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O CARISMA SEMPRE ATUAL DE SÃO DOMINGOS Frei Henri Lacordaire foi o articulador da restauração da Ordem Dominicana na França depois da grande Revolução, na qual todas as Ordens religiosas antigas tinham sido banidas do território nacional. Ele era padre diocesano e pregador famoso quando, em 1839, entrou na Ordem dominicana, fazendo o noviciado na Itália. 1 Para garantir a maior difusão desse projeto da restauração da Ordem na França, e também para dar resposta aos muitos questionamentos sobre a sua decisão de entrar na Ordem, ele publicou em 1840 o famoso “Memorial para o reestabelecimento da Ordem dos Pregadores da França.” Neste texto Lacordaire define a Ordem de São Domingos como “... uma associação de irmãos que unem a força da vida comum com a liberdade da ação exterior, o apostolado com a santificação pessoal. Seu objetivo primeiro é a salvação das almas; o ensino é seu meio principal. Ide e ensinais, disse Jesus a seus apóstolos. Ide e ensinais, repetiu Domingos”. A seguir, ele responde à pergunta que com certeza muitos lhe estavam fazendo sobre os motivos da escolha de uma Ordem tão antiga para dar resposta aos problemas e apelos do mundo moderno. Lacordaire responde: “Talvez também nos perguntem por quais razões preferimos reestabelecer uma Ordem antiga, em vez de fundar uma nova. A isso respondemos: se Deus nos concedesse a missão de criar uma Ordem religiosa, estamos certos que, após longa reflexão, nada descobriríamos de mais novo, de mais adaptado ao nosso tempo e às nossas necessidades, do que a Ordem de São Domingos. Ela, de antigo, só tem a sua historia...” Continua falando com 1 Sobre Henri Lacordaire e sua obra de restauração da Ordem na França, cf. BEDUELLE G., Lacordaire, son pays, sés amis et la liberte des Ordres religieux en France , Cerf, Paris 1991. BONVIN, B. – Lacordaire - Jandel. La restautation de L’Ordre dominicain en France aprés la Révolution, écartelée entre deux visions du monde , Cerf, Paris 1989. Cf. sobretudo 52, sg. Cf. também de CHOCARNE – R.P.H-D Lacordaire. Sa vie intime et religieuse , Paris 1912 (11ª Ed.); NOBLE, H-D, - La vocation dominicaine du P. Lacordaire , Paris Lethielleux, 1914. MONTAGNE, B. – L’Ordre des Prêcheurs en France, de la Révolution à Lacordaire, AFP, LV, 1995, 327-380. As obras de Lacordaire foram publicadas a partir de 1872, em várias edições: LACORDAIRE, H.D. – Oeuvres completes du R.P. Lacordaire , 9 vol., in-18 Jesus, Paris 1872. O texto do ‘Memorial’ foi publicado normalmente como abertura da biografia de São Domingos que Lacordaire escreveu durante o noviciado no convento de La Quercia, perto de Viterbo, na Itália. Para os textos reportados neste trabalho (trad. pr.) me baseio na edição de 1912: LACORDAIRE, H.D. – La Vie de Saint Dominique, precedee du Mémoire pour le rétablissement em France de L’Ordre des Frères Prêcheurs , Garnier, Paris 1912. O Memorial se encontras nas páginas 1 a 123 desta edição. 1

Mariano Foralosso, Sao Domingos Carisma

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Foralosso, Mariano, Saint Dominique, charisme et

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O CARISMA SEMPRE ATUAL DE SÃO DOMINGOS

Frei Henri Lacordaire foi o articulador da restauração da Ordem Dominicana na França depois da grande Revolução, na qual todas as Ordens religiosas antigas tinham sido banidas do território nacional. Ele era padre diocesano e pregador famoso quando, em 1839, entrou na Ordem dominicana, fazendo o noviciado na Itália.1 Para garantir a maior difusão desse projeto da restauração da Ordem na França, e também para dar resposta aos muitos questionamentos sobre a sua decisão de entrar na Ordem, ele publicou em 1840 o famoso “Memorial para o reestabelecimento da Ordem dos Pregadores da França.” Neste texto Lacordaire define a Ordem de São Domingos como “... uma associação de irmãos que unem a força da vida comum com a liberdade da ação exterior, o apostolado com a santificação pessoal. Seu objetivo primeiro é a salvação das almas; o ensino é seu meio principal. Ide e ensinais, disse Jesus a seus apóstolos. Ide e ensinais, repetiu Domingos”. A seguir, ele responde à pergunta que com certeza muitos lhe estavam fazendo sobre os motivos da escolha de uma Ordem tão antiga para dar resposta aos problemas e apelos do mundo moderno. Lacordaire responde: “Talvez também nos perguntem por quais razões preferimos reestabelecer uma Ordem antiga, em vez de fundar uma nova. A isso respondemos: se Deus nos concedesse a missão de criar uma Ordem religiosa, estamos certos que, após longa reflexão, nada descobriríamos de mais novo, de mais adaptado ao nosso tempo e às nossas necessidades, do que a Ordem de São Domingos. Ela, de antigo, só tem a sua historia...” Continua falando com entusiasmo da sabedoria e do equilíbio com que a legislação da Ordem determina as normas de vida para os frades, enaltece o princípio da dispensa, próprio da legislação dominicana, como garantia de liberdade e de fidelidade aos apelos da realidade: “..para que o jugo da vida comum não diminua a liberdade do bem”. Por fim, tece uma verdadeira apologia do governo da Ordem, que é eletivo em todos os níveis e, então, radicalmente democrático. Para ele nenhuma das Cartas constitucionais modernas é tão democrática como as Constituições da Ordem. “Com certeza todas as Cartas constitucionais modernas, confrontadas com esta (da Ordem), parecem estranhamente despóticas”.

Quando Lacordaire escreveu este Memorial a Ordem Dominicana já tinha mais de seis séculos de história. Hoje ela está se preparando para celebrar os oito séculos de sua fundação. Realmente o de Lacordaire era um belo elogio para uma Ordem tão antiga! Será que o grande pregador de Notre Dame expressou esta avaliação tão elogiosa condicionado pelo ‘romântismo’ típico da sua época: aquele romantismo que admirava com saudade os belos tempos da Idade Média, quando a ‘verdade’ da fé cristã permeava de si todas as dimensões da vida humana, religiosa, cultural e social, e alimentava o sonho de poder ‘ressuscitar’, em plena época moderna, àqueles tempos da ‘cristandade’, sem esconder sua repulsa pelas ‘novidades ‘ destes tempos modernos.

No caso de Lacordaire, podemos ter certeza: ele não pode ser suspeitado desse tipo de ‘romantismo’! Lacordaire amava e admirava com sinceridade o seu tempo. Ele era um dos poucos católicos que defendiam, como cristãos na sua raiz, os ideais do iluminismo e do

1 Sobre Henri Lacordaire e sua obra de restauração da Ordem na França, cf. BEDUELLE G., Lacordaire, son pays, sés amis et la liberte des Ordres religieux en France, Cerf, Paris 1991. BONVIN, B. – Lacordaire - Jandel. La restautation de L’Ordre dominicain en France aprés la Révolution, écartelée entre deux visions du monde, Cerf, Paris 1989. Cf. sobretudo 52, sg. Cf. também de CHOCARNE – R.P.H-D Lacordaire. Sa vie intime et religieuse, Paris 1912 (11ª Ed.); NOBLE, H-D, - La vocation dominicaine du P. Lacordaire , Paris Lethielleux, 1914. MONTAGNE, B. – L’Ordre des Prêcheurs en France, de la Révolution à Lacordaire, AFP, LV, 1995, 327-380. As obras de Lacordaire foram publicadas a partir de 1872, em várias edições: LACORDAIRE, H.D. – Oeuvres completes du R.P. Lacordaire, 9 vol., in-18 Jesus, Paris 1872. O texto do ‘Memorial’ foi publicado normalmente como abertura da biografia de São Domingos que Lacordaire escreveu durante o noviciado no convento de La Quercia, perto de Viterbo, na Itália. Para os textos reportados neste trabalho (trad. pr.) me baseio na edição de 1912: LACORDAIRE, H.D. – La Vie de Saint Dominique, precedee du Mémoire pour le rétablissement em France de L’Ordre des Frères Prêcheurs, Garnier, Paris 1912. O Memorial se encontras nas páginas 1 a 123 desta edição.

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liberalismo. Por causa disso, junto com os amigos Montalambert e Lammenais, tinha amargado uma solene condenação por parte do papa Gregório XVI, na Encíclica ‘Mirari vos’ (1832).2 Realmente Lacordaire era imune desse tipo de saudades românticas!

Porque então tanta admiração dele pelo antigo carisma de São Dominos de Gusmão? E será que também nós hoje podemos afirmar, desse carisma, o mesmo que Lacordaire dizia quase dois séculos atrás? Talvez uma breve reconstrução do itinerário de São Domingos, das corcunstâncias em que atuou, das respostas que ele deu, junto com a sua Ordem, aos desafios do seu tempos, nos ajude a entender se este carisma tão antigo pode ser realmente ainda atual, no começo deste terceiro milênio.

Domingos de Gusmão

Fazemos aqui uma breve apresentação dos principais dados biográficos de São Domingos.3 Nasceu por volta de 1170 no vilarejo de Caleruega, perto de Burgos, na Espanha, de família abastada e bem relacionada com as elites da sociedade feudal do reino de Castila. Os pais Felix de Gusmão e Joana de Aza endereçaram o filho caçula para o serviço do altar e, possivelmente, para a ‘carreira eclesiástica’. Com este projeto, o confiaram aos cuiados de um tio sacerdote, para que lhe ensinasse a ler e escrever e o formasse, desde criança, para o caminho ‘sagrado’ ao qual o tinham destinado. Naquela época era assim: os pais é que decidiam o futuro dos filhos: combinavam os casamentos deles e também determinavam o caminho de consagração a Deus, sobreyudo para os filhos e filhas menores. Nem sempre estas ‘intromissões’ na liberdade de escolha da pessoa eram isentas de motivações ‘mundanas’, tais como a garantia da integridade do patrimônio da família, e também a promoção do poderio e prestígio social e religioso da mesma. No caso de Domingos, pelas notícias de que os biógrafos nos deixaram, parece que a decisão dos pais coincidisse com a sua índole e suas aspirações pessoais. Eles nos garantem que Domingos foi boazinho’ e piedoso desde criança e desde a primeira juventude se revelou como uma pessoa de coração sensível e generoso. Prova disso: vários relatos de gestos de generosidade, como o da venda dos livros e textos de estudo feita por Domingos, para esfomear os pobres que morriam vítimas da carestia na região de Palência.

Completado o currículo dos estudos necessários, ele foi ordenado padre e logo em seguida foi convidado para ser membro da comunidade dos cônegos de Osma. Pesquisas históricas recentes nos provam que os membros desta comunidade canonical pertenciam à elite da sociedade feudal da região. Muitos deles, mais tarde, foram nomeados bispos de diferentes diocese. O sonho de ‘carreira eclesiástica’ para o filho da nobre família dos Gusmão estava sendo bem encaminhado. A vida do jovem cônego se desenrolava de forma bem tranquila, entre as tarefas da pregação e da administração dos sacramentos e as belas liturgias cotidianas que a comunidade celebrava, junto com o bispo Diogo, sob as abóbodas românica da catedral do ‘burgo’ de Osma.

Um episódio imprevisto, ou melhor, um ‘encontro’, mudou radicalmente o rumo da vida de Domingos. É um daqueles casos em que nos [é dado constatar o quanto a Providência costuma agir dentro e por meio das circunstãncias humanas. O rei da Castilha Afonso VIII incumbiu o bispo Diogo de Osma de ir até a Dinamarca para tratar do casamento do filho dele com uma princesa da casa real daquele país longunquo. Diogo obedeceu prontamente ao pedido do rei e como companheiro de viagem levou consigo o jovem cônego Domingos. Cruzaram os Pirereus e chegaram no sul da França, onde se depararam com uma realidade que, para eles, era totalmente nova, impensável! De fato Diogo e Domingos estavam acostumados à situação de

2 A questão dos ‘Católicos liberais’ e da condenação por parte de Roma, é um tema bem conhecido pela historiografia geral e da Igreja Católica. cf. WHITE, R.L. – L’Avenir de Lamennais. Son role dans la presse de son temps, Paris 1974; 3 A bibliografia sobre a vida e a obra de São Domingos de Gusmão é imensa. Indicamos um dos trabalhos mais valiosos neste campo: VICAIRE H. – Histoire de Daint Dominique, Cerf, Paris 1982. os documentos históricos relacionados a ele foram publicados por: KOUDELKA, V. J. – Monumenta Diplomatica S. Dominici, MOPH - XXV, 1966.. Ver também: GOMES GARCIA V. T. – (Ed.) – Santo Domingo de Gusmán , escritos de sus contemporâneos, Edibesa, Madrid, 2012. Ver ampla bibliografia: 61- 78.

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‘fronteira’ da fé cristã, com relação aos musulmanos que ainda ocupavam o sul da península hibérica. Aqui, no sul da França, eles se depararam com a realidade assustadora do esvaziamento da fé cristã católica que estava acontecendo dentro da própria comunidade católica: era o fenômeno da heresia dos Cátaros, que ia se espalhando por toda parte. Um numero cada vez maior de fieis abandonava a fé cristã da Igreja de Roma e seguia os pregadores cátaros, incorporandose ao novo tipo de religião e vida cristã que eles propunham. Era um processo muito parecido com o que está acontecendo agora em muitos países da América Latina e de outros continentes: o éxodo em massa dos católicos para as igrejas evangélicas e pentecostais.

Domingos não ficou indiferente frente a esse ‘desastre’! Durante a viagem ele teve oportunidade de dialogar, noite adentro, com o dono da hospedaria de Toulouse onde tinham parado para descansar. Este hospedeiro era um cátaro convicto. O beato Jordão, primeiro biógrafo de Domingos, garante que depois de longas horas de diálogo com o jovem cônego espanhol, o hospedeiro reconheceu o seu erro e voltou no seio da ‘mãe Igreja’. Mas o mesmo beato Jordão, na continação do seu relato biográfico, nos mostra como este encontro marcou profundamente a vida de Domingos, determinando uma mudança radical.

Terminada a missão confiada pelo rei da Castilha, Diego e Domingos viajaram até Roma e receberam de Papa Inocêncio III o pedido de se dedicarem, pelo menos por um tempo, ao serviço da pregação no sul da França. Domingos cumpriu fielmente esta missão recebida do successor de Pedro. Também depois da morte do bispo Diogo, ele permaneceu no Sul da França por mais de dez anos, pregando ao povo de Deus e dialogando com os hereges. Foi a partir desta experiência de pregação itinerante que surgiu a Ordem dos Pregadores. Em 1215 Domingos e os primeiros discípulos receberam do bispo de Toulouse Fulco o mandato da pregação itinerante no território de sua diocese. 4 No mesmo ano ele acompanhou o bispo Fulco no Concílio de Latrão IV, em Roma. Na ocasião ele escutou da boca dos próprios bispos e pastores da Igreja universal a mesma análise e a mesma proposta: o povo de Deus estava sedento da Palavra de Deus, mas os pastores, não estãvam cumprindo sua missão. Merece transcrever aqui o texto do ‘mea culpa’ que eles deixaram marcado na Ata do Concílio:

“Entre as coisas que se referem à salvação do povo cristão, sabemos que é sumamente necessário o alimento da palavra de Deus. De fato, como o corpo material, assim também a alma espiritual se sustenta com o alimento, sendo que o ser humano não vive somente de pão, mas de toda palavra que vêm da boca de Deus. Acontece, porém, que os bispos, devido às suas múltiplas ocupações, ou pelas doenças, ou pela perseguição ou outro, para não falar da ignorância - o que merece reprovação e não mais pode ser tolerado - não tem condições de eles mesmos ministrarem a palavra de Deus ao povo cristão, sobretudo nas dioceses mais amplas e extensas ...” 5

Bispos omissos e ignorantes! O que faziam o dia todos esses prelados, para não ter tempo de se dedicar á pregação, elemento essencial do seu ministério? E com quais critérios eram eles escolhidos? Mistério! Em todo caso, depois desta humilde confissão de ser omissos e ignorantes, eles tomam algumas medidas para pôr remédio a este mal da falta da pregação e da instrução ao povo: mandam que em cada diocese sejam instituídos pregadores itinerantes e que se organizem escolas com pessoas aptas para ensinar, aos clérigos e ao povo, as letras, a Bíblia e a doutrina cristã:

“...estabelecemos com esta constituição geral que os bispos encarreguem homens aptos para o exercício do ministério da santa pregação, que sejam eficazes pela sua palavra e pelo exemplo de vida, que visitem em seu nome os povos que lhes foram confiados e que eles não conseguem visitar. Eles os visitem e os edifiquem com a palavra e o exemplo. E possam administrar a eles, quando for necessário, o de que eles precisam, para que não aconteça que, por falta dos meios necessários, os povos desistam do caminho começado. Mandamos também que nas igrejas catedrais e em outras conventuais, sejam encarregados homens preparados que atuem como cooperadores e substitutos do bispo, não somente no ministério da pregação, mas também no atendimento das confissões e na distribuição das penitências e outras coisas

4 Documento de nomeação em Koudelka, Monumenta..., cit., 56-58.5 Ibid., 61,

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necessárias para a salvação das almas. Se alguém for negligente no cumprimento destas disposições, seja punido severamente... Para cada igreja catedral se ofereça um côngruo sustento econômico a um mestre que possa instruir de graça os clérigos e outros alunos pobres, de tal maneira que garanta o sustento para as necessidades do docente e se abra o caminho da doutrina para os alunos... As igrejas metropolitanas tenham pelo menos um mestre de teologia que ensine aos clérigos e a outros a Sagrada Escritura e as coisas que são necessárias para o serviço pastoral das almas...”6.

Interessante o ‘ver’ e o ‘julgar’ dos padres do Concílio’: a leitura que eles fizeram da situação da Igreja e o discernimento das causas dos males que afligiam o povo cristão: ignorância por falta de pregação e instrução, heresias, etc. Os padres do Concílio fazem ato público de humildade, reconhecendo que uma das causas certas de tantos males era o fato de eles, os bispos e pastores, por causas diferentes, negligenciar o ministério da pregação. A medida proposta - de se nomear pessoas aptas para ajudarem os bispos no exercício da pregação e o ministério da penitência - correspondia ao que o bispo Fulco tinha começado a fazer na sua diocese de Toulouse: já vimos que naquele mesmo ano ele tinha nomeado Domingos e seus companheiros para a pregação itinerante no território da diocese. O bispo Fulco e Domingos estavam presentes no Concílio de Latrão IV. Podemos assim pensar que durante os intervalos entre uma reunião e outras, deve ter tido diálogo e troca de experiências sobre estes problemas. Fulco e Domingos devem ter comunicado aos outros a experiência da pregação itinerante que tinham começado na diocese de Toulouse. Pelo que parece, a ideia vingou!

Para Domingos a participação neste Concílio de Latrão representou a oportunidade para fazer uma leitura mais ampla, nos horizontes da cristandade toda, da ‘conjuntura’ da Igreja e da sociedade. Deu para ele constatar que os problemas e apelos que estava experimentando no sul da França eram os mesmos por toda parte, na igreja universal. E acabou fazendo também uma constatação importante: os Padres do Concílio, sem o saberem, confirmavam plenamente o seu ‘sonho’ e o carisma que ele estava desenvolvendo a muitos anos: o de renovar para a Igreja da sua época e do futuro, no mundo inteiro, o estilo de vida e a pregação itinerante da comunidade dos Apóstolos.

Interessante também, para uma definição concreta do carisma da futura Ordem dos Pregadores, a outra medida: de instituir escolas de Bíblia e de doutrina cristã nas dioceses. Faltou só de os bispos mandarem que estes cursos fossem frequentados obrigatoriamente também pelos...bispos ignorantes! Estas medidas confirmavam a convicção de Domingos, sobre a importância de se conseguir uma sólida formação, sobretudo bíblica e doutrinal e, então, a importância do estudo, como responsabilidade de serviço e condição “para podermos ser mais úteis aos nossos irmãos”! Reconhecemos aqui, na sua ‘fonte’, mais um dos traços característicos do carisma dominicano: a vida evangélica, o estudo, a pregação itinerante, o ensino ao povo.

Domingos aproveitou a oportunidade para pedir ao papa a aprovação de uma nova Ordem que se dedicasse á pregação itinerante e ao ensino da doutrina cristã para os fieis, e nas terras de missão. Tinha porém um ostáculo à superar. O mesmo Concílio tinha acabado de proibir a fundação de novas Ordens. O decreto conciliar rezava assim:

“Para evitar que uma excessiva diversidade de Ordens religiosas determine grave confusão na Igreja de Deus, proibimos a qualquer um, para o futuro, de criar novas Ordens religiosas. Se alguém quer entrar na vida religiosa, escolha uma das que já estão aprovadas. Assim também se alguém quer fundar uma nova comunidade de vida religiosa, escolha a regra e as constituições de uma das Ordens religiosas já aprovadas...” 7

Este decreto do Concílio chegava exatamente na hora em que o Espírito estava suscitando para a Igreja nada menos que o carisma de Francisco de Assis e de Domingos de Gusmão. Um caso curioso de um Concílio na contramão... do Espírito! Sabemos que este decreto não impediu o surgimento das duas novas Ordens. No caso de Domingos, Papa Inocêncio III entendeu logo o valor e a importância da sua proposta. Era exatamente aquilo de que a Igreja mais precisava! Para driblar o obstáculo e permitir ao ‘novo’ do Espírito de nascer

6 Koudelka, Monumenta..., cit., 61- 62. 7 Ibid., 63

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e de se afirmar, o próprio papa ele deu um jeitinho bem...brasileiro.. Pediu a Domingos de escolher uma das antigas Regras de vida religiosa e de elaborar um projeto de vida religiosa comunitária, assimilando elementos de uma ou outra das Ordens já existentes. A Regra escolhida foi a de Santo Agostinho, própria para a vida canonical. Os elementos organizativos da vida comunitária foram tirados sobretudo do projeto de vida dos cônegos Premonstratenses. O sucessor de Inocêncio, Honório III, aprovou definitivamente a nova Ordem no dia 22 de dezembro de 2016. Ele próprio batizou a nova família religiosa com o nome de ‘Ordem dos Pregadores’.

Domingos acompanhou o primeiro desenvolvimento da nova Ordem, até a morte. A semente que ele tinha espalhado deu logo frutos imensos de santidade, de apostolado e de cultura cristã, tal que, depois de oito séculos, seria impossível entender a caminhada histórica e a alma profunda da Igreja católica e da civilização ocidental sem ter em conta a grande contribuição dada pela Ordem dos Pregadores. É esta a Ordem que encantou Lacordaire, pela sua ‘atualidade’ frente aos desafios e apelos da modernidade. Qual o segredo desta ‘eterna juventide’ do carisma de São Domingos? A proposta é de analizarmos alguns fatos marcantes do itinerário de Domingos, e alguns aspectos de ‘novidade’ que ele trouxe para a vida religiosa e para a missão da Igreja do seu tempo e também de hoje.

Os hereges que ‘converteram’ DomingosTenho a convicção de que, para entender o itinerário humano e de fé de Domingos de Gusmão, é indispensável conhecer a fundo a realidade, as ideias e os apelos dos Cátaros: os hereges que ele encontrou no sul da França e que, com toda certeza, determinaram nele uma mudança radical de valores e de projeto de vida.8

Entre os santos que a Igreja propõe para a nossa imitação e veneração, os que mais nos ‘convencem’ são aqueles que conseguiram sair de uma vida de pecado e galgar o caminho da santidade. Esta foi, por exemplo, a experiência de Agostinho de Hipona. No caso de Domingos não foi assim, pelo menos nas aparências. Como já dissemos, os biógrafos são unânimes em afirmar que ele sempre foi ‘bom’: menino piedoso, jovem generoso, padre dedicado, etc. Analizando, porém, com maior atenção as circunstância de sua vida podemos constatar que Domingos de Gusão foi un grande ‘convertido’, vivenciando uma das conversões mais difíceis de se realizar. Podemos definir assim esta mudança de vida: ele deixou de ser ‘padre de carreira’ marcado para ser bispo, destinado a se tornar um ‘grande’ na Igreja e na sociedade feudal, e se tornou de forma cada vez mais radical, um ‘seguidor de Cristo’: do Cristo incarnado na nossa história, que veio ‘plantar sua tenda’ no meio da humanidade, veio para servir e não para ser servido, se fez irmão de todos, partilhou a miséria, as dores, as alegrias e as esperanças dos irmãos, sobretudo dos últimos, dos empobrecidos. O que determinou esta mudança em Domingos? Podemos afirmar, com toda certeza, que esta ‘conversão’ foi um fruto do encontro, da ‘convivência’ e do diálogo com os ‘hereges’ Cátaros.

Quem eram afinal esses hereges que tanto marcaram a vida de Domingos? Merece aqui sintetizar alguns dados sobre eles. Os Cátaros eram um movimento religioso ligado à tradição antiga, filosófica e religiosa, do dualismo maniqueísta. Sua origem, no contexto cristão, remonta aos movimentos maniqueístas dos Paulicianos e, mais tarde, dos Bogomili, radicados nas regiões do Império de Oriente, que atualmente correspondem à Bulgária e Iugoslávia. No tempo das Cruzadas eles se espalharam pela Europa e se desenvolveram bastante no sul da França e no norte da Itália.

Pelo que se refere à doutrina dos Cátaros, o ponto de partida deles era a afirmação de dois princípios criadores, eternos e antagônicos entre si: o Criador do bem e o Criador do mal.

8 A bibliografia sobre os Cátaros (Albigenses) é muito rica. Na ocasião do oitavo centenário do começo da ‘cruzada’ promovida contra eles pelo papa Inocêncio III (‘Cruzada dos Albigenses’, 1208) foram se multiplicando ainda mais as pesquisas e as publicações sobre este tema. Indicamos aqui o belo estudo de ROQUEBERT, M. - Histoire des Cathares. Hérésie, Croisade, Inquisition, du XI ao XIV siècle, Perrin, Paris 1999, com ampla resenha de fontes cátaras e bibliografia. Também, do mesmo Autor: La religion cathare. le Bien, le Mal et le Salut dans l’héresie, Perrin, Paris 2001. (ampla bibliografia articulada sobre o tema, 411- 429. NELLI, R. – Écritures Cathares, Ed. Du Rocher, Monaco 1995. BRENON, A. – Les Cathares. Pauvres du Christ ou apôtres de Satan?, Gallimard 1996.

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Bem é tudo o que está ligado e é fruto do espírito, mal é tudo o que é fruto da matéria e dela depende. Podemos colher com clareza esta visão dualista num dos poucos escritos dos Cátaros que se salvaram das fogueiras da Inquisição:“Sobre os dois princípios: .... Em honra do Pai santíssimo eu quero começar minha exposição sobre os dois princípios refutando logo a teoria do princípio único, apesar de que isso esteja em contradição com aquilo que pensam quase todos os espíritos religiosos. Eu então coloco já o seguinte: ou têm um único princípio principal (principium principale), ou tem mais de um. Se tiver somente um e nada mais, como afirmam os ignorantes, então é preciso que ele seja necessariamente: ou bom, ou mau. Ele não poderia ser mau, porque se fosse tal, procederia somente de coisas más, e não das boas, como Cristo diz no Evangelho de São Mateus: ‘Toda árvore má, dará frutos maus’ (Mt. 7, 17-18)... É preciso necessariamente afirmar que existe um outro princípio: o princípio do mal, que age com grande malícia contra o verdadeiro Deus. É absolutamente impossível acreditar que o Senhor, verdadeiro Deus, tenha criado diretamente e desde o princípio as trevas e o mal. Se Deus não pode fazer o mal, deve existir uma outra potência que é o Mal. Como Deus não é poderoso no mal, não tem poder para produzir o mal. Nós devemos acreditar firmemente que existe um outro princípio que tem poder para o mal. É dele que vêm todos os males que foram, que são e que serão”. 9

A partir desta premissa doutrinal, os Cátaros deduziam uma série de consequências, que pareciam bastante coerentes e lógicas, mas que se opunham radicalmente à doutrina tradicional da Igreja e representavam também uma autentica subversão dos valores morais e da ‘ordem estabelecida’ na cristandade medieval. Lembramos algumas destas consequências, a título de exemplo: -Identificavam o Deus “violento, cruel e vingativo” do Antigo Testamento com o Criador do mal e negavam, então, o valor do Antigo Testamento como Revelação, Palavra de Deus. Para eles a Revelação está contida somente no Novo Testamento: revelação do Criador do bem e de tudo o que é espiritual.-Negavam a Encarnação de Cristo, que teria assumido não um corpo de carne e osso, mas uma simples imagem humana: um ‘simulacro’.-Negavam a Eucaristia como sacramento da presença real de Cristo (corpo e sangue) sob as espécies do pão e do vinho. -Negavam todos os demais sacramentos, menos o Batismo, que eles porém não celebravam com a infusão da água, mas pela imposição das mãos: o batismo do ‘espírito e do fogo’, como dom do Espírito Consolador. Chamavam este Batismo de ‘Consolamentum’. -Nada de reza dos Salmos: única oração admitida era o Pai Nosso.-Nada de sacerdócio, nada de mediação humana para o relacionamento do batizado com Deus. -Cada batizado recebia o dom do ‘Espírito consolador’ no Consolamentum, pelo qual podia ter acesso direto e pessoal a Deus. Nada, então, de papa, de bispos sucessores dos Apóstolos, nada de padres. Os Cátaros, porém, acabaram estabelecendo uma espécie de coordenação pastoral e um magistério doutrinal, confiados a bispos e diáconos. Pelo jeito, uma certa forma de ‘mediação’ sacerdotal se tornava inevitável também para eles. -Devido às suas características de opressão e exploração do povo, identificavam como parte e efeito do ‘reino do mal’ toda forma de poder temporal: a autoridade, a estrutura do governo, a administração civil, em suas dimensões política, militar e econômica. Por conseguinte, negavam seu valor e sua legitimidade. Neste sentido a heresia dos Cátaros se apresentava com uma forte conotação revolucionária e transformadora da sociedade. Por causa disso foi encarada como uma grave ameaça contra a ordem estabelecida. -Praticavam e pregavam um projeto de vida cristã inspirado radicalmente ao modelo de Cristo e da comunidade dos Apóstolos: o ideal evangélico.-Concebiam o caminho do cristão como uma luta árdua para se libertar das amarras da matéria e do mal. Praticavam, por isso, uma grande ascese, com muitas privações, penitências, jejuns, etc. Houve casos de Cátaros que se deixaram morrer de fome, para se libertar da ‘matéria’.

9 Texto em NELLI, Ecritures Cathares..., cit., 88.

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-Negavam a legitimidade do casamento (ligado ao exercício da sexualidade, que é parte da ‘matéria’, do mal) e indicavam como ideal para todos a prática do celibato como caminho mais ‘perfeito’ de imitação e seguimento de Cristo. -A partir desta visão, o projeto de vida cristã dos Cátaros estava articulado em dois níveis ou graus diferentes de radicalidade: a vida dos fieis comuns, chamados de ‘crentes’, e o caminho dos ‘perfeitos’. Os crentes viviam todos estes valores, mas de forma menos obrigatória e radical. Os ‘perfeitos’, ao contrário, se comprometiam de forma mais plena e radical no seguimento deste ideal, que a comunidade deles reconhecia e respeitava como o caminho da verdadeira vida evangélica. Os ‘perfeitos’ constituíam a liderança moral e também institucional (de governo e pastoreio) das comunidades, assumiam normalmente a tarefa da pregação itinerante, indo de dois em dois, em pobreza total, vivendo da acolhida e da partilha dos fieis. -Os ‘crentes’ casados eram cristãos de segunda categoria, com relação aos ‘perfeitos’ celibatários. Sabemos o quanto esta visão foi e permanece incrustada também no catolicismo.-Todos tinham o dever de viver do seu trabalho e a mendicância era admitida somente para os ‘perfeitos’, em quanto se dedicavam à pregação itinerante. -Praticavam a solidariedade para com os pobres, os doentes, os idosos e todos os que precisassem de ajuda. Assim entre os Cátaros não existiam pobres abandonados, vivendo de esmola. -A vida dos ‘crentes’ se desenvolvia em pequenas comunidades, lideradas por um ‘perfeito’, ou ‘perfeita’. -Não tinham igrejas e lugares especiais para suas reuniões comunitárias. Aos poucos, porém, sobretudo as casas dos ‘perfeitos’ foram se tornando lugares privilegiados para as celebrações do Consolamentum e as orações e pregações comunitárias. Era uma imitação da ‘domus eclesiae’ dos primeiros séculos do cristianismo. Podemos reconhecer nisso um processo gradual de sacralização de espaços comunitários. Processo que a repressão da Cruzada e da Inquisição acabou cortando. -Todos os crentes, mas sobretudo os perfeitos, tinham o mandato ‘missionário’, do testemunho de vida evangélica e da pregação no ambiente onde viviam.-Nas comunidades cátaras era muito marcante o protagonismo das mulheres, que na Igreja católica ficavam normalmente marginalizadas e silenciadas. Mulheres cátaras foram ‘perfeitas’, e exerceram uma verdadeira liderança nas comunidades locais e no conjunto do movimento. Organizavam reuniões e pregações nas suas casas, e também se dedicavam à pregação itinerante, como os ‘perfeitos’. -Os Cátaros eram, em geral, pessoas do povo que viviam plenamente inseridos na vida normal da sociedade, nos vilarejos feudais e, sobretudo, nos novos ‘burgos’ que iam se constituindo ou ressurgindo em muitas regiões. Esta característica de ‘proximidade’ e de ‘normalidade de vida’ talvez fosse um dos segredos de sua rápida difusão no meio das classes populares; e também da credibilidade e simpatia de que eles gozavam junto ao povo. -Na sua pregação eles questionavam abertamente a Igreja de Roma, o papado, a hierarquia, os padres. Com seu próprio estilo de vida e com a palavra denunciavam o escandaloso afastamento da Igreja Católica do espírito evangélico de pobreza, de humildade e fraternidade. Apresento aqui, a título de exemplo, um texto bastante eloquente desta crítica mordaz e irônica, que incomodava a autoridade eclesiástica, mas encontrava amplo consenso no povo:“A Igreja de Deus - Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Nós queremos recolher alguns textos das Sagradas Escrituras para que seja possível entender e conhecer o que é a Igreja de Deus. Esta Igreja não é feita de pedras ou de madeira, nem de nada do que é trabalhado pela mão do homem. Está escrito nos Atos dos Apóstolos: “O Altíssimo não mora em coisas feitas pela mão do homem”(At. 7, 48). Esta santa Igreja consiste na Assembleia dos fiéis e dos santos. (...) Esta Igreja não mata e não permite a ninguém de matar, foge do adultério e de toda imundície, não rouba e não faz injustiças, foge da mentira e do falso testemunho, não faz juramentos, não pronuncia blasfêmias e maldições, escuta e observa todos os mandamentos. Esta Igreja sofre perseguições e castigos, até o martírio, para o nome de Jesus Cristo.

Vejam, então, quanto estas palavras de Cristo estão em contradição com a malvada Igreja romana: ela de fato não sofre perseguição, nem pelo bem, nem pela justiça que nela

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possa ter. Muito pelo contrário: é ela que persegue e condena à morte todos aqueles que não querem compactuar com seus pecados e suas maldades. Ela não foge de cidade em cidade, mas é senhora das cidades, dos burgos e das províncias e está sentada com majestade no meio das pompas desse mundo, rodeada de reis, imperadores e nobres. Ela não é como um rebanho de ovelhas no meio dos lobos, mas ao contrário, é como os lobos no meio do rebanho, e o destrói. Ela faz de tudo para impor o seu império também no meio dos pagãos, os judeus e os gentios. Ela está perseguindo e matando a Igreja santa de Cristo, que tudo sofre com paciência, como faz o rebanho, que não procura se defender dos lobos”. 10

Estas palavras refletem o contexto da perseguição da qual as comunidades cátaras estavam sendo alvo por parte da Igreja Católica. De fato, com já dissemos, todas estas doutrinas dos Cátaros e suas críticas contra a instituição religiosa foram logo encaradas como uma ameaça mortal, tanto para o sistema religioso, como para a ordem temporal estabelecida na Cristandade. Os Cátaros representavam algo revolucionário, propunham uma subversão total do ‘sistema’. E não demorou muito para que a repressão, tanto da Igreja como do Estado, os fizesse vítimas de perseguições e até de extermínio. Depois de várias tentativa de converter os Cátaros com campanhas de pregação promovidas pela própria Santa Sé, a partir de 1208 desencadeou-se, por mais de duas décadas, a ‘Cruzada contra os Cátaros (Albigenses)’ proclamada pelo papa Inocêncio III e conduzida pelo famoso estrategista militar conde Simon de Montfort e seus continuadores.

Pelo que nos interessa aqui, lembramos que a ‘conversão’ e a missão de Domingos se deram neste contexto de guerras, violências, destruições e mortes, perpetradas em nome de Cristo, por vontade do Vigário de Cristo! Algo muito diferente do contexto tranquilo, até idílico, em que surgiu o movimento franciscano. Domingos não teve tempo para pregar aos passarinhos e amansar o lobo de Gubbio... Ele estava operando numa situação que pouco ou nada tinha a ver com os ideais evangélicos de fraternidades, de não violência, de misericórdia, de perdão, etc. E viveu neste contexto como um sinal de contradição, como profeta do Reino da misericórdia e do amor de Deus.

“Olhai para os hereges, tirai um cravo com outro cravo!”É inevitável aqui uma pergunta: qual foi a resposta de Domingos nesta situação desafiadora? O beato Jordão relata, no seu Libellus, o episódio do encontro em Montpellier de Diogo e Domingos com os abades cistercienses e demais pregadores da missão promovida pelo papa contra os hereges. Diogo e Domingos estavam voltando de Roma. Os ‘missionários’ se encontravam reunidos para fazerem um discernimento sobre as causas do fracasso total de sua pregação. Nenhum herege tinha se convertido! Eles estavam totalmente decepcionados pela esterilidade de sua pregação e não viam a hora de voltar ao sossego de seus mosteiros.

Pediram o parecer do bispo Diogo. Este procurou fazer uma breve ‘pesquisa de campo’, pedindo informações sobre os hereges, sobre suas ideias, seu estilo de vida e sua atuação apostólica. Ao mesmo tempo foi analisando o estilo de vida e a metodologia da pregação dos missionários do papa. E sem meios termos, de forma bem sincera e crítica, expressou o seu discernimento: “Não é este, irmãos, a meu ver, não é este o caminho! Creio que é impossível que estes homens, que se apoiam mais nos exemplos, se voltem para a fé só com palavras. Olhai para os hereges: eles, sob a aparência de piedade, dissimulando exemplos de pobreza e de austeridade evangélica, seduzem as almas simples. Mostrando um comportamento contrário, vocês edificarão pouco, destruirão muito e nada conseguirão. Tirai um cravo com outro cravo, afastais com uma verdadeira religião uma fingida santidade; só com uma sincera humildade pode ser vencido o enganador dos pseudoapóstolos.” 11 A do bispo Diogo era a proposta de retomar ao estilo de vida que foi de Cristo e da comunidade dos Apóstolos. Para dar o exemplo deste caminho evangélico, ele mandou de volta para a Espanha as carruagens e os servos que o acompanhavam e, junto com Domingos e alguns outros clérigos, “indo a pé, sem dinheiro, em pobreza voluntária, começaram a pregar a fé.” 12

10 Texto em Nelli, R. – Écritures Cathares., cit. 274, s.11 B. Jordão de Saxônia – Libellus de principiis Ordinis Praedicatorum, n. 20.12 Ibid. n. 22.

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Este episódio marca a virada radical que aconteceu na vida de Domingos. A partir de então, o ‘padre de carreira’ marcado para ser bispo e ‘grande’ na Igreja e na sociedade deixou tudo e se entregou totalmente à pregação nas regiões do sul da França, procurando testemunhar com a sua própria vida e com a palavra o verdadeiro rosto de Cristo, que nada tinha a ver com o Cristo ‘pantocrator’, sentado no trono, da Igreja institucional. “Olhai para os hereges, tirai um cravo com outro cravo!” É isto que Domingos fez nos longos anos de sua missão no sul da França.

Na sala capitular (Capellone degli Spagnoli) do convento dominicano de Santa Maria Novella em Florença, numa das paredes laterais o pintor medieval Andrea Buonaiuto retratou São Domingos em diálogo com os hereges. Esse pintor devia ser um bom psicólogo e, com certeza, tinha entendido bem a experiência de Domingos junto aos hereges. Ele o representa em atitude serena e calma, dialogando com um grupo deles. E representa o grupo dos hereges nas atitudes mais significativas. Alguns fazem gesto de recusa da fala de Domingos, outros estão em atitude de perplexidade e reflexão, alguém, com o dedo em riste, parece reclamar e jogar na cara de Domingos as infidelidades ao Evangelho de que a Igreja Católica dava espetáculo por toda parte. Um velhote, com cara de angustia e dúvida, está no movimento de se afastar do grupo: talvez não quisesse ser incomodado nas suas ‘certezas’ pela força dos argumentos de Domingos.

Este encontro e diálogo com os ‘hereges’ foi, por longos anos, o pão cotidiano de Domingos. Num contexto de violência e guerra, ele perseguiu a utopia evangélica do diálogo respeitoso e do testemunho com exemplos de vida. Na contramão da lógica de violência que estava triunfando, a sua missão foi de testemunhar e anunciar a mensagem evangélica da fraternidade, da não violência, da misericórdia, do perdão.

Sabemos que a atuação apostólica de Domingos não foi nada infrutuosa. Pesquisas recentes sobre Atas de processos da Inquisição realizados entre os anos 1240 e 1250, permitem de recolher um testemunho inesperado e bonito de sua atuação junto aos hereges. À distância de mais de trinta anos, muitas pessoas interrogadas pelo inquisidor lembravam que elas próprias, ou seus parentes ou conhecidos tinham sido ‘reconciliados’ e acolhidos no seio da mãe Igreja por São Domingos. Colocamos aqui uma pequena amostra destas ‘confissões’, que testemunham da atuação pastoral de Domingos junto aos hereges que se convertiam.

“Ano 1243, dia 26 de agosto- Frei Ferrario interroga a testemunha juramentada Marquesa, esposa de Bertrando de Pruille, originária de Fanjeaux e agora morando em Pruille. Ela declarou que sua mãe Emergarda viajou de Fanjeaux junto com a herege Turca e foi para Avellanet, onde se tornou herege e vestiu o habito dos hereges. Então a testemunha (Marquesa) foi à procura da mãe e a acompanhou de volta a Fanjeaux. Ela abandonou a heresia e foi reconciliada por frei Domingos... Isto aconteceu trinta e dois anos atrás”.

“Ano 1243, 26 de agosto- Ermergarda, esposa de Pedro Boer, testemunha juramentada, declarou que na casa de Canasta encontrou Hysarno de Castres e seu sócio, ambos hereges. Porém não lembra se viu alguém outro junto deles. Ela os ‘adorou’ e foi acolhida na heresia. Quem a recebeu foi o próprio Hysarno. Naquela época os hereges viviam livremente na região. Isso aconteceu mais ou menos trinta anos atrás. Em seguida ela foi reconciliada por frei Domingos.”

“Ano 1245, dia 19 de maio- Segura, esposa de Guillherme Vital, testemunha juramentada, declarou o seguinte: quando era menina de 10 anos, foi induzida a se tornar herege e permaneceu na heresia por cinco anos, mas depois a deixou. Naquela época os hereges viviam livremente em Manso. Disse também que, de fato, acreditava que os hereges fossem pessoas boas e sinceras e tementes a Deus. Escutou os hereges pregando que a hóstia consagrada não é o Corpo de Cristo. E a testemunha acreditava no que eles diziam. Não lembra de outras doutrinas erradas pregadas por eles. Ela depois se confessou com outros inquisidores e nunca mais teve contato com os hereges, nem deu a eles presentes, nem deles recebeu algo. Esta sua confissão foi sincera. Assim frei Domingos a reconciliou da heresia. O bispo de Toulouse entregou a ela, para usar, duas cruzes; mas ela não as usou por muitos dias e muitas vezes as encobria”.

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“Ano do Senhor 1245, 22 de novembro - Braudrica, testemunha juramentada, declarou que viu os hereges vivendo livremente em Laurac e em Las Bordas, mas nunca os ‘adorou’, nem os viu ser ‘adorados’ por outros. Isto acontecia 35 anos atrás. Ela declarou também que seu pai Arnaldo Baudriga foi herege por sete anos e viveu no Montsegur; mas depois foi reconciliado por frei Domingos, da Ordem dos Pregadores, e voltou ao seio da mãe Igreja.

“Ano 1246, dia 28 de fevereiro, Willelmo Auterio, originário de Villapicta e agora de Castronovo Darrio, testemunha juramentada, declarou que seu pai Raimundo Auterio e sua mãe Raimunda foram hereges, mas depois foram convertidos à fé católica e foram reconciliados pelo bem-aventurado Domingos e pelo abade de Villalonga. Isso aconteceu mais de trinta anos atrás. Eles receberam a carta de reconciliação. Mais tarde, porém, Raimunda voltou ao seu vomito, aderindo mais uma vez à heresia, e por causa disso foi queimada”.

“Ano 1246, dia 12 de março - Willelma Martina, esposa de Willhelmo Lombardi, testemunha juramentada, no que se refere à heresia declarou que, quando era jovem, conheceu muitos hereges (homens e mulheres) em Fanjeaux... Isto aconteceu mais de 30 anos atrás. Declarou também que se confessou a frei Domingos, da Ordem dos Pregadores, e recebeu dele a penitencia de usar duas cruzes na parte anterior do vestido, por dois anos. Durante estes dois anos não podia comer carne, a não ser nos dias de Natal, Páscoa e Pentecostes. Ela cumpriu estas penitências e recebeu a carta testemunhal disso pelo frei Domingos, mas depois a perdeu, quando Fanjeaux foi queimada pelo conde de Montfort.”.

“Ano 1246, 15 de maio - Saura, irmã de Willhelme Bonet, testemunha juramentada, declarou que na idade de 7 anos tornou-se herege e permaneceu na heresia por três anos, vivendo em Villanova, junto com Alazaisia de Cuguro e suas companheiras hereges... Ela foi reconciliada por frei Domingos, da Ordem dos Pregadores; e já faz mais de 35 anos que foi reconciliada”.

“1246, 8 de junho: Poncio Iaule, testemunha juramentada, declarou de ter sido herege por três anos, mas depois se confessou a frei Domingos, que lhe deu a carta de reconciliação, que infelizmente perdeu.” 13

O ato de ‘reconciliação’ tinham um valor jurídico, mas estava fortemente impregnado, na sua preparação e execução, daquela ‘misericórdia’ que animava o coração apostólico de Domingos. Hoje é historicamente provado que nunca ele atuou como inquisidor. 14 Teria sido realmente a pior contradição, por parte dele, perseguir o sonho da conversão dos hereges pelo diálogo, a pregação e o exemplo, e ao mesmo tempo atuar para o seu extermínio! Realmente podemos reconhecer que, naquele contexto nada evangélico Domingos atuou como ministro e testemunha da misericórdia e do amor de Deus para com todos os seus filhos, inclusive os hereges.

E dos hereges Domingos aprendeu bastante, apesar de tomar distância de muitas de suas doutrinas e práticas religiosas. De certa forma pode-se dizer que os hereges ‘evangelizaram’ Domingos! Podemos constatar este fato se confrontarmos os valores de vida evangélica que os hereges praticavam e pregavam, com o estilo e valores de vida evangélica que Domingos foi adotando, depois da ‘virada’. Indicamos a seguir, de forma sintética, algumas destas coincidências, e também umas contraposições:

Cátaros: Domingos:-Imitação do Cristo: evangelismo + Imitação do Cristo: evangelismo-Caminho da ‘perfeição’ evangélica + Caminho da ‘perfeição’ evangélica-Imitação da Igreja dos Apóstolos + Imitação da Igreja dos Apóstolos

13 Atas dos processos da Inquisição - texto em KOUDELKA, V. J. – Monumenta diplomatica S. Dominici, (Apendix – I) MOPH, XXV – 1966, 177, s.14 Sobre a questão do relacionamento de São Domingos com a Inquisição ver o estudo de ROQUEBERT, M. – Saint Dominique. La légende noir, Perrin, Paris 2003.

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-Pregação com exemplos e palavras + Pregação com exemplos e palavras-Pregação itinerante + Pregação itinerante-Pobreza evangélica, partilha + Pobreza evangélica, partilha-Somente o Novo Testamento + Domingos decorou Mateus e Cartas de Paulo-Centralidade do Espírito + Pentecostes: mística da ‘democracia’-Comunidade/comunhão na missão + Comunidade/ comunhão na missão-Leigos e mulheres pregadores + Monjas e leigos/as ‘pregadores’-Negação da Encarnação de Cristo - Seguimento de Cristo Encarnado-Negação de Maria - Devoção, caminho com Maria-Negação da mediação sacerdotal - Mediação sacerdotal > ‘ordo clericalis’-Negação da Eucaristia - Centralidade da Eucaristia

Cada uma destas coincidências e contraposições mereceria uma análise específica, mais aprofundada. Os limites do presente trabalho não o permitem. Mas também neste pequeno quadro esquemático podemos constatar como muitos aspectos da vida de Domingos aparecem profundamente marcados, como resposta positiva, exemplar, ou como contraposição, pelos apelos e também pelos ‘exemplos’ de vida dos Cátaros. Ele soube colher o positivo que existia na vida e na doutrina desses irmãos, e soube incorporá-lo no seu próprio projeto de vida.

Nos passos de Jesus: a ‘Regra’ dos ApóstolosO testemunho mais eloquente sobre a vida evangélica de Domingos foi dado pelo amigo

papa Gregorio IX, quando o canonizou em 1234. “Nele eu conheci um homem plenamente evangélico, que seguiu em tudo os passos do seu Senhor.” 15 Não se poderia ter um elogio mais verdadeiro e merecido para Domingos! Podemos constatar esta fidelidade ao Evangelho e ao seguimento e imitação de Cristo confrontando - mais uma vez de forma forçadamente sintética - os valores e formas que eram próprios da vida religiosa monástica na época de Domingos, com as ‘novidades’ evangélicas que Domingos vivenciou no seu próprio itinerário de ‘convertido’ para o seguimento radical de Cristo, e que depois transmitiu e institucionalizou na vida da Ordem:

Vida monástica Vida dominicana- fuga do mundo - inserção, compromisso no mundo- contemplação - contemplação e ação, na ação, para a ação- oração e trabalho manual - oração e estudo, para a pregação e o ensino- propriedade comunitária dos bens - mendicância, partilha- estabilidade no mosteiro - itinerância apostólica- regime ‘patriarcal’ do abade - regime democrático, autoridade na base- inserção local - cidadania universal- missão/testemunho local - missão/pregação universal

A vida religiosa, até a época de Domingos, era essencialmente vida contemplativa e monástica. Os “cônegos regulares” não eram propriamente religiosos, mas padres diocesanos vivendo uns projetos de vida comunitária. Por exemplo, eles não tinham o voto de pobreza. Querendo imitar a Cristo e animado por sua 'compaixão' evangélica, São Domingos vivencia no seu próprio projeto uma forma de vida religiosa que parece totalmente nova, mas que, na realidade, é a forma de seguimento de Cristo originário, qual encontramos nos primeiros tempos do cristianismo: a forma de vida que foi própria de Cristo e da comunidade dos Apóstolos. De fato, sem querer menosprezar os valores e formas da vida monástica, se analisarmos os dois modelos de vida religiosa apresentados acima e procuramos ver qual dos dois se parece mais com a vida de Cristo e dos Apóstolos, não cabe dúvida: o modelo de vida mais parecido é o de São Domingos! De fato, Cristo não viveu como eremita, na ‘fuga’ do mundo, mas na inserção e no compromisso mais pleno no mundo, apesar de não “ser do mundo”. Ele não praticou a vida contemplativa longe da realidade, mas foi contemplativo na ação, a partir da ação e para a ação.

15 Cf. texto da Bula de Canonização publicado por WALZ, A. e, MOPH, XVI, 190-194.

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Ele praticou a pregação itinerante, viveu de acolhida e de partilha, vivenciou a dialética democrática no relacionamento comunitário, aceitando críticas e questionamentos por parte dos discípulos; os horizontes da sua missão redentora ultrapassaram os limites locais e étnicos do povo de Israel e se estenderam a toda a humanidade, na aldeia global. Para isso, enviou seus discípulos a anunciar o Evangelho por toda parte, até “os confins do mundo”.

Domingos fez o mesmo, e pediu a seus seguidores de fazer o mesmo. Ele foi um contemplativo na ação e para a ação, atuando não na fuga do mundo, mas na inserção mais plena, na solidariedade e no compromisso junto aos irmãos, tornando-se solidário com todo tipo de sofrimento, de miséria e de marginalização. É bonito lembrar o testemunho dos primeiros frades, que de noite o escutavam chorar na igreja e ‘gritar’ a Deus sua angustia e sua compaixão para com as misérias e os sofrimentos que tinha encontrado durante o dia, nas suas incansáveis andanças apostólicas. Como o seu Mestre, andava a pé, descalço e sem bagagem, vivendo de esmola, aceitando a partilha dos que lhe abriam a porta. Com gesto profético, mais uma vez imitando o seu Mestre, quis esparramar seus primeiros discípulos pelo mondo afora, para anunciar a Boa Nova.

Viver como Cristo, viver como a comunidade dos Apóstolos, conforme a ‘regra’ de vida dos Apóstolos: este foi a ‘novidade’ antiga do carisma de Domingos. Esta referência exemplar á comunidade dos primeiros tempos retorna repetidamente, como um refrão, em todos os textos que explicitam o projeto de vida e de missão dos Pregadores. Alguns exemplos, tirados de vários documentos:“Aquele que fecunda sempre a sua Igreja com novos filhos, querendo conformar os tempos atuais com os primitivos e pregar a fé católica....” “Nele eu conheci um homem que praticava plenamente a regra dos Apóstolos... Ele, em tudo, nas palavras e nas obras, manifestava-se como inspirado pelo Evangelho... Ele viveu como homem evangélico, seguindo os passos do seu Senhor...” “O próprio Cristo, a partir de quando começou a pregação, não teve mais uma casa onde posar a cabeça, mas ia pregando pelas aldeias e cidades, e por toda a Galiléia, como narram os Evangelhos de Mateus e de Marcos. E também os Apóstolos (dos quais não se lê que tivessem uma casa própria para morar) iam pregando por toda parte (cf. Mc. 16,20). Porque então tem pregadores que querem ficar sempre no sossego do seu convento?”“Como na Igreja dos Apóstolos, assim entre nós a comunhão se funda, se constrói e se reafirma naquele mesmo Espírito no qual recebemos de Deus Pai o Verbo numa só fé, o contemplamos num só coração e o louvamos com uma só voz.” “Imitando os Apóstolos que anunciavam o Reino de Deus sem levar consigo ouro, ou prata ou dinheiro, São Domingos e os seus irmãos, segundo as exigências do apostolado do seu tempo, estabeleceram não ter propriedades nem rendimentos, nem dinheiro e, enquanto pregavam a palavra evangélica, mendigar o pão da comunidade.” “Participando da missão apostólica, assumimos também a vida dos Apóstolos, conforme a maneira concebida por São Domingos”

Domingos conseguiu responder dessa maneira ao apelo dos irmãos, sobretudo dos hereges: queremos ver o rosto verdadeiro de Cristo, queremos experimentar seu amor, sua misericórdia! Ele procurou dar resposta a este apelo com sua própria vida e com sua palavra, simplesmente imitando a Cristo, vivendo como Ele viveu junto com a comunidade dos Apóstolos. É por isso que, sem falsa modéstia, podemos afirmar que a atualidade do carisma e da missão de Domingos tem a mesma atualidade do ‘carisma’ e da missão de Cristo!

A vida religiosa na Igreja apresenta um curioso processo evolutivo que vai da ‘fuga mundi’ (vida dos eremita dos primeiros séculos e vida monástica) até a inserção mais plena no mundo (carismas da caridade e os institutos seculares mais recentes). O modelo de vida evangélica vivenciado e estabelecido por Domingos, representa um marco histórico nesta evolução da vida religiosa: a passagem da ‘fuga mundi’ para a consagração e a missão no mundo. Neste sentido se reconhece no projeto de São Domingos uma verdadeira ‘refundação’ da vida religiosa: o modelo de vida religiosa que se afirmou nos tempos mais recentes da história da Igreja. E por causa disso Domingos pode ser reconhecido como um ‘pai’ da vida religiosa moderna.

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Podemos também reconhecer no projeto de Domingos a ‘refundação’ daquele modelo de Igreja que encontramos nas origens do cristianismo: uma Igreja não estruturada como pirâmide hierárquica, mas como ‘círculo’ de comunhão e de corresponsabilidade. Uma Igreja em que todo mundo (leigos, religiosos, padres, bispos, papa), cada um com seu dom e sua função própria, caminham irmanados no compromisso de discernimento e de obediência aos sinais do Espírito, que fala na história da humanidade. Uma Igreja na qual o ‘púlpito’ próprio de cada batizado tenha seu espaço e seja respeitado e promovido. Uma Igreja não mais ‘sociedade perfeita’, fechada em si mesma, longe da realidade, mas encarnada, solidária, servidora. De fato, a estrutura e o governo ‘democrático’ próprio da Ordem de São Domingos representam um sinal ‘profético’ sempre atual, para esta nossa Igreja que ainda precisa se libertar das incrustações ‘constantinianas’, voltando a ser realmente Igreja ‘povo de Deus’, conforme os apelos do Vaticano II.

frei Mariano S. Foralosso OP

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