88, consoante disposto no Art. 1.°, inciso III. É difícil conceituar esse di-reito em razão de sua amplitude, mas pode-se considerar como um direito de ordem pessoal, inerente ao ser humano. Faz parte integrante do seu desenvolvi-mento e crescimento pessoal.

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No dizer de Lemisz,9 “o reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana pelo Direito é resultado da evolução do pensamento humano”. Significa dizer que a humanidade já se sentia portadora desse direito de forma intrínseca, pois ele tem a ver com a condição humana, apenas não se encontrava positivado.

Entrementes, em que pesem as conquistas da humanidade com relação às declarações dos Direitos Humanos, mormente acolhidos no Brasil pela Consti-tuição de 1988, não se pode olvidar das dificuldades que ainda se para em efeti-var tais direitos e conferir concretude à vida humana digna. Nessa senda, Bobbio (2004, p. 44) prelecionava:

Não se pode pôr o problema dos direitos do homem abstraindo-o dos dois gran-

des problemas de nosso tempo, que são os problemas da guerra e da miséria, do

absurdo contraste entre o excesso de potência que criou as condições para uma

guerra exterminadora e o excesso de impotência que condena grandes massas hu-

manas à fome. Só nesse contexto é que podemos nos aproximar do problema dos

direitos com senso de realismo.

Assim, a primeira etapa parece, ao menos, em território brasileiro, vencida, que é a da declaração e reconhecimento formal dos Direitos Humanos, uma vez que o Brasil, além de ser signatário da Declaração dos Direitos do Homem, tam-bém incorporou Direitos Humanos como fundamentais em seu texto constitu-cional. Contudo, a etapa a enfrentar é a da busca pela efetividade de tais direitos, a fim de não serem tomados como meramente programáticos, mas que possam transformar-se em realidade.

Eis o desafio contemporâneo! Daí a importância de se averiguar e refle-tir sobre um dos principais fatores que depõem contra a efetivação dos direi-tos humanos, constitucionalmente revestidos de fundamentais na Constituição brasileira: a questão da desigualdade, mormente a desigualdade econômica que arrasta consigo outras desigualdades, tais como a de acesso à saúde, à educação, à alimentação e à moradia etc., o que, por conseguinte, induz à violência causa-dora de violação dos direitos humanos essenciais, como o próprio direito à vida.

9 LEMISZ, Ivone Ballao. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5649/O-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana>. Acesso em 11 ago. 2017.

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2. PENSAMENTOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE A DESIGUALDADE

No vigente sistema econômico capitalista, no qual o Brasil se inclui, e que abarca a maioria dos países, percebe-se como principal fundamento, a ideia da liberdade de comerciar, contudo, por vezes, com o lucro exacerbado dos deten-tores dos bens de produção e em contrapartida a baixa remuneração dos pres-tadores de mão de obra, bem como a ausência de igualdade para o exercício daquele direito de liberdade comercial, isto é, denota-se uma enorme diferença de condições de competividade entre o pequeno produtor e o grande produtor capitalista.

Tais questões podem vir a gerar situações marcadamente desiguais e que se revelam não saudáveis para uma sociedade que diz adotar dentre seus prin-cípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana, o que tende a desencadear e fomentar a violência que assombra os grandes centros urbanos, mormente no Brasil, mas também noutros lugares. Assim, toma-se, por exemplo, a grande di-ferença entre ricos e pobres, cuja desigualdade tem sido reiteradamente noticia-da por veículos de comunicação, em especial pela revista Forbes que anualmente traz o rol dos mais ricos do planeta e cuja informação é reproduzida pela mídia.

Os direitos de igualdade, conhecidos como de segunda geração ou dimen-são, vieram a complementar os direitos de primeira geração ou dimensão, quais sejam, os direitos de liberdade, porquanto estes, por si só, não se mostravam su-ficientes e capazes, na prática, de conferir a almejada pacificação social, uma vez que, os direitos de liberdade não garantem uma sociedade que respeite e consin-ta em conferir igualdade aos indivíduos, tal como, igualdade de oportunidade, igualdade de acesso à educação, igualdade econômica etc., fato este que depõe a favor da insatisfação social e da inacessibilidade aos direitos sociais, o que, por sua vez, deságua em violência urbana.

Denota-se, diante desse contexto de desigualdade, que a falta de efetividade do direito à igualdade promove uma vulnerabilidade dos direitos humanos na sociedade, afrontados pela crescente violência urbana que ocasiona o seu des-respeito, sob diversas formas, provocada pelas mazelas sociais como a fome, a miséria, a falta de assistência médica e educacional, a falta de trabalho, enfim, a marginalização dos indivíduos na sociedade.

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Nesse ínterim, vale reverberar acerca do que se compreende por desigual-dade. Na lição do sociólogo Fábio Medeiros:10

[...] primeiro intelectual a falar sobre a desigualdade entre as classes foi o alemão

Karl Marx, criador da doutrina comunista moderna. A visão de Karl Marx, que

era muito mais economista do que mesmo sociólogo, deu uma contribuição mui-

to grande ao estudo sociológico. A desigualdade social está atrelada necessaria-

mente ao modo de produção capitalista que não é justo, não é igual. Possibilita

um processo de desigualdade muito intenso. Então o modo de produção que visa

o lucro, através do acúmulo de capital e da exploração de trabalho, na visão mar-

xiana é uma visão que possibilita a gente a entender porque essa desigualdade se

estabelece.

Segundo Nunes,11 o sociólogo português António Firmino da Costa, na obra Desigualdades Sociais Contemporâneas, ensina que:

O livro toma como objeto as principais configurações socioestruturais das desi-

gualdades atuais constituídas à escala global, mas são também examinados um

conjunto de aspetos socioculturais respeitantes às desigualdades sociais contem-

porâneas, mais especificamente relativos a percepções, valorizações e crenças so-

bre desigualdades no mundo de hoje.

Ainda sobre a obra, Costa explana acerca das atuais tendências das desi-gualdades globais, por meio de comparações internacionais e transnacionais, com ênfase para Portugal, países e regiões europeias ou considerando a Europa no seu todo. Analisa, citando exemplos, a evolução das desigualdades nos EUA e no Japão que considera “países desenvolvidos”, e no Brasil e na China os quais reputa como “países emergentes”.

Wacquant (2005, p. 7), em sua obra Os condenados da cidade, observa que as sociedades da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos dispõem to-

10 MEDEIROS, Fábio. Professor explica a desigualdade social a partir da visão de Kant. Disponível em: <http://g1.globo.com/pernambuco/vestibular-e-educacao/noticia/2012/11/professor-explica-desi-gual dade-social-partir-da-visao-de-karl-marx.html>. Acesso em 16 ago. 2017.

11 In: Desigualdades Sociais Contemporâneas. Disponível em: <https://observatorio-das-desigualdades.com/2014/04/23/desigualdades-sociais-contemporaneas-de-antonio-firmino-da-costa/>.Acesso em 16 ago. 2017.

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das de um termo específico para denominar comunidades estigmatizadas e si-tuadas na base do sistema hierárquico de regiões que compõem as metrópoles, para onde a população menos favorecida é empurrada, são elas as favelas no Brasil, problaciones no Chile, villa miseria na Argentina, cantegril no Uruguai, banlieue na França, gueto nos Estados Unidos. Na lição do autor a desigualdade social que se evidencia nessas comunidades são resultados de diferentes motivos. Em umas a desigualdade possui cunho racial, e em outras, caráter econômico, educacional ou imigracional, mas todas congregam problemas sociais, e atraem a atenção dos meios de comunicação, dos políticos quando interessa e das au-toridades de forma desigual, e, por vezes, negativamente, pois têm a conotação de áreas problemáticas, violentas e proibidas. Esse estereótipo das comunidades contribui para o descaso na implantação de formas positivas de governança e remete à configuração de um autêntico cenário de espoliação urbana, consoante menciona Kowarick (1979, p. 79). 12

Bauman (2015, p. 26), pensador polonês, na obra A riqueza de poucos be-neficia todos nós?, chama a atenção para uma análise da relação existente entre a crescente desigualdade de renda e os problemas sociais:

[...] dos níveis altos e crescentes da desigualdade sobre patologias de coabitação

humana, e a gravidade dos problemas sociais, só se consolidam e seguem se con-

solidando. A correlação entre altos níveis de desigualdade de renda e volume cres-

cente de patologias sociais está agora amplamente confirmada. Um número cada

vez maior de pesquisadores e analistas destaca ainda que, além de seu impacto

negativo sobre a qualidade de vida, a desigualdade também tem um efeito adverso

sobre o desempenho econômico.

Em um relatório da ONU13 (Organização das Nações Unidas), divulgado em julho de 2010, o Brasil aparece com o terceiro pior índice de desigualdade no mundo e, em se tratando da diferença e distanciamento entre ricos e pobres,

12 Na obra A espoliação urbana, Lúcio Kowarick, nos traz a problemática do crescimento urbano pau-listano e da segregação da população pobre, que acaba ocupando locais longínquos e sem acesso à infraestrutura e aos serviços públicos necessários e adequados. Disponível em: < https://pt.scribd.com/ document/34151 8846/KOWARICK-Lucio- a-Espoliacao-Urbana> Acesso em 5 fev. 2017.

13 Disponível em: <http://desigualdade-social.info/desigualdade-social-no-brasil.html> Acesso em 22 ago. 2017.

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fica atrás no ranking apenas de países muito menores e menos ricos, como Haiti, Madagascar, Camarões, Tailândia e África do Sul.

Esse fenômeno vivido por milhares de famílias no Brasil atinge a popu-lação no seu aspecto mais íntimo: a autoestima. As pessoas, em geral, buscam melhorar sua qualidade de vida e de seus familiares, mas a carência de escolas de qualidade, transporte público adequado, saneamento básico, acesso à assistência à saúde, dentre outros, contribuem de forma direta e negativa para o sentimento de desesperança, de menos valia e, até, a geração de doenças psicossomáticas, desaguando, ainda, para a violência urbana.

Ainda segundo Bauman (2015, p. 20):

Já há muito tempo, em 1979, um estudo da Universidade Carnegie demonstrou

com nitidez o que sugeria o enorme montante de indícios disponíveis na época, e

que a experiência da vida comum continuou diariamente a confirmar: o futuro de

cada criança era amplamente determinado pelas suas circunstâncias sociais, pelo

local geográfico de seu nascimento e o lugar de seus pais na sociedade de seu nas-

cimento – e não por seu próprio cérebro, talento, esforço e dedicação. O filho de

um advogado de grande empresa tinha 27 vezes mais chances que o filho de um

funcionário subalterno com emprego intermitente (ambos sentados no mesmo

banco da mesma sala de aula, com o mesmo bom desempenho, estudando com a

mesma dedicação e ostentando o mesmo QI) de receber, aos quarenta anos, um

salário que o situasse na faixa dos 10% mais ricos do país; seu colega de classe

teria somente uma chance em oito de ganhar uma renda sequer mediana. Menos

de três décadas depois, em 2007, as coisas ficaram muito piores. O fosso tinha se

ampliado e aprofundado, tornando-se mais insuperável que nunca.

Como se pode ver, o próprio título do livro é uma afirmativa que chama atenção em razão de sua fantasia, pois nos parece que os ricos estão cada vez mais afastados da convivência com pessoas consideradas de classes sociais inferiores, sejam nas escolas, nos clubes, nos centros de compras ou nos bairros residenciais. O que evidencia uma segregação social, construída a partir do viés econômico.

Thomas Piketty, economista contemporâneo, defende em sua obra, O ca-pital no século XXI, a ideia de que, diante do crescente aumento da desigualdade econômica, parta-se para um sistema de taxação da riqueza como meio para

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reduzir as desigualdades.14 O autor em entrevista sobre sua obra esclarece que, o que, cabe evitar, é que se chegue ao ponto de uma desigualdade extrema, mas admite que algum grau de desigualdade seja desejável:

É claro que é melhor ter desenvolvimento com desigualdade do que pobreza com

igualdade, como na China dos anos 1970. Não tenho problema com a desigualda-

de, desde que seja do interesse comum, em particular do interesse dos segmentos

mais pobres da sociedade. Não há nenhuma dúvida, do meu ponto de vista, que

algum grau de desigualdade é desejável. Mas, quando a desigualdade se torna ex-

trema, ela não é mais útil para o crescimento. Pode até atrapalhar. A desigualdade

extrema tende a vir com pouca mobilidade e cria estruturas que perpetuam a desi-

gualdade ao longo do tempo. Na Europa antes da Primeira Guerra Mundial, 90%

da riqueza nacional pertencia aos 10% mais ricos. Era excessivo. Não queremos

retornar a isso.15

A preocupação explanada por Piketty quanto ao crescente aumento da de-sigualdade extrema entre ricos e pobres, reaviva-se com o Fórum de Davos, na Suíça, ocorrido em janeiro de 2018, em que foi divulgado pela organização não governamental britânica Oxfam, que o ano de 2017 foi o ano em que ocorreu o maior aumento já visto da distância entre ricos e pobres no mundo. Afirmou que atualmente 82% (oitenta e dois por cento) da riqueza no mundo encontra-se nas mãos de apenas 1% (um por cento) da população mundial. No Brasil os núme-ros também traduzem esse crescimento da desigualdade:

De toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% foi parar nas mãos do 1% mais

rico do planeta. Enquanto isso, a metade mais pobre da população global – 3,7 bi-

lhões de pessoas – não ficou com nada. No Brasil, não é muito diferente. Hoje temos

14 Conforme explica o crítico de Pikety, David Harvey: “Piketty reúne uma grande quantidade de dados para sustentar sua argumentação. Sua descrição das diferenças entre renda e riqueza é persuasiva e útil. E faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre herança, do imposto progressivo e de um imposto sobre a riqueza global como possíveis (embora quase certamente não politicamente viável) antídotos contra o avanço da concentração de riqueza e poder.” In: Harvey: reflexões sobre “O capital”, de Thomas Piketty. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2014/05/24/harvey-reflexoes--sobre-o-capital-de-thomas-piketty/> Acesso em 31 ago. 2017.

15 In: Thomas Piketty: esclarecendo um dos maiores best-sellers de economia, p. 2. Disponível em: <http://www.fronteiras.com/entrevistas/thomas-piketty-esclarecendo-um-dos-maiores-best--sellers-de-economia> Acesso em 31 ago 2017.

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cinco bilionários com patrimônio equivalente ao da metade mais pobre do país,

chegando a R$ 549 bilhões em 2017 – 13% maior em relação ao ano anterior. Ao

mesmo tempo, os 50% mais pobres do Brasil tiveram sua riqueza reduzida no mes-

mo período, de 2,7% para 2%.16

Segundo Sandel (2014, p. 77), filósofo estadunidense contemporâneo, au-tor da obra “Justiça - o que é fazer a coisa certa”, mais de um terço da riqueza dos Estados Unidos encontra-se nas mãos de 1% dos americanos mais ricos, o que comporta mais do que a riqueza dos 90% dos menos favorecidos junta. Acrescenta ainda que os 10% de lares no topo da lista representam 42% de toda a renda do país e possuem 71% de toda a riqueza.

Michael Sandel, ainda, aduz que os adeptos da ideologia utilitarista enten-dem injusta esta desigualdade e que, em consequência, são favoráveis à taxação do rico para ajudar o pobre. Por outro lado, o filósofo lembra que, para os parti-dários da ideologia libertária, não haveria nada de injusto na desigualdade eco-nômica, desde que esta advenha de escolhas feitas no âmbito de uma economia de mercado e não de coação ou fraude, em homenagem ao direito fundamental à liberdade:

Os libertários defendem os mercados livres e se opõem à regulamentação do gover-

no, não em nome da eficiência econômica, e sim em nome da liberdade humana.

Sua alegação principal é que cada um de nós tem o direito fundamental à liberdade

– temos o direito de fazer o que quisermos com aquilo que nos pertence, desde que

respeitemos os direitos dos outros de fazer o mesmo (SANDEL, 2015, p. 78).

Assim, a questão da desigualdade econômica, diante da filosofia libertária, reporta à reflexão quanto ao direito à liberdade de apropriar-se daquilo que se conquista, e, em nome dele, posicionar-se contra a taxação maior da riqueza recebida. Contudo, tal posicionamento enseja um questionamento: qual seria o meio para o Estado prover outros direitos humanos – além do direito à própria

16 Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/assim-nao-davos?gclid=EAIaIQobChMIgeyNx--P2QIVRY-GRCh2SEAkIEAAYASAAEgKI3vD_BwE> Acesso em 5 fev. 2018. Sobre o tema vide ainda o Relatório e nota metodológica “Recompensem o trabalho, não a riqueza”. Disponível respectivamente em: <ht-tps://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/2018_Recompensem_o_Trabalho_Nao_a_ riqueza_Resumo_Word.pdf> e <https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/2018_Re-compensem_o_Trabalho_Nao_a_riqueza_Nota_Metodologica.pdf>

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liberdade de apropriação privada – também tidos como direitos fundamentais à vida humana digna, tais como os direitos sociais de alimentação, moradia, se-gurança, educação etc. – determinantes dos direitos de igualdade, denominados de segunda geração ou dimensão –, ou seja, como o Estado poderia assegurar o mínimo vital, de onde adviriam os recursos senão da taxação da riqueza?

Por outro lado, diante do posicionamento da filosofia utilitarista, também emerge um questionamento: sobre qual seria o limite razoável à taxação da ri-queza pelo Estado para retirar desta o que é necessário para atender as necessi-dades dos menos favorecidos, ou seja, qual o ponto de equilíbrio, e, mais, como e quem os definiria.

Tais são os dilemas contemporâneos que envolvem a questão da desigual-dade e que mereceriam uma discussão com grande seriedade por parte da so-ciedade, a fim de que fosse encontrada a melhor solução possível, de molde a se aproximar da pretensa efetivação dos direitos humanos a todos os indivíduos do planeta e, desta forma, também, minimizar a violência urbana, cada vez mais crescente nos grandes centros.

3. A DESIGUALDADE COMO PILAR DE SUSTENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA URBANA GERADORA DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Apesar da Declaração dos Direitos Humanos, positivados no ordenamento jurídico brasileiro, a sociedade vive momentos de extrema instabilidade social, política, econômica, cultural, emocional em decorrência da violência urbana nas grandes, médias e pequenas cidades do país, diferindo nestas em razão do grau e frequência do conflito, o que enseja grave violação dos direitos humanos.

Muitos estudos têm sido divulgados sobre as prováveis causas e consequên-cias, dentre outras, destaca-se de maneira mais evidente: a desigualdade, sob suas diversas formas e intensidade, conforme visto alhures. As consequências são previsíveis. O Estado, a família, as escolas, as entidades de classe, ONGs não governamentais e outros órgãos de controle perdendo as rédeas da expansão desordenada da delinquência urbana.

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O significado de desigualdade traduz-se em “caráter ou condição do que não é igual”,17 logo, subtende-se que há uma desigualdade de condições ou de proporções. Essa desigualdade pode ser positiva ou negativa, mas comumente denota um desequilíbrio. A desigualdade se apresenta de várias formas. Pode ser econômica, social, regional, de gênero, dentre outras. Esse fenômeno social geralmente ocorre em sociedades com limitações de desenvolvimento.

No Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-lios (PNAD-2011) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),18 as regiões mais afetadas pelos problemas sociais são o Norte e Nordeste do país, os quais apresentam os piores IDH’s (Índice de Desenvolvimento Humano). Esse desequilíbrio social contribui para elevar os índices de violência urbana.

Ainda, segundo análise de dados constante do Atlas da Violência – 2017, de autoria de Cerqueira et al.,19 a violência no Brasil teve um salto, ao se com-parar que entre 2005 e 2007 foram 48 a 50 mil mortes por homicídio ocorridas, enquanto que, em 2015, foram 59 mil e oitenta homicídios, o que denota uma mudança de patamar nesse indicador, passando em uma década para a ordem de 59 a 60 mil casos por ano, isto é, um significativo aumento, em torno de 1 mil mortes a mais do ano que passou.

Tais fatos podem, em maior ou menor grau de intensidade, advir do pro-blema social de uma brutal desigualdade, seja ela de acesso à alimentação, de acesso à moradia, de acesso à educação, enfim, de acesso às oportunidades pelo indivíduo que compõe o seio da sociedade e que, na maior parte das vezes, é colocado à margem e integra um vicioso ciclo de crescimento e concentração de riqueza e renda em mãos de pouquíssimos privilegiados.

Trata-se de um fenômeno da desigualdade maléfica, capaz de gerar exclu-são social, fome, miséria, ignorância e capaz de subjugar indivíduos, contribuin-do para o desencadeamento da violência urbana, o que tem sido reiteradamente alvo e tema de estudos e abordagens por parte de sociólogos.

Destarte, denota-se, diante deste cenário, que a violência urbana deságua e tem relação estreita com a miséria e pobreza decorrentes da desigualdade, afe-

17 Dicionário online de português. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/desigualdade/> Acesso em 15 ago 2017.

18 Desigualdade Social no Brasil. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/desigualdade-social--no-brasil/> Acesso em 15 ago. 2017.

19 CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da violência – 2017. Ipea e FBSP. Disponível em: <http://www. ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf> Acesso em 5 set. 2017.

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tando mais diretamente a população desprovida, fazendo-os algozes e vítimas da violência crescente a cada dia, em que muitos são tolhidos abruptamente da pró-pria vida e da liberdade. Nesse sentido, extrai-se de Zaffaroni e Pierangeli (2015, p. 4): “[...] na grande maioria dos casos os que são chamados de “delinquentes” pertencem aos setores sociais de menores recursos. Em geral, é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo estão povoadas por pobres.” 20

Vargas,21 citando Wacquant, enfatiza que, para a compreensão social e po-lítica da desigualdade social, deve haver uma análise essencial em relação a ca-tegorias como cor, etnia e classe social. Esse critério de avaliação tem o efeito de limitar ou prejudicar o status de um determinado grupo, classe ou círculo social.

Carvalho22 em seu artigo sobre o pensamento de sociólogo Boaventura afirma que:

O sistema de desigualdade constitui um sistema hierárquico de integração social,

dando lugar à integração subordinada e explorada; o sistema de exclusão gesta

um sistema hierárquico de segregação, dando lugar a distintos processos do “estar

fora”, criando formas de “não existência”. Na dinâmica contemporânea estes dois

sistemas da desigualdade e de exclusão articulam-se e, mesmo, imbricam-se, no

âmbito das populações sobrantes, supérfluas para o capital que vivenciam proces-

sos perversos de exclusão e inclusão precária, em meio a formas de não-existên-

cia, gestadas nos marcos da colonialidade do poder. Em verdade, nesta civilização

mundializada do capital, nos marcos da tecnologização da ciência, o trabalho vem

deixando de ser elemento de inclusão subordinada, passando a fator de exclusões

e inclusões precárias, no fio da navalha do capital e dos neocolonialismos.

Explica que a lição de Boaventura, sociólogo português, funda sua perspec-tiva emancipatória no princípio do reconhecimento da igualdade e da diferen-

20 Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/Manual_de_direito_pe-nal_brasileiro_cap_01.pdf> Acesso em: 6 fev. 2018.

21 VARGAS, Maria do Carmo de Oliveira; BATISTA, Vera Malaguti (org.) (2012). Loïc Wacquant e a ques-tão penal no capitalismo neoliberal. Disponível em: <https://rccs.revues.org/6421> Acesso em 14 ago. 2017, p. 142-145.

22 CARVALHO, Alba Marinho Pinho de. Pensamento de Boaventura de Sousa Santos em foco: a reinvenção da emancipação em tempos contemporâneos. Disponível em: <http://www.boaventuradesousasan-tos.pt/media/PENSAMENTO%20DE%20BOAVENTURA%20DE%20SOUSA%20SANTOS%20EM%20FOCO1.pdf> Acesso em 20 jul. 2017.

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ça: “defender a igualdade sempre que a diferença gerar inferioridade e defender a diferença sempre que igualdade implicar descaracterização”. É a tensão entre igualdade e diferença, entre a exigência de reconhecimento e o imperativo da redistribuição. Sustenta Boaventura Santos que necessitamos construir a eman-cipação a partir de uma nova relação entre o respeito da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença.

Percebe-se, desta forma, que os sistemas de desigualdade e de exclusão se retroalimentam, atingindo as populações mais carentes que estão sempre subor-dinadas às decisões dos detentores do poder econômico-político e colocadas à margem da sociedade, isto é, do acesso aos direitos sociais, pressupostos essen-ciais à concretização de uma vida digna, a qual está prevista na Constituição Fe-deral brasileira, no Art. 1.º, inciso III, com um dos seus princípios republicanos fundamentais, bem como, vêm especificados no Art. 6.º que prevê:

Art. 6.º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a mo-

radia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à mater-

nidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Ainda, da Constituição Federal brasileira, retira-se como um de seus obje-tivos fundamentais, disciplinados no Art. 3.º, inciso III, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, ou seja, cabe a Re-pública Federativa do Brasil construir uma sociedade que reduza as desigualdades sociais e regionais. Vale destacar que a previsão constitucional não busca o fim da desigualdade, mas sim a sua redução, até porque o Brasil adotou em sua norma maior, o princípio da livre iniciativa que abarca a ideia de um sistema de produção e consumo de modelo capitalista, a qual não se coaduna com uma sociedade ab-solutamente igualitária, diante de seus princípios e fins, isto é, a diferença é cons-titucionalmente admitida, mas se pretende que ela não seja prejudicial e haja um mínimo de igualdade que possibilite, ao menos, a vida humana digna.

Nessa senda, assevera Wolkmer (2006, p. 115):

[...] a interpretação e a prática da ideologia neoliberal, particularmente na Amé-

rica Latina, tem-se projetado como ‘concepção radical do capitalismo que tende a

absolutizar o mercado, até convertê-lo em meio, em método e fim de todo com-

portamento humano racional. Segundo essa concepção, ficam subordinados ao

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mercado a vida das pessoas, o comportamento da sociedade e a política dos go-

vernos. O mercado absolutista não aceita nenhuma forma de regulamentação’. [...]

Tal sistema de princípios e valores exime o Estado de grande parcela de sua res-

ponsabilidade, limitando-lhe a intervenção e atuação a garantir o mínimo de bens

para todo cidadão. Ao ajustar e estabilizar a economia capitalista para as grandes

burocracias e as elites financeiras internacionais, o neoliberalismo acabou, na es-

teira dessas manobras, contribuindo para acelerar imensos desequilíbrios econô-

micos, elevadas taxas de desemprego, profundas desigualdades sociais, acentua-

dos desajustes no cotidiano das comunidades locais e o genocídio cultural.

Destarte, a desigualdade social23 pode ser caracterizada pela má distribui-ção de renda e de riqueza, má administração de recursos, consumo sem limites, falta de investimento nas áreas sociais, culturais, saúde e educação, falta de opor-tunidade de trabalho e corrupção.

Por fim, diante do que acima foi observado, resta uma questão que se deixa à reflexão: Como o Estado poderá compatibilizar e equalizar, numa sociedade como a brasileira, direitos de primeira geração ou dimensão – liberdades indivi-duais – com os direitos de segunda geração ou dimensão – direitos de igualdade? Até que ponto o direito à liberdade individual de manter e acumular riqueza pode suplantar o direito à igualdade e vice-versa?

Tais questionamentos denotam a discussão de temas extremamente sensí-veis e caros à sociedade brasileira, os quais envolvem dois valores fundamentais: de um lado a liberdade de acumular riqueza e o direito de adquirir propriedade e de outro lado a igualdade de oportunidade e os direitos sociais – à alimentação, moradia, saúde, educação etc.

CONCLUSÃO

Do acima disposto extraímos que o tema que envolve a questão da (in)efe-tividade dos direitos humanos fundamentais, mormente aqueles considerados de segunda geração ou dimensão, os denominados direitos sociais ou direitos de igualdade que incluem o direito à saúde, alimentação, educação, moradia etc., di-

23 Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/desigualdade-social/> Acesso em 15 ago. 2017.

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reitos estes ditos prestacionais do Estado e que cobram uma atuação positiva por parte dos administradores públicos, por vezes, demonstram não alcançarem todos os indivíduos, especialmente a população hipossuficiente economicamente.

Ao reverberar os primórdios e mais destacados documentos que abarca-ram os direitos do homem, erigidos ao longo da história da humanidade, desde o Código de Hamurabi, passando pelas Declarações da Virgínia em 1776 e da Revolução Francesa em 1789, até chegar as atuais declarações internacionais e às Constitucionais nacionais, percebe-se a busca por um ideal de justiça que se vincula, ao longo da história, aos interesses do poder então vigente.

Destacaram-se as preocupações com os direitos individuais frente ao poder absolutista, até avançar para uma das mais importantes, ou quiçá a mais im-portante Declaração dos Direitos do Homem, que surge após os horrores da 2.ª Grande Guerra Mundial e do qual 26 países foram signatários, originariamente, com fortes indícios, aí, de uma tentativa de construir uma sociedade global, com possibilidades, em tese, para assegurar a todos os indivíduos um mínimo de dig-nidade frente ao poderio dos Estados e de seus representantes.

Por fim, ainda, chegou-se aos ditames Constitucionais brasileiros que con-ferem aos seus indivíduos, tabularmente, direitos sociais como direitos humanos fundamentais, mas que, diante das mazelas sociais, mormente a desigualdade, ainda carecem de efetividade.

Finalmente, sobre a questão da desigualdade, reverberou-se que esta existe sob diversos aspectos: a desigualdade econômica, cultural, étnica, social, política etc., bem como traz consigo consequências que atingem frontal e mortalmente os direitos humanos fundamentais, tais como a falta de acesso aos alimentos, à moradia, à educação, à saúde, sem os quais, é praticamente esperada, como con-sequência, a violência urbana que assola nossas cidades e fere de morte um dos direitos humanos fundamentais, o mais importante por sinal, que é o próprio direito à vida.

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<https://www.todamateria.com.br/desigualdade-social/>

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OS REFLEXOS DA PÓS-MODERNIDADE DA SOCIEDADE DE CONSUMO DE MASSA NO INDIVÍDUO, NO

TRABALHO E NAS RELAÇÕES SOCIAISTHE REFLECTIONS OF THE POST-MODERNITY OF THE SOCIETY OF MASS

CONSUMPTION IN THE INDIVIDUAL, AT WORK AND IN SOCIAL RELATIONSDevane Batista Costa1

Monique de Souza Arruda2

Sumário: Introdução; 1. A sociedade de consumo de massa; 2. Sistemas produti-

vos capitalistas: o surgimento da sociedade de consumo de massa; 2.1 Taylorismo;

2.2 Fordismo; 2.3 Toyotismo; 3. Ciclos do capitalismo de consumo; 4. Da moder-

nidade à pós-modernidade; 5 Os reflexos da pós-modernidade da sociedade de

consumo de massa no indivíduo, no trabalho e nas relações sociais; Conclusão;

Referências.

RESUMO: O presente estudo objetivou identificar a fase do capitalismo de consumo de massa em que se enquadra a sociedade de consumo brasileira, após efetuar uma análise dos ciclos de consumo propostos por Gilles Lipovet-sky. Destacaram-se aspectos como o desenvolvimento dos modelos capitalistas de produção, o impacto ambiental e a forma como esses modelos produtivos possibilitaram o nascimento da atual sociedade de hiperconsumo e dos ciclos ou fases do consumo capitalista. Utilizou-se como base o levantamento realizado pelo instituto Ibope Inteligência acerca dos padrões de consumo dos brasileiros. Como contraponto, ao final, analisou-se a sociedade pós-moderna de Bauman com o escopo de tecer considerações acerca do homo consumericus produzido pela pós-modernidade e para demonstrar, ao final, os reflexos da sociedade de consumo de massa pós-moderna no indivíduo, no trabalho, nas relações sociais e no meio ambiente, na perspectiva de direitos humanos. A abordagem meto-

1 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Analista judiciário do Tri-bunal Regional do Trabalho da 11ª Região.

2 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Militar da Força Aérea Brasileira.

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dológica adotada nesta pesquisa é a qualitatitiva dedutiva, sendo que o estudo se desenvolveu a partir de pesquisas bibliográficas e documentais.

PALAVRAS-CHAVE: Sociedade de consumo de massa. Hiperconsumi-dor. Fases do capitalismo de consumo. Pós-modernidade.

ABSTRACT: The present study aimed to identify the phase of mass con-sumption capitalism in which the Brazilian consumer society fits, after analyzing the consumption cycles proposed by Gilles Lipovetsky. The development of capi-talist models of production, environmental impact and the way these productive models made possible the birth of the current hyperconsumption society and the cycles or phases of capitalist consumption were highlighted. The survey conduc-ted by the IBOPE Intelligence Institute was based on the consumption patterns of Brazilians. As a counterpoint, in the end, the postmodern society of Bauman was analyzed, with the scope to make considerations about the homo consumericus produced by this postmodernity and to demonstrate in the end the reflexes of the postmodern mass consumption society in the individual, at work, in social relations and in the environment, from a human rights perspective. The metho-dological approach adopted in this research is the qualitative deductive one, being that the study developed from bibliographical and documentary researches.

KEYWORDS: Society of mass consumption. Hyperconsumer. Phases of consumer capitalism. Postmodernity.

INTRODUÇÃO

A sociedade de consumo nasceu no século XIX, por volta dos anos de 1880, migrando de pequenos para grandes mercados com a elaboração de máquinas de fa-bricação contínua que permitiram a expansão da produção em larga escala e o con-sequente surgimento das sociedades de consumo de massa (LIPOVETSKY, 2008).

Sociedade de consumo, sociedade de consumo de massa, sociedade de hi-perconsumo, pós-sociedade de consumo de massa, sociedade da pós-moder-nidade, modernidade líquida são expressões cunhadas ao longo dos processos permanentes de transformação do consumo e dos estilos de vida da humanida-de, tendo como seu nascedouro e ponto em comum o sistema capitalista de pro-dução - a hegemonia crescente da esfera mercantil -, que, gradualmente, alterou a fisionomia das sociedades e ampliou sua escala de poder entre as nações.

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As discussões em torno da economia de mercado, da sociedade de consu-mo de massa e do trabalhador-consumidor fabricado pelo modo de produção capitalista estão em meio aos debates sobre a transição da sociedade de consumo moderna para a sociedade de consumo pós-moderna.

Os modelos de produção desenvolvidos pelo sistema econômico capitalista (Taylorismo, Fordismo e Toyotismo) cunharam os modelos de sociedade de con-sumo que conhecemos hoje e que, segundo Lipovetsky, desenvolveram-se naqui-lo a que o filósofo denominou fases, eras ou ciclos do capitalismo de consumo.

De acordo com Lipovetsky, a humanidade transcorreu três fases ou eras do consumo, encontrando-se atualmente na sociedade do hiper ou turboconsumo, caracterizadora da pós-modernidade.

A sociedade analisada por Lipovetsky é a avançada sociedade francesa con-temporânea. Em face disso, o presente estudo objetivou identificar em qual fase, das propostas por Lipovetsky, enquadra-se a sociedade de consumo brasileira, enfocando aspectos, tais como o desenvolvimento dos modelos capitalistas de produção, o impacto ambiental e o modo como esses modelos produtivos possi-bilitaram o nascimento da atual sociedade de hiperconsumo e dos ciclos ou fases do consumo capitalista. Utilizou-se como base a pesquisa realizada pelo instituto Ibope Inteligência, que realizou um minucioso levantamento acerca dos padrões de consumo dos brasileiros. Como contraponto, ao final, analisou-se, neste estu-do, a sociedade pós-moderna de Bauman com o escopo de tecer considerações acerca do homo consumericus produzido por essa pós-modernidade e para de-monstrar, ao final, os reflexos da sociedade de consumo de massa pós-moderna no indivíduo, no trabalho, nas relações sociais e no meio ambiente, na perspec-tiva de direitos humanos.

A abordagem metodológica adotada nesta pesquisa é a qualitativa dedu-tiva, tendo em vista que se elaborou uma análise da sociedade de consumo de massa de Lipovetsky e da sociedade pós-moderna (modernidade líquida) de Bauman para, ao final, enquadrar-se a sociedade brasileira em determinada fase capitalista de consumo, dentro das fases propostas por Lipovetsky, bem como nos padrões gerais da sociedade pós-moderna de consumo de massa.

O estudo se desenvolveu a partir de pesquisas bibliográficas e documentais, tendo como parâmetros livros nacionais e internacionais, artigos científicos e textos normativos nacionais e estrangeiros.

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1. A SOCIEDADE DE CONSUMO DE MASSA

O homem produzido pela modernidade – o homem do futuro – parece motivado por uma rebelião contra a existência humana, explorando tudo o quanto existe ao seu redor, esgotando os recursos naturais e preferindo viver com algo produzido por ele mesmo, numa verdadeira revolução contra todo o universo, como se a natureza existisse apenas para o servir.

Ruem os modos de socialização e de referenciais coletivos e despontam a precarização dos laços humanos e manifestações de hedonismo individualista e de consumo sensorial (apenas para a satisfação dos próprios sentidos) (LIPO-VETSKY, 2007).

As discussões em torno da economia de mercado, da sociedade de consu-mo de massa e do trabalhador-consumidor fabricado pelo modo de produção capitalista estão no epicentro dos debates acerca da crise ambiental de nosso tempo. Expressões como sociedade do hiperconsumo, sociedade da hipercone-xão, hedonismo, hiperindividualismo, mundo da inovação e do marketing sen-sorial, sensual e emocional estão diretamente ligadas ao incentivo ao consumo compulsivo, que sugestiona a humanidade a “comprar o que dá prazer”, à satis-fação imediata, e não apenas a adquirir aquilo de que se necessita (idem, 2007).

Não se trata mais da utilização econômica da natureza para libertar as pes-soas de sujeições tradicionais, mas também e sobretudo para libertar as pessoas de problemas decorrentes do próprio desenvolvimento técnico-científico. O processo de modernização que criou a economia de mercado e a sociedade de consumo torna-se reflexivo, convertendo-se a si mesmo em tema e problema (BECK, 2011).

Como paradoxalmente constatado em nossa contemporaneidade, as socie-dades estão cada vez mais ricas, porém um número crescente de pessoas vive na precariedade. Mas se engana quem critica a superficialidade do consumo apenas como uma futilidade produto da economia de mercado. O consumo é estudado e observado como um domínio capaz de proporcionar verdadeiras satisfações.

Os gostos pela facilidade, frivolidade, gastos desnecessários e jogos, ainda que encarados como necessidades inferiores, são inerentes ao desejo humano. A constatação aristotélica já prenunciava a espiral do hiperconsumo de nossa época: o homem feliz tem necessidade de gozar, sem dificuldade, de diferentes bens exteriores (LIPOVETSKY, 2007).

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Sociedade de consumo, sociedade de consumo de massa, sociedade de hi-perconsumo, pós-sociedade de consumo de massa, sociedade da pós-moder-nidade são expressões cunhadas ao longo dos processos permanentes de trans-formação do consumo e dos estilos de vida da humanidade, tendo como seu nascedouro e ponto em comum o sistema capitalista de produção - a hegemonia crescente da esfera mercantil -, que, gradualmente, alterou a fisionomia das so-ciedades e ampliou sua escala de poder entre as nações (idem, 2007).

Diante dessa crescente escala de consumo, questiona-se: Os protestos eco-logistas, os debates ambientais em torno da finitude dos recursos naturais basta-rão para fazer frente ao trem-bala consumista, à avalanche dos novos produtos com ciclo de vida cada vez mais curto, à obsolescência programada, à mercanti-lização da experiência e dos modos de vida?

2. SISTEMAS PRODUTIVOS CAPITALISTAS: O SURGIMENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO DE MASSA

A sociedade de consumo nasceu no século XIX, por volta dos anos de 1880, migrando de pequenos para grandes mercados com a elaboração de máquinas de fabricação contínua que permitiram a expansão da produção em larga escala e o consequente surgimento das sociedades de consumo de massa (LIPOVET-SKY, 2008).

Desenvolve-se, nesse período, o modelo taylorista-fordista de produção, prin-cipal responsável pela criação das sociedades de consumo de massa (LIPOVETSKY, 2007), pelo despontamento da pegada ambiental tão debatida em nosso tempo.

O advento da sociedade de consumo de massa está, portanto, indissocia-velmente ligado ao desenvolvimento dos principais sistemas de produção capi-talista, sendo eles o taylorismo, o fordismo e o toyotismo.

2.1 Taylorismo

Esse sistema produtivo foi criado pelo engenheiro mecânico americano Frederick Winslow Taylor, no início do século XX, e tinha como principal ob-jetivo dinamizar o trabalho na indústria, por meio da divisão do trabalho e da especialização do operário em uma só tarefa (CHIAVENATTO, 2003).

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Nesse sistema de organização racional do trabalho (ORT) o trabalhador desenvolvia uma única atividade, com o controle do tempo e da execução da tarefa e padronização de métodos e de máquinas, visando a alcançar um maior rendimento na produção (CHIAVENATTO, 2003).

A racionalização da prestação do trabalho e da produção foi fruto do tay-lorismo, com Taylor introduzindo a primeira tentativa de definir e estabelecer racionalmente cargos e tarefas.

2.2 Fordismo

Criado pelo empreendedor americano Henry Ford, fundador da Ford Mo-tor Company, entre 1905 e 1910, esse sistema produtivo desenvolveu a chamada linha de produção em série, aliando as técnicas de padronização e simplificação das tarefas de Taylor com a automatização da linha de montagem automobilís-tica, o que possibilitou o desenvolvimento do sistema de produção em massa.

O pensamento fordista inovou a organização do trabalho, introduzindo nas fábricas a produção de maior número de produtos acabados com a maior garantia de qualidade e pelo menor custo possível. Isso impactou sobremaneira no estilo de vida do homem mais do que muitas das maiores invenções da hu-manidade (CHIAVENATTO, 2003).

A racionalização do trabalho empreendida por Ford proporcionou a linha de montagem e a produção em série ou em massa, em que o produto, o maqui-nário, a matéria-prima, a mão de obra e o desenho do produto são padronizados (CHIAVENATTO, 2003), gerando a mecanização do trabalho e a forte estratifi-cação do trabalho nas fábricas.

O conjunto de mudanças no processo de trabalho introduzido por Ford – automatização, linha de montagem, produção em série e verticalização das fábricas – desencadeou a diminuição dos custos e o aumento da produção e, em consequência, novas formas de consumo em grande escala, sendo o que se convencionou chamar de taylorismo/fordismo o principal responsável pelo sur-gimento da sociedade de consumo de massa, por ter propiciado a criação das máquinas de fabricação contínua e a expansão da produção em larga escala para outros ramos da indústria.

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2.3 Toyotismo

Idealizado pelos empreendedores japoneses Sakichi Toyoda, Kichiro Toyo-da e Taiichi Ohno, o Sistema Toyota de Produção (TPS) é um modelo de produ-ção industrial baseado no modelo fordista, mas adaptado pela fábrica japonesa de veículos automotores ao pequeno mercado japonês.

A principal característica desse modelo produtivo é a flexibilização da pro-dução, em que a máquina produtiva e a estocagem de mercadorias obedecem à demanda do mercado de consumo, contrapondo-se, então, ao modelo fordista, que defende a produção em série e a acumulação dos estoques. Assim, somente o estoque especializado era fornecido ao setor exato do processo de produção que necessitasse dele (CHIAVENATTO, 2003).

No toyotismo a produção se adéqua ao mercado consumidor: quando a procura por uma determinada mercadoria é grande, a produção aumenta; quan-do a procura é menor, a produção diminui proporcionalmente. Ou seja, o toyo-tismo vinculou o setor de vendas diretamente às fábricas para que as programa-ções de manufatura correspondessem imediatamente aos pedidos do mercado consumidor (CHIAVENATTO, 2003).

As técnicas implementadas por esse modelo industrial ficaram conheci-das como just in time (JIT), cuja metodologia consiste na combinação entre os sistemas de fornecimento de matéria-prima, de produção e de venda, de forma a diminuir os custos com produção e estocagem de matéria-prima e de merca-dorias e, ao mesmo tempo, a agilizar a produção e a circulação dos bens. Essa técnica expandiu-se mundialmente para além da manufatura, abarcando o setor de serviços (CHIAVENATTO, 2003).

Essa nova perspectiva do sistema de produção just in time (JIT) foi cons-truída pela Toyota após viagem de seus representantes aos Estados Unidos, onde estudaram o modelo de produção de Henry Ford.

O toyotismo diverge do modelo de produção fordista também quanto ao modus operandi da prestação de serviços, pois o sistema de trabalho é flexibili-zado e, ao longo do processo produtivo, o trabalhador realiza diferentes funções (trabalhador multitarefa), diversamente do fordismo, onde o trabalho é mecâni-co e repetitivo.

Esses modelos de produção desenvolvidos pelo sistema econômico capi-talista cunharam os modelos de sociedade de consumo que conhecemos hoje e

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que, segundo Lipovetsky, desenvolveram-se naquilo a que o filósofo denominou fases, eras ou ciclos do capitalismo de consumo.

3. CICLOS DO CAPITALISMO DE CONSUMO

O primeiro ciclo de consumo de massa criado pelo capitalismo teve início nos idos de 1880 e se estendeu até a 2.ª Guerra Mundial. Nessa fase expandiram--se os grandes mercados nacionais, em substituição aos pequenos mercados lo-cais, em razão da exploração das máquinas de fabricação contínua e do aumento da produção em grande escala (LIPOVETSKY, 2007).

Os modelos de produção taylorista e fordista fomentaram o surgimento e a expansão da sociedade de consumo, democratizando o acesso aos bens mer-cantis (idem, 2007).

Na fase I foram desenvolvidos o marketing de massa, o consumidor mo-derno, os grandes magazines e uma infinidade de marcas célebres, algumas das quais conservaram uma posição de destaque até os dias atuais (idem, 2007). Vivia-se, então, a democratização do desejo. Os grandes magazines transforma-ram os bens antigamente reservados à elite em artigos de consumo de massa. Seu estilo monumental, com decorações luxuosas e vitrines de cor e luz, ma-ravilhava o freguês e criava um clima compulsivo e sensual propício à compra (idem, 2007). Estimulavam-se a necessidade de consumir e a excitação pelas novidades e pela moda, por meio de técnicas modernas de marketing, que apre-sentavam a compra como um prazer, como emblema da felicidade moderna. A fase I criou, desse modo, o consumo-sedução, o consumo-distração, dos quais somos herdeiros fieis (idem, 2007).

O segundo ciclo da sociedade de consumo de massa nasceu em 1950, no pós-Segunda Guerra, tendo sido construído ao longo de três décadas. Marcada por um excepcional crescimento econômico, pela elevação do nível de produ-tividade do trabalho e pela extensão da regulação fordista da economia, a Fase II identifica-se com o que se chamou de sociedade da abundância (idem, 2007). Surge o milagre do consumo com a extensão do papel de compra a vastas cama-das sociais, a difusão do crédito e o acesso das massas a bens antes associados às elites sociais (idem, 2007).

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Na fase II o modelo taylorista-fordista de produção, antes adstrito à indús-tria automobilística e a outros poucos ramos industriais, difunde-se na organi-zação da produção dos mercados. Como consequência da sua expansão para outros setores da economia, despontam a exploração das economias de escala, os métodos científicos de gestão e de organização do trabalho, a divisão intensiva das tarefas, o volume de vendas elevado, preços os mais baixos possíveis, mar-gem de ganho fraca e rotação rápida das mercadorias (LIPOVETSKY, 2007). Há uma excepcional alta da produção, em razão da especialização, da padronização, da repetitividade e da elevação dos volumes de produção (idem, 2007).

No 2.º ciclo edifica-se, propriamente falando, a sociedade de consumo de massa como projeto de sociedade e objetivo supremo das sociedades ocidentais. A sociedade da fase II – dita sociedade do desejo – substituiu a coerção pela se-dução, o dever pelo hedonismo, a poupança pelo dispêndio, a solenidade pelo hu-mor, o recalque pela liberação, as promessas do futuro pelo presente (idem, 2007).

Desenvolve-se a época hipertrófica, com a criação de necessidades artifi-ciais e esbanjamento organizado – o homem é contaminado pelo vírus da com-pra e inebriado pela paixão pelo novo, por um estilo de vida centrado nos valores materialistas (idem, 2007).

Encerrado o segundo ciclo no fim dos anos 1970, tem início o terceiro ato das economias de consumo no palco das sociedades desenvolvidas.3 A terceira fase do capitalismo de consumo é marcado pelo hiperconsumo, pelo hiperindi-vidualismo, pelo hedonismo, pelo consumo subjetivo e emocional.

As pessoas querem objetos “para viver” mais que para exibir. Compram menos isto ou aquilo para se pavonear, alardear uma posição social que para satisfações emocionais e corporais, sensoriais e estéticas, relacionais e sanitárias, lúdicas e distrativas (idem, 2007). O consumo para si suplantou o consumo para o outro. Dominam a sociedade, o império da mercadoria e o individualismo extremo (idem, 2007). O valor distrativo da mercadoria (valor de distração, do prazer individual que a compra pode nos proporcionar) superou o valor hono-rífico (o valor que distingue o consumidor socialmente, que o faz ter destaque

3 Importante o destaque de que o contexto de observação, estudo e desenvolvimento da teoria de Lipo-vetsky é a sociedade capitalista francesa, ou seja, uma sociedade econômica desenvolvida, cujos parâ-metros de consumo não guardam a exata correspondência com os padrões de consumo da sociedade de consumo brasileira, razão por que a abordagem em torno dos ciclos do capitalismo de consumo no Brasil serão adiante investigados, mas tomando como base a teoria de Gilles Lipovetsky.

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e ascensão social; valor decorrente da notabilidade de determinada marca no mercado, sua identidade econômica) (LIPOVETSKY, 2007).

Os hábitos de consumo à moda antiga tornavam visível a identidade eco-nômica e social das pessoas. Na fase III, entretanto, os atos de compra traduzem muito mais as diferenças de idade, os gostos particulares dos consumidores e a identidade cultural e singular de seus autores, ainda que os produtos não tenham o valor honorífico distinto da Fase I e ostentem características mais banalizadas (idem, 2007).

O marketing sensorial ou experimental da Fase III exorta o consumo emo-cional, o consumo sensorial. O que se expõe à venda não estampa mais a fria funcionalidade dos produtos das Fases I e II, mas evidencia uma atratividade sensível e emocional. É justamente nesse ponto que atua o marketing sensorial da Fase III: ele visa a melhorar as qualidades sensíveis, táteis, visuais, sonoras e olfativas dos produtos e dos locais de venda (idem, 2007).

A atuação da publicidade e do marketing deslocou o imperativo da imagem do produto do campo social para o individual. O modelo de consumo demons-trativo da fase II, do consumo, do esnobismo, do gosto de brilhar foi resgatado na Fase III sob um novo viés: o do neoindividualismo, que cria satisfações mais para si do que para admiração e estima alheias (idem, 2007).

Houve uma ressignificação dos fetichismos das marcas e do luxo para uma perspectiva individual. Já não é indigno gastar aqui e economizar ali, comprar ora em loja de grife ora em loja de departamento ou em hipermercado (idem, 2007). O homus consumericus do terceiro ciclo do capitalismo não se preocupa tanto com o reconhecimento social notabilizado pelas marcas superiores, mas sim com o pra-zer narcísico de sentir uma distância em relação à maioria (idem, 2007).

Há uma regressão da lógica da posição social e da imagem viril dos pro-dutos. O hiperconsumismo da Fase III é mais emocional que demonstrativo, mais sensitivo que ostensivo (idem, 2007). A “vontade de poder” do hipercon-sumidor denota o desejo de exercer uma dominação sobre o mundo e sobre si. Crescem as despesas ligadas aos sabores do lazer, da cultura e da comunicação. O capitalismo centra-se não mais na produção material, mas no divertimento e nas mercadorias culturais. Exorta-se o hedonismo (LIPOVETSKY, 2007). A ex-pansão do consumo hedonista, não despropositadamente, é objeto das múltiplas estratégias comerciais (idem, 2007). O consumo atrai por si mesmo, como papel de novidade e de animação em si. O apetite consumerista é uma maneira bem-sucedida

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de expurgar o cotidiano, de escapar da perpetuação do mesmo. Nasce na Fase III a febre pela mudança perpétua.

O ciclo 3 do capitalismo de consumo constitui-se de uma sociedade pós-for-dista de consumo, chamada de sociedade de hiperconsumo ou de turboconsumo, em que as satisfações pessoais, o prazer individual a todo custo (hiperindividua-lismo) dominam as formas de consumo do homem contemporâneo (compra--prazer), cada vez mais preocupado com o bem-estar próprio e com a própria felicidade, procurando resolver seus dilemas existenciais e seus conflitos pessoais por meio da impermanência perpétua da renovação da oferta (idem, 2007).

A era do turboconsumismo é a era da hipersegmentação dos mercados. O consumidor final desse ciclo tornou-se uma espécie de comandante do produto. A diversificação da produção procura acompanhar o diacronismo do consumo, adequando-se ao gosto do freguês (compra-prazer, compra hedônica), em con-traposição ao modelo fordista de produção em série, que implementou a com-pra-corveia4 (idem, 2007).

O imperativo categórico desse ciclo do desenvolvimento econômico é a criação de novos produtos, a exigência do hiperconsumidor pelo “sempre novo”. A impermanência perpétua domina os mercados. A era da economia da velo-cidade é a nova lei mercantil. A renovação extremamente rápida da oferta e as demandas de consumo cada vez mais instáveis e emocionais estão na origem da aceleração da obsolescência programada dos produtos em todos os setores da economia.

Esse é o universo traçado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky para expli-car as fases do capitalismo de consumo das nações desenvolvidas, sendo que a avançada sociedade francesa contemporânea se enquadra na terceira fase dessa Nova Economia de Mercado.

Diante de tais ilações, questiona-se: A sociedade de consumo de massa, no Brasil, enquadra-se em qual desses ciclos de consumo, atualmente? Podemos dizer que o hiperconsumismo, o hiperindividualismo, o hedonismo, a sociedade pós-fordista de consumo caracteriza o consumidor brasileiro contemporâneo, assim como a desenvolvida sociedade econômica francesa? Não estaríamos vi-vendo hoje no Brasil uma espécie de fase de transição entre os segundo e terceiro

4 Também chamada de compra-prática por Lipovetsky. É a compra em que o consumidor obtém o que lhe é oferecido pelo mercado para consumir.

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ciclos do capitalismo de consumo desenhado pelo filósofo francês, levando-se em consideração o padrão de consumo do homem médio brasileiro?

O Ibope Inteligência (2015), por meio da base de dados da Pysxis Consu-mo,5 divulgou, em 2012, um prognóstico sobre a economia brasileira. As pro-jeções indicavam que o consumo das famílias brasileiras iria crescer 13,5% em 2012, alta comparável ao desempenho de países com elevados indicativos de crescimento econômico, como a China. De acordo com o Ibope, até o final do ano de 2012, os gastos nacionais totalizariam R$ 1,3 trilhão, valor este equivalen-te à soma dos PIB’s da Argentina e da Suécia (IBOPE INTELIGÊNCIA, 2015).

A pesquisa apontou, na ocasião, um crescimento vertiginoso do uso de tec-nologias de ponta, como smartphones e televisões de tela fina. Constatou, ainda, que o país era o quarto maior mercado global de carros, o terceiro de cosméticos e de cerveja e que liderava com folga negócios tão diversos quanto produção de gravatas (resultado direto do então aumento da oferta de cargos executivos) e de achocolatados (com mais dinheiro, a classe C passou a ser um consumidor as-síduo de chocolate em pó e em caixinhas) (IBOPE INTELIGÊNCIA, 2015). De acordo com os dados levantados pelo Ibope Inteligência (2015), esse fenômeno foi alimentado pelo enriquecimento da população brasileira à época. Os brasilei-ros passaram a comprar mais e com qualidade.

A classe média, responsável por quase 80% do consumo das famílias, alte-rou consideravelmente seus hábitos de consumo na ocasião. Trocou carros com motor 1.0 por veículos mais potentes e robustos, o frango por carne nobre e o óleo de soja por azeite, isso somente para parametrizar a sofisticação do consu-mo dessa classe socioeconômica.

Os dados demonstraram que a revolução do consumo no Brasil estava criando em nossa sociedade hábitos de consumo próximos aos das nações ricas. O mapa do consumo no país, em 2012, era o retrato acabado dessa transformação (idem, 2015). O levantamento revelou, ainda, a predominância das forças econômicas de Sul e Sudeste sobre o consumo, embora o volume de vendas nacionais tenha então crescido em proporções maiores nas Regiões Norte e Nordeste (idem, 2015).

5 O Pyxis Consumo é uma ferramenta de dimensionamento de mercado do Ibope Inteligência. Trata-se de uma base de dados que apresenta o potencial de consumo (demanda) por família ou grupo de pro-dutos de todos os municípios brasileiros. Esta base permite ao usuário identificar diferenças entre os 21 setores disponibilizados, quatro classes socioeconômicas (A, B, C, D/E) e 50 grupos de produtos. V. <https://www.pyxisconsumo.com.br/> Acesso em 8/8/2017.

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Mas esses dados revelam o que foi o quadro desenhado pela sociedade de consumo brasileira até 2012. Em recente pesquisa realizada pelo Ibope Inteli-gência (2015),6 mais precisamente na segunda metade de 2015, após o desen-cadeamento das crises econômica e política no país, constatou-se que o padrão de consumo do brasileiro já não é mais o mesmo. Sentindo no bolso as conse-quências da crise econômica, 59% dos brasileiros disseram ter perdido poder de compra entre 2014/2015, o que representa 6 em cada 10 brasileiros (Idem, 2015).

O estudo demonstrou os ajustes que os brasileiros fizeram no consumo: 16% mudaram de residência para reduzir custos e 13% trocaram os filhos de escola privada para escola pública (idem, 2015).

Os habitantes das regiões Sul e Sudeste foram os que mais sentiram a perda no padrão de consumo: 65% nos dois casos. Em sequência aparecem as regiões Norte e Centro-Oeste, com 56%, e Nordeste, com 51%. E nada menos do que 83% dos brasileiros afirmaram se preocupar com a possibilidade de perder o padrão de vida que têm hoje (IBOPE INTELIGÊNCIA, 2015).

Ainda segundo o levantamento do Ibope Inteligência (2015), mais brasilei-ros ajustaram seus comportamentos consumeristas do que na crise de 2008/2009. 57% dos entrevistados alteraram hábitos de consumo ou planejamento financei-ro e outros 21% disseram que pretendiam alterar.

O estudo revela, também, que mais da metade dos entrevistados (53%) se endividou sem planejamento: 37% disseram ter se endividado para pagar despe-sas pessoais e 48% consideram difícil ou muito difícil pagar seus empréstimos e financiamentos com a renda atual. Do total de entrevistados, 60% disseram ter enfrentado dificuldades para pagar as contas ou compras a crédito (idem, 2015).

Quanto aos ajustes nos padrões de consumo, os dados levantados eviden-ciaram ainda que 90% das pessoas passaram a pesquisar mais os preços antes de comprar, 77% mudaram os locais de consumo, 74% reduziram as despesas da casa porque o dinheiro estava mais curto, 72% trocaram produtos por similares mais baratos e 63% adiaram a compra de produtos de bens de maior valor (idem, 2015).

Essas linhas gerais sobre a montanha russa dos padrões de consumo dos brasileiros foram propositalmente aqui delineadas para demonstrar, de forma despretensiosa, que a sociedade de consumo de massa brasileira ainda não pode ser totalmente enquadrada como uma sociedade de consumo do Terceiro Ciclo

6 Pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) em setem-bro/2015.

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da economia capitalista, que ostenta características próprias de consumidores médios das nações desenvolvidas.

Diante desse quadro descortinado pelo levantamento do Ibope Inteligên-cia, percebe-se que a sociedade brasileira de consumo de massa encontra-se (ou encontrava-se até antes da atual crise econômico-política) caminhando em tran-sição da segunda para a terceira fase do capitalismo de consumo concebido por Lipovetsky, isso se levar-se em consideração a classe socioeconômica que mais consome no Brasil: a classe média.

Embora uma fração da sociedade possa ser configurada dentro das carac-terísticas que compõem a sociedade do hipersonsumo ou do turboconsumismo em alguns aspectos – como o da hiperconexão, do hiperindividualismo e do imediatismo –, observa-se, da leitura atenta da análise levantada pelo instituto de pesquisa, que grande parte dos consumidores brasileiros anseia, mas não tem como manter, como sustentar financeiramente o acelerado e vertiginoso pata-mar de consumo de um hiperconsumidor, cuja principal característica é jus-tamente o apetite voraz pelas compras, a satisfação imediata, o prazer de curto prazo e a necessidade de constante impermanência dos produtos.

No contexto das aspirações de consumo, em que a sociedade vive uma constante perspectiva de troca, de mercadoria, de inovação, de conexão, de he-donismo, de individualismo, pode-se inferir que a sociedade de consumo de massa brasileira ostenta os mesmos interesses da sociedade de turboconsumo, porém, quando se extraem esses interesses do campo meramente abstrato e os traduzem em dados objetivos econômicos, denota-se o quão distante a socieda-de de consumo brasileira está de alcançar o padrão pleno de consumo de uma sociedade desenvolvida, que já atravessou integralmente cada ciclo do capitalis-mo de consumo aqui examinado.

4. DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE

O modernismo surgiu como um movimento com pretensão internaciona-lista e universalista definida. Utilizando-se de ideais iluministas, o movimento modernista procurou desmistificar e dessacralizar o conhecimento e a organiza-ção social para libertar os seres humanos de suas prisões.

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Como acentuado por Harvey (2008), o modernismo objetivou libertar o indivíduo das amarras do misticismo e do mundo ideal. O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa pró-pria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade, ser reveladas.

Em contrapartida, introduziu o modo de viver do homem numa modernida-de pesada, sólida, sistêmica, com tendência ao totalitarismo e inimiga da instabili-dade, da variedade e das condições idiossincráticas, como analisado por Bauman (2001), ao tecer considerações acerca da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt:

Essa modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da “teoria crítica” era im-

pregnada da tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária da homogenei-

dade compulsória, imposta e onipresente, estava constante e ameaçadoramente

no horizonte – como destino último, como uma bomba nunca inteiramente de-

sarmada ou um fantasma nunca inteiramente exorcizado. Essa modernidade era

inimiga jurada da contingência, da variedade, da ambiguidade, da instabilidade,

da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa a todas essas ‘anomalias’; e

esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais fossem as primeiras víti-

mas da cruzada. Entre os principais ícones dessa modernidade estavam a fábrica

fordista, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros e

predeterminados, destinados a serem obediente e mecanicamente seguidos, sem

envolver as faculdades mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa indi-

vidual; (...) (BAUMAN, 2001).

Em contraposição à visão de mundo universal, padronizada, estável e imu-tável do modernismo, o pós-modernismo veio em defesa das diferenças, da plu-ralidade, da heterogeneidade e da diversidade:

Geralmente percebido como positivista, tecnocêntrico e racionalista, o modernis-

mo universal tem sido identificado com a crença no progresso linear, nas verdades

absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padroniza-

ção do conhecimento e da produção. O pós-moderno, em contraste, privilegia ‘a

heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso

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cultural’. A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os

discursos universais ou (para usar um termo favorito) ‘totalizantes’ são o marco

do pensamento pós-moderno.

(....)

O pós-modernismo assinala a morte dessas ‘metanarrativas’, cuja função terrorista

secreta era fundamentar e legitimar a ilusão de uma história humana ‘universal’. Es-

tamos agora no processo de despertar do pesadelo da modernidade, com sua razão

manipuladora e seu fetiche da totalidade, para o pluralismo retornado do pós-mo-

derno, essa gama heterogênea de estilos de vida e jogos de linguagem que renunciou

ao impulso nostálgico de totalizar e legitimar a si mesmo... (HARVEY, 2008).

O homem pós-moderno trocou um quinhão de suas possbilidades de se-gurança por um quinhão de felicidade (BAUMAN, 1998). A liberdade da pro-cura do prazer e da individualidade domina o homem pós-moderno, que cada vez mais sacrifica sua segurança individual e despreza a perda de valores e de referências sociais.

Dentro dos atuais padrões de vida pós-modernos, (...) ninguém ficaria sur-preso ou intrigado pela evidente escassez de pessoas que se disporiam a ser revo-lucionários (...) (BAUMAN, 2001), pois o homem pós-moderno (hiperindivi-dualista) não possui a característica de indivíduo que se articularia para abrir mão de seus planos individuais em nome de um projeto para alterar a ordem da sociedade.

Harvey (2008, p. 18) questiona se a tão discutida pós-modernidade não seria apenas um retorno cíclico das teorias acadêmicas sem qualquer correspon-dência com o plano fático, com o mundo real:

Assim sendo, que é esse pós-modernismo de que muitos falam agora? Terá a vida

social se modificado tanto a partir do início dos anos 70 que possamos falar sem

errar que vivemos numa cultura pós-moderna, numa época pós-moderna? Ou

será simplesmente que as tendências da alta cultura deram, como é do seu feitio,

mais uma circunvolução e que as modas acadêmicas também mudaram sem um

único vestígio ou eco de correspondência na vida cotidiana dos cidadãos comuns?

Ante as discussões aqui levadas a efeito, é possível concluir que a sociedade atual vive um momento de supervalorização do consumo, da instantaneidade,

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das vaidades e da individualidade. Trata-se do mundo do transitório, da reno-vação constante. A transitoriedade da vida cotidiana dificulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica. Não há solidez, não há estabilidade, não há o fetiche da totalidade, não há a ilusão de uma história humana universal.

A nova era é a da pós-modernidade. Uma nova ordem de poder, baseada no consumo, na frivolidade, na superficialidade, na individualidade, domina as sociedades. A partir do momento em que as pessoas passam a sustentar suas vidas apenas tentando fazer algo em benefício próprio, por seu próprio prazer e individualidade, a superficialidade parece também triunfar nos demais segui-mentos da vida humana, como o trabalho, a escola e a política. A frivolidade, a superficialidade, a imediatidade, a impermanência, o hedonismo, a ausência de referenciais coletivos e o hiperindividualismo que caracterizam a sociedade de consumo de massa também cunham o modo de ser da sociedade pós-moderna, da sociedade líquida.

5. OS REFLEXOS DA PÓS-MODERNIDADE DA SOCIEDADE DE CONSUMO DE MASSA NO INDIVÍDUO, NO TRABALHO E NAS RELAÇÕES SOCIAIS

Como adiante observado, as regras da economia de mercado sofreram um impacto profundo com os novos padrões de consumo. A introdução da tecno-logia da informação alterou fundamentalmente os modelos econômicos, reper-cutindo na organização do trabalho e na forma como as pessoas se relacionam com os seus serviços.

O hiperconsumismo da Nova Economia difundiu o hábito da instantanei-dade, das trocas e dos resultados, com cada um querendo se comunicar e ser contatado a todo instante (hiperconexão), ver e comprar depressa, por toda par-te e a todo momento. A Nova Economia difundiu a cultura da impaciência e da satisfação imediata dos desejos (LIPOVETSKY, 2007).

Na era do turboconsumismo os trabalhadores são convidados a compor-tar-se com agilidade, a estarem abertos a operarem em curto prazo, a assumir riscos continuamente. Os impactos da Nova Economia se fizeram sentir tam-bém, e a toda evidência, no contexto ambiental, mormente porque a questão ambiental está ligada às necessidades elementares de sobrevivência do homem

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e aos direitos humanos. A crise ambiental do mundo moderno colocou no epi-centro dos debates mundiais os riscos de esgotamento dos recursos naturais e o risco em potencial de as gerações presentes não assegurarem às futuras gerações a conservação do bem ambiental.

Até Revolução Industrial, ante a falta de problemas agudos, havia um en-tendimento generalizado de que a natureza seria capaz de absorver materiais tóxicos lançados no ambiente e, por um mecanismo natural, o equilíbrio seria mantido automaticamente.

O crescente consumo geral, que se refletiu na crise ambiental de nosso tempo apontou ao homem o destino de um caminho sem volta: a necessidade de maior prudência nos estilos de desenvolvimento das nações e nos padrões de consumo das sociedades desenvolvidas. Somente na década de 1940, com a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o meio am-biente foi reconhecido como um direito fundamental, sendo a década de 1960 (o Pós-Segunda Guerra) o marco divisor de uma nova consciência dos proble-mas ambientais no âmbito internacional. A questão ambiental ganhou relevo e compeliu as nações ao debate acerca da degradação dos recursos ambientais, com destaque para a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo – 1972).

Esse breve escorço da questão ambiental no mundo tem por escopo contex-tualizar os riscos que os modelos produtivos e os padrões de consumo impuseram sobre todas as nações do globo. A riqueza daqueles que se beneficiam da explo-ração desmedida do recurso ambiental é concentrada, mas os riscos são ubíquos.

A sociedade turboconsumidora, produto do sistema capitalista de produ-ção, é a origem e a consequência do seu padrão de consumo; ressente-se dos efeitos de seu consumo desregrado em seu meio ambiente, em todos os aspectos: natural, artificial, do trabalho etc.

Os modos de organização da Nova Economia produziram também impli-cações diretas sobre o indivíduo, em particular sobre o seu caráter, sobre o aspec-to de longo prazo de sua experiência emocional.

A sociedade da Nova Economia Capitalista Flexível (a sociedade pós-mo-derna) é uma sociedade impaciente, que se concentra no imediato. Como uma sociedade que é impaciente e imediatista pode estabelecer para si valores dura-douros? Como compromissos e termos de fidelização podem ser sustentados em

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instituições que estão constantemente sendo fundidas, incorporadas ou cindidas ou tendo suas estruturas reconfiguradas? (SENNET, 2004)

A busca da flexibilidade no sistema produtivo criou novas estruturas de poder e de controle, ao invés de criar condições para nos deixar livres de novas formas de controle e submissão (SENNET, 2004). Nos novos mercados os com-promissos institucionais das empresas e dos consumidores estão cada vez mais escassos. Ora, por que você se comprometeria com uma instituição que não se compromete com você?

A modernidade líquida da sociedade de hiperconsumo carrega em si a in-dividualização do mundo e o derretimento dos parâmetros sociais, como tão bem colocado nas palavras do Sumo Pontífice da Igreja Católica, o Papa Francis-co: os desertos externos estão aumentando no mundo porque os desertos internos estão vastos.

Segundo o economista brasileiro Eduardo Gianetti (2017), dados da Uni-versidade de Cambridge demonstram o quão nociva a lógica do consumo exa-cerbado tem sido para a humanidade, especialmente para os menos favorecidos economicamente. Dos 7 bilhões de habitantes da Terra, 1 bilhão é responsável por produzir 50% dos gases que levam ao efeito estufa. Outros 3 bilhões pro-duzem 45% desses gases, enquanto os últimos 3 bilhões, sem acesso a bens de consumo, produzem 5% e sofrem todas as consequências, o que demonstra que a sociedade de consumo de massa é a mesma sociedade de risco oriunda da Revolução Industrial e, também, a mesma sociedade da escassez decorrente da exploração sem medidas dos recursos naturais.

Os dados sobre a emissão de gases do efeito estufa da Universidade de Cambridge (GIANETTI, 2017) denotam que os riscos produzem, dentro de seu raio de alcance e entre as pessoas por eles afetadas, um efeito equalizador.

A sociedade de risco produzida pela sociedade de consumo possui um ponto peculiar: o padrão distributivo dos riscos, que possuem uma tendência imanente à globalização. A sociedade de risco decorrente da industrialização e do consumo desordenado trouxe consequências políticas e sociais inteiramente diversas e em diferentes pontos do planeta. Países com ampla cobertura florestal e que sequer dispõem de muitas indústrias poluentes têm que pagar pela emis-são de poluentes de outros países altamente industrializados com a extinção de sua fauna e flora, desastres ambientais e propagação de doenças. Risco da pobre-

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za, risco da qualificação, riscos à saúde, riscos de desastres ambientais são todos riscos do desenvolvimento industrial e do crescimento exacerbado do consumo.

Os riscos da modernização emergem ao mesmo tempo vinculados espa-cialmente e desvinculados por um alcance universal. São incalculáveis e impre-visíveis os intricados caminhos de seu alcance global (BECK, 2010), sendo um exemplo evidente disso a poluição transfronteiriça, que atinge espaços territo-riais de dimensões incomensuráveis. A atração latente da vida de consumo tem objetivo certo e benefício manifesto e puramente utilitário: proporcionar o pra-zer, as frivolidades imediatas.

Bauman (2001, p. 90) assevera que a sociedade pós-moderna envolve seus membros primariamente em sua condição de consumidores, porque esse com-portamento é sempre baseado em desejos crescentes e quereres voláteis:

(...) a sociedade pós-moderna envolve seus membros primariamente em sua condição

de consumidores, e não de produtores. A diferença é fundamental.

A vida organizada em torno do papel de produtor tende a ser normativamente regu-

lada. Há um mínimo de que se precisa a fim de manter-se vivo e ser capaz de fazer

o que quer que o papel de produtor possa requerer, mas também um máximo com

que se pode sonhar, desejar e perseguir, contando com a aprovação social das am-

bições, sem medo de ser desprezado, rejeitado e posto na linha. O que passar acima

desse limite é luxo, e desejar o luxo é pecado. O principal cuidado, portanto, é com

a conformidade, manter-se seguramente entre a linha inferior e o limite superior –

manter-se no mesmo nível (tão alto ou baixo, conforme o caso) do vizinho.

A vida organizada em torno do consumo, por outro lado, deve se bastar sem nor-

mas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres volá-

teis – não mais por regulação normativa.

A sociedade contemporânea do hiperconsumo caracteriza-se, então, pela fluidez e fragilidade das relações sociais entre sujeitos e instituições, configuran-do aquilo a que Baumann (2001) se referiu como Modernidade Líquida. A vida social se tornou cada vez mais volátil: não há empregos fixos, não há comunida-des para se sentir seguro, ninguém mais é apoiado por nenhuma tradição, por nenhuma instituição.

A individualidade na Modernidade Líquida é constituída pelo imperativo do consumo, pela compra-hedônica, pela primazia do querer a todo momento,

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pela impermanência contínua. As identidades dos indivíduos são formadas e trocadas na mesma velocidade em que se trocam os aparelhos eletrônicos.

A pós-modernidade incutiu no indivíduo uma nova forma de dominação: a velocidade da informação. A possibilidade de controlar diversas ações, em lo-cais diferentes, sem se comprometer diretamente com nenhum deles domina o ideário dos atores sociais. O trabalho se tornou uma rede fluida de flexibilizações e de insegurança, pois se torna cada vez mais difícil aos trabalhadores estabe-lecerem uma relação de forças minimamente disputáveis com as vontades e os objetivos da economia de mercado.

A modernidade líquida que caracteriza a pós-modernidade diluiu toda a estrutura social montada em torno da relativa fixidez das sociedades modernas das fases I e II do capitalismo de consumo. As relações sociais dessa sociedade pós-moderna (sociedade do turboconsumo) tornaram-se voláteis, dissolvendo os parâmetros concretos de classificação social (BAUMANN, 2001). A indivi-dualização do mundo deixa o sujeito “livre”, em certos pontos, para ser o que conseguir ser mediante suas próprias forças. A liquidez, da modernidade líqui-da, refere-se justamente à inconstância e à incerteza que a falta de pontos de referência socialmente estabelecidos e generalizadores gera.

A era atual está passando de uma fase de grupos de referência predetermi-nados a uma outra fase de comparação universal, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual não está pronto e acabado, mas tendem a sofrer numerosas e profundas mudanças antes que atinjam seu único objetivo genuíno: o fim da vida do indivíduo (BAUMAN, 2001).

O “derretimento” dos parâmetros sociais modernos é obra das mesmas forças de desconstrução dos paradigmas das sociedades tradicionais anteriores às sociedades modernas. Não há, entretanto, uma reconstrução de parâmetros “sólidos”. Estes permanecem em sua forma fluida, podendo tomar a forma que as forças sociais e individuais, em momentos específicos, determinarem – é a liquidez do comportamento social (idem, 2001).

Dessa forma, temos o sujeito líquido – aquele indivíduo superficial, volá-til em que inúmeras identidades se manifestam em momentos diferentes, sem que haja parâmetros ou referenciais coletivos sólidos. A sociedade dá forma à individualidade de seus atores e estes formam a sociedade de acordo com suas dependências.

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A contínua modernização e a sede insaciável de destruição criativa ou de criatividade destrutiva em nome da produtividade e da competitividade, como explica Bauman (2001, p. 37), é o que distingue a sociedade pós-moderna:

A sociedade que entra no século XXI não é menos “moderna” que a que entrou

no século XX; o máximo que se pode dizer é que ela é moderna de um modo

diferente. O que a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o

que distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio

humano: a compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta mo-

dernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou

de criatividade destrutiva, se for o caso: de ‘limpar o lugar’ em nome de um ‘novo

e aperfeiçoado’ projeto; de ‘desmantelar’ ‘cortar’ ‘defasar’ ‘reunir’ ou ‘reduzir’ tudo

isso em nome da maior capacidade de fazer o mesmo no futuro - em nome da

produtividade ou da competitividade).

Nesse momento em que a sociedade passa a reverenciar padrões exacer-bados de consumo, de exploração do bem ambiental, de prazer individual em detrimento dos referenciais coletivos questiona-se se o homem pós-moderno não está a colocar suas preferências individuais, seus valores internos à frente dos interesses coletivos, sobrepujando as necessidades e direitos da maioria e daqueles que estão por vir. Seria a presente geração pós-moderna capaz de asse-gurar o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a sadia qualidade de vida das futuras gerações? Poder-se-ia falar em uma sociedade inclusiva, pautada na defesa dos direitos humanos, quando o parâmetro que se tem é o de uma so-ciedade pautada na individualidade de seus membros? A hiperindividualidade da sociedade turboconsumidora permite a construção de uma sociedade que harmoniza, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que o primeiro direito de todo indivíduo é o direito de ter direitos e o de que os direitos de um indivíduo convivem com direitos de outros indivíduos?

É justamente nesse sentido que os direitos humanos incidem e procuram equacionar esse mundo de conflitos entre os “vários direitos” dos indivíduos, para estabelecer parâmetros de análise baseados no respeito à dignidade e igualdade entre os homens e no reconhecimento de direitos voltados ao mínimo existencial.

Os direitos humanos, como na interpretação de filósofos da Antiguidade (século VIII e II a.C), devem estar baseados no amor e no respeito ao outro. A

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liberdade e autonomia individuais não podem prescindir do bem comum. Daí, a importância fundamental do Estado Democrático de Direito na garantia, simul-tânea, dos direitos individuais, da igualdade e da justiça social.

Aliás, não só o Estado como também a comunidade devem se ativar nas prestações necessárias ao alcance do bem-estar social fundado na igualdade, afas-tando a frivolidade e a hiperindividualidade da sociedade de consumo de massa.

CONCLUSÃO

Vive-se atualmente a era da sociedade pós-moderna, a sociedade do hiper-consumo, em que nossa existência está baseada cada vez mais numa perspectiva de troca, de mercadoria, de inovação, de conexão, de hedonismo, de individua-lismo, de impermanência, de fluidez.

Após a análise dos padrões de consumo dos brasileiros realizada neste estu-do, pôde-se perceber que a sociedade de consumo de massa brasileira ainda não pode ser totalmente enquadrada como uma sociedade de consumo do Terceiro Ciclo da economia capitalista, que ostenta características próprias de consumi-dores médios das nações desenvolvidas, como proposto por Lipovetsky.

Os dados levantados pela pesquisa do Ibope Inteligência (2015) demons-tram que a sociedade brasileira de consumo de massa encontra-se (ou encontra-va-se até antes da atual crise econômico-política) caminhando em transição da segunda para a terceira Fase do capitalismo de consumo concebido por Lipovet-sky, isso se levar-se em consideração a classe socioeconômica que mais consome no Brasil: a classe média.

Embora uma fração da sociedade possa ser configurada dentro das carac-terísticas que compõem a sociedade do hipersonsumo ou do turboconsumismo em alguns aspectos – como o da hiperconexão, do hiperindividualismo e do imediatismo –, observa-se, da leitura atenta da análise levantada pelo instituto de pesquisa, que grande parte dos consumidores brasileiros anseia, mas não tem como manter, como sustentar financeiramente o acelerado e vertiginoso pata-mar de consumo de um hiperconsumidor, cuja principal característica é jus-tamente o apetite voraz pelas compras, a satisfação imediata, o prazer de curto prazo e a necessidade de constante impermanência dos produtos.

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No contexto das aspirações de consumo, em que a sociedade vive uma constante perspectiva de troca, de mercadoria, de inovação, de conexão, de he-donismo, de individualismo, pode-se inferir que a sociedade de consumo de massa brasileira ostenta os mesmos interesses da sociedade de turboconsumo pós-moderna, porém, quando se extraem esses interesses do campo meramen-te abstrato e os traduzem em dados objetivos econômicos, denota-se o quão distante a sociedade de consumo brasileira está de alcançar o padrão pleno de consumo de uma sociedade desenvolvida, que já atravessou integralmente cada ciclo do capitalismo de consumo aqui examinado.

Por outro lado, em termos gerais, pode-se afirmar que a sociedade atual, mesmo a sociedade brasileira, vive um momento de supervalorização do consu-mo, da instantaneidade, das vaidades e da individualidade. Trata-se do mundo do transitório, da renovação constante. A transitoriedade da vida cotidiana di-ficulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica. Não há solidez, não há estabilidade, não há o fetiche da totalidade, não há a ilusão de uma his-tória humana universal, concepções então presentes no movimento modernista.

O homem pós-moderno trocou um quinhão de suas possbilidades de segu-rança por um quinhão de felicidade (BAUMAN, 1998). A liberdade da procura do prazer e da individualidade domina o homem pós-moderno das economias de mercado, que cada vez mais sacrifica sua segurança individual e despreza a perda de valores e de referências sociais.

Não se olvide que os impactos do sistema capitalista de produção se fizeram sentir também, e a toda evidência, no contexto ambiental, mormente porque a questão ambiental está ligada às necessidades elementares de sobrevivência do homem e aos direitos humanos. A crise ambiental do mundo moderno colocou no epicentro dos debates mundiais os riscos de esgotamento dos recursos natu-rais e o risco em potencial de as gerações presentes não assegurarem às futuras gerações a conservação do bem ambiental.

A sociedade de risco produzida pela sociedade de consumo possui um ponto peculiar: o padrão distributivo dos riscos, que possuem uma tendência imanente à globalização. A sociedade de risco decorrente da industrialização e do consumo desordenado trouxe consequências políticas e sociais inteiramente diversas e em diferentes pontos do planeta. Países com ampla cobertura florestal e que sequer dispõem de muitas indústrias poluentes têm que pagar pela emis-são de poluentes de outros países altamente industrializados com a extinção de

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sua fauna e flora, desastres ambientais e propagação de doenças. Os riscos da modernização emergem ao mesmo tempo vinculados espacialmente e desvin-culados por um alcance universal.

A vida social se tornou cada vez mais volátil: não há empregos fixos, não há comunidades para se sentir seguro, ninguém mais é apoiado por nenhuma tra-dição, por nenhuma instituição. O trabalho se tornou uma rede fluida de flexi-bilizações e de insegurança, pois se torna cada vez mais difícil aos trabalhadores estabelecerem uma relação de forças minimamente disputáveis com as vontades e os objetivos da economia de mercado.

A modernidade líquida que caracteriza a pós-modernidade diluiu toda a estrutura social montada em torno da relativa fixidez das sociedades modernas das Fases I e II do capitalismo de consumo. As relações sociais dessa sociedade pós-moderna (sociedade do turboconsumo) tornaram-se voláteis, dissolvendo os parâmetros concretos de classificação social (BAUMANN, 2001).

Nesse momento em que a sociedade passa a reverenciar padrões exacer-bados de consumo, de exploração do bem ambiental, de prazer individual, em detrimento dos referenciais coletivos, questiona-se se o homem pós-moderno não está a colocar suas preferências individuais, seus valores internos à frente dos interesses coletivos, sobrepujando as necessidades e direitos da maioria pre-sente e daqueles que estão por vir. Seria a presente geração pós-moderna capaz de assegurar o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a sadia qualidade de vida das futuras gerações? Poder-se-ia falar em uma sociedade inclusiva, pauta-da na defesa dos direitos humanos, quando o parâmetro que se tem é o de uma sociedade pautada na individualidade de seus membros? A hiperindividualida-de da sociedade turboconsumidora permite a construção de uma sociedade que harmoniza, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que o primeiro direito de todo indivíduo é o direito de ter direitos e o de que os direitos de um indivíduo convivem com direitos de outros indivíduos?

A constatação é clara e não poderia ser outra: a liberdade e autonomia indi-viduais não podem prescindir do bem comum. Daí, a importância fundamental do Estado Democrático de Direito e da presença da comunidade na garantia, simultânea, dos direitos individuais, da igualdade, da justiça social e das presta-ções necessárias ao alcance do bem-estar social de toda a coletividade.

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REFERÊNCIAS

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AGROTÓXICOS, ALIMENTOS TRANSGÊNICOS, INFORMAÇÃO E A SOCIEDADE DE RISCO NO CONTEXTO ATUAL

AGROCHEMICALS, TRANSGENIC FOODS, INFORMATION AND THE RISK SOCIETY IN THE CURRENT CONTEXT

Edmara de Abreu Leão1

Márcio Alexandre Silva2

Sumário: Introdução; 1. Da criação da maior fornecedora de sementes e químicos

agrícolas global; 2. Da sociedade de risco atual e o poder da informação; Conclu-

são; Referências.

RESUMO: O uso de agrotóxicos e o consumo de produtos geneticamen-te modificados vêm se intensificando sob a justificativa de atender a crescente demanda alimentar mundial. Verdadeiros monopólios globais surgem nos seto-res agrícolas e químicos que, não rara vezes, também possuem participação no mercado de medicamentos, colocando em risco a saúde da população, a biodi-versidade, a economia dos pequenos agricultores e a segurança alimentar global. Dentro dessa concepção de modelo econômico, surge o paradigma da sociedade de risco, caracterizada pelo consumo de ameaças resultantes de um processo de produção, representativas de novas oportunidades de mercado, com destaque para o poder de manipulação das informações científicas sobre tais riscos. Com base nessa perspectiva, o presente estudo foi desenvolvido a partir de uma aná-lise doutrinária e factual, adotando-se, como metodologia de pesquisa, a biblio-gráfica qualitativa e o método exploratório do tema proposto.

PALAVRAS-CHAVE: Agrotóxicos. Produtos geneticamente modificados. Fusão de empresas. Sociedade de risco. Poder da informação.

ABSTRACT: The use of agrochemicals and the consumption of genetically modified products have been intensifying under the justification of meeting the growing world food demand. True global monopolies arise in the agricultural

1 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Procuradora do município de Manaus.

2 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Servidor público. Advogado.

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and chemical sectors, which often also have a share in the drug market, puting the health of the population, biodiversity, the smallholder economy and global food security at risk. Within this conception of the economic model, the risk society paradigm emerges, characterized by the consumption of threats resul-ting from a production process, representative of new market opportunities, highlighting the power to manipulate scientific information about such risks. Based on this perspective, the present study was developed from a doctrinal and factual analysis, adopting, as a research methodology, the qualitative bibliogra-phy and the exploratory method of the proposed theme.

KEYWORDS: Pesticides. Genetically modified products. Mergers of com-panies. Society of risk. Power of information.

INTRODUÇÃO

Em 2016 foi anunciada a fusão da empresa americana Monsanto com a empresa alemã Bayer, duas gigantes dos setores agrícola e químico. Trata-se da criação da maior fornecedora de sementes e químicos agrícolas do mundo, res-ponsável pela produção de inúmeros transgênicos, agrotóxicos e medicamentos, que terá o controle de 30% da participação mundial.

Destacando-se como um importante mercado para o setor, o Brasil repre-senta cerca 20% da demanda mundial por sementes e defensivos agrícolas, sen-do as vendas lideradas pela empresa Monsanto.3

De acordo com as informações do relatório do Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações em Agrobiotecnologia de 2016 (ISAAA),4 o Brasil se tornou o segundo maior produtor de transgênicos do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos da América.

Desde 2008, o país ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de consu-mo de agrotóxicos. Enquanto nos últimos dez anos, o mercado mundial des-se setor cresceu 93%, no Brasil, esse crescimento foi de 190%, de acordo com dados divulgados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa e do

3 Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,monsanto-recebe-proposta-de--aquisicao-pela-alema-bayer,10000052230>. Acesso em 8/8/2017.

4 Disponível em: <https://www.isaaa.org/resources/publications/biotech_country_facts_and_trends/download/Facts%20and%20Trends%20-%20Brazil.pdf>. Acesso em 8/8/2017.

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Observatório da Indústria dos Agrotóxicos da Universidade Federal do Paraná (ANVISA; UFPR, 2012).

Tal situação reflete mundialmente, tendo em vista que a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)5 estimam que, até o ano de 2025, o Brasil se tornará o maior exportador de alimentos do mundo.

Inúmeros são os problemas de saúde relacionados com o uso de agrotóxicos, com destaque para o aumento do número de casos de cânceres, alergias respira-tórias, lesões hepáticas, arritmias cardíacas, doença de Parkinson, dermatites de contato, efeitos neurotóxicos retardados, alterações cromossomiais, dentre outras.

No que diz respeito aos alimentos transgênicos, não há consenso científico quanto aos seus efeitos nocivos à saúde da população, surgindo daí um verda-deiro sentimento de medo quanto ao seu consumo, que acaba sendo controlado com a manipulação das informações pelos agentes econômicos da iniciativa pri-vada. Os riscos com o uso de agrotóxicos e o consumo de alimentos transgênicos passam a ser globais, ameaçando a vida do planeta sob todas as suas formas.

Evidencia-se, então, o que Ulrich Beck (2010) denominou de sociedade de risco, como um mundo de dúvidas fabricadas, por meio de inovações tecnoló-gicas e respostas sociais mais aceleradas, produzindo um novo cenário de risco global, de incertezas não quantificáveis.

Na sociedade definida por Beck (2010):

A produção dos riscos domina a lógica da produção de bens, as situações de

ameaça passam a ser universais e inespecíficas e os riscos, produtos de série do

maquinário industrial do processo, são autofabricáveis e geram necessidades in-

teiramente novas, novos mercados.

Nesse contexto, a fusão das empresas Monsanto e Bayer passa a ter relevân-cia não apenas à economia brasileira, mas à sociedade global, principalmente, no que diz respeito à saúde e à segurança alimentar mundial.

Sob essa perspectiva, o presente artigo abordará as questões relacionadas à fusão das empresas multinacionais, ao aumento do uso dos agrotóxicos e do

5 OECDFAO Agricultural Outlook 20162025. Disponível em: <http://www.fao.org/3/a-i5778e.pdf> Acesso em 8/8/2017.

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consumo de produtos transgênicos no Brasil e os reflexos mundiais daí decor-rentes sob o enfoque da sociedade de risco atual e do poder da informação.

1. DA CRIAÇÃO DA MAIOR FORNECEDORA DE SEMENTES E QUÍMICOS AGRÍCOLAS GLOBAL

Em setembro de 2016 foi anunciada a compra da empresa americana Mon-santo pela empresa alemã Bayer por USS 66 bilhões,6 num acordo que represen-tou a criação de uma empresa que dominará mais de um quarto do mercado mundial combinado para sementes e pesticidas em uma rápida consolidação da indústria de insumos agrícolas.

De um lado, a empresa Monsanto, multinacional do ramo da agricultura e biotecnologia, fundada em 1901, cuja lema é “Produzir mais. Conservar mais. Melhorar vidas”.7

Com o objetivo de aumentar a produção de alimentos no mundo, a em-presa é a líder mundial na produção do herbicida glifosato, vendido sob a marca Roundup, agrotóxico largamente utilizado nas culturas mundiais de soja, milho, canola, alfafa, algodão e trigo.

O Roundup é conhecido como Agente Laranja, modificado e com nome diferente, herbicida/desfolhante, utilizado como arma química pelo exército dos EUA no Vietnã, causador de inúmeros problemas de saúde e deformidades físi-cas a soldados americanos e à população local até os dias atuais.

A empresa também esteve envolvida na produção de bombas atômicas. Entre 1943 e 1945, o Departamento de Investigação Central dos EUA, do qual a Monsanto fazia parte, coordenou esforços importantes de produção para o Projeto Manhattan,8 responsável pela criação das primeiras armas nucleares americanas.

Além disso, a empresa se destaca pela produção de alguns químicos con-troversos e altamente tóxicos como a sacarina; os bifenilos policlorados, comu-

6 Disponível em: <https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/internacional/2016/09/14/bayer-adquire-monsanto-apos-aumentar-oferta-para-us66-bi.htm?cmpid=copiaecola> Acesso em 8/8/2017.

7 Disponível em: <http://www.monsantoglobal.com/global/br/quem-somos/Pages/default.aspx> Acesso em 8/8/0217.

8 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_Manhattan#cite_note-206> Acesso em 8/8/2017.

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mente conhecidos como PCBs e atualmente banidos; o poliestireno; o insectici-da DDT; as dioxinas; os fertilizante a base de petróleo; o aspartame, o hormônio de crescimento bovino (rBGH) e os cultivos geneticamente modificados (OGM/GMO/GM).

Conforme estudos independentes,9 o uso dessas substâncias é associado ao aparecimento, principalmente, de cânceres, danos aos nervos, depressão, mal formação, infertilidade, destruição do sistema imunológico, tumores, funções orgânicas alteradas, mortes por intoxicação.

Os danos ambientais decorrentes da utilização dos referidos produtos são enormes. Com o Roundup, um dos responsáveis pelo desaparecimento das abe-lhas, as plantas envenenam e matam os insetos e mamíferos que as devoram, persistindo nelas inclusive depois do seu processamento até chegar ao consu-midor. E, com o vento e os insetos sobreviventes, ocorre o transporte dos agro-tóxicos e das mutações genéticas para a natureza selvagem, comprometendo o ecossistema global

Já o Poliestireno além de gerar resíduos difíceis de reciclar é fatal para a vida marinha, pois flutua na superfície do oceano e se decompõe em pequenas esferas que os animais comem. As tartarugas marinhas, por exemplo, perdem sua capacidade de mergulhar e morrem de fome.

A empresa também é responsável pela produção das sementes Terminator, desenvolvidas para produzir grãos estéreis incapazes de germinar, obrigando os agricultores todos os anos a comprar novas sementes da Monsanto, no lugar de guardar e reutilizar as sementes de suas colheitas, como fizeram durante séculos.

De outro lado, a empresa alemã Bayer, com atuação global nos setores de saúde, agronegócios e materiais inovadores, que sustenta ter como missão ajudar na melhoria da saúde das pessoas, dos animais e das plantas. Fundada em 1863, a empresa química e farmacêutica, que já chegou a comercializar heroína como remédio para tosse e depois, aspirina, fazia parte, na década de 30, da corporação alemã IG Farben, juntamente com a Basf, a Hoechst AG e outras empresas quí-micas e farmacêuticas. Com a contrapartida de apoio para sua expansão e o in-vestimento em uma tecnologia estratégica para suas empresas, o cartel doou 400 mil marcos para a campanha que ajudou a nomear Adolf Hitler chanceler, além de desenvolver uma borracha sintética, combustíveis de alta performance (utili-

9 Disponível em: <ww.abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/wp-content/uploads/2013/10/DossieAbras-co_2015_web.pdf> Acesso em 8/8/2017.

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zados pelas Forças Armadas), óleo combustível e ainda o famigerado Ziklon-B (gás utilizado nas câmaras de extermínio). Segundo a obra “IG Farben - From Anilin to Forced Labor”, as fábricas da corporação utilizava trabalhadores força-dos como cobaias em seus experimentos com novos medicamentos e vacinas.10

O portfólio de produtos da Bayer para a agricultura inclui 26 inseticidas, dois herbicidas e um fungicida, dentre eles se destacam: o Lactofem,11 herbicida utilizado na soja, considerado cancerígeno e proibido na União Europeia; Ti-ram,12 fungicida autorizado para uso em diversas culturas alimentícias, como arroz, feijão, milho, trigo, ervilha, cevada e amendoim, além de soja, pastagens e algodão, considerado mutagênico, que causa toxicidade reprodutiva e desregu-lação endócrina, tendo sido retirado do mercado nos EUA e os Neonicotinóides, proibidos na União Europeia e em diversos países13 por serem tóxicos às abelhas, de acordo com vários estudos.14 É com base em tal realidade que foi criada a maior empresa mundial de agrotóxicos e produtos transgênicos com a fusão das empresas Monsanto e Bayer em 2016.

Para o Brasil, considerado o segundo maior produtor de transgênicos do mundo (ISAAA, 2016), e ocupando primeiro lugar no ranking mundial de con-sumo de agrotóxicos (INCA, 2015), essa fusão representa um risco à segurança alimentar, aos produtores agrícolas, à economia nacional e à saúde da popula-ção. Em que pese uma das maiores promessas dos transgênicos ser a possível diminuição do uso dos defensivos, verifica-se que isso não aconteceu no Bra-sil. Ao contrário, segundo a Anvisa, em pesquisa realizada em 2012, o uso de agrotóxicos no país cresceu em 190% relacionado ao crescimento do plantio de transgênicos.

10 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Bayer> Acesso em 8/8/2017.11 Disponível em: <http://www.pesticideinfo.org/Detail_Chemical.jsp?Rec_Id=PC35974> Acesso em

8/8/2017.12 Disponível em: <http://www.pesticideinfo.org/Detail_Chemical.jsp?Rec_Id=PC34574#Regulatory>

Acesso em 8/8/2017.13 Disponível em: <https://www.ecodebate.com.br/2008/09/22/italia-proibe-agrotoxicos-neonicoti-

noides-associados-a-morte-de-abelhas/> Acesso em 8/8/2017.14 Disponível: https://www.forbes.com/forbes/welcome/?toURL=https://www.forbes.com/sites/

markgibbs/2012/04/26/bayer-pesticide-profits-or-bees/&refURL=https://pt.wikipedia.org/&refer-rer=https://pt.wikipedia.org/> Acesso em 8/8/2017.

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Dados da Consultoria Céleres,15 empresa especialista em análises de agro-negócio, apontam que, no Brasil, a utilização de sementes transgênicas chegará a 93,4% nas plantações de soja, algodão e milho. Isso significa que o país possuirá 49,1 milhões de hectares destinados a sementes geneticamente modificadas para estas culturas na safra 2016/2017.

A venda casada de sementes geneticamente modificadas com agrotóxicos, a exemplo da soja Roundup da Monsanto - que é produzida para aguentar cargas altas de glifosato sem morrer, enquanto tudo que é ser vivo no seu entorno, de alguma forma, fenece e se contamina - é cada vez mais incorporada à rotina da atividade agrícola brasileira.

Isso se dá, principalmente, porque 77% dos transgênicos cultivados atual-mente apresentam, como diferencial, a característica de serem resistentes a her-bicidas (agrotóxicos que matam plantas), ou seja, se antes o agricultor precisava utilizar o agrotóxico com cuidado, sob risco de danificar a própria lavoura, com os cultivos resistentes a herbicidas ele pode pulverizar o produto à vontade, que todas as plantas morrerão, salvo a cultura transgênica.16

Augusto,17 pesquisadora que foi membro titular da Comissão Nacional de Biossegurança no período de 2005-2006, concorda com Nodari (2007), e enfa-tiza que as plantas transgênicas resistentes aos herbicidas aumentam o grau de dependência dos agricultores aos agrotóxicos. A venda de sementes transgênicas é casada com a dos agrotóxicos, produzidos, em geral, pelas mesmas empresas.

A trajetória que levou à imbricação entre transgênicos e agrotóxicos é re-sultado do modelo tecnológico hegemônico que considera o agrotóxico o único caminho para aumentar a produtividade agrícola e alimentar a crescente popu-lação mundial, justificativa que a Monsanto e a Bayer argumentam para ampliar as safras por meio do uso combinado de agrotóxicos e produtos transgênicos. Todavia, já restou comprovado que os transgênicos desenvolvidos até hoje não foram produzidos para aumentar a produtividade das plantações. Além disso, o aumento do uso de agrotóxicos e dos cultivos transgênicos agravam a situação econômica do agricultor em razão da dependência gerada pela tecnologia im-posta para o desenvolvimento de tais culturas, do sistema de patentes das semen-

15 Disponível em: <http://www.celeres.com.br/3o-levantamento-de-adocao-da-biotecnologia-agricola--no-brasil-safra-201617/> Acesso em 8/8/2017.

16 Disponível em: <http://www.unicamp.br/fea/ortega/agenda21/candeia.htm> Acesso em 8/8/2017.17 Disponível em: <http://www.cvs.saude.sp.gov.br/zip/Dossie_Abrasco_02.pdf> Acesso em

8/8/2017.

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tes transgênicas, dos contratos de proibição de reutilização de sementes e dos altos preços impostos pelas empresas multinacionais pelo uso de tais insumos agrícolas, resultando na diminuição da sua renda.

Antes da mecanização da agricultura, toda a alimentação era baseada em sementes crioulas, tradicionais. Os agricultores detinham o controle sobre suas sementes e poderiam fazer melhorias, armazenar, vender, expor ou trocar livre-mente. Com a Revolução Verde,18 houve controle de mercado e escassez provo-cada por efeito de legislação, patenteamento ou alteração genética, com o agri-cultor passando a ter dependência de quem tem controle sobre as sementes.

A questão é transversal e afeta de grandes a pequenos produtores, além da soberania de produção dos próprios países. Antes, o Brasil tinha o controle de patenteamento de sementes, sendo soberano sobre sua própria produção. De-pois, essa produção passou a ter que contar com autorização e pagamento de direitos às empresas transnacionais, que têm controle de mercado sobre elas. Como a agricultura afeta a alimentação de toda a população brasileira, a perda da soberania prejudica o país como um todo, mas tem um efeito diferenciado sobre o pequeno produtor.

Hoje, na aquisição das sementes, o valor da propriedade intelectual já está incluído. Mas, na hora da compra, existe uma produtividade estimada: se o produtor produzir mais do que isso, ele paga royalties novamente. “E um grande produtor tem mais capacidade de absorver impactos como esse do que um pequeno”, afirma Dallagnol.19 Sobre a patente de sementes, Vandana Shi-va20 explica que:

São injustas e injustificáveis. Uma patente ou qualquer direito de propriedade in-

telectual é um monopólio garantido pela sociedade em troca de benefícios. Mas

18 O termo Revolução Verde surgiu na década de 1970. Pesquisadores do Primeiro Mundo prometiam, por meio de um conjunto de técnicas, aumentar estrondosamente as produtividades agrícolas e re-solver o problema da fome nos países em desenvolvimento. O modelo se baseia na intensiva utiliza-ção de sementes melhoradas, insumos industriais (fertilizantes e agrotóxicos), mecanização e mão de obra barata. Os efeitos perversos da Revolução Verde foram o aumento das despesas com o cultivo e o endividamento dos agricultores, o crescimento da dependência dos países, do mercado e da lu-cratividade das grandes empresas de insumos agrícolas, o agravamento da uniformidade e da erosão genética das espécies agrícolas e a expulsão dos agricultores do campo. Disponível em: <http://www.unicamp.br/fea/ortega/agenda21/candeia.htm> Acesso em 8/8/2017.

19 Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2016/09/01/transgenicos-ja-chegam-a-93-da-a-rea-plantada-com-soja-milho-e-algodao/> Acesso em 8/8/2017.

20 Disponível em: <http://outraspalavras.net/posts/vandana-shiva-e-a-batalha-das-sementes/> Aces-so em 8/8/2017.

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a sociedade não se beneficia de sementes tóxicas e não renováveis. Estamos per-

dendo biodiversidade e diversidade cultural, estamos perdendo nutrição, sabor

e qualidade em nossos alimentos. Sobretudo, estamos perdendo nossa liberdade

fundamental de decidir quais sementes plantaremos, como iremos cultivar nosso

alimento e o que iremos comer. De bem comum, as sementes transformaram-se

em commodities de empresas privadas de biotecnologia. Se elas não forem prote-

gidas e colocadas novamente nas mãos de nossos agricultores, corremos o risco de

perdê-las para sempre. Quando conservamos uma semente, também renovamos e

restauramos o conhecimento – o conhecimento da reprodução e da conservação,

o conhecimento do alimento e da agricultura. A uniformidade tem sido usada

como medida pseudocientífica para criar monopólios de propriedade intelectual

sobre sementes. Uma vez que uma empresa tem patente sobre sementes, ela em-

purra para os agricultores suas produções patenteadas para receber royalties. Hoje

estamos condenados a comer milho e soja geneticamente modificados de diferen-

tes formas. Quatro culturas principais – milho, soja, canola e algodão – têm sido

todas cultivadas às custas de outros cultivos, porque geram royalties por cada hec-

tare plantado. A Índia, por exemplo, cultivava 1.500 tipos diferentes de algodão, e

agora 95% são Algodão Bt, geneticamente modificado, pelo qual a Monsanto rece-

be royalties. Mais de 11 milhões de hectares de terra são empregados no cultivo de

algodão. Destes, 9,5 milhões são usados para cultivar a variedade Bt da Monsanto.

Logo, com o domínio da Monsanto no ramo de sementes junto à força da Bayer no segmento de químicos agrícolas, a fusão das referidas empresas é mais uma forma de subjugar o agricultor colocando em risco a sua atividade econô-mica. Aliado a tudo isso, há a intensificação dos riscos à saúde da população brasileira e mundial decorrente do aumento do uso de agrotóxicos e do cultivo de produtos transgênicos país.

Há, ainda, um reflexo direto no aumento do consumo de agrotóxicos e pro-dutos transgênicos no Brasil para a saúde mundial. Projeta-se que até 2025, o Brasil se tornará o maior exportador de alimentos do mundo.21 Nesse contexto,

21 Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e Organização para a Coopera-ção e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

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destaca-se que cada brasileiro consome em média 5,2 litros de veneno por ano, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca).22

Segundo o Dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos e, desses, de acordo com a Anvisa, 28% contêm substâncias não autorizadas. “Isso sem contar os alimentos processados, que são feitos a partir de grãos genetica-mente modificados e cheios dessas substâncias químicas”, diz Karen Friedrich, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). De acordo com ela, mais da metade dos agrotóxicos usados no Brasil hoje são banidos em países da União Europeia e nos Estados Unidos.23

De acordo com um levantamento da Anvisa,24 o pimentão é a hortaliça mais contaminada por agrotóxicos (segundo a Agência, 92% pimentões estudados esta-vam contaminados), seguido do morango (63%), pepino (57%), alface (54%), ce-noura (49%), abacaxi (32%), beterraba (32%) e mamão (30%). Há diversos estudos que apontam que alguma substâncias estão presentes, inclusive, no leite materno.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que, entre os países em desenvolvimento, os agrotóxicos causam, anualmente, 70.000 intoxicações agu-das e crônicas.25 O uso dessas substâncias está altamente associado à incidência de doenças como o câncer e diversos outros problemas de saúde.

Em 2014, a pesquisadora norte-americana Stephanie Seneff, da área de computação do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT (Instituto de Tec-nologia de Massachusetts), apresentou um estudo anunciando mais um dado alarmante: “Até 2025, uma a cada duas crianças nascerá autista”, disse ela, que fez uma correlação entre o Roundup, o herbicida da Monsanto feito a base do glifosato e o estímulo do surgimento de casos de autismo.26 De acordo com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea),27 o uso de

22 Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/02/130207_transgenicos_segu-ranca_tp.shtml> Acesso em 8/8/2017.

23 Disponível em: <https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2015/03/Dossie_Abras-co_02.pdf> Acesso em 8/8/2017.

24 Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/documents/111215/0/Relat%C3%B3rio+PA-RA+2013-2015_VERS%C3%83O-FINAL.pdf/494cd7c5-5408-4e6a-b0e5-5098cbf759f8> Acesso em 8/8/2017.

25 Disponível em: <http://www.ccst.inpe.br/brasil-lider-mundial-no-uso-de-agrotoxicos/> Acesso em 8/8/2017.

26 Disponível em: <hemindunleashed.com/2014/10/mit-researchers-new-warning-todays-rate-half-u--s-children-will-autistic-2025.html> Acesso em 8/8/2017.

27 Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/consea/acesso-a-informacao/institucional/concei-tos> Acesso em 8/8/2017.

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agrotóxicos é uma das mais graves e persistentes violações do direito humano à alimentação adequada no Brasil porque impede o acesso da população a alimen-tos livres de veneno e saudáveis.

Quanto ao consumo de produtos transgênicos, ainda existe muita contro-vérsia em relação aos possíveis danos à saúde, ao meio ambiente e à soberania alimentar da população. Enquanto instituições, como a Academia Nacional de Ciência dos Estados Unidos, divulgam que os alimentos transgênicos não cau-sam riscos à saúde, estudos que seguem diferentes metodologias dizem o con-trário. Ainda que não haja consenso científico quanto aos seus riscos, a opinião pública em relação aos efeitos negativos dos transgênicos vem diminuindo, em contrapartida ao consumo dos produtos transgênicos que se intensifica.

2. DA SOCIEDADE DE RISCO ATUAL E O PODER DA INFORMAÇÃO

É com base em tal realidade, de ameaça à saúde na alimentação, que se reflete a ideia de sociedade de risco trazida por Ulrich Beck, em sua obra de mesmo título, lançada em 1986, mas só publicada no Brasil em 2010. Ao lado do sociólogo inglês Anthony Giddens, Beck desenvolveu a noção de sociedade de risco. Segundo ele, vivemos um momento de transformação da sociedade industrial clássica, caracterizada pela produção e a distribuição de riquezas, em uma chamada sociedade industrial de risco, na qual a produção dos riscos passa a ser um resultado do processo de produção.

Ao mesmo tempo em que permitiu e propiciou inúmeras conquistas na in-dústria, ciência e tecnologia, a sociedade de risco trouxe consigo uma bagagem de situações que ameaçam, inclusive, provocar o extermínio da vida humana e da natureza no planeta (BECK, 2010, p. 16). Assim, a produção social de riqueza passa a ser acompanhada pela produção social de riscos, sendo a distribuição da riqueza e a distribuição da sociedade de risco ligadas à redução da autêntica ca-rência material e ao crescimento das forças produtivas, que desencadeiam riscos desconhecidos.

Antes, o paradigma da sociedade era a luta de classes e como resolver a de-sigualdade social. Hoje, o paradigma da sociedade de risco se traduz em “como é possível que as ameaças e riscos sistematicamente produzidos no processo de modernização sejam distribuídos de modo que não comprometam o processo

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de modernização e nem as fronteiras do que é (ecológico medicinal, psicológica ou socialmente) aceitável?”

Para o primeiro paradigma, o processo de modernização tinha a pretensão de diminuir as desigualdades sociais com a distribuição da riqueza socialmente produzida. Já para o segundo, o processo de modernização, além de distribuir ri-queza, provoca a distribuição de riscos, pois, cada vez mais, as forças destrutivas acabam sendo desencadeadas.

Dentro dessa nova concepção produtiva, os riscos seriam mais democráti-cos e globalizados. Sendo assim, ninguém, nem pobres, nem ricos, estaria total-mente imune às ameaças produzidas e agravadas pelo progresso. Embora admita que muitos riscos possam ainda ser distribuídos conforme a classe social, Beck não concebe mais as ameaças como situações de classe. Para o autor:

Com a ampliação dos riscos da modernidade relativizam-se as diferenças e as

fronteiras sociais. As sociedades de risco deixam de ser sociedades de classes com

os riscos imperceptíveis prevalecendo sobre todas as sociedades de classes. Sofrer

ou não com os impactos dos riscos da modernidade não polariza com o ter ou

não propriedade.

Os riscos passama a ser produzidos no estágio mais avançado do desenvolvimen-

to das forças produtivas e acabam, cedo ou tarde, alcançando aqueles que os pro-

duziram ou que lucraram com ele. É o chamado efeito bumerangue, que implode

o sistema de classes, ameaçando a saúde, a propriedade e o lucro, como é o caso

do aumento do uso de agrotóxicos no mundo.

Observa-se que a expansão dos riscos não rompe com a lógica capitalista de desen-

volvimento, mas a eleva a um novo estágio. Os riscos da modernidade produzem

necessidades insaciáveis. Assim, a sociedade industrial produz as situações de amea-

ça e o potencial político da sociedade de risco.

Passam a existir novas desigualdades internacionais. Mesmo com a equalização

dos riscos, as desigualdades sociais são intensificadas, tendo em vista que as situa-

ções de classes se sobrepõem as situações de risco (BECK, 2010, p. 17-18).

É o que se verifica no caso das transferências das indústrias de risco para os países com mão de obra barata. Passa a existir uma correlação entre a pobreza extrema e riscos extremos, como se verificou na Vila Parisi, em Cubatão, Brasil,

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conhecida como “Vila da Morte”28 e em Bhopal, na Índia, onde ocorreu uma explosão em indústria pesticida.29

Entretanto, a pauperização do risco no Terceiro Mundo é contagiosa para os ricos. O efeito bumerangue também acaba por afetar os países ricos, que jus-tamente se haviam livrado dos riscos por meio da transferência, mas que aca-bam reimportando-os juntamente com os alimentos baratos. Assim, os riscos são globais, afetando toda a humanidade, inclusive grupos que são mais bem e ativamente informados.

Tal característica marcante da sociedade de risco descrita por Ulrich Beck é verificada quando se comparam os diferentes resultados das pesquisas científi-cas relacionadas aos efeitos negativos à saúde provocados pelo uso de agrotóxi-cos e produtos geneticamente modificados.

Como os riscos passam a representar oportunidades de mercado e afetam a todos, a consciência sobre eles adquire uma nova relevância política e econômi-ca, com a ciência assumindo um papel central na produção dessa nova “moeda” por meio da disseminação do conhecimento sobre os riscos.

Nas palavras de Beck (2010, p. 368):

A sociedade de risco é também a sociedade da ciência, da mídia e da informação.

Nela, escancaram-se assim novas oposições entre aqueles que produzem defini-

ções de risco e aqueles que as consomem. O conhecimento se converteria, en-

tão, na mais importante manufatura intelectual da modernidade e a difusão num

mecanismo fundamental para manutenção do poder desse saber convertido-em-

-produto.

Beck reflete, ainda, a respeito do papel assumido pela ciência na produção do conhecimento acerca dos riscos, criticando o determinismo da racionalidade científica sobre a sociedade na produção de verdades, em sua obra Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Para o sociólogo:

28 Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/cubatao/ch014e.htm> Acesso em 8/8/2017.29 Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/38973/India+30+a-

nos+apos+vazamento+de+gas+toxico+filhos+e+netos+de+vitimas+ainda+sofrem+efeitos+de+-desastre+de+bhopal.shtml> Acesso em 8/8/2017.

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A cientifização leva a indistinções marcantes entre ciência e política, atravessando

todas as esferas da vida social e a especializabilidade produz um caráter delimi-

tável e monopolizável do conhecimento científico e da ação política, através das

instituições que compõem o sistema científico e político.

Com a sociedade de risco, irrompe uma era especulativa de percepção do pensa-

mento cotidiano. Ninguém é capaz de conhecer os riscos, enquanto isso significar

tê-los experimentados. Deixam de ser ameaças e passam a ser aqueles que as reve-

lam os que provocam a inquietação generalizada (BECK 1997, p. 263).

Foi com o livro Primavera Silenciosa, de Rachel Carson,30 resultado de um extenso trabalho científico sobre o uso indiscriminado do pesticida DDT nos campos americanos, que surgiram diversos estudos sobre aos impactos do lan-çamento de agrotóxicos na natureza. A partir daí, diversas pesquisas comprova-ram os problemas causados a saúde humana decorrentes do uso de agrotóxicos e dos produtos transgênicos. Na contramão dessas informações, os agentes econô-micos utilizam-se das retóricas da ocultação, da justificação e da desqualificação para justificar o uso desses produtos.

Peterson (2015, p. 27-36)31 destaca que a retórica da ocultação encontra guarida nas instituições científicas que, com suas abordagens positivistas e redu-cionistas, são apresentadas à opinião pública como neutras e, portanto, imunes a subjetivismos ideológicos. Essa blindagem epistemológica se traduz nas no-ções de uso seguro ou uso racional dos agrotóxicos, limite máximo de resíduos (LMR) ou de ingestão diária aceitável (IDA) e limites de tolerância, havendo um distanciamento entre a ética e a prática científica.

Todavia, na distribuição desses poluentes, não se leva em conta o impac-to ambiental da indústria e a destruição da natureza, nem seus diversos efeitos sobre a saúde e a convivência das pessoas, o que acontece, originalmente, nas sociedades altamente desenvolvidas. Desconsidera-se o fato de que as mesmas substâncias tóxicas podem ter um significado distinto para pessoas distintas, conforme a idade, o sexo, o tipo de trabalho etc.

30 Carson trouxe prestígio ao conceito de ecologia, influenciando várias gerações. Foi além de denunciar os efeitos do DDT, escrevendo sobre o direito moral de cada cidadão saber o que estava sendo lançado de forma irresponsável na natureza pela indústria química. E foi mais além, despertou a consciência ambiental de uma nação para reagir e exigir explicações e soluções.

31 Disponível em: <http://www.abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/wp-content/uploads/2013/10/Dos-sieAbrasco_2015_web.pdf> Acesso em 8/8/2017.

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Já para a retórica da justificação, o risco é um efeito colateral latente do progresso, uma espécie de licença, um destino natural civilizatório. Assim, pela imposição da racionalidade tecnocrática sobre a opinião pública, toda técnica destinada a solucionar o desafio alimentar no mundo é moralmente justificável e, portanto, deve ser aplicada, consagrando a tese do mal necessário, pela qual os efeitos negativos dos agrotóxicos são uma necessidade social inevitável.

Pela retórica da desqualificação procura-se deslegitimar os adversários portadores de proposições e críticas de interesse público, por meio de reações específicas a denúncias e/ou resultados inconvenientes de pesquisas relaciona-das aos efeitos dos venenos agrícolas, obrigando os defensores dos agrotóxicos ao embate frontal com seus oponentes. Embora seja formulada como reação a críticas específicas, a narrativa da desqualificação adota uma linha de argumen-tação genérica, justamente buscando atribuir aos críticos uma postura ideológi-ca reacionária, apontando-os como supostamente avessos ao progresso técnico, econômico e social.

Ainda, o poder corporativo possui extensas redes de autodefesa que se ra-mificam em instituições científicas e políticas a fim de se prevenir de desviantes indesejáveis. Assim, essas redes premiam as pesquisas comprometidas com os seus interesses. É o que se verifica quando analisado o relatório Genetically Engi-neered Crops: Experiences and Prospects,32 da Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos, órgão que recebe recursos finan-ceiros das empresas de indústrias agrícolas e biotecnológicas,33 e afirmou que os transgênicos são seguros para a alimentação e que não possuem impactos ambientais negativos, além de propiciarem a redução no uso de pesticidas.

Além disso, as principais academias de ciências do mundo e instituições, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), são unânimes em dizer que os transgênicos são seguros e que a tecnologia de manipulação genética realizada sob o controle dos atuais protocolos de segurança não representa risco maior do que técnicas agrícolas convencionais de cruzamento de plantas.34

32 Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28230933> Acesso em: 8/8/2017.33 Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/555538-transgenicos-mais-uma-trapaca> Acesso em

8/8/2017.34 Disponível em: <www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/02/130207_transgenicos_seguranca_

tp> Acesso em 8/8/2017.

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Souza Silva (2014) analisa o fato como “o quadro de institucionalização da mentira, no qual a mentira premiada se converte em verdade legitimada, passan-do a mentira a funcionar como filosofia de negociação pública.”

Como se vê, com o potencial de ameaça das forças produtivas, a margem de manobra das pesquisas científicas torna-se cada vez mais evidente e a consciên-cia dos riscos passa a representar uma luta entre pretensões de racionalidades científica e social concorrentes.

CONCLUSÃO

Sob o paradigma da sociedade de risco, verificado no modelo econômico vigente, os riscos são passageiros clandestinos do consumo normal e se caracte-rizam como novas oportunidades de mercado.

Estão no centro das atenções ameaças que, com frequência, não são visíveis e nem perceptíveis e que, possivelmente, sequer produzirão efeitos durante a vida dos afetados e sim na vida de seus descendentes, como é caso do aumento do uso de agrotóxicos e produtos geneticamente modificados, que será intensifi-cado com fusão das empresas transnacionais Monsanto e Bayer.

Além de representarem risco à saúde da população mundial, essas situa-ções de perigo, que não respeitam qualquer diferença ou fronteira social e nacio-nal, impactam na biodiversidade e na economia dos pequenos agricultores, que são a base da segurança alimentar global.

Para a superação do risco, faz-se necessário cada vez mais uma efetiva atuação dos entes públicos em busca da legítima defesa social diante do perigo, reforçada por pesquisas científicas que, de maneira minimamente séria, sejam capazes de identificar os riscos a que a humanidade está submetida.

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DIREITO ALTERNATIVO OU USO ALTERNATIVO DO DIREITO EM DIÁLOGO COM O DIREITO AMBIENTAL

ALTERNATIVE LAW OR ALTERNATIVE USE OF THE LAW IN DIALOGUE WITH ENVIRONMENTAL LAW

Fernando Figueiredo Prestes1

Sumário: Introdução; 1. Contextualização do Movimento do Direito Alternati-

vo; 2. Dimensão Constitucional do Meio Ambiente; 3. O Meio Ambiente Direito

Fundamental de Terceira Geração; Conclusão; Referências.

RESUMO: O objetivo desta pesquisa é o estudo sobre o Direito Alternativo ou o uso alternativo do direito em diálogo com o Direito Ambiental. O Direito Alternativo ou uso alternativo do direito foi um movimento de Juristas e Profes-sores Universitários com objetivos comuns que se organizaram no Brasil para produzir uma nova forma de ver, praticar e ler o Direito, partindo da crítica radical, que merece ser analisado com enfoque sobre o meio ambiente como direito fundamental de terceira geração. A conclusão que se chegou aponta para a importância deste movimento, dos processos de hermenêutica Constitucional e análise sociológica das normas do Direito Ambiental pelo viés do Direito Al-ternativo. A metodologia utilizada na pesquisa foi o método dedutivo e, quanto aos meios a pesquisa foi bibliográfica e quantos aos fins, qualitativa.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Alternativo. Direito Ambiental. Hermenêu-tica. Sociologia.

ABSTRACT: The objective of this research is the study on Alternative Law or the alternative use of law in dialogue with Environmental Law. The Alterna-tive Right or alternative use of law was a movement of University Lawyers and Teachers with common objectives that were organized in Brazil to produce a new way of seeing, practicing and reading the Law, starting from the radical criticism, that deserves to be analyzed with focus on the environment as a fundamental right of third generation. The conclusion reached points to the importance of this movement, the processes of Constitutional hermeneutics and sociological

1 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Defensor público do Esta-do do Amazonas.

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analysis of the norms of Environmental Law by the bias of alternative law. The methodology used in the research was the deductive method and, in terms of the means, the research was bibliographical and as to the purposes, qualitative.

KEYWORDS: Alternative Law. Environmental Law. Hermeneutics. Sociology.

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como tema o Direito Alternativo ou o uso alternativo do direito em diálogo com o Direito Ambiental. A palavra Alternativo, segundo Houaiss (2001, p. 97), deve ser entendido pelo radical da palavra alternativo: Al-ter = outro. Assim, alternativo será o direito quando não identificado, analisando por uma perspectiva crítica, distante da teoria clássica, pois busca se desviar em relação ao conteúdo da legislação estatal pela aplicação da responsabilidade so-cial sem ser anarquista.

O Direito Alternativo ou uso Alternativo do direito é um movimento de juristas, ou seja, um grupo de pessoas com certos objetivos comuns que se orga-nizaram, no Brasil, para produzir uma nova forma de ver, praticar e ler o Direito partindo da crítica radical.

O Direito Alternativo pode ser entendido como alternativa na busca por mais justiça, pois as leis não são conhecidas em sua essência por todos, elas são fabricadas e aplicadas, segundo este movimento, para atenderem um pequeno grupo de aristocratas que titulariam de uma certa forma os poderes estatais.

O movimento do Direito Alternativo brasileiro tem sua gênesis no movi-mento italiano e espanhol do “uso alternativo do Direito”, entre as décadas de 1960 e 1970. No Brasil foi na década de 1980 que o Direito Alternativo se es-truturou como movimento crítico radical e cresceu junto com os movimentos sociais de então, na busca por direitos como efetivo acesso à justiça com, por exemplo: a pastoral da terra, a democracia cristã, a assistência jurídica, a educa-ção para todos, entre outros.

O objetivo desta pesquisa é o estudo do Direito Alternativo especificamen-te em diálogo com o Direito Ambiental e, consequentemente, assegurar a efetiva preservação ambiental. A justifica para essa pesquisa encontra razão no fato de se buscar uma alternativa dentro do ordenamento Jurídico Brasileiro para a pre-

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servação dos recursos naturais e manutenção da biodiversidade sem aniquilar o direito positivado.

Ao final da presente exposição, faremos uma breve passagem a respeito da teoria geral dos direitos fundamentais, com foco nas gerações ou dimensões do direito e sua possível influência interpretativa nas normas ambientais. A meto-dologia utilizada na pesquisa foi o método dedutivo e, quanto aos meios a pes-quisa foi bibliográfica e quantos aos fins, qualitativa.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO MOVIMENTO DO DIREITO ALTERNATIVO

O Direito Alternativo no Brasil, no início, era formado apenas juizes de Direito no Estado do Rio Grande do Sul, que discutiam nas faculdades as doutri-nas do Movimento Alternativista, sendo que aos poucos o movimento foi cres-cendo e ganhando adeptos entre os advogados, defensores públicos, promotores de justiça, professores, estudantes, procuradores, ou seja, todos os profissionais vinculados à Ciência Jurídica. Com o passar do tempo, foi criado um grupo de estudos, organizado por magistrados gaúchos, tanto da justiça comum como da trabalhistas, liderados pelo ex-desembargador do Tribunal de Justica do Estado do Rio Grande do Sul Amilton Bueno de Carvalho.

Naquele contexto, e ao mesmo tempo, alguns juristas não magistrados, como Edmundo Lima de Arruda Júnior, Antônio Carlos Wolkmer, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Clemerson Merlin Cleve, entre outros, influencia-dos pelo movimento italiano “uso alternativo do Direito” já falavam da possibi-lidade de criação de um Direito Alternativo.

O crescimento do movimento foi vertiginoso, alastrando-se por todo o Brasil, América Latina e parte da Europa, tornando-se objeto de inúmeros gru-pos de estudos, artigos científicos, livros, seminários, monografias de conclusão de curso, dissertações e teses, sendo, inclusive, disciplina curricular em algumas faculdades de direito e escolas da magistratura.

Paralelamente a essa efervescência do Direito Alternativo do Brasil, as questões relacionadas ao meio ambiente e a questão fundiária, começavam a ganhar visibilidade crítica, pois fenômenos climáticos extremos começavam a

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ocorrer com mais frequência, despertando o interresse crítico no meio académi-co e na sociedade civil.

O episódio histórico responsável pelo surgimento do movimento Direito Alternativo ocorreu no dia 25 de outubro de 1990, quando um importante jornal denominado Jornal da Tarde, de São Paulo, com a manchete “JUÍZES GAÚ-CHOS COLOCAM DIREITO ACIMA DA LEI”, a reportagem buscava desmo-ralizar o grupo de estudos e, em especial, o magistrado Amílton Bueno de Car-valho. Ao contrário do esperado, o artigo acabou dando início ao movimento no mês de outubro de 1990, com a realização do Primeiro Encontro Internacional de Direito Alternativo, realizado na cidade de Florianópolis, Estado de Santa Catarina, com ciclo de palestras, lançamentos de livros e intensas discussões aca-dêmicas, conforme Carvalho (1997, p. 17).

O movimento não possui uma ideologia, mas pontos teóricos comuns en-tre seus membros, tendo como características a não aceitação do sistema capita-lista como modelo econômico, o combate ao liberalismo burguês como sistema sociopolítico, o combate irrestrito à miséria da grande parte da população bra-sileira e luta por democracia, entendida como a concretização das liberdades individuais e materialização de igualdade de oportunidades e condição mínima e digna de vida a todos, uma certa simpatia de seus membros em relação à Teoria Crítica do Direito (CARVALHO, 1997, p. 18).

Há uma unanimidade de crítica ao positivismo jurídico (paradigma liberal--legal), entendido como uma postura jurídica técnica-formal-legalista, de apego irrestrito à lei e de aplicação de uma pseudo interpretação lógica dedutiva, soma-da a um discurso apregoador da neutralidade ou avaloratividade, do formalismo jurídico ou anti-ideológica do Direito, da coerência e completude do ordenamen-to jurídico e da fonte única do Direito e da interpretação mecanicista das normas efetuada por um método hermenêutico formal/lógico/técnico/dedutivo.

Os juristas alternativos, em desacordo com a teoria e a ideologia juspo-sitiva, denunciam que ser o Direito, político, parcial e valorativo representa o formalismo jurídico, uma forma de escamotear o conteúdo perverso de parte da legislação e de sua aplicação no seio da sociedade, não ser o Direito coerente e completo, suas antinomias (contradições) e lacunas (vazios) são várias e ex-plícitas, ser a lei fonte privilegiada do Direito, mas a ideologia do intérprete dá o seu sentido, ou o sentido por ele buscado. A exegese de um texto legal não é

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declarativa de seu conteúdo, mas, bem ao contrário, e axiológica e representa os interesses e fins perseguidos pelo exegeta (CARVALHO, 1997, p. 19).

O movimento defende o positivismo de Combate, hoje chamado de posi-tivação combativa. Trata-se de uma luta pelo cumprimento de várias leis, todas com conteúdos sociais, em pleno vigor, mas não cumpridas de fato, o uso alter-nativo do Direito é uma atividade hermenêutica. Realiza-se uma exegese exten-siva de todos os textos legais com cunho popular e uma interpretação restritiva das leis que privilegiam as classes mais favorecidas, privilegiando-se a Consti-tuição Federal. Trata-se de uma interpretação social ou teleológica das leis, ou seja, dar um sentido à norma buscando atender (ou favorecer) as classes menos privilegiadas ou a maioria da sociedade civil. É o contrário do realizado pelos juristas tradicionais, quando restringem as normas populares e ampliam as be-neficiadoras das classes que lhes interessam.

O Direito Alternativo em sentido estrito é o ponto mais polêmico e ex-trapola os limites deste artigo. Trata-se de uma visão do Direito sob a ótica do pluralismo jurídico. Privilegia-se, como novo paradigma para a Ciência Jurídica, o Direito existente nas ruas, emergente da população, ainda não elevado à condi-ção de lei oficial. Admite-se como Direito as normas não estatais, inclusive como fonte legitimadora do novo paradigma jurídico.

Neste ponto, há divergências teóricas no próprio movimento. Eu não con-cordo com esse entendimento, pois até o momento, a meu ver, não conseguiu sustentação teórica capaz de justificar uma teoria jurídica alternativa. Acaba cain-do nos mesmo equívocos do juspositivismo criticado. De todas formas, o Direito Alternativo é uma movimento que se legitima por sua postura transformadora, de busca de mudança da tétrica situação socioeconômica do Brasil, cuja respon-sabilidade também é das instituições jurídicas (CARVALHO, 1997, p. 20).

O crescimento do movimento foi vertiginoso, alastrando-se por todo o Brasil, América Latina e parte da Europa, tornando-se objeto de inúmeros gru-pos de estudos, artigos científicos, livros, seminários, monografias de conclusão de curso, dissertações e teses, sendo, inclusive, disciplina curricular em algumas faculdades de direito e escolas da magistratura (CARVALHO, 1997, p. 43).

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2. DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE

Diante desta contextualização sobre o Direito Alternativo, o leitor mere-ce algumas linhas acerca do meio ambiente como um direito fundamental. O estudo se mostra importante, pois a inserção do meio ambiente como direito fundamental permite maior amplitude e efetividade na sua proteção.

A preservação dos recursos naturais é a única forma de se garantir e con-servar o potencial evolutivo da humanidade. O próprio texto constitucional bra-sileiro determina que o meio ambiente deve ser preservado as presentes e as futuros gerações.

A Constituição Federal, em seu artigo 225, dispõe:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem

de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Po-

der Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes

e futuras gerações ( BRASIL, 1988).

A análise do tema aborda, portanto, o estudo do Direito Constitucional Ambiental em suas variadas dimensões: individual, como garantia a uma vida digna e sadia; social, uma vez que o meio ambiente é um bem difuso e integrante do patrimônio coletivo da humanidade e intergeracional com o dever de preser-vação ambiental para as gerações futuras.

O meio ambiente é um bem jurídico que merece grande destaque, pois ne-nhum outro interesse é tão difuso do que ele, que pertence a todos e a ninguém em particular, sua proteção a todos aproveita e sua degradação a todos prejudica, merecendo, portanto, um estudo especial.

Segundo Fiorillo (1996, p. 31), trata-se de um conceito jurídico indetermi-nado, assim colocado de forma proposital pelo legislador, com vistas a criar um espaço positivo de incidência da norma, ou seja, se houvesse uma definição pre-cisa de meio ambiente, diversas situações, que normalmente seriam admitidas na órbita de seu conceito atual, poderiam deixar de ser pela eventual criação de um espaço negativo próprio de qualquer definição.

O conceito de meio ambiente supera a denominação de que é um bem público, tendo em vista que não é só do Estado, mas também da coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo.

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Ao tratar da definição de meio ambiente, Mazzilli (2005, p. 142-143) des-taca que:

O conceito legal e doutrinário é tão amplo que nos autoriza a considerar de forma

praticamente ilimitada a possibilidade de defesa da flora, da fauna, das águas, do

solo, do subsolo, do ar, ou seja, de todas as formas de vida e de todos os recursos

naturais, como base na conjugação do Art. 225 da Constituição com as Leis ns.

6.938/81 e 7.347/85. Estão assim alcançadas todas as formas de vida, não só aque-

las da biota (conjunto de todos os seres vivos de uma região) como da biodiversi-

dade (conjunto de todas as espécies de seres vivos existentes na biosfera, ou seja,

todas as formas de vida em geral do planeta), e até mesmo está protegido o meio

que as abriga ou lhes permite a subsistência.

A Constituição brasileira de 1988, além de possuir um capítulo próprio para as questões ambientais, qual seja, o Capítulo VI, do Título VIII, trata, ao longo de diversos outros artigos, das obrigações da sociedade e do Estado brasi-leiro para com o meio ambiente.

A fruição de um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado foi erigida em direito da coletividade pela ordem jurídica vigente, o que se revela num notável avanço para a construção de um sistema de garantias da qualidade de vida dos cidadãos.

A Lei Fundamental reconhece que as questões pertinentes ao meio am-biente são de vital importância para o conjunto de nossa sociedade, seja porque são necessárias para a preservação de valores que não podem ser mensurados economicamente, seja porque a defesa do meio ambiente é um princípio consti-tucional geral que condiciona a atividade econômica, conforme dispõe o artigo 170, inciso VI, da CF, em busca de um desenvolvimento sustentável.

Observa-se que há, no contexto constitucional, um sistema de proteção ao meio ambiente que ultrapassa as meras disposições esparsas. Em sede constitu-cional, são destacados diversos pontos dedicados ao meio ambiente, seja direta ou indiretamente.

Considerando que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental de todos, a sua natureza jurídica se encaixa no plano dos direitos difusos, já que se trata de um direito transindividual, de natureza indivi-

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sível, do qual são titulares pessoas indeterminadas e ligadas entre si por circuns-tâncias de fato.

Ademais, este caráter difuso do Direito Ambiental é revelado quando o próprio texto Constitucional diz que é dever da coletividade e do poder públi-co defender e preservar o meio ambiente, ou seja, a consagração da dimensão Constitucional de solidariedade.

Assim, o interesse difuso estrutura-se como interesse pertencente a todos e a cada um dos componentes da pluralidade indeterminada de que se trate. Não é um simples interesse individual, reconhecedor de uma esfera pessoal e própria, exclusiva de domínio, o interesse difuso é o interesse de todos e de cada um ou é o interesse que cada indivíduo possui pelo fato de pertencer à pluralidade de sujeitos a que se refere a norma em questão.

O objeto dos interesses difusos é indivisível e tal característica fica mais evidente quando, referido objeto diz respeito ao meio ambiente. Utilizando o exemplo citado por Mazzilli (2005, p. 51-52), pode-se afirmar que a pretensão ao meio ambiente hígido, posto compartilhada por número indeterminável de pes-soas, não pode ser quantificada ou dividida entre os membros da coletividade.

Também o produto da eventual indenização obtida em razão da degrada-ção ambiental não pode ser repartido entre os integrantes do grupo lesado, não apenas porque cada um dos lesados não pode ser individualmente determinado, mas por que o próprio interesse em si é indivisível. Destarte, estão incluídos no grupo lesado não só os atuais moradores da região atingida, como também os futuros habitantes do local.

Assim, por caracterizar-se o meio ambiente como um bem transindividual, pois pertencente a todos e a cada um ao mesmo tempo, indivisível e sendo os seus titulares unidos por circunstâncias fáticas conexas e não por vínculos jurídicos ou origens comuns, como ocorre, respectivamente, nos direitos coletivos e indivi-duais homogêneos, enquadra-se perfeitamente na categoria dos direitos difusos.

O meio ambiente ecologicamente equilibrado foi consagrado constitucio-nalmente como direito fundamental de tríplice dimensão: individual, social e intergeracional.

Na dimensão Individual porque, enquanto pressuposto da sadia qualidade de vida, interessa a cada pessoa, considerada na sua individualidade, como de-tentora do direito fundamental à vida sadia.

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Com base no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o indivíduo tem direito a uma vida digna, não basta manter-se vivo, é preciso que se viva com qualidade, o que implica a conjunção de fatores como saúde, educa-ção e produto interno bruto, segundo padrões elaborados pela Organização das Nações Unidas (MACHADO, 2002, p. 46), sendo certo que, em tal classificação, a saúde do ser humano alcança o estado dos elementos da natureza como a água, solo, ar, flora, fauna e paisagem.

Na dimensão social porque, como bem de uso comum do povo, portanto difuso, o meio ambiente ecologicamente equilibrado integra o patrimônio co-letivo. Não é possível, em nome deste direito, apropriar-se individualmente de parcelas do meio ambiente para consumo privado, pois a realização individual deste direito fundamental está intrinsecamente ligada à sua realização social.

Segundo Machado (2002, p. 46): “Os bens que integram o meio ambiente planetário, como a água, o ar e o solo, devem satisfazer as necessidades comuns de todos os habitantes da Terra”.

Na dimensão intergeracional porque a geração presente, historicamente situada no mundo contemporâneo, deve defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as futuras gerações.

A proteção dos recursos naturais é a única forma de se garantir e preservar o potencial evolutivo da humanidade. Este especial tratamento existe para evi-tar que ocorram no seio da sociedade perigosos conflitos entre as gerações oca-sionados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial.

O direito ao meio ambiente e o seu reconhecimento como um direito fun-damental do ser humano surgiu com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada pela ONU em 1972, na cidade de Estocol-mo, a qual deu origem ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Como resultado das discussões dessa conferência, foi elaborada a “Declaração de Estocolmo”, conjunto de 26 proposições denominadas Princípios.

No Princípio 1 e 2 dessa Declaração proclama-se:

1 - O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e condições de

vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar

uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger

e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras.

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2 - Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna

e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser

preservados em benefício das gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso

planejamento ou administração adequada.

Era a consagração do meio ambiente como um direito fundamental do ser humano, essencial para a dignidade da vida humana e que deve ser preservado, não só para os atuais, como para os futuros habitantes do planeta.

O direito ao meio ambiente diz respeito a um bem que não está na disponi-bilidade particular de ninguém, nem de pessoa privada, nem de pessoa pública, sendo assim, o bem a que se refere o artigo 225 da Carta Magna é um bem que pode ser desfrutado por toda e qualquer pessoa, tendo como característica bási-ca sua vinculação “à sadia qualidade de vida”, portanto, a absoluta simetria entre o direito ao meio ambiente e o direito à vida da pessoa humana.

O direito à vida é objeto do Direito Ambiental, sendo certo que sua correta interpretação não se restringe simplesmente ao direito à vida, tão somente en-quanto vida humana, e sim à sadia qualidade de vida em todas as suas formas, como bem explica Machado (2002, p. 46): “Não basta viver ou consagrar a vida. É justo buscar e conseguir a qualidade de vida”.

A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, na Declaração de Estocolmo/72, ressaltou que o homem tem direito fundamental a “(Princípio 1)[...] adequadas condições de vida, em um meio ambiente de qualidade [...]”. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, na Declaração do Rio de Janeiro/92, afirmou que “(Princípio 1) Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida sau-dável e produtiva, em harmonia com a natureza”.

A construção prática do Direito Ambiental moderno demonstra que o mesmo é fruto da luta dos cidadãos por uma nova forma e qualidade de vida. Com efeito, os indivíduos e as diferentes Organizações Não Governamentais têm buscado no litígio judicial um fator de participação política e de constru-ção de uma nova cidadania, bem como soluções para as gravíssimas demandas ambientais.

O que informa os interesses difusos é a participação democrática na vida da sociedade e na tomada de decisão sobre os elementos constitutivos de seu pa-

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drão de vida. Toda a questão suscitada pelos interesses difusos é essencialmente política.

Neste contexto, Bobbio (1992, p. 78) afirma que vivemos uma “era dos di-reitos”, na qual as reivindicações sociais se ampliam e buscam referenciais es-táveis em uma nova positivação de aspirações formuladas por movimentos de massa. O Direito, portanto, esvazia-se de seu conteúdo de instrumento de do-minação para se constituir em um instrumento cristalizador de reivindicações.

Se observarmos o caput do artigo 225 da Constituição Federal, veremos que, dentro dos esquemas tradicionais, não é possível compreender o meio am-biente como um “direito de todos”, pois até agora a noção de direito, salvo al-gumas exceções, estava vinculada à ideia da existência de uma relação material correspondente. A defesa dos interesses difusos, não estando baseada em cri-térios de dominialidade entre sujeito ativo e objeto jurídico tutelado, dispensa esta relação prévia de direito material. Não dispensa, entretanto, uma base legal capaz de assegurar a proteção buscada perante o Poder Judiciário.

3. O MEIO AMBIENTE DIREITO FUNDAMENTAL DE TERCEIRA GERAÇÃO

Com o escopo de ordenar os direitos humanos, a doutrina mundial, ins-pirada no lema da Revolução Francesa, estruturou uma classificação histórica, que resultou de um processo evolutivo destes direitos ao longo do tempo e da observação das necessidades da sociedade à época, distinguindo-os em direitos humanos de primeira, segunda e terceira geração ou dimensão.

Os direitos fundamentais não surgiram simultaneamente, mas em perío-dos distintos conforme a demanda de cada época, tendo esta consagração pro-gressiva e sequencial nos textos constitucionais, dando origem à classificação em gerações. Como o surgimento de novas gerações não ocasionou a extinção das anteriores. Há quem prefira o termo dimensão por não ter ocorrido uma suces-são desses direitos: atualmente todos eles coexistem.

Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os ligados ao valor liber-dade, são os direitos civis e políticos. São direitos individuais com caráter negativo por exigirem diretamente uma abstenção do Estado, seu principal destinatário.

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Ligados ao valor igualdade, os direitos fundamentais de segunda dimensão são os direitos sociais, econômicos e culturais. São direitos de titularidade cole-tiva e com caráter positivo, pois exigem atuações do Estado.

Os direitos fundamentais de terceira geração, ligados ao valor fraterni-dade ou solidariedade, são os relacionados ao desenvolvimento ou progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e ao direito de co-municação. São direitos transindividuais, em rol exemplificativo, destinados à proteção do gênero humano.

Nos séculos XVII e XVIII foram positivados os direitos fundamentais indi-viduais baseados na liberdade, os quais deram origem aos chamados direitos hu-manos de primeira dimensão, como exemplos os direitos civis e políticos. Cons-tituíam liberdades negativas, pois esses direitos serviam de escudo ou oposição contra o Estado, impedindo que invadisse a esfera jurídica dos indivíduos. Com o surgimento da Revolução Industrial, em que ficaram evidenciadas as diferen-ças entre os cidadãos, notadamente pelo prisma do capital versus trabalho, o Es-tado se deu conta de que não podia partir da premissa de que todos eram iguais naturalmente, pois de fato não o eram. Foi assim que nasceu o Estado Social e que surgiram os direitos humanos de segunda geração, como exemplos os direi-tos sociais, econômicos e culturais, representando o rol de liberdades positivas.

Também por ocasião da Revolução Industrial surgiu a sociedade de massa e, por consequência, os conflitos de massa, necessitando o Estado criar novos direi-tos para garantir e harmonizar a convivência dos indivíduos considerados em seu conjunto, ou seja, coletivamente. Há aqui uma mudança do enfoque: do individual para o coletivo. Foi neste contexto que surgiram os direitos humanos de terceira geração ou dimensão, como exemplos os direitos coletivos, transindividuais, in-fluenciados por valores de solidariedade. Segundo Ferreira Filho (2000, p. 58), os principais direitos de solidariedade são: direito à paz, direito ao desenvolvimento, direito ao meio ambiente e direito ao patrimônio comum da humanidade.

Bobbio (1992, p. 43), ao se referir ao problema dos direitos humanos de terceira geração, afirmou que o mais importante deles é o reivindicado pelos mo-vimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. No mesmo sentido, Ferreira Filho (2000, p. 62): “De todos os direitos de terceira geração, sem dúvida o mais elaborado é o direito ao meio ambiente”.

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Trata-se, conforme já o proclamou o Supremo Tribunal Federal, de um di-reito típico de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente indetermi-nado, a todo gênero humano, pois quando se viola o direito ao meio ambiente, também se viola os direitos humanos.

Os direitos humanos estão se ampliando, pois a sociedade vem dando ao fenômeno da massificação social e as dificuldades crescentes para que todos pos-sam vivenciar uma sadia qualidade de vida, ainda que a violação dos direitos humanos seja mais evidente que o seu respeito. O fato é que, se há violação é porque existe uma norma a ser violada ou respeitada.

Esta realidade desempenha um papel fundamental na conscientização de todos aqueles que, subjetivamente, consideram que os seus direitos funda-mentais foram violados. É por isso que se fala na terceira geração de direitos humanos, direitos estes que não se limitam àqueles fruíveis individualmente ou por grupos determinados, como foi o caso dos direitos individuais e dos direitos sociais.

É preciso que se perceba que, embora dotado de forte conteúdo econô-mico, não se pode entender a natureza econômica do Direito Ambiental como um tipo de relação jurídica que privilegie a atividade produtiva em detrimento de um padrão de vida mínimo que deve ser assegurado aos seres humanos. A natureza econômica do Direito Ambiental deve ser percebida como o simples fato de que a preservação e sustentabilidade da utilização racional dos recursos ambientais deve ser encarada de forma a assegurar um padrão constante de ele-vação da qualidade de vida dos seres humanos que, sem dúvida alguma, neces-sitam da utilização dos diversos recursos ambientais para a garantia da própria vida humana.

O reconhecimento definitivo do Direito Ambiental como direito humano já começa a ser feito pelos Tribunais Administrativos e Judiciais de vários países do mundo. No regime constitucional brasileiro, o próprio caput do artigo 225 da Constituição Federal impõe a conclusão de que o Direito Ambiental é um dos direitos humanos fundamentais.

Assim o é por ser o meio ambiente considerado um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Isto faz com que o meio ambiente e os bens ambientais integrem-se à categoria jurídica. Daí decorre que os bens am-bientais são considerados interesses comuns. Observe-se que a função social da propriedade passa a ter como um de seus condicionantes o respeito aos valores

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ambientais. Propriedade que não é utilizada de maneira ambientalmente sadia não cumpre a sua função social.

Não bastassem os argumentos acima expendidos, é de se ver que o próprio artigo 5.º da Lei Fundamental faz menção expressa ao meio ambiente, conforme deixa claro o teor do inciso LXXIII ao arrolá-lo como um dos objetos da ação popular. Desta forma, confirma-se, no Direito positivo, a construção teórica que vem sendo elaborada pela doutrina jurídica mais moderna.

Como é elementar, o artigo 5.º da Constituição Federal cuida dos direitos e garantias fundamentais. Ora, se é uma garantia fundamental do cidadão a exis-tência de uma ação constitucional com a finalidade de defesa do meio ambiente, tal fato ocorre em razão de que o direito ao desfrute das condições saudáveis do meio ambiente é, efetivamente, um direito fundamental do ser humano.

O direito ao meio ambiente, por ser um direito fundamental da pessoa humana, é imprescritível e irrevogável, constituindo-se em cláusula pétrea do sistema constitucional brasileiro, sendo inconstitucional qualquer alteração nor-mativa que tenda a suprimir ou enfraquecer esse direito. Além disso, por força da cláusula aberta do artigo 5.º, parágrafo 2.º, da Constituição Federal, os pactos, tratados e convenções relativas ao meio ambiente aprovadas pelo Brasil, desde que mais favoráveis, integram imediatamente o sistema constitucional dos direi-tos humanos fundamentais.

Pelo princípio da prevalência da norma mais protetiva ao meio ambiente na aplicação e interpretação da legislação internacional e nacional, deve prepon-derar a norma que mais favoreça ao meio ambiente. O ato normativo que terá preferência será sempre aquele que propiciar melhor defesa a esse bem de uso comum do povo e direito de todos, constitucionalmente garantido, que é o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Dentro desse contexto, o artigo 225 da Carta Maior deve ser interpretado em consonância com o artigo 1.º, III, que consagra como fundamento da Repú-blica o princípio da dignidade da pessoa humana; o artigo 3.º, II, que prevê como objetivo fundamental da República o desenvolvimento nacional; e o artigo 4.º, IX, que estipula que o Brasil deve reger-se em suas relações internacionais pelos princípios da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, de maneira a permitir maior efetividade na preservação ao meio ambiente.

A qualificação do meio ambiente como um direito humano fundamental confere-lhe uma proteção mais efetiva, seja no plano interno, seja no plano in-

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ternacional, propiciando a eventual responsabilização do país perante os orga-nismos internacionais de defesa dos direitos humanos.

Neste contexto, o Direito Alternativo ou o uso alternativo do Direito surge como um importante viés teórico a orientar os operadores do direito a enxergarem as normas num aspecto mais amplo, menos formal, mais próximo da realidade social. Pois o Direito ao meio ambiente é consagrado como o direito de terceira dimensão, sendo que seu objeto de proteção a todos aproveita e sua não proteção a todos o prejudica, não só na presente geração como para as gerações futuras.

O Direito Alternativo como instrumento de exegese, de interpretação, como técnica de hermenêutica, influencia os operadores do direito, de um modo geral, a ter uma visão mais crítica da realidade, mais próxima do fato social, com um aspecto mais amplo na aplicação da norma, seja pelo aspecto espacial seja pelo aspecto temporal.

Ademais, o movimento do Direito Alternativo é fruto do questionamento teórico das normas, da constante busca pela quebra dos paradigmas hermenêu-ticos, visando a aplicação de um direito como prioridade a realidade social, e não um direito formal e restrito às paredes dos tribunais.

O Direito Alternativo, portanto, é preocupação com o Direito, é a busca por uma sociedade radicalmente democrática, e neste aspecto entendo ser pertinen-te esse diálogo com o Direito Ambiental pela própria dimensão que este ramo do direito objetiva tutelar e alcançar. O Direito Alternativo ou o uso alternativo do direito se apresenta como um movimento consolidado, que possibilitou uma crítica radical das leis e da forma de julgar, podendo servir como instrumento de maior efetivação social do Direito Ambiental com o objetivo de buscar a efeti-vação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, mesmo entendendo que o desequilíbrio ambiental não desestabiliza o sistema ambiental.

A análise das normas ambientais deve sempre refletir que nenhum outro interesse tem um aspecto difuso maior do que o ambiental, pois pertence a to-dos e a ninguém em particular, sua proteção a todos interessa e sua degradação a todos prejudica. O Direito Alternativo em diálogo com o Direito Ambiental deve buscar assegurar os instrumentos legais para preservação da vida, em suas diferentes formas.

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CONCLUSÃO

O Direito Alternativo ou o uso do Direito Alternativo é um movimento van-guardista formatado por juristas críticos que se organizaram no Brasil, influencia-dos pelos movimentos italiano e espanhol, partindo da crítica radical do direito positivado, com o objetivo de se produzir uma nova forma de ver, praticar e ler o Direito ensinado nas faculdades com elevado apego ao rigor legal e formal.

Os estudiosos alternativista apontam que existe uma crise do Direito Dog-mático, isto é, a ineficácia e a inércia do Estado impedem que o Direito alcance o seu objetivo de modernização, o legislador está impossibilitado de monopolizar a feitura de normas jurídicas e não consegue fazer prevalecer suas fontes, pelo contrário, diversas outras fontes e até outros sistemas éticos se apresentam inva-dindo a esfera estatal e, às vezes, se sobrepondo a ela.

Em consequência dessa dificuldade estatal, o Direito Alternativo desponta como uma das opções para a resolução de conflitos sociais, pois a ideia de Direito Alternativo nasce como um procedimento fora da Dogmática Jurídica, conside-rando-se o Estado como apenas uma das formas de manifestação do Direito.

O Direito Alternativo objetiva maior efetividade das normas ou melhor interpretação, a importância de um bem jurídico pode ser medida a partir do tratamento constitucional de declaração e controle que o ordenamento jurídico lhe confere. No Brasil, a proteção ao meio ambiente surge com especial destaque na Constituição da República de 1988, que lhe dedica um capítulo próprio, além de um conjunto de outras normas infraconstitucionais.

A partir de uma interpretação sistemática de diversos dispositivos cons-titucionais, chegou-se à conclusão de que o direito ao meio ambiente inclui-se no rol dos direitos fundamentais, o que lhe confere uma proteção mais ampla, concreta e efetiva.

Isso se mostrou possível a partir do momento em que o direito ao meio am-biente passou a ser entendido como uma extensão ou corolário lógico do direito constitucional à vida, na vertente da sadia qualidade de vida, afinal, não basta manter-se vivo, é preciso que se viva com dignidade e qualidade.

O bem jurídico vida depende, para a sua integralidade, entre outros fato-res, da proteção do meio ambiente com todos os seus aspectos, sendo dever do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para presentes e futuras gerações.

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A vida tutelada pela Lei Fundamental, portanto, transcende os estreitos li-mites de sua simples atuação física, abrangendo também o direito à sadia quali-dade de vida em todas as suas formas. Sendo a vida um direito universalmente reconhecido como um direito humano básico ou fundamental, o seu gozo é con-dição essencial para a fruição de todos os demais direitos humanos, aqui incluso o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A integridade do meio ambiente, erigida em direito difuso pela ordem jurí-dica vigente, constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva. Isso reflete, dentro da caminhada de afirmação dos direitos humanos, a expressão significa-tiva de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num contexto abrangente da própria coletividade.

Essa titularidade coletiva permitiu o reconhecimento do meio ambiente como um direito humano de terceira dimensão, influenciado por valores de so-lidariedade, com vistas a garantir e harmonizar a convivência dos indivíduos considerados em seu conjunto, inseridos num contexto de sociedade.

A consagração do meio ambiente como um direito fundamental da pessoa humana introduz no Estado e no seu corpo social um novo paradigma que deve ser respeitado e seguido por todos, pois esse é o caminho escolhido politicamen-te pelos fundadores da nossa ordem jurídica para assegurar a sobrevivência nas suas mais diversas formas.

O operador do direito deve buscar nas diferentes formas do processo her-menêutico, aproximar a norma ao fato social, assim, o Direito Alternativo ou o uso alternativo do direito se apresenta como um movimento consolidado, que possibilita uma crítica radical das leis e da forma de julgar, podendo servir como instrumento de maior efetivação social do Direito Ambiental com o objetivo de atender os interesses difusos deste importante ramo jurídico.

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PRINCIPAIS TEORIAS CRIMINOLÓGICAS E SUAS CONTRIBUIÇÕES À CIÊNCIA DA CRIMINOLOGIA NO QUE SE REFERE AO ENTENDIMENTO DO FENÔMENO DELITO

MAIN CRIMINOLOGICAL THEORY AND ITS CONTRIBUTIONS TO THE SCIENCE OF CRIMINOLOGY WITH RESPECT TO THE

UNDERSTANDING OF THE CRIMINOLOGICAL PHENOMENONGracireza Azedo de Farias1

Sumário: Introdução; 1. Nascimento da Criminologia; 2. Criminologia na escola

clássica; 3. Criminologia na escola positivista; 4. Teorias unitárias com viés socio-

lógico; 4.1 Teoria da desorganização social; 4.2 Teoria da anomia; 4.3 Teoria das

subculturas criminais; 5. Labeling approach theory ou Teoria do etiquetamento

social; 6. Criminologia crítica ou radical; Conclusão; Referências.

RESUMO: O presente artigo científico se propôs a analisar as contribuições das teorias criminológicas para a ciência da Criminologia no que se refere ao fenô-meno delito. Crime e violência há muito despertam preocupação entre estudiosos quanto ao seu avanço através dos tempos. Nesse desiderato o trabalho em epígrafe abordou o surgimento da Criminologia como ciência, suas escolas tradicionais, ou seja, a Clássica e a Positivista, bem como as escolas unitárias com viés sociológico, quais sejam, teoria da Desorganização Social, da Anomia e das Subculturas Crimi-nais, o Labeling Approach, bem como o papel da Teoria Crítica. Buscou-se, assim, identificar os motivos que levam o ser humano a delinquir e, ainda, as soluções propostas pelas supracitadas teorias para a redução da violência e criminalidade. Na busca para alcançar os objetivos apresentados, a metodologia utilizada funda-mentou-se no método dedutivo e qualitativo, com a compreensão das informa-ções de uma forma global e a técnica foi basicamente fundamentada em pesquisa bibliográfica com auxílio da doutrina, legislação e jurisprudência.

PALAVRAS-CHAVE: Criminologia; Ciência; Teoria Crítica; Criminalidade.

1 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Oficiala de justiça, avalia-dora do Tribunal de Justiça do Amazonas.

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ABSTRACT: The present scientific article has proposed to analyze the con-tributions of criminological theories to the science of criminology with regard to the crime phenomenon and for this we discuss about the emergence of crimino-logy as a science, its traditional schools, that is, the Classical and the Positivist, as well as such as unitary schools with a sociological bias, such as Social Disorga-nization Theory, Anomia and Criminal Subcultures, Labeling Approach Theory and we conclude by discussing the role of Critical Theory, we seek to identify the motives that lead the human being to commit crime, and solutions proposed by the abovementioned theories for the reduction of violence and crime. We used to reach the proposed objectives the methodology based on the deductive and qualitative method and the technique was basically based on bibliographical re-search with the aid of doctrine, legislation and jurisprudence.

KEYWORDS: Criminology; Science; Critical Theory; Criminality.

INTRODUÇÃO

O delito é uma ação ou omissão voluntária ou culposa que possui uma conse-quência – a penalização. É uma violação das normas impostas num dado momen-to. Um fenômeno que desde os primórdios sempre existiu em nossa sociedade.

E desde a antiguidade os pensadores procuram explicações quanto aos motivos que levam um ser humano a delinquir ou agir de forma desviada dos padrões estabelecidos.

Inicialmente se acreditava que os suplícios, as penas tortuosas poderiam inibir o cometimento do crime e durante mais de um século ela foi a resposta encontrada. As mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais fizeram com que esse modelo fosse sendo gradativamente substituído.

A troca do poder do Estado Absolutista para a classe emergente – Burguesia– e a ideia de humanidade, vinda do Iluminismo, como limite de aplicação do poder, entre o suplício do século XVII e a reforma do século XVIII, correspondeu a uma nova economia punitiva: como punir mais eficazmente sem recorrer à dor física.

Além da preocupação com a economia e eficiência, a iniciativa de agir com humanidade dizia respeito a não se igualar ao nível do condenado, no que tange à violência. O objetivo era resguardar a humanidade dos que exerciam o poder, e não exatamente a de quem cometeu o crime.

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Nesse ínterim, surge a Criminologia como ciência, buscando analisar a cri-minalidade e as razões deste fenômeno persistir.

Este trabalho visa, por meio de um escorço histórico das escolas do pensa-mento criminológico, desde a Escola Clássica, passando pela Escola Positivista, as Escolas com viés Sociológico e, mais recentemente, a Teoria Crítica Radical, discutir e investigar os fatores apresentados por estas supracitadas teorias que levam à prática do delito.

Ainda examinaremos as soluções apresentadas pelas teorias criminológicas para a redução do crime em nossa sociedade, isto é, as contribuições teóricas para a Ciência da Criminologia no que tange ao entendimento do delito, para tanto utilizaremos para alcançar os objetivos propostos a metodologia baseada no método dedutivo e qualitativo. A técnica foi basicamente fundamentada em pesquisa bibliográfica, com o auxílio da doutrina e legislação.

1. NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA

A Criminologia é uma ciência moderna e interdisciplinar. O termo foi uti-lizado pela primeira vez por volta da segunda metade do século XIX, mais preci-samente em 1880, pelo médico e antropólogo francês Paul Topinard e, posterior-mente, aplicada internacionalmente pelo jurista italiano Raffaele Garófalo, em sua obra Criminologia, de 1885. Contudo os primeiros trabalhos na área, datam de 1876, com a publicação do cientista italiano Cesare Lombroso, denominada de Frenologia – o homem delinquente.

Etimologicamente, a palavra Criminologia deriva do latim crimino (crime) e do grego logos (estudo, palavra), significando o “estudo do crime”. Podemos, então, a partir do seu significado conceituar a Criminologia apenas como o es-tudo do crime?

Nestor Sampaio (2012, p. 18) conceitua Criminologia “como a ciência em-pírica (baseada na observação e na experiência) e interdisciplinar que tem por objeto de análise o crime, a personalidade do autor do comportamento delitivo, da vítima e o controle social das condutas criminosas”.

Na definição de Roberto Lyra (1964, p. 39):

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Criminologia é a ciência que estuda as causas, as concausas da criminalidade e a

periculosidade preparatória da criminalidade; estuda também as manifestações

dos efeitos da criminalidade e da periculosidade preparatória da criminalidade e;

a política a opor, assistencialmente à etimologia da criminalidade e da periculosi-

dade preparatória da criminalidade, seus efeitos e suas manifestações.

Temos ainda Newton Fernandes e Valter Fernandes (1995, p. 25) concei-tuando Criminologia como “a ciência que estuda o fenômeno criminal, a vítima, as determinantes endógenas e exógenas, que isolada ou cumulativamente atuam sobre a pessoa e a conduta do delinquente, e os meios labor-terapêuticos ou pe-dagógicos de reintegrá-lo ao agrupamento social”.

As conceituações até aqui apresentadas de Criminologia têm sua base e seu fundamento na ideia de que o crime é um fenômeno intrínseco ao ser humano ou algo proporcionado pelo ambiente. Não há uma análise detida da atuação do sistema penal e sua realidade essencialmente normativa.

Por seu turno, a Nova Criminologia, onde podemos citar como exemplo a Criminologia Radical, trouxe inovações, ou seja, novas análises acerca da criminalidade que culminaram com a reformulação do conceito e objetos de Criminologia.

A Criminologia Radical surge como uma crítica radical da teoria da Criminologia

tradicional [...] a Criminologia Radical se edifica com base no método e nas cate-

gorias científicas do marxismo, desenvolvendo e especializando conceitos na área

do crime e do controle social, mediante a crítica da ideologia dominante, como

exposta e reproduzida pelas teorias tradicionais do controle social: as teorias clás-

sicas e positivistas, e algumas variantes da fenomenologia moderna (SANTOS,

2008, p. 2).

Podemos concluir, portanto, que o compromisso primário da Criminolo-gia Radical é a abolição das desigualdades sociais em riqueza e poder, afirmando que a solução para o problema do crime depende da eliminação da exploração econômica e da opressão política de classe – e sua condição é a transformação nas estruturas sociais.

Logo, não há como restringir a acepção de Criminologia apenas ao estudo do crime, seu objeto é mais amplo, deve enfocar o criminoso, a vítima, o controle

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social e ainda o sistema penal e os processos de criminalização. Razão pela qual a Criminologia se caracteriza como uma ciência interdisciplinar, pois se comunica com variadas esferas sociais e possui ligação com diversas áreas do conhecimen-to humano, por exemplo, Direito Penal, Direito Processual Penal, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Psiquiatria, Biologia etc.

Direito e Criminologia são ciências denominadas sociais ou culturais e li-dam com as diversidades das personalidades e suas complexidades, contudo, a Criminologia tem um objeto de estudo mais abrangente, pois não se atém ape-nas causa e ao agente criminoso, pelo que sua contribuição ao Direito Penal e Processual Penal é extensa.

Na realidade sua presença se faz sentir tanto na fase investigatória (extra-judicial) quanto na fase judicial, isto é, os estudos em Criminologia permitem um melhor entendimento de institutos como a confissão em juízo, delação pre-miada, transação penal, suspensão condicional do processo e na execução penal pode ser requisito para a concessão de progressão de regime.

Embora a redação dada pela lei 10.792, de 2003, tenha alterado significativa-mente o Art. 112, da Lei de Execuções Penais, substituindo a necessidade do exa-me criminológico para a progressão do regime por um simples atestado de bom comportamento carcerário, ainda é possível a sua exigência pelo magistrado quan-do entender necessário o exame, desde que devidamente fundamentado. E o que inferimos da leitura da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

HABEAS CORPUS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PROPRIO. DES-

VIRTUAMENTO. EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. REA-

LIZAÇÃO DE EXAME CRIMINOLOGICO E DE EXAME PSIQUIÁTRICO

ANTES DA PROMOÇÃO DO APENADO AO REGIME INTERMEDIÁRIO.

DETERMINAÇÃO DE NOVO EXAME CRIMINOLOGICO. FALTA DE FUN-

DAMENTAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. O Su-

perior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema,

também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não ad-

mitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso

ou ação cabível, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do

ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do(a) paciente, seja cogente

a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 2. Com o advento da Lei n.º

10.792/2003, embora não mais se exija, de plano, a realização de exame crimi-

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nológico, o juiz singular da Vara de Execuções Criminais ou mesmo o Tribunal

de Justiça Estadual podem, de forma devidamente fundamentada e diante das

peculiaridades do caso concreto, determinar a realização do referido exame para

a formação do seu convencimento acerca do implemento do requisito subjetivo.

Inteligência da Súmula n.º 439/STJ. 3. No caso vertente, em que a promoção do

paciente ao regime intermediário foi feita pelo juiz das execuções, após a realiza-

ção de exame criminológico e de avaliação psiquiátrica complementar, favoráveis

a ele, não se mostra suficiente a fundamentação lançada no acórdão impugnado

para embasar a realização de novo exame criminológico. 4. Habeas corpus não

conhecido. Ordem concedida, de ofício, para restabelecer a decisão de primeiro

grau (STJ – HC: 290841, SP 2014/0060417-4 – DJE 10/06/14).

Logo, como toda ciência humana, a Criminologia é produto de constru-ções típicas do momento histórico. No seu nascimento foi fortemente influen-ciada pelas ideias em voga na Europa do século XIX, especialmente o Positi-vismo de Augusto Comte, posteriormente influenciada pela Escola Científica e mais recente pela Escola Crítica.

2. CRIMINOLOGIA NA ESCOLA CLÁSSICA

O século XVII foi a era do espetáculo punitivo, com os suplícios, em que o corpo era o alvo principal da repressão penal.

Como definir suplício? O Dicionário Aurélio (2008, p. 758) diz: “1. Dura punição corporal, imposta, ou não, por sentença. 2. Pena de morte. 3. Fig. Pessoa ou coisa que aflige muito, tortura”.

Nesse período, o rei era a encarnação da lei, a ele era dado o poder de de-cidir quem vivia e quem morria, ou seja, o suplício não restaurava a justiça, era uma confirmação de quem detinha o poder.

O corpo do condenado se tornava coisa do rei sobre a qual o soberano impri-mia sua marca e deixava cair os efeitos do seu poder. O povo, temeroso e reveren-cial a este poder, enxergava neste símbolo o caráter e a função de prevenção geral negativa da pena, serviam de testemunhas para que o suplício tivesse seu êxito.

O surgimento do Iluminismo no século XVIII concomitantemente com a ideia de humanidade como limite de aplicação do poder, entre o suplício do

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século XVII e a reforma do século XVIII, correspondeu a uma nova economia punitiva: como punir mais eficazmente sem recorrer à dor física. Além da preo-cupação com a economia e eficiência, a iniciativa de agir com humanidade diz respeito a não se igualar ao nível do condenado, no que tange a violência. O ob-jetivo era resguardar a humanidade dos que exercem o poder, e não exatamente a de quem cometeu o crime (FOUCAULT, 2014).

Buscava-se uma utilidade e função para as penas, sem a qual, qualquer pu-nição era tida como simples crueldade gratuita e injustificável.

A Escola Clássica desenvolve-se nesse contexto na Europa no século XVIII e pri-

meira metade do século XIX. Entretanto, sua preocupação não se dirige ao estudo

do fenômeno criminal ou criminoso. Seus postulados referem-se ao conteúdo ju-

rídico – penal, procurando desenvolver uma formulação teórica do Direito Penal

(CABETTE, 2012).

Um dos grandes representantes desta Escola Clássica foi o Marquês de Bec-caria, o qual em 1783 escreveu a obra Dos delitos e das penas, em que criticou o sistema penal vigente à época, denunciando a péssima estrutura existente, os juízes arbitrários e imparciais e a busca pela confissão (rainha das provas) sob qualquer modo. Suas ideias tinham por objetivo a construção de um sistema baseado na legalidade, ou seja, ao Estado era dado o poder-dever de punir desde que também agisse conforme a lei (HORTA, 2005).

Outro importante representante da Escola Clássica foi Jeremy Bentham que juntamente com Beccaria tiveram uma incisiva participação no trabalho de reforma penal que ocorreu principalmente após a publicação do livro Dos delitos e das penas.

Bentham é considerado o criador da Filosofia Utilitarista que alicerça seu fundamento no postulado: “A medida do certo e errado é a maior felicidade para o maior número”. Outro princípio norteador das ideias de Bentham era que os incentivos deveriam ser arquitetados para “fazer com que seja interesse de cada homem observar em cada ocasião a conduta que é seu dever observar”. Nesta doutrina estaria inserida uma estratégia de profilaxia ou prevenção da crimina-lidade (ORDEM LIVRE, 2009).

Cabe destacar que não podemos falar especificamente de Criminologia na Escola Clássica, pois esta surgiu com a Escola Positivista. No pensamento

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clássico a conduta do criminoso deriva simplesmente do livre arbítrio do de-linquente e não de causas patológicas ou influências ambientais. O homem é um ser livre e racional, podendo tomar decisões e arcar com suas consequên-cias (MARIS, 2016).

Assim, a função da pena não é intervir sobre o criminoso para reformá-lo, mas apenas subsiste como efeito de prevenção geral, atinge os que cometeram os crimes, mas principalmente os que não cometeram, pois os induziria a não praticar delitos (TEIXEIRA, 2015).

3. CRIMINOLOGIA NA ESCOLA POSITIVISTA

Em determinado momento histórico, o Direito Penal abandonou o terre-no da abstração em que se colocara na Escola Clássica e caminhou no sentido do concretismo, das verificações objetivas sobre o crime e, fundamentalmente, sobre o criminoso.

O principal expoente desse período foi Augusto Comte (1798-1857) cuja doutrina foi designada positivismo e tinha como objetivo estender a todas as áreas o método científico, inclusive à filosofia e à religião, e porque não a área criminal (AQUINO, 2015).

Na Escola Positivista, no campo penal, os maiores pensadores foram, na clínica, o médico Cesaré Lombroso, na sociológia, o jurista sociólogo Enrico Ferri e na jurídica o magistrado Rafaelle Garofalo. Estes se valeram principal-mente da antropologia criminal para analisar fatores exógenos ou endógenos do comportamento humano que o induzem à delinquência (TEIXEIRA, 2015).

Cesaré Lombroso desenvolvia trabalhos como médico penitenciário nas áreas de antropologia e evolução humana, em seus estudos buscou estabelecer um perfil das pessoas que poderiam cometer crimes. Escreveu, então, a obra L’uomo delinquente em 1876, e argumentava que o verdadeiro criminoso é nato e a fim de conter o impulso criminal, não caberiam expiações morais ou puni-ções infamantes e a sociedade teria o direito de proteger-se seja pela condena-ção perpétua ou pela morte do delinquente, encarada como medida de seleção (AQUINO, 2015).

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Por sua vez, Enrico Ferri, em sua obra Sociologia Criminal, em 1892, re-velou o trinômio causal do delito, quais sejam: fatores biológicos (herança), so-ciológicos (religião, moral, opinião pública) e físicos (clima, solo, temperatura).

Considerado o criador da Sociologia Criminal, foi ele quem acirrou a polê-mica entre os defensores do “livre arbítrio” e os adeptos do “determinismo”. Ferri não acreditava na liberdade da vontade psíquica do homem e defendia a teoria da responsabilidade pessoal (AQUINO, 2015).

Defendeu que os métodos de prevenção dos crimes deveriam ser o pilar para o cumprimento da lei, em oposição à punição de criminosos após haverem cometido seus crimes, pois não acreditava na capacidade de ressocialização das instituições penais quanto aos criminosos. Pregava a aplicação por parte do Es-tado dos substitutos penais, medidas de caráter econômico, político, educativo, familiar etc, para atuar nas causas originadoras dos delitos. Contudo, entendia tais substitutos penais serem insuficientes para conter os criminosos natos, lou-cos e passionais, legitimava a utilização de medidas de segurança para tanto.

Já Rafaelle Garofalo considerou os estudos de Ferri e Lombroso, voltados apenas para o delinquente, pelo que fixou sua pesquisa no crime também. Foi o criador do termo Criminologia e construiu sua teoria na tríplice análise da cri-minalidade, do delito e da pena. Pregava que existiam duas espécies de crimes: os legais e os naturais.

Os delitos legais variavam de país para país, não ofendiam o senso moral, nem revelavam anomalias e as penas decorreriam da vontade do legislador. Por sua vez, os delitos naturais eram os que ofendiam os sentimentos altruístas fun-damentais de piedade ou probidade, na medida em que são de propriedade de uma comunidade, e indispensáveis para a adaptação do indivíduo à sociedade, fundamentando seu pensamento a partir da ideia de Lombroso do criminoso nato. E por sua vez era defensor da pena de morte aos anormais.

Em linhas gerais, a Criminologia Positivista entende que o crime se origina de uma livre opção por parte do delinquente, exceção a Ferri, e um dos fatores que influenciam é o meio circundante. Alega, ainda que o indivíduo que comete um crime está em um estado de anormalidade, ainda que temporária, pois a pessoa normal é aquela que está apta a vida em sociedade.

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4. TEORIAS UNITÁRIAS COM VIÉS SOCIÓLOGICO

Nos primeiros anos do século XX vimos o aparecimento da sociologia e com ela um novo especialista, o sociólogo, que muito acrescentaria ao estudo da questão criminal. Ela surgiu muito delimitada pelo positivismo vigente na época para depois se desgarrar, e desse afastamento trazer as maiores contribuições para a Criminologia. Deste modo, como uma filha rebelde, a sociologia se opôs às reduções impostas pelo positivismo e apresentou outras visões ao velho para-digma etiológico para com as causas individuais que originam o crime.

O amadurecimento da Criminologia Sociológica permitiu o enriqueci-mento do debate acerca das causas do crime. Os seus adeptos argumentam que a própria sociedade cria condições favoráveis ao surgimento do crime e somente uma mudança em seu germe seria útil ao controle da criminalidade.

Essa linha de pensamento com viés sociológico gerou outras três correntes: a Teoria da Desorganização Social (Escola de Chicago); a Teoria da Subcultura Delinquente e a Teoria da Anomia.

Discorrermos sobre cada uma das teorias citadas, a fim de que possamos entender suas contribuições para a ciência da Criminologia.

4.1 Teoria da Desorganização Social

Muitos são os motivos que levaram a florescer a teoria da Desorganização Social nos Estados Unidos para entendermos este novo enfoque dado à Crimi-nologia com inspiração sociológica, inclusive com o aprofundamento da ques-tão social e política. É preciso analisar o que ocorria nesse período na cultura norte-americana (ANITUA, 2008).

Inicialmente, em meados do século XX, houve por conta das grandes guer-ras a transferência do centro econômico ocidental que se situava na Europa para os Estados Unidos. Embora vista inicialmente como uma terra bucólica quase despovoada, não tardou muito para um enorme contingente de imigrantes fa-zerem do Tio Sam a sua morada, influenciados pela ideia de prosperidade e de vida nova (idem, 2008).

Nessa massa migratória vieram também importantes pensadores europeus que ali encontraram condições políticas, sociais e econômicas favoráveis para a

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propagação e aprofundamento da investigação acadêmica acerca dos fenômenos sociais que os cercavam, exemplo gratia, o crime.

Os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas do século XX mostram os

Estados Unidos imersos em um forte processo de industrialização. Havia abun-

dância de capitais e carência de mão de obra, razão pela qual teve lugar o enorme

movimento migratório, a partir dos países pobres da Europa – Polônia, Itália, Rús-

sia, depois da Escandinávia, antecedida, por sua vez, pela Irlanda e pela Alemanha

etc. Todos estes imigrantes se concentrariam nas cidades mais industrializadas,

como Nova York, Detroit e Chicago, onde surgiram guetos de coletividade com

valores bastantes distintos dos dominantes entre as classes dirigentes (ANITUA,

2008, p. 409).

Esse panorama histórico fez crescer junto aos primeiros sociólogos norte--americanos um interesse por estudos e investigações empíricas que pudessem não só explicar os problemas sociais que surgiam nos seus grandes centros, Nova York, Detroit e Chicago, mas também soluções para dissipar o problema da inte-gração e do controle de uma realidade social heterogênea e conflitiva.

As transformações sociais foram muito rápidas, num curto espaço de tem-po a sociedade agrícola rural rústica americana passou para uma sociedade in-dustrializada, formada por massas de imigrantes dos mais variados países po-bres da Europa, com costumes, línguas e culturas diferentes.

Nesse ínterim, nasce “o Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, um dos primeiros sobre essa disciplina em todo o mundo, foi fundado por Albion W. Small (1854-1926) em 1892” (ANITUA, 2008, p. 412). Também denominada de “Escola de Chicago”, ela desenvolveu ideias e respostas sob o prisma sociológico às questões sociais. “Com efeito, esta Escola não apenas rece-beu do positivismo as primeiras noções sociológicas, mas também as impregnou de conceitos biológicos, motivo pelo qual chamariam também seu trabalho de ‘ecologia social’” (ANITUA, 2008, p. 414).

Mas, afinal, o que os teóricos da Escola de Chicago entendem por desor-ganização social? Eis um conceito de suma importância para a análise do que propõe essa corrente, até porque ela se aplica ao indivíduo e ao coletivo.

Vamos nos valer mais uma vez dos ensinamentos de Anitua, para quem desorganização social:

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É a diminuição da influência das regras de conduta, existentes e reconhecidas, que

controlam os indivíduos do grupo. A sociedade moderna se desorganiza porque

os meios de “controle social” realmente importantes, os baseados na comunidade

e nos grupos de relação primários, enfraqueceram-se por conta da heterogenei-

dade cultural, do anonimato, do individualismo e da concorrência social. Essa

desorganização social determina a desorganização individual e, por conseguinte,

tem-se que estudar a primeira, juntamente com os novos métodos de “controle

social” para solucionar os problemas de marginalização e atraso que produzem,

entre outras coisas, delito (2008, p. 415).

Nesse momento, os imigrados ainda não haviam se integrado à cultura norte-americana, não havia identificação, o que ocorria era a procura por gru-pos de origens semelhantes, grupos secundários de reorganização, por exemplo, igrejas, sociedades de imigrantes, socorros mútuos. Em algumas situações, esses grupos não alcançavam toda a massa e a desorganização individual ocorria, com graves consequências, inclusive criminais (delinquência).

E conforme as lições da Escola de Chicago, esses problemas não podiam ser solucionados pelo Estado, mas sim por um “controle social”, entendido esse controle como a pressão exercida pelo próprio meio social sobre o desajustado, evitando problemas individuais e, em última instância, sociais.

Esse era o panorama histórico que se apresentava quando surgiu a Teo-ria da Desorganização Social ou Ecologia Social ou ainda Escola de Chicago, e podemos citar os sociólogos Clifford Shaw (1896-1957) e Henry Mckay (1899-1972) e sua obra Delinquência juvenil e áreas urbanas, de 1942, como a maior contribuição da Escola de Chicago à Criminologia.

A pesquisa dos sociólogos se baseou na análise de comportamento entre menores infratores. Os índices de delinquência nas vizinhanças de classe baixa, de onde vinham tais infratores, eram os mais altos e diminuíam à medida em que o estudo examinava vizinhanças de classe média.

A ideia principal desta teoria é centrada na análise espacial e aborda, ainda, que a ordem social, estabilidade e integração contribuem para o controle social e a conformidade às leis, enquanto a desordem e a má integração conduzem ao crime e à delinquência. Tal teoria propõe ainda que quanto menor a coesão e o sentimento de solidariedade entre o grupo, a comunidade ou a sociedade, maio-res serão os índices de criminalidade.

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E o que caracteriza uma comunidade desorganizada? Nos Estados Unidos, berço da teoria em tela, lembramos logo dos guetos nos centros urbanos povoados por negros e latinos. No Brasil, podemos citar as favelas e as invasões de terras:

A ecologia social do crime, na verdade, não propunha simplesmente que a causa

direta dos altos índices de criminalidade fossem as condições sociais das comuni-

dades urbanas, - ou seja: pobreza não teria relação direta com a criminalidade -,

mas sim, que a desorganização social observada nessas comunidades enfraquece

os controles sociais informais, desempenhados por instituições como a família,

a igreja, a escola etc., contribuindo assim para os altos índices de criminalidade.

A perspectiva da ecologia social do crime talvez seja uma das mais importantes

no campo da Criminologia porque questiona a razão pela qual as pessoas que

compõem a maioria da população carcerária pertencem a grupos que residem em

áreas com baixas condições sociais, com péssima infraestrutura, poucos recursos

públicos, carente de equipamentos urbanos etc (RIBEIRO, 2010, p. 23).

Em suma, a Escola de Chicago trouxe importante discussão ao mundo acadêmico no âmbito da Criminologia, ao afirmar que a perda da adesão aos lugares e o debilitamento dos freios inibitórios são grandes responsáveis pelo aumento da criminalidade e que só uma mudança radical com investimentos na melhoria da urbanização e o aumento do sentimento de pertencimento a uma comunidade é que poderiam surtir efeito na prevenção da delinquência.

4.2 Teoria da Anomia

A Teoria da Anomia teve seus primeiros conceitos trabalhados pelo criador do pensamento sociológico moderno, Emile Durkeim (1858-1917). Durkeim teve como objeto de estudo a sociedade, mas se diferenciou de outros sociólogos de sua época, ao abandonar o enfoque reducionista e racional da ciência socioló-gica, em que o comportamento humano e as realidades sociais eram explicados apenas por relações de causas e efeitos (BARATTA, 2011, p. 62-63). Ele introduziu a ideia de função, ou seja, cada instituição exerceria uma atividade específica e o seu mau funcionamento acarretaria um descontrole e buscou verificar a relação dos efeitos dos fatos sociais no sistema (sociedade), como se fizessem parte de

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uma mesma unidade. Essa nova abordagem social recebeu o nome de funciona-lismo (BARATTA, 2011, p. 62-63).

Ele ainda trabalha com a ideia de normal e patológico, mas se diferencia dos positivistas, ao identificar o fato normal como geral, isto é, aquilo que se produz com mais frequência numa determinada sociedade e o fato patológico como incomum:

Nesse sentido, ele considera o delito um fato social normal, sempre e quando não

alcançasse índices exagerados: ‘O delito não se observa somente na maioria das

sociedades desta ou daquela espécie, mas sim nas sociedades de todos os tipos.

Não existe nenhuma sociedade em que não haja criminalidade’ (ANITUA, 2008,

p. 441).

O delito foi um dos principais objetos de estudo de Durkheim. Para ele o delito e sua consequência, as penas, cumprem uma função social. O crime pro-voca uma reação social que estabiliza uma sociedade e mantém vivo o sentimen-to coletivo de conformidade às normas, pois ele e sua consequência institucional as penas, reforçam a adesão da coletividade aos valores dominantes.

Outro importante objeto de estudo foi o suicídio, por meio de dados esta-tísticos avaliou o aumento do suicídio e do crime como fatores importantes do social, da ordem e do conflito nas sociedades (consciência coletiva).

Desse modo, a total falta ou anormalidade nessa consciência coletiva pode gerar um estado social de anomia. Podemos verificar que Durkheim foi o pri-meiro a trabalhar esse termo, especificamente na sua obra O suicídio, de 1897, e posteriormente melhor desenvolvido por Robert Merton:

Com o conceito de anomia pretende-se assinalar uma situação na qual se verifica

uma ausência de normatividade de toda índole: moral, jurídica, econômica, polí-

tica e religiosa. Na realidade, trata-se de uma situação de confusão pela existência

de pluralidade de normativas e por desacordos básicos entre elas, o que será por-

tanto, uma situação especial e que tenderá a normalizar-se com a afirmação de

uns valores sobre outros (ANITUA, 2008, p. 450).

Anomia é uma palavra de origem grega cujo significado nos remete à ex-pressão “ausência de lei”. Em geral, por anomia se entende uma situação em que

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se constata a falta de normas que vinculem as pessoas num contexto social, isto é, anomia denota ausência de referências na sociedade. Não se trata somente de um problema dos indivíduos que transgridem regras de comportamento, nem de uma situação de conflito e deveres em casos concretos mas de uma crise social de cará-ter amplo, na qual os membros de grandes grupos sociais não sabem o que fazer.

O sociólogo norte-americano Robert King Merton (1910-2003) foi o me-lhor autor a desenvolver os conceitos durkheiminianos de função e de anomia:

Seguindo com grande rigor a Durkheim, Merton opunha-se, portanto, a qualquer

concepção patológica do comportamento desviado. Igualmente, e como todo o

funcionalismo, criticava as visões ‘anárquicas’ do mundo que surgem do contra-

tualismo ou da psicologia [...] Para Merton, a estrutura social não se opõe, subjuga

nem domina o indivíduo, mas sim constitui com ele um todo indissociável. Pelo

mesmo motivo, a sociedade não só gera rebeldia e a sanciona como patológica,

mas produz também, antes de tudo, consenso. Basicamente, a sociedade não pode

ser pensada em termos individuais (ANITUA, 2008, p. 474).

O desvio para Merton era produto normal da estrutura social, ou seja, o desviado não é doente, mas fruto de uma pressão da própria estrutura social. A motivação para a delinquência decorreria da impossibilidade de o indivíduo atingir metas desejadas por ele, como sucesso econômico ou status social, im-postas pela estrutura cultural, uma atitude inconformista frente as regras sociais apresentadas, pois ao mesmo tempo sobre este sujeito há uma pressão social para que ele alcance metas e não exista meios legítimos para o seu alcance.

O cometimento do crime decorre da pressão da estrutura cultural e das contradições destas com a estrutura social:

A desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos como

válidos e os meios legítimos, à disposição do indivíduo para alcançá-los, está na

origem dos comportamentos desviantes. [...] A cultura, ou “estrutura cultural” é,

para Merton, o “conjunto de representações axiológicas comuns, que regulam o

comportamento dos membros de uma sociedade ou de um grupo”. A estrutura

social é, ao contrário, “o conjunto das relações sociais, nas quais os membros de

uma sociedade ou de um grupo estão diretamente inseridos”. Anomia é, enfim,

“aquela crise da estrutura cultural, que se verifica especialmente quando ocorre

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uma forte discrepância entre normas e fins culturais, por um lado, e as possibili-

dades socialmente estruturadas de agir em conformidade com aquelas, por outro

lado (BARATTA, 2011, p. 63).

Em suma, para Merton face a impossibilidade de a estrutura social oferecer a todos as mesmas possibilidades legítimas para alcançar metas de bem-estar, em função das próprias diferenças que existem em uma sociedade capitalista, esses desvios sempre existirão e quando estas incongruências superam limites razoáveis, transforma-se numa crise de anomia. Logo Merton, que era um refor-mista entendia que somente uma adequada distribuição dos bens e das condi-ções da realidade era possível evitar a anomia.

4.3 Teoria das Subculturas Criminais

A Teoria das Subculturas Criminais tem origem nas ideias da Escola de Chicago. Inicialmente tem como seu objeto de pesquisa as grandes cidades norte-americanas e o processo de imigração que ocorria historicamente nesse período, tudo com o objetivo de explicar como as relações culturais e sociais influenciam a prática criminosa (ANITUA, 2008).

Os principais expoentes desta teoria foram, sem dúvida, Albert K.Cohen (1903-1984) e Richard Cloward (1926-2001). Conforme Gabriel Anitua (2008, p. 498), os teóricos das subculturas utilizam o conceito de cultura que provém da tradição funcionalista a fim de se fazer entender, logo:

Cultura é o conjunto de costumes, códigos morais e jurídicos de conduta, crenças,

preconceitos etc. que as pessoas de uma comunidade compartilham e aprendem

no convívio social. Sem dúvida, esses teóricos das subculturas acreditavam que

dentro da cultura geral podem existir subgrupos que, embora identificando-se,

em geral, com esses valores fundamentais, distinguem-se dela em algumas ques-

tões relevantes. Conforma-se assim uma subcultura. Quando essa subcultura va-

loriza ou dá desculpas para aquelas condutas que, para a cultura geral, são deliti-

vas, estamos diante de uma subcultura criminosa.

Na subcultura criminosa, as condutas definidas pela moral e pelo direi-to como delitivas são valorizadas, e, assim como a sociedade dominante impõe

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sanções àqueles que deixam de cumprir as leis, a subcultura violenta pune com o ostracismo, o desdém ou a indiferença os indivíduos que não se adaptam aos padrões do grupo.

Outro trabalho importante para delimitar os traços da teoria da subcul-tura criminosa foi a obra Jovens delinquentes: a cultura das gangues (1955), de Albert Cohen. O autor entendia gangues como um grupo organizado integra-do por jovens que se reuniam com habitualidade, tinham estrutura hierárquica e adotavam critérios de admissão. Os jovens buscavam nesses grupos resolver problemas de adaptação causados pela cultura dominante, por meio de uma identificação a crenças e valores baseados em modelos delinquenciais, ou seja, Cohen tenta realizar uma síntese entre as teorias da anomia e a das associações diferenciais (ANITUA, 2008).

Há ainda o trabalho do teórico Richard Cloward, que também trabalhou a ideia da subcultura nas gangues juvenis, mas contrapondo Cohen, afirmava quem nem todos os jovens de classe baixa desejam viver como a classe média vive. E o grupo que poderá desenvolver uma subcultura delinquencial é o que não aceita os valores culturais da classe média, mas aspira ter mais dinheiro e como as oportunidades legítimas para o seu alcance são limitadas, obterão por meio ilícitos.

Constata-se, na subcultura criminosa, que o meio social é um requisito im-portante, tanto para o bem quanto para o mal, ele pode oferecer os meios para o encorajamento dos comportamentos reprováveis ou ele pode produzir os meios de controle para regular o comportamento delitivo.

Desse modo, a teoria da subcultura criminosa tem como fundamento prin-cipal o fator econômico como causador da criminalidade. Os seus adeptos ale-gam que somente uma redução nas desigualdades sociais é possível a diminui-ção e, quiçá, a erradicação do crime.

Outro importante teórico a contribuir com a teoria das subculturas crimi-nais foi Edwin H. Sutherland, este integrou a Escola de Chicago, como egresso e como pesquisador, razão pela qual suas obras foram bastante influenciadas pelas teorias da ecologia social, e como tal, criticava veementemente as teorias biolo-gicistas que tentavam explicar a criminalidade por meio de causas biológicas e psicológicas, bem como também a chamada teoria da desorganização social que vinculava delinquência e pobreza (ANITUA, 2008).

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Sutherland passou boa parte da sua vida acadêmica elaborando uma teoria geral que pudesse explicar todo e qualquer tipo de delinquência, coisa que o positivismo criminológico não havia conseguido, pois suas explicações eram ba-seadas na pobreza ou problemas psicológicos. E na prática se verificava que tais causas não eram absolutas, pois ora o delito ocorria e elas não estavam presentes, ora elas estavam presentes e os sujeitos não delinquiam.

Desse modo, sua obra sofreu outras influências e se valeu de conceitos de vários autores na formação de sua teoria, por exemplo, de Shaw e Mckay, extraiu a ideia de desorganização social como fator de delito e o chamou de organização social diferenciada; de Mead adotou o interacionismo simbólico e de Thorsten Sellin emprestou a ideia do conflito cultural. Esse conjunto de ideias permitiu a Sutherland elaborar a teoria das associações diferenciais:

[...] O comportamento delitivo não é determinado geneticamente, nem é produ-

zido por problemas na personalidade, e nem pela pobreza. Trata-se, sim, de um

comportamento aprendido por meio do contato diferencial.

[...] O comportamento se aprende quando as definições do grupo mais influente

são contrárias à norma, posto que cada indivíduo entra em contato com nume-

rosos grupos, alguns dos quais podem ser reativos ao cumprimento das leis, en-

quanto outros podem ser favoráveis. O princípio do contato diferencial indica que

uma pessoa se converte em delinquente porque em seu meio há mais definições

favoráveis a infringir a lei e, por conta disso, consegue isolar os grupos que tendem

a respeitá-la (ANITUA, 2008, p. 492).

Eis que Sutherland alcançou o que almejava: elaborou uma teoria geral, a teoria das associações diferenciais, em que analisa as formas de aprendizagem do comportamento criminoso aplicada em particular à delinquência de colarinho branco (BARATTA, 2011, p. 71).

Outra grande contribuição teórica de Sutherland para a Criminologia foi a criação do conceito da criminalidade do colarinho branco, em 1939, que foi muito importante no desenvolvimento da teoria da crítica radical.

Verificamos, assim, que a relação entre a teoria funcionalista e a teoria das subculturas criminais não é uma relação de exclusão recíproca, mas uma relação de compatibilidade.

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5. LABELING APPROACH THEORY OU TEORIA DO ETIQUETAMENTO SOCIAL

Para entendermos a sociologia do conflito, é necessário perpassarmos pela Labeling Approach como ponto de partida para o desenvolvimento da Crimino-logia crítica (BARATTA, 201, p. 116).

Conforme Patrícia Alves (2015), Labeling Approach é uma teoria crimino-lógica “marcada pela ideia de que as noções de crime e criminoso são construí-das socialmente por uma definição legal das ações de interesses oficiais de con-trole social sobre o comportamento de determinados indivíduos”. Assim, para se compreender a criminalidade precisa-se estudar também o sistema penal, suas normas abstratas e a ação das instâncias oficiais, exemplo, polícia, juízes, insti-tuições penitenciárias, responsáveis pelo controle social e pela etiqueta atribuída a certos indivíduos como delinquentes.

A Labeling Approach surgiu em 1960, nos Estados Unidos, num período de transição entre a Criminologia tradicional e a Criminologia crítica, rechaçando a ideia desenvolvida pela Criminologia positivista de que a qualidade criminal existe objetivamente (ALVES, 2015).

Alesandro Baratta (2011, p. 87) preleciona que a Labeling Approach se situa entre duas correntes da sociologia americana, estreitamente ligadas entre si, a primeira denominada interacionismo simbólico, inspirada em George H. Mead, e a segunda a etnometodologia, inspirada em Alfred Schutz:

Segundo o interacionismo simbólico, a sociedade – ou seja, a realidade social – é

constituída por uma infinidade de interações concretas entre os indivíduos, aos

quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situa-

ções concretas e continua a estender-se através da linguagem. Também segundo

a etnometodologia, a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer sobre

o plano objetivo, mas o produto de uma “construção social”, obtida graças a um

processo de definição e de tipificação por parte dos indivíduos e de grupos diver-

sos. E, por consequência, segundo o interacionismo e a etnometodologia, estudar

a realidade social (por exemplo, o desvio), significa, essencialmente, estudar estes

processos, partindo dos que são aplicados a simples comportamentos e chegando

até as construções mais complexas, como a própria concepção de ordem social.

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Destarte, a Teoria do Etiquetamento Social é uma ruptura com a Teoria Criminológica Positivista, uma mudança do paradigma etiológico determinista para a Criminologia crítica com base na teoria marxista do conflito de classes, isto é, a reação social deslocou os estudos da pessoa do criminoso para as pes-soas que definem quem é delinquente:

Os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo “quem é criminoso?”,

“como se torna desviante?”, “em quais condições um condenado se torna reinci-

dente?”, “com que meios se pode exercer controle sobre o criminoso?”. Ao con-

trário, os interacionistas, como em geral os autores que se inspiram no labeling

approach, se perguntam: “quem é definido como desviante?”, “que efeito decorre

desta definição sobre o indivíduo?”, “em que condições este indivíduo pode se

tornar objeto de uma definição?” e, enfim, “quem define quem?”

A pergunta relativa à natureza do sujeito e do objeto, na definição do comporta-

mento desviante, orientou a pesquisa dos teóricos do labeling approach em duas

direções: uma direção conduziu ao estudo da formação da identidade desviante,

e do que se define como “desvio secundário”, ou seja, o efeito da aplicação da eti-

queta de “criminoso” (ou também de “doente mental”) sobre a pessoa em quem se

aplica a etiqueta; a outra direção conduz ao problema da definição, da constituição

do desvio como qualidade atribuída a comportamentos e a indivíduos, no curso

da interação e, por isto, conduz também ao problema da distribuição do poder de

definição, para o estudo dos que detêm, em maior medida, na sociedade, o poder

de definição, ou seja, para o estudo das agências de controle social (BARATTA,

2011, p. 88-89).

A conduta desviante primária é fruto, em geral, de uma série de fatores sociais, econômicos, culturais e psicológicos, e os desvios chamados de secun-dários ocasionam a reação social, o etiquetamento, aplicado aos desviantes pela sociedade funcionando como uma estigmatização, um sistema irregular de atri-buições de estereótipos.

Nestor Sampaio Filho (2014, p. 74) ensina que:

A criminalidade primária produz a etiqueta ou rótulo, que por sua vez produz a

criminalização secundária (reincidência). A etiqueta ou rótulo (materializados em

atestado de antecedentes, folha corrida criminal, divulgação de jornais sensacio-

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nalistas etc) acaba por impregnar, causando a expectativa social de que a conduta

venha a ser praticada, perpetuando o comportamento delinquente e aproximando

os indivíduos rotulados uns dos outros. Uma vez condenado, o indivíduo ingressa

numa “instituição” (presídio), que gerará um processo institucionalizador, com

seu afastamento da sociedade, rotinas de cárcere etc.

A análise do processo de etiquetamento passa pelo senso comum, para que um individuo possa ser etiquetado como desviante ou violador da norma não basta infringir a routine. A ação tem que desencadear uma reação social correspondente.

E Baratta (2011, p. 96), em excelente exposição, elenca três condições gerais estipuladas pelo senso comum, para se caracterizar o que seja desvio, e a conse-quente reação social correspondente:

1) um comportamento que infrinja a routine, distanciando-se dos modelos das

normas estabelecidas; 2) um autor que, se tivesse querido, teria podido agir diver-

samente, ou seja, de acordo com as normas; 3) um autor que sabia o que estava

fazendo. Como se pode ver, as categorias presentes na atribuição da responsabi-

lidade moral e de desvio criminal, dentro do senso comum, correspondem exa-

tamente às três categorias construídas pela ciência jurídica, que determinam a

imputação de um delito a um sujeito, segundo o pensamento jurídico: violação da

norma, consciência e vontade.

Em resumo, as teorias da criminalidade baseadas no labeling approach con-duziram a contribuições substanciais a teoria crítica e romperam com a ideolo-gia criminalística tradicional que nem de longe aplicava o principio da igualda-de, ao contrário, criou uma estrutura com funcionamento estratificado em que os que detinham o poder criavam e aplicavam a lei penal conforme seu interesse, mediante processos seletivos.

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6. CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU RADICAL

O pensamento criminológico do final do século XX rompeu praticamente com tudo que até aquele momento era apresentado como causa do fenômeno delito e foi resultado de várias mudanças sociais, políticas e econômicas que ocorriam. Recebeu a denominação de Criminologia Crítica, Nova Criminolo-gia, Criminologia Radical ou ainda Criminologia Marxista.

Podemos identificar a mudança de paradigma por volta dos anos 1960, ini-cialmente nos Estados Unidos, quando se verificou que o sucesso do desenho de equilíbrio social, defendido por Keynes e aplicado pelas políticas do New Deal, não alcançavam a todos e nem podiam, pois implicitamente o sistema capitalista de antemão já determinava isso.

Em nome da segurança, por um período foi aceito esse sistema de domina-ção sem questionamentos, uma vez que podia ser visto como um período preferí-vel ao que a humanidade havia experimentado de guerras, fome e incertezas. Mas as minorias étnicas, as grandes maiorias marginalizadas e as mulheres passaram a questionar suas posições subordinadas e alheias ao sistema de ganhos, isto é, não aceitavam mais migalhas em nome da manutenção do sistema.

Claro que essa mudança não ficou restrita aos limites dos Estados Unidos, Europa, embora um pouco mais tarde, e principalmente a América Latina, alme-javam transformações no sistema de exploração vigente:

[...] Importantes contingentes reclamavam contra um modelo dependente de de-

senvolvimento que não fazia senão reforçar o modelo de extração de riquezas para

subvencionar o modelo capitalista central. Contra essas reivindicações, os setores

dominantes acabaram “arrancando a máscara” do desenvolvimento e colocando

a da reação, com o apoio norte-americano, mediante repressões e violações dos

direitos humanos, que começam a ser gestados nessa década de 1960 (ANITUA,

2008, p. 572).

E foi natural a transferência da recusa desse modelo econômico e político repressor e explorador para a recusa ao modelo científico em vigor na época, representada pela sociologia estrutural-funcionalista.

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Esquerda e direita reacionária ideologicamente convergiam na busca por uma alternativa ao modelo liberal, um modelo capaz de organizar novas formas sociais, recusando a cultura do ter e a valorização do ser, uma nova moral.

Neste diapasão, esse modelo econômico, político e cientifico já não servia mais a uma grande leva de pessoas, inclusive pensadores, e as críticas foram se acirrando surgindo daí uma leitura radical da questão criminal.

Assim o foi, que a ruptura a esse modelo de bem-estar ideal primeiramente ocorreu no centro mais avançado de estudos em Criminologia na época, locali-zado no campus de Berkeley, na Universidade da Califórnia. Professores e alunos decidiram formar a União de Criminólogos Radicais, seus estudos superaram a supremacia da Criminologia Clínica, que explicava as causas do delito a partir de bodes expiatórios sancionados pelo sistema e evitavam a cifra negra (criminosos de colarinho branco). Mudaram o objeto de pesquisa da criminalidade para os aparelhos que a geram e a manipulam.

O termo Criminologia Radical surgiu na Escola de Frankfurt, na Alema-nha, mas seu desenvolvimento ocorreu mesmo nos Estados Unidos, nos anos 1970, e num primeiro momento unificou grupos adeptos do interacionismo e grupos adeptos do materialismo.

Conforme Juarez Cirino (2008, p. 05), “um dos primeiros estudos siste-máticos do desenvolvimento da teoria criminológica sob um método dialético, aplicando categorias do materialismo histórico, é o trabalho coletivo The New Criminology”.

Na realidade, comumente na literatura especializada é mencionada como a obra mais importante no âmbito da Criminologia Crítica e com maior repercus-são dentro e fora de seu país de origem, pois empreenderam uma das primeiras exposições críticas sobre a história dos pensamentos criminológicos, relacionan-do essas teorias aos sistemas de produção e consumo vigentes.

No Brasil, o maior expoente dessa teoria é o professor Juarez Cirino dos Santos (1942), doutor em Direito Penal (UFRJ), professor universitário aposen-tado, pesquisador, escritor e advogado brasileiro, e suas obras Uma crítica ao positivismo em Criminologia (1979), A Criminologia Radical (1981) e As raízes de um crime (1984) compõem o tripé que sustenta a criação da moderna Crimino-logia Crítica no Brasil.

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[...] Nas sociedades capitalistas, a indicação das estatísticas é no sentido de que

a imensa maioria dos crimes é contra o patrimônio, de que mesmo a violência

pessoal está ligada à busca de recursos materiais e o próprio crime patrimonial

constitui tentativa normal e consciente dos deserdados sociais para suprir carên-

cias econômicas (SANTOS, 2008, p. 12).

Historicamente, no decorrer do século XVIII, verificamos uma suavização da pena muito em virtude de um outro fenômeno observado, a diminuição nos crimes de sangue em comparação aos crimes contra a propriedade.

Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade

de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figuram o desenvol-

vimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral

maior das relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um po-

liciamento mais estreito da população, técnicas mais bem-ajustadas de descober-

ta, de captura, de informação: deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma

extensão e de um afinamento das práticas punitivas (FOUCAULT, 2014, p.77-78).

Outra grande mudança observada com o desenvolvimento do capitalismo foi a separação das ilegalidades dos bens das ilegalidades dos direitos, em que a ilegalidade dos bens diz respeito às classes mais baixas e a ilegalidade dos direitos à classe burguesa.

Na formação do capitalismo, a criminalidade é reestruturada a nível de prática cri-

minal, de definição legal e de repressão penal, pela posição das classes do autor: a)

massas populares, especialmente os lumpens2, circunscritas à criminalidade patri-

monial, são submetidas a tribunais ordinários e castigos rigorosos; b) a burguesia,

circulando nos espaços da lei, permeados de silêncios, omissões e tolerâncias, mo-

ve-se no mundo protegido da “ilegalidade dos direitos”, composto de fraudes, eva-

2 Lumpens é o grupo do proletariado em condição marginal, de acordo com a sociologia marxista. A prin-cipal característica do lumpemproletariado é a ausência de consciência de classe e consequente desin-teresse na revolução e luta dos trabalhadores. O termo foi utilizado pela primeira vez na obra a Ideologia alemã, em que Karl Marx os definiu como um grupo de degradados, que tem meios de vida duvidosos. A origem do termo vem do alemão Lumpenproletariat, que une a palavra proletariado, que significa a classe trabalhadora, à lumen, que quer dizer trapo ou pode ser ligado a uma característica pejorativa no comportamento humano, como alguém que fez alguma coisa errada ou fora da lei. Disponível em: https://www.significados.com.br/lumpenproletariado/ Acesso em 7 de ago. de 2017.

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sões fiscais, comércio irregular etc.- na gênese histórica da futura criminalidade

de “colarinho branco”. [...]. A nova ‘tecnologia do poder’ da sociedade capitalista

desloca o direito de punir, da vingança do soberano para a ‘defesa social’- obvia-

mente entendida como defesa das condições materiais e ideológicas da sociedade

capitalista -, com base na teoria do contrato social, segundo a qual a condição de

membro do corpo social implica aceitação das normas sociais, e a violação dessas

normas, a aceitação da punição (SANTOS, 2008, p.74-75).

Podemos depreender do que foi exposto até o momento que a classe domi-nante adequou o aparato judiciário as suas necessidades, por meio de regulamen-tos conformes seus interesses, tolerância as suas irregularidades e a manutenção do status quo. Por conseguinte, a concepção da Criminologia radical parte do reconhecimento que a questão penal não está somente ligada a contradições que se exprimem sobre o âmbito das relações de distribuição, mas sobretudo às con-tradições estruturais que derivam das relações sociais de produção. Razão pela qual a alternativa apresentada como política criminal por esta teoria não pode ser apenas a política de substitutos penais que se limitem vagamente a reformas humanitárias, necessário se faz que haja uma reforma social e institucional para que a igualdade material seja realizada.

Assim, são objetivos da teoria radical a despenalização, significando a subs-tituição das sanções penais por formas de controle legal não estigmatizantes, exemplo, sanções administrativas e/ou civis; a privatização dos conflitos onde fosse possível e a redução das desigualdades materiais e, sobretudo, uma reforma profunda da organização judiciária e polícia, no intuito de rever os fatores de criminalização seletiva, instituídos pela classe dominante.

Como Alessandro Baratta leciona: “a derrubada dos muros do cárcere tem para nova Criminologia o mesmo significado programático que a derrubada dos murros do manicômio tem para a nova psiquiatria” (2014, p. 203).

Enfim, é uma teoria que traz alternativas de política criminal de ruptura parcial com o sistema ainda vigente.

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CONCLUSÃO

Tradicionalmente, a Criminologia como ciência com campo de atuação delimitado, estruturado e sistematizado é um fenômeno recente, mais precisa-mente segunda metade do século XIX, sua origem tem fundamento positivista e por isso seu horizonte de estudo num primeiro momento se restringiu à explica-ção causal do delito e do delinquente.

Através da evolução histórica do mundo e das próprias escolas de pensa-mento criminológico, vimos o seu próprio objeto – o delito – sofrer novas abor-dagens. A ampla ligação da Criminologia com outros ramos do conhecimento, por exemplo, Filosofia, Psicologia e Sociologia também permitiram esse vagar quanto aos motivos que levam o delito a existir e persistir em nossa sociedade.

Destarte, na realidade, o crime e a violência têm crescido desenfreadamen-te em âmbito mundial, razão pela qual seu estudo é relevante e possui destaque junto à população, tanto das classes baixas quanto das classes altas, sendo um evento que atinge a todos indiscriminadamente.

Constatamos que as escolas, desde a Clássica, Positivista, as com viés Socioló-gico e o Labeling Approach foram perdendo eficácia quanto às soluções apresentadas para a redução ou mesmo extinção do crime, em função até mesmo do dinamismo que cerca às ciências modernas. Contudo, suas contribuições teóricas tiveram a seu tempo papel fundamental ao amadurecimento da Criminologia como ciência.

Nas Escolas Clássicas, século XVII, os estudos de Beccaria e Bentham trou-xeram um alento ao sistema penal até então baseado nos suplícios. A Escola Positivista, influenciada pelo Iluminismo, trouxe o método científico à área cri-minal, é nesse período também que a Criminologia ganha status de ciência. Já as Escolas Unitárias acrescentaram um viés sociológico à Criminologia, apresen-tando uma visão mais ampla ao paradigma etiológico das causas que originam o crime, incluindo a sociedade como causa da criminalidade e como tal respon-sável pela sua redução. O Labeling Approach Theory foi mais profundo e trouxe a discussão ao nível econômico, ao discutir que a estratificação e o antagonismo dos grupos sociais têm influência fundamental no que se deve entender como ação desviante.

Quanto à Teoria Crítica Radical, suas alternativas à redução da criminali-dade são bem atuais e ainda não implementadas, pelo que podem ser a resposta que procuramos para o estanque desse mal que assola a todos, a criminalidade.

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Concluindo, a Teoria Crítica Radical traz uma abordagem sui generis no tratamento do crime e suas consequências, quase uma ruptura total com o sis-tema vigente, mas ate então não aplicado e que pode vir a ter o efeito esperado, a extinção ou ao menos a redução da escalada da criminalidade. Talvez a substi-tuição da prisão por sanções administrativas ou civis onde fosse possível, a redu-ção das desigualdades materiais e a tipificação também dos crimes de colarinho branco como crimes de grande monta, poderíamos trazer uma luz a esse cenário caótico em que nos encontramos em termos de criminalidade.

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PÓS-MODERNIDADE, PLURALISMO JURÍDICO E O DESAFIO DA CRISE AMBIENTALPOSTMODERNITY, LEGAL PLURALISM AND THE

CHALLENGE OF THE ENVIRONMENTAL CRISISJuliana Mayara da Silva Sampaio1

Rômulo de Souza Barbosa2

Sumário: Introdução; 1. As transformações do mundo no Pós-Segunda Guerra

Mundial; 1.1 Pós-modernidade: cultura e paradigma científico em construção na

atualidade; 2. Do monismo estatal ao pluralismo jurídico: reflexões conceituais e

históricas; 2.1 Pluralismo jurídico: uma das novas tendências que caracterizam a

cultura pós-moderna no Direito; 3. Crise ambiental e ineficiência do Direito Esta-

tal 3.1 Pluralismo jurídico e sustentabilidade ambiental; Conclusão; Referências.

RESUMO: O presente artigo buscou fazer uma reflexão acerca das impli-cações trazidas para o Direito e para a produção da norma jurídica com a tran-sição do paradigma da modernidade para o ainda em construção paradigma da pós-modernidade. Abordou-se também a importância do que se vem chamando de pluralismo jurídico diante da crise no modelo de produção jurídico monista. Também se buscou refletir ao longo do trabalho se, diante da crise ambiental que afeta a humanidade e coloca em risco a própria sobrevivência da espécie hu-mana, as normas produzidas apenas pelo Estado, que nem sempre atendem aos interesses reais de todas as comunidades existentes em uma sociedade complexa, como é o caso do Brasil, conseguem enfrentar esse problema com a devida efi-ciência que se faz necessária ou, se o pluralismo jurídico, embora não reconhe-cido pelo Estado, possa ser um instrumento jurídico que traga uma melhor res-posta ao desafio da proteção ambiental. Dessa maneira, chegou-se à conclusão da ineficiência do Direito em atender às necessidades e interesses da sociedade,

1 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Professora da Secretaria Municipal de Educação de Manaus. Servidora pública na Polícia Civil do Amazonas.

2 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Promotor de justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas.

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como a proteção devida do meio ambiente, e que a complexa sociedade brasilei-ra não se vê representada por um direito monista, positivista e hegemônico, que consagra apenas um modelo de vida.

PALAVRAS- CHAVE: Pós-modernidade. Monismo. Pluralismo Jurídico. Crise Ambiental.

ABSTRACT: The present article sought to reflect on the implications brought to the Law and to the production of the legal norm with the transition from the paradigm of modernity to the still under construction paradigm of what has been called postmodernity. It was also discussed the importance of what is being called legal pluralism in the face of the crisis in the model of mo-nistic legal production. It was also sought to reflect throughout the work if, in the face of the environmental crisis that affects humanity and jeopardizes the very survival of the human species, norms produced by the State alone do not always reflect and serve the real interests of all existing communities such as Brazil, are able to address this problem with the necessary efficiency, or if legal pluralism, although not recognized by the State, can be a legal instrument that brings a better response and adequacy to the issues environmental sustainability. A critical-inductive methodology was used, analyzing isolated studies to reach a conclusion, and a bibliographical research was done in books and articles re-levant to the research. What has been concluded is that the inefficiency of the Law in meeting the needs and interests of society, such as due protection of the environment, is a fact and that complex Brazilian society is not represented by a monistic, positivist and hegemonic right that only consecrates a model of life.

KEYWORDS: Postmodernity. Monism. Legal Pluralism. Environmental Crisis.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca fazer uma reflexão acerca das implicações trazidas para o Direito e para a produção da norma jurídica com a transição do paradig-ma da modernidade para o ainda em construção paradigma da pós-modernida-de. É inconteste o fato de que o Direito estatal está passando por um momento de crise e, dentro desse cenário, entra-se em evidência e discussão o também in-

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contestável fato da existência de ordenamentos jurídicos paralelos ao produzido pelo Estado, o que se vem chamando de pluralismo jurídico.

Também se pretende refletir, ao longo deste trabalho, se, diante da crise ambiental que afeta a humanidade e coloca em risco a própria sobrevivência da espécie humana, as normas produzidas apenas pelo Estado conseguem enfren-tar esse problema com a devida eficiência que se faz necessária ou, se o plura-lismo jurídico, embora não reconhecido pelo Estado, possa ser um instrumento jurídico que traga uma melhor resposta e adequação às questões da sustentabi-lidade ambiental.

A fim de alcançar uma melhor compreensão dos problemas apresentados e de uma possível conclusão para eles, utilizou-se de uma metodologia crítica-in-dutiva e fez-se uma pesquisa bibliográfica, em livros e artigos relevantes para a pesquisa. Este artigo encontra-se dividido em três capítulos.

No primeiro capítulo, faz-se uma breve incursão nas transformações histó-ricas e paradigmáticas pelas quais vêm passando as sociedades desde a constru-ção do Estado moderno, demonstrando os fundamentos que embasaram a cons-trução do que se passou a denominar de sociedade moderna, bem como seus ideais, princípios, forma de organização e, sobretudo, a construção e a produção do conhecimento, os quais se pautaram na busca pela verdade e por investigação científica, o discurso predominante dessa sociedade e, em seguida, na mesma linha, será dada uma abordagem para o que se vem chamando de pós-moderni-dade, paradigma ainda em desenvolvimento.

No segundo capítulo, verifica-se as consequências inevitáveis trazidas, tanto pelo paradigma modernista quanto pelo paradigma em desenvolvi-mento pós-modernismo para a produção da norma jurídica. O Monismo e o Positivismo caracterizaram o modelo de produção da norma jurídica des-de a construção do Estado Moderno e vem prevalecendo até os dias atuais, contudo, diante da crise nos fundamentos da sociedade moderna e diante das novas necessidades e anseios sociais, decorrentes de uma formação complexa de sociedades, como a brasileira, esse modo de produção do Direito torna-se ineficiente e deixa de ser, portanto, a única forma de regulamentação das re-lações sociais, desencadeando, consequentemente, o que atualmente se tem denominado de pluralismo jurídico.

Por fim, no terceiro capítulo, traça-se, brevemente, um panorama crítico da crise ambiental e da ineficiência desse Direito estatal em responder adequa-

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damente a esse problema, pois esse Direito não só ignora a existência de outras realidades e de outros modos de viver e de se relacionar com a natureza, como também ignora as produções normativas3 existentes no interior das comunida-des tradicionais e que conseguem melhor atender às necessidades de proteção ambiental e de um desenvolvimento sustentável. Neste capítulo, ilustra-se essa realidade de pluralismo jurídico e adequada proteção ambiental que esse me-canismo consegue promover com um trabalho de pesquisa desenvolvido por Trevisan e Leão (2014)4 dentro de uma comunidade de pescadores.

1. AS TRANSFORMAÇÕES DO MUNDO NO PÓS--SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

A sociedade moderna, construída a partir da ruína do modelo feudal, séc. XV, e consolidada com o advento da Revolução Industrial, considerando princi-palmente a fase de expansão do capitalismo industrial a partir da segunda me-tade do séc. XIX, foi calcada na conversão do discurso científico como fonte hegemônica de conhecimento, desprezando-se as demais formas de saberes – conforme constatação recorrente dos pensadores que procuram compreender os caminhos e papel da ciência na contemporaneidade, como Ilya Prigogine, Thomas Kuhn, Edgar Morin, Boaventura de Sousa Santos, entre outros.

Nesse ponto, a busca pela verdade e por investigação científica converte-se na matriz da modernidade, especialmente eurocêntrica, sociedade em que pri-meiro se verifica a institucionalização do pensamento racional cartesiano (evi-dência, análise, síntese, enumeração) e do empirismo baconiano (experimenta-ção) como único e certo caminho para a condução do progresso e evolução da humanidade, consolidada posteriormente na visão positivista da ciência a partir de meados do séc. XIX (SANTOS, 2002, p. 18-19).

Nesse ponto da história, o desenvolvimento social é visto como fruto do “estreito relacionamento entre ciência e técnica, entre laboratório e fábrica” (AR-RUDA; PILLETI, 1997, p. 235), sendo seu resultado a tecnologia, invenção da

3 Autores como Boaventura de Souza Santos (1988) e Antônio Carlos Wolkmer (2001) reconhecem haver produções normativas paralelas não-oficiais, não-estatais, paralelas ao Direito Estatal.

4 Revista Sociedade e Estado, v. 29, 2014. Disponível em <http://www.scielo.br> Acesso em 1 de out. de 2017.

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modernidade “ligada ao ambicioso projeto dos modernos de construir um mun-do de acordo com seus desejos” (CASA et al. 2011).

Assim, conforme análise de Alain Touraine (1995, p. 38-40), a sociedade moderna caracteriza-se pela: predominância da forma (método empírico), bus-ca da autonomia pela razão (rejeição das verdades religiosas), visão materialista da busca pelo progresso, com o domínio da natureza pelo homem.

No plano social, recorrendo ao pensamento marxista, verifica-se a espe-cialização do trabalho e condicionamento da luta política pelas classes sociais (burguesia e proletariado). O espírito da modernidade é bem definido por Boa-ventura de Souza Santos:

Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas ope-

rações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas,

um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racio-

nalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos

que o constituem. Esta ideia do mundo máquina é de tal modo poderosa que vai

transformar-se na grande hipótese universal da época moderna [...] vindo consti-

tuir um dos pilares da ideia de progresso que ganha corpo no pensamento euro-

peu a partir do séc. XVIII e que é o grande sinal intelectual da ascensão da burgue-

sia. Mas a verdade é que a ordem e a estabilidade do mundo são a pré-condição

da transformação tecnológica do real. O determinismo mecanicista é o horizonte

certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, re-

conhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que

pela capacidade de o dominar e transformar. No plano social, é esse horizonte

cognitivo mais adequado aos interesses da burguesia ascendente. Que via na so-

ciedade, em que começava a dominar, o estágio final da evolução da humanidade

(o estado positivo de Comte; a sociedade industrial de Spencer; a solidariedade

orgânica de Durkheim) (SANTOS, 2001, p. 64).

Esse ideal de confiança na história do progresso, calcado na racionali-dade e onipotência da ciência sofre abalo no séc. XX, por conta das grandes guerras do século, geradoras da sensação de colapso moral da sociedade mo-derna, causadoras do esfacelamento dos últimos grandes impérios, reorde-nação das potências políticas e econômicas, independência das colônias da

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África e Ásia, evidenciando-se problemas decorrentes da construção e da ordenação social moderna.

De fato, os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), especialmente as revelações dos horrores do holocausto e do poder das ar-mas nucleares sobre a população civil de Hiroshima e Nagasaki, contribuem essencialmente para o momento de inflexão (vivenciado na década seguin-te), responsável pela transição para o pós-modernismo, ainda hoje em cons-trução (MORRINSON, 2006, p. 355).

Enfim, abala-se irreversivelmente a certeza no poder da razão e no pro-gresso tecnológico como elementos suficientes para o progresso e evolução da sociedade e vida no planeta. Não há mais a convicção no progresso ou a certeza de que a história nos leva para uma sociedade melhor. O século XX é, por todas as alternâncias e conflitos experimentados, caracterizado como a era das incertezas – conforme expressão consagrada pelo economista de Harvard John Kenneth Galbraith em série televisionada pela BBC e em livro de mesmo título.

É didática a consideração apresentada por Jurgen Habermas acerca do re-corte histórico representado pelo séc. XX, conforme se pode observar:

A fisiognomia de um século é marcada pelas cesuras dos grandes eventos. Hoje

em dia há um consenso entre os historiadores que ainda estão de modo geral

dispostos a pensar em grandes unidades, quanto ao fato de que o ‘extenso’ século

XIX (1789-1914) foi sucedido por um ‘breve’ século XX (1914-1989). O início

da Primeira Guerra Mundial e o esfacelamento da União Soviética emolduram

um antagonismo que se estendeu pelas duas guerras mundiais e pela Guerra Fria

(HABERMAS, 2001, p. 58).

Espelhando a mudança de pensamento sobre o futuro, não mais otimista (como na modernidade), têm-se vários exemplos de ficções cinematográficas hollywoodianas do fim do séc. XX retratadoras do futuro como algo amedron-tador. A propósito, cultuados até hoje na cultura pop, podem ser citados como filmes retratando futuros distópicos: Laranja Mecânica, Blade Runner, Gatta-ca, Mad Max, Exterminador do Futuro, Os Doze Macacos, Matrix, Robocop e tantos outros.

As décadas de 1950 e 1960, especialmente os movimentos de 1968, inau-guram o tempo da contrariedade às certezas da racionalidade e cientificidade da

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modernidade. Tal período é associado à ruptura da era moderna e nascimento da sociedade pós-industrial ou pós-modernidade, menos uma era e mais um processo de mudanças (ainda hoje inconcluso), referentes a novas concepções quanto às regras da vida, instituições, valores e necessidades coletivas.

A sensação de crise, em amplas magnitudes, e alcançando diversos aspectos da

vida no séc. XX, estava sensivelmente presente nos anos 60, momento em que

diversos movimentos globais de protestos e revoltas, caracteristicamente antimo-

dernistas, eclodiam no sentido de identificar novas formas de combater a raciona-

lidade brutalizante da vida sob os paradigmas modernos. Se Habermas aponta os

anos 50 e 60 como favoráveis ao surgimento da pós-modernidade, a culminância

de grande significação desta inteira efervescência cultural, social e política ocorre

como indicado anteriormente, em 1968, em todas as partes do mundo, com as

marcantes manifestações estudantis, preparando-se terreno para o advento das

novas identidades (BITTAR, 2009, p. 106).

Exatamente a fragmentação da identidade dos indivíduos é marcada após os anos 1960, não mais definida unicamente pelas lutas sociais entre burguesia e proletariado, mas sim pulverizada em manifestações sociais que demonstram a complexidade muito maior, como se pode ver pelo nascimento dos movimentos feministas, ambientalistas, de igualdade de direitos das minorias raciais, toda a reflexão trazida pela contracultura e o movimento hippie, destacando-se a liber-dade sexual e a contestação ao patriarcalismo.

No mundo que busca rever a crença do progresso social, fundamentado exclusivamente no racionalismo científico, uma vez que a promessa da moderni-dade em nos conduzir para um tempo de felicidade não se realizou, lembra-nos Jaques Derrida:

Instead of singing the idea of the advent of liberal democracy and the capitalism

market in the euforia of the end of history, instead of celebrating ‘the end of the

ideologies’ and the end of the great emancipatory discourses, let us never forget

this obvious macroscopic fact, made up of innumerable sites of suffering: no de-

gree of progress allows one to ignore that never before, in absolute terms, never

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have so many men, women and children been subjugated, starved or exterminat-

ed on the Earth5 (DERRIDA, 1994, p. 85).

A nova cultura pós-industrial, gerada pela análise consciente das questões e vicissitudes dos tempos contemporâneos, o fluxo dos acontecimentos e mudan-ças sociais do pós-guerra formam os sinais do surgimento da pós-modernidade, alvo de estudo e diversas outras nomenclaturas pelos pensadores dessa quadra histórica.

1.1 Pós-modernidade: cultura e paradigma científico em construção na atualidade

As novas concepções de mundo (dialogismo do local em meio ao global) e do modo de ser (relativismo cultural), a reflexão sobre as consequências do modo de produção científico e industrial de dois séculos e a reconfiguração dos rumos para criação de uma sociedade justa, características da virada do séc. XX para o séc. XXI, são objeto de análise por sociólogos que, diante dessas condi-ções e mudanças empíricas da atualidade, denominam os tempos hodiernos, na linha histórica mundial, de pós-modernidade.

Contudo, é importante frisar que esse estágio da sociedade mundial tam-bém é identificado por diversas outras denominações, conforme nos lembra George Morrinson:

Para descrever essas mudanças, os teóricos sociais criaram vários rótulos, inclu-

sive sociedade de mídia, sociedade do espetáculo, sociedade de consumo, socie-

dade burocrática de consumo controlado, sociedade pós-industrial, sociedade

globalizada, sociedade do capitalismo mundial avançado, ordem de informação

pós-capitalista e, por último, o rótulo que se tornou dominante: pós-modernismo

(MORRINSON, 2006, p. 615-616).

5 Em vez de cantar a ideia do advento da democracia liberal e do mercado capitalista na euforia do fim da história, em vez de celebrar o ‘fim das ideologias’ e o fim dos grandes discursos de emancipação, não nos esqueçamos nunca deste óbvio fato macroscópico, criado à custa de um sofrimento infinito: nenhum grau de progresso nos permite ignorar que, em termos absolutos, nunca antes, no mundo, tantos homens, mulheres e crianças morreram de fome, foram subjugados ou exterminados.

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A pluralidade de nomenclaturas expressa as nuances de pensamento so-bre a mesma problemática, que até o presente momento não se esgota. O termo “pós-modernismo” parece ser o que abriga todas as demais designações pela ên-fase temporal. Além disso, a análise semântica do termo já se presta a anunciar a própria complexidade do tema, uma vez que “representa alguma espécie de reação ao ‘modernismo’ ou afastamento dele. Como o sentido de modernismo também é muito confuso, a reação ou afastamento conhecido como ‘pós-moder-nismo’ o é duplamente” (HARVEY, 1992, p. 19).

A propósito, sobre o característico processo de mudança do ethos neste pe-ríodo, Eduardo C. Bittar define-o como:

um estado histórico transitivo, marcado pelo desaparecimento das grandes mar-

cas culturais distintivas da modernidade. [...] O lugar não é mais dos padrões

estanques, sacralizados, universais, eternos e imutáveis. Com a pós-modernida-

de, abre-se caminho para éticas pulverizadas, para a tolerância, para as toleráveis

formas de saber e ser diferente, nas quais o multifário tem maior prevalência que

qualquer unicidade ou qualquer determinismo educacional. Em lugar de uma éti-

ca centralista, individualista, burguesa, patriarcal, masculina, moralista, tem-se

uma pluralidade de éticas emergentes, menos universalistas e mais regionalistas,

respondendo à diversidade de pensamentos, ideias e crenças que emergem no

panorama do discurso ético contemporâneo (BITTAR, 2009, p. 147).

O sociólogo Zygmunt Baumann (2012) usa o termo modernidade líquida no lugar de pós-modernidade, para mencionar essa sociedade pós-industrial, na qual as relações são fluidas e feitas para não durar muito tempo, marcada pela incerteza e pela lógica do consumo, em patente crítica ao consumo compulsivo--obsessivo característico da sociedade do início de século XXI.

Em seu pensamento, ele explicita que os tempos hoje vividos constituem uma “situação de interregno”, em que “a antiga maneira de agir não funciona mais, mas as novas maneiras de agir ainda não foram inventadas” (BAUMANN, 2012). Enfatizando a cultura do período atual, a liquidez – identificada por Bau-mann – atinge, em particular, valores, uma vez que esses deixaram de ser valores definidos, como na modernidade.

Como ponto nuclear daquilo que se chama pós-modernidade, temos o processo histórico filosófico de falência do projeto moderno que creditava na

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onipotência do racionalismo tendente à revelação das verdades. E, assim, sem voltarmos ao irracionalismo e dogmas medievais, mas conscientes dos limites da razão para governar toda e quaisquer relações. Conforme Rouanet (2000, p. 12-13), “precisamos de um racionalismo novo, fundado numa nova razão. A verdadeira razão é consciente dos seus limites, percebe o espaço irracional em que se move e pode, portanto, libertar-se do irracional”.

Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos, ao mencionar o momento de crise e transição histórica, na sua conceituação de transição paradigmática, como marca dos tempos atuais, afirma que:

Não é arriscado dizer que nunca houve tantos cientistas-filósofos como actual-

mente, e isso não se deve a uma evolução arbitrária do interesse intelectual. De-

pois da euforia cientificista do século XIX e da consequente aversão a reflexão

filosófica, bem simbolizada pelo positivismo, chegamos a finais do século XX

possuídos pelo desejo quase desesperado de completarmos o conhecimento das

coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios. A segunda faceta desta refle-

xão é que ela abrange questões que antes eram deixadas aos sociólogos. A análise

das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da

investigação científica, antes acantonada no campo separado e estanque da so-

ciologia da ciência, passou a ocupar papel de relevo na reflexão epistemológica

(SANTOS, 2002, p. 30).

Por consequência lógica, qualquer alteração na concepção do modo cien-tífico e cultural também será traduzida em modificações na produção do Direi-to, dado que este não só é espectro do conhecimento social aplicado, enquanto ciência normativa, bem como também é técnica de ordenação e pacificação so-cial, enquanto expressão dos valores e das forças sociais de um dado momento.

Assim, o cerne das questões jurídicas está vinculado ao processo cultural em construção nesse momento histórico, alterando-se as fundações do mundo jurídico, uma vez que o direito “que reduziu a complexidade da vida jurídica à secura dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida” (SANTOS, 2002, p. 30).

As características centrais das mudanças culturais desde o final do século XX até o presente momento serão consagradas no mundo jurídico pela onda pós-

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-positivista, a tradução jurídica fiel ao espírito da pós-modernidade, bem como pelo pluralismo jurídico, assunto este que será abordado do tópico seguinte.

2. DO MONISMO ESTATAL AO PLURALISMO JURÍDICO: REFLEXÕES CONCEITUAIS E HISTÓRICAS

Como se mencionou anteriormente, a sociedade moderna constrói-se a partir da ruína do modelo feudal, séc. XV, efetiva-se com o advento da Revo-lução Industrial, séc. XIX, e traz entre suas principais características o discurso científico como fonte hegemônica de conhecimento.

A construção dessa sociedade trouxe profundas implicações para a pro-dução do Direito, que assume uma produção totalmente diferente do período medieval. Ela fez nascer o que se passou a denominar de positivismo jurídico. De acordo com Bobbio (2006, p. 26), “A origem desta concepção é ligada à for-mação do Estado moderno que surge com a dissolução da sociedade medieval”.

Ou seja, essa sociedade rompeu com a categoria dos direitos naturais, a qual deixa de ser considerada direito, provocando, segundo Bobbio (2006, p. 26), “a passagem da concepção jusnaturalista à positivista que dominou todo o século passado e que domina em grande parte até agora”. Nesse sentido, o autor afirma que o positivismo jurídico é

uma concepção do direito que nasce quando “direito positivo” e “direito natural”

não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas direito positivo passa

a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do positivismo ju-

rídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é

excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não

é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo “positivo” ao termo

“direito” torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula

sintética (BOBBIO, 2006, p. 26).

Sendo assim, de acordo com o que se observa, há uma mudança radical provocada dentro do Estado moderno no que tange à formação do direito, pois o direito positivo passa a ser a única categoria válida de direito, e o direito natural

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passa a ser desconsiderado como uma categoria do direito. Dessa forma, a socie-dade vai assumir, segundo Bobbio:

uma estrutura monista, no sentido de que o Estado concentra em si todos os po-

deres, em primeiro lugar aquele de criar o direito: não se contenta em concorrer

para esta criação, mas quer ser o único a estabelecer o direito, ou diretamente

através da lei, ou indiretamente através do reconhecimento e controle das normas

de formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que em outro curso cha-

mamos de processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado

(BOBBIO, 2006, p. 27).

Para Cunha (2013), o monismo jurídico perpassa por quatro fases dentro da sociedade moderna. O momento de queda do feudalismo representa a pri-meira fase do monismo jurídico. Já o segundo momento, “compreende o perío-do que vai da Revolução Francesa até a conclusão das principais codificações do século XIX. Trata-se de um momento histórico fundamental para a definição político-ideológica da classe burguesa-capitalista e para a estruturação e solidifi-cação da legalidade estatal no Ocidente” (CUNHA, 2013).

Essas transformações na forma de conceber o direito trouxeram uma ine-vitável associação entre Estado e Direito, inviabilizando o reconhecimento de outras formas de solução de conflitos ou de regras que não advenham do Estado, ou seja, não reconhecendo regras que nasçam da própria sociedade civil. Nesse sentido, Bobbio (2016, p. 29) dispõe que: “com a formação do Estado moderno é subtraída ao juiz a faculdade de obter as normas a aplicar na resolução das controvérsias por normas sociais e se lhe impõe a obrigação de aplicar apenas as normas postas pelo Estado, que se torna, assim, o único criador do direito.”

Corroborando esse pensamento, de monopolização do Direito pelo Estado e sua redução a Direito positivo, Cunha faz uma importante observação acerca desse fato:

... o que se constata nesse segundo momento do monismo jurídico é a correspon-

dente redução do Direito Estatal ao Direito Positivo com a consequente consagração

de que o Direito não só é Direito porque é produzido pelo Estado, mas, sobretudo,

por ser Direito positivo é que ele é verdadeiramente Direito (CUNHA, 2013).

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A terceira fase pode ser identificada, conforme o autor acima citado, “com o crescente intervencionismo socioeconômico do Poder Público amparado por uma legalidade dogmática de rígidas pretensões de cientificidade e que atinge o seu auge entre os anos 1920 e 1960 do século XX” (CUNHA, 2013). E, por fim, o autor apresenta o quarto momento do monismo, assim dispondo:

O quarto momento do monismo jurídico pode ser situado a partir dos anos 60. Esta

época marca o surgimento de novas diretrizes do Capitalismo avançado constatável

na urgência de reordenação e globalização do capital monopolista aliada à debili-

tação política do Welfare State (déficit público e ingovernabilidade do Estado do

Bem-Estar Social) (CUNHA, 2013).

Contudo, a crise nos fundamentos da sociedade moderna – conforme se ponderou no primeiro tópico desse trabalho, que provocou um abalo na certeza do poder da razão, na ciência como uma fonte de produção do conhecimento e do progresso tecnológico como elementos suficientes para o desenvolvimento e evolução da sociedade, associada às novas demandas que passaram a surgir dentro da sociedade – acarretou também uma crise na cultura jurídica de cará-ter unitário que se consolidou no Ocidente e que não tem conseguido atender às necessidades que emergem na sociedade, nem refleti-la, desencadeando uma crise da legalidade ocidental.

Nesse sentido, Cunha dispõe que:

Esta crise, que pode ser caracterizada por uma extrema inadequação do monismo

jurídico em responder eficazmente às constantes e crescentes demandas sócio-

-políticas e socioeconômicas, ao crescimento dos conflitos entre classes sociais

e entre grupos de interesses conflitantes, e às complexas contradições culturais

e materiais vivenciadas pela sociedade de massa, tem provocado o consequente

esgotamento desse paradigma (CUNHA, 2013).

É dentro desse contexto de descredibilidade e de crise no Direito Estatal que se tem verificado a produção de um Direito não-estatal produzido dentro do seio da sociedade e eficazmente atendendo a seus anseios e solucionando seus conflitos. De acordo com o que apresenta Cunha, a questão, atualmente, assim se apresenta:

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Seja como for, o esgotamento do monismo jurídico, apesar das tentativas neo-po-

sitivistas de fazê-lo persistir em diferentes tendências formalistas, é uma realidade

inevitável no contexto da normatividade estatal. Nesse contexto, em que se con-

fronta a dogmatização do Direito moderno, é que se pode divisar a questão da

possibilidade ou não da formulação do Direito sem Estado. Assim, a questão que

diz respeito se é possível existir “Direito sem positividade” e/ou se a “positividade

só resulta do Estado”, encontra-se problematizada em duas tendências antagôni-

cas: o monismo e o pluralismo jurídico (CUNHA, 2013).

As reflexões no próximo tópico consistem em analisar o pluralismo jurí-dico, realidade inconteste, sobretudo em países periféricos como o Brasil, onde o direito posto pelo Estado apresenta-se cada dia mais distante de solucionar os reais problemas da sociedade e com caráter cada vez mais repressivo e punitivo.

2.1 Pluralismo Jurídico: uma tendência do Direito na pós-modernidade

Um dos temas que vem sendo refletido e defendido nas últimas décadas por renomados autores como Boaventura de Sousa Santos e Antônio Carlos Wolkmer é a questão do pluralismo jurídico, sobretudo em países do capitalismo periférico da América Latina.

O que sem tem apontado é o fato indiscutível dos reflexos que a crise da racionalidade e da ciência, associada às inúmeras crises que decorrem das socie-dades de massa, do capitalismo devastador que coloca o mercado como meio e fim de todas as ações humanas, sem se preocupar com as condições de vida do homem, e que têm provocado extrema desigualdade social, bolsões de pobreza, sociedades altamente violentas, trouxe para o Direito e, principalmente, para o monismo jurídico.

O modelo positivista e monista de produção da norma jurídica não con-segue atender às necessidades e anseios da sociedade emergente. As leis postas pelo Estado são ineficientes para garantir os direitos dos cidadãos e solucionar com a devida presteza os conflitos cada vez mais variados e velozes com que a sociedade de massa passou a ter que lidar.

Há uma crise no paradigma de produção do Direito, em especial, em países como o Brasil, país da periferia capitalista da América Latina e com problemas

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peculiares. É diante desse cenário de insatisfação e descrédito no direito estatal que emerge na sociedade o pluralismo jurídico, ou seja a produção de normas paralelas às oficiais. Nesse sentido, Wolkmer afirma que:

A importância da discussão sobre o pluralismo jurídico enquanto expressão de

um “novo” Direito é plenamente justificada, porquanto o modelo de cientificida-

de que sustenta o aparato de regulamentação estatal liberal-positivista e a cultura

normativista lógico-formal já não desempenha a sua função primordial, qual seja

a de recuperar institucionalmente os conflitos do sistema, dando-lhes respostas

que restaurem a estabilidade da ordem estabelecida (WOLKMER, 2001, p. XVII).

O pluralismo jurídico – que é apenas uma das manifestações de pluralis-mos existentes dentro da realidade, tendo em vista haver também o pluralismo na cultura, na economia, na política – é a produção de normas jurídicas pela comunidade, plenamente eficiente dentro da realidade em que são produzidas, são normas não-estatais ou não oficiais. Nesse sentido, Wolkmer, ao discorrer sobre o pluralismo jurídico, afirma que:

sua intenção não está em negar ou minimizar o Direito estatal, mas em reconhe-

cer que este é apenas uma das muitas formas jurídicas que podem existir na so-

ciedade. Deste modo, o pluralismo legal cobre não só práticas independentes e

semi-autônomas, com relação ao poder estatal, como também práticas normati-

vas oficiais/formais e práticas não-oficiais/informais. A pluralidade envolve a coe-

xistência de ordens jurídicas distintas que defini ou não relações entre si (WOLK-

MER, 2001, p. 222).

Corroborando esse entendimento e sintetizando o que se expôs até o pre-sente momento acerca da ineficiência do modelo normativo estatal e do cres-cente e inegável pluralismo jurídico na realidade brasileira, importante é a lição apresentada por Wolkmer:

Percebe-se, assim, que a crise do modelo normativo estatizante propicia, gradual-

mente, amplas possibilidades para o surgimento de orientações “prático-teóricas”

insurgentes e paralelas que questionam e superam o reducionismo dogmático-

-positivista representado pela ideologia monista centralizadora. Por consequên-

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cia, repensar a questão do “pluralismo” nada mais é do que a tentativa de buscar

outra direção ou outro referencial epistemológico que atenda à modernidade na

virada do século XX e nos primórdios do novo milênio, pois os alicerces de funda-

mentação – tanto das Ciências Humanas quanto da Teoria Geral do Direito - não

acompanham as profundas transformações sociais e econômicas por que passam

as sociedades políticas pós-industriais e as sociedades de industrialização tardia.

A crise da racionalidade formal e as novas condições globais das forças produtivas

capitalistas, que permeiam a complexa cultura burguesa de massas, estendem-se

ao saber sacralizado e hegemônico das estruturas lógico-formais que mantêm os

envelhecidos padrões de legalidade estatal (WOLKMER, 2001, p. 170).

O pluralismo jurídico promove o reconhecimento das subjetividades de cada ser, individual ou coletivamente, em sua maneira de ser, pensar e viver. Coloca em questão contrapontos que não podem ser ignorados e que deverão conviver, como globalidade e regionalismo, universalidade e individualidade. Representa uma luta contra-hegemônica e de emancipação, construindo novos espaços comunitários de participação. Como aponta Wolkmer:

Diante do declínio das práticas tradicionais de representação política, da escassa

eficácia das estruturas judiciais e estatais em responder à pluralidade de demandas

e conflitos, do crescente aumento de bolsões de miséria e das novas relações co-

lonizadoras de países ricos com nações em desenvolvimento, abre-se a discussão

para a consciente busca de alternativas capazes de desencadear diretrizes, práticas

e regulações voltadas para o reconhecimento à diferença (singular e coletiva) de

uma vida humana com maior identidade, autonomia e dignidade (WOLKMER,

2006, p. 117).

Um importante autor que tem debruçado parte de sua pesquisa para abordar o pluralismo jurídico na América Latina é Boaventura de Souza Santos. Este autor, no início da década de 1970, no âmbito da preparação de sua tese de doutoramen-to apresentada na Universidade Yale, realizou uma pesquisa empírica de sociologia do direito sobre as estruturas internas de uma favela no Rio de Janeiro, a que deu o nome fictício de Pasárgada. Na obra O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica, que é, todavia, um texto autônomo de sua tese, o autor aponta a coexistência de um direito paralelo ao estatal nessa comunidade.

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Nessa obra, Boaventura analisa com profundidade uma realidade de plu-ralismo jurídico, a fim de elaborar uma teoria sobre as relações entre Estado e Direito nas sociedades capitalistas, em especial as da América Latina. O autor busca, assim, nesse trabalho fazer um contraste entre o direito de Pasárgada e o direito estatal brasileiro. Ele demonstra que, no mesmo espaço geopolítico, neste caso o estado-nação brasileiro, existe mais do que um direito ou ordem jurídica, ou seja, existe um pluralismo jurídico.

As relações normativas observadas pelo autor resumiram-se, basicamente, quanto à posse e à habitação da terra e quanto às relações de vizinhança, que eram dirimidas e solucionadas pela associação de moradores. Dessa forma, Boa-ventura explicita que:

Tais relações têm uma estrutura homológica das relações jurídicas. No entanto,

à luz do direito oficial brasileiro, as relações desse tipo estabelecidas no interior

das favelas são ilegais ou juridicamente nulas, uma vez que dizem respeito a tran-

sacções sobre terrenos ilegalmente ocupados e a construções duplamente clan-

destinas. Dentro da comunidade, contudo, tais relações são legais e como tal são

vividas pelos que nelas participam. A intervenção da associação de moradores

neste domínio visa constituir como que um ersatz da proteção jurídica oficial de

que carecem (SANTOS, 1988, p. 14).

Sendo assim, Boaventura de Souza Santos constata a existência de normas reguladoras dentro daquele espaço e que produzem eficiência na realidade da-quela comunidade. Santos (1988, p. 14) afirma que “O direito de Pasárgada é um direito paralelo não oficial, cobrindo uma interação jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamam os moradores das favelas, por ser o direito que vigora apenas nas zonas urbanizadas e, portanto com pavimentos asfaltados)”.

Como se observa, o pluralismo jurídico é uma realidade dentro da socie-dade brasileira, que decorre da não eficiência do direito estatal e de sua forma de produção da norma. As necessidades e a urgência de direitos que se adequem dentro das várias realidades sociais fazem emergir normas não oficiais às impos-tas pelo Estado.

Essa pluralidade normativa pode ter inúmeros fatores de fundamentação, como o econômico, o racial, o profissional, pode também corresponder a um

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período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformações sociais, bem como, assim como no caso de Pasárgada, emergir do conflito de classes numa área determinada da reprodução social, nesse caso, a habitação. Portanto, a pluralidade jurídica não pode ser ignorada, pois a oficialidade do Estado não tem conseguido contemplar todas as realidades emergentes dentro da sociedade.

No próximo tópico, tratar-se á de um problema comum pelo qual a hu-manidade vem passando e de reconhecimento internacional: a crise ambiental. Bem como se verificará como o Direito não-estatal, ou seja, o que decorre do interior de comunidades as quais não se encontram representadas pelo direito estatal, trata a questão ambiental, mais precisamente o direito forjado dentro das comunidades tradicionais.

3. CRISE AMBIENTAL E INFICIÊNCIA DO DIREITO ESTATAL

A crise ambiental é um problema comum que está sendo experimentado pela humanidade e que a tem colocado em risco de extinção. A partir da Re-volução Industrial e com o advento das sociedades capitalistas e de consumo, motivadas por um ideal de progresso, a exploração dos recursos naturais inten-sifica-se de maneira avassaladora, provocando uma crise ambiental.

Nesse sentido, como bem aponta Dettoni (2017, p. 32), “o avanço tecnoló-gico expandiu o poder e alterou a natureza da ação humana. O progresso técnico tornou-se um mito que legitima uma nova ordem social e em seu nome temos posto o meio ambiente em desequilíbrio, de forma tal que a própria vida do ho-mem passou a estar em risco”.

De acordo com Morin:

A Europa havia espalhado a fé no progresso pelo planeta inteiro. [...] O progresso

era identificado como a própria marcha da história humana e impulsionado pe-

los desenvolvimentos da ciência, da técnica, da razão. A perda da relação com o

passado era substituída, compensada pelo ganho da marcha para o futuro. A fé

moderna no desenvolvimento, no progresso, no futuro havia se espalhado pela

Terra inteira. Essa fé constituía o fundamento comum à ideologia democrático-

-capitalista ocidental, na qual o progresso prometia bens e bem-estar terrestres,

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e à ideologia comunista, religião de salvação terrestre, que chegava a prometer o

“paraíso socialista” (MORIN, 1995, p. 79).

A utopia de um futuro progressista tem sido o fundamento das socieda-des capitalistas, que afeta e altera significativamente a relação do homem com o meio ambiente, pois ele não se vê como responsável pelos recursos naturais e sua relação como o meio ambiente é utilitarista e de poder.

Como bem aponta Dettoni (2017, p. 32), “o avanço tecnológico expandiu o poder e alterou a natureza da ação humana. O progresso técnico tornou-se um mito que legitima uma nova ordem social e em seu nome temos posto o meio ambiente em desequilíbrio, de forma tal que a própria vida do homem passou a estar em risco”.

Mas, segundo Costa (2016, p. 39), “Foi necessária a ocorrência de tragédias para que os seres humanos percebessem os resultados de sua criação que incide so-bre a natureza e retorna para seus criadores, como um bumerangue jogado ao vento”. Ou seja, foi necessária a ocorrência de inúmeras catástrofes ambientais, sobre-tudo após a Segunda Guerra Mundial, para que o meio ambiente entrasse na agenda das preocupações da humanidade. Segundo Gadotti (2000, p. 105), “um ciclo de debates começaram nos anos 1960 e ganharam no final dessa década e no início dos anos 1970 uma certa densidade”.

Atualmente, é incontestável o reconhecimento dos perigos que corre a hu-manidade em virtude da grave crise ambiental que afeta o planeta, pela falta de limites e cuidados com os recursos ambientais. Para ilustrar esse problema, Boff aponta que:

A Avaliação Ecossistêmica do Milênio, organizada pela ONU entre os anos 2001 e

2005, envolvendo cerca de 1.3000 cientistas de 95 países, além de 850 outras perso-

nalidades da ciência e da política, revelou que dos 24 serviços ambientais essenciais

para a vida (água e ar limpos, regulação dos climas, alimentos, energia, fibras etc),

15 deles se encontravam em processo de degradação acelerada. Em outras palavras,

estamos destruindo as bases químicas, físicas e ecológicas de nosso futuro (BOFF,

2015, p. 24).

Outro grave problema também apontado por Boff como efeito dessa crise é o aquecimento global. Segundo o autor, “Nos últimos séculos, desde o começo

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do processo de industrialização, estão sendo lançados na atmosfera bilhões de toneladas de gases de efeito estufa como o dióxido de carbono, nitritos, metano – que é 23 vezes mais agressivo que o dióxido de carbono – e outros gases” (BOFF, 2015, p. 27).

As consequências do aquecimento global afetam drasticamente a vida e a sadia qualidade de vida de toda a humanidade, conforme afirma Boff:

O aquecimento global esconde eventos extremos: por um lado, arrasadoras en-

chentes, por outro, tórridas secas, a irrupção de tufões devastadores, a fome de

milhões, a destruição de safras provocando a emigração de populações inteiras e a

alta dos preços dos alimentos (commodities), a disputa por espaços e por recursos,

e guerras tribais (BOOF, 2015, p. 27).

O que se observa é que a ênfase dada ao ideal de progresso, o uso desmedi-do de tecnologias e o consumo exacerbado podem ser apontados como as prin-cipais raízes do problema do desequilíbrio ambiental, que afeta todo o planeta Terra. Contudo, enquanto o progresso prometido não chega, o que a humani-dade experimenta, na verdade, é uma profunda crise, humanitária e ecológica.

Sendo assim, o estilo de vida centenário que caracteriza as sociedade moder-nas e ainda vivenciados dentro da pós-modernidade é o principal protagonista do desequilíbrio ambiental, sem se escusar que a sociedade de massa vai totalmente de encontro com a ideia de pluralidade, tendo em vista que ela busca a homogenei-zação de comportamentos e pensamentos. As ações humanas tornam-se irrefleti-das e giram em torno da produção e do consumo. A individualidade, a competição e o egoísmo são características marcantes do homem dessa sociedade.

A sociedade de massa, como bem explicita Hannah Arendt (2007) em sua obra A condição humana, tem minado a ação e toda sua potencialidade de trans-formação, criação e inauguração do novo, a partir da pluralidade de pensamen-tos, pois nessa sociedade há uma indiferença do homem quanto às preocupações comuns. A crise ambiental é um problema comum e a forma de produção mo-nista e positivista do Direito contribui significativamente para a permanência dessa realidade hegemônica quando não reconhece a pluralidade de modos de vida, de culturas e de relações com a natureza de muitos povos tradicionais, bem como quando ignora a produção das normas jurídicas desses povos dentro do Estado.

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O Direito Estatal, quando não reconhece a produção normativa dos povos tradicionais,6 contribui para a padronização de um modelo de vida que tem co-locado em perigo a própria espécie humana, o capitalismo irracional. A crise no modelo monista e positivista de produção do direito perpassa por uma crise da ineficiência das normas para atender as novas necessidades que emergem den-tro do atual contexto histórico e solucionar os problemas atuais da sociedade, como os do meio ambiente, os das minorias e, também, por ignorar a produ-ção normativa das comunidades tradicionais, que traz impactos positivos para a sustentabilidade ambiental. O Direito monista, portanto, corrobora para o não enfrentamento adequado da crise ambiental.

3.1 Pluralismo Jurídico e sustentabilidade ambiental

O pluralismo jurídico, embora venha sendo mais apresentado e estudado dentro das periferias e dentro de classes marginalizadas, como bem demonstra-do por Boaventura de Souza Santos, também é uma realidade, segundo Trevizan e Leão (2014), dentro das comunidades tradicionais, que são expressivas dentro do Brasil. Os autores apontam, segundo informações obtidas do site do Ministé-rio do Meio Ambiente, que:

Em 2006, as comunidades tradicionais ocupavam cerca de 25% do território na-

cional e correspondiam, aproximadamente, a 4,5 milhões de pessoas, das quais 2

milhões eram quilombolas, um milhão formava a população atingida por barra-

gens de hidrelétricas, 435 mil indígenas, 400 mil quebradeiras de coco babaçu, 37

mil seringueiros e 163 mil castanheiros (TREVIZAM; LEÃO, 2014).

Como se pode observar, apesar do genocídio histórico de muitos desses povos no país, há uma presença forte dessas comunidades no território brasi-leiro, as quais possuem entre suas principais características uma relação de sus-tentabilidade com a natureza no seu modo de vida. Os autores Trevizan e Leão demonstraram a importância da produção normativa dessas comunidade para

6 De acordo com o Decreto 6040 de 2007, povos tradicionais são formalmente caraterizados pela ge-ração e transmissão de conhecimentos e de práticas vernaculares, utilizando territórios e recursos naturais como condição de sua reprodução cultural, social, religiosa e econômica, adotando formas próprias de organização social.

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o meio ambiente no desenvolvimento de uma pesquisa em uma Reserva Extra-tivista – dentro de uma unidade de Conservação de Uso Sustentável, comunida-de tradicional de pescadores artesanais –, localizada no litoral sul do Estado da Bahia, denominada Campinhos, demonstrando o pluralismo jurídico existentes nesses locais.

Nessa trabalho, cujo resultado encontra-se materializado no artigo intitu-lado “Pluralidade jurídica: sua importância para a sustentabilidade ambiental em comunidades tradicionais”, disponibilizado nas referências bibliográficas, os autores demonstram como essa comunidade utiliza-se de normas costumeiras para a resolução dos conflitos que emergem no local e as implicações positivas que isso traz à preservação do meio ambiente. Trevizan e Leão afirmam que:

mecanismos locais de pacificação (acordos diretos, conciliações, mediações e ar-

bitragens) são socialmente relevantes no contexto da comunidade, uma vez que,

a partir da sua utilização, os membros fortalecem suas relações sociais pautadas

no vínculo de no sentimento de identidade local, pertencimento e união (TREVI-

ZAN; LEÃO, 2014).

Contudo, embora utilizem-se desses mecanismos tradicionais de resolução de conflitos na comunidade, quando necessário os moradores locais também re-correm ao direito oficial como forma de solucionar conflitos com mais comple-xidade, mas isso ocorre com bem menos frequência porque, segundo os autores:

Constatou-se que a jurisdição é o método menos utilizado pelos moradores de

Campinhos, por várias razões. Os motivos mencionados com mais frequência

são: o desconhecimento sobre onde acessar os serviços, a distância e o isolamento

da comunidade dos centros onde estão localizados os postos de atendimento, a

conhecida morosidade dos processos judiciais, a crença de que para acionar o

Judiciário sempre é necessário o acompanhamento de um advogado, e a grande

dificuldade em apresentar a documentação necessária para se intentar uma ação

judicial (TREVIZAN; LEÃO 2014).

Ou seja, os autores verificaram que se recorre ao Direito oficial em situa-ções de grande excepcionalidade, como quando os conflitos envolvem terceiros que não são membros da comunidade, e a complexidade do conflito foge à ca-

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pacidade de resolução dos membros da comunidade, como bem apontam os autores:

Os moradores de Campinhos, quando acionam a jurisdição, o fazem principal-

mente em conflitos contra alguma pessoa física ou jurídica não pertencente à co-

munidade, envolvendo disputadas por terras (uma vez que a situação fundiária da

reserva ainda não foi solucionada), especulação imobiliária (tendo em vista tra-

tar-se de uma área de potencial turístico), ou conflitos com os ranicultores (pois,

existem diversas fazendas de carcinicultura na área de influência da reserva).

O que os autores constataram em sua pesquisa é que, embora seja utilizada a norma oficial no local, a forma prevalecente de solução dos conflitos existen-tes dentro da comunidade são as normas consuetudinárias e tradicionalmente repassadas pelos membros do local para seus descendentes. Sendo assim, há a convivência de ambas as normas, a oficial e a não oficial, mas com a maior pre-dominância da última.

Também observaram Trevisan e Leão, no desenvolvimento dessa pesquisa, a importância desse direito não oficial para a sustentabilidade e para a salvaguar-da do meio ambiente, e apontam o seguinte:

esse direito socioambiental consuetudinário, de origem local, é importante na me-

dida em que permite maior adequação das normas às reais necessidades da comu-

nidade (eficácia normativa social), fazendo com que ela própria regule e acompa-

nhe o uso dos recursos naturais do extrativismo e estabeleça os limites, as medidas

e os padrões de exploração sustentável adequados ao manejo do seu ecossistema.

O que se buscou demonstrar nesse tópico, de forma ilustrativa e breve, foi que as diversas normas jurídicas paralelas ou não oficiais que regulam de forma válida e eficiente, decorrentes de inúmeros fatores, como os culturais, étnicos, raciais, sociais, embora não sejam reconhecidas pelo Estado, mas que, nem por isso, deixam de ser aplicadas e efetivadas.

O trabalho dos autores Trevizan e Leão (2014) representa um dos poucos que se dedicam a pesquisar esse pluralismo jurídico em comunidades tradicio-nais, pois os mais frequentes são os que se debruçam sobre outras realidades pa-ralelas, como as favelas, movimentos sociais, presídios para tratar o tema. Mas,

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como bem ficou demonstrado pelos autores, essa também é uma realidade das comunidades tradicionais brasileiras.

Os autores também demonstram a importância da utilização dessas normas costumeiras dentro desses locais para a proteção ambiental, pois a relação dessas comunidades com a natureza guarda extrema sincronia com os ideais de susten-tabilidade, que são imprescindíveis para o enfrentamento da crise ambiental que assola o planeta Terra e vêm não só diminuindo a qualidade de vidas das pessoas, mas também colocando em risco a própria sobrevivência da espécie humana.

CONCLUSÃO

Após as reflexões realizadas nessa pesquisa e à luz dos fundamentos teóricos calcados em renomados autores e pesquisadores que se debruçam sobre o pluralis-mo jurídico, como Boaventura de Souza Santos (1988) e Antônio Carlos Wolkmer (2001), bem como outros que também contribuíram para a construção deste tra-balho, como Trevisan e Leão (2014), o que se pode afirmar é que a ineficiência do Direito em atender às necessidades e interesses da sociedade é inegável.

Essa crise traz como consequência uma outra realidade de produção da norma jurídica, não estatal, mas que coexiste paralelamente com as normas do Estado e que são válidas e eficientes dentro de comunidades que não são atendi-das em suas necessidades e realidades por essa norma estatal. Esse pluralismo ju-rídico não é produzido apenas em comunidades periféricas, como bem ilustrado pelo professor Boaventura de Souza Santos (1988), mas também é uma realidade dentro de comunidades tradicionais, como demonstram Trevisan e Leão (2014).

Não se pode escusar que a realidade da sociedade brasileira é complexa, pois é construída em meio a uma diversidade de culturas, raças, etnias e que não se vê representada por um direito monista, positivista e hegemônico que consa-gra apenas um modelo de vida, estabelecido por um capitalismo extremado, que se torna um meio e um fim em si mesmo, sem se preocupar com a vida humana. E isso tem gerado uma grave crise na legitimidade dessa norma jurídica oficial.

Contribui ainda para esse estágio de crise do direito monista, as transfor-mações sociais produzidas pelo paradigma pós-modernista em construção que rompeu com os dogmas e fundamentos centenários que sustentaram os ideais da modernidade, como a crença inabalável na racionalidade humana e no dis-

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curso científico como os únicos meios de se alcançar a verdade e produzir o conhecimento, ignorando todos os outros meios de produção do conhecimento.

Nesse cenário, disciplinas como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, desprestigiadas dentro da sociedade moderna, retomam o lugar de grande im-portância da produção do conhecimento. Tudo isso, inexoravelmente, traz refle-xos diretos para o Direito, que é produção social.

Essa forma de produção do direito centrada, portanto, apenas no Estado, sem se abrir para a inclusão e participação das diversas comunidades na cons-trução de suas normas, não tem conseguido enfrentar, de forma mais adequada, problemas reais, como a grave crise ambiental.

O Estado, quando ignora diversas formas de vida e de relação do homem com a natureza, como é o caso das comunidades tradicionais, que mantém com o meio ambiente uma ligação profunda e de respeito, tendo em vista utilizarem--no apenas para sua subsistência, preservando-o e conservando-o, e represen-ta apenas o discurso do capitalismo, do desenvolvimento e do progresso, não produz soluções reais e efetivas para a construção de um novo modo de vida, fundado no respeito à natureza.

Sem dúvida, reconhecer a importância dessas comunidades e de sua forma de organização e a própria produção jurídica que desenvolvem para atender às suas necessidades pode contribuir significativamente para um novo caminhar de um país periférico como o Brasil e com problemas que lhes são peculiares, mas detentor de uma diversidade natural que precisa ser protegida e de uma rica pluralidade não só jurídica, mas cultural, social, entre tantas, que vem sendo ignorada.

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DA BIOPOLÍTICA À CONFORMAÇÃO DA ECOPOLÍTICAFROM BIOPOLITICS TO THE CONFORMATION OF ECOPOLYTICS

Marcelo Antunes Santos1

Sumário: Introdução; 1. Surgimento e Conceito de Biopolítica em Michel Fou-

cault; 1.1 Biopolítica e o controle do Estado sobre as coletividades; 2. Da confor-

mação da Ecopolítica; 2.1 Ecopolítica e Sustentabilidade; Conclusão; Referências.

RESUMO: O presente artigo tem por escopo abordar o conceito de Bio-política a partir da análise prioritária do conceito desenvolvido por Michel Fou-cault, bem como as etapas que se seguiram até se chegar ao que se denomina Ecopolítica, aqui entendida como uma nova perspectiva política relacionada a questão ambiental, cujos os sujeitos atuantes exorbitam o ente estatal. Mais do que sinalizar a etapa de transformação entre uma e outra (Biopolítica e Ecopo-lítica), tem se o propósito de retomar as origens da Biopolítica, destacada por Foucault como instrumento de formatação e controle do indivíduo e da própria sociedade a partir do século XVIII.

PALAVRAS-CHAVE: Biopolítica. Disciplina. Ecopolítica.ABSTRACT: The purpose of this article is to approach the concept of Bio-

politics based on the priority analysis of the concept developed by Michel Fou-cault, as well as the stages that followed until reaching what is called Ecopolítica, here understood as a new political perspective related to the environmental issue , whose acting subjects exorbit the state entity. More than signaling the stage of transformation between one and the other (Biopolitics and Ecopolítica), the aim is to return to the origins of Biopolitics, highlighted by Foucault as an instru-ment of formatting and control of the individual and of society itself from the 18th century.

KEYWORDS: Biopolitics. Discipline. Ecopolytic.

1 Mestrando em Direito Ambiental, pela Universidade do Estado do Amazonas. Advogado.

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INTRODUÇÃO

Foi a partir do conceito de Biopolítica, já desenvolvido por Michel Fou-cault, que se chegou ao que Edson Passetti denominou de Ecopolítica.

Este estudo tem como finalidade precípua, com a apresentação de ambos os conceitos, Biopolítica e Ecopolítica, elucidar o processo de conformação desta última a partir da primeira. Para tanto, necessário se fez o estudo teórico dos assuntos que envolvem a temática, de modo especial os escritos de Michel Fou-cault e Edson Passetti.

O resultado deste trabalho conduziu à clara identificação da transição dos “fenômenos” avaliados e sua consequente repercussão no ordenamento jurídico pátrio, resultante de uma consciência ecológica de âmbito mundial, com marco principal na Conferência de Estocolmo (1972).

1. SURGIMENTO E CONCEITO DE BIOPOLÍTICA EM MICHEL FOUCAULT

É no livro História da Sexualidade I – A vontade de saber que Foucault se refere pela primeira vez ao termo biopolítica em seus escritos. No capítulo que encerra a obra, intitulado “Direito de morte e poder sobre a vida”, Foucault faz a seguinte observação: “o homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política” (FOU-CAULT, 2012, p. 156).

O conceito de Biopolítica em Foucault surgiu do estudo das relações de poder no seu aspecto não jurídico, isto é, uma concepção alternativa àquela do poder como lei ou como direito originário que se cede para constituir uma so-berania.

Quando da análise e estudo do poder, Foucault criticou o estudo do po-der relacionado apenas aos entes de grande envergadura, tais como o Estado, o mercado, as grandes instituições. Do contrário, entendia o filósofo que a vida dos indivíduos era constantemente marcada pelas relações de poder e estas mol-davam suas subjetividades. Nesse sentido defendeu o autor obra Microfísica do Poder. Vejamos:

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Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramifica-

ções [...] captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, prin-

cipalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam e

delimitam [...] Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos

jurídica de seu exercício (Foucault, 1979, p. 182).

Ainda sobre o tema, na obra Genealogia do Poder, ao discorrer sobre o po-der e os conceitos trazidos pela filosofia clássica, a crítica de Foucault se dirige principalmente em duas direções: a primeira diz respeito às teorias dos filósofos do século XVIII, que definem o poder como direito originário que se cede para se constituir a soberania e que tem como objeto o contrato social; a segunda, às teorias que fazem a crítica do abuso do poder, caracterizando o poder não somente por transgredir o direito, mas o próprio direito por ser um modo legal de exercício da violência e o Estado, cujo papel central é realizar a repressão, isto é, o poder como uma espécie de violência legalizada.

Tem, se desse modo que a crítica do filósofo quando do estudo das relações de poder e como este foi traduzido no decorrer do tempo se lastreia, tanto na sua ótica (visto sempre de cima para baixo) quanto nos seus efeitos (repressivos).

Na visão preponderante no século XVIII, o poder foi identificado como oriundo do Estado, e de caráter negativo, tido como aparelho repressivo, na me-dida em que seu modo de exercício sobre os cidadãos se daria essencialmente por meio de violência, de coerção, de opressão, da imposição de limites.

De modo diametralmente oposto ao que se tinha até ali, Michel Foucault trabalhou com uma visão positiva do poder, que justamente tem por objetivo compreender o poder livre de termos como dominação e repressão. Em sua obra Vigiar e punir, Foucault afirma:

É preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ‘ele

exclui’, ele ‘reprime’ ele ‘recalca’, ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’.

De fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de

verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa

produção (FOUCAULT, 1975).

O conceito sob análise, Biopolítica, decorre de uma forma de governar que se pauta sobretudo no controle político do corpo e decorre sobretudo da ruptura

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quanto ao modo com que com o Estado lidava com o corpo até o marco conside-rado. Foi principalmente em Vigiar e punir (1975) e nos cursos que ministrou no Collège de France, nos anos de 1970, que Foucault mostrou como surgiram, a par-tir do século XVII, técnicas de poder que, centradas no corpo dos indivíduos, cha-madas por Foucault em seus estudos e teorias de disciplinas (FOUCAULT, 1979).

Defende Foucault que o indivíduo é um produto da disciplina; é uma rea-lidade fabricada por ela. Neste ponto, o Estado cria de forma incessante e cons-tante, instrumentos aptos a tornar efetivo esse controle. Sustenta o filósofo que a sociedade que se desenvolveu nos séculos XVII e XVIII pôs em funcionamento uma tecnologia de poder que constituiu efetivamente os indivíduos como ele-mentos correlatos de poder e de saber. Diz Foucault:

O indivíduo é, sem dúvida, o átomo fictício de uma representação “ideológica” da

sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica

de poder que se chama disciplina (FOUCAULT, 1987).

A técnica de poder da disciplina tem seu surgimento relacionado ao cres-cimento do aparelho de produção e à grande explosão demográfica do século XVIII e vem como instrumento útil ao sistema liberal e capitalista em vigência. A dominação política do corpo teria como característica fundamental a fabrica-ção de um tipo de homem necessário ao bom funcionamento da economia capi-talista, que oferecesse portanto força produtiva sadia para movimentar o sistema vigente. Michel Foucault destaca que:

[...] o corpo também está diretamente mergulhado num corpo político; as rela-

ções de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o diri-

gem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe

sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações comple-

xas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força

de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas

em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está

preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento

político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado; o corpo só se torna

força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição

não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; […] pode haver

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um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e

um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e

esse controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e

esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo

(2013, p. 28-29).

Para Foucault, a partir do século XVIII, o Ocidente conheceu uma profunda transformação nos mecanismos de poder. O poder de soberania, o direito de cau-sar a morte ou de deixar viver tão característico desse poder, é agora substituído por “um poder que gera a vida e a faz se ordenar em função de seus reclamos” (FOUCAULT, 1988). A alteração de paradigma é sobretudo influenciado pela onda capitalista que se descortinava e pela mão de obra sadia que este sistema demandava.

A biopolítica se encontra em uma perspectiva diametralmente oposta à in-flexão predominantemente negativa do poder soberano: se este “se exercia em termos de subtração, de tributação – dos bens, dos serviços, do sangue – dos próprios súbditos”, aquela, pelo contrário, volta-se “para a vida deles não só no sentido da sua defesa mas também no do seu desenvolvimento, da sua potencia-ção, da sua maximização.” Se o poder soberano “tolhia, refreava, até aniquilar”, a biopolítica “solda, aumenta, estimula” (ESPOSITO, 2010, p. 60-61).

Segundo Foucault, o século XVIII engendra o processo de entrada da vida na história, de fenômenos próprios à vida humana na ordem do saber e nos cálculos do poder (FOUCAULT, 1988). Deste modo, os processos relacionados à vida humana começam a ser levados em conta por mecanismos de poder e de saber que tentam controlá-los e modificá-los:

O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num

mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde

individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em que se pode

reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico

reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que

só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em

parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder (FOUCAULT,

1988. p. 134).

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Nesta nova perspectiva, diferente do que se defendia no pensamento ante-rior, o Estado encarregava-se então da vida, de modo que a apropriação de pro-cessos biológicos era instrumento de controle dos indivíduos e da coletividade. Nesse sentido, “Governar a população está relacionado à gestão do cálculo por meio das estatísticas, visando intervir para garantir a longevidade dos corpos, manter o corpo são para o Estado, mas também como tecnologia que pretende obstruir sua configuração como povo ou classe” (PASSETTI, 2013).

Com efeito, para Foucault, o conceito de Biopolítica encerra uma visão que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explí-citos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana. Neste contexto, a Biopolítica passou a se ocupar com um novo corpo, múltiplo, e seus aspectos biológicos (FOUCAULT, 1988, p. 134).

Nesse processo de controle levado a efeito pelo Estado, estudos foram necessários como intuito de compreender e conhecer melhor esse corpo, não sendo suficiente apenas descrevê-lo e quantificá-lo, por exemplo, em termos de nascimento e de mortes, de fecundidade, de morbidade, de longevidade, de mi-gração, de criminalidade, mas também relacionar estes dados quantitativos de modo que se possa com base no presente e passado prever o que se apresentará no futuro. Neste cenário, desenvolve se múltiplos saberes, como a Estatística, a Demografia e a Medicina Sanitária (FOUCAULT, 1999, p. 292).

Ante a finalidade de se controlar a sociedade por meio do corpo, de se pro-mover a vida, o estabelecimento da norma, de imperativos regulamentadores se mostraram como providência necessária. Isto é, dito de outro modo, um poder como esse, que tem como tarefa principal a garantia da vida, terá sempre a ne-cessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. E esse mecanismo seria a norma (FOUCAULT, 1988, p. 135).

Nesse sentido, afirma Foucault que “uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida”. Foi a norma que conseguiu estabelecer um elo entre o elemento disciplinar do corpo individual (disciplinas) e o elemento regulamentador de uma multiplicidade biológica (biopoder) (1988, p. 135).

É sabido, como bem expôs Edgardo Castro (2012: 69-98), que o conceito de Biopolítica em Michel Foucault funciona relacionado à normalização biológi-ca do humano e que o conduziu à questão da governamentalidade.

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Tem-se, deste modo, que a Biopolítica como regulação da população é uma política de Estado que também não prescinde das diversas práticas da sociedade civil que deram conta da produção de um corpo saudável, mesmo sob as condi-ções de desigualdades, algumas vezes amenizadas como efeitos do sindicalismo e da ameaça revolucionária (PASSETTI, 2013).

Tecidas as considerações acima, tem-se que pela Biopolítica pretendiam se governar os corpos vivos, a população, instituindo que a vida de cada um dependia da política. A Biopolítica se constitui, portanto, tendo por alvo totalizante o corpo--espécie (população e território) e funciona articulada com os poderes disciplina-res individualizantes (utilidade e docilidade), atrelando o conjunto e o individual, e intimamente relacionada ao dispositivo de segurança (PASSETTI, 2013).

1.1 Biopolítica e o controle do Estado sobre as coletividades

Na obra de Michel Foucault, as expressões Biopolítica ou Biopoder objeti-va, envolver a complexa questão da normalização biológica dos seres humanos, no caminho que o autor trilhava na investigação do problema da governamen-talidade. Por Biopolítica, Foucault vai designar o movimento segundo o qual, a partir do século XVIII, a vida biológica começa a se converter em objeto da política, ou seja, a vida biológica passa a ser produzida e, além disso, adminis-trada, com a particularidade de que, mesmo sendo objeto de normalização, a vida biológica nunca fica exaustivamente retida nos mecanismos que pretendem controlá-la, pois sempre os excede e deles, por fim, escapa (CASTRO, 2011).

Na investigação acerca da relação do Direito com a vida e com a morte em-preendida no capítulo mencionado, Foucault remete-se inicialmente ao direito romano e à patria potestas, que concedia ao pai de família romano o poder de vida e morte sobre seus filhos ou escravos; posteriormente o autor identifica uma forma mais branda desse poder que perpassa pelas teorias contratualistas que atribuem ao soberano o poder de dispor do direito de guerra e do direito de pu-nir, ou seja, o poder de dispor sobre a vida e a morte de seus inimigos e também de seus súditos, não mais em termos absolutos e de modo incondicional, mas apenas naqueles casos em que se encontra exposto em sua própria existência (FOUCAULT, 2012, p. 150).

Esse dispositivo de soberania, para Foucault, representa o exercício de um direito que se exerce diretamente sobre a morte e indiretamente (através da mor-

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te, portanto) sobre a vida. Trata-se, segundo o filósofo, de um poder de “causar a morte ou deixar viver” (2012, p. 150).

Essa característica do poder vigente do século XVIII caracteriza o dispo-sitivo da soberania, no entanto, passa a ser apenas uma engrenagem a mais nos dispositivos de poder a partir do momento em que, na passagem do século co-meça a ser complementado por um poder que funciona de modo inverso, ou seja, que se exerce direta e positivamente sobre a vida.

Trata-se do “poder de causar a vida ou devolver à morte” (FOUCAULT, 2012, p. 150), ou seja, “um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las” (FOUCAULT, 2012, p. 148). Nesse sentido, o poder passa a ser exercido sobre a vida dos indi-víduos. É esse poder que Foucault denominará Biopolítica, representando uma estratégia ao mesmo tempo de proteção e de maximização da força representada pela vida dos indivíduos, vida que passa a valer muito, “não em nome de uma pretensa filantropia, mas porque ela é essencialmente força de trabalho, isto é, produção de valor.” Nesse contexto, a vida “só é útil porque é, ao mesmo tempo, sã e dócil, ou seja, medicalizada e disciplinarizada” (REVEL, 2006, p. 55-56).”

Para Foucault, o sistema capitalista pressupunha a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção (disciplina), bem como um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. É nesse sentido que a bio-política não se apropria da vida para suprimi-la, mas sim para administrá-la em termos regulativos, ou seja, trata-se de distribuir o vivente em um domínio de valor e de utilidade (CASTRO, 2011).

É nesse movimento que Foucault evidencia como a potência da vida hu-mana passa a ser aproveitada pelo Estado e pelas instituições como elemento de poder, ou seja, passa-se a incluir a vida humana nos cálculos do poder. Afinal, a lógica do biopoder é justamente essa: cuidar/maximizar a vida humana para que ela seja produtiva dentro da lógica capitalista.

No sistema capitalista de produção, portanto, torna-se imprescindível ins-trumentalizar o saber sobre a vida, de modo a viabilizar tanto o controle quanto a inserção das pessoas (da população) nos processos de produção, ajustando, assim, os fenômenos naturais como o nascimento, a reprodução e a morte, aos processos econômicos. O objetivo é controlar as consequências dos fenômenos naturais de modo que elas signifiquem ganhos econômicos. Assim, “o que se produziu por meio da atuação específica da Biopolítica não foi mais apenas o

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indivíduo dócil e útil, mas a própria gestão calculada da vida do corpo social” (DUARTE, 2010, p. 222).

2. DA CONFORMAÇÃO DA ECOPOLÍTICA

Michel Foucault tratou da questão do racismo e sua função de legitimar a morte do “outro” a partir de uma maneira inteiramente nova, compatível com o biopoder: a partir de então, “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura.” A eliminação do perigo biológico representado pelo outro é legitimada, dessa maneira, conforme estiver diretamente relacionada ao fortalecimento da própria espécie ou da raça: “a função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (FOUCAULT, 2010, p. 215).

Nesse ponto, é importante consignar que, por “tirar a vida” não se com-preende, na perspectiva foucaultiana, unicamente o assassínio direto, mas tam-bém tudo o que pode ser considerado assassínio indireto: “o fato de expor à mor-te, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição”. A guerra e o genocídio assumem, nesse quadro, o papel de ferramentas largamente utilizadas pela biopolítica para a consecução de seus objetivos (idem, p. 216).

Foucault (2010, p. 218) serve-se do exemplo do nazismo, por ele considera-do como o desenvolvimento, até o paroxismo, dos novos mecanismos de poder introduzidos a partir do século XVIII, para explicitar sua tese: “não há sociedade a um só tempo mais disciplinar e mais previdenciária do que a que foi implan-tada, ou em todo caso projetada, pelos nazistas”. Nessa sociedade, o controle das eventualidades próprias dos processos biológicos (procriação, hereditariedade, doenças, acidentes) era um dos principais objetivos do regime.

No entanto, essa sociedade, ao mesmo tempo que universalmente previ-denciária, seguradora, regulamentadora e disciplinar, era também perpassada, em todo o seu corpo, pelo poder de matar, que não era prerrogativa apenas do Estado, mas de toda uma série de indivíduos, de modo que, “no limite, todos têm o direito de vida e de morte sobre o seu vizinho, no Estado nazista, ainda que

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fosse pelo comportamento de denúncia, que permite efetivamente suprimir, ou fazer suprimirem, aquele que está a seu lado”.

A guerra, no regime nazista, é colocada como um objetivo político, ou seja, a política deve resultar na guerra, sendo que “a guerra deve ser a fase final e decisiva que vai coroar o conjunto”. Como decorrência disso, o regime nazis-ta não objetiva apenas a destruição das outras raças: busca-se também expor a própria raça ao perigo universal da morte. Isso significa que a defesa da vida e a produção da morte encontram-se em um patamar de indistinção. Logo, “o risco de morrer, a exposição à destruição total, é um dos princípios inseridos entre os deveres fundamentais da obediência nazista, e entre os objetivos essenciais da política”. Busca-se o ponto no qual toda a população esteja exposta à morte, dada a compreensão de que “apenas essa exposição universal de toda a população à morte poderá efetivamente constituí-la como raça superior e regenerá-la defi-nitivamente perante as raças que tiverem sido totalmente exterminadas ou que serão definitivamente sujeitadas” (FOUCAULT, 2010, p. 218-219).

Nesse contexto, tem-se, conforme Edson Passetti, que “a biopolítica não tratava mais da população em conjunto, mas a considerava diante de um novo quadro de profilaxia, paradoxalmente complementado pela disseminação de di-reitos, estratificando a população, e respaldada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Assim, o conceito de Biopolítica foi se exaurindo a partir deste momento, segundo as sugestões metodológicas de Michel Foucault a respeito da história do presente em que um conceito somente tem relevância diante de sua história efe-tiva. Biopolítica não é um conceito universal, diz respeito à sociedade disciplinar.

A noção de Ecopolítica procura responder a algumas destas novas institu-cionalizações. Não se trata de disciplina acadêmica ou componente da gestão do governo sobre a população ou o meio ambiente, mas de prática de governo do planeta nos tempos de transformação (de si, dos outros, da política, das relações de poder e do planeta no universo), com desdobramentos transterritoriais e va-riadas estratificações conectadas (PASSETTI, 2011b; 2011c).

Conforme preceitua Edson Passetti (2013), Ecopolítica trata-se de prática de governo do planeta nos tempos de transformação (de si, dos outros, da po-lítica, das relações de poder e do planeta no universo), com desdobramentos transterritoriais e variadas estratificações conectadas.

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Defende o autor que Ecopolítica não se restringe aos usos atuais, pautados estritamente na ecologia ou ao ambientalismo. Sustenta que:

desvencilhados do enquadramento ideológico em neoliberalismo, os liberais pro-

curam situar uma nova etapa do capitalismo como desenvolvimento sustentável,

proposição dimensionada no interior da racionalidade neoliberal por meio de

programas de déficits elaborados em comissões, comitês, organizações internacio-

nais. Não se trata mais de intervir em saúde e educação para estabelecer novos pa-

tamares de cultura política, mas de produzir conexões neste sentido. Por sua vez,

a nostalgia do welfarestate como estratégia de esquerda nada mais faz do que evi-

denciar as práticas necessárias do Estado-Nação para viabilizar as recomendações

internacionais sustentáveis que necessariamente passam pela ONU. De ambos os

lados, em defesa do desenvolvimento sustentável ou da ecologia como humaniza-

ção e estratégia política de contestação, ambos inscrevem-se como atuantes forças

na conformação da ecopolítica atual, como renovadores da economia política e da

crítica da economia política (PASSETTI, 2013).

Neste contexto, o que se evidencia são novas pretensões capitalistas, não mais pautadas na manutenção da pobreza e sim, alicerçadas no desenvolvimen-to sustentável, de modo a elevar os indicadores econômicos, auferir índices de felicidade e desenvolvimento humano (saúde, educação e cultura), disseminar uma cultura de paz, educar pessoas e práticas para a resiliência, instituir uma economia verde, encontrando certa qualidade de vida com redutores de vulnera-bilidades e gerando condições compartilhadas para uma vida melhor de pessoas, ares, mares, relevos, florestas, enfim, do ambiente.

Conforme asseverou Passetti:

Trata-se de um investimento na ocupação de inteligências, em participações, co-

nexões, múltiplas identificações, assentamento de direitos, segurança e securiti-

zação, conservação do planeta que requer, antes de tudo, moderação, e o meio

encontrado para tal condição está na vida resiliente (PASSETTI, 2013).

Assim, as pretensões do governo não mais se pautam na vida biológica, no corpo humano e nos instrumentos que permitam esse controle, mas de tudo que

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se mostre vivo para o futuro; não mais vida no presente, mas o presente repleto de práticas voltadas ao futuro melhor de si e do planeta.

Conforme exposto alhures, a Biopolítica, considerava os indivíduos em grupos, na sua coletividade, enquanto a Ecopolítica considera as subjetividades.

Para Edson Passetti, “É preciso viver para fora e por dentro, do lado de fora e conectado com vários ambientes resilientes, o Estado e organizações transterritoriais: é preciso fazer parte de tecnologias sociais, ser reconhecido e premiado, mas também saber fazer negócios sociais sustentáveis e estar ocu-pado. Uma subjetividade resiliente em ambientes resilientes deve reduzir vul-nerabilidades, ampliar a qualidade de vida, produzir riqueza sustentável para o planeta: empresariado (capital) e o capital humano (empreendedores de si) produzem nova cooperação liberal, nomeada como produção compartilhada e competitiva. E todos amam ou devem amar sua condição no processo de erradicação da pobreza” (PASSETTI, 2013).

Esse novo formato, aqui defendido como nova forma de governo, de re-lação e poder desenvolvida, na mesma linha defendida por Edson Passetti, decorreu de um fluxo derivado do final da II Guerra Mundial que articula, si-multaneamente, Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, Guerra Fria, situação de confronto entre capitalismo e socialismo autoritário, eclosão de rebeldias no final da década de 1960, com o início das procedências da sustenta-bilidade com o Clube de Roma (entre 1968-1972), repercutindo na Convenção de Estocolmo, 1972, no relatório Brundtland, 1987, na Eco 92, em Johanesburg, 2002, na Rio+20, 2012 (PASSETTI, 2013).

Pela análise das forças que engendram essa nova política/poder, nota-se que não se trata de um encadeamento institucional pelo qual as resultantes pres-sionam os Estados a tomarem decisões internas conforme a dinâmica da civili-zação. Não se trata de um circuito de poder de cima para baixo, agora projetado em âmbito internacional. Não se trata de uma configuração das políticas nacio-nais sob a hegemonia das relações internacionais.

Defende Edson Passetti que nesse novo cenários

a sustentabilidade requer mais da civilização. Exige de cada um que seu potencial

seja implementado como projeta a economia política, com conservação ambiental

e aceitação que o capitalismo é ao mesmo tempo realidade e utopia. A sustenta-

bilidade encontrou sua formulação mais adequada com a noção de desenvolvi-

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mento sustentável na medida em que todos são convocados a conservar o planeta

diante dos efeitos devastadores do antigo progresso industrial, mas também da

conduta presente de cada um, gerando uma governamentalidade planetária (PAS-

SETTI, 2013).

Assim, “O corpo útil e dócil que perdurou nas técnicas das disciplinas não desaparece, apenas começa a ceder lugar a um corpo que deve produzir inteli-gência: na empresa, nas fundações, institutos, ONGs etc. A cultura do castigo ganha seus novos contornos com políticas de tolerância, cálculos de vulnerabili-dade, qualidade de vida e cultura de paz (PASSETTI, 2013).

Os elementos que se evidenciam nessa nova etapa não estão adstritos às políticas de governo, mas estão conectados às gestões levadas adiante pela so-ciedade civil organizada. Neste novo contexto, as políticas não mais se assentam nas polícias médicas, dos saneamentos urbanos e de investimentos em força de trabalho sã. Conforme destaca Edson Passetti, “o alvo biopolítico que é a popula-ção ainda permanece presente, mas agora é pluridimensionado pela convocação à participação na gestão do planeta, do Estado, de empresas, comunidades e na governamentalidade ambiental. A biopolítica vai consolidando sua ultrapassa-gem pela ecopolítica” (PASSETTI, 2013).

Agora, governa-se com os governados de modo democrático de baixo para cima e de cima para baixo, marca indelével da Ecopolítica.

2.1 Ecopolítica e Sustentabilidade

A Ecopolítica, muito menos que disciplina de conhecimento e política go-vernamental específica relacionada ao meio ambiente, mostra-se como nova go-vernamentalização dos ambientes (MALETTE, 2011; ULLOA, 2011), também em função da institucionalização de cidades resilientes, conceito que qualifica o de sociedade civil global, por meio da definição de povos e planeta resilientes.

Nesse contexto, defende Passetti que:

a sustentabilidade firma-se como o meio para o capitalismo realizar de maneira

adequada, adaptável e consensual sua utopia de um futuro melhor desde o pre-

sente. As intervenções na natureza por meio de regulamentações internacionais

repercutem em regulações nacionais, as empresas aderem à responsabilidade

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social, cresce o investimento em redutores de vulnerabilidades, aplica-se com

rigor o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), convoca-se à participação

para medidas pacificadoras e missões de paz, amplia-se o leque de seguranças,

incluindo alimentação, clima, securitizações e leva-se adiante as Metas do Milê-

nio, para a qual a Rio +20 apresentou-se como fórum de tendências e espaço para

implementações da economia verde e de institucionalização da cultura de paz;

sinalizou ainda para a sobreposição de novas metas intermináveis com acenos de

substituição da economia verde pela economia azul combinada à necessidade de

implementação da próxima agenda voltada à elaboração das metas do desenvol-

vimento sustentável que viriam substituir as Metas do Milênio (PASSETTI, 2013).

No aspecto jurídico brasileiro, percebe-se a mudança de posicionamento da Biopolítica para a Ecopolítica nas legislações surgidas após os acontecimentos de Estocolmo (1972), quando se realizou a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, como repercussão dos efeitos nefastos da Segunda Guerra Mundial, quando o meio ambiente passou a ser considerado questão de segurança do planeta (CARNEIRO 2012, p. 6).

Marca principal da mudança deste paradigma foi a inclusão do Capítulo VI – DO MEIO AMBIENTE – na Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, estabelecendo em seu artigo 225:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem

de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Po-

der Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes

e futuras gerações. § 1.º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao

Poder Público: Omissis VI - promover a educação ambiental em todos os níveis

de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

A referida alteração repercutiu ainda nas legislações estaduais, como se percebe na inclusão do Capítulo XI – DO MEIO AMBIENTE da Constituição do Estado do Amazonas, de 5 de outubro de 1989, definindo, exemplificativa-mente, em seus artigos 229 e 230:

Art. 229. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, es-

sencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade

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o dever de defendê-lo e preservá-lo § 1.º O desenvolvimento econômico e social,

na forma da lei, deverá ser compatível com a proteção do meio ambiente, para

preservá-lo de alterações que, direta ou indiretamente, sejam prejudiciais à saúde,

à segurança e ao bem-estar da comunidade, ou ocasionem danos à fauna, à flo-

ra, aos caudais ou a o ecossistema em geral. Art. 230. Para assegurar o equilíbrio

ecológico e os direitos propugnados no Art. 229, desta Constituição, incumbe ao

Estado e aos Municípios, entre outras medidas: I – promover a educação ambien-

tal e difundir as informações necessárias à conscientização pública para as causas

relacionadas ao meio ambiente;

No âmbito municipal, igualmente fora percebido o deslocamento da Bio-política para uma Ecopolítica, como é o caso da Lei Orgânica do Município de Manaus, de 5 de abril de 1990, que instituiu o capítulo II – DA POLÍTICA DO MEIO AMBIENTE, destacando-se, especialmente, o teor dos artigos 283 e 289:

Art. 283. O meio ambiente ecologicamente saudável e equilibrado é direito de

todo o cidadão, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, in-

cumbindo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo,

inclusive quanto ao comprometimento do ambiente de trabalho. Parágrafo Único

- Para assegurar a efetividade desse direito, o Município, observado o disposto

nos artigos 229, 230 e 231 da Constituição do Estado, atuará de forma cooperativa

com os órgãos públicos e privados e ainda com Municípios, Estados e Países que

integrem a Região Amazônica.

Art. 289. A educação ambiental será proporcionada pelo Município na condição

de matéria extracurricular e ministrada nas escolas e centros comunitários inte-

grantes de sua estrutura e do setor privado, se na condição de subvencionado ou

conveniado com esse. Parágrafo Único - O Município se utilizará de programas

especiais e campanhas de ampla repercussão e alcance popular com vistas a pro-

mover a educação ambiental no âmbito comunitário.

A inserção dos artigos mencionados acima demonstram o intuito do le-gislador de assegurar o pleno exercício da Ecopolítica e, ao mesmo tempo, evi-denciam a preocupação daqueles em atribuir aos gestores públicos e à sociedade a responsabilidade pelo meio ambiente, demonstrando claramente os aspectos destacados por Passetti (2013) e Carneiro (2012) quanto à utilização do meio

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ambiente como um dispositivo, normatizando-se condutas para o que é permi-tido e o que é obrigatório, no intuito de condicionar os indivíduos a praticarem atos preestabelecidos sem contestá-los.

CONCLUSÃO

Conforme se viu, a política do corpo ou das disciplinas e a Biopolítica da espécie humana foram dois mecanismos do poder inventados no decorrer da segunda metade do século XVII e no decorrer do século XVIII, respectivamente, como instrumentos de formatação e normalização dos indivíduos e das popula-ções, uma espécie de ajustamento dos indivíduos às novas relações de produção então em pleno desenvolvimento.

A gênese desses mecanismos de poder se conformam com a do desenvol-vimento do Estado Liberal, já que, segundo Foucault, elas (a anátomo-política e a Biopolítica) somente podem ser entendidas convenientemente no quadro instituído pela racionalidade do liberalismo clássico, em vista justamente do de-senvolvimento das relações de produção capitalistas.

Conforme se notou no curso deste artigo, ao contrário dos mecanismos disciplinares, a Biopolítica não vai buscar a alteração do indivíduo de forma iso-lada, não se ocupa portanto de fenômenos individuais. A partir de previsões, estimativas, estatísticas e medições, ela teve com foco as intervenções nos fenô-menos em nível global, com o escopo de estabelecer mecanismos reguladores.

No processo de evolução da sociedade e do próprio desenvolvimento das relações de poder, a Ecopolítica, aqui entendida como etapa que se sucedeu a Biopolítica se figura nesse contexto, como forma de poder participativa, onde se relacionam governantes e governados, todos os sujeitos, estatais ou não, partici-pando de forma ativa na busca de soluções para as situações que se apresentem. Não se trata aqui de uma relação vista de cima para baixo ou o contrário, tem-se, do contrário, uma interrelação entre os atores envolvidos.

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REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui-cao.htm Acesso em 8 de fevereiro de 2018.

CARNEIRO, Beatriz Scigliano. A construção do dispositivo meio ambiente. In: Revista Ecopolítica. v. 4, set. - dez. São Paulo: PUC-SP, 2012.

ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.

FOUCAULT, Michel (1978). A governamentalidade. Michael Foucault. In: Mi-crofísica do poder (p. 277-293). Rio de Janeiro: Graal.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de Fran-ce (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

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FOUCAULT, Michel (1977). Vigiar e punir. Tradução de Lígia M. Pondé. Petró-polis: Vozes.

Lei Orgânica do Município de Manaus, de 5 de abril de 1990. Disponível em: ht-tps://www.leismunicipais.com.br/lei-organica/manaus-am/157 Acesso em 8 de fevereiro de 2018.

PASSETTI, Edson. Transformações da biopolítica e emergência da ecopolítica. in: Revista Ecopolítica. v. 5, jan-abr. São Paulo: PUC-SP, 2013.

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AS BARRAGENS DE REJEITOS DE MINERAÇÃO E O DIREITO AMBIENTAL NA SOCIEDADE DE RISCO

THE DAMS OF MINING REJECTS AND ENVIRONMENTAL LAW IN THE RISK SOCIETYMário Vinícius Rosário Wu1

Sumário: Introdução; 1. A justiciabilidade dos riscos; 2. A tensão entre desenvol-

vimento econômico e a preservação da qualidade ambiental; 3. O mercado e o

utilitarismo; 4. A sensibilidade, a importância e a potencialidade da região amazô-

nica para novos empreendimentos minerários; 5. As falhas de mercado; 6. A im-

portância da efetividade do Direito Ambiental na sociedade de risco; 7. As tutelas

provisórias do NCPC e a tutela inibitória: as barragens de rejeitos de mineração

como um ilícito que deve ser removido; Conclusão; Referências.

RESUMO: Neste trabalho, abordamos o déficit no standard constitucional de proteção do ambiente que representam as barragens de rejeitos de mineração. Nossa análise partiu da crítica à maneira como as instituições compreendem o risco na atual era do descontrole: como um mal necessário, que somos obrigados a tolerar, em nome do progresso ou do bem-estar geral. Examinamos os dile-mas da pós-modernidade e suas implicações à gestão dos rejeitos de mineração, enfatizando a sensibilidade, a importância e a potencialidade da região amazô-nica para novos empreendimentos minerários. Analisamos que a tensão entre desenvolvimento econômico e a preservação da qualidade ambiental é a prin-cipal questão a ser sopesada. Concluímos que, nessa ponderação, é muito forte o argumento pós-moderno de que sacrifícios individuais em benefício do todo devem ser encarados como um pensamento antiliberal e antidemocrático, pois o ser humano é um fim em si mesmo, e não um recurso para benefícios de outros, e a sociedade não deve ser encarada como um ente superior aos seres humanos que a compõem. De outro lado, argumentam as regras do mercado: a maximiza-ção dos lucros em nome do “bem-estar geral” e a economização do mundo (leis cegas do mercado acima das leis da natureza) que impõe normas pela criação de necessidades. A partir daí, fizemos uma crítica ao utilitarismo e concluímos que

1 Mestrando em Direito Ambiental, pela Universidade do Estado do Amazonas. Oficial de justiça, ava-liador Federal.

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o desenvolvimento econômico promovido pela indústria da mineração não deve ser tolerado a qualquer custo e que, se há disponibilidade de técnicas que miti-gam os riscos, elas devem ser implementadas, mesmo sendo mais caras que as técnicas atuais, pois é imoral lucrar expondo desnecessariamente a vida, a saúde, a integridade física e a segurança de pessoas a um nível demasiadamente alto de risco, como a indústria da mineração faz com as barragens. Isso por que, antes e acima da lógica da compensação, nossa Constituição estabelece os princípios da prevenção e precaução como valores superiores e centrais da tutela ambiental. Diagnosticamos que o Estado como responsável pelo bem-estar e controle dos abusos do capitalismo mostrou-se ineficaz e que somente com a efetiva consi-deração e respeito ao direito dos cidadãos à qualidade do ambiente poderemos alcançar o verdadeiro bem-estar-geral em longo prazo. Quando não se realiza satisfatoriamente a atividade de gestão de riscos e se aplica defeituosamente os princípios da precaução e da prevenção na tomada das decisões de atuação ou abstenção, nasce o direito subjetivo de exigir atuação preventiva e adoção de medidas precaucionais. Após a constatação de tal falha de mercado, passamos a analisar a efetivação do direito ao meio ambiente por meio do controle judi-cial, em especial, avaliamos a importância da tutela inibitória no novo Código de Processo Civil para controlar a ineficiência ambiental da gestão dos resíduos minerários. Foram utilizados os métodos hermenêutico e comparativo.

PALAVRAS-CHAVE: Barragens de rejeitos de mineração. Direito Am-biental. Sociedade de risco. Tutela inibitória.

ABSTRACT: In this work, we address the deficit in the constitutional stan-dard of environmental protection that represents the mining tailings dams. Our analysis came from the critique of how institutions understand risk in the pre-sent age of uncontrol: as a necessary evil, which we are obliged to tolerate in the name of progress or general well-being. We examine the dilemmas of postmo-dernity and its implications for the management of mining tailings, emphasizing the sensitivity, importance, and potential of the Amazon region for new mining ventures. We analyze that the tension between economic development and the preservation of environmental quality is the main issue to be weighed. We con-clude that, in this consideration, the postmodern argument that individual sacri-fices for the benefit of the whole must be regarded as anti-liberal and undemo-cratic thinking is very strong, because the human being is an end in itself - not a resource for the benefits of others - and society should not be regarded as an

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entity superior to the human beings that comprise it. On the other hand, market rules argue: profit maximization in the name of “general welfare” and the eco-nomized world (blind market laws above the laws of nature) that imposes stan-dards for the creation of needs. From there, we criticized utilitarianism and con-cluded that the economic development promoted by the mining industry should not be tolerated at any cost and that, if risk mitigation techniques are available, they should be implemented, even though they are more expensive than the cur-rent techniques, as it is immoral to profit from unnecessarily exposing the lives, health, physical integrity and safety of people to an excessively high level of risk as the mining industry does with dams. This is because, before and above the logic of compensation, the Constitution of Brazil establishes the principles of prevention and precaution as the highest and central values of environmental protection. We diagnose that the state as responsible for the welfare and for the control of abuses of capitalism has proved to be ineffective and that only with the effective consideration and respect of the right of the citizens to the quality of the environment can we achieve the true general welfare in the long run. When the risk management activity is not carried out satisfactorily and the principles of precaution and prevention are taken into account in the decision making pro-cess or abstention, the subjective right to require preventive action and adoption of precautionary measures is born. After verifying this market failure, we began to analyze the effectiveness of the right to the environment through judicial con-trol, in particular, we evaluated the importance of the injunction in the new bra-zilian civil procedure code to control the environmental inefficiency of mineral waste management. Hermeneutic and comparative methods were used.

KEYWORDS: Mining tailings dams. Environmental law. Risk society. Prohibitory injunction.

INTRODUÇÃO

Neste artigo pretendemos demonstrar o desafio que as barragens de rejeitos de mineração representam para a efetividade do Direito Ambiental nas Sociedades de risco.

A catástrofe de Mariana/MG acendeu um debate acerca da gestão dos ris-cos do setor minerário. Em novembro de 2015, a barragem de Fundão, de pro-

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priedade da Samarco Mineração S. A., sofreu um rompimento que acarretou a erosão da barragem de Santarém e resultou no derramamento de milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração na região conhecida como Vale do Rio Doce. A lama formada por esses rejeitos era composta de resíduos de ferro, altos níveis de metais pesados e outros produtos químicos tóxicos, e atingiu centenas de quilômetros de corpos hídricos, carregando resíduos até a foz do rio Doce, no oceano Atlântico, já no Estado do Espírito Santo.

O desastre resultou em morte de pessoas, no desalojamento de populações, na devastação de localidades, na destruição de milhares de hectares de vege-tação, na mortandade de biodiversidade aquática e fauna terrestre; na perda e fragmentação de habitats, na interrupção da pesca e do turismo, na alteração da qualidade da água, na interrupção do abastecimento de água e na dificuldade de geração de energia elétrica.

Esse colapso deixa muito clara uma lição: nos processos de licenciamento e de autorização, os critérios estabelecidos pela Administração Pública não po-dem ser afirmados, em termos absolutos, como corretos e suficientes para evitar ou diminuir o risco de vazamentos em barragens de rejeitos de mineração. O ocorrido em Mariana revela a ineficácia das instituições na tarefa de primeiro prever e, em seguida, controlar esses riscos. Veremos que é de extrema impor-tância que se lide adequadamente não apenas com os efeitos dos riscos, mas com a própria existência deles. Esse é o problema que objetivamos enfrentar ao longo deste artigo: a permanência de um modelo inadequado para lidar com a existên-cia dos riscos produzidos pela mineração. Para isso, verificaremos quais direitos estão em jogo e qual a resposta que o ordenamento jurídico oferece para em-preendimentos que promovem um risco demasiadamente alto e desnecessário.

Pretendemos, portanto, examinar a questão da justiciabilidade dos ris-cos. Para tanto, precisaremos analisar se a existência das barragens de rejeitos de mineração consistem violação ou ameaça concreta, real e iminente a di-reitos e interesses das gerações presentes e futuras, relativos ao bem jurídico qualidade ambiental. A catástrofe de Mariana revela a atualidade e pertinência desse problema.

A tensão entre desenvolvimento econômico e a preservação da qualidade ambiental é a principal questão a ser sopesada. Analisaremos se as barragens de rejeitos de mineração representam um déficit no padrão constitucional de pro-teção do ambiente. Para tanto, precisaremos fazer um estudo da interpretação e

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aplicação normas jurídicas constitucionais, pois, além de positivar os princípios do desenvolvimento sustentável, da precaução e da prevenção, a Constituição de 1988, ao estabelecer os fundamentos do Estado Democrático de Direito, incluiu, entre os deveres do Poder Público, o de controlar a produção, comercialização e emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Por outro lado, argumenta de forma muito intensa o direito fundamental ao progresso.

No argumento em favor do progresso e do desenvolvimento econômico, examinaremos o maior impeditivo para que inovações técnicas que aumentam a segurança dos empreendimentos minerários sejam adotadas: o mercado. Fare-mos uma crítica à visão do risco como um mal necessário, que somos obrigados a tolerar, em nome do progresso ou do bem-estar geral. Isso porque há alterna-tivas técnicas com maior eficiência ambiental, que utilizam menos água ou que implicam no aproveitamento dos subprodutos, mas que não são adotadas por questões de mercado, uma vez que representam um custo maior às mineradoras.

Nessa análise do mercado, identificaremos os dilemas da pós-modernidade e observaremos suas implicações à gestão dos rejeitos de mineração, enfatizando a sensibilidade, a importância e a potencialidade da região amazônica para no-vos empreendimentos minerários. Com recorrência, a tensão entre desenvolvi-mento econômico e a preservação da qualidade ambiental precisa ser sopesada em casos difíceis apreciados pelo Poder Judiciário. Pretendemos aqui fazer uma crítica ao utilitarismo e seus argumentos imorais, antiliberais e antidemocráti-cos, que com frequência são levantados nessa ponderação.

Será feito um diagnóstico acerca de eventual falha de mercado na gestão dos resíduos minerários, por meio da análise do desempenho do Estado como respon-sável pelo bem-estar e controle dos abusos do capitalismo. Temos em vista que, somente com a efetiva consideração e respeito ao direito dos cidadãos à qualidade do ambiente, poderemos alcançar o verdadeiro bem-estar-geral em longo prazo.

A partir daí, pretende-se demonstrar a importância da efetividade do Di-reito ambiental na sociedade de risco, em especial, para controlar os riscos de-masiadamente altos e desnecessários que representam as barragens de rejeitos de mineração. Analisaremos a efetivação do direito ao meio ambiente previsto na Constituição por meio do controle judicial. Veremos que o desenvolvimen-to econômico promovido pela indústria da mineração não deve ser tolerado a qualquer custo e que, se há disponibilidade de técnicas que mitigam os riscos,

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elas devem ser implementadas, mesmo sendo mais caras, que as técnicas atuais, pois é imoral lucrar expondo desnecessariamente a vida, a saúde, a integridade física e a segurança de pessoas a um nível demasiadamente alto de risco, como a indústria da mineração faz com as barragens. Isso por que, antes e acima da ló-gica da compensação, nossa Constituição estabelece os princípios da prevenção e precaução como valores superiores e centrais da tutela ambiental.

Para superarmos a tendência institucional do simbolismo do Direito Am-biental, é importante que haja mecanismos processuais que permitam o controle da gestão dos riscos envolvendo os resíduos minerários e que a construção de no-vas barragens para descarte dos resíduos importe no reconhecimento de um ilícito ambiental, por ferir princípios centrais e superiores do ordenamento jurídico-am-biental, como os mandados de precaução e prevenção, uma vez que há disponibi-lidade no mercado de técnicas mais eficientes e seguras para lidar com os rejeitos.

Quando não se realiza satisfatoriamente a atividade de gestão de riscos e se aplica defeituosamente os princípios da precaução e da prevenção na tomada das decisões de atuação ou abstenção, nasce o direito subjetivo de exigir atuação preventiva e adoção de medidas precaucionais.

Por fim, avaliaremos a importância das novas regras do processo civil bra-sileiro sobre tutelas provisórias de urgência, com a finalidade de promover uma adequada, efetiva, segura e célere prestação jurisdicional. Daremos um merecido destaque à tutela inibitória, cujo objetivo é a remoção de um ato ilícito, já que a opção por um modelo menos seguro para lidar com os rejeitos minerários é um ato ilícito, que precisa ser controlado. Avaliaremos a importância da tutela inibi-tória para controlar a ineficiência ambiental da gestão dos resíduos minerários.

O método de abordagem mais útil a captar o que se quer desvendar é o hermenêutico, pois não é pela forma, nem pela gramática, que a solução jurídica para o problema pode ser compreendida, mas pelo seu entorno e contexto. Nos-sa preocupação é com a sensibilidade e a percepção adequada para compreender o problema e sua solução. Também utilizaremos o método comparativo como método de procedimento, pois ele nos permite romper com a singularidade, formulando leis capazes de explicar o geral, isto é, identificando continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, e explicitando as determinações mais gerais que regem os fenômenos específicos.

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1. A JUSTICIABILIDADE DOS RISCOS

O sociólogo alemão Ulrich Beck, na obra Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade, aborda o problema das catástrofes ecológicas e ensina que o risco está cada vez mais presente no nosso cotidiano: a produção de riquezas acarreta a produção de riscos; a produção de riscos domina a lógica da produção de bens; os riscos na contemporaneidade representam oportunidades de mercado.

Assim, cada vez mais forças destrutivas são desencadeadas. Embora reco-nheça o risco como elemento capaz de ser mensurável e calculável segundo leis de probabilidade, Beck (2010) entende a sociedade de risco como um mundo de incertezas fabricadas, por meio de inovações tecnológicas e respostas sociais mais aceleradas, produzindo um novo cenário de risco global, de incertezas não quantificáveis. Longe de denotar controle, a sociedade de risco simbolizaria, de certo modo, uma era de descontrole pelo fato de os riscos civilizatórios escapa-rem à percepção. Hoje os riscos são globais, vem do próprio processo de produ-ção (industrialização dos produtos). Vivemos a era da universalização dos ris-cos; vivemos num mundo de incertezas fabricadas. Existem ameaças invisíveis e não perceptíveis.

Sobre a justiciabilidade dos riscos, riquíssima é a contribuição doutrinária de José Rubens Morato Leite e Patrick de Araújo Ayala, na obra Direito Am-biental na sociedade de risco, cujas principais ideias apresentaremos a seguir. Fa-remos a correlação dessas lições com a questão problemática das barragens de rejeitos de mineração.

A primeira lição que gostaríamos de destacar é a ideia de que “as socie-dades contemporâneas não sabem lidar com os problemas oriundos do risco, ou não sabem conviver com o risco, [...] conhecem a existência de riscos e não oferecem propostas idôneas a lidar com os mesmos” (LEITE; AYALA, 2004, p. 128). Esta triste constatação pode ser facilmente verificada no atual modelo de gestão dos resíduos minerários: as barragens de rejeitos de mineração. Isso por que, apesar do grande risco que representa a existência de barragens de rejeitos de mineração, existem alternativas a elas, técnicas que implicam em redução do volume dos rejeitos gerados, desaguamento dos rejeitos e aproveitamento dos rejeitos, que, infelizmente, não são adotadas em nosso país.

Muitos países têm procurado propostas idôneas para lidar com esse risco, buscando a chamada mineração com “resíduo zero”. Trata-se do aprimoramento

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das técnicas de lavra e beneficiamento, visando o máximo aproveitamento na lavra e a melhoria da eficiência das usinas. Já existem tecnologias disponíveis para redu-zir e eventualmente eliminar as barragens de rejeitos, transformando, em algumas situações, os resíduos em coprodutos ou subprodutos, e recuperando toda a água utilizada nos processos. O desafio, entretanto, é o volume de investimentos e a competitividade do negócio. Como muitos equipamentos são importados, o valor do investimento passa a ser um impeditivo (GT BARRAGENS, 2016).

Ulrich Beck (2010) constata que uma característica fundamental da socieda-de contemporânea é o não oferecimento de condições de segurança técnica, cien-tífica e informativa, necessárias para os processos de tomada de decisão. Enfrenta-mos sérias dificuldades na organização de alternativas funcionais e, sobretudo, efi-cientes para a fundamentação e justificação das escolhas e das decisões (respostas), que permitam ser atingido o ponto ótimo de proteção do ambiente. Entendemos que o desastre de Mariana põe em evidência essa faceta da crise ambiental.

Por isso, entendemos que um Direito Ambiental dotado de efetividade ne-cessariamente abrange a justiciabilidade dos riscos. O Direito Ambiental não pode ser indiferente à ideia de que decisões e escolhas devem ser realizadas para a con-cretização dos objetivos de proteção do ambiente, nem ao problema de como su-perar da melhor forma possível o conjunto de imprevisões, incertezas e indefini-ções dos processos que nos cercam diariamente, na chamada “sociedade do risco”.

Há, no Brasil, um conjunto de problemas que incorpora simultaneamente a ineficácia e à inadequação das medidas normativas de proteção do ambiente. É possível identificar déficits nos padrões de proteção, que não conseguem se aproximar dos objetivos de garantia ótima do bem ambiental, dado negativo, que não consegue ser progressivamente mitigado com a reprodução e multipli-cação do sistema normativo. A maneira como as instituições compreendem ou pretendem compreender o risco permite a constituição desse quadro de desfun-cionalidade (LEITE; AYALA, 2004, p. 127).

Portanto, a justiciabilidade dos riscos é imprescindível para que não sejam consideradas “letra morta” algumas normas constitucionais, como o Art. 225, que dispõe que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo--se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, e também o inciso VI, do Art. 170, que dispõe que a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado confor-

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me o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elabora-ção e prestação” é um princípio geral da atividade econômica. Afinal, é o próprio texto constitucional que assevera que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbe ao Poder Público “contro-lar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substân-cias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”, de acordo com o parágrafo primeiro e seu inciso V, do Art. 225.

A justiciabilidade dos riscos, em última análise, consiste na necessária substi-tuição da lógica patrimonialista, tradicional e clássica da reparação ou compensa-ção de danos, pelos princípios da prevenção e da precaução, positivados nos dispo-sitivos constitucionais citados no parágrafo anterior. Ulrich Beck (2010) alerta que a natureza não pode mais ser concebida sem a sociedade, e vice-versa, bem como que, atualmente, muitos problemas ambientais passam a ser considerados também problemas sociais (o que também ficou muito claro na tragédia de Mariana). Desse modo, é preciso romper com a ideia de que o risco é um efeito colateral latente do progresso, uma espécie de licença, um destino natural civilizatório. Entendemos que os riscos demasiadamente altos e desnecessários devem ser tratados atos ilíci-tos, passíveis de serem controlados pela via jurisdicional.

Isso por que a atuação preventiva e a adoção de medidas precaucionais são instrumentos fundamentais da implementação dos sistemas de proteção do ambiente, nos termos da Constituição de 1988. Isso significa que, quando não se realiza satisfatoriamente a atividade de gestão de riscos e se aplica defeituo-samente o princípio da precaução na tomada das decisões de atuação ou abs-tenção, estamos diante de uma violação do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Isso significa que, conhecida a existência de riscos, todos devem ter assegurado o direito de exigir, em face de todos os responsáveis, o oferecimento de propostas idôneas para lidar com tais riscos. Entendemos que somente assim será atingido o ponto ótimo de proteção do ambiente.

2. A TENSÃO ENTRE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A PRESERVAÇÃO DA QUALIDADE AMBIENTAL

O raciocínio silogístico da subsunção, no qual uma premissa maior (a nor-ma) incide sobre uma premissa menor (os fatos) produzindo uma conclusão que

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é o fruto da aplicação da norma ao caso concreto, não é suficiente para lidar com as situações que envolvam colisões de princípios ou de direitos fundamentais. Nesses casos, há várias premissas maiores e apenas uma menor, e, se aplicar-mos a subsunção, estaremos elegendo uma única premissa maior e descartando as demais. Isso não seria constitucionalmente adequado, por violar o princípio da unidade da Constituição. Então, os múltiplos elementos em jogo devem ser considerados na medida de sua importância e pertinência para o caso concreto, por meio da técnica da ponderação. O princípio da proporcionalidade é o fio condutor de todo esse processo (BARROSO, 2009, p. 333).

Portanto, não obstante toda a ideia de justiciabilidade dos riscos desenvol-vida ao longo do tópico anterior, estamos conscientes de que existe na sociedade contemporânea um pensamento muito forte que compreende o risco como um “mal necessário”. Pretendemos nos próximos tópicos abordar os fundamentos e alguns desdobramentos desse pensamento, para que os múltiplos elementos em jogo sejam considerados, pois a justiciabilidade dos riscos envolve colisões de princípios ou de direitos fundamentais, e o princípio da unidade da Constituição deve ser respeitado.

Existe uma forte tensão entre desenvolvimento econômico e a preservação da qualidade ambiental. Um dos maiores exemplos dessa tensão é a exploração mineral. Se olharmos rapidamente ao nosso redor agora mesmo, não impor-ta em qual recinto estejamos, certamente encontraremos metais à nossa volta. Impressiona a quantidade de metais em todos os ambientes que frequentamos diariamente. Não obstante isso, a mineração é uma das atividades que mais de-grada o ambiente. Impressiona também o tamanho do estrago que é feito pelas mineradoras para efetuar a lavra e o beneficiamento de metais.

Nessa ponderação, é muito forte o argumento pós-moderno de que sacri-fícios individuais em benefício do todo devem ser encarados como um pensa-mento antiliberal e antidemocrático, pois o ser humano é um fim em si mesmo, e não um recurso para benefícios de outros, e a sociedade não deve ser encarada como um ente superior aos seres humanos que a compõem.

O argumento econômico não pode ser usado para que se deixe de utilizar as melhores técnicas para lidar com os resíduos minerários, tendo em vista o risco intolerável que as barragens representam. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, é um direito humano fundamental, classificado como de terceira dimensão. Todos têm o

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direito e o dever de proteger e preservar a qualidade dos recursos ambientais para as gerações presentes e futuras. Assim sendo, o desenvolvimento da socie-dade promovido pela indústria da mineração não deve ser tolerado a qualquer custo. Se há disponibilidade de técnicas que mitigam os riscos, elas devem ser implementadas.

Defender o contrário significa adesão à já superada ideia imoral de que o ser humano não é um fim em si mesmo, para permitir que grandes empresas lu-crem pondo em risco a vida, a integridade física, a saúde e a segurança da popu-lação mais vulnerável. A tutela ambiental visa, em última análise, salvaguardar os interesses fundamentais da pessoa humana.

Assim sendo, a continuidade do atual modelo de gestão das barragens de rejeitos de mineração é um risco inaceitável – tanto pelo seu tamanho, como também por ser evitável pela adoção de técnicas alternativas disponíveis. Vere-mos a seguir que o mercado não pode ser um impeditivo para a implementação de tais técnicas.

Para Ronald Dworkin (2010), ao decidirem casos difíceis, aqueles cuja res-posta não está claramente definida nas regras vigentes do ordenamento jurídico, os juízes não podem recorrer a argumentos de política, como a ideia utilitarista de se alcançar o bem-estar geral. Isso viola o princípio democrático. Os juízes de-vem decidir os casos difíceis utilizando tão somente o Direito. Se a resposta não está nas regras, o jurista deve recorrer a argumentos de princípios. Argumentos de política são legitimamente utilizados pelos Poderes Executivo e Legislativo, por meio dos seus representantes democraticamente eleitos para a definição de políticas, mas não pelo Judiciário. Podemos dizer que uma pessoa tem direito à implementação de uma política, mas os argumentos que devem ser utilizados para se chegar a essa conclusão são argumentos de princípio, pois são eles que vão dizer qual direito deve prevalecer num caso difícil.

3. O MERCADO E O UTILITARISMO

Um dos fenômenos observados na pós-modernidade é a permanência de certo absolutismo: não mais o Estado, ou a sociedade, mas agora o mercado é o absoluto, que se coloca como um novo Deus capaz de salvar a humanidade. As leis do mercado seguidas cegamente desencadeiam cada vez mais num processo

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insustentável de produção: em nome de um pretenso bem-estar geral imediato, os recursos imprescindíveis ao verdadeiro bem-estar geral duradouro e susten-tável são sacrificados, gerando-se riscos, caos e incerteza. Somente com a supe-ração da visão positivista e utilitarista podemos garantir a efetividade do direito humano fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida.

Zygmunt Bauman (2010) ensina que, na era pré-moderna, o Estado entrou numa guerra contra todas as formas de vida que pudessem ser vistas como bolsões potenciais de resistência contra o seu domínio. Exigia-se nada menos que a aceita-ção da expertise do Estado na arte de viver; tinha-se de admitir que o Estado e os especialistas que ele nomeava e legitimava sabiam o que era bom para os súditos, e como eles deviam viver suas vidas e se guardarem de agir em prejuízo de si mes-mos. Aos súditos foi negada sua capacidade de viver a vida humana sem vigilância, assistência e intervenção corretiva daqueles que tinham conhecimento de causa.

O que se buscava era o reconhecimento por seus súditos da superioridade da forma de vida que o Estado representa e da qual deriva a sua autoridade. Tendo concordado que os modos de vida pregados pelos detentores de poder são superiores de fato, os súditos atribuem superioridade ao saber que os seus governantes possuem. Desse modo, o modernismo se caracterizou por um pen-sar universal e absoluto.

Contudo, o pós-modernismo é marcado pelo respeito às diferenças e pela ideia de pluralismo: somos diferentes pessoas, de diferentes grupos, que vivem em mundos diferentes. Essa foi a transição do absolutismo para o relativismo. Portanto, sacrifícios individuais em benefício do todo devem ser considerados como um pensamento antiliberal e antidemocrático. A sociedade não deve ser encarada como um ente superior aos seres humanos que a compõem.

Zaffaroni (2012) ensina que, na sociologia de Edmund Burke, a sociedade não é um simples conjunto de indivíduos, mas um sistema com suas próprias leis. A conclusão era a prioridade do organismo, e não da pessoa, que podia ser sacrificada em benefício do todo – um pensamento antiliberal e antidemocrá-tico. A lei não devia servir primariamente aos seres humanos, mas sim à socie-dade, como ente superior e, definitivamente, o único importante. Todavia, há aí um elemento idealista inverificável: considerar a sociedade um organismo ou algo que responde às mesmas leis que um organismo. Poucas coisas são mais inverificáveis e, por conseguinte, anticientíficas.

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Dworkin, ao longo da obra Levando os direitos a sério, tece uma crítica àquilo que ele chama de a Teoria Dominante do Direito, que é composta, basi-camente, por duas outras teorias, a Teoria do Positivismo Jurídico e a Teoria do Utilitarismo. Na verdade, ele entende que essas duas teorias são partes da teoria dominante. Dworkin afirma que a teoria dominante possui uma parte conceitual e uma parte normativa.

A Teoria do Positivismo Jurídico é a parte conceitual da teoria dominante, que se preocupa em delimitar o que é o Direito. Ela define as condições neces-sárias e suficientes para a verdade de uma proposição jurídica. De acordo com tal teoria, uma proposição precisa passar por alguns testes para que se possa considerá-la como jurídica.

Dworkin critica principalmente a versão do positivismo desenvolvida por Hart, por considerá-la a mais sofisticada, e assevera que não podemos pensar o Direito como um conjunto especial de regras, pois nele há importantes padrões que não funcionam como regras.

A Teoria do Utilitarismo é a parte normativa da teoria dominante, que se preocupa em dizer o que o Direito deve ser e de que modo que as instituições jurídicas devem se comportar. De acordo com o utilitarismo, o Direito e as insti-tuições devem estar a serviço do bem-estar geral e tão-somente isso.

A crítica ao utilitarismo reside, basicamente, nos seguintes questionamen-tos: É certo tratar as pessoas como meios, e não como fins? Podemos tratar as pessoas como um recurso para benefícios de outros? Dworkin (2010) assevera que, de acordo com as convenções e práticas da nossa sociedade, não há insulto maior e mais profundo do que esse. O professor norte-americano critica profun-da e analiticamente a teoria utilitarista e sua ideia de que o Direito e as institui-ções devem estar a serviço do bem-estar geral e tão-somente isso. Somente com o respeito às individualidades e aos direitos dos cidadãos poderemos alcançar o verdadeiro bem-estar-geral a longo prazo.

Bauman (2010) afirma que, apesar da assinalada transição do absolutismo para o relativismo do respeito às diferenças e da ideia de pluralismo, um certo absolutis-mo permanece. Não mais o Estado, ou a sociedade, mas agora o mercado é o abso-luto. Ele substitui a repressão pela sedução, a autoridade pela propaganda, e impõe normas pela criação de necessidades, transformando desejos em necessidades.

Bauman (2001) assinala, ainda, que a sociedade de produtores está sendo substituída pela sociedade de consumidores. Estes são a ênfase, mas aqueles não

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deixam de existir. O mercado não tem limitações. O Estado como responsável pelo bem-estar e controle dos abusos do capitalismo mostrou-se ineficaz. Vi-vemos numa sociedade competitiva, globalizada, de pouca solidariedade, com reverência quase religiosa ao consumo, como fórmula mágica de se obter felici-dade. Busca-se a satisfação instantânea, e ter objetivos distantes e buscar uma felicidade futura não parece uma proposição atraente e razoável: “vivemos em tempos líquidos, onde nada é para durar”. O professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia conclui que o projeto de modernidade fracas-sou e, portanto, precisamos superar as imposições do mercado.

Segundo Enrique Leff (2003), a origem da crise ambiental está na econo-mização do mundo. Na modernidade, o mercado se apresenta como um novo Deus capaz de salvar a humanidade da necessidade e da pobreza, e ergue-se por cima das leis da natureza. Isso tem desencadeado uma mania de crescimento e produção sem limites. A natureza foi dominada pela ciência e pela razão tecno-lógica, mas o mundo dominado e assegurado chegou ao seu limite com o caos e a incerteza. Vivemos num mundo que está sendo arrastado por um processo incontrolável e insustentável de produção. A lei globalizadora e totalizadora do mercado tem gerado um conhecimento do mundo que tem sustentado a cons-trução de um mundo insustentável. As leis cegas de mercado têm determinado a economização do mundo e o predomínio da razão instrumental sobre as leis da natureza, desembocando na crise ambiental.

O mercado possui, portanto, falhas que precisam ser controladas. Diante disso, ganha importância a atuação do sistema jurídico como um todo, para garantir a efetividade da proteção dada pela Constituição da República ao bem jurídico qualidade ambiental, pois “[...] uma ineficaz e deficiente implemen-tação de um modelo adequado de política do meio ambiente também pode contribuir expressivamente para o agravamento desse quadro” (LEITE; AYA-LA, 2004, p. 127).

Michael Sandel (2014) aborda a questão dos limites morais do mercado, “o nível de ganância que alguns certamente têm na alma ao se aproveitar de outros que sofrem”. O mercado existe para proporcionar o maior bem-estar possível ao maior número de pessoas. Contudo, em alguns casos o livre mercado acaba proporcionando ultraje público, revolta, raiva, abuso e extorsão, em meio a dor e sofrimento. Não é virtuoso ser ganancioso e explorar os outros em momento de sofrimento.

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O mesmo raciocínio pode ser transplantado para a questão das barragens de rejeitos de mineração: o nível de ganância incrustado na alma do mercado e do governo levam seus agentes a argumentar em favor da manutenção de um sistema mais barato, porém, mais deficiente do ponto de vista da segurança am-biental. Contra, pesa o argumento de ser imoral lucrar expondo desnecessaria-mente a vida, a saúde, a integridade física e a segurança de pessoas a um nível demasiadamente alto de risco.

Beck (2010) ensina que as riquezas se acumulam em cima, os riscos em baixo. Assim, os riscos reforçam a sociedade de classes. A abstinência políti-ca da população em geral permite a potenciação dos lucros e riscos em favor das grandes indústrias, sob o argumento da necessidade e da impossibilidade de controlá-los.

Justiça é dar o máximo de felicidade para o maior número possível de pes-soas mesmo que isso signifique sacrificar um direito fundamental humano de alguém? Sandel (2014) conclui que não é possível traduzir todos os bens morais numa única moeda corrente sem perder algo na tradução. A análise custo-bene-fício comporta erros e é imoral valorar a vida humana.

O livre mercado nem sempre é justo. A base moral do direito é que so-mos humanos, logo, somos merecedores de respeito. Devemos tratar as pes-soas como fim em si mesmas. Os limites morais de mercado e uma política de comprometimento moral fazem parte da avaliação crítica da ideia de justiça (SANDEL, 2014).

Portanto, é preciso abandonar a cegueira econômica em relação aos riscos que as barragens de rejeitos de mineração implicam e não podemos continuar a aceitar o mito da imprevisibilidade de seus efeitos. Como os problemas am-bientais passaram a ser também problemas sociais, precisamos, ainda, discutir a sensibilidade, a importância e a potencialidade da região amazônica para no-vos empreendimentos minerários, para decidirmos melhor se de fato queremos continuar vivendo na “sociedade do bode expiatório”, permitindo a construção de novas barragens de rejeitos de mineração.

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4. A SENSIBILIDADE, A IMPORTÂNCIA E A POTENCIALIDADE DA REGIÃO AMAZÔNICA PARA NOVOS EMPREENDIMENTOS MINERÁRIOS

Beck (2010) ensina que risco não é catástrofe, é antecipação da catástrofe que pode gerar uma pressão para agir, e tolerar a continuidade do modelo atual de barragens de rejeitos de mineração significa continuar a aceitar o já mencio-nado mito da imprevisibilidade dos efeitos. No mais das vezes, as barragens de rejeitos de mineração produzem ameaças que com frequência não são visíveis e nem perceptíveis para os afetados.

A equalização dos riscos não escondem as novas desigualdades sociais in-ternacionais. As indústrias de risco, como a de mineração de metais, são transfe-ridas para os países com mão de obra barata. Jared Diamond (2005) assevera que a maioria da população dos EUA já não quer mais mineração de metais no seu território. Após constatarem a profunda degradação ambiental verificada princi-palmente no oeste do país, concluíram que é mais vantajoso importar metais de países subdesenvolvidos, como o Chile, por exemplo.

Esse cenário global e a potencialidade da região amazônica faz com que seja necessária a reflexão sobre a importância do direito ambiental para contro-lar os “riscos inaceitáveis”.

A Amazônia é um ecossistema essencialmente frágil, que tem sofrido com mudanças introduzidas pelo homem com velocidade superior à nossa capaci-dade de avaliá-las adequadamente. Ela é a uma das maiores regiões da Terra com potencialidade para a descoberta de bens minerais (há uma considerável variedade de ambientes geológicos com potencialidade para depósito de mine-rais). Ademais, tal potencial é amplificado diante do cenário internacional, de transferência da mineração para os países em desenvolvimento, em decorrência da exaustão de muitas fontes de produção e dos controles ambientais cada vez mais rígidos nos países ricos. Sem uma política adequada e coerente, ao invés de promover um desenvolvimento harmônico e integrado, a mineração pode se transformar numa arma de cobiça e destruição (SANTOS, 2002).

O extrativismo mineral brasileiro concentra boa parte de sua produção na região Norte, e a Amazônia ainda tem um grande potencial mineral a ser explorado. Sobre os recursos minerais da Amazônia, Breno Augusto dos San-tos (2002) ressalta a fertilidade de alguns de seus ambientes geológicos – onde

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jazidas de classe mundial já foram dimensionadas. Ele assevera que a Amazô-nia deverá ocupar posição de destaque na produção de alguns bens minerais, tais como minério de ferro, alumínio, cobre, ouro, manganês, caulim, estanho e, eventualmente, gás.

O Estado do Amazonas tem algumas das maiores reservas minerais do mundo. Alguns importantes exemplos são reservas de caulim, em Rio Preto da Eva, próximo a Manaus, e de potássio, na região de Autazes e Itacoatiara (leste do Estado). O Brasil hoje importa cerca de 95% do potássio que utiliza, principal-mente como insumo para a agricultura. Com a exploração, Amazônica pode se tornar autossuficiente. Presidente Figueiredo tem potencial para se transformar no maior produtor mundial de tântalo, mineral muito utilizado pela indústria de componentes eletrônicos. A grande quantidade de nióbio e tântalo encontrada no município foi avaliada em US$ 55 bilhões (“Leis garantem preservação e se-gurança para os investidores” (Jornal Folha de S. Paulo).

A projeção de cenários futuros para a Amazônia aponta para uma amplia-ção da quantidade de autorizações de projetos de pesquisa e de lavra de recur-sos minerais, dada a grande potencialidade constatada na região. Caso essa ex-pectativa se concretize, será grande a degradação ambiental e o risco de danos ambientais aumentará significativamente. O direito ambiental deve ser utilizado como instrumento para implementação de medidas que possibilitem a produ-ção da menor degradação ambiental possível, e que sejam capazes de evitar ou reduzir os riscos de danos ambientais existentes.

5. AS FALHAS DE MERCADO

A justiciabilidade dos riscos decorre também da ideia de que o mercado possui falhas que demandam a intervenção estatal na economia.

Joseph Stiglitz (2009) ensina que o mercado, apesar de ser algo ideal que não existe na prática, está no centro de qualquer economia bem-sucedida. Ele deve ser eficiente, mas, sem restrições, não serve ao bem social. Se, por um lado, temos que eficiência econômica significa produzir muito com pouco; por outro, temos que o objetivo do mercado é prover as pessoas do maior bem-estar possí-vel. Assim sendo, o ponto ótimo do mercado ocorre quando é possível melhorar

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a situação de alguém sem piorar a de nenhuma outra pessoa. Isso não existe no mundo real, por isso é necessária a intervenção do Estado na economia.

A história e a experiência provam que o mercado falha em gerir riscos e em bem alocar recursos, com consequências sociais e econômicas desastro-sas. Tem grande impacto na política a noção de Adam Smith de que empresas maximizando seus lucros, interagindo com consumidores racionais em mer-cados competitivos, conduzem como uma mão invisível a uma sociedade de bem-estar geral. Contudo, Smith já se preocupava com as limitações do mer-cado: situações em que ele produz muito da mesma coisa (como poluição, por exemplo) e bem menos de outras coisas (como inovação, por exemplo). Assim, não há presunção de que o mercado é eficiente. Em verdade, o mercado quase nunca é completamente eficiente. Mesmo quando os mercados são eficientes, eles falham em produzir melhorias justas e socialmente desejáveis. É isso o que legitima a intervenção do Estado na economia: a falibilidade humana. Erros são inevitáveis. A regulação econômica serve para minimizar os custos dos erros. Ela deve combinar as preocupações de equidade com a noção de falhas de mercado (STIGLITZ, 2009).

Fabio Nusdeo (2015) afirma que as falhas de mercado são imperfeições que correspondem à ausência de pressupostos que haviam lastreado a concepção li-beral na sua formulação original (segundo a qual a função única do Estado con-sistia em garantir a ordem pública, para o livre desenvolvimento das atividades privadas na sociedade civil, e, assim, as empresas, ao maximizarem seus lucros, interagindo com consumidores racionais, em mercados competitivos, conduzi-riam como uma mão invisível a uma sociedade de bem-estar geral). Essas inope-racionalidades do mercado acabam por produzir resultados falhos, distanciados do esperado e, em muitos casos, francamente inaceitáveis.

Uma das principais falhas diz respeito a custos ou benefícios circulando externamente ao mercado: são as externalidades, também denominadas falha de sinalização. Elas decorrem da constatação de que, numa atividade econômica, nem sempre, ou raramente, todos os custos e os respectivos benefícios recaem sobre a unidade responsável pela sua condução. Por limitações institucionais, o mercado não consegue imputar um preço às externalidades. Isso permite que alguns fatores escassos sejam utilizados gratuitamente, sem ter a sua escassez devidamente sinalizada. Esses fatos ou efeitos ocorridos fora do mercado podem ser vistos como efeitos parasitas. O sinal dos preços falha. Quando as externali-

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dades redundam em algum custo para alguém, são chamadas negativas. Quando beneficiam alguém, são chamadas positivas.

A tendência natural dos agentes econômicos (em decorrência do espírito hedonista, pressuposto psicológico-comportamental do sistema de mercado) é externalizar os custos. Assim, vão servindo-se de bens escassos como se livres fossem, exaurindo-os ou deteriorando-os em sua qualidade.

Portanto, como o produtor hedonista voltado para a redução de seus cus-tos terá sempre todo o impulso em tornar ou manter externos os custos que não conseguir reduzir, somente com uma decidida ação do poder público haverá a internalização das externalidades negativas. Tendo em vista que as externalidades são uma falha de mercado que consiste em custos e benefícios transferidos sem preços, bem como que a escassez impõe a contenção no uso do bem escasso, e que a contenção só é obtida pela imposição de um preço, o antídoto baseia-se em mecanismos aptos a promoverem a internalização de tais efeitos, levando os custos e benefícios a incidirem sobre as próprias unidades responsáveis pela sua geração.

O direito ambiental encontra no fenômeno em análise sua justificativa, por, em última análise, propor-se a realizar essa tarefa. O princípio do po-luidor-pagador é um exemplo típico do processo de internalização de custos sociais. Forçosa é a intervenção do Estado no domínio econômico para cor-rigir essa disfunção do mercado, que leva a sociedade a consumir mais meio ambiente do que faria ou do que quereria caso existisse um preço associado a seu uso (NUSDEO, 2015).

Stiglitz (2009) afirma que o governo deve intervir em áreas em que as fa-lhas do mercado se mostram mais evidentes. Intervenções do governo podem potencialmente aumentar a eficiência social e a equidade do mercado. Governos devem impor regulações para prevenir explorações injustas e perseguir alguns fins sociais. A regulação, pois, restringe. Muitos afetados reclamam dizendo que a regulação gera efeitos adversos na inovação. Porém, a intervenção é para alcançar consequências potenciais que vão além das partes envolvidas direta-mente com a regulação. Destarte, nessas situações, o benefício particular não é boa medida do impacto social, pois a regulação é para se alcançar inovações de bem-estar. A regulação serve, portanto, para aprimorar o mercado e proteger aqueles que sofrem com a desregulação. A regulação do mercado deve promover uma melhor governança corporativa, reduzindo a probabilidade de incentivos a

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comportamentos perversos. Outrossim, não há regulação do mercado apenas para prevenir, mas também para encorajar comportamentos construtivos.

Assim, o princípio do protetor-recebedor determina que haja políticas que recompensem aqueles que utilizam técnicas que representam um ganho de qualidade ambiental, internalizando os benefícios que serão gozados por toda a coletividade, corrigindo uma falha de sinal do mercado, fazendo com que a unidade produtora não sofra prejuízos por promover o bem geral, e até mesmo legitimamente obtenha ganhos por promover a proteção ou a recuperação do meio ambiente.

A catástrofe de Mariana evidenciou que existem falhas na gestão das bar-ragens de rejeitos de mineração de nosso país. As empresas de mineração ins-taladas no Brasil seguem as leis de mercado e buscam o maior lucro com o me-nor gasto possível, expondo a um alto risco os recursos ambientais, que todos têm o direito a usufruir, e que ninguém tem o direito de dispor. Sem regulação do governo para corrigir essas falhas, o setor minerário continuará utilizando técnicas ultrapassadas por serem mais baratas, quando existe a possibilidade de adoção de novas tecnologias que já são uma realidade em muitos outros países, que propiciam a redução do volume dos rejeitos gerados, desaguamento e apro-veitamento deles.

Assim sendo, o modelo de desenvolvimento adotado pela indústria de mineração do país tem se revelado insustentável. Ofende o sentido de justiça permitir que mineradoras possam maximizar os seus lucros degradando o am-biente e matando pessoas, ignorando as já mencionadas tecnologias adotadas em outros países para reduzir e eventualmente eliminar as barragens de rejeitos, transformando em algumas situações os materiais em coprodutos ou subpro-dutos, e recuperando toda a água utilizada nos processos, visando o máximo aproveitamento na lavra e a melhoria da eficiência das usinas.

6. A IMPORTÂNCIA DA EFETIVIDADE DO DIREITO AMBIENTAL NA SOCIEDADE DE RISCO

A implementação de um nível adequado de proteção jurídica do ambiente encontra no risco um de seus maiores e mais graves problemas. Precisamos ca-minhar no sentido contrário à tendência institucional do simbolismo do Direito

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Ambiental e, no esforço para superar a ineficácia da proteção do bem jurídico qualidade ambiental, buscar a efetividade desse direito.

Nas valiosas lições de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988), o acesso à justiça deve ter dois enfoques. Primeiro, um sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e ver seus litígios resolvidos sob os auspícios do Estado, que deve ser acessível a todos. Segundo, um sistema que deve produzir resulta-dos individual e socialmente justos. O primeiro enfoque jamais pode perder de vista o segundo. Por isso, temos o desejo de tornar efetivos, e não meramente simbólicos, os direitos que dizem respeito à qualidade ambiental e ao equilíbrio ecológico do ambiente.

A crescente crise ambiental e a complexidade da sociedade de risco, que rege as relações da atualidade, são um sinal da necessidade de implementação de direitos relativos à qualidade do meio ambiente.

A dificuldade de implementação do direito ambiental reside no fato de que vivemos em complexos contextos sociais que possuem o risco como padrão con-dutor das relações. Assim sendo, o Estado (em todas as suas esferas de poder) e o mercado acabam deixando a desejar na adequada regulação dos efeitos negati-vos do desenvolvimento econômico e tecnológico sobre o meio ambiente. Nesse cenário, é inevitável que o Poder Judiciário, na sua inafastável missão de dizer o Direito, seja chamado para apreciar a gestão dos riscos ambientais no Direito brasileiro. Muitas decisões ainda representam déficits de eficácia e de implemen-tação do Direito Ambiental. Contudo, em alguns casos, já é possível perceber o caminho inverso, quando tribunais começam a valorizar concretamente a ne-cessidade de se estabelecer um compromisso com a efetividade da proteção do meio ambiente.

A pretensão de proteção do ambiente e o enfrentamento da crise ambiental nas sociedades contemporâneas passa pela análise e definição da forma como o direito do ambiente se relaciona com os problemas ambientais qualificados pela questão do risco.

A Constituição da República, no Art. 225, garantiu a tutela do bem jurídico qualidade ambiental. Isso significa que a norma constitucional determina a atuação protetora do Estado, que detém o monopólio da força física, para proteger o equilí-brio e a higidez do meio ambiente como um todo. Nossa Lei Maior faz uma grande promessa de segurança ecológica, sendo que seu principal obstáculo é o risco.

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O princípio da inafastabilidade da jurisdição, por sua vez, determina que a atividade jurisdicional seja adequada e efetiva. Assim, a tutela jurisdicional não deve abranger apenas reparações de lesões, mas também meios de evitá-las. Isto é, a jurisdição deve exercer a tutela da ameaça ao Direito, em nome da efetivida-de do processo e de sua aproximação com o direito material. Nesse sentido, Leite e Ayala (2004, p. 151) ensinam que:

É cada vez mais importante, para a questão da proteção do ambiente, a compreen-

são do acesso à justiça, a partir da ótica de que há ampla possibilidade de acesso

direto à Constituição [...]. O acesso à constituição em matéria ambiental parece cada

vez mais importante, podendo ser instrumentalizado a partir de uma concepção

baseada no exercício do poder de restrição constitucional da liberdade de confor-

mação do legislador ordinário nas ações de tutela de direitos transindividuais.

Além de adequada e efetiva, a Constituição de 1988 estabelece que a tutela jurisdicional deve ser segura e célere, em relação a direitos violados e ameaçados também. Um sistema jurídico pautado pela justiça e democracia deve velar pela reparação integral dos direitos violados, mesmo que o violador esteja agindo conforme a lei que o legitima.

Houve uma modificação funcional do Direito Ambiental, que passou de um direito de danos, preocupado em reparar o que nem sempre é reparável ou mesmo quantificável, para um direito de riscos, que busca evitar a degradação do ambiente (LEITE; AYALA, 2004, p. 207).

Em matéria ambiental, os princípios da precaução e prevenção estão posi-cionados na qualidade de elementos estruturantes e informativos de todo o sis-tema constitucional de proteção do ambiente. A nossa Lei Maior, ao estabelecer o dever da coletividade e do poder publico de preservar o meio ambiente para gerações presentes e futuras (Art. 225), privilegiou as ações preventivas:

Os fundamentos de tutelas jurisdicionais preventivas em matéria ambiental devem

privilegiar a aplicação de normas-princípios, e das normas de proteção dos direitos

fundamentais, com destaque particular ao princípio da precaução, ao direito fun-

damental à informação ambiental (Art. 5.º, Inc. XIV; e Art. 37) e ao princípio da

equidade intergeracional, que, na ordem constitucional brasileira, define as próprias

condições de concretização do direito fundamental ao meio ambiente ecologica-

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mente equilibrado (Art. 225, caput). [...] A proteção do meio ambiente na ordem

constitucional brasileira não se fundamenta nem na noção de dano ou em uma li-

mitada leitura do ilícito, mas sim na de risco (LEITE; AYALA, 2004, p. 198).

Os mandados de precaução e prevenção são objetivos centrais da tutela jurisdicional ambiental. A prevenção assevera que, se há certeza científica do im-pacto ambiental de uma atividade, ela deve ser inibida. Pela precaução, a ausên-cia de certeza científica formal não deve ser pretexto para se postergar a adoção de medidas que evitem a degradação ambiental e, portanto, a ética do cuidado deve ser observada, no caso de haver risco de dano sério ou irreversível.

Nesse caso, o fundamento da tutela judicial deixa de ser orientado pelo dano, em sua dimensão atual ou potencial, para se localizar no ilícito, como ins-tituto dogmaticamente autônomo (LEITE E AYALA, 2004, p. 193).

Nem sempre a prática do ato ilícito resulta na produção do dano, e, mesmo que este venha a ser produzido, não pode ser considerado como pressuposto da definição do ato ilícito. O dano justifica a reparação pela produção de um resultado. O dano é pressuposto necessário para a incidência da responsabili-dade reparatória, ou seja, da obrigação de reparar, domínio da responsabilidade civil. Contudo, ilícito e dano constituem realidades diversas. O dano é tão so-mente um dos possíveis efeitos jurídicos decorrentes de um ato ilícito. Ele não é elemento necessário nem pressuposto para a definição do ilícito. Assim sendo, pouco importa se houve manifestação de vontade na conduta ou intenção de le-sar o ambiente: se há ameaça de violação ao direito humano fundamental à qua-lidade ambiental e ao equilíbrio ecológico do ambiente, o Poder Judiciário deve oferecer uma tutela adequada, efetiva, segura e célere, para protegê-lo (BADR; BARBOSA JUNIOR, 2014).

A proteção em face do ilícito possui origem constitucional. As normas definidoras do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado definem condutas ilícitas com o objetivo de evitar danos ambientais. Afirma-se a proteção do di-reito humano fundamental ao equilíbrio da qualidade ambiental, que, por sua natureza, não pode ser violado.

Para a devida efetivação dos princípios da precaução e prevenção, ganham importância as novas regras do processo civil brasileiro sobre tutelas provisórias de emergência (Arts. 300 a 310 do Novo Código de Processo Civil – NCPC), que analisaremos a seguir.

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7. AS TUTELAS PROVISÓRIAS DO NCPC E A TUTELA INIBITÓRIA: AS BARRAGENS DE REJEITOS DE MINERAÇÃO COMO UM ILÍCITO QUE DEVE SER REMOVIDO

Nas disposições gerais da tutela provisória (Arts. 294 a 299), o NCPC es-tabelece que a tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidên-cia, devendo sempre o juiz que a conceder (ou negar, ou modificar ou revogar) motivar seu convencimento de modo claro e preciso. A tutela de urgência pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental. Além disso, a tutela de ur-gência pode ser de natureza cautelar ou antecipada. Em qualquer caso, a tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, até mesmo durante o período de suspensão do processo, salvo decisão judicial em contrário.

O Art. 300 do NCPC dispõe sobre os requisitos da tutela de urgência, que estão relacionados com a importância desse instituto para a efetividade do Direi-to: a probabilidade do Direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. A depender da urgência, ela pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia. Contudo, a tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.

Sobre a tutela de urgência de natureza cautelar, dispõe o Art. 301 do NCPC que ela “pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito”.

Sobre a tutela antecipada requerida em caráter antecedente (casos em que a urgência é contemporânea à propositura da ação), dispõe o Art. 303 do NCPC que “a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo”. Caso essa tutela seja concedida, a petição inicial deverá ser complementada, com o seu devido aditamento.

Instituto muito interessante é o da estabilização da tutela previsto no Art. 304. A tutela antecipada requerida em caráter antecedente torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso e, em seguida, o processo é extinto. Não faz coisa julgada a decisão que concede essa tutela, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir,

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reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes dentro do prazo de 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo.

Sobre tutela cautelar requerida em caráter antecedente, dispõe o Art. 305 do NCPC que a petição inicial deve conter a exposição sumária do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do proces-so, indicando também a lide e seu fundamento. Efetivada a tutela cautelar, o pedido principal terá de ser formulado pelo autor nos mesmos autos, podendo ser aditada a causa de pedir. Contudo, nada impede que o pedido principal seja formulado conjuntamente com o pedido de tutela cautelar.

Sobre as normas da tutela da evidência, destacamos que, quando a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável, a tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo. Contudo, nesses casos, o juiz não pode decidir liminarmente (inciso IV e parágrafo único do Art. 311).

Portanto, revela-se de grande atualidade e importância a utilização da tute-la inibitória, oferecendo resposta mais adequada à tutela de direitos relativos ao ambiente. As tutelas provisórias de urgência são tutelas diferenciadas nas quais não se exige o conhecimento amplo da causa pelo magistrado, para se afastar o perigo de ineficiência e injustiça. Ou seja, elas garantem a proteção do direito ainda que controvertido.

O objetivo principal da tutela inibitória é a remoção de um ilícito ambiental. Ela pode se dar em três momentos distintos. Quando o dano ambiental ainda não ocorreu e quer-se inibir sua ocorrência; quando o dano está ocorrendo e quer-se inibir sua continuidade; por fim, quando o dano já ocorreu e quer-se inibir a repe-tição. Este último momento diz respeito ao caráter pedagógico da tutela ambiental.

A lógica das tutelas de conteúdo preventivo difere em muito do clássico esquema patrimonial da responsabilidade civil, conforme ensinam Leite e Ayala (2004, p. 195):

É possível reconhecer, aqui, a possibilidade de que se estruturem espécies de tu-

tela de conteúdo preventivo, mas objetivando conter a própria ameaça do ilícito,

compreendido como instituto autônomo em relação ao dano, de modo que o que

se objetiva não é uma pretensão de ressarcimento, fundada no clássico esquema

patrimonial da responsabilidade civil, mas a produção e três possíveis efeitos no

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quadro das relações jurídicas: impedir a prática, impedir a continuação e, por fim,

impedir a repetição do ilícito, entendido como a possibilidade de qualquer conduta

contrária ao direito. A notável aptidão dessa espécie de tutela preventiva à prote-

ção jurisdicional da biodiversidade é evidente quando se pensa na versatilidade das

pretensões admissíveis e, principalmente, no objetivo legitimador da pretensão, a

simples ameaça de violação, v. g., da legislação ambiental, na instalação de ativida-

des industriais em área inadequada ou, mesmo, sem o atendimento das restrições

ou implementação das medidas necessárias a impedir o dano ambiental, exigidas

previamente pela legislação pertinente.

O risco intolerável é a referência para as ações inibitórias. Ele, por si só, configura o ilícito, cuja prevenção se dá por meio de medidas inibitórias. Portan-to, a caracterização do ilícito prescinde da concorrência do dano e da verificação de culpa. Leite e Ayala (2004, p. 197) ressaltam que essa característica confere especial aptidão da tutela inibitória para proteção de direitos humanos funda-mentais, como o direito ao equilíbrio ecológico do meio ambiente:

Essa constatação produz importante consequência no âmbito da tutela jurisdi-

cional coletiva, uma vez que se a pretensão não tiver por conteúdo a reparação

do dano, jamais se precisará preocupar-se com esse prejuízo sensível para incidir.

O objetivo específico da tutela inibitória é a proteção em face do ilícito, indepen-

dentemente de que se verifique a produção de dano, característica que lhe confere

especial aptidão para a proteção de direitos fundamentais e lhe reserva importante

função na proteção da atual identidade da ordem constitucional brasileira.

As principais ações que tutelam o meio ambiente são a ação popular, a ação civil pública, o mandado de segurança e as ações diretas de inconstitucionali-dade. Nas tutelas ambientais inibitórias preventivas, só há preocupação com re-lação ao ilícito e, portanto, não há preocupação com o dano, nem nexo causal, nem dolo ou culpa, havendo responsabilidade objetiva.

O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a legitimidade da utilização da Ação Civil Pública como controle difuso de constitucionalidade de quaisquer leis ou atos do Poder Público, quando, nesse processo coletivo, a questão cons-titucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal

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(Rcl 1.733, relator ministro Celso de Mello, DJe de 12/3/2003). O juiz de primei-ro grau também exerce parte das funções compartilhadas de controle, exercendo poder de restrição constitucional da liberdade de conformação do legislador, da liberdade de atuação do administrador público e dos empreendimentos indus-triais nas ações de tutela dos direitos transindividuais. É o que se observa, por exemplo, na Lei da Ação Civil Pública, que elege o momento que antecede o dano como merecedor de uma tutela diferenciada, ao mesmo tempo que auto-riza a utilização de medidas que sejam adequadas à proteção dos direitos, con-sistentes em obrigações de fazer ou não fazer e de execução específica. Dispõe o Art. 4.º da lei n.º 7.347/85 que:

Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive,

evitar dano ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à

honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, à ordem urbanística

ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Basta, pois, a ameaça de um ilícito, que decorre da afronta de qualquer regra ou princípio protetivo do meio ambiente. Contudo, essa ameaça de ilícito não pode ser apenas um temor, um receio estritamente subjetivo, fundado em especulações psíquicas do titular do direito. É necessário que tal receio esteja embasado na existência de fatos exteriores que fazem com que haja sério perigo (BADR; BARBOSA JUNIOR, 2014).

A seriedade do perigo é demonstrada por meio de fatos que o réu praticou, ou que esteja praticando, que razoavelmente indicam uma futura violação do di-reito do autor. Não importando se são atos preparatórios, que demandam tutela inibitória preventiva, ou atos em continuação, que demandam tutela inibitória de remoção do ilícito, ou, até mesmo, atos em que haja perigo de repetição do ilícito, que demandam tutela inibitória de reparação.

Nas causas ambientais, para se garantir a inviolabilidade do Direito Am-biental, aplica-se o princípio in dubio pro salute ou in dubio pro natura. Na dú-vida, em razão da incerteza científica, adota-se a solução que proteja imediata-mente o ser humano e conserve o meio ambiente. Em alguns casos, a relação de causalidade é presumida, com o objetivo de se evitar a ocorrência do dano. Então, caso verificada a verossimilhança das alegações (apurada pela cognição judicial de provas indiretas – indiciárias de que ao menos potencialmente a con-

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duta representa em abstrato um dano ao meio ambiente), ou autor hipossufi-ciente (capacidade processual diminuta), inverte-se o ônus da prova para que o potencial autor do dano prove com anterioridade que a sua conduta não causará danos ao meio ambiente (BADR; BARBOSA JUNIOR, 2014).

De acordo com Leite e Ayala (2004, p. 201):

O componente que orienta o juízo de verossimilhança na deflagração e justificação

das ações ou medidas inibitórias – considerando o regime constitucional de prote-

ção do bem ambiental – não é a demonstração de probabilidade de dano, e, sim, a

afirmação factível de violação de norma jurídica. [...] Por violação de norma jurídica

deve ser compreendido qualquer desvio na atividade de concretização dos objetivos

de proteção do bem ambiental, expressos não apenas em regra, mas também em

princípios.

Se não há certeza do caráter danoso da prática que se pretende inibir, Eid Badr e Vitor Berenguer Barbosa Junior (2014) ensinam que a dúvida pesa em favor da incolumidade do meio ambiente:

A medida preventiva inibitória pode ser concedida junto com a inversão do ônus,

quando o potencial agente infrator terá que se desincumbir do ônus, provando

que sua conduta não é lesiva, não havendo, portanto, condição para o prossegui-

mento da ação.

Portanto, para atingirmos o ponto ótimo de proteção do ambiente na gestão dos resíduos minerários e superarmos o déficit no padrão de proteção ambiental relativo às barragens de rejeitos de mineração, urge que o Direito Ambiental seja manejado para que seja cumprida a obrigação de fixação dos melhores critérios ou das exigências mais seguras possíveis na atualidade, por meio da tutela inibi-tória, a fim de impedir a continuidade de um modelo que expõe a sociedade a um risco inaceitável, demasiadamente alto e desnecessário.

Somente assim, a substituição necessária, na visão de Beck (2010), da ló-gica da compensação pelos princípios da prevenção e da precaução pode ser efetivada, na gestão dos resíduos de mineração.

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CONCLUSÃO

Tínhamos como expectativa alcançar como resultado desse trabalho a con-clusão de que as barragens de rejeitos de mineração representam um risco ina-ceitável, que autoriza o controle judicial.

Primeiramente, abordar a justiciabilidade dos riscos contribuiu para cons-tatarmos que efetivamente temos falhado em lidar com os riscos. Examinamos o standard de proteção ambiental positivado na Constituição de 1988 e verifica-mos um déficit. Concluímos que a justiciabilidade dos riscos é imprescindível para alcançarmos o ponto ótimo da tutela do ambiente.

Em seguida, desenvolvemos o tema da tensão entre o desenvolvimento econômico e a preservação da qualidade ambiental. Objetivamos deixar claro que a complexidade ambiental demanda uma análise aprofundada dos múlti-plos elementos em jogo. Como resultado, concluímos que o princípio da unida-de da constituição determina que o princípio da proporcionalidade seja usado para ponderar, de um lado, os argumentos em favor do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, de outro, os argumentos em favor do direito ao progresso. Contudo, nesses casos, os juízes não podem recorrer a argumentos de política, como a ideia utilitarista de se alcançar o bem-estar geral, pois isso viola o princípio democrático. Os juízes devem decidir os casos difíceis utilizando tão-somente o Direito. Se a resposta não está nas regras, o jurista deve recorrer a argumentos de princípios. Argumentos de política são legitimamente utilizados pelos Poderes Executivo e Legislativo, por meio dos seus representantes demo-craticamente eleitos para a definição de políticas, mas não pelo Judiciário. Che-gamos ao resultado de que argumentos de princípio é que vão dizer qual direito deve prevalecer num caso difícil.

Dentre os múltiplos elementos em jogo que demandam uma análise apro-fundada na questão relativa à judiciabilidade dos riscos em face das barragens de rejeitos de mineração, examinamos questões relativas ao mercado, ao utili-tarismo e às falhas de mercado. Concluímos que precisamos superar as impo-sições do mercado e que isso necessariamente se dá pela efetividade do Direi-to Ambiental. Fizemos ainda uma projeção de cenários futuros ao abordar a sensibilidade, a importância e a potencialidade da região amazônica para novos empreendimentos minerários.

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Por fim, analisamos as tutelas provisórias do NCPC e concluímos que as barragens de rejeitos de mineração são um ilícito que deve ser removido por meio da tutela inibitória. Isto é, as barragens de rejeitos de mineração repre-sentam riscos desnecessários e demasiadamente altos. Soluções mais seguras e ambientalmente mais eficientes não são implementadas em razão da necessida-de de manter a competitividade do negócio. Apesar disso, nossa Constituição positivou como norma jurídica os princípios da prevenção da precaução, e do desenvolvimento sustentável. Portanto, para atingirmos o ponto ótimo de prote-ção do ambiente na gestão dos resíduos minerários e superarmos o déficit no pa-drão de proteção ambiental conferidos pelas barragens de rejeitos de mineração, urge que o Direito Ambiental seja manejado para que seja cumprida a obrigação de fixação dos melhores critérios ou das exigências mais seguras possíveis na atualidade, por meio da tutela inibitória, a fim de impedir a continuidade de um modelo que expõe a sociedade a um risco intolerável.

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CRÍTICAS AO “HOMEM MÉDIO” À LUZ DE BECKERREVIEWS FOR “AVERAGE MAN” IN LIGHT OF BECKER

Tiago Oliveira Lopes1

Vinícius Ribeiro de Souza2

Sumário: Introdução; 1. Teoria finalista de Welzel; 2. Homem médio: Conside-

rações gerais e incidência no Direito Penal pátrio; 3. O pensamento crítico de

Howard Becker; Conclusão; Referências.

RESUMO: Este trabalho analisa a utilização do termo “homem médio” no Direito Penal à luz dos estudos da Criminologia de Howard Becker. Primeira-mente será analisada a Teoria Finalista do Direito Penal e suas consequências na observação da culpabilidade do agente. Posteriormente, verificar-se-á o concei-to de homem médio e sua influência na configuração de crime, observando-se a doutrina e a jurisprudência. Ato seguinte aborda-se a Teoria de Howard Becker no que tange ao desviante, sobrepesando-se o uso do homem médio do Direito Penal e a casuística diante de um crime em julgamento. Verifica-se como resultado uma crítica contundente ao uso do termo “homem médio” em face do caso concreto, levando-se em consideração o tema tratado pelo autor mencionado.

PALAVRAS-CHAVE: Homem médio. Penal. Crítica. Crime. Becker. Caso concreto.

ABSTRACT: This paper analyzes the use of the term “average man” in Cri-minal Law in the light of Howard Becker’s criminology studies. . First, we will analyze the Finalist Theory of Criminal Law and its consequences in the obser-vation of the culpability of the agent. Subsequently, the concept of average man and his influence in the configuration of crime will be verified, observing the doctrine and the jurisprudence. Next act is the Howard Becker Theory regarding the deviant, overweight the use of the average man of Criminal Law and casuis-try before a crime in judgment. As a result, there is a strong criticism of the use of the term in the face of the specific case, taking into account the topic addressed by the author mentioned.

1 Mestrando em Direito Ambiental, pela Universidade do Estado do Amazonas. Advogado.2 Mestrando em Direito Ambiental, pela Universidade do Estado do Amazonas. Advogado.

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KEYWORDS: Middle man. Criminal. Critic. Crime. Becker. Concrete case.

INTRODUÇÃO

É costumeiro o uso do termo “homem médio” nas decisões judiciais para imputar a determinada pessoa o cometimento de crime. E isso se realiza em diversos aspectos da conceituação de infração penal.

Dentro do conceito analítico de crime, considerando a doutrina tripartite, há o uso da figura do “homem médio” para configurar os três substratos do cri-me, quais sejam, fato típico, ilicitude e culpabilidade.

Um dos aspectos do crime culposo é o dever de cuidado que o agente de-veria ter observado em sua conduta. E, conforme será visto em linhas futuras, a análise é realizada por boa parte da doutrina e da jurisprudência em razão do aspecto do “homem médio”, sempre utilizado como o modelo de ponderação a ser seguido.

Da mesma forma ocorre nas figuras das excludentes de ilicitude, princi-palmente no que tange ao erro de tipo. Nesses casos, as escusas têm como parâ-metro o indigitado homem médio para apuração do caráter ilícito da conduta a justificar uma reprimenda por parte do Estado.

Igualmente quando da análise da culpabilidade, terceiro substrato do cri-me, em especial na inexigibilidade de conduta diversa, onde mais uma vez a doutrina e a jurisprudência lançam mão do termo em questão para apontar a realização de crime ou não.

Contudo, a doutrina começa a aferir que o termo em baila se trata de gê-nero muito aberto, sem densidade necessária para apurar minuciosamente se a determinada pessoa pode ser imputada conduta criminosa, sem observância das características do caso concreto.

Uma simples pergunta embasa a discussão ora em centro: quem é o ho-mem médio? Se houver indagação individual para cada cidadão, encontrar-se-á tantas respostas diferentes quanto o número de pessoas entrevistadas.

É nesse esteio que este trabalho se desenvolve. Busca-se examinar o ter-mo homem médio à luz das construções sociológicas de Howard Becker e sua rotulação. Nessa medida, o olhar volta-se não para o conceito em si de homem

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médio, mas a quem, está utilizando para realizar o julgamento. Sob quais parâ-metros o magistrado guia-se para encontrar o padrão de comportamento consi-derado ponderado por toda a sociedade.

Justificam-se os presentes à medida da necessária crítica que deve ser feita ao indiscriminado uso do termo homem médio para a aferição de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, sem o devido respaldo diante o caso concreto objeto do julgamento, podendo até mesmo configurar nulidade constitucional diante a ausência de fundamentação.

A problematização, conforme alhures abarcado nas linhas anteriores, é a seguinte: qual o parâmetro utilizado pelo magistrado ao julgar determinada conduta perante o “homem médio”? Aliás, busca-se também realizar uma crítica a respeito de quem é o julgador que vai considerar um padrão de comportamen-to como mediano.

A hipótese da presente oportunidade insurge-se da necessidade da des-consideração do homem médio para aferição de crime, levando-se em consi-deração, outrossim, as peculiaridades do caso concreto, especialmente quanto à personalidade da vítima e o meio social a qual está inserida para realizar o juízo de valor no que tange à conduta e seus consectários.

Emprega-se a metodologia referente à pesquisa bibliográfica e documental, analisando artigos científicos, livros e dissertações referentes à temática, bem como a jurisprudência espraiada pelo país no que concerne à utilização do ho-mem médio como parâmetro de verificação de imputação criminal.

Segue a pesquisa com considerações gerais e necessárias a respeito da Teo-ria Finalista do Direito Penal e suas consequências na observação da culpabili-dade do agente, assim como sua abordagem em face da teoria de Howard Becker.

Ato contínuo, serão abordados o conceito de homem médio e seu trato quanto aos estratos do crime em sua perspectiva analítica, analisando-se a dou-trina e a jurisprudência a respeito da temática.

Por fim, será estudada a Teoria de Howard Becker, no que se refere ao des-viante, realizando-se um cotejo com o uso do homem médio do Direito Penal, surgindo uma crítica ao desenfreado uso do termo em questão sem se verificar uma análise casuística diante o caso em julgamento.

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1. TEORIA FINALISTA DE WELZEL

A teoria finalista ou final de Welzel se baseia no propósito, cuja finalidade se mostra sem dúvidas, de forma patente. Essa teoria seria a evolução na análise da conduta e dos elementos do crime (CUNHA, 2016).

Criada na Alemanha por Hans Welzel, em 1939, “a teoria finalista conce-be a conduta como comportamento humano voluntário psiquicamente dirigi-do a um fim” (CUNHA, 2016, p. 182), quer dizer, esta teoria integra a ação e a omissão da conduta humana, que afirma que toda ação tem um fim no qual o homem se propõe a um fim que retorna preservando os efeitos concomitantes e os meios com o qual se chegará a esse fim. Após esta reflexão e análise, termina com a execução da ação. Assim sendo, afirma-se que a tipicidade é construída pela subjetividade do homem.

Em vista disso, Rogério Cunha afirma:

A finalidade, portanto, é nota distintiva entre esta teoria e as que lhe antecedem. É

ela que transformará a ação num ato de vontade com conteúdo, ao partir da pre-

missa de que toda conduta é orientada por um querer. Supera-se, com esta noção,

a “cegueira” do causalismo (CUNHA, 2016, p. 182-183).

E continua citando Jorge de Figueiredo Dias:

A verdadeira ‘essência’ da acção humana foi encontrada por Welzel na verificação

de que o homem dirige finalisticamente os processos causais naturais em direção a

fins mentalmente antecipados, escolhendo para efeito os meios correspondentes:

toda acção humana é assim supradeterminação final de um processo causal. Eis

a natureza ontológica da acção, a partir da qual todo o sistema do facto punível

haveria de ser construído (DIAS, 2007, p. 245 apud CUNHA, 2016, p. 183).

Para explicar a razão da teoria ser considerada evolutiva, cita, também, He-leno Cláudio Fragoso:

A evolução se processa no sentido de excluir a ideia de culpa elementos psicoló-

gicos, reduzindo-a a conceito normativo. Isso se faz com a transferência para o

tipo e a antijuridicidade de certos elementos subjetivos [...] e, sobretudo, com a

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observação de que na culpa cumpre distinguir a valoração do objeto e o objeto

da valoração (Graf zu Dohna). O dolo (destacado da consciência da ilicitude, que

é momento normativo) integra a conduta típica, ilícita, ou seja, integra o objeto

valorado e não pertence à culpabilidade (FRAGOSO, 2003, p. 240 apud CUNHA,

2016, p. 183).

Por essa teoria, Welzel salienta a importância da análise da autoria ligado ao injusto, não como mero acontecimento do delito. O domínio do fato torna-se característica geral da autoria. Sendo assim, quando o tipo prescrever alguma característica pessoal, seja ela objetiva ou subjetiva, somente o domínio do fato não conforma a autoria. O domínio do fato integra o pressuposto fático mate-rial da autoria, e não o considera como composto de aspecto objetivo-subjetivo (ALFLEN, 2013).

Nessa medida, Silva (2013), afirma que “atrelar a vontade à ação significa emprestar a esta um caráter ou sentido social que a torna penalmente relevante, podendo-se falar, então, em desvalor da ação”.

Prossegue Silva (2013) noticiando que “é exatamente sobre a ação social-mente injusta e finalisticamente dirigida, contrária ao ordenamento jurídico posto, que incidirá o juízo de censurabilidade ou reprovabilidade”. Logo, mister destacar a consequência do pensamento:

É, portanto, uma reprovabilidade pessoal em função do cometimento de uma

conduta socialmente injusta. Tal juízo é o que Welzel chama de culpabilidade.

Concebe-se a culpabilidade como um juízo de censura ou reprovação que, a par-

tir de critérios normativos (valorativos), seria feito pelo julgador sobre a conduta

socialmente injusta, finalisticamente dirigida. Para tal juízo de censurabilidade, o

julgador guiar-se-ia por três critérios fundamentais: 1) a imputabilidade; 2) a po-

tencial consciência da ilicitude e 3) a exigibilidade de conduta diversa, ou o poder

agir de outro modo (SILVA, 2013).

Assim considerando, sem ter a pretensão de adiantar argumentos, será objeto de apuração da inexigibilidade de conduta diversa. Assim, Silva (2013) afirma “que merece um olhar crítico é o fato de que tanto a capacidade de livre autodetermi-nação, quanto à exigibilidade de conduta diversa são categorias arbitrariamente

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fixadas a partir de padrões socialmente dominantes”, o que será analisado minu-ciosamente á luz das críticas de Becker no que tange à rotulação do desviante.

2. HOMEM MÉDIO: CONSIDERAÇÕES GERAIS E INCIDÊNCIA NO DIREITO PENAL PÁTRIO

Em um primeiro momento, mister a busca pelo conceito de homem médio, termo tão utilizado nas decisões judiciais criminais para imputação de crimes a determinado agente. No dicionário, médio significa “de posição ou condição intermediária” (HOUAISS, 2004, p. 486).

Nessa medida, Bezerra (2013) aduz que Homem Médio é considerado uma pessoa mediana, ou seja, é uma espécie de equilíbrio do direito e com objetivo de conduta e de saber, que serve para comparar as condutas e as carac-terísticas das pessoas”, valendo destacar que o autor se refere ao Direito Penal quando trata do tema.

Para Alberto Bezerra (2017), “o homem médio, comum, estaria no meio termo dessas hipóteses exemplificativas; nem é aquele com grau de conhecimen-to elevado, para além daqueles com quem convivem, tampouco os desprovidos de instrução ínfima.”

Denota-se, dos conceitos acima delineados, que o homem médio possui em sua carga semântica pouca densidade, restando um termo genérico e passí-vel de manipulação por quem o utiliza para refletir seus dogmas diante o caso concreto.

Nessa toada, é necessário adentrar nos institutos do Direito Penal e no uso do homem médio em relação a eles. Assim considerando, mister sobrelevar o conceito de crime que, para Cunha (2015, p. 148) em seu sentido analítico, prevalece tratar-se de fato típico, ilícito e culpável, levando-se em consideração a doutrina majoritária que considera a Teoria tripartite a seguida pelo Direito pátrio.

Em relação ao primeiro substrato, é estudado o crime culposo, em que para Cunha “consiste numa conduta voluntária que realiza um evento ilícito não que-rido ou aceito pelo agente, mas que lhe era previsível (culpa inconsciente) ou excepcionalmente previsto (culpa consciente) e que podia ser evitado se empre-gasse a cautela esperada” (2015, p. 195).

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Nessa medida, um dos elementos estudados no crime culposo é a viola-ção de um dever de cuidado objetivo, o qual, para Cunha, o comportamento do agente não atende ao que é esperado pela lei e pela sociedade (2015, p. 196).

Continua o autor ao abordar a violação de dever de cuidado objetivo, em que o julgador, na averiguação deve, “considerando as circunstâncias do caso concreto, pesquisar se uma pessoa de inteligência média, prudente e responsá-vel, teria condições de conhecer e, portanto, evitar o perigo decorrente da con-duta (previsibilidade objetiva)” (2015, p. 197).

Quanto á previsibilidade objetiva, mister salientar o que Greco abordar a respeito do tema, citando Hungria, a saber:

Previsibilidade objetiva seria aquela, conceituada por Hungria, em que o agente, no

caso concreto, deve ser substituído pelo chamado “homem médio, de prudência

normal”. Se, uma vez levada a efeito essa substituição hipotética, o resultado ainda

assim persistir, é sinal de que o fato havia escapado ao âmbito de previsibilidade do

agente, porque dele não se exigia nada além da capacidade normal dos homens .

Não é imposta ao agente uma previsibilidade extremamente larga que, de acordo

com a imaginação do aplicador da lei , poderá ser imposta a todos os casos (2015,

p. 256).

Portanto, a doutrina, mesmo tentando inserir a análise do caso concreto na verificação da previsibilidade em crimes culposos, não consegue retirar a raiz do homem médio de seu conceito. A jurisprudência também segue essa linha, conforme se retira da ementa abaixo assinalada:

TJ-ES – Apelação Criminal ACR 47050048892 ES 047050048892 (TJ-ES)

Data de publicação: 15/4/2008

Ementa: APELAÇAO CRIMINAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ART. 302 C/C

298, INCISO V, AMBOS DA LEI N.º 9.503 /97. SENTENÇA ABSOLUTORIA.

PLEITO DE CONDENAÇAO. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE CON-

DUTA DELITIVA. AUSÊNCIA DE PREVISIBILIDADE OBJETIVA. ABSOLVI-

ÇAO MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. 1. Para a caracterização do crime

culposo, segundo a doutrina pátria, faz-se necessária a conduta humana voluntá-

ria, a inobservância de um dever objetivo de cuidado, o resultado lesivo, o nexo

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de causalidade, a previsibilidade e, por fim, a tipicidade. 2. O cotejo de todo o

conjunto fático-probatório demonstra a ausência de culpabilidade e também de

previsibilidade por parte do acusado, não havendo qualquer tipo de culpa aponta-

da ao motorista do caminhão, eis que estava parado no acostamento onde ocorreu

o acidente em razão de problemas mecânicos, quando da incidência do acidente

fatal que vitimou José Pedro Bazone Selestine. 3. Dessume-se, portanto, a ine-

xistência de comprovação de imprudência, negligência ou imperícia quando do

acidente de trânsito, muito menos a previsibilidade necessária para se inferir tal

tipo penal. 4. Recurso ministerial improvido, mantendo-se incólume a sentença

absolutória proferida no Juízo a quo.

Outro ponto deveras utilizado pela jurisprudência é a utilização do ho-mem médio como parâmetro para verificação se documento falsificado é ca-paz de causar lesão a bem jurídico, conforme se observa na ementa do julgado abaixo verberado:

TJ-SP – Apelação APL 00792216220128260050 SP 0079221-62.2012.8.26.0050

(TJ-SP)

Data de publicação: 18/11/2015

Ementa: Alteração parcial de documento público verdadeiro. Artigo 297, do Có-

digo Penal. Configuração. Tipicidade reconhecida. Confissão do réu corroborada

pela prova pericial e pelo depoimento das testemunhas. Dolo evidenciado. Ma-

terialidade e autoria demonstradas. Falsificação apta a enganar o homem médio,

tanto que a alteração só foi constatada da segunda vez. Crime impossível não ca-

racterizado. Condenação mantida. Penas bem dosadas. Apelo desprovido.

TRF-1 – APELAÇÃO CRIMINA ACR 7278 MG 1999.01.00.007278-9 (TRF-1)

Cunha adota entendimento diverso, alinhado ao caso concreto:

Apesar de muitos ainda insistirem que a idoneidade (ou não) do meio fraudu-

lento utilizado pelo agente se extrai da percepção do homem médio (homem de

diligência mediana), preferimos, com o devido respeito, analisar o caso concreto,

aquilatando as condições da vítima (idade, grau de instrução etc.), dados impor-

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tantes para concluir pela eficácia (ou não) do artifício utilizado pelo estelionatário

(2015, p. 324).

Noutra vista, possui da mesma forma incidência no estudo do erro de tipo, o qual, conforme Art. 20 do Código Penal, é o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime, excluindo o dolo, mas permite a punição por crime cul-poso, se previsto em lei.

Conforme lembra Cunha, “a corrente tradicional invoca a figura do “ho-mem médio” por entender que a previsibilidade deve ser avaliada tão-somente sob o enfoque objetivo, levando em consideração estritamente o fato e não o autor” (2015, p. 208). Contudo, ele ressalta que doutrina mais moderna “trabalha com as circunstâncias do caso concreto, pois percebe que o grau de instrução, idade do agente, momento e local do crime podem interferir na previsibilidade do agente (circunstâncias desconsideradas na primeira orientação)” (CUNHA, 2015, p. 208).

É o que se verifica no autor mencionado em relação ao erro de proibição, instituto este que, conforme Gomes (2011), é o “erro do agente que recai sobre a ilicitude do fato. O agente pensa que é lícito o que, na verdade, é ilícito. Geral-mente aquele que atua em erro de proibição ignora a lei. Há o desconhecimento da ilicitude da conduta”.

Nessa seara, Cunha aduz que para se verificar se o erro de proibição é es-cusável ou não “são consideradas as características pessoais do agente, tais como idade, grau de instrução, local em que vive e os elementos culturais que per-meiam o meio no qual sua personalidade foi formada, e não o critério inerente ao homem médio” (2015, p. 286).

Percebe-se que a doutrina moderna começa a trilhar novo caminho quanto ao tema, abordando elementos culturais quanto ao agente supostamente crimi-noso, detraindo-se características pessoais em face de comportamentos conside-rados médios sem possibilidade de aferição no caso concreto. Desse fato, é curial trazer à baila a discussão a respeito do instituto da inexigibilidade da conduta diversa, elemento integrante do terceiro substrato do conceito analítico de cri-me, a culpabilidade.

Fenato afirma que “a inexigibilidade de conduta diversa é uma causa su-pralegal, não prevista em lei, para excluir a culpabilidade do agente” (2016).

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Sem a pretensão de densificar o tema, até porque não é o momento pro-pício, é de suma importância destacar que a inexigibilidade de conduta diversa, excludente de culpabilidade, possui duas hipóteses legais (coação moral irresis-tível e obediência hierárquica). Além do mais, há a possibilidade de observação de outras causas supralegais de excludente de culpabilidade no que tange à ine-xigibilidade de conduta diversa (FENATO, 2016).

É nesse condão que se retorna à discussão da questão da previsibilidade anteriormente discutida nos crimes culposos. De acordo com o relatado em li-nhas anteriores, a previsibilidade discutida em crimes culposos era a objetiva. Contudo, a doutrina também discute a previsibilidade subjetiva, esta já voltada ao cotejo com o caso concreto.

Realizando um paralelo entre os dois tipos de previsibilidades, afirma Greco:

Além da previsibilidade objetiva, existe outra, denominada previsibilidade subje-

tiva. Vimos que para haver a previsibilidade objetiva deve-se fazer a substituição

do agente por um homem médio. Se o homem médio, naquelas circunstâncias

em que atuou o agente, tivesse agido de forma diferente a fim de evitar o resul-

tado, é sinal de que este era previsível. Se mesmo com a substituição do agente

pelo homem médio o resultado ainda assim persistir, devemos concluir que o fato

escapou ao âmbito normal de previsibilidade e, portanto, não pode a ele ser atri-

buído. Na previsibilidade subjetiva não existe essa substituição hipotética; não há

a troca do agente pelo homem médio para saber se o fato escapava ou não à sua

previsibilidade. Aqui, na previsibilidade subjetiva, o que é levado em consideração

são as condições particulares, pessoais do agente, quer dizer, consideram-se, na

previsibilidade subjetiva, as limitações e as experiências daquela pessoa cuja pre-

visibilidade está se aferindo em um caso concreto (GRECO, 2015, p. 256).

Continua o autor:

Assim, para aqueles que entendem possível a aferição da previsibilidade subjetiva,

em que são consideradas as condições pessoais do agente, tais fatos poderão ser

objeto de análise por ocasião do estudo da culpabilidade, quando se perquirirá

se era exigível do agente, nas circunstâncias em que se encontrava, agir de outro

modo. Considerando o fato como um todo, depois da verificação das circunstân-

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cias que o envolveram, bem como das condições do agente, chegando-se à con-

clusão de que dele e não era exigível outra conduta, embora o fato seja típico, não

será culpável e, portanto, não será objeto de reprovação pela lei penal (GRECO,

2015, p. 257-258).

Certifica-se, assim, que nas excludentes de culpabilidade, em específico na inexigibilidade de conduta diversa, há um forte entendimento de que se devem considerar as peculiaridades do caso concreto, em especial as questões pessoais do agente, para se realizar juízo de valor a respeito da existência ou não de crime.

Nota-se, da mesma forma, incisiva crítica por parte da jurisprudência pá-tria a respeito do uso do conceito de homem médio, indicando tratar-se de um modelo classista que não averigua a realidade social, de acordo com o que se destaca do voto do desembargador Walter Luiz, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, quanto ao processo n.º 1.0043.12.000587-1/001, a saber:

O apelante, também, em suas razões, traz a tese de que a conduta perturbadora

deve-se pautar pelo censo do chamado homem médio.

O tema, por conseguinte, perpassa por uma análise conjuntural do sistema social,

do qual, igualmente, não se pode prescindir, na medida em que se torna prejudi-

cial à análise do mérito da pena, e da eficácia, in totum, do princípio da responsa-

bilização subjetiva, a análise da conjectura aposta à realidade do agente sub judice

como condição de juridicidade da sentença confirmadora do ius puniendi.

O conceito de homem médio revela-se absurdo à evidência de um classicismo

dogmático ainda presente que, por vias naturais do aspecto historicista da evolu-

ção humana, não pode perdurar no campo da aplicação.

Dessa feita, começa a doutrina e a jurisprudência a compreender que o uso

do parâmetro objetivo “homem médio” encontra guarida em ideias que não levam em consideração as perspectivas do caso em concreto, não analisando o contexto do agente, em suas nuanças sociais, psicológicas, econômicas, dentre outras.

Braga (2017) realiza ferrenha crítica ao termo “homem médio”, propug-nando sua morte diante da ciência penal. Mister destacar excerto de suas pala-vras quanto ao tema:

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O conceito de homem médio é a mais estapafúrdia evidência de um classicismo

dogmático ainda presente que, por vias naturais do aspecto historicista da evolu-

ção humana, não pode perdurar no campo da aplicação. Se fosse possível imagi-

nar um ser a quem se pudesse imputar a perfeita diligência de abstenção e, assim

sendo, de não cometimento de eventual fato descrito como crime diante de uma

situação inesperada, estaríamos a imputar um aspecto de competência ontológica

platônica a pessoas naturalmente compostas no erro e no equívoco. Afinal, como

é admissível avaliar as condições íntimas de uma pessoa no momento em que

supostamente não age com a pretensa diligência aguardada?

Assim considerando, será debatido o processo de rotulação do criminoso, sob de que forma e quem determina quem é e qual comportamento considerado desviante, o que resultará em uma crítica ao uso do termo “homem médio”, em que enseja um julgamento eivado de valores outros que não o “comportamento mediano” de um cidadão.

3. O PENSAMENTO CRÍTICO DE HOWARD BECKER

Para melhor elucidação temática, é mister um breve digressão histórica a respeito das escolas da Criminologia, acompanhando a evolução do pensamento e das explicações quanto à figura do criminoso.

Em um primeiro momento, há o “pensamento criminológico, de viés mar-cadamente biológico e psicológico, centrado em fatores individuais, construído no âmbito da Escola Positiva por pensadores italianos como Lombroso, Ferri e Garofalo” (SILVA, 2013).

Ato contínuo, “Hodiernamente, num salto qualitativo, a sociologia norte--americana, um dos maiores celeiros das mais importantes teorias sociológicas, percebe a criminalidade, em linhas gerais, como uma reação dentro de uma es-trutura social” (SILVA, 2013).

De acordo como Silva, começa-se a “focar a investigação no controle e rea-ção social formal, na reação social em relação ao crime e ao criminoso” (2013), sendo que essa mudança de paradigma começa com Becker. Resume o autor da seguinte forma:

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Como dito alhures, anteriormente a Becker o foco da investigação sociológica

sobre o crime estava na Etiologia do crime, ou seja, na busca de suas causas; as

causas, por seu turno, se concentravam ora na sociedade, ora naquilo que se defi-

nia como desvio. Nesta perspectiva investigatória, que se dava a partir de padrões

socialmente estabelecidos, o problema sempre estava com o desviante, ou seja,

nele é que sempre havia algo de errado, que o fazia colocar-se fora do regramento

imposto. Partia-se, então, do pressuposto de que o catálogo de regras e valores so-

ciais estava certo, verdadeira corporificação do bem, imune às críticas. Assim, as

indagações norteadoras das pesquisas destinavam-se tão somente aos desviantes,

tais como: Por que as pessoas desviam das regras impostas? O que há de errado

nelas, que as fazem desviar? Não se dava conta de questionar a estrutura social e

suas incongruências e reações, mas, a partir de Becker, a investigação concentra-

-se na reação social (rotulação, etiquetamento) em relação ao cometimento de um

ato criminoso (SILVA, 2013).

Becker aduz que usa o termo outsiders para designar aquela s pessoas que

são consideradas desviantes por outras, situando-se fora do círculo dos mem-bros ‘normais’ (2008, p. 27). Continua o autor, afirmando que regras sociais são criações de grupos sociais específicos. Grupos sociais criam os desvios ao fazer as regras, cuja infração constitui desvio e rotulam a pessoa que o comete como outsider (BECKER, 2008).

Afirma Becker (2008) que as sociedades modernas não são tão simples. Há diferenças entre os grupos que as compõem: classes sociais, linhas étnicas, culturais etc. As tradições levam a conjuntos diferentes de regras. Na medida em que as regras de determinados grupos se chocam e se contradizem haverá desacordo quanto a que tipo de comportamento deve ser considerado apro-priado à determinada situação. Observa-se, nessa medida, que a construção de um comportamento desviante nasce da concepção do que determinado grupo considera como desviante.

Como bem pondera Becker (2008, p. 137), regras específicas “encontram suas origens naquelas declarações vagas e generalizadas de preferência que os cientistas sociais chamam muitas vezes de valores”. Segue informando que os valores são guias insatisfatórios, posto que os padrões de seleção que corpori-ficam os valores são gerais e, assim pode haver valores conflitantes sem haver consciência de tal conflito (idem, 2008, p. 137).

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É bastante peculiar a visão do autor retromencionado ao abordar o tema valor, haja vista que a doutrina defende a inexistência de um magistrado neutro, mas sim imparcial, posto que a neutralidade não combina com um julgador ei-vado de valores que carrega perante a vida.

Ora, mas ao julgar um caso concreto, lançando mão de um termo extrema-mente genérico como homem médio, o julgador lastreia o objeto de julgamento com suas concepções de mundo em momento inapropriado, posto que a análise do caso concreto, tendo em vista as ordens sociais e econômicas, por exemplo, são preponderantes sobre qualquer preconcepção de mundo que o juiz possa considerar, o que vai de encontro às críticas de Becker.

De acordo com Braga (2017), “o tema, por conseguinte, perpassa por uma análise conjuntural do sistema social, do qual, igualmente, não se pode pres-cindir, na medida em que se torna prejudicial à análise do mérito da pena, e da eficácia, in totum, do princípio da responsabilização subjetiva”.

Ainda o autor acima citado realiza uma reflexão no que tange à conside-ração do homem médio e os diversos conflitos que àquele a quem está sendo imputado um fato criminoso resta inserido. É curial a transcrição de trecho do seu estudo:

Os conflitos emocionais, sociais, existenciais, biológicos e factuais poderiam fazer

com que um homem, que teve sua vida baseada no mais alto respeito às institui-

ções morais e, consequentemente, ao uso racional de sua liberdade, perdesse, por

um instante sequer, todo o amadurecimento até então conquistado e, neste relap-

so momento de descontração irracional, cometer um ato no qual recai descrição

típica. Para tal questionamento, haverá justiça na comparação deste homem com

um paradigma de conduta mediana? Será que o erro não é capaz de ocorrer den-

tro dos infinitos paradoxos presentes na psique humana? Não se trata, porém, de

legitimar uma conduta típica, trazendo-a para a legalidade, inobstante, de se ava-

liar, justamente, a incidência de um conceito aprioristicamente insuficiente para

o cumprimento dos desígnios básicos dos direitos fundamentais indissociáveis

às questões correlatas à aplicação de sanções respectivas ao direito de liberdade

(BRAGA, 2017).

Silva (2013) volta a afirmar que a “ideia de desvio é também relativizada no tempo e no espaço, de modo que uma conduta pode ser entendida como desvio

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em um lugar, e em outro não; em um tempo, e em outro tempo não”. Da mesma forma, ele afirma que há relatividade quanto a considerar um comportamento desviante “quanto a quem a comete: se cometida por alguém pode ser desvio, mas se cometida por outra pessoa, pode não ser desvio”.

Resta cristalino, diante do que se propõe, que uma análise embasada em parâmetros meramente objetivos caracterizados por um suposto padrão médio de comportamento não mais se coaduna com a realidade encarada em uma sociedade tão complexa.

Becker traz à discussão o outsider e seu processo de rotulação. Estuda o fenômeno em baila à luz da visão social e não do comportamento de per si do desviante. Evidenciou que a consideração de determinado comportamento como desviante é uma construção da sociedade na qual está inserido o indiví-duo, dentre uma série de especificações contidas na obra de Becker, a qual em uma monografia não haveria espaço. Ademais, há crítica aos valores que deter-minado agrupamento humano semeia para construir as regras que imputam determinando comportamento como desviante, uma vez que são genéricos e até mesmo conflitantes.

Nessa seara, considerar um homem médio como parâmetro de conduta em uma análise apriorística de cometimento de crime ou não, sem levar em consideração as peculiaridades do caso em concreto, é ir de encontro ao que vem sedimentando a doutrina mais moderna em relação ao Direito Penal.

CONCLUSÃO

Perante o que foi debatido, restou construída uma sólida crítica ao uso do termo “homem médio” para a imputação de determinada conduta como crimi-nosa, tendo como parâmetros, ou a ausência destes, o comportamento mediano que se espera de um cidadão comum.

Percorreu-se a Teoria Finalista do Direito Penal e suas consequências quanto à culpabilidade do agente. Da mesma forma foram vistos os elementos que compõem o conceito de crime, bem como a jurisprudência e a doutrina mais tradicional frente ao conceito de homem médio.

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Nessa medida, constatou-se forte entendimento a considerar a figura do “homem médio” embutida nas decisões que imputam comportamento crimino-so a determinado indivíduo, sem considerar as nuances do caso concreto.

Noutro giro, verificou-se que há entendimento moderno, acompanhado, também, por precedentes dos Tribunais pátrios, que não levam em considera-ção, para o deslinde da demanda penal, o conceito de homem médio, mas sim as circunstâncias que permeiam a situação fática que outrora está sendo analisada.

Nesse diapasão, foi exposta a visão de Howard Becker no que tange ao sujeito considerado desviante, examinando-se sua teoria em confrontação à doutrina e jurisprudência tradicional, sugerindo-se como resultado a mudança de visão ju-risprudencial no que concerne ao uso do homem médio como parâmetro de com-portamento a ser seguido quando da confrontação do réu em sua conduta.

Ora, conforme alhures demonstrado pelo pensamento de Becker, quem julga um determinado comportamento como desviante é a sociedade, eivada de valores genéricos e até mesmo contraditórios, construtoras de regras específicas.

A observância do caso concreto, com as vicissitudes oriundas de problemas sociais, econômicos, políticos, dentre outros, devem constar no julgamento do comportamento de determinado suposto criminoso, desde a tipicidade, trans-passando por excludentes de ilicitude, bem como pela consideração de inexigi-bilidade de conduta diversa.

Na tese de lançar mão do homem médio como parâmetro a ser seguido, deve o julgador realizar uma atividade de investigar a realidade vivida pelo agen-te objeto de análise, desmiuçando os detalhes sociais, econômicos, e mesmo políticos, para efetivar um escorreito juízo de valor a respeito da pessoa e da conduta do agente delitivo.

Portanto, verifica-se que há mudança no entendimento doutrinário e juris-prudencial a respeito do tema, buscando-se cada vez mais a análise pormenori-zada do indivíduo acusado de um crime e as perspectivas sociais e econômicas que norteiam o seu agir, o que pode ter como plano de fundo a teoria alavancada por Becker.

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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UTOPIA DA SOCIEDADE DE RISCO, MARCA DA MODERNIDADE

LÍQUIDA OU IDEIA DEMOCRÁTICA VÁLIDA?SUSTAINABLE DEVELOPMENT: UTOPIA OF THE RISK SOCIETY, MARK

OF THE LIQUID MODERNITY OR VALID DEMOCRATIC IDEA?Timóteo Ágabo Pacheco de Almeida 1

Sumário: Introdução; 1. O sistema capitalista contemporâneo; 1.1 As mazelas do

capitalismo; 2. A sociedade de risco de Ulrich Beck; 3. A modernidade líquida de

Zygmunt Bauman; 4. O meio ambiente nos tempos atuais; 4.1 a origem histórica

do desenvolvimento sustentável; Conclusão; Referências.

RESUMO: Não paira dúvida de que, no contexto social moderno, o de-senvolvimento sustentável é uma ideia que marca presença nas mais acaloradas discussões jurídicas. O conceito tenta unir dois mundos aparentemente incom-patíveis: o desenvolvimento tecnológico humano, marcado pela elevada quanti-dade de resíduos fabricados e pela necessidade de constante consumo de bens ambientais, e a sustentabilidade do meio ambiente em que habitamos. O pre-sente artigo buscou analisar esse paradoxo e associá-lo às ideias da sociedade de risco e às premissas da modernidade líquida, que permeiam os estudos sobre a sustentabilidade contemporânea. Em uma sociedade de risco, como ensina Ulri-ch Beck, a ideia se miscigena com diversos fatores sociais em constante choque, que permeiam a tênue linha dos riscos inerentes ao convívio social. Como se não bastasse, com a fluidez dos tempos modernos, a própria noção do que seja ‘sustentável’ parece se relativizar no tempo e no espaço. Tudo isto leva a um ques-tionamento final: Seria o desenvolvimento sustentável uma ideia válida e demo-crática? Ou não passa de uma utopia dissimulada? Nesse contexto, o presente artigo abordou os mencionados pontos, em tópicos próprios, traçando conexões entre os temas e, ao fim, estabelecendo uma breve conclusão sobre a relevante temática exposta, no sentido de que tal princípio, caso não pensado de modo

1 Mestrando em Direito Ambiental, pela Universidade do Estado do Amazonas. Promotor de justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas.

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democrático e voltado, prioritariamente, à tutela ambiental, perde por completo sua finalidade e sua essência.

PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento sustentável. Sociedade de Risco. Modernidade Líquida.

ABSTRACT: There is no doubt that, in the modern social context, sustain-able development is an idea that is present in the most heated legal discussions. The concept attempts to unite two seemingly incompatible worlds: human tech-nological development, marked by the high amount of waste produced and the need of constant consumption of environmental assets, and the sustainability of the environment in which we live. The present article sought to analyze this paradox and to associate it with the ideas of the risk society and the premises of liquid modernity, which permeate the studies on contemporary sustainability. In a society of risk, as Ulrich Beck teaches, the idea is mixed with several social factors in constant shock, which permeate the tenuous line of risks inherent in the social life. As if that were not enough, with the fluidity of modern times, the notion of what is ‘sustainable’ seems to be relativized in time and space. All this leads to a final question: would sustainable development be a valid and de-mocratic idea? Or is it just a covert utopia? In this context, the present article approached the mentioned points, in own topics, drawing connections between the themes and, finally, establishing a brief conclusion on the relevant thematic exposed, in the sense that this principle, if not thought in a democratic way and aimed, primarily, to the environmental protection, loses completely its purpose and essence.

KEYWORDS: Sustainable development. Society of Risk. Liquid Modernity.

INTRODUÇÃO

Nos primórdios do surgimento do sistema capitalista contemporâneo, marcadamente destacado dos demais sistemas econômicos pelos ideais da livre concorrência e da prioritária finalidade lucrativa, iniciou-se uma corrida mer-cantilista em busca das necessidades de consumo, que tangenciavam ideias como demanda, oferta, lucro, mão de obra, insumos etc. No entanto, dentre todos esses fatores, por muito tempo não houve qualquer preocupação com valores sociais – inclusive os de mercado – e princípios ambientais de (auto)preservação.

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Não demorou muito, todavia, para que o mencionado modelo fosse colo-cado em xeque, mormente devido aos catastróficos eventos ao redor do planeta, que apenas comprovavam que a prática empresarial puramente exploratória se portava, ao fim e ao cabo, como autodestrutiva e tendente ao pleno esgotamento dos recursos naturais mundiais.

Nesse emaranhado de fatores colidentes, difundiu-se, especialmente a par-tir de 1972, o protagonismo do Direito Ambiental. Nos dizeres de Romeu Tho-mé, “a Conferência de Estocolmo Sobre o Meio Ambiente Humano pretendeu marcar a inserção dos Estados no âmbito de um debate global sobre o ambiente no mundo” e, diante de tal influência, “surgia a noção de desenvolvimento so-cioeconômico em harmonia com a preservação do meio ambiente, mais tarde batizada de ‘desenvolvimento sustentável’” (2016, p. 41-42).

Entretanto, não tardou muito para que acordos e convenções internacio-nais esculpidos no aparentemente forte alicerce do desenvolvimento sustentável começassem a ser questionados. Isso porque, como uma das principais marcas dos tempos modernos, o risco faz-se intrínseco à própria ideia de desenvolvi-mento, pois este não evolui sem inovação, a qual se amolda aos diversos matizes dos riscos científicos e sociais. Desse modo, a Sociedade de Risco, como retrata Ulrich Beck, recebe destaque, representando uma nova forma de organização social, distinta da sociedade industrial clássica, e distanciando a modernização simples da modernização reflexiva. Segundo o autor, os riscos econômicos, po-líticos, sociais e ambientais ganham tamanha proporção que acabam por trans-bordar a clássica tutela das instituições de controle. E mais, é o próprio avanço técnico-econômico o principal causador destes fatores. A modernização vê em si mesma a principal vilã, em um processo autofágico que impede que diversos riscos, como os ambientais, sejam diminuídos, enquanto o desenvolvimento se apresentar como diretriz permissiva daqueles.

Em outros tempos, mas de modo similar, Zygmunt Bauman retrata que o ser humano sofre dos males da volatilidade de ideias, princípios e definições. Vivemos em tempos líquidos, nada foi feito para durar: com tal explanação o autor, expoente da sociologia humanística, introduz a sua principal teoria, a sa-ber, a modernidade líquida. Segundo esta, vivemos tempos “líquidos e voláteis”, uma era dinâmica que suplantou a modernidade sólida, marcada por ideias bem definidas, não volúveis e raramente relativizáveis. Não por outro motivo, o autor ensina que o mundo atual faz-se repleto de sinais confusos, propenso a mudar

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com rapidez e de forma imprevisível. Essa imprevisibilidade dificulta ainda mais a efetivação do desenvolvimento sustentável, não por apenas volatilizar seus pro-pósitos finais, mas também por tornar fluida sua exata conceituação.

Desse modo, destaca-se a indagação sobre a pertinência e funcionalidade dos ideais pregados pelo desenvolvimento sustentável, ou, no mínimo, sobre a atualidade de suas premissas, que parecem se tornar estanques, numa realidade dinâmica. Porém, para que se examine criticamente essa problemática, surge, ab initio, um questionamento nuclear ao tema: No que consistiria o sistema capita-lista contemporâneo?

1. O SISTEMA CAPITALISTA CONTEMPORÂNEO

O termo ‘capital’ deriva do vocábulo latino capitalis, que significa, em sínte-se, o que é principal ou aquilo que vem primeiro (MICHAELIS, 2000). A palavra remete ao período histórico dos séculos XII e XIII, em que, no ápice do regime mercantilista, houve o surgimento de elementos econômicos e conceitos comer-ciais que colidiam com o padrão estanque feudal, como os primeiros fundos de comércio, a troca de mercadorias em cidades europeias de grande fluxo, o pro-pósito laboral do lucro com direito a juros, dentre outros

Por sua vez, o capitalista – tido como o dono e proprietário do capital – foi conceito definido, em O manifesto comunista, por Karl Marx e Friedrich Engels os quais, em 1848, já associavam a definição não ao sistema propriamente dito, mas à definição do próprio proprietário privado de capital. Com o advento do período industrial, que representou um novo marco comercial planetário, o ca-pitalismo começou a ser utilizado em novo sentido estrito, para representar o modo de obtenção do lucro pela atividade industrial, limitando-se, contudo, o usufruto de seus benefícios à categoria daqueles que detinham o controle do processo industrial e a posse do capital.

De fato, Louis Blanc é tido como quem inaugurou o sentido moderno de capitalismo. Porém, foram Engels e Marx que exerceram forte influência nessa definição contemporânea, ao exporem, em O Capital (1867), que o sistema capi-talista (kapitalistisches System) e o seu modo de produção (kapitalistische Produ-ktionsform) aludiam a um novo sistema econômico.

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Não obstante, com o processo mundial de globalização, a definição de ca-pital – antes vinculada à “mais valia” marxiana – restou mais confusa e, nas pa-lavras de Bauman, muito mais volátil e líquida. A inovação e a expansão da rede mundial de computadores ocasionaram a miscigenação de ideias, oriundas de pontos globais distintos, e a crescente necessidade de consumo no itinerário so-cial do ser humano. Nesse cenário, Gilles Lipovetsky (2007), em seu estudo cien-tífico sobre a felicidade na contemporaneidade, delineia a influência do citado fator, ao aclamar estar-se diante de uma nova “era do hiperconsumo”, comparan-do os tempos modernos com a mitológica figura do deus Dionísio, responsável pela distribuição de alegrias em abundância à humanidade e pela incitação ao pleno gozo de vida.

No mesmo sentido, Fabio Scorsolini-Comin (2008, p. 203) afirma que o ethos de alegria, no contexto do sistema capitalista moderno, “foi redescoberto pelo homem atual, insistindo na nova cultura cotidiana, que presta culto às sen-sações imediatas, aos prazeres do corpo e dos sentidos, às volúpias do presente”. Como consequência, isso ocasiona um retorno ao carpe diem do romantismo e ao próprio hedonismo clássico; olvidando-se que o princípio de vida hedonista sempre repercutia em temores sociais e insegurança, fatores que geram liquidez nas relações sociais – tidas como sólidas na Era Clássica – e acentuam a socieda-de de risco narrada por Beck.

1.1 As Mazelas do Capitalismo

Consoante o supracitado, a tendência exacerbada do capitalismo explora-tório pode gerar como consequência um estado de desamparo humano constan-te, tornando-se cada indivíduo o único responsável por atingir seu êxito. Scorso-lini-Comin (2008, p. 204) descreve que o indivíduo, nesse ínterim atual, “estaria suscetível a medos, frustrações, ansiedades e à produção de novas e efêmeras necessidades de consumo – consumo que perpassa as aquisições materiais e che-ga ao domínio das subjetividades”.

Lipovetsky (2007, p. 247), em complemento a isso, alude que uma das di-retrizes da sociedade atual do hiperconsumo deveria ser a criação de formas de sustentabilidade não destrutivas, conceito abrangido pela definição de de-senvolvimento sustentável. Porém, mostra-se evidente a colisão entre a era do hiperconsumo e os ideais de sustentabilidade.

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Ao trazer a mesma problemática para a análise das desigualdades verifi-cadas no livre mercado, elemento expoente das modernas mazelas capitalistas, Michael J. Sandel (2012, p. 109) aduz que:

Evidentemente não existe uma sociedade perfeitamente igualitária. Assim, o risco

de coerção paira sempre sobre as escolhas feitas pelo indivíduo no mercado de

trabalho. Qual seria o grau de paridade necessário para garantir que as escolhas

do mercado fossem livres, em vez de coercitivas? Até que ponto as desigualdades

nas condições de uma sociedade prejudicam a equidade das instituições sociais

(como o exército voluntário) baseada na escolha individual? Em quais condições

o livre mercado é realmente livre? Para responder a essas questões, precisamos

analisar as filosofias morais e políticas que veem a liberdade – e não a felicidade

– no âmago da justiça.

Portanto, as premissas atuais do regime capitalista, especialmente quando exercido em seu viés marcantemente exploratório, demonstram uma falsa liber-dade de mercado, que se dissimula através da faixada de um livre arbítrio eco-nômico; mas, ao fim, subsume-se à necessidade injustificada de hiperconsumo. Esse hiperconsumo sobreleva a necessidade de fluidez de tecnologias e exige o estímulo constante à inovação – quase que diário – e seus consequentes riscos industriais, os quais relativizam conceitos e padrões outrora solidificados. Nesse ponto, insta que melhor se esclareça, em breves linhas, os principais fatores de risco característicos dessa curiosa sociedade contemporânea.

2. A SOCIEDADE DE RISCO DE ULRICH BECK

Com a publicação de sua obra original Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade, em 1986, Ulrick Beck apresentou as bases de sua principal teoria, alicerçada no fato de a clássica sociedade industrial ter se deslocado, com a contemporaneidade, para uma sociedade de consideráveis riscos. Riscos estes expandidos e distribuídos muito além das características econômicas e sociais da Era Clássica.

Isso porque, com o incremento dos recursos tecnológicos, tornaram-se im-previsíveis os riscos – e mesmo a predição e análise prévia destes –, acarretando

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graves consequências ao bem-estar planetário, especialmente à saúde humana e aos principais recursos naturais presentes no meio ambiente terrestre. Ademais, tais riscos ainda se apresentam com origens e causas desconhecidas a longo pra-zo e, mesmo quando descobertas, já irreversíveis.

Explanando o ideário de Beck, Júlia S. Guivant (2001, p. 95) ressalta que:

Entre esses riscos, Beck inclui os riscos ecológicos, químicos, nucleares e gené-

ticos, produzidos industrialmente, externalizados economicamente, individuali-

zados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente.

Mais recentemente, incorporou também os riscos econômicos, como as quedas

nos mercados financeiros internacionais.

Com razão, essa sociedade seria definida pelos principais traços da con-temporaneidade, composta por um leque de riscos inerentes às mais diversas atividades sociais, os quais gerariam “uma nova forma de capitalismo, uma nova forma de economia, uma nova forma de ordem global, uma nova forma de so-ciedade e uma nova forma de vida pessoal” (BECK, 1999, p. 2-7).

Não por outro motivo, a própria definição de Sociedade de risco se entre-laça com os nuances introduzidos no meio social pela globalização. Outra inte-ressante característica é que tais riscos são transfronteiriços, pois não obedecem a barreiras ou limites geográficos. Usualmente também se apresentam como de abrangência democrática, afetando distintas classes sociais, muito embora em proporções distintas.

Ulrick Beck, influenciado pela crise ambiental mundial que se propagou em maior escala no planeta a partir da década de 1980 – cujo principal exemplo até hoje repercute nos arredores de Chernobyl –, além de outros fatores políticos e sociais, como o fracasso do socialismo e a queda de Muro de Berlim, assimi-lou-os com os exponenciais avanços tecnológicos ao perceber uma constante nuclear: tal como a sociedade industrial suplantou o regime feudal, a sociedade de risco está eliminando a primeira.

A primeira passagem, chamada pelo autor de modernização simples ou modernização da tradição, abriu espaço para a segunda transição: a moderni-zação reflexiva.

Os riscos passam, então, a repercutir nos campos políticos, econômicos, sociais e ambientais. Não apenas repercutem, como são elevados a graus cada vez

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mais altos, com ofertas e demandas em grande porte. Assim, à guisa de exemplo, tem-se como insuficiente a oferta oferecida pelas pequenas bases de abasteci-mento, as quais devem ceder espaço para as volumosas incursões petrolíferas. Não é, portanto, difícil perceber que o avanço tecnológico acabou por gerar esses riscos, os quais se mostram incontroláveis pelos entes e instituições de contenção da sociedade moderna, inclusive no que tange aos recursos ambientais.

Como resultado, a modernização aparenta voltar-se contra si mesma, em um processo de implosão; uma modernização de efeitos reflexivamente nefas-tos. Beck vai além e leciona que fatores antes vistos como matrizes da socieda-de clássica – família, casamento etc. – começam a ser liquefeitos e substituídos, perdendo seu protagonismo na sociedade de risco. Surge, também, o efeito boo-merang, pelo qual os riscos deixam de afetar tão somente as classes mais pobres, que ainda são seus principais alvos, e passam a lesar diretamente até mesmo os indivíduos com privilégios de mercado, como aqueles que fabricam, produzem, comercializam e/ou se beneficiam destes mesmos riscos.

Na seara jurídica, a questão ganha maior relevo com o surgimento do Prin-cípio da Precaução. Nos moldes deste, deve-se sempre buscar evitar o dano am-biental, ainda que a conduta potencialmente lesiva não possua consequências danosas pré-determinadas; ou, em breves palavras, mesmo que os riscos, espe-ráveis à atividade, ainda não sejam conhecidos.

Internacionalmente, o marco normativo da mencionada ideia se deu com a Conferência do Rio, de 1992, que delineou, em seu Princípio 15, verbis:

Princípio 15

Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser

amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando

houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científi-

ca absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas eco-

nomicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (grifos nossos).2

No âmago interno, o mesmo princípio acabou por ser expressamente ins-culpido no Art. 1.º, da Lei n.º 11.105/05, ao estabelecer que:

2 Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf> Acesso em 26.7.2017.

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Art. 1.º Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização

sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a trans-

ferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercia-

lização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos

geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o

estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a pro-

teção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio

da precaução para a proteção do meio ambiente (g. n.).3

Como exposto, a referida norma, de viés principiológico, almeja tutelar o meio ambiente, ao garantir que danos até o momento desconhecidos sejam le-vados em consideração no momento de análise sobre a execução de conduta potencialmente lesiva.

Não se olvida que, antes deste, já vigorava o Princípio da Prevenção, vol-tado ao risco concreto e conhecido. Porém, essa definição exata e precisa de um risco porvir somente se adequa em uma sociedade de bases mais sólidas, não marcada pelos imprevisíveis perigos da idade contemporânea. Nesta, os riscos são permanentes, exponenciais e desconhecidos, adequando-se juridicamente melhor à definição da norma da precaução.

José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala diferenciam tais con-ceitos, ao explicarem que o “princípio da prevenção se dá em relação ao perigo concreto, enquanto, em se tratando do princípio da precaução, a prevenção é dirigida ao perigo abstrato” (2002, p. 62). É justamente esse perigo abstrato que se amolda à sociedade de risco.

Buscando, por fim, exemplificar e categorizar os riscos supracitados, Júlia S. Guivant (2001, p. 98), apresenta as seguintes razões, em comentário à obra de Ulrich Beck:

Nesta simultaneidade, estão presentes três tipos de ameaças globais, que podem se

complementar e acentuar entre si: 1) aqueles conflitos chamados bads: a destrui-

ção ecológica decorrente do desenvolvimento industrial, como o buraco na ca-

mada de ozônio, o efeito estufa e os riscos que traz a engenharia genética para

plantas e seres humanos; 2) os riscos diretamente relacionados com a pobreza,

3 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11105.htm> Acesso em 26.7.2017.

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vinculando problemas em nível de habitação, alimentação, perda de espécies e da

diversidade genética, energia, indústria e população; 3) os riscos decorrentes de

NBC (Nuclear, Biological, Chemical), armas de destruição de massas, riscos que

aumentam quando vinculados aos fundamentalismos e ao terrorismo privado. O

relevante desta classificação é mostrar que não existem riscos globais como tais,

mas que eles estão permeados por conflitos em torno de questões étnicas, nacio-

nais e de recursos, os quais têm lugar desde o fim do confronto Oriente/Ocidente

(grifos nossos).

Todavia, os riscos – resultado final da modernização reflexiva – não tive-ram um surgimento espontâneo. Nasceram, sim, da volatilidade que atingiu os alicerces da sociedade moderna. A fluidez de premissas e preceitos, antes irre-futáveis, intangíveis e imutáveis, fez com que a própria segurança fosse relativi-zada. Processo que Zygmunt Bauman classificou como modernidade líquida.

3. A MODERNIDADE LÍQUIDA DE ZYGMUNT BAUMAN

Conceitualmente, líquido é aquilo “que flui ou corre, tendendo sempre a nivelar-se e a tomar a forma do vaso que o contém” (MICHAELIS, 2000, p. 1.265). Essa fluidez repercute exatamente na definição de Zygmunt Bauman, a respeito da passagem da “modernidade sólida” para a “modernidade líquida”.

A primeira destas, descrita como sólida, surge com um conjunto estável de características, valores e formas de vida. Por outro lado, na modernidade líquida, tudo é volátil, Não somente os valores – antes inalteráveis –, como também as próprias relações humanas se tornam maleáveis; os laços da vida em conjunto, as afinidades políticas e todo o arcabouço de fatores sociais perdem sua consis-tência e solidez. A bem da verdade, Marx já trabalhava com ideia similar, ao me-taforizar a função do éter das revoluções industriais modernas, desmanchando tudo o que é sólido.

Todavia, Bauman vai além. O sociólogo aplica o conceito à constante incer-teza da era contemporânea, distinta dos tempos clássicos em que as estruturas, instituições e conceitos eram mais inflexíveis. Para o autor, naquela era, o mundo tinha mais certezas. Assim, a passagem ocasionou inúmeros impactos sociais,

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gerando um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível.

O autor resume essa inconstância, ao afirmar que:

São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos

selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar

depois guiar, que estão cada vez mais em falta. Isso não quer dizer que nossos

contemporâneos sejam livres para construir seu modo de vida a partir do zero e

segundo sua vontade, ou que não sejam mais dependentes da sociedade para ob-

ter as plantas e os materiais de construção. Mas quer dizer que estamos passando

de uma era de ‘grupos de referência’ predeterminados a uma outra de ‘comparação

universal’, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual (…) não

está dado de antemão, e tende a sofrer numerosa e profundas mudanças antes

que esses trabalhos alcancem seu único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo

(BAUMAN, 2001).

Ou seja, destacam-se prioritariamente a fluidez nos conceitos, o individua-lismo nos objetivos e a efemeridade nas relações.

A procura pela felicidade se mostra, portanto, individualizada, gerando uma permanente angústia por alcançá-la. Nessa busca, há uma vontade cons-tante de se almejar novas formas de experiências e realizações. Tudo isso tende a desembocar nas bases do hiperconsumo, uma vez que, se de alguma forma frustrados os ideais e propósitos individuais, o ser humano veria nos bens de consumo o alimento final à alma.

Esse parâmetro também justifica diversos fatores dos tempos atuais, como a nítida efemeridade das relações emocionais – mesmo as tidas como duradou-ras, esempli gratia, o matrimônio –; a incerteza diante do futuro; a crença em ideais outrora pontuados como errôneos; a relativização de valores sociais e de clássicos fundamentos jurídicos; o aumento do uso de antidepressivos e medica-mentos afins, além dos próprios entorpecentes; a intensa procura por quaisquer tipos de entretenimento, para suprirem a sensação de angústia etc.

Na pior das hipóteses, a ansiedade e a angústia ocasionadas pela liquidez da novel modernidade podem gerar uma apatia social, consoante narra o autor. Esse elemento repercute na inércia econômica e total descrença política. Em termos práticos, o ser humano resolve omitir-se e recusar responsabilidades básicas, por

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meio da negação de tais responsabilidades, da relativização de sua imprescindi-bilidade ou, apenas, do total descaso para com estas. Em síntese, esse indivíduo, perdido na modernidade líquida, começa a sofrer de uma “impotência social”.

Desse modo, questões de grande monta, como a preocupação com a tutela ambiental e sua preservação contra nefastos e crescentes atos humanos lesivos ao meio ambiente, muitas vezes se perdem nesse emaranhado de fluidez, resultan-do em um punhado de argumentos vazios e desculpas insólitas. Não por menos, o próprio autor afirma que ainda estamos em uma sociedade líquida, mas em que nascem sonhos de uma sociedade menos líquida.

O indivíduo, por consequência, deixa de ter seu próprio lugar na socieda-de, passa a ocupar “lugar nenhum” e busca incansavelmente alcançar um status que, de fato, não possui qualquer noção de qual seja. Tiago de Oliveira Fragoso (2011, p. 110) sintetiza a problemática, ao descrever que:

Na modernidade líquida os indivíduos não possuem mais padrões de referência,

nem códigos sociais e culturais que lhes possibilitassem, ao mesmo tempo, cons-

truir sua vida e se inserir dentro das condições de classe e cidadão. Chega-se no

entender de Bauman a era da comparabilidade universal, onde os indivíduos não

possuem mais lugares pré-estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas

devem lutar livremente por sua própria conta e risco para se inserir numa socie-

dade cada vez mais seletiva econômica e socialmente.

Destarte, a modernidade líquida, consoante exposto por Bauman (1998), descreve o momento no qual os importantes referenciais, que antes possibilita-vam o desenraizamento e reenraizamento do velho no novo, “tornam-se lique-feitos”, sendo, desse modo, totalmente “perdidos no tecido fluido” em que são despejados.

Entretanto, se nossa sociedade atual é repleta de riscos – constantes e ine-rentes à própria existência social dos tempos contemporâneos – e a fluidez dos conceitos acaba por confundir ainda mais as bases dos princípios e fatores ainda restantes, como seria possível estabelecer-se as premissas fixas e coercitivas do Direito Ambiental, em um sistema marcadamente capitalista?

Dito de outra forma, como compatibilizar o próprio desenvolvimento hu-mano, que depende dos riscos da inovação e corre em paralelo à volatilidade dos conceitos, com a necessidade da sustentabilidade dos recursos naturais ainda

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existentes no planeta? Seria o discurso da autopreservação ainda eficaz contra a total apatia que persegue a atualidade?

4. O MEIO AMBIENTE NOS TEMPOS ATUAIS

Em Terra Pátria, Edgar Morin descreve, em linguagem quase poética, os nuances da história planetária e os primórdios da problemática preservacionista, colocando em rota de colisão as ideias de exploração da superfície terrestre e de tutela ecológica, ao mencionar que:

Esse grão de poeira cósmica é um mundo. Mundo por muito tempo desconhecido

dos homens que não obstante haviam recoberto o planeta há várias dezenas de

milhares de anos ao se separarem uns dos outros. A exploração sistemática da

superfície da Terra efetuou-se ao mesmo tempo que se desenvolveu a era pla-

netária, e dela expulsou paraísos, titãs, gigantes, deuses ou outros seres fabulosos,

para reconhecer uma Terra de vegetais, de animais e de humanos. A partir do

século XVIII, a investigação científica penetra os subsolos terrestres e começa a

estudar a natureza física do planeta (geologia), a natureza de seus elementos (quí-

mica), a natureza misteriosa de seus fósseis (paleontologia). A existência da Terra

não é mais apenas de superfície, mas de profundidades. Ela não é mais estática, é

evolutiva. Descobre-se que a Terra tem uma história (...). A Terra é um pequeno

cesto de lixo cósmico transformado de maneira improvável não apenas num

astro muito complexo, mas também num jardim, nosso jardim. A vida que ela

produziu, da qual ela usufrui, da qual usufruímos, não surgiu de nenhuma neces-

sidade a priori. Ela é talvez única no cosmos, é a única no sistema solar, é frágil,

rara, e preciosa por ser rara e frágil (2002, págs. 49-66 (grifos nossos).

Nesse ambiente, em que a evolução humana entra em choque com a preser-vação do “nosso lar”, construiu-se uma interessante premissa para buscar com-patibilizar o progresso multifacetado da espécie humana e a autopreservação ecológica, conceito este traduzido pela expressão “desenvolvimento sustentável”.

Com efeito, o termo não carrega uma fácil missão. Remete, sim, à árdua tentativa de compatibilizar práticas e condutas muitas vezes antagônicas. Morin (2002), ciente disso, sintetiza o conflito, ao afirmar que “a ideia de ‘desenvolvimen-

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to sustentável’ põe em dialógica a ideia de desenvolvimento, que comporta aumen-to das poluições, e a ideia de meio ambiente, que requer limitação das poluições”.

No entanto, para que se logre alcançar uma real percepção do problema exposto, faz-se mister uma breve análise histórica do que seria esta ideia, poste-riormente elevada a valor e hoje consagrada mundialmente como princípio – na maioria dos ordenamentos jurídicos, de estatura constitucional –, qual seja, a ideia de um desenvolvimento mundialmente sustentável.

4.1 A Origem Histórica do Desenvolvimento Sustentável

Nos dias atuais, é cediço que o desenvolvimento sustentável possui roupa-gem normativa principiológica. Romeu Thomé, ao descrevê-lo, menciona que tal princípio possui como pilar a harmonização de três vertentes: crescimento econômico, preservação ambiental e equidade social. O jurista vai além e ressalta o marco histórico do surgimento da norma, ao aludir que:

A ideia de desenvolvimento socioeconômico em harmonia com a preservação

ambiental emergiu da Conferência de Estocolmo, em 1972, marco histórico na

discussão dos problemas ambientais. Designado à época como ‘abordagem do

ecodesenvolvimento’ e posteriormente renomeado ‘desenvolvimento sustentável’,

o conceito vem sendo continuamente aprimorado (2016, p. 56).

Entretanto, o alicerce histórico da citada norma remonta a tempos ainda mais antigos.

A ocorrência de terríveis tragédias ambientais, como o desastre de Mina-mata (1959), o derramamento de petróleo da Torrey Canion (1967), além de outros incidentes subsequentes – o acidente químico de Seveso (1976), o va-zamento de Amoco Cadiz (1978), o desastre de Bhopal (1984) e de Cubatão (1984), dentre tantos outros –, fez com que a comunidade científica e a classe político-econômica mundial finalmente voltassem seus olhos às crescentes ca-lamidades ecológicas, produto da desenfreada e descuidada atividade comercial do ser humano ao redor do globo terrestre.

O capitalismo, visto no seu modo mais austero e exploratório, começou a se fazer perverso à humanidade, gerando os graves e diários riscos lembrados por Beck e a autolesividade da modernidade líquida ensinada por Bauman.

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Nesse ínterim, o grande mérito da Conferência de Estocolmo, de 1972, foi levantar mundialmente a bandeira da tutela ambiental como questão fundamen-tal de discussão nas mesas jurídicas, sociais e políticas planetárias, sob pena de, com o passar do tempo e a majoração dos danos ambientais em largo espectro, o ser humano se autodestruir, como o lobo do próprio homem, premissa profe-tizada por Thomas Hobbes há séculos.

Nos dizeres de Moacir Gadotti (2000, p. 105), em Pedagogia da Terra, com a aludida Conferência houve não apenas a inauguração da temática, mas tam-bém um destacado protagonismo da matéria ambiental.

O mesmo autor retrata aquele contexto, aduzindo que:

Foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocol-

mo, julho de 1972), que introduziu, pela primeira vez na agenda internacional, a

preocupação com o crescimento econômico em detrimento do meio ambiente.

Pela primeira vez, percebeu-se que o modelo tradicional de crescimento econô-

mico levaria ao esgotamento completo dos recursos naturais, pondo em risco a

vida no planeta (...). O principal resultado desta Conferência foi a Declaração so-

bre o Ambiente Humano, conhecida como a Declaração de Estocolmo, sustentan-

do que ‘tanto as gerações presentes como as futuras tenham reconhecidas, como

direito fundamental, a vida num ambiente sadio e não degradado’. A Conferência

de Estocolmo é considerada um divisor de águas no despertar da consciência eco-

lógica. Todavia, é preciso reconhecer que ‘nem a publicação do Clube de Roma,

nem a Conferência de Estocolmo caíram do céu. Elas foram consequências de

debates sobre os riscos da degradação do meio ambiente que, de forma esparsa,

começaram nos anos 60 e ganharam no final dessa década e no início dos anos 70

uma certa densidade, que possibilitou a primeira discussão internacional culmi-

nando na Conferência de Estocolmo em 1972’ (...) (grifos nossos).

Portanto, a ideia do desenvolvimento sustentável, mesmo antes da Confe-rência de 1972 – primeira conferência internacional sobre o meio ambiente –, já possuía um cabedal histórico de estudos e apontamentos sobre a matéria. Todavia, o próprio Gadotti (2000, p. 105) cita que a primeira definição técnica clara do prin-cípio em tela somente surgiu no Relatório de Brundtland, de 1987, que definiu o conceito como “aquele que ‘satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades’”.

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O ideal vingou, sendo retornado em outros tratados, convenções e con-ferências internacionais, como a destacada Conferência do Rio, de 1992 (ECO 92). Nesta, foi elaborada e publicada e Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a qual esmiuça, dentre os seus destacados princípios, que:

Princípio 1

Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento

sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a

natureza. (...)

Princípio 4

Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá

parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada

isoladamente deste.

Princípio 5

Para todos os Estados e todos os indivíduos, como requisito indispensável para

o desenvolvimento sustentável, irão cooperar na tarefa essencial de erradicar a

pobreza, a fim de reduzir as disparidades de padrões de vida e melhor atender às

necessidades da maioria da população do mundo. (...)

Princípio 8

Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida mais

elevada para todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões insusten-

táveis de produção e consumo, e promover políticas demográficas adequadas.

(...)

Princípio 27

Os Estados e os povos irão cooperar de boa fé e imbuídos de um espírito de par-

ceria para a realização dos princípios consubstanciados nesta Declaração, e para

o desenvolvimento progressivo do direito internacional no campo do desenvolvi-

mento sustentável (grifos todos nossos).

Desse modo, promoveu-se a ampla divulgação e aceitação do desenvolvi-mento sustentável em âmbito internacional. Na esfera pátria, antes mesmo da

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realização da referida Conferência, mas já inspirado nas premissas ambientais propagadas desde o surgimento do conceito, o Poder Constituinte de 1988 asse-gurou que constasse em nosso Texto Constitucional, ainda que sob outro nomen juris, a salvaguarda expressa e necessária à tutela, defesa e promoção do desen-volvimento sustentável.

O Legislador Constituinte procedeu de tal forma que não apenas o previu no contexto da preservação ambiental, marcadamente presente no Art. 225, da CRFB/88, como também o assegurou no bojo do Art. 170 da mesma Carta, que expõe os princípios que devem dirigir toda a ordem econômica. Tais dispositi-vos assim prescrevem:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na

livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os dita-

mes da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)

III – função social da propriedade; (...)

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado con-

forme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elabo-

ração e prestação; (Emenda Constitucional n.º 42, de 19.12.2003)

VII – redução das desigualdades regionais e sociais; (...)

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem

de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Po-

der Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes

e futuras gerações.

§ 1.º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo eco-

lógico das espécies e ecossistemas;

II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fisca-

lizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus com-

ponentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão per-

mitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a in-

tegridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

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IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente

causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impac-

to ambiental, a que se dará publicidade;

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e

substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio am-

biente;

VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscienti-

zação pública para a preservação do meio ambiente;

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem

em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam

os animais a crueldade.

Logo, por mais de uma vez, conforme os grifos destacados nos dispositivos supra, busca a Constituição da República: (a) destacar a essência dos conceitos ambientais de primeira prioridade; (b) assimilar a preocupação com a preserva-ção do meio ambiente às diretrizes do próprio sistema econômico; (c) destinar os deveres de defesa e preservação às presentes e futuras gerações, expondo o ca-ráter intergeracional do desenvolvimento sustentável e (d) destacar a incumbên-cia de primordial controle dos meios de produção, comercialização e emprego das demais técnicas e métodos do sistema capitalista, “que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.

Resta, portanto, nítida a prudência constitucional em zelar pelo princípio em voga. Porém, a despeito da louvável medida de elevar-se a norma à estatura protetiva constitucional – não apenas no Brasil, como também na maioria dos ordenamentos jurídicos mundiais –, a positivação daquela não solucionou sua colisão com a crescente exploração do capital ao redor do planeta e, consequen-temente, com a majoração da poluição em graus, lugares e formas distintas.

Dessa constatação fática, emana a inevitável indagação: seria o desenvolvi-mento sustentável um freio à poluição mundial, a solução para o evitamento de catástrofes mundiais, ou um mero discurso legitimador de uma poluição atual, dessa vez ‘legitimada’ e ‘regulamentada’ pela regra do “pode-se poluir, desde que seja de modo sustentável”?

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4.2 Premissa de Preservação Ambiental ou Mito Dissimulado?

Diante do questionamento apresentado, torna-se inevitável a tentativa de se buscar conciliar as ideias acima tratadas em um mesmo conjunto fático. Em outros termos, não basta que o desenvolvimento sustentável paire sob berço es-plêndido, no mais alto cume da análise teórica, se não se adequa a fluidez da mo-dernidade contemporânea e à sociedade de riscos inevitáveis em que vivemos.

Em um primeiro plano, a resposta mais lógica mostra-se de fácil percepção: não, não é possível que haja um ‘desenvolvimento’ verdadeiramente ‘sustentável’, uma vez que, para o primeiro conceito, torna-se necessário poluir, enquanto que para o segundo, é medida imperativa o combate a qualquer tipo de degradação.

De fato, a definição primária do princípio já expõe essa aparente conclusão, após uma rápida atividade hermenêutica. Para tal, basta se observar sua con-ceituação técnica, como, verbi gratia, a explanada por Édis Milaré, que descreve desenvolvimento sustentável nas seguintes linhas:

Desenvolvimento sustentável

(1) O uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade

de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações

futuras.

(2) Forma socialmente justa e economicamente viável de exploração do ambien-

te que garanta a perenidade dos recursos naturais renováveis e dos processos

ecológicos, mantendo a diversidade biológica e os demais atributos ecológicos

em benefício das gerações futuras e atendendo às necessidades do presente

(2015, p. 282).

Como dito, a própria substância da norma, em sua essência axiológica, rei-tera o impacto de propósitos e finalidades diversas. De um lado, a imprescindi-bilidade do uso equilibrado dos recursos naturais, de forma socialmente justa e ecologicamente adequada. De outro, o uso economicamente viável da explora-ção do meio ambiente que, segundo a classe empresarial, exigiria por diversas vezes a crescente exploração dos recursos naturais, a fim de evitar uma série de consequências, como a falência empresarial, o retrocesso no mercado de capital, a não modernização de técnicas primárias, a carência de insumo para a atividade industrial, dentre outras escusas.

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Devido a tais motivos, a volatilidade da modernidade líquida ganha espa-ço, gerando a relativização de preceitos fundamentais de defesa ambiental, como a permissão para poluir, desmatar ou degradar à vontade, desde que haja o res-sarcimento em dinheiro; ou mesmo o discurso da ‘vital’ necessidade da explora-ção dos recursos naturais para a existência humana – como se o lucro obtido por alguns fosse realmente mais imprescindível do que a sobrevivência dos recursos planetários básicos à vida de todos.

Quando não, essa liquidez também se apresenta nas mentes do poluidor indiferente, figura presente nas sociedades mundiais, culminando na sua total apatia à problemática ambiental. Este, ao virar suas costas à árdua realidade ecológica, não apenas ignora a lesividade de diversas condutas nocivas ao meio ambiente, ou mesmo nega seus efeitos mais óbvios, como também as pratica rotineiramente, fundamentando-se nos mais variados e incorretos motivos. É o clássico exemplo do jovem que, após ingerir sua bebida, joga a lata de alumínio na via urbana, afirmando estar “dando trabalho” aos funcionários públicos de limpeza. Eis a fluidez dos valores mais básicos!

De outro lado, o empresário também ignora, em seu cotidiano, a realidade da sociedade de riscos dos dias atuais. Ao assim proceder, descumpre inúmeras normas de proteção ambiental, aplicáveis na atividade comercial e industrial, buscando, com isso, poupar custos de produção e melhorar seu lucro final.

Não há, nesse cenário, como se alegar surpresa ou desconhecimento, quan-do da ocorrência de grandes desastres ambientais, como a recente tragédia em Mariana, na bacia hidrográfica do rio Doce, que foi tomada por tóxicos resíduos sólidos e hídricos, devido ao rompimento de uma barragem que – a despeito da permanente fiscalização e dos constantes clamores do Ministério Público e demais entidades responsáveis – demonstrou o inaceitável descaso dos seus pro-prietários, na previsão e contenção de riscos inerentes à atividade.

Riscos não previstos, perigos não evitados, conceitos fluidos relativizados e uma consciência muito mais exploratória do que ecologicamente planetária vêm, dia após dia, minando forças dos maiores defensores do desenvolvimen-to sustentável. Como exemplo, os tratados ambientais mostram-se como os de mais difícil implemento e execução prática.

Luís Paulo Sirvinskas (2017), a par dessa problemática, expressa certa pre-ferência pela superação dessa definição técnica, haja vista que “desenvolvimento provém da área da economia dominante. Já sustentabilidade provém da biologia.

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São expressões contraditórias e inconciliáveis” (p. 143). Como solução a essa dicotomia, o autor apresenta a superação da colisão com o incremento da sus-tentabilidade na própria cadeia da atividade econômica de base, ao narrar que:

Há quem entenda que a dicotomia desenvolvimento/preservação ambiental está

superada. Precisa-se, segundo estes críticos, conciliar sustentabilidade com tecno-

logia, em benefício do meio ambiente. Toda decisão (seja ela política, econômi-

ca ou social) deverá ter um viés ambiental. Assim, não devemos buscar mais a

conciliação ou a compatibilização do desenvolvimento econômico com proteção

ambiental. A questão ambiental deve ser integrante da decisão econômica, por

exemplo. Alguns doutrinadores denominam princípio da ubiquidade, ou seja,

o viés ambiental deve estar presente em todas as decisões humanas impactantes

(2017, p. 144) (grifos nossos).

Em síntese, não deve haver desenvolvimento econômico, se este não pos-suir em seu escopo a preocupação com a temática ambiental. A ideia é ousada, pois, de uma só vez, utiliza a fluidez dos conceitos da modernidade líquida em seu favor – relativizando os próprios padrões de processo econômico de obten-ção de capital, ao inovar o requisito da tutela ambiental em sua cadeia –, além de inibir, sem integralmente mitigar, os riscos vindouros da atividade industrial. Porém, é igualmente evidente que, sob as ‘amarras’ de obrigações ambientais diversas, o lucro da atividade industrial obterá resultados menores.

Em outra esteira, Edgar Morin propõe, como solução à demanda, a aceita-ção da solidariedade humana na temática ambiental, como alicerce do próprio convívio social, sob pena de estarmos todos fadados à agonia da extinção coleti-va. O sociólogo afirma que:

Todos os humanos estão ameaçados pela morte nuclear e a morte ecológica. To-

dos os humanos sofrem a situação agônica da transição do milênio. Precisamos

fundar a solidariedade humana não mais numa ilusória salvação terrestre,

mas na consciência de nossa perdição, na consciência de nossa pertença ao

complexo comum tecido pela era planetária, na consciência de nossos problemas

comuns de vida ou de morte, na consciência da situação agônica de nosso fim de

milênio (...) Somos solidários desse planeta, nossa vida está ligada à sua vida.

Devemos arrumá-lo ou morrer (2002, p. 186) (grifos nossos).

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Desse modo, tal solução alternativa vai mais a fundo, modificando o sus-tentáculo da própria semântica social, intrínseca à ideia de desenvolvimento sus-tentável. Isso porque, para sua execução, os fundamentos do regime capitalista precisam ser alterados. Para que a solidariedade humana seja adotada nas práti-cas econômicas, acima do lucro individual e da atividade comercial exploratória, deve sempre estar presente o foco na preservação ambiental.

Por conseguinte, a noção de mercado também seria afetada. À guisa de exemplo, na atualidade, aquele que descumpre normas ambientais costumase beneficiar economicamente disso, por ver-se livre de um leque de ‘burocracias’, ônus e deveres legais, que restringiriam sua atividade, a fim de que a sustentabi-lidade ambiental fosse, ao fim, assegurada.

Sob a ótica de Morin, a própria consciência humana, ainda muito influen-ciada pelas clássicas lições capitalistas do lucro como fim maior, deve evoluir para uma consciência planetária, banhada pela premissa da solidariedade, de modo a que não haja mais quem se beneficie de poluições, mas que todos se beneficiem conjuntamente e em solidariedade, ainda que em menor grau, a fim de que nosso planeta possa subsistir e ter sobrevida.

Há ainda outras teorias que buscam explicar a citada colisão, ora negando a possibilidade de coexistência dos dois elementos – desenvolvimento e susten-tabilidade –, ora buscando harmonizá-los. Fato é que, nos dias atuais, é utópico afirmar-se que alcançamos o grau esperado de miscigenação entre progresso e preservação ambiental. Afinal, como seria possível se concluir dessa forma, se mais de 5.200 (cinco mil e duzentas) espécies de animais encontram-se ameaça-das de extinção, com a perspectiva, assustadoramente tida como otimista, de um total de extinção de pelo menos 10 (dez) espécies da fauna mundial por ano? 4

Como igualmente defender-se que a sustentabilidade hoje seja uma preo-cupação do sistema capitalista de produção, se, a cada ano, segundo a Organiza-ção Mundial de Saúde, a poluição mata mais de 1,5 milhão de crianças ao redor do globo terrestre?

De fato, não é preciso expertise temática para que se note que não logramos ainda alcançar o apresentado por Sirvinskas, tendo em vista que o lucro – que ainda hoje legitima a ocorrência mínima de quaisquer despesas no processo de produção, o que, por certo, finda por incluir as de cunho ambiental –, elemento

4 Disponível em: <https://www.greenme.com.br/animais-em-extincao/2771-10-animais-em-extin-cao-que-podem-desaparecer-ainda-este-ano> Acesso em 28.9.2017.

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central e clássico do sistema capitalista, sobrepuja-se às preocupações com a saú-de ambiental do planeta. Em claras palavras, a sustentabilidade não apenas não se mostra componente do processo industrial e comercial, como também é vista, muitas vezes, como fator negativo a ser evitado nessas atividades.

Sem embargo, muito mais longe mostra-se estar da solidariedade ambien-tal global, rememorada por Morin, uma vez que, ao contrário do que deveria ser, os bônus são monopolizados, mas os ônus da exploração ambiental terminam sendo democratizados e distribuídos a toda a sociedade global, afetando, de for-ma mais intensa, as camadas mais pobres. Ironicamente, apenas a poluição, no resultado final de todo esse processo, termina por se tornar solidarizada entre os cidadãos mundiais.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, percebe-se que a temática alusiva ao desenvolvimento sustentável possui relevante reconhecimento, especialmente na academia e nos grandes centros jurídicos.

A princípio, nota-se que a ausência de limites sociais à atividade industrial marcou o surgimento do sistema capitalista, em vigor na atualidade. Em respos-ta ao antigo regime e muito influenciado pelo liberalismo econômico de Adam Smith – e sua mão invisível de mercado –, o modo capitalista ganhou força e elevou o lucro à finalidade central, propósito último deste, no mais das vezes obtido de forma individualizada.

Entretanto, na contemporaneidade, as práticas individuais exploratórias, não limitadas e incentivadas pelo crescente progresso da tecnologia e da ciên-cia, provocaram, como aponta Ulrich Beck, o surgimento de uma sociedade de riscos; não de riscos previsíveis e de fácil constatação, como os já existentes no contrato social das primeiras sociedades, mas de perigos destacadamente impre-visíveis, com efeitos aleatórios e de ampla escala mundial.

Outra marca da sociedade contemporânea se mostra na fluidez dos valores, princípios, instituições e conceitos, como demonstra Zygmunt Bauman. O so-ciólogo esclarece que essa modernidade líquida afeta, em último grau, definições antes aceitas como sólidas, gerando uma desagradável inconstância de valores,

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um descaso ou apatia com as consequências imprevisíveis e a agonia da incerte-za quanto a fatores da existência humana.

Tudo isso deságua na definição do princípio do desenvolvimento sustentá-vel. Isso porque, em tese, na sociedade delineada por Beck, os riscos instáveis e crescentes tornariam o referido desenvolvimento sustentável uma utopia, visto que, cada vez que fossem definidos seu conceito e sua abrangência, o surgimento de novos riscos, inerentes ao meio de produção capitalista e à crescente explora-ção econômica, levaria à defasagem da norma em voga.

Do mesmo modo, a liquidez da modernidade em que vivemos, marcada pela imprecisão de valores e ideais, daria margem, por um lado, à incerteza sobre o real conceito de sustentabilidade nos tempos modernos – especialmente pelo discurso, defendido por alguns atores do mercado, de que a sustentabilidade é, de fato, inimiga do crescimento econômico. Por outro lado, a mesma fluidez legitimaria que o princípio fosse mitigado e diminuído, ano após ano, a ponto de perder por completo sua essência e finalidade, tal como ocorre, em semelhança não meramente coincidente, com a diminuição anual de reservas ambientais e unidades de conservação, em detrimento da atividade agropastoril.

Além de toda essa problemática e a par de sua relevância teórica, sabida-mente inquestionável, a norma ainda sofre fortes críticas, seja pela aparente im-precisão de termos colidentes no mesmo ideário comum, seja pela fraquíssima efetividade, diante de seu desestímulo e descrédito por parte de grandes expoen-tes políticos e econômicos do planeta. Como consequência, caso não seja eleva-da à importância merecida e efetivada em todas as searas, inclusive dentro dos grandes salões industriais, a norma tende a se limitar ao campo das ideias, sem ter a força normativa e a coercitividade que lhe seriam necessárias.

Todavia, a especializada doutrina apresenta resoluções a tal inquietude, sem que, com isso, tenha-se que abdicar do princípio. A inclusão da preserva-ção ambiental no próprio processo capitalista de produção e a elaboração de uma consciência planetária, fincada na solidariedade humana ambiental, são exemplos que buscam responder ao problema, concretizando o ideário final da norma.

Se adicionada a variável ambiental aos processos de produção, como defen-de Sirvinskas, ou, indo mais além, caso incorporado o princípio do desenvolvi-mento sustentável à própria consciência planetária, como fim a ser alcançado em todas as atividades humanas, tais como as industriais e as econômicas, em ideia

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defendida por Morin, boa parte dos riscos ambientais da sociedade de riscos de Beck poderiam ser diminuídos e a fluidez da modernidade líquida de Bauman possuiria, pelo menos, uma base sólida: o compartilhamento solidário e mun-dial da preservação ambiental, como prioridade do cidadão planetário.

A bem da verdade, sabe-se que o ser humano ainda não está diante deste nível de maturidade e de cidadania planetária, necessário à efetivação de tais ideias. Porém, o desenvolvimento sustentável já representa uma força inibitória das mazelas ambientais, bem como uma premissa incentivadora do debate a res-peito de sua relevância.

Seu enfoque prestigia o desapego ao preconceito e à subvalorização do tema, cuja abrangência, na atualidade, apresenta forte semelhança com a ideia dos imperativos categóricos de Kant, ou seja, o meio ambiente não pode mais ser visto como um simples instrumento para se alcançar o lucro, mas, no âmago do desenvolvimento sustentável, como uma variável presente e relevante em todas as condutas humanas, visando-se a autopreservação.

A ideia se destaca, sem dúvida, como uma das últimas opções de resposta à mencionada autodestruição do ser humano, para que este aprenda a priorizar a tutela ambiental acima do lucro exploratório e, quiçá, logre êxito em preservar sua “única casa planetária”, antes de definitivamente perdê-la.

REFERÊNCIAS

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_________. O Mal estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

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A VISÃO DE NORBERTO BOBBIO NA SOLUÇÃO DE ANTINOMIAS ENTRE A LEI INDÍGENA E A LEI PÁTRIA

Carlos Antonio de Carvalho Mota Júnior1

Maria Nazareth Vasques Mota2

RESUMO: Desde o início da colonização do território brasileiro, surgi-ram as diferenças culturais entre os europeus e os indígenas, e com isso normas indígenas das mais diversas etnias passaram a entrar em conflito com normas “ocidentais” trazidas pelos colonos, gerando atrito e insegurança. A balança de força sempre esteve ao lado dos europeus e esta situação deu origem à sociedade brasileira contemporânea, mas no entanto, com a abertura constitucional para a pluralidade de povos e culturas (CF de 1988, Art. 231) as normas indígenas consuetudinárias passaram a ter relevância no contexto de proteção a cultura de comunidades e tribos tradicionais.

Norberto Bobbio estudou os sistemas jurídicos e propôs formas científicas de solução de conflitos entre suas normas, incluindo entre ordenamentos dife-rentes. O presente artigo irá investigar a solução apontada por Bobbio e verificar se se aplica ao problema de conflitos de normas tradicionais e ocidentais.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição Federal de 1988. Antinomias. Direito Indígena. Direito Consuetudinário. Norberto Bobbio.

ABSTRACT: Ever since the beginnings of the Brazilian territory´s coloni-sation, cultural divergences arose between europeans and indians, therefore in-dians of the many tribes and its policies got into conflict with “western” policies brought by the settlers, generating conflicts and insecurity. The balance of power has always been at the european´s advantage and this led to the origins of the contemporary Brazilian society, but with the constitutional opening to the diver-sity of peoples and cultures (Federal Constitution, article 231) the non-written

1 CARLOS ANTONIO DE CARVALHO MOTA JR. Mestre em Direito Ambiental – PPGDA/UEA, especialista em Direito Processual Civil/Ciesa. Advogado.

2 MARIA NAZARETH VASQUES MOTA. Doutora em Ciências Políticas – PUC/SP, mestre em Ciências Penais/Ucam–RJ, especialista em Direito Público e Privado – FGV/Isae/AM e em Direito Penal e Pro-cessual Penal − UFAM/AM.

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indigenouos policies gained importance in the context of the protection of the traditional tribes and communities culture.

Norberto Bobbio studied the judicial systems and scientifically developed methods for policy conflicts, including between different legal frameworks. The present article will investigate the solution found by Bobbio and verify if it cor-rectly applies to the problem of conflicts between western and tradicional norms.

KEYWORDS: Federal Constitution of 1988. Antinomies. Indigenous Law. Customary Law. Norberto Bobbio.

INTRODUÇÃO

É sabido que com a Constituição Federal de 1988 houve um reconheci-mento da pluralidade jurídica entre o povo ocidental e o indígena no território nacional, conforme abaixo transcrito:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e

tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,

competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens

(C.F., Art. 231).

No entanto, com o passar dos anos a situação de conflito no interior do País e problemas relacionados com o uso da terra e a convivência dos colonos brasileiros com os recentemente empoderados indígenas e comunidades tradi-cionais de modo algum arrefeceu, com demonstrações de problemas oriundos de dicotomias entre o direito indígena e o direito pátrio, motivo da relevância do presente trabalho.

Para citar alguns exemplos dos conflitos supramencionados, temos no Norte do Brasil, bloqueio noturno de estradas por parte de etnias indígenas em seus territórios versus o direito de ir e vir, objeto de ação judicial movida pelo Estado de Roraima; casos de substâncias ilícitas para a sociedade branca ao mes-mo tempo em que aceitas em sociedades silvícolas (e vice-versa); a questão da lei seca indígenas imposta pelos brancos, julgamentos indígenas e sua validade no direito ocidental; conflitos por terras etc.

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No caso de conflito entre norma indígena e norma pátria caberiam as solu-ções de antinomias propostas por Norberto Bobbio para se resolvê-las?

1.1 CONTEXTO DO NEOCONSTITUCIONALISMO SUL-AMERICANO E O BRASIL

O neoconstitucionalismo latino-americano é uma nova forma de se pen-sar o Estado, para se reconhecer os direitos daquela parte da população histo-ricamente sem acesso às decisões estatais, gerando Estados plurinacionais, em que as minorias são reconhecidas como sujeitos de direitos constitucionais. As Constituições da Venezuela (1999), do Equador (2008) e da Bolívia (2009) são expoentes do neoconstitucionalismo, pois procuram assegurar princípios axio-lógicos sobre normas e maior participação democrática, em contrapartida ao constitucionalismo clássico, nascido em meados do século XVIII, e associado à defesa das classes dominantes.

Como comparação, podemos citar o Art. 5 da Constituição Boliviana, que preconiza como idiomas oficiais o castelhano e todos as demais linguagens in-dígenas originárias, devendo todos os documentos oficiais serem redigidos em pelo menos dois idiomas. Já no Brasil consta que existem 274 idiomas falados atualmente (IBGE, 2010), no entanto nossa Constituição reconhece apenas o Português com idioma oficial (Art. 13, CF), um dos vários exemplos que de-monstram que, apesar de progressista quanto aos direitos indígenas, ainda não podemos ser considerados como um efetivo Estado Plurinacional, não obstante terem ocorrido avanços no sentido do seu reconhecimento.

Que sucedeu um anterior direito jus positivista, monista e centrado na ideia uma só nação, ideológica e historicamente perigosa para todos os povos indígenas (aniquilação cultural e conforme relatado em qualquer manual de História do Amazonas).

Tampouco a Constituição de 1988 foi posteriormente referendada direta-mente pelo povo, como é a tendência do neoconstitucionalismo, o qual pretende uma participação mais direta da população. Igualmente não temos cotas para congressistas que representem as diversas culturas que estão presentes no ter-ritório nacional, entre outros exemplos que demonstram ainda um atraso do Brasil no reconhecimento deste novo Direito, senão vejamos:

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A título exemplificativo, veja-se a Constituição da Bolívia (2009), em que há trata-

mento do direito indígena em 80 dos 411 artigos. Ressalte-se os seguintes direitos:

cotas para parlamentares que sejam oriundos dos povos indígenas; garantia de

propriedade exclusiva da terra, recursos hídricos e florestais pelas comunidades

indígenas; equivalência entre a justiça indígena e a justiça comum. Todas essas

alterações positivam os valores propostos pelo novo constitucionalismo: plura-

lidade, inclusão, participação efetiva e maior legitimidade da Constituição e da

norma jurídica (ALVES, 2012, p. 142).

2. TEORIA GERAL DO DIREITO DE NORBERTO BOBBIO

Conforme Norberto Bobbio, uma antinomia jurídica consiste em uma con-tradição real ou aparente entre normas, ou entre normas e princípios, contanto que pertençam a um mesmo ordenamento jurídico (ou ordenamentos interde-pendentes) e possuam o mesmo âmbito de validade. Verifica que a ocorrência de antinomias prejudica enormemente o sistema legal, posto que causa incerte-za, diferenças de interpretação e problemas de lógica em um sistema que deveria ser harmônico, para que se evite a insegurança jurídica, na visão do Mestre.

Em sua obra Teoria Geral do Direito, Norberto Bobbio considera que “o Direito não tolera antinomias”, informando que esta tradição vem do Direito Romano, desde as Constituições de Justiniano. Bobbio elenca, então, as três re-lações de incompatibilidade, a saber: a) entre uma norma que comanda e uma que proíbe (contrariedade); b) uma que comanda e uma que permite não fazer (contraditoriedade) e c) uma norma que proíba e uma que permita (contradi-toriedade).

Os conceitos de contrariedade e contraditoriedade diferenciam-se na me-dida que contrariedade é definida pela característica de refutação ou oposição e a contraditoriedade parece ser referente ao vocábulo “contraditório”, definido como o princípio constitucional de ampla defesa.

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3. TIPOS DE ANTINOMIA

Os tipo de antinomias são tratados no item 16 (p. 245). Norberto Bobbio explicita a necessidade de ambas as normas estarem presentes no mesmo or-denamento, no entanto, ele afirma que há a possibilidade de antinomia entre normas de ordenamentos diferentes, quando estes não guardam total indepen-dência um do outro, no entanto reserva este assunto para o úúltimo capítulo, onde trata das relações entre os ordenamentos.

Apenas abrindo um parênteses, na parte de relações entre ordenamentos no capítulo dedicado, Bobbio não citou diretamente os ordenamentos indígenas, no entanto, percebeu indiretamente a ascensão do direito destes, como incre-mento da adoção do chamado pluralismo institucional em países modernos; or-denamentos convivendo juntos em nações ou entre nações, distinguindo quatro tipos: ordenamentos acima, abaixo, ao lado e contra o Estado.

Cabe aqui questionar se as normas de Direito Consuetudinário Indígena no Brasil podem guardar antinomias com normas do direito pátrio, e com base na visão de Bobbio, como solucionar a questão.

De acordo com a sua visão, a partir da verificação da incompatibilidade de duas normas, que poderíamos ilustrar como uma norma indígena consuetudi-nária, e uma pátria, primeiramente deverá se estabelecer se o costume tem peso igual, inferior ou superior à da norma escrita. No caso do exemplo italiano que Bobbio se utiliza, o costume tem peso menor que o Direito escrito, então não há que se falar em costume ab-rogatório.

Já no ordenamento brasileiro, o Art. 49 da L.I.C.C. e o Art. 126 do CPP prescrevem o seguinte: "Art. 49 − Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito." [...] "Art. 126 − O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do Direito" (g. n.).

Conforme se denota dos artigos acima citados, normas costumeiras estão em segundo plano em nosso ordenamento, posto que somente aplicáveis em caso de omissão, lacuna ou obscuridade na lei. Então, no Brasil, assim como na Itália de Bobbio, o costume somente tem o condão de ser aplicado secundum e

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praeter legem, nunca contra legem, sendo esta a solução apresentada pelo reno-mado jurista.

Então ao menos teoricamente, na visão do renomado jurista, uma norma jurídica indígena não poderá prevalecer sobre uma norma jurídica escrita em nosso ordenamento, o que ficará resolvido em nosso ordenamento com o julga-mento da ação sobre o bloqueio noturno por imposição indígena na Br. 174 em trecho de reserva no Estado de Roraima.

Para o caso de ordenamentos onde o costume tem mais força, Bobbio lem-bra que pode ser adotado o critério cronológico ou o da especialidade, como era solucionado nos antigos direitos romano, inglês e medieval, onde ao costume era atribuído peso maior que o da lei, e a única forma de uma lei prevalecer sobre o costume seria por meio dos critérios mencionados.

Além do critério de as normas incompatíveis estarem no mesmo ordena-mento para ser considerada antinomia, Bobbio informa que ambas devem pos-suir o mesmo âmbito de validade, que segundo ele são os quatro, a seguir: a)Va-lidade Temporal; b)Validade Espacial; c)Validade Pessoal; d) Validade Material.

Sendo assim, caso duas normas incompatíveis pertencentes ao mesmo or-denamento coincidam em um ou mais dos quatro âmbitos acima, configurada está a antinomia. Com base nessas informações, Bobbio conceituou as antino-mias como : “(...) podemos definir a antinomia jurídica como aquela situação entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e com o mesmo âmbito de validade”.

Com base nos critérios acima elencados, Bobbio dividiu os tipos de antino-mia conforme o seu âmbito de validade. Iremos, a seguir, explicitar os tipos mais usuais de antinomias, no entendimento de Norberto Bobbio, utilizando-se dos exemplos demonstrados pelo Mestre:

a) A antinomia total-total é aquela em que as duas normas incompatíveis têm exatamente o mesmo âmbito de validade, e de forma alguma uma das nor-mas poderia ser aplicada sem que um conflito com a outra normal ocorra. Ex:

“É permitido aos adultos fumar das cinco às sete, na sala cinematográfica.” e “É proibido aos adultos fumar das cinco às sete, na sala cinematográfica.”

b) A antinomia parcial-parcial ocorre quando a antinomia entre duas nor-mas possui um âmbito de validade em parte igual e em parte diferente. Neste

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caso a antinomia subsiste somente para a parte em que se encontra o conflito, e que as normas possuem em comum. Ex:

“É proibido aos adultos fumar cachimbo e charutos, das cinco às sete, na sala cinematográfica.”, e

“É permitido aos adultos fumar charuto e cigarros, das cinco às sete, na sala cinematográfica.”

c) Já a antinomia total-parcial existe quando o âmbito de validade é seme-lhante, no entanto mais restrito, portanto Bobbio conclui que “seu âmbito de va-lidade é em parte igual, mas também em parte diferente em relação ao da outra”. Neste caso uma das normas guardaria antinomia total em relação à outra, e este guardaria antinomia parcial em relação à primeira. Ex:

“É proibido aos adultos fumar, das cinco às sete, na sala cinematográfica” e“É permitido aos adultos fumar cigarros, das cinco às sete, na sala cinema-

tográfica”.

O autor também ressalta a existência de outros tipos de antinomias, que no entanto não correspondem completamente ao conceito clássico, quais sejam, as antinomias impróprias, que consistem em: antinomias de princípio, antinomias teleológicas e as antinomias de valoração.

Bobbio considera que as antinomias de princípios, apesar de não serem antinomias clássicas, são causas geradoras de normas antinômicas, em ordena-mentos que celebram principiologias divergentes, exemplificado por ele com os institutos da segurança e da liberdade; quanto maior a dose do primeiro, acaba sacrificando-se o segundo, e vice-versa.

Em nosso ordenamento poderíamos citar como exemplo o princípio do direito à vida, previsto em nossa CF em seu Art. 5.º, caput, e as normas consue-tudinárias indígenas, focadas em outros princípios adaptados às suas realidades, que acabam por gerar uma aceitação da prática de infanticídio no interior das tribos e comunidades tradicionais indígenas, fazendo com que tal prática seja aceita principalmente em casos de deficiência física ou mental. Ou entre o direi-to à vida e a norma que permite a pena capital em caso de guerra (Art. 5.º, inciso XLVII, alínea “a”). E no caso de guerra entre tribos ou etnias indígenas?

As antinomias teleológicas ocorrem quando uma norma prescreve o meio para um fim, e outra prescreve o fim de forma a tornar impossível a realização

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das duas por uma falha na construção de mais harmonia entre ambas, o que Bobbio considerou mais uma lacuna do que uma antinomia propriamente dita.

Um exemplo de antinomia teleológica seria a citação por carta, posto que esta pode ser recebida por pessoa diversa da real destinatária da citação, não garantindo a finalidade da citação pessoal, posto que a pessoa que recebeu pode não informar àquela que se pretendía citar. Poderíamos citar normas da Funai que em tese desagradariam alguns líderes indígenas e agradariam a outros, nor-mas emitidas pelo órgão com a finalidade estatutária de defender seus direitos.

As antinomias de valoração demonstram inconsistências (não incompati-bilidades de per si) axiológicas dentro de um mesmo ordenamento, exemplifica-das pelo renomado estudioso com o Direito Penal, quando o legislador confere determinada sanção a um delito de gravidade inferior, e uma sanção mais leve para delito visivelmente mais grave, implicando em verdadeira injustiça.

Igualmente em nosso Direito Penal podem ser encontradas antinomias de valoração, podendo ser citado o exemplo do crime previsto do Art. 159, § 2.º do CP, qual seja, extorsão mediante sequestro, se do fato resulta lesão corporal de natureza grave, apenado com 16 a 24 anos, perfazendo média maior do que o crime de homicídio, cuja pena prevista é reclusão de 6 a 20 anos.

No caso de dicotomias entre o Direito pátrio e o Direito indígena, em que um aceita a pena capital e outro não, a prática de infanticídio e penas conside-radas degradantes por uma ou outra sociedade configuram dicotomias axioló-gicas, pois todos eles por definição ferem outros direitos fundamentais como o direito à vida ou o princípio da dignidade humana.

As antinomias também podem ser divididas entre reais ou aparentes, sen-do que no caso da primeira ocorre uma contradição ou incompatibilidade que não tem solução, conforme as regras do próprio ordenamento onde estão inseri-das (antinomia no mesmo Código).

Em uma antinomia real, não existe solução oferecida pelo ordenamento pois os três critérios de cronologia, hierarquia e especialidade são insuficientes para a sua devida e definitiva solução, e quando o Poder Judiciário resolve o pro-blema casuisticamente, apenas o faz de forma pontual, sem que a antinomia real tenha sido eliminada do sistema.

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4. CRITÉRIOS PARA A SOLUÇÃO DE ANTINOMIAS APARENTES

Critério Cronológico: com base no brocardo em latim Lex posterior dero-gat legi priori, pode-se utilizar o tempo cronológico para se resolver antinomias. Sendo assim, a lei mais recente prevaleceria sobre a mais anterior. Assim, o Di-reito acompanha a evolução da sociedade, evitando ficar estanque no tempo.

Critério Hierárquico: de acordo com este critério, deverá ser observada a hierarquia entre as normas em um conflito para se solucionar uma antinomia. Por exemplo, entre uma norma constitucional e uma infraconstitucional, ou en-tre uma lei e um decreto. Neste caso a lei de mais alta hierarquia sempre prevale-cerá sobre a inferior. O brocardo em latim neste caso é Lex superior derogat legi inferiori.

Critério da Especificidade: neste critério a lei dedicada a um assunto es-pecífico derrogaria a que trata de assunto mais geral. Lex specialis derogat legi generali.

Continuando, as antinomias aparentes podem ser resolvidas pelo operador do Direito de forma interpretativa, utilizando-se de critérios lógicos, doutriná-rios ou normativos para resolvê-la.

5. CRITÉRIOS PARA SOLUÇÃO DE ANTINOMIAS REAIS (SOLUÇÃO SOMENTE DISPONÍVEL CASUISTICAMENTE)

O Autor apresenta três caminhos para o operador do direito em caso de antinomias reais, quais sejam, a eliminação de uma das normas a eliminação de ambas (interpretações ab-rogantes); ou a manutenção de ambas.

Interpretação corretiva: quando o efeito é de eliminação parcial de uma norma, não chegando a ser uma interpretação ab-rogante total. Bobbio assevera que, apesar de o Juiz ou o operador do direito poder afastar uma ou ambas as normas, não tem como as expelir do sistema, não ocorrendo uma ab-rogação propriamente dita.

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6. CONFLITOS DE CRITÉRIOS

Avançando no estudo das antinomias, Bobbio traz à baila as antinomias de segundo grau. Estas consistem não em incompatibilidade entre normas, mas entre critérios para a solução. Os três critérios estudados (o cronológico, o hie-rárquico e o especial) podem levar a soluções contraditórias, levando ao conflito de critérios, que são três:

Conflito dos critérios Cronológico e Hierárquico: neste caso, a lei nova está em contradição com a lei mais antiga, que no entanto é de hierarquia superior. A solução apresentada pelo autor é sólida, no sentido de que sempre prevalecerá o critério hierárquico sobre o cronológico, sob pena de se invalidar a própria hierarquia das normas.

O conflito dos critérios Cronológico e da Especialidade. Nesse caso, Bob-bio entende não haver solução perfeita, mas admite existir a tendência da lei anterior-especial prevalecer sobre a posterior-geral.

O conflito entre os critérios da Hierarquia e da Especialidade. O autor de-monstra que nos dois casos anteriores, o princípio cronológico tem menor peso. No caso em tela, no entanto, ele assevera que a decisão fica inteiramente a car-go do intérprete, posto que impossível a determinação de uma regra geral. Mas alerta para a possibilidade de uma norma inferior prevalecer sobre uma consti-tucional, por exemplo, o que seria um grave acontecimento, mas difícil de evitar face à rápida transformação das sociedades.

CONCLUSÃO

Bobbio oferece uma solução jurídica, que, teoricamente, pode ser utilizada na solução de conflitos entre o Direito ocidental e o indígena. Ressalte-se que a solução oferecida não consiste em uma entronização do Direito positivo ante ao consuetudinário, pois prevê pesos diferentes conforme o ordenamento.

Mas, ao analisar-se a legislação pátria, descobrimos fundamentos de que o Direito Indígena (e consuetudinário por excelência em nosso país) fica em segundo plano, pelo menos sob a ótica do próprio Direito pátrio. Não deixa de ser previsível a declaração, por parte de um sistema de direito, sobre a sua preva-

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lência sobre todos os outros. Será que encontraríamos normas indígenas, apre-goando também sua superioridade sobre todos outros ordenamentos?

A solução de Bobbio guarda consonância com a proibição de atos atentató-rios contra direitos fundamentais. É sabido da prática de infanticídio no interior da floresta amazônica, por exemplo. A solução de conflitos com base na visão de Norberto Bobbio não iria permitir o ato, posto que, apesar de a cultura ancestral estar aqui há mais tempo, a sociedade ocidental entende que alguns direitos são devidos a todos os seres humanos não importando sua etnia ou credo, direitos estes como o direito à vida. Caberia aqui uma crítica a esta mesma sociedade, que tem como punição prevista a capital, que fere o direito à vida.

A sociedade brasileira colhe hoje os frutos de eras de subjugação dos povos indígenas, posto que, em busca de uma justiça histórica, procurou reaver as ter-ras destas pessoas cujos ancestrais foram espoliados, escravizados e extermina-dos. Essa reposição do status quo vem vindo a passos lentos, desde a criação do SPI depois da Funai, com a alteração na forma de relação da sociedade “branca” com os povos da floresta.

Primeiramente, o Estado procurava contatá-los com fins de integração, posto que deveriam também os índios gozar dos benefícios da “sociedade de-senvolvida”, com resultados desastrosos como a proliferação de doenças nas al-deias, o empobrecimento dos indígenas, que passaram a depender do Estado, e a alocação destes nos estratos mais inferiores da sociedade. No final do século XX, sob a tutela do sertanista Sidney Possuelo (que chegou a exercer a presidência da Funai), a política de não-contato foi estabelecida e agora etnias são monitoradas à distância, sem qualquer ingerência no seu estilo de vida.

O restabelecimento dos índios em suas terras e a proteção legal do seu es-tilo de vida não veio sem reclamações de outros setores da sociedade, que bus-cam mitigar os seus direitos. As duas últimas administrações federais avançaram pouco na demarcação de terras, investindo em projetos grandiosos na Amazô-nia, que estão deslocando comunidades tradicionais e criando cidades aonde somente havia a floresta, e com isso ocasionando grandes fluxos de imigração de trabalhadores.

Temos no Congresso algo como uma bancada agrária que defende inte-resses corporativos agrários em detrimento de comunidades tradicionais, o que seria democrático se as comunidades tradicionais e os índios dispusessem de assentos permanentes no Congresso Nacional, afinal foram eles os primeiros

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brasileiros e hoje são uma minoria sem potencial demográfico para colocar re-presentantes pelos modos eletivos adotados atualmente.

Outras medidas recentes, mitigadoras dos direito indígenas, seriam as con-dicionantes para o exercício de seus direitos constitucionais, colocadas pelo STF em verdadeira atividade legislativa de um Tribunal Superior.

Somente um índio chegou a deputado no Brasil, o cacique Juruna, em toda a história política brasileira desde o descobrimento, sem no entanto ficar livre de chacotas por parte da imprensa, que costumava ridicularizá-lo.

Os problemas gerados pelas incompatibilidades entre a sociedade moder-na e a tradicional ainda estão muito longe de serem resolvidos, gerando maiores danos para as minorias, como índios e ribeirinhos. Na ausência de ações mais efetivas por parte do Estado, a lei do mais forte continua a viger.

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Este livro foi impresso em Manaus, em dezembro de 2018. O projeto gráfico – miolo e capa – foi

feito pela Editora Valer.

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