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  • Universidade de So Paulo- USP

    Programa de Ps Graduao em Cincia Ambiental - PROCAM

    Comitiva de boiadeiros no Pantanal Sul-Mato-Grossense: modo de vida e leitura da paisagem

    Fig. 1 - Sr. Z Preto atravessando a boiada no rio Cerradinho. Abobral. Acompanhamento segunda Comitiva.

    Maria Olivia Ferreira Leite

    So Paulo, 2010

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    MARIA OLIVIA FERREIRA LEITE

    COMITIVA DE BOIADEIROS NO PANTANAL SUL-MATO-GROSSENSE:

    modo de vida e leitura da paisagem

    v. 1

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Cincia Ambiental (PROCAM) da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo

    de Mestre em Cincia Ambiental.

    Orientadora: Profa. Dra. Sueli Angelo Furlan

    So Paulo, 2010

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    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE

    TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA

    FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

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    FOLHA DE APROVAO

    Maria Olivia Ferreira Leite

    Comitiva de boiadeiros no Pantanal Sul-Mato-Grossense: modo de vida e leitura da paisagem.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Cincia Ambiental da Universidade de So Paulo

    para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Ambiental

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ________________________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ________________________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ________________________________ Assinatura: __________________

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    Aos boiadeiros do Pantanal,

    que tanto me inspiraram no trajeto desta pesquisa,

    por sua beleza, sabedoria e coragem.

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    AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao no poderia ter sido realizada sem a contribuio dos boiadeiros. Portanto,

    primeiramente, quero agradecer a todos estes por compartilharem suas histrias e

    conhecimentos, em especial ao v Alfredo e Ramon Miranda. Do mesmo modo, foram

    essenciais as colaboraes dos entrevistados Juarez, Jos Aparecido (Barriga), Sr. Sebastio

    Rolon e Lus Martins (Bigu). Ao Sr. Oscar (Seu Z Preto), que sempre foi disposto a

    colaborar.

    Pousada Xaras e a Fazenda Nossa Senhora do Carmo pelo apoio durante todo o trajeto

    desta pesquisa e tambm, por me possibilitarem participar de uma Comitiva. Ao

    Hidephotgraphy, especialmente ao fotgrafo Csaba pelas timas fotos fornecidas.

    Ao casal Dona Edite e Sr. Wilson e Pousada Caiman, em especial, Csar e Lousiane, pelo

    carinho e autorizao para o acompanhamento das Comitivas.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Ambiental PROCAM, pela oportunidade

    do curso de mestrado, especialmente, ao secretrio Luciano e Priscila, pelas gentilezas e

    apoio prestado, que foram alm de suas obrigaes. Ao Departamento de Geografia pelo

    solicto atendimento.

    Ao Programa de Apoio Ps-Graduao PROAP da Coordenao de Aperfeioamento

    de Pessoal de Nvel Superior Capes, pela concesso de bolsa auxlio para a realizao dos

    trabalhos de campo.

    A minha orientadora Profa. Sueli Angelo Furlan, por ter acreditado na minha capacidade

    e pelas suas fundamentais contribuies. Aos professores Wagner Ribeiro, Prof. Antnio

    Carlos Diegues, e em especial ao Prof. Euler Sandeville, por compartilharem seu

    conhecimento e tambm pelas orientaes preciosas ao desenvolvimento deste estudo.

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    Aos colegas da USP, especialmente a Juliana Moreno, que se mostrou to disposta a

    contribuir com leituras, sugestes, edio e ainda escutar minhas angstias. Ao seu esposo

    Fbio, por tambm ter colaborado.

    A Profa. Albana Nogueira e ao Prof. Erom Brum por terem me recebido de braos abertos e

    compartilharem seus conhecimentos sobre a cultura pantaneira.

    Ao Schumacher College por conceder-me uma bolsa de estudos integral para o curso

    Indigenous peoples & the natural world: Is ancient wisdom important to the modern

    world?. A participao neste curso no s transformou este trabalho, mas tambm promoveu

    uma rica experincia de vida.

    minha me Teca, peo desculpas pelas ausncias e agradeo por estar sempre ao meu

    lado. A senhora um exemplo para mim!

    Ao Joo Simas, pelo companheirismo, pacincia, e por tanto me ensinar acerca de sua

    vivncia pantaneira!

    Aos meus familiares, que tanto me apoiaram e aconselharam nos momentos mais difceis,

    minha irm Denise, Tia Neidinha, Tia Cida, Tio Zezinho, Tia Maria do Carmo, Telma, Pri,

    Flavinha. Em especial, aos primos Raquel e Benardo pelas orientaes, Bia, pelo amor com

    que sempre me hospedou em So Paulo, ainda me ajudando com correes no texto e Ana

    Maria pelas correes do resumo em ingls.

    Aos amigos que me incentivaram e me aconselharam em diversos momentos, Marcel, Beth,

    ao casal Patrcia e Arnaud. Ao Thiago e Mari, pelas lindas fotos cedidas.

    A Alessandra Fontana, que caminhou comigo durante todo o mestrado, alm de contribuir

    com correes textuais. sua me Vera, que tambm me hospedou carinhosamente.

    No tenho palavras para agradecer todos vocs, mas os agradecimentos so de corao!

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    Para ser grande, s inteiro: nada

    Teu exagera ou exclui

    S todo em cada coisa. Pe quanto s

    No mnimo que fazes.

    Assim em cada lago a lua toda

    Brilha, porque alta vive.

    Fernando Pessoa.

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    RESUMO

    Esta dissertao aborda o modo de vida e a leitura da paisagem dos boiadeiros no Complexo

    Pantanal Sul-Mato-Grossense. Os boiadeiros representam parte dos trabalhadores da pecuria,

    uma importante atividade econmica nesta regio. Montados em burros, atravessam diversas

    paisagens viajando at meses, conduzindo grande quantidade de gado pertencente a

    pecuaristas. Devido escassez de material disponvel na literatura foram coletados relatos,

    principalmente, de entrevistas com interlocutores locais, suas histrias de vida e atravs do

    acompanhamento presencial de Comitivas de boiadeiros. Para compreenso do tema adotou-

    se a concepo de paisagem como lugar no contexto de populaes tradicionais, considerando

    o significado dado pelas experincias vividas e representaes simblicas. A descrio

    contextualizada de Geertz (1989) trouxe contribuies metodolgicas para fundamentar o

    trabalho de campo e auxiliar na interpretao dos dados. Deste modo, buscou-se esboar o

    universo cultural do boiadeiro, descrevendo a estrutura e o cotidiano desta atividade, que

    segue o ritmo das guas do Pantanal, estabelecendo as fases de enchentes, cheias, vazantes e

    estiagens. Alm disto, por meio de relatos de boiadeiros foram elaborados mapas de alguns

    dos roteiros destas viagens, identificando-se os marcos referenciais da paisagem cultural e um

    matiz de linguagens como estratgias de orientao. A interpretao de dados proporcionou

    uma discusso sobre as contradies e adaptaes no modo de vida dos boiadeiros frente s

    mudanas econmicas e sociais, reconhecendo sua persistncia, singularidade e complexidade

    como um conhecimento extreitamente integrado s paisagens pantaneiras. As reflexes nesta

    pesquisa pretendem apontar uma diferente perspectiva, de acordo com a importncia do valor

    cultural dos boiadeiros pantaneiros.

    Palavras - Chaves: Comitiva de boiadeiros; Pantanal; leitura da paisagem; populaes

    tradicionais; modo de vida.

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    ABSTRACT

    This dissertation discusses the way of life and the landscape reading of cattle drovers in the

    South-Mato-Grosso Pantanal Complex. The drovers represent part of the workforce in the

    cattle raising, which is an important economic activity in this region. Mounted on donkeys,

    they cross different landscapes, traveling even for months and driving a large number of herds

    owned by ranchers. Due to the scarcity of available research material in literature, data was

    collected mainly from interviews with local counterparts about their life stories and through

    the monitoring of cattle drovers grouped together. To comprehend the theme, it was adopted

    the landscape conception as a place in the context of traditional people, taking into

    consideration the meaning given by life experiences and symbolic representations. The

    contextual description of Geertz (1989) brought methodological contributions to support the

    field work and to assist in data interpretation. Thus, we attempted to sketch the cultural

    universe of the drovers, describing the structure and daily life of this activity, which follows

    the rhythm of the Pantanal waters, establishing the stages of rising waters, floods, receding

    waters and droughts. Moreover, maps of some itineraries of these trips were drawn through

    drovers reports, identifying the landmarks and a tinge of languages as strategic orientation.

    The data interpretation provided a discussion about the contradictions and changes in the way

    of life of drovers once facing economic and social changes, recognizing its persistence,

    uniqueness and complexity as a closely integrated knowledge to the Pantanal landscapes. The

    reflections in this research intend to target a different perspective, according to the importance

    of the cultural value of the Pantanal drovers.

    Key-words: Cattle drovers, Pantanal, reading landscape, traditional people, way of life.

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    LISTA DE FIGURAS1

    Fig. 1 - Sr. Z Preto atravessando a boiada no rio Cerradinho. Abobral. Acompanhamento

    segunda Comitiva. ...................................................................................................................... 1 Fig. 2 - V Olvia, eu e minha irm Denise ( direita). ............................................................ 25

    Fig. 3 - Fazenda Sanharo (avs maternos). ............................................................................. 25 Fig. 4- V Baslio, minha irm Denise e prima Telma ( direita). ........................................... 25 Fig. 5 - Refgio Ecolgico Caiman. Miranda-MS. (Fonte: Refgio Ecolgico Caiman). ....... 27 Fig. 6 - Trabalhando como guia (de costas, explicando sobre a palmeira Acuri): Trilha

    Cordilheira do X. ...................................................................................................................... 27

    Fig. 7- Trabalhando como guia (em p, prxima a baa), informando sobre o passeio de canoa.

    .................................................................................................................................................. 27 Fig. 8 - Sada da Comitiva na Fazenda Caiman. Primeiro acompanhamento presencial de uma

    Comitiva de boiadeiros (ao meu lado direito est o Condutor Sr. Ramon Miranda, logo atrs

    est o seu pai, Sr. Alfredo, e ao fundo esto os Meeiros, Fiadores e um acompanhador do

    Retiro Santa Via, Fazenda Caiman). ...................................................................................... 27 Fig. 9 Ciclo das guas e boiadeiros no Pantanal-MS. ( esquerda seguindo o sentido da seta: 1. Enchente: Ponte sobre o Rio Miranda. Segunda Comitiva. 2.Cheia: Travessia Rio

    Cerradinho. Segunda Comitiva. 3. Vazante: Ponteiro Morcego. Primeira Comitiva. 4. Seca:

    Sada de Comitiva da Fazenda Ftima). Montagem das fotos: Juliana Moreno. ..................... 37 Fig. 10 - Observao participante (primeira comitiva). minha esquerda, os boiadeiros V

    Alfredo, Ramon, Morcego e Zumba. ........................................................................................ 63

    Fig. 11- minha esquerda, Zumba e direita Morcego, com berrante. Primeira Comitiva. .. 64 Fig. 12 - Sapo, minha montaria. Terceira Comitiva. ................................................................ 65

    Fig. 13 - Sr. Alfredo Miranda, pai de Ramon ........................................................................... 68 Fig. 14 - Cozinheiro annimo seguindo viagem. Faz. Nossa Sra do Carmo. ........................... 68

    Fig. 15 - Sr. Z Preto trabalhando na estao da cheia. Fonte: Pousada Xaras. ..................... 69 Fig. 16 Juarez Rodrigues da Silva. ........................................................................................ 71 Fig. 17 Sebastio Rolon ......................................................................................................... 71 Fig. 18 Luis Martins (Bigu) ................................................................................................. 71 Fig.19-Jos Aparecido F. da Silva (Barriga). Fonte: Pousada Xaras. .................................... 71 Fig. 20. Quadro Colaboradores. ............................................................................................... 71 Fig. 21 - Comitiva da Fazenda Redeno no ponto de pouso da Fazenda Nossa Senhora do

    Carmo. ...................................................................................................................................... 75 Fig. 22 - Rdio em ponto de parada, na Comitiva da Fazenda Redeno. ............................... 83

    Fig. 23 - Juarez. Fonte: Mari Baldissera. .................................................................................. 84

    Fig. 24 - Seu Z Preto tomando terer. ..................................................................................... 85

    Fig. 25- Bomba ......................................................................................................................... 85 Fig. 26 - Guampa e bomba amarradas a traia. ......................................................................... 85 Fig. 27 - Sr. Jair (Beto Carreiro), Wilson e Barba tomando terer durante a marcha. ............. 86 Fig. 28 - Isopor (apelido). Detalhe do chapu enfeitado com lacres de latas de alumnio. .... 87 Fig. 29 - Sr. Z Preto trabalhando com o couro de vaca para uso na prpria tralha. Fonte:

    Pousada Xaras. ........................................................................................................................ 88 Fig. 30 Ramon. Detalhe para acessrios. Fonte: Thiago Rocha. ........................................... 88 Fig. 31 - Boiadeiro annimo. Ponto de pouso, fazenda Nossa Senhora do Carmo. ................. 89 Fig. 32 - Ponteiro Lus com o arreiador, surrando o animal. (terceira Comitiva)................. 89 Fig. 33 Uso do reio por Ramon Miranda. Fonte: Thiago Rocha ........................................... 90

    1 As fotos que no possuem fonte so de autoria da pesquisadora.

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    Fig. 34- Sada da terceira Comitiva. Cozinheiro e tropa cargueira passando frente da boiada.

    .................................................................................................................................................. 93 Fig. 35- Sr. Geraldo dirigindo trator at o local de sada da primeira Comitiva acompanhada.

    Zumba (boiadiero) direita. ..................................................................................................... 97 Fig. 36 - Simulao das funes dos boiadeiros em Comitiva. .............................................. 102 Fig. 37- Ponteiro Lus tocando o berrante. ............................................................................. 104

    Fig. 38. Ponteiro Morcego na Comitiva Fazenda Caiman ( 2005). Fonte: Thiago Rocha. .... 104 Fig. 39 - Contagem de bois pelo Condutor. Terceira Comitiva. ............................................ 106 Fig. 40 Acompanhador de fazenda e Cozinheiro Dourado. ................................................ 109 Fig. 41 - Cozinheiro Dourado encilhando burro cargueiro (bruacas em baixo, dobros

    dispostos sobre a mesma e lona para cobri-los). .................................................................... 110

    Fig. 42- Burro cargueiro encilhado. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha. ..................... 110

    Fig. 43- Mula cargueira encilhada. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha. ...................... 110 Fig. 44 Ponto de pouso Fazenda Buriti. Terceira Comitiva. ............................................... 110 Fig. 45 - Ponto de pouso. Redes armadas. Fonte: Csaba Gdny. ........................................ 111 Fig. 46. Tropa formada (em fila organizada) ..................................................................... 111 Fig. 47 Marcas dos boiadeiros em ponto de parada (cinzas e postes para redes). ............... 112 Fig. 48 - Cozinheiro e sua cozinha. Fonte: Csaba Gdny .................................................... 112 Fig. 49. Organizao da cozinha. Pesquisadora e Ramon Miranda. ...................................... 114 Fig. 50 Cozinheiro Gilberto preparando arroz carreteiro. Comitiva Caima. Fonte: Thiago Rocha (2005) .......................................................................................................................... 114 Fig. 51 Cozinheiro Gilberto preparando almoo. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha (2005) ..................................................................................................................................... 114

    Fig. 52- Organizao da cozinha. Panelas de comida sobre trempe e o fogo. Outros utenslios

    sobre pequena mesa de madeira. ............................................................................................ 116

    Fig. 53 - Bule de caf e coador. Panela com gua fervida, colher de concha e canecas de caf.

    ................................................................................................................................................ 116

    Fig.54- Latas d gua penduradas em figueira (Fcus sp), colheres de concha, caneca maior para pegar gua, menores para beb-la . ................................................................................ 116 Fig. 55 Poeira no estrado: terceira Comitiva. .................................................................... 120 Fig. 56 - Estouro de boiada na travessia do Rio Abobral. Comitiva da Nossa Senhora de

    Ftima. .................................................................................................................................... 121 Fig. 57 Amanhecer no ponto de pouso da fazenda Nossa Senhora do Carmo. Comitiva

    desconhecida. .......................................................................................................................... 125 Fig. 58. Canto de cerca. Fazenda So Bento. ......................................................................... 127 Fig. 59 - Porteira de varas. Fazenda Nossa Senhora do Carmo. ............................................ 128

    Fig. 60 Simbra. Fazenda Nossa Senhora do Carmo. ........................................................... 128 Fig. 61 - Porto. Fazenda Nossa Senhora do Carmo. ............................................................. 128

    Fig. 62 Mata- burro. Faz. Nossa Senhora do Carmo. .......................................................... 128 Fig. 63 Cocho. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ................................................................... 128 Fig. 64 Ponte sobre o Rio Abobral. Segunda Comitiva. Pousada Xaras. .......................... 129 Fig. 65 Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha. ................................................................ 129 Fig. 66. Poo na invernada Antena. Faz. Nossa Senhora do Carmo. Terceira Comitiva. ...... 129

    Fig. 67 Corredor Faz. So Bento. Regio Abobral. ............................................................. 130 Fig. 68 Aterro. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ................................................................... 130 Fig. 69 Boiadeira Central. Faz. So Carlos (seta branca indica estrada). ............................ 130 Fig. 70 Estrada dgua. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ..................................................... 131 Fig. 71. Batida de Boiada. Regio Abobral ............................................................................ 131 Fig. 72 Estrada de cascalho. Regio Nabileque................................................................... 131 Fig. 73. Magro (apelido) na Comitiva da Fazenda Caiman. Fonte: Thiago Rocha. ............... 132

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    Fig. 74 - Asfalto. BR164. Regio Nabileque. ......................................................................... 132

    Fig. 75 Marca de boiadeiro em rvore. ................................................................................ 135 Fig. 76 Escrito de boiadeiro em ponto de pouso. ................................................................ 135 Fig. 77Escrito boiadeiro em pouso. ...................................................................................... 135 Fig. 78 Restos de cinza em ponto de pouso. ........................................................................ 135 Fig. 79. Lixo em pontos de pouso (montagem). ..................................................................... 135

    Fig. 80 Rabo de burro (A. bicornis). Regio Abobral. ........................................................ 137 Fig. 81 - Pasto formado com humidcula. Regio do abobral. ............................................... 137 Fig. 82Carandazal (Copernicia Alba) ................................................................................... 137 Fig. 83 Estrada com mato fechado. Primeira Comitiva. Regio Aquidauana/ .................... 137 Fig. 84 Campina. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ............................................................... 138 Fig. 86 Cordilheira. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ........................................................... 138 Fig. 87 Capo. Refgio Ecolgico Caiman ......................................................................... 138 Fig. 88 Raque e pecolo de Acuri como espeto de churrasco. ............................................. 138 Fig. 85 - Campina ................................................................................................................... 138 Fig. 89- Fedegoso (Cassia occidentalis L.): ........................................................................... 139 Fig. 90- Erva de Santa Luzia (Euphorbia hirta L.): ............................................................... 139 Fig. 91- Cnfora (Bacopa monnierioides): ............................................................................ 139

    Fig. 92- Caramujo Aru .......................................................................................................... 139 Fig. 93- Tach ......................................................................................................................... 140

    Fig. 94- Saracura Trs- ........................................................................................................... 140 Fig.95- Bugio .......................................................................................................................... 140 Fig. 96- Tropa de burros (Equus asinus) ................................................................................ 140

    Fig. 97- Cupins ....................................................................................................................... 140 Fig. 98 Areio. Retiro Santo Onofre. Faz. Santa Filomena. ................................................ 142 Fig. 99 - Morro do Azeite. Fonte: Eric de Vito (2009). ......................................................... 142 Fig. 100 - Campo aberto. Estrada Parque. .............................................................................. 142

    Fig. 101 Bola p. Travessia boiada no rio Cerradinho. Segunda Comitiva. Fazenda Ftima. ................................................................................................................................................ 145 Fig. 102 - Vazante Cerradinho. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ............................................ 146

    Fig. 103 Rio Paraguai. Porto da Manga. Embarcadouro de gado. ...................................... 146 Fig. 104 - Corixo do inferno. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ............................................... 146 Fig. 105. Marcos Antonio Vaca (Babuno). Segunda Comitva. Carandazal. ......................... 153 Fig. 106 Orelhas do Sapo. Fazenda Santa Filomena. Segunda Comitiva. .......................... 166

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    MAPAS

    Mapa 1 - Sub- Regies ou pantanais do Pantanal: Bacia do Alto Paraguai no Brasil. Fonte: Silva; Abdon (1998). ................................................................................................................ 41

    Mapa 2 Mapa ilustrativo: Fazendas Pantanal- MS e roteiros das trs Comitivas acompanhadas. Fonte: EMBRAPA (modificado). ................................................................... 66

    Mapa 3 Mapa falado por Bigu (2009) do roteiro de Comitiva de Aquidauana a Fazenda Central. ................................................................................................................................... 126

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    TABELAS

    Tabela 1 - Acompanhamento de Comitivas ............................................................................. 65

    Tabela 2 Entrevistas............................................................................................................... 71 Tabela 3 - Simulao de custos para o comprador de gado na contratao do servio de uma

    Comitiva com durao de 11 marchas. ..................................................................................... 99

    Tabela 4 - Simulao de custos do Condutor pela prestao do servio de uma Comitiva de 11

    marchas. .................................................................................................................................. 100

    Tabela 5 - Marcos referenciais da paisagem: paisagens da fazenda....................................... 127

    Tabela 6 - Marcos referenciais na leitura da paisagem: marcas e escritos de boiadeiros. ...... 135

    Tabela 7 Marcos referenciais na leitura da paisagem: vegetao ........................................ 137 Tabela 8 Exemplos de plantas medicinais e formas de utilizao citadas pelos boiadeiros. ................................................................................................................................................ 139

    Tabela 9 Marcos Referenciais na leitura da paisagem: exemplos de animais ..................... 139 Tabela 10 Marcos referenciais na leitura da paisagem: solos e relevo ................................ 142 Tabela 11 Marcos referenciais na leitura da paisagem: paisagens aquticas ...................... 146 Tabela 12 Diferenas entre o ciclo das guas (cheia e seca) e seus significados para boiadeiros ............................................................................................................................... 147

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    SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 25

    Mundo vida: Um conto que eu conto .................................................................................... 25 Uma pesquisadora no ambiente de trabalho masculino ........................................................... 31

    Estrutura dos captulos ............................................................................................................. 34

    CAPTULO 1 O CAMINHO TRAADO NA PESQUISA ................................................. 37 1.1 Contextualizao do tema de estudo .................................................................................. 39

    1.1.1 O Pantanal ............................................................................................................... 39

    1.1.2 O homem pantaneiro e a pecuria ........................................................................... 43

    1.2 Marco conceitual: A interpretao da paisagem como lugar no contexto de populaes

    tradicionais ............................................................................................................................... 46

    1.2.1 Populaes tradicionais ........................................................................................... 55

    1.3 Trajetria Metodolgica ..................................................................................................... 59

    1.3.1 Os Colaboradores .................................................................................................... 68

    1.3.2 Construo dos Resultados ...................................................................................... 72

    CAPTULO 2. COMITIVA DE BOIADEIROS: MODO DE VIDA ...................................... 75

    2.1 Viajantes do estrado .......................................................................................................... 77

    2.2 Na batida das Comitivas de boiadeiros............................................................................... 93

    2.3 Puxando a boiada .............................................................................................................. 101

    CAPTULO 3 - COMITIVA PANTANEIRA: LEITURAS DAS PAISAGENS .................. 121

    3.1 Na batida do Estrado - marcos referenciais na paisagem ............................................... 124

    3.2 No ritmo das guas ........................................................................................................... 144

    CAPTULO 4: APROXIMAES PARA UMA CONCLUSO ........................................ 153

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 166

    APNDICE ............................................................................................................................ 169

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA ........................................................................................ 223

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    INTRODUO

    Mundo vida: Um conto que eu conto

    Faz-se necessrio, como parte da trajetria metodolgica2 escolhida para esta pesquisa,

    discorrer sobre as razes pessoais que motivaram este trabalho. Expor um pouco da minha

    histria de vida atravs de memrias, imaginao, percepes e antecipaes.

    Talvez a inspirao para esta pesquisa tenha se iniciado quando pequena no convvio

    com minha famlia materna, em uma fazenda na regio do Vale do Ribeira, Mata Atlntica,

    no municpio de Barra do Turvo, So Paulo (Fig.2, 3 e 4). Meus avs eram produtores rurais,

    meu av, mesmo analfabeto, negociava e viajava transportando gado e conduzindo porcos a

    p. Coisas vividas que contadas nos caminhos da pesquisa renderam boas risadas com alguns

    boiadeiros, pois no Pantanal so acostumados apenas a conduzir gado a cavalo. Tocar porco a

    p soa muito esquisito! Foram anos marcantes de minha vida, dos quais guardo lembranas e

    2 Ver mais em no item 1. 3, p. 59

    Fig. 2 - V Olvia, eu e

    minha irm Denise (

    direita).

    Fig. 3 - Fazenda Sanharo (avs maternos).

    Fig. 4- V Baslio, minha

    irm Denise e prima

    Telma ( direita).

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    ouo histrias contadas e re-contadas na famlia que aguam minha curiosidade at os dias de

    hoje sobre o modo de viver, sentir e trabalhar na pecuria e agricultura.

    Dessas vivncias, credito o surgimento do interesse pelo modo de vida rural e o

    interesse pela pesquisa da vida da gente do campo. Um pouco difcil, porm, tem sido

    relacionar emoo e razo ou corao e cientificidade. Desenvolver o mestrado para mim foi

    algo quase que visceral e apesar de haver tantas regras formais nessa trajetria, ainda acredito

    que no necessrio se perder a paixo. De qualquer forma, compreendo que h muita

    responsabilidade em escrever sobre outros modos de vida, outras vises de mundo, que so

    diferentes de minha experincia, portanto o cuidado cientfico proporcionou uma segurana

    necessria durante a elaborao deste trajeto acadmico.

    Este estudo a continuidade de uma experincia de pesquisa que realizei na monografia

    de concluso da graduao em Ecologia na Universidade Estadual de So Paulo (UNESP- Rio

    Claro) em 20023. Naquele momento, buscava compreender a relao entre homem e ambiente

    por meio do espao vivido por moradores limtrofes s reas naturais protegidas na regio do

    Vale do Ribeira, no mesmo municpio onde residiam meus avs maternos. Meu interesse foi

    buscar compreender como viviam populaes estreitamente dependentes dos ritmos da

    natureza, quais saberes ou conhecimentos emergiam dessa relao e como tm se mantido

    diante da realidade atual.

    Aps esta experincia com a pesquisa acadmica vivi uma curta experincia trabalhando

    em So Paulo, quando surgiu uma oportunidade para trabalhar como guia de ecoturismo em

    uma pousada no Pantanal (Refgio Ecolgico Caiman- Fig. 5, 6 e 7). A entrevista foi feita em

    So Paulo e acho que fiquei o tempo todo olhando e refletindo, de certo modo encantada com

    um quadro que mostrava a fotografia da pousada beira de uma baa imensa. Fui ao encontro

    3 LEITE, Maria Olivia Ferreira. Homem e ambiente: Um estudo sobre a compreenso de moradores do Vale do

    Ribeira-SP. Trabalho de Concluso de Curso, UNESP, Instituto de Biocincias, Rio Claro: maio, 2002.

    ilust. 5

  • 27

    da paisagem do quadro... Assim, pude apaixonar-me pelo Pantanal e aos poucos, aproximar-

    me do ritmo da regio, das estaes e da cultura pantaneira.

    Foi desta convivncia que surgiu a chance, em 2005, de acompanhar uma Comitiva de

    boiadeiros (Fig. 8), onde o intuito era o de transportar cerca de 500 vacas da Fazenda Estncia

    Caiman para outra fazenda, do mesmo proprietrio 4.

    Fig. 5 - Refgio Ecolgico

    Caiman. Miranda-MS. (Fonte:

    Refgio Ecolgico Caiman).

    Fig. 6 - Trabalhando como

    guia (de costas, explicando

    sobre a palmeira Acuri):

    Trilha Cordilheira do X.

    Fig. 7- Trabalhando como guia (em p,

    prxima a baa), informando sobre o

    passeio de canoa.

    Fig. 8 - Sada da Comitiva na Fazenda Caiman. Primeiro

    acompanhamento presencial de uma Comitiva de

    boiadeiros (ao meu lado direito est o Condutor Sr. Ramon

    Miranda, logo atrs est o seu pai, Sr. Alfredo, e ao fundo

    esto os Meeiros, Fiadores e um acompanhador do Retiro

    Santa Via, Fazenda Caiman).

    Acompanhei esta viagem durante

    quatro dias e quando retornei acabei

    escrevendo um pouco sobre minha

    experincia5, mais como uma primeira

    reflexo que queria partilhar.

    Naquele momento no havia

    intenes conceituais de pesquisa

    acadmica, porm, pouco tempo depois,

    conversando com uns amigos sobre meu entusiasmo com o trabalho das Comitivas,

    trouxeram-me uma reportagem, capa da revista Terra. O ttulo dizia: Pantaneiro, um ser em

    extino (FRUET, 2004). O senhor que aparecia na capa era o pai da pessoa que me

    mostrava. O que me chamou a ateno foi que, na mesma poca, em outra revista, li o

    comentrio de pesquisador do Grupo de Estudos de Agronegcios da UFMS (Universidade

    4 Apesar de esta oportunidade ter surgido atravs do trabalho como guia de ecoturismo, a Comitiva acompanhada

    no possua qualquer fim turstico. 5 Ver Apndice A.

    ilust. 8

  • 28

    Federal do Mato Grosso do Sul) afirmando que No h dados disponveis, mas as comitivas

    de boiadeiros esto diminuindo e, no futuro, deixaro de existir. (BRUM, 1998).

    Da em diante foram mais e mais investigaes, sempre constatando a falta de dados

    sobre os boiadeiros, principalmente, no que se refere s publicaes cientficas. E no

    obstante seja possvel encontrar pesquisas sobre modos de vida de pees de fazenda

    pantaneiros, com similaridades ao modo de vida dos boiadeiros, estes executam outros

    trabalhos e possuem costumes diferentes6.

    Como o boiadeiro costuma trabalhar informalmente (sem contrato de trabalho ou

    registro em carteira) e as Comitivas so itinerantes, difcil obter dados estatsticos sobre sua

    ocorrncia e, alm disto, no costumam ser foco das problemticas debatidas. Aparecem

    envolvidos em uma conjuntura econmica centralizada na discusso sobre o desenvolvimento

    da pecuria.

    Em uma pesquisa historiogrfica, onde foram analisadas as Comitivas de boiadeiros

    no Pantanal afirmou-se que, embora os boiadeiros ocupassem - e ainda ocupam - papel

    destacvel na introduo e expanso da pecuria, sua presena na histria precariamente

    tratada, as informaes so esparsas e pouco expressivas. O autor expe, retoricamente, que

    apesar de ser tema recorrente entre poesias e msicas, de forma indireta que a maior parte da

    bibliografia se apresenta: comum encontrar boiadas, no boiadeiros (LEITE, 2003).

    Estes dados chamam ateno por evidenciarem a escassez de dados disponveis, mas

    tambm se apresenta como assunto emergente devido ocorrncia de mudanas que podem

    acarretar na perda do conhecimento deste segmento culturalmente diferenciado das

    populaes tradicionais brasileiras. Acredita-se que o assunto pesquisado possui significativo

    valor no que diz respeito a uma forma de manejo7 exercida por um conhecimento tradicional,

    6 Ver mais detalhes sobre as similaridades e diferenas entre estes ofcios a seguir, no item 2.1, p.77.

    7 Nesta pesquisa, adotou-se o termo manejo como o conjunto de aes e estratgias que visam a produo

    pecuria, sendo considerado como umas destas formas, o transporte do gado pelas Comitivas de boiadeiros.

    Segundo Pott (1994 apud RODELA et al., 2007, p. 4188), os criadores pantaneiros manejam a utilizao dos

  • 29

    aplicado h centenas de anos, e que no Pantanal, devido a seu regime de alagamento , muitas

    vezes, a nica alternativa de transportar o gado de uma regio para outra.

    Em referncia importncia de pesquisas sobre populaes tradicionais e os motivos

    pelo quais devemos estar atentos a esse conhecimento, podemos citar Marques (1999, p. 141),

    que conclui sobre seus estudos referentes a populaes tradicionais:

    [...] o foco das minhas preocupaes, neste agora, concentra-se no fato de

    que esse conhecimento - chamemo-lo de nativo, tradicional, indgena ou

    como queiramos! existe, resiste e est ameaado. Esse conhecimento, alm de extremamente til, revela compatibilidade como a nossa ecologia - e no

    que ele no for compatvel, muitas vezes trata-se apenas de uma questo de

    incomensurabilidade. Pois bem, esse conhecimento pode desaparecer. (). Trata-se, na realidade, de um conjunto de sistemas de conhecimento

    altamente ameaado de extino e isto o que mais me preocupa.

    Em maro de 2007, acredito que devido, principalmente, ao enfoque desta pesquisa,

    ganhei uma bolsa de estudos para o curso de um ms em um colgio na Inglaterra

    Schumacher College8, cujo tema era Indigenous peoples & the natural world: Is ancient

    wisdom important to the modern world?. Participaram pessoas de diversos pases: ndia,

    Noruega, Austrlia, EUA, Alemanha, Blgica, Filipinas, entre outros. S a existncia deste

    curso e a representao de tantos pases, j remete a relevncia da discusso.

    Um dos palestrantes, fundador do Frum Social Mundial, Jerry Mander, colocou que

    embora a globalizao exera forte presso para homogeneizao do conhecimento, e o

    conhecimento indgena/tradicional9 signifique assim, uma viso atrasada na tica do

    capitalismo e at mesmo um impedimento ao progresso, ele afirma que a diversidade a

    chave da vitalidade, resilincia e capacidade inovativa de qualquer sistema vivo. Isto vale

    pastos nativos de duas formas. O gado permanece durante o ano todo (maior ocorrncia) ou o gado colocado somente na fase seca e retirado na iminncia da enchente. Para efetuar esta segunda forma de manejo, alguns

    criadores possuem duas propriedades, uma na plancie e outra na parte alta, podendo fazer manejo para

    contornar os perodos crticos de forragem. (...). O perodo da retirada do gado depende da durao e

    intensidade da inundao, varivel entre ano e local. Uma das formas de retirada deste gado, pode ser ento, por meio das Comitivas de boiadeiros, alm disto, as Comitivas tambm podem ocorrer quando h

    comercializao do gado e este precisa ser transportado. 8 Schumacher College, Totnes - Devon. (www.schumachercollege.org.uk).

    9 Nesta pesquisa, compreende-se o termo conhecimento indgena tambm como conhecimento tradicional, tal

    como foi utilizado durante o curso. Ver item 1.2.1, p. 55.

  • 30

    tambm para sociedades humanas (informao verbal)10

    . Ainda segundo, Cavanagh; Mander

    (2004, p. 89):

    The rich variety of human experience and potential is reflected in

    cultural diversity (grifo do autor), which provides a sort of cultural

    gene pool to spur innovation toward ever higher levels of social,

    intellectual, and spiritual accomplishment and creates a sense of

    identity, community, and meaning.11

    No caso, a cultura pantaneira e em particular as Comitivas de boiadeiros representam

    uma atividade em que se realiza o transporte de espcies exticas, o gado, inserida em

    determinadas paisagens12

    . Esto expostas as influncias do mundo exterior; mudanas

    ocorridas em seu meio, que podem alterar seus valores e atitudes e ao mesmo tempo,

    mudanas que podem advir do prprio homem, da sua criao, pois um ir e vir que faz do

    sujeito a sua existncia, estando no mundo e com o mundo.

    Compreende-se que estas relaes construdas entre homem e ambiente muitas vezes

    so contraditrias e exprimem prticas que podem tanto contribuir para conservao como

    degradar o meio em que vivemos. Admite-se ento, que h impactos ambientais gerados pela

    atividade pecuria, assim como pelo movimento destas boiadas, mesmo no Pantanal, onde h

    extensas reas de pastos nativos. Entretanto, nesta pesquisa no se pretende aprofundar sobre

    este tema, mas expor um pouco da complexidade do conhecimento dos boiadeiros que ocorre

    atravs do convvio com as paisagens pantaneiras.

    Face s diferentes vises do homem, se buscou inserir neste fenmeno e perceber uma

    forma de manejo tradicional, como prtica que est diretamente conectada ao ciclo das guas

    do Pantanal. Procurou-se descrever sobre o modo de vida dos boiadeiros e a estrutura desta

    atividade ligada a uma forma de leitura das diferentes paisagens do Pantanal, levando em conta

    a temporalidade dos acontecimentos e a dinmica da sociedade.

    10

    Informao fornecida por Jerry Mander durante o curso citado no texto, em 2007. 11

    A rica variedade de experincia e potencial humanos refletida na diversidade cultural (grifo do autor), que

    prev uma espcie de banco de genes culturais para estimular a inovao em direo a nveis cada vez maiores

    da vida social, intelectual, e realizao espiritual e cria um senso de identidade, comunidade, e significado.

    (Traduo livre da pesquisadora). 12

    Sobre paisagem, ver item 1.2, p.46.

  • 31

    O acolhimento deste projeto no Programa de Ps-Graduao em Cincia Ambiental

    (PROCAM) pode me auxiliar justamente na viso interdisciplinar de pesquisa que o

    entendimento deste tipo cultural o boiadeiro do pantanal poderia ter. Pela minha formao

    em ecologia e crescente interesse em cincias humanas, o dilogo entre esses campos foi

    favorvel ao tema pesquisado.

    Este trabalho era para ser fundamentado atravs do acompanhamento presencial de

    Comitivas, mas no segundo semestre de 2007 sofri um grave acidente a cavalo e tive que

    interromper meus estudos por um ano e meio. No incio do ano de 2009 renovei minha

    matrcula, mas por causa do meu estado de sade, infelizmente, no foi possvel acompanhar

    outras Comitivas, acarretando algumas alteraes nos objetivos iniciais da pesquisa.

    Uma pesquisadora no ambiente de trabalho masculino

    Quando recebi a sugesto do comit do PROCAM para escrever sobre o desafio da

    pesquisadora num contexto de pesquisa tipicamente masculino, apesar de saber da sua

    relevncia, senti-me um pouco constrangida. Talvez pelo respeito com que os boiadeiros

    sempre me trataram ou talvez mesmo pela curiosidade latente e decorrncia do trabalho, no

    havia parado para pensar sobre isso. Porm esta pergunta era recorrente quando expunha a

    pesquisa em diferentes mbitos acadmicos, afinal numa pesquisa com mtodos qualitativos e

    dialgicos, essa questo pode ter fundamento, uma vez que se considera que a

    intersubjetividade um assunto essencial.

    A questo central da pergunta era pertinente, principalmente no que se refere

    operacionalidade do acompanhamento das Comitivas e a interao/ tenso pesquisador,

  • 32

    pesquisado durante o convvio e entrevistas com os boiadeiros. Como seria pra eles relatar o

    que vivem ou sentem, para uma mulher, e como seria se o fosse para um homem?

    Acredito que por esta condio perdi algumas histrias e relatos, mas sei tambm que

    ganhei outros. O respeito que tive por eles foi sempre correspondido, e se em um primeiro

    momento eram mais fechados, no decorrer da Comitiva ou da entrevista ficavam cada mais

    familiarizados comigo e com meu compromisso de valorizar os saberes que relatavam,

    falando mais dos familiares e das dificuldades em suas vidas.

    Sempre muito cuidadosos, davam-me o burro mais manso da tropa para montar e

    mesmo tendo o hbito de revezar seus burros para descanso, no quiseram, em nenhum

    momento trocar minha montaria. Apesar de estar acostumada a encilhar cavalos, nas viagens

    eu somente os auxiliava, pois queriam encilhar os animais para que estes estivessem bem

    seguros. Na primeira Comitiva, este cuidado foi tanto, que preocupados que eu sentisse dor

    por permanecer tanto tempo sobre o cavalo e com a inteno de deixar meu arreio mais

    confortvel, ao invs de colocarem apenas um pelego13

    sobre o mesmo (como de costume),

    quiseram colocar dois e infelizmente o efeito foi o oposto. Ento, no ponto de almoo, pedi

    gentilmente para que retirassem um dos pelegos e mesmo no estando acostumada a andar o

    dia inteiro a cavalo, como andava com frequncia, fiquei cansada, mas no tive nenhuma

    indisposio fsica.

    Por eu querer conhecer um pouco de cada funo na Comitiva, procurei no concentrar

    a ateno em uma s pessoa, a no ser que fosse algum com mais experincia, mais velha,

    normalmente lder do grupo. Apenas durante a primeira Comitiva, no fui a nica mulher que

    estava viajando, pois uma amiga, Elizabeth Leite (Bete), que tambm trabalhava na Pousada

    Caiman, quis ir conosco e assim, pudemos compartilhar algumas situaes.

    13

    Pelego uma manta de l e arreio pode ser considerado como um tipo de cela.

  • 33

    Acabei por participar de poucas Comitivas, por motivos alheios a minha vontade e

    talvez, muito destes momentos tenham ocorrido com certa naturalidade por meu interesse

    nesta pesquisa ter surgido da relao com a experincia de meu av materno e por j conviver,

    um pouco com a cultura dos pees pantaneiros. No que se refere s relaes de classe, talvez

    por este motivo, tambm no senti que houvesse distanciamento ou diferenciao por ser

    pesquisadora. Na primeira Comitiva, realmente no estava nesta condio, mas mesmo

    durante as outras Comitivas, o que pude observar foi uma diferenciao cultural por ser de

    outro Estado, ou por ser da cidade, e em alguns momentos notei que buscavam explicar-se

    melhor para que eu pudesse compreend-los.

    Porm interessante colocar, que minha relao com os boiadeiros foi mais marcada

    pela relao de gnero. O trabalho que executam predominantemente ocupado pela mo de

    obra masculina14

    , e pode ser que pela falta de costume com a presena feminina neste

    ambiente, havia todo o tempo, um excesso de zlo e uma viso fragilizada da mulher. E

    assim, ficavam tambm surpresos por eu conseguir acompanh-los.

    Sobre questes mais difceis de compreender para quem no tem uma imagem sobre a

    vida dos boiadeiros gostaria de partilhar um pouco desta relao assimtrica e heterognea

    entre pesquisadora e pesquisados.

    Para dormir numa comitiva, como dormem todos juntos, em redes individuais, no

    houve nenhum problema e estranhamento, mas para necessidades fisiolgicas, como era ao ar

    livre, eu apenas esperava a Comitiva seguir, ficando para trs, buscando alguma moita e

    cuidando bem para meu burro no fugir! J para tomar banho, talvez tenha sido o momento

    mais delicado. Fui preparada, levando traje de banho discreto, para tomar banho com eles em

    algum aude, rio, ou onde quer em que houvesse gua disponvel. Mas percebi que eles no

    queriam que eu fosse junto, pediam sempre para que eu fosse antes, que assim seria melhor.

    14

    Oliveira (2004) e outras fontes orais tm conhecimento de apenas uma mulher que trabalhe em Comitivas. A

    mesma chama-se Mirela, Condutora e aprendeu a profisso com o prprio pai.

  • 34

    Por muitas vezes, tambm, quando estvamos chegando ao pouso, e se ocorria de estarmos

    prximos a alguma sede de fazenda, eles acabavam perguntando ao praieiro15

    se havia algum

    banheiro disponvel para banho, e antes mesmo de conversar comigo, j ficava tudo

    combinado.

    Procurei aceitar o que me estavam orientando, pois eles ficariam mais vontade e eu

    no os incomodaria. E assim, com cuidado, respeito e delicadeza, essas questes foram sendo

    resolvidas. Nos captulos que seguem, um pouco mais sobre o perfil destes homens ser

    relatado.

    Estrutura dos captulos

    Para organizao desta pesquisa, optou-se por divid-la em captulos. No primeiro

    captulo apresenta-se breve contextualizao do Pantanal e a formao do homem pantaneiro

    por meio da reviso da literatura sobre a regio de estudo. Para maior familiarizao ao

    assunto, foi feita uma introduo sobre estas paisagens relacionadas ao ciclo das guas, o que

    influencia diretamente na definio de roteiros das Comitivas. Em seguida, retratado, de

    forma sucinta, o processo de ocupao e a consolidao da pecuria no Pantanal.

    Ainda neste primeiro captulo, busca-se retratar o marco conceitual e o caminho

    traado neste estudo. O marco conceitual foi elaboradao a partir de uma abordagem sobre a

    interpretao cultural da paisagem como lugar no contexto de populaes tradicionais. J a

    15

    Pessoa que toma conta dos arredores prximos a sede da fazenda. Termo este, que conheo em So Paulo

    como caseiro. Segundo Banducci Junior (1995) o indivduo que realiza as tarefas ligadas praia, o terreno que

    circunda a casa grande, a diferena bsica que trabalha sem cavalo.

  • 35

    trajetria metodolgica se deu inicialmente, a partir de interrogaes16 voltadas aos sujeitos

    que vivenciam o fenmeno17

    , ou seja, os boiadeiros no Pantanal Sul Matogrosssense.

    Posteriormente, por meio de coletas de entrevistas, histrias de vida, acompanhamento

    presencial de Comitivas, estes dados foram sendo construdos, analisados e tematizados

    (captulos II, III, IV), compondo os elementos para buscar esboar o universo cultural do

    boiadeiro de acordo com o recorte ao que se pretendeu pesquisar, ou seja, sobre seu modo de

    vida e as leituras das paisagens pantaneiras.

    O segundo captulo: Comitiva de boiadeiros - modo de vida est dividido em trs

    subtemas. No primeiro, Viajantes do estrado foi feita uma descrio sobre o modo de ser

    boiadeiro. O segundo tema: Na batida das Comitivas de boiadeiros, trata-se de como

    ocorrem estas Comitivas, e o terceiro: Puxando a boiada, atenta-se para a diviso de ofcios

    nas Comitivas.

    No terceiro captulo: Comitiva pantaneira dada a descrio sobre a leitura da

    paisagem. A partir do tema: Na Batida do estrado: Marcos referenciais nas paisagens, so

    tratados os significados atribudos s paisagens pantaneiras. J no tema: No ritmo das guas,

    so abordados os significados dados s estaes sazonais, de acordo com a definio de

    trajetos nas Comitivas.

    No quarto captulo prope-se Aproximaes para uma concluso, incluindo algumas

    reflexes acerca dos dados reunidos, bem como a importncia e valorizao do conhecimento

    dos boiadeiros. Por ser um assunto identificado como recorrente, tambm se procurou tratar

    sobre quais motivos tm levado s transformaes recentes neste trabalho humano ou at

    mesmo o seu declnio, suas consequncias e contradies. No ltimo captulo esto

    apresentadas as consideraes finais, onde se procurou apontar as contribuies e limites

    deste trabalho, sugerindo novas linhas de pesquisa sobre o tema.

    16

    Interrogao sugere algo mais amplo. Ver item 1.3, p. 59. 17

    Ver definio de fenmeno na nota de rodap n 35, p. 54.

  • 36

    Todos estes temas e captulos se interpenetram, porm so focados em grandes reas,

    que procuram adentrar aos poucos ao mundo dos boiadeiros. Mundo este que se torna utpico

    a ser desvendado medida que se conhecem cada vez mais as habilidades exigidas para este

    trabalho e suas dificuldades, mas no menos passvel de apreender elementos que demonstrem

    uma relao de interdependncia entre homem e ambiente.

  • 37

    CAPTULO 1 O CAMINHO TRAADO NA PESQUISA

    No pantanal ningum pode passar a rgua. Sobre muito quando

    chove. A rgua existidura de limite. E o pantanal no tem limites.

    (...).

    O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai o garoto

    pelo piquete com olho de descobrir. Choveu tanto que h ruas de

    gua. Sem placas, sem nome, sem esquinas. (...).

    A pelagem do gado est limpa. A alma do fazendeiro est limpa.

    Manoel de Barros (1990: 237).

    Fig. 9 Ciclo das guas e boiadeiros no Pantanal-MS. ( esquerda seguindo o sentido da seta: 1. Enchente: Ponte sobre o Rio Miranda. Segunda Comitiva. 2.Cheia: Travessia Rio Cerradinho.

    Segunda Comitiva. 3. Vazante: Ponteiro Morcego. Primeira Comitiva. 4. Seca: Sada de Comitiva da

    Fazenda Ftima). Montagem das fotos: Juliana Moreno.

  • 38

  • 39

    1.1 Contextualizao do tema de estudo

    1.1.1 O Pantanal

    fundamental explanar sobre a dinmica complexa nas paisagens do Pantanal, para que

    tambm se desvele o modo de vida e a leitura da paisagem pelos boiadeiros, pois estes so

    assuntos considerados interdependentes. assim que afirma Proena (1997, p.72):

    No Pantanal tudo depende das guas. So elas que condicionam os

    diversos tipos de lida, levam o homem a ter necessidade de mudanas nas

    grandes enchentes, modificam os solos, obrigam certas aves a migrar para

    outros lugares do planeta, empurrando o gado para cima das cordilheiras,

    quebram a monotonia da plancie, ilhando muitas fazendas.

    O Pantanal a maior plancie inundvel do mundo. Sua rea total de 210.000 Km2,

    abrangendo o Brasil, a Bolvia e o Paraguai. Deste total, 138.183 Km2 esto no Brasil, ou seja,

    cerca de 70% ocorrem distribudos entre os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

    (ALHO; LACHER JUNIOR; GONCALVES, 1988). Neste ltimo Estado, presente rea de

    estudo, o Pantanal corresponde a 89.318 km 2, equivalendo a 64,64% da rea total do Pantanal

    no Brasil (ABDON e SILVA, 1998).

    Ab Saber (1988), discorre sobre a origem do Pantanal Matogrossense, propondo a

    teoria de que o que hoje uma depresso teria sido no passado uma vasta abbada de escudo,

    que funcionava como rea de fornecimento de materiais detrticos para as bacias sedimentares

    do Grupo Bauru (Alto Paran) e Parecis, formada at o Cretceo. Durante o soerguimento

    ps-cretceo teria ocorrido ento, uma desestabilizao tectnica, devido a falhamentos

    estruturais facilitando seu aplainamento e assim, comportando-se, como anticlinal esvaziada.

    Atualmente, o Pantanal Matogrossense se caracteriza por extensas plancies de acumulao de

    sedimentos fluviais.

  • 40

    A plancie pantaneira faz parte da Bacia do Alto Paraguai, que possui rea de 496.000

    km2, sendo ainda parte integrante da Bacia do Prata. Est sujeita a um regime das guas

    fortemente sazonal, com precipitao mdia de 1.396mm, variando entre 800 e 1.600 mm. A

    declividade dos rios de 0,1 a 0,3 m/km com um gradiente topogrfico de 0,3-0,5 m/km na

    direo leste-oeste e 0,03-0,15 m/km na direo norte-sul. As altitudes na plancie variam de

    80 a 150 metros (AGNCIA NACIONAL DAS GUAS, 2003).

    De acordo com a classificao de Keppen o tipo climtico desta regio Aw,

    apresentando dois perodos distintos: chuvoso (outubro a maro), quando ocorre cerca de 80%

    do total anual das chuvas e seco (abril a setembro). A temperatura mdia anual do ar de

    25,5 C, com mdias mnimas e mximas de 20C e 32C, respectivamente (SORIANO,

    2002).

    Existe um atraso de aproximadamente quatro meses entre o pico da cheia do norte e do

    sul do Pantanal, o que faz com que a estao seca vigore na poro norte do Pantanal

    enquanto o nvel das guas atinge seu pico na poro sul. Os nveis da gua no norte so

    extremamente variveis, subindo e descendo em resposta direta ao volume de chuvas. Os

    nveis da gua no sul, por outro lado, aumentam e diminuem mais suavemente ao longo dos

    anos, devido reteno natural da inundao que amortece as flutuaes causadas pelas

    chuvas intensas Heckman18

    (1999 apud HARRIS et al., 2005).

    Os perodos mais frios, bem como a durao da estiagem so diferentes e imprevisveis

    de ano em ano, resultando em fortes presses sobre as populaes animais e vegetais. Apesar

    disso, o solo hidromrfico e a forte inundao anual, que estende bastante dentro da seca,

    amenizam os efeitos dessas variaes, pelo menos para parte dessas populaes. (BROWN

    JUNIOR, 1984). Ou seja, enquanto algumas espcies se adaptam constante mudana e

    18

    HECKMAN, C.H. Geographical and climatic factors as determinants of the biotic differences between the

    northern and southern parts of the Pantanal Mato-grossense. In: SIMPSIO SOBRE RECURSOS NATURAIS

    E SCIO-ECONMICOS DO PANTANAL: MANEJO E CONSERVAO, 2., 1999, Corumb. Anais....

    Corumb: EMBRAPA PANTANAL, 1999, p. 167-175

  • 41

    sobrevivem s extremas condies, outras definem seus ciclos de vida de acordo com as

    estaes.

    Mapa 1 - Sub- Regies ou pantanais do Pantanal: Bacia do Alto Paraguai no Brasil. Fonte: Silva; Abdon (1998).

  • 42

    A vegetao heterognea e influenciada por quatro biomas: Floresta Amaznica,

    Cerrado (predominante), Chaco e Floresta Atlntica. Adamoli19

    (1981 apud HARRIS et al.,

    2005). Segundo Silva et al. 20

    (2000 apud HARRIS et al, 2005), um levantamento areo do

    Pantanal brasileiro identificou 16 classes de vegetao com base nas fitofisionomias, sendo os

    campos a fisionomia mais representativa (31%), seguida do cerrado (22%), cerrado (14%),

    campos inundveis (7%), floresta semidecdua (4%), mata de galeria (2,4%) e tapetes de

    vegetao flutuante ou baceiros (2,4%).

    devido a este mosaico de fisionomias vegetais que a regio considerada como

    Complexo Pantanal, sendo declarado Patrimnio Natural da Humanidade e Reserva da

    Biosfera (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS PARA A EDUCAO, A CINCIA E

    A CULTURA, 2009). Sua importncia tambm est estabelecida na Constituio brasileira, no

    artigo 225, 4, sendo reconhecido como Patrimnio Nacional.

    As principais razes pelas quais o Pantanal merece este reconhecimento internacional

    podem ser elencadas em: trata-se de um complexo de ecossistemas nicos no mundo; constitui

    o habitat de espcies animais e vegetais diversificadas, muitas delas consideradas raras e

    algumas em processo de extino; protegido nacionalmente; pertence e tem influncia sobre

    mais de um pas; revela em muitos aspectos uma sociodiversidade peculiar dada ao processo

    histrico de formao scio-espacial. Essa formao conhecida popularmente como a cultura

    do pantaneiro por seu trabalho, culinria, vesturio, costumes, festas, suas manifestaes

    artsticas e religiosas. (WERTHEIN, 2000).

    19

    ADMOLI, J. 1981. O Pantanal e suas relaes fitogeogrficas com os cerrados. Discusso sobre o conceito de Complexo do Pantanal. In: Anais do XXXII Congresso Nacional de Botnica. pp. 109-119. Sociedade Brasileira de Botnica, Teresina, 1981 20

    SILVA, M.P. da, e tal. Distribuio e quantificao de classes de vegetao do Pantanal atravs de

    levantamento areo. Revista Brasileira de Botnica, 2000. 23: 143-152.

  • 43

    1.1.2 O homem pantaneiro e a pecuria

    Diegues Junior (1960) caracterizou o Brasil em regies culturais, atravs do processo de

    ocupao humana em estabelecimentos de explorao econmica, como ncleos de

    povoamento que conferia uma organizao social e criava tipos sociais a ele ligados. Deste

    modo, constituiu-se o ambiente das relaes entre estes grupos tnicos, que participaram da

    formao scioespacial brasileira e igualmente das relaes culturais, com todas suas

    diversidades e peculiaridades. Os engenhos de acar foram os primeiros focos de povoamento

    criados e desenvolvidos no Brasil, logo depois apareceram as fazendas de criao; de um

    lado, das necessidades do engenho em gado para determinados trabalhos e para alimentao

    e de outro lado, do desenvolvimento natural da pecuria (Id., 1952, p.11). Ainda segundo

    este autor foi na fazenda que se fundamentou a estrutura social do Brasil; definiu-se esta

    preferentemente, ou mais exatamente, nas reas rurais, e s modernamente se pode consider-

    la em funo do meio urbano (DIEGUES JUNIOR, op. cit., p. 84).

    Foi assim tambm que ocorreu a ocupao no Centro Oeste e consequentemente, no

    Pantanal. A origem do pantaneiro produto da miscigenao entre as diversas sociedades

    indgenas que habitavam a regio, os colonizadores e os escravizados negros africanos que

    chegaram aps o sculo XVI. (Id., 1952). Entre os indgenas estavam os Guat, Guaicuru,

    Terena, Payagus, Kayaps e Bororo, sendo que, atualmente, muitos deles so apenas

    remanescentes de uma histria que no se deixou contar.

    Apesar das primeiras invases terem sido dos espanhis, a colonizao massiva do

    Pantanal comeou no sculo XVIII. Segundo Silva e Silva (1995), inumerveis bandeiras

    foram expedidas com o objetivo de povoar e explorar recursos naturais, principalmente o ouro,

    iniciando nessa poca, os conflitos intertnicos, que causaram o declnio das sociedades

    indgenas.

  • 44

    O rpido esgotamento do ouro, j na primeira metade do perodo setecentista, levou

    procura de novas reas mineradoras, como a do Vale do Guapor, na bacia amaznica

    (COSTA, 1999). Em Mato Grosso21

    , as populaes desenvolveram outras atividades, sem

    prejuzo da continuidade da explorao mineira nas margens de rios - a extrao da erva mate

    na regio sul, a pequena agricultura e a criao de gado no Pantanal, onde surge um tipo

    caracterstico de gado, o boi pantaneiro, em mestiagem com o zebu. (DIEGUES JUNIOR,

    1960). A gradativa introduo de lotes de gado para a subsistncia da regio foi constituindo o

    que viria a ser a expressiva pecuria no Pantanal.

    Logo aps 1719, (...) sentiu-se a necessidade de importao de gado vacum

    como prenncio da vocao agropecuria da regio (...) Assim, adquiriram-

    se as primeiras reses da histria de Mato Grosso, que se tornou autnomo

    em 1748. Provenientes, por certo, de criatrios paulistas, os lotes

    precursores chegaram por via fluvial, de canoas, pelo roteiro das mones.

    (...) encontraram bom meio ambiente, pastos timos, abundantes, gua com

    fartura. Cresceram, engordaram e multiplicaram-se. (SOUZA, 1986, p. 202).

    A pecuria, iniciada h mais de duzentos e cinquenta anos, continua com o mesmo

    regime de criao extensivo nas pastagens. O manejo tradicional das pastagens, baseado na

    experincia de sucessivas geraes, consiste na utilizao da cobertura vegetal nativa e nas

    reservas de vegetao original, chamadas capes (locais importantes para o trato com o gado,

    porque os abriga das chuvas e do frio). Outro tipo de manejo a prtica da veda, ou seja, a

    retirada do gado do campo para a recuperao natural das forrageiras, e a queimada utilizada

    para a limpeza e manuteno do pasto. Estas tcnicas utilizadas so elementos da cultura

    material do pantaneiro e permanecem em algumas fazendas. (ABDON e SILVA, 1998).

    Ainda que o gado tenha sido uma espcie introduzida, alguns autores atestam que a

    pecuria extensiva uma aptido agroecolgica do Pantanal (MOURO et al., 2000), tendo

    sido responsvel pela manuteno do equilbrio e da sustentabilidade desses ecossistemas.

    Entretanto, apesar desta afirmao, Abdon e Silva (1998), reconhecem que, as inovaes

    tecnolgicas como inseminao artificial, criao de novas raas e a substituio das

    21

    Na data referida, Mato Grosso do Sul no era um estado independente, o que veio ocorrer apenas em 1977.

  • 45

    forrageiras nativas pelas exticas (com maior teor nutritivo para o gado), sinalizam

    transformaes substanciais na antiga relao do pantaneiro tradicional com o ecossistema,

    colocando em risco o esteretipo do convvio harmonioso, responsvel pela sustentabilidade

    da regio.

    Segundo Campos Filho (1998) pode-se dizer que uma crise na identidade pantaneira

    instalou-se a partir de uma violenta entrada de migrantes e agenciamentos globalizantes,

    atravs de novos interesses, desejos e necessidades, deixando perplexa sua populao. No

    entanto, enquanto alguns estavam seduzidos, outros internalizavam aportes externos e ainda

    havia aqueles que permaneceram inclumes ao passado.

    Em relao dimenso das reas das fazendas, tambm houve alteraes. Hoje tem

    ocorrido a retaliao das mesmas para contemplar os direitos dos muitos herdeiros dos

    grandes fazendeiros. Alm disto, a lucratividade do gado est diminuindo e muitos tm

    procurado outras atividades para sobreviver, como o caso do ecoturismo (FRUET, 2004).

    Estes fatores podem significar aumento na presso de produo pecuria, em reas cada vez

    menores, caso haja aumento no nmero de cabeas de boi por unidade de rea.

    A economia pantaneira caracteriza-se ento, basicamente, por atividades agropecurias

    nas fazendas da regio ou em pequenas propriedades nas beiras dos rios. A pesca tambm

    significa fonte de emprego e renda, incluindo a pesca esportiva, que est diretamente associada

    ao turismo. Essas atividades revelam o contraste entre os perodos de estiagem e o das grandes

    enchentes. (ARRUDA; DIEGUES, 2001).

    H estimativa de que o rebanho bovino no Pantanal seja consttuido de 3,8 milhes de

    indivduos (POTT; VIEIRA; COMASTRI FILHO, 2008), o que fazem da pecuria de corte a

    principal atividade econmica do Pantanal. Esta pecuria baseia-se nas fases de cria e recria,

    com a comercializao de bezerros de sobreano, bois magros e vacas de descarte, que tendem

  • 46

    raa Nelore. A produtividade animal limitada pelo regime de cheias e de secas. Pott;

    Catto; Brum (1989 apud MAZZA et al., 1994). 22

    O transporte das reses pode ser realizado por ferrovia, rodovia, via fluvial e a p,

    dependendo dos mtodos de comercializao, tipos de animais, custos e disponibilidade

    destes meios, porm, grande parte deste rebanho faz longos percursos a p. (ABRO, 1983).

    Nesse ltimo caso, atravs das Comitivas de boiadeiros que so transportados.

    A transumncia de animais tem sido realizada em diversos pases h milhares de anos.

    uma atividade que possui importncia histrica, scio-econmica e ambiental, pois tem

    ocorrido, concomitantemente, s ocupaes humanas e colonizaes, isto quer dizer, ao

    desenvolvimento das civilizaes em diferentes paisagens. Em muitos pases e em Estados

    brasileiros est atividade se extinguiu devido a fatores como, por exemplo, a construo de

    rodovias e mudanas de produo para escalas industriais. Sabe-se que no Pantanal as

    Comitivas permaneceram, mas compreender como tm permanecido e quando so optadas,

    faz parte da abordagem desenvolvida neste trabalho.

    1.2 Marco conceitual: A interpretao da paisagem como lugar no contexto de

    populaes tradicionais

    Apresenta-se a seguir algumas reflexes e referenciais sobre conceitos23

    chave que

    foram adotados no desenvolvimento da pesquisa. Cabe dizer que no se pretende esgot-los

    ao defini-los, mas delinear em quais campos do conhecimento optou-se por construir

    22

    POTT, E.B., CATTO, J.B., BRUM, P.A.R. Perodos crticos de alimentao para bovinos em pastagens

    nativas no Pantanal Mato-Grossense. Braslia: EMBRAPA, 1989. 23

    Os conceitos so construes lgicas, estabelecidas de acordo com um quadro de referncias. Adquirem seu significado dentro do esquema do pensamento no qual so colocados. (MENDONA, 1983, p. 17).

  • 47

    dilogos. A inteno fazer-se entender melhor, quando citados durante o texto e identificar

    no campo da linguagem acadmica os referenciais tericos de apoio.

    O marco conceitual desta pesquisa a interpretao da paisagem como lugar no

    contexto de populaes tradicionais. Assim, seguem aproximaes a partir de autores que

    beneficiam estas complexas conexes entrelaando diferentes reas do conhecimento.

    Procurou-se utilizar o que se considera essencial dentro desta perspectiva, mas evidente que

    os conceitos e autores citados esto incorporados a linguagem da dissertao.

    FURLAN24

    coloca que as possibilidades de abordagem interdisciplinar tm

    demonstrado dificuldades e avanos. Tratando-se dos avanos so propostas trs dimenses:

    (informao pessoal):

    1) Temtica; onde temas multidisciplinares so expostos, mas no esto conectados

    conceitualmente.

    2) Conexes por procedimentos metodolgicos; onde estabelecido um dilogo entre

    campos do conhecimento atravs de procedimentos operacionais. Como por exemplo, a

    interface deste trabalho entre a descrio contextualizada de Geertz (1989) e a paisagem

    cultural (vrios autores)25

    , atravs da leitura da paisagem.

    3) Conexes por conceitos; onde estabelecido um dilogo entre categorias, noes e

    conceitos de diferentes campos do conhecimento. Neste trabalho podemos exemplificar a

    conexo entre paisagem e cultura atravs de autores como Claval (2001) e Geertz (op. cit.).

    Conceitos abrangentes como paisagem e cultura so importantes interfaces neste

    estudo sobre o homem e suas relaes com o ambiente, ou seja, as Comitivas de boiadeiros no

    Pantanal Sul Mato-Grossense. Mais especificamente a Antropologia Cultural com o conceito

    interpretativo de cultura e na Geografia de abordagem humanista, com o conceito de

    paisagem cultural. Nesse sentido admite-se a afirmao de Nogueira (2002), que compreende

    24

    FURLAN, S. . Informao fornecida durante reunio de orientao em 17 de set. 2009. 25

    Tais como Claval (1999, 2001) e Meneses (2002).

  • 48

    o pantanal e o pantaneiro como duas entidades que se fundem numa realidade

    antropogeogrfica nica.

    importante ressaltar que a investigao sobre o modo de vida e a cultura dos boiadeiros

    emergiu, principalmente, atravs de mtodos empricos fundamentados em dados primrios

    obtidos durante esta pesquisa e em trajetrias de vida anteriores na regio estudada. Por este

    motivo, os conceitos da Antropologia proporcionaram amparo em certos procedimentos, a

    partir da descrio contextualizada, possibilitando uma segurana metodolgica.

    Segundo Geertz (1989, p. 37) fazer etnografia como tentar ler (no sentido construir

    uma leitura de) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerncias, emendas

    suspeitas, comentrios tendenciosos, buscando interpretar estes dados e compreender

    experincias variadas. Desta forma enfatizada a descrio26

    contextualizada e minuciosa,

    onde se procura no generalizar atravs dos casos, mas dentro deles. A etnografia significa,

    nesta pesquisa, observar e compreender relaes, experincias vividas, selecionar e entrevistar

    informantes, transcrever textos, aprender vocabulrios, mapear campos, manter um dirio.

    Alm disso, dada complexidade do conceito de cultura, optou-se pelo conceito adotado

    por este autor, que a coloca como sistemas entrelaados de signos interpretveis (o que eu

    chamaria smbolos, ignorando as utilizaes provinciais. Este sistema simblico

    compreendido como um sistema de concepes, percepes, sem o qual no haveria o homem.

    Nossas idias, nossos valores, at mesmo nossas emoes so, como nosso prprio sistema

    nervoso, produtos culturais manufaturados a partir de tendncias, capacidades e disposies.

    Assume-se que homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,

    sendo a cultura, estas teias e sua anlise. O autor prope ento, uma abordagem semitica da

    cultura, auxiliando a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os nossos sujeitos, de

    26

    Sobre descrio, ver tem 1.3, p. 60.

  • 49

    forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles, interpretando os

    significados que emergem de sua fala. (GEERTZ, 1989, p.15-24).

    Para construir conexes importantes com o conceito de paisagem buscou-se na literatura

    geogrfica autores que puderam se alinhar a esta concepo descrita acima. Claval (1999)

    ressalta a emergncia sobre a discusso de temas relacionados afirmao cultural de povos,

    lugares, etnias e identidades culturais em determinadas paisagens como diferenciao social.

    Deste modo, propicia a construo do dilogo com a antropologia de Geertz (op. cit.), atravs

    da observao participante, a descrio etnolgica.

    Antes de aprofundar o modo como se trabalhou o conceito de paisagem necessrio um

    pequeno prembulo sobre o tema. Considera-se que a paisagem uma palavra polissmica, e

    que esta flexibilidade de significados pode trazer vantagens, mas tambm a banalizao.

    Mesmo sendo uma categoria chave da Geografia, tambm utilizado na Histria, e embora

    ambas as cincias tenham elaborado slidos conceitos, estas no a definem como fato cultural,

    pois no basta supormos um objeto (uma extenso da superfcie da terra), a ao humana

    que o transforma e a interao (material ou simblica) que se estabelece, preciso

    consider-la como processo cultural. (MENESES, 2002, p. 31).

    O conceito de paisagem cultural foi proposto por Carl Sauer, sob influncia da Geografia

    Alem e influenciando a Geografia Cultural27

    norte americana, pela Escola de Berkeley. Sua

    primeira obra terica importante foi Morfologia da paisagem, publicada em 1925, onde se

    ponderou a ao humana para caracterizar a paisagem, respeitando a diversidade de temas e de

    interesses como modus vivendi, o que a mantm aberta para temas novos como o da

    percepo ambiental, e propondo assim, uma viso interdisciplinar (SAUER, 1925). Seus

    27

    A Geografia cultural o campo da Geografia Humana que surge por volta do sculo XX, como alternativa ao

    pensamento determinista sobre o meio ambiente. Esta abordagem se caracteriza pelos estudos voltados s

    relaes entre sociedade, cultura, natureza e paisagem, principalmente no que se refere a cultura material

    (artefatos, tcnicas, utenslios, habitat e instrumentos de trabalho). (ZANATTA, 2010; MATHEWSON;

    SEEMANN, 2008).

  • 50

    trabalhos valorizaram o trabalho de campo, a observao, a descrio e a explicao de acordo

    com os melhores mtodos ao nosso alcance, mas sem postulados a priori. (SAUER, 2000).

    Apesar das crticas a este autor, reconhecida sua contribuio efetiva para que novas

    abordagens e temas fossem incorporados Geografia. (CORRA, 2001). Por propor o

    conceito paisagem cultural sob influncia da Antropologia e da Histria, este autor significa

    uma aproximao interessante para esta pesquisa e mais uma razo para construo de uma

    abordagem apoiada na representao (simblica e material).

    A partir da dcada de 70, Claval (2001) expe que transformaes nos estudos culturais

    conduzidos pelos gegrafos comeam a incluir a expresso de processos cognitivos, de

    atividades mentais, percepes, ou seja, as relaes entre homens com o meio ambiente e

    espao, medidos pela representao simblica. O papel das paisagens para os grupos humanos

    considerado complexo e passa a desempenhar um suporte de mensagens e smbolos,

    traduzindo-se no significado dado pela experincia vivida de diferentes grupos sociais28

    .

    Ou seja, so experincias subjetivas que revelam desejos, aspiraes, sonhos.

    No momento em que as paisagens deixam de ser consideradas como

    realidades objetivas, a maneira como so concebidas pelas populaes

    locais torna-se um tema de estudo apaixonante. (Ibid., p. 57).

    Nesta pesquisa admite-se que a paisagem no universal, no possui apenas objetividade

    morfolgica, nem somente objeto real que se d a percepo, pois isso a resumiria como

    mera projeo do observador, assume-se que considerando a paisagem uma estrutura de

    interao que se tem sua verdadeira natureza cultural. (MENESES, 2002, p. 32).

    Dada a relevncia do conceito de paisagem, a Constituio brasileira de 1988,29

    a

    introduz no corpo do Patrimnio Cultural Brasileiro, o que gerou diversas discusses entre

    a dicotomia cultura e natureza, mas no Encontro Tcnico do Comit do Patrimnio Mundial

    28

    O autor o precursor destas idias, que fazem parte da Nova Geografia Cultural. 29

    (BRASIL, 1988). Constituio Federal, art. 216, v.

  • 51

    em La Petite, Frana, 1992, que ocorre a introduo da categoria paisagem cultural referindo-

    se a obra combinada da natureza e do homem 30.

    Desta forma, compreendendo o homem e a paisagem como indissociveis, podemos

    afirmar que a paisagem tem histria, que ela pode ser objeto de conhecimento histrico e que

    essa histria pode ser narrada. Isto diz respeito tambm os usos que dela fizeram as sociedades

    ou segmentos sociais, onde se concentram os significados mais profundos da paisagem,

    sendo possvel explor-la nas mais variadas direes, e interpret-la atravs de certos cdigos

    de leituras31

    . O papel da paisagem indiscutvel no campo da identidade e dos processos

    identitrios desempenhando como componente na fixao das identidades nacionais. Esta

    necessidade de incluir nossa trajetria bibliogrfica no s num eixo temporal, mas tambm

    espacial, atende a requisitos de produo e reproduo material da vida, e que vem carregada

    de sentidos, emoes, valores, expectativas, sendo indispensvel em nossa interao

    consciente com o mundo (MENESES, 2002, p. 41).

    Na percepo do mundo e do consumo de recursos (utilitrios ou

    simblicos) desse mundo, os significados incorporados nos objetos

    ambientais so canalizados para as experincias dos sujeitos. A percepo

    de mundo e a constituio daquilo que importante ou desimportante para

    as pessoas no funciona em termos de uma lousa ambiental em branco, que operada pela percepo e cognio, mas em termos de historicidade e

    das experincias vividas nesse mundo. Tilley32

    (1994 apud Ibid., p. 60).

    Homem e natureza so constituintes do mesmo universo, que a percepo no fragmenta,

    onde se deve incluir no s as leituras dos sujeitos que vivenciam o cotidiano nestas paisagens,

    mas tambm as interaes resultantes das experincias de vida e entre pesquisador e pesquisa.

    So mltiplos olhares permeados com intencionalidades de sujeitos distintos, que do a

    paisagem significados complexos.

    30

    A United Nations Educational Scientific and Cultural Organization (UNESCO) define paisagem, separando-a

    em 3 classes: designed cultural landscape; organically evolved landscape e associative cultural landscape.

    Disponvel em: . Acesso em: 10 set. 2009. 31

    No item 1.2, p. 41, est explicitada uma das formas de leitura da paisagem. 32

    TILLEY, Cristopher. A phenomenology of landscape. Places, paths and monuments. Oxford: Berg, 1994.

  • 52

    Schama (1996, p. 17) descreve detalhadamente suas memrias e imaginaes de

    infncia relacionadas percepo da paisagem e conclui que se a viso de uma criana j

    consegue comportar lembranas, mitos e significados complexos, muito mais elaborada deve

    ser a viso dos adultos.

    Pois, conquanto estejamos habituados a situar a natureza e a percepo

    humana em dois campos distintos, na verdade elas so inseparveis. Antes de

    poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem obra da mente.

    Compe-se tanto de camadas de lembranas quanto estratos de rochas.

    A paisagem significa uma construo da imaginao projetada como sobre matas, gua

    e rochas, compreendendo assim, que quando uma determinada idia de paisagem, um mito,

    uma viso, se forma num lugar concreto, ela mistura categorias, torna as metforas mais

    reais que seus referentes, torna-se de fato parte do cenrio. (Ibid., p. 70).

    Este autor coloca que o funcionamento de vrios ecossistemas pode atuar independente

    do homem, mas assim como Bale (1994), Posey (2006), Diegues (1996) compreende que

    difcil imaginar um nico sistema natural que a cultura humana no tenha modificado,

    reconhecendo que embora o impacto da humanidade sobre a ecologia da terra no tenha sido

    puro benefcio, a longa relao entre natureza e cultura tampouco tem sido uma calamidade

    irremedivel e indeterminada (Ibid., p. 20).

    A reflexo destes autores contribui no processo de construo do dilogo entre os

    conceitos de cultura e paisagem adotados neste estudo, devendo ser compreendidos como um

    fenmeno integrado, como um fluxo contnuo de interao cultura e ambiente, que transforma

    ambos. Assim prope o antroplogo Bale (op. cit; p. 24), a partir da sua experincia em

    etnografia e etnobotnica: comunidades e culturas humanas, junto com as paisagens e

    regies, com as quais elas interagem ao longo do tempo podem ser compreendidas como

    fenmenos totais33. Podemos fazer uma analogia conceituao de outro importante gegrafo

    sociocultural Ab Saber (2004, p. 222) quando trata da relao dinmica e integrada com

    33

    Traduo livre da pesquisadora.

  • 53

    espaos produzidos pelo homem sobre os espaos herdados da natureza como espao total34

    .

    Desta forma, considera-se a paisagem como herana de todos estes processos que envolvem

    tambm idias de incompatibilidades de funes sociais e econmicas ocorrentes em diferentes

    subespaos e regies.

    Neste sentido, Cabrera et al. (2001) definem que as reas culturais contextualizadas por

    uma regio geogrfica so complexos culturais inter-relacionados que seguem uma

    continuidade no espao-tempo. Assim, busca-se compreender como a vida dos indivduos e

    dos grupos se organiza no espao, nele se imprime e nele se reflete, se avaliando a dialtica

    das relaes sociais no espao, com sua ligao ao meio ambiente e ao papel complexo das

    paisagens, ao mesmo tempo suportes e matrizes das culturas. (CLAVAL, 2001, p. 40).

    Nesta dissertao procurou-se ponderar tambm, que a natureza processual complexa da

    paisagem ocorre e se explica a partir de processos sociais e naturais35

    , em certos contextos,

    sendo necessrio compreend-la como um tema que permeia diversos campos do

    conhecimento, incluindo o conhecimento no formal e o conhecimento de populaes

    tradicionais. Trata-se de um espao que vai alm da observao, um espao construdo a

    partir de vivncias, sentidos e expriencias compartilhadas, e pensada como um vasto

    campo de significados, tenses e contradies. Alm disto, ela instvel, um permanente

    vir a ser e permanncia em transformao. (SANDEVILLE, 2005, p.1- 9)

    Sobre o espao, uma categoria complexa para a Geografia, entende-se como as idias de

    um grupo ou um povo, a partir da experincia cotidiana, seus sentimentos e emoes. Esse

    34

    Espao total (grifo do autor): o mosaico das heranas da natureza integradas com as heranas positivas ou negativas das aes cumulativas feitas por geraes e geraes de homens. (AB SABER, 2004, p. 222). 35

    Entende-se processos naturais como inscritos em um campo de fenmenos e processos sociais em um campo

    de conflitos, tenses, de intencionalidade. Considerando que estes processos tambm interagem.

    (SANDEVILLE, 2005).

  • 54

    espao vivido seria como um campo de representaes cheio de simbolismos, que pode ter

    sentido pessoal, ou estar ligado experincia36

    do outro como grupal ou mtico-conceitual.

    Compreende-se o espao tambm como algo que permite movimento, que tem a

    capacidade de mover-se e por este motivo pode ser experenciado de vrias maneiras: como a

    localizao relativa de objetos e lugares, como as distncias e extenses que separam ou

    ligam os lugares, e - mais abstramente - como a rea definida por uma rede de lugares.

    (TUAN, 1983, p.14).

    Apesar do significado de espao e lugar fundirem-se na experincia, o espao mais

    abstrato na linguagem de Tuan, inicialmente pode ser denominado como espao e a medida

    que o conhecemos e dotamos um valor37 torna-se lugar. As idias de espao e lugar no

    podem ser definidas uma sem a outra, a partir da segurana e estabilidade do lugar estamos

    cientes da amplido, da liberdade, do m