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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
Programa de Pós-Graduação em História
MARILU SANTOS CARDOSO
Musicalidades Brasileiras Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário musical
urbano dos anos de 1960-1990
Doutorado em História
São Paulo 2019
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
Programa de Pós-Graduação em História
MARILU SANTOS CARDOSO
Musicalidades Brasileiras Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário musical
urbano dos anos de 1960-1990
Doutorado em História
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutora em História sob
orientação da Prof.(a), Dr.(a) MARIA DO
ROSÁRIO DA CUNHA PEIXOTO.
São Paulo 2019
2
Banca Examinadora
__________________________________________________ Prof.(a) Dr.(a) Maria do Rosário da Cunha Peixoto (Orientadora)
__________________________________________________
Prof. Dr. Amilton Magno de Azevedo
__________________________________________________ Prof. Dr. Ival de Assis Cripa
__________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a) Maria Antonieta Antonacci
__________________________________________________ Prof. Dr. Salomão Jovino da Silva
3
Dedicatória Dedico essa pesquisa a todas as pessoas que vivem a arte em sua plenitude e que mesmo diante dos obstáculos expressaram e continuam expressando suas visões de mundo, nos proporcionando o contato com sentimentos e culturas diversas num campo de resistência à lógica autoritária da sociedade brasileira.
4
Essa pesquisa contou com apoio financeiro da
CAPES, sem o qual sua realização não seria
possível.
5
Agradecimentos
À minha mãe, Luzia Santos Nascimento (em memória), mulher negra, baiana,
que chegou a São Paulo viúva, com quatro filhos(as) e que, dentro de sua
sabedoria, me ensinou a sobreviver e viver com dignidade numa cidade “moinho de
gente”, na periferia da Zona Sul de São Paulo. A todas as mulheres, minhas
ancestrais, por gravarem em nossas vidas a cultura da resistência e o culto às
energias existentes, que nos mantém de pé e de cabeça erguida.
Ao meu pai, Alcino Joaquim Cardoso (em memória), por ter iniciado o meu
caminho nos movimentos populares, por ter me permitido acompanhá-lo nas
reuniões de associações de moradores de bairro desde a infância. Por me ensinar a
lutar por justiça e a ter coragem de enfrentar e questionar o que considerava errado.
À “Dinha”, Rosa Moraes Alves de Oliveira, por ter sempre me apoiado de
todas as formas possíveis, por ter acreditado em mim quando muitos
desacreditaram. Por estar ao meu lado em todos os momentos da minha vida, pela
certeza de que nunca estive só, o mesmo dedico a sua filha Carolina Moraes, minha
prima/irmã.
Ao meu primo José Alves de Oliveira (em memória) que me incentivou, desde
cedo, a buscar o conhecimento. Que trabalhou a vida inteira e se foi cedo, deixando
um grande legado que é o de não aceitar submissões de nenhuma natureza.
Ao meu irmão, Sebastião Santos Nascimento (em memória), assassinado
pelas “mãos do Estado”, que com seu violão me apresentou tantas canções. Que
despertou em mim a sensibilidade para a arte e me fez perceber, bem cedo, o
potencial destrutivo da sociedade autoritária em que vivemos.
Ao meu irmão, José Antonio Santos Nascimento (em memória), que também
morreu jovem, afogado na represa do Guarapiranga, como tantos(as) outros(as),
jovens pela falta de espaços e condições de lazer, também fruto dos descasos de
nossos “governantes”. Pelas lições de seriedade e por ter amparado toda família
antes de partir.
Às minhas irmãs, Dalva Santos Nascimento Pacheco e Marlene Santos
Nascimento Silva, pelas palavras de incentivo e por demonstrarem imenso orgulho
diante de cada uma de minhas conquistas. Da mesma forma, aos meus cunhados,
Geraldo Tedeu Pacheco (em memória) e Antonio Wilson.
6
Aos meus sobrinhos e sobrinhas, primos e primas, que, desde criança,
aprenderam comigo a ouvir música popular brasileira e que, inúmeras vezes, me
acompanharam nas canções de Vandré, quando eu insistia em tocá-las no violão.
Aos meus amigos, poucos, mas sinceros, que, nas horas difíceis, me fizeram
acreditar que ainda existe amizade neste mundo. Especialmente à Maria José
Costa, Egnaldo Rocha e Sandra Portuense, companheiras(os) de “batalha
acadêmica”.
Ao meu amigo Antonio Passaty, que mais que amigo foi também um grande
parceiro, me incentivando de todas as formas possíveis e me apoiando em cada
entrevista realizada. A ele, os créditos de todas as imagens gravadas nos diferentes
estados em que passamos.
Ao Alexandre Durães, companheiro com o qual sempre poderei contar, sem
os rótulos e moldes das relações afetivas entre um homem e uma mulher. Pessoa
incrível que sempre amarei da forma mais profunda e subversiva empregada ao
termo.
Agradeço ao Heraldo do Monte e sua família, por terem me recebido em dois
momentos com extrema atenção e um acolhimento sempre carinhoso. Ao Sérgio
Ricardo pela prosa e genialidade apresentada no Vidigal, uma tarde linda e alegre.
Ao Theo de Barros, pela atenção, pela sutileza e pela generosidade. Ao Hermeto
Pascoal, por permitir uma aproximação, desde a abertura da porta, da energia
contida nele e, consequentemente manifestada em sua narrativa, um dia
inesquecível. Ao Airto Moreira, que mesmo sem me conhecer, respondeu
prontamente a todos os contatos, pela entrevista de longas horas pelo Skype
quando estava nos E.U.A, permeada pela emoção e por ter me recebido em Curitiba
esse ano, com um brilho no olhar e com uma simplicidade correspondente a sua
visão de mundo. Ao Geraldo Vandré, pela valorização e reconhecimento da minha
pesquisa, pelas conversas e encontros ao longo dos anos após o mestrado e por ter
me recebido em João Pessoa, pelo carinho de me colocar na lista de convidados(as)
nas duas apresentações que fez e março de 2018, por cantar depois de 50 anos em
nosso país e pela entrevista concedida num domingo mesmo tendo uma série de
compromissos diante da repercussão de suas apresentações junto à pianista
Beatriz. Ao Sidney Miller (em memória) pelo legado de sua obra conhecida, e pelas
composições inéditas que um dia espero ouvir, agradeço à Joice Moreno por me
7
contar o que sabia sobre ele.
Às professoras e professores da PUC/SP, sobretudo à Maria do Rosário da
Cunha Peixoto (orientadora) pelo respeito à sua trajetória e luta, pela contribuição
que tem na minha caminhada e à Maria Antonieta Antonacci, que não por acaso,
indiquei como membro da Banca Examinadora.
Aos professores que participaram da Banca de Qualificação, Amailton Magno
Azevedo pela identificação e admiração do lugar de fala, professor negro, músico,
compositor, cantor e inspirador, que “colou” na “quebrada” fortalecendo nossas lutas.
Especialmente ao Salloma Salomão, irmão, parceiro de lutas dentro do território,
pessoa... Pessoa, gente, artista, homem negro, capaz de transformar sonhos em
realidade, não pelo romantismo empregado à expressão, mas pela capacidade de
lutar com as mãos, de fazer acontecer, por fortalecer nossas trajetórias, por olhar
nos olhos e dizer: É possível! Máximo respeito por sua existência, conhecimentos,
sabedoria e luta contínua contra o racismo antinegro... Valeu Leão!!
Ao Professor Ival de Assis Cripa, que, na graduação, me orientou nos
primeiros passos para a pesquisa e que sempre esteve disposto a me ajudar, seja
pelas conversas via internet ou pelos encontros presenciais, mesmo após o término
da graduação. Por ter lido meus textos e por ter me acompanhado em várias etapas
deste caminho, não por acaso tenho satisfação e gratidão por tê-lo como membro
dessa Banca Examinadora.
Por fim, agradeço a cada estudante com os(as) quais tive contato nesses
vinte anos de magistério, das diversas escolas por onde passei. Na realidade, minha
busca contínua por conhecimento é fruto do pensamento de que trabalho para
minha gente e que elas e eles merecem o melhor que eu possa fazer. Dominar os
conteúdos não é tudo, mas duvidar das verdades estabelecidas é algo que aprendi e
desejo ensinar. A pesquisa histórica é um dos caminhos necessários para tanto.
Conhecer gente, olhar nos seus olhos, reconhecer nossas humanidades e pontos de
convergências identitárias são outras histórias a serem registradas...
8
CARDOSO, Marilu Santos. Musicalidades Brasileiras - Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário musical urbano dos anos de 1960-1990. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019. Resumo
A presente pesquisa tem por objetivo problematizar as Musicalidades
Brasileiras: Expressões, vivências, relações, tensões e resistências no cenário
musical urbano dos anos de 1960-1990. Para tanto estabeleci como sujeitos/objetos
de pesquisa as trajetórias de músicos, compositores e cantores que me chamaram
atenção pelas perspectivas de presente e pelos posicionamentos adotados dentro
da periodização estabelecida.
São eles, Airto Moreira, Geraldo Vandré, Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte,
Sérgio Ricardo, Sidney Miller e Theo de Barros. Homens que vivenciaram a música
e a cultura musical brasileira, contemplando suas diferentes faces e especificidades.
Que tiveram contato em alguns momentos, mas que em outros trilharam seus
caminhos em trajetórias solos.
A relação entre música e política é ponto central das investigações, sendo as
fontes da História Oral primordiais para realização desse trabalho. Diante da
pluralidade das experiências busquei enfatizar suas relações com a música, assim
como as múltiplas formas pelas quais suas obras são atravessadas pelas relações
estabelecidas com a indústria cultural brasileira, que interferem nos processos
criativos, produção, veiculação e recepção das mesmas. Ressalto que os projetos e
posicionamentos de resistência são constituintes da escolha dessa temática, bem
como das considerações e registros aqui presentes.
Palavras-chave: Música; indústria cultural brasileira; musicalidades; resistência.
9
CARDOSO, Marilu Santos. Brazilian musicality – expressions, experiences,
interface, tension and resistance in 1960-1990 unban scene. These. (Doctorate
in History), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.
Abstract
This ongoing research aims at hashing out the Brazilian musicality:
expressions, experiences, interface, tension and resistance in 1960-1990 unban
scene. To achieve this, the musicians, composer and singers whose trajectory have
drown my attention to their perspective about the present, as well as the viewpoint
assumed by them through the former period investigated was established as
subjects/objects of the research.
These musicians are: Airto Moreira, Geraldo Vandré, Hermeto Pascoal,
Heraldo do Monte, Sérgio Ricardo, Sidney Miller e Theo de Barros. Men who have
experienced Brazilian music and culture, contemplating their different aspects and
specialness. All of them had some interaction in some moments but have followed
their solo career.
The relationship between music and politics is central to the investigation,
being the oral narratives essentials sources for the achievement of this study. In the
face of the plurality of experiences, I tried to emphasize their connection with music,
as well as the multiple ways their work have been undergone by the relation
established with the Brazilian cultural industry, which interfere in the creative
process, production, media placement and reception of them. It is important to
highlight that the project and the position of resistance are constituent parts in the
choice of this theme, as well as the considerations and records presented here.
Keywords: Music; Brazilian cultural industry; musicality; resistance.
10
Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 11
Capítulo 1. Conexões e relações com a arte: Nas ruas, cidades e sertões ................ 21
1.1 Terra, chão, gente e sensibilidades ..................................................................... 24
1.2 Bares, boates, rádio e TV: Caminhos e descaminhos ...................................... 46
Capítulo 2. Indústria Cultural Brasileira, tensões e suas relações com a música ....... 68
2.1 Mediações e produções musicais ........................................................................ 70
2.2 Construção das imagens e silenciamento ........................................................ 106
Capítulo 3 – Fé, amor e mais nada: Iniciativas e resistências ..................................... 122
3.1 Quarteto Novo: Entre improvisos e desafios .................................................... 147
3.2 Disco de Bolso: Qual é? ....................................................................................... 168
Considerações finais ........................................................................................................... 192
Fontes Principais ................................................................................................................. 204
Bibliografia ............................................................................................................................ 206
11
Introdução
“Todos os mitos são iguais a sabonetes”
Belchior
As relações entre a música e a sociedade brasileira têm, em suas bases, as
mediações realizadas pelo que chamamos de indústria cultural brasileira. As
análises aqui presentes são frutos das percepções e estudos realizados ao longo
dos anos que dedico a tais reflexões, dentro de uma perspectiva de que não existem
determinismos, mas que as formas de produção, veiculação e projeção das
expressões musicais são atravessadas por tensões e conflitos, também permeadas
por buscas de projetos e alternativas que muitas vezes criam espaços possíveis de
existência e participações, visto que toda estrutura construída, ainda que dentro de
circunstâncias e projetos autoritários, é tencionada por processos de resistência e
participações que promovem brechas e reestruturações.
A citação de Belchior, na epígrafe é representativa do pensamento e
posicionamento a que cheguei, até o presente instante e da forma como percebo a
historicidade dessas relações, onde os mecanismos da própria indústria cultural
brasileira, no que diz respeito à música, tende a colocar em ascensão expressões,
que mesmo tento surgido como populares acabam por se tornar hegemônicas,
ocorrendo, consequentemente o desvio do olhar e a dificuldade de acesso do
público ao que foi e continua sendo produzido por compositores(as), músicos(as) e
cantores(as) brasileiros(as) que não se encaixam nos padrões exigidos pelo
“mercado musical”. A elevação de um(a) artista e sua transformação em “mito”, no
sentido de referência ao “sucesso” se configura, também, como uma mercantilização
da obra, exigindo uma adequação aos moldes estabelecidos, que acaba por se
constituir como obstáculos para processos criativos que somente são possíveis a
partir da liberdade.
Ainda assim, não é possível adotar um olhar determinista, pois mesmo no
“centro das engrenagens” ou às suas margens, há resistências e pressões que
impulsionam transformações e rupturas com a lógica de transformação da música
em produto.
A feitura dessa pesquisa se deu em meio a uma conjuntura bastante
complexa. Escrever sobre arte e suas relações com uma sociedade autoritária num
12
cenário de golpe, iniciado em 2013 durante as manifestações de junho é de fato um
grande desafio. Mas, o lugar de onde falo é marcado por desafios e enfrentamentos
desde sempre e o contato, a apreciação e produção artística têm sido ao mesmo
tempo fonte de inspiração e possibilidades de expressões de vivências e
observações sobre a realidade que fortalecem a abordagem e delimitação da
presente temática.
Eu, mulher negra e periférica encontrei desde cedo na música uma fenda que
ao mesmo tempo em que, dentre outras forças, me constituiu e me levou a
questionamentos a respeito da vida e meu posicionamento diante dela. A ideia de
que existe um tipo de arte como produto feito pelas elites e restrita à sua apreciação
e outro tipo direcionado à “cultura de massa” nunca me condicionou e nem levou à
sua credibilidade, sendo assim as problematizações aqui realizadas são resultados
de formas de sentir e pensar que, nesse momento apresento pelo veículo de uma
tese acadêmica, buscando respeitar o rigor exigido, mas ao mesmo tempo
respeitando os sentimentos propulsores de tais indagações.
O contato com as obras estudadas, a apreciação de canções e músicas que
dentro da esfera vivida por mim nos anos 1980 e 1990 se mostrava de forma
inusitada, pois a revelia dos meios de comunicação, sobretudo as emissoras de
televisão e de rádio, me aproximei, ouvi e senti musicalidades que me chamaram
atenção pelo teor e vibrações comunicadas que se alinhavam com meus desejos e
sonhos de transformação de uma realidade, a qual aprendi a questionar pela
cotidianidade das dores e dos processos excludentes vividos na periferia da Zona
Sul de São Paulo.
A música permeia minha vida e acredito que assim se dá em tantas outras
vidas e experiências diversas. É pulsante e transgressora, mas também pode ser
intencionalmente utilizada como disciplinadora de modos de vida e concepções. A
questão central é a forma como a criação e a recepção são mediadas por diferentes
veículos com feições e intenções diversas. Os questionamentos que trago da
adolescência e mais tarde, de forma amadurecida pela militância e pelas práticas e
reflexões como professora de história na rede pública de São Paulo, são
sistematizados nesta pesquisa com um propósito muito preciso que é o de ressaltar
a importância da música na constituição de nossa humanidade, das consciências e
posicionamentos diante de uma sociedade.
13
Como professora da rede pública na educação básica, assumo a
responsabilidade de possibilitar experiências e trocas que fomentem a convicção de
que a música e a arte de fora geral, são importantes fontes de transformações e de
que não somos obrigados(as) a ouvir somente o que os meios de comunicação nos
direcionam.
A historicidade dessas questões delineou a problemática central dessa
pesquisa que é a forma como as expressões e trajetórias dos artistas aqui
estudados foram significadas dentro da periodização estabelecida. Bem como as
múltiplas formas de resistência e persistência diante de uma sociedade autoritária,
que não se restringe ao período ditatorial, visto que abordo o período dos anos 1960
a 1990.
A arte está presente em todas as sociedades, como fruto das experiências
humanas expressa, em diferentes tempos e espaços, sentimentos, desejos, visões
de mundo e formas de interações e intervenções. Assim como é constituída pelas
múltiplas realidades é também constituintes dessas.
As relações entre Cultura Popular e Cultura hegemônica serão
problematizadas como dinâmicas e permeadas pelas tensões, confluências e
diálogos a partir das discussões com os referenciais utilizados, como a noção de
“transformação cultural” apresentada por Stuart Hall:
“(...) A "transformação cultural" é um eufemismo para o processo pelo qual algumas formas e praticas culturais são expulsas do centro da vida popular e ativamente marginalizadas. Em vez de simplesmente "caírem em desuso" através da Longa Marcha para a modernização, as coisas foram ativamente descartadas, para que outras pudessem tomar seus lugares.”1
Hall toca num ponto relevante para as reflexões aqui apresentadas, visto que
o discurso de modernização não somente expulsa via exclusão, com seus
mecanismos de produção e veiculação da música, como também marginaliza
artistas ao se alinharem ou com temáticas, modos de vida e estéticas que desafiam
a lógica de modernização. O viés político que relaciono ao popular como resistência
1 HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do "popular". In: Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Liv Sovik (org); trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da
UNESCO no Brasil, 2003. p. 248
14
à dominação se distancia da dicotomia popular – erudito, até porque, no que se
refere ao “mercado musical” há um permanente diálogo, mesmo com tendências à
hierarquização com as expressões que emanam dos grupos populares, mas que
passam por processos de ressignificações e releituras.
A forma como nos relacionamos com as expressões artísticas e seus/suas
criadores(as) evidencia traços significativos dos modos de vida e dos anseios.
Permeadas em suas criações e recepções por subjetividades, quando atravessadas
por diferentes interesses e usos passam a ser fontes e alvos de projetos, muitas
vezes, conflitantes e imprevisíveis, não havendo controle absoluto sobre seus
impactos.
Esse trabalho surge da necessidade de compreensão a respeito das relações
estabelecidas entre a sociedade brasileira e a arte, com foco na música, ainda que,
pela natureza das obras e artistas analisados, transite por diferentes linguagens.
De acordo com Jesús Martím Barbero o funcionamento da hegemonia na
indústria cultural não anula as aspirações de liberdade, mas as pressionam com
interesses de “expropriação”, “massificação” e de processos “educativos”, nem
sempre vencedores, mas bastante perspicazes. A complexidade dessas relações
parte da dificuldade de compreensão a respeito de como o “popular” opera de forma
ambígua sobre as transformações impostas. Os processos de “modernização” e as
práticas de “massificação” implicam em um aprofundamento a respeito do conceito
de “cultura”, tendo como referência os estudos realizados por Raymond Williams.
Segundo Williams, a cultura é dinâmica e complexa, sendo produto das
relações sociais existentes dentro de uma realidade material, estando presentes
todas as contradições e antagonismos de uma sociedade, assim como as
convergências e divergências. Sendo o ser humano imprevisível e as suas relações
sociais conflituosas e permeadas por significações e ressignificações, a cultura
como produto desta sociedade não poderia ser concebida de outra forma. O artista
não é um ser aquém das relações sociais, ele faz parte destas relações e a sua
produção, seja ela qual for é fruto da sua experiência e da forma como se posiciona.
A dificuldade em conceituar o nacional e o popular e a confusão, muitas vezes
realizada, em torno destes conceitos, são reflexões de importantes pesquisadores,
entre eles Stuart Hall, Jesús Martín-Barbero e Marilena Chauí. Sendo ainda mais
complexa a discussão em torno do que seja a “Cultura Popular”. Esta abordagem é
15
fundamental para que possamos compreender as práticas sociais desenvolvidas por
esses artistas brasileiros.
Há alguns aspectos que muito me intrigam, de que forma e em que medida as
temáticas e estilos, adotados pelos artistas estudados, se contrapõem aos projetos
que “excluem o povo como sujeito”? Busco, portanto, compreender a partir desse
referencial as relações de possíveis hierarquizações a respeito da produção musical,
sobretudo, no que se refere às classificações do que era evidenciado e do que era
colocado numa esfera de banalização ou de menor valor artístico, bem como os
conflitos evidenciados na conjuntura das produções artísticas e nas particularidades
das tendências, que envolvem posicionamentos, concepções e projetos diversos.
Para tanto se faz necessário uma análise atenta das fontes produzidas pela
imprensa, sobretudo, a imprensa ligada aos interesses hegemônicos, como é o caso
da Revista Veja, mas também das produções artísticas e da constituição do público
por meio das fontes da História Oral .
Busca de longa data, impulsionada por experiências e análises presentes nas
trajetórias pessoal, acadêmica e profissional, reveladora de posicionamentos e
projetos, algumas vezes, dissonantes. Luta por justiça e visibilidade para pessoas
que se dedicaram e se dedicam à arte, com toda sua força, expressão e significado,
não esquecendo suas condições humanas, seus conflitos e contradições frente aos
desafios de viver da e para a música.
As reflexões aqui apresentadas foram, sobretudo, desencadeadas durante o
processo de construção da pesquisa que desenvolvi no Mestrado, com o título “Para
não esquecer Vandré: Música, Política, Repressão e Resistência (1964-1978)” no
Programa de Pós Graduação em História da PUC/SP, com orientação da Professora
Dra. Maria do Rosário da Cunha Peixoto. Por meio das análises a respeito da
memória e da importância do cantor e compositor Geraldo Vandré no cenário
cultural dos anos 1960 e 1970, com vistas a problematizar sua atuação no campo da
resistência por meio da música e as formas de repressão empregadas contra ele,
assim como suas implicações. Deparei-me com questões relevantes a respeito do
processo de constituição da memória em relação ao cantor. Nessa trajetória iniciei
um aprofundamento sobre o conhecimento das experiências de outros
compositores, chegando dessa forma ao despertar do interesse e da necessidade
de pesquisar a constituição das memórias sobre Sergio Ricardo, Sidney Miller, Airto
16
Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal e Theo de Barros, bem como buscar
compreender suas práticas sociais desempenhadas por meio da música e as
implicações em torno disso.
Geraldo Vandré tem uma importância muito grande na minha formação
política, suas canções não somente geraram emoções, como também despertaram
o interesse pelos estudos a respeito da conjuntura em que se deram suas
produções. Conheci os músicos que compõem o Quarteto Novo a partir de suas
parcerias e a música instrumental brasileira passou a ser alvo de minhas
indagações.
O que se apresenta na atualidade como cenário e memória da música
produzida no Brasil é, como afirma Walter Benjamin, também um monumento da
barbárie. Situo essa pesquisa num campo de luta contra o esquecimento de vozes
que não emudeceram, mas que vivenciaram relações e processos que evidenciam a
produção do silenciamento, mesmo que em alguns momentos tenham atingido
projeções e estabelecido vínculos necessários para veiculação de suas obras, como
apresentarei mais adiante.
Problematizo as experiências dos artistas citados, no período de 1960 a 1990,
abordando suas trajetórias, produções e suas relações com a sociedade brasileira,
com destaque para o público, a Indústria Cultural Brasileira e outros setores que
atuaram para a construção do esquecimento e para a minimização da importância
de suas obras, tais como a Imprensa, a Crítica Musical e a própria Historiografia.
Ressalto que não foi uma escolha fácil, visto a imensidão de artistas
brasileiros(as) que passaram por tais processos e que guardam especificidades
atravessadas por opressões de gênero, de classe e de raça. A escolha, como disse
anteriormente, se deu em função dos estudos aprofundados no mestrado,
abrangendo experiências de artistas que de alguma forma se relacionaram ao
Vandré. Guardadas as proporções da presente pesquisa indico que em tempo
oportuno e, espero, não muito distante dedicarei esforços para a ampliação desse
debate, chegando ao propósito de estudar expressões que dentro da dinâmica
dessa sociedade autoritária sequer são significadas como arte, falo dos meus, dos
que não estiveram e não estão dentro do circuito de legitimidade da então chamada
MPB. Para tanto, justifico que a trajetória desses estudos constituiu um olhar que
ainda se constrói e que carece de aprofundamentos.
17
Compreendendo a memória como um campo de disputas analisarei as
relações de poder que envolvem a evidenciação de determinados artistas e estilos
musicais dentro de uma dinâmica complexa que envolve as formas de
mercantilização da música, assim como os processos de resistência e busca por
brechas dentro do próprio sistema. Para tanto se fez necessário compreender, a
partir das fontes da história oral, a conjuntura em que se deram as relações
problematizadas, que envolvem a cultura, sua dinamicidade, as tensões, as
convergências e os conflitos dentro do período delimitado.
A maior parte das produções analisadas ocorreu durante as décadas de 1960
e 1970, período em que o Brasil vivenciou uma Ditadura Civil Militar. Nesse sentido,
é importante não perder de vista as relações constituídas dentro de uma conjuntura
de repressão e censura, mas também na qual a música desempenhou um
importante papel, no caso desses artistas, no campo das resistências. É importante
analisar a conjuntura dos anos de 1980 e 1990, período em que ocorreu um grande
avanço das mídias, tecnologias e veículos que envolvem a produção musical no
Brasil e, em contra partida, investigar a construção do silenciamento a respeito dos
artistas pesquisados dentro de uma conjuntura “democrática”, mas profundamente
excludente, dando indícios da complexidade da sociedade brasileira.
É importante também problematizar não somente a forma autoritária do
Estado brasileiro, mas as evidências das relações de poder que atravessam todos
os demais setores, nos levando a crer que a Indústria Cultural Brasileira não esteve
dissociada dos interesses que financiaram e colaboram para a construção do
autoritarismo no Brasil e do projeto de sociedade hegemônico até o presente
momento. Evidenciando, também, sua complexidade e a forma como as pressões
advindas do que chamamos de “forças populares” interferem e promovem pressões
sobre essa.
Adotando uma perspectiva de análise a partir do presente parto do princípio
de que o esquecimento de hoje, desqualifica, reduz e minimiza a importância de
Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Airto Moreira, Heraldo do Monte,
Hermeto Pascoal e Theo de Barros no cenário artístico brasileiro. É com essa
perspectiva que me proponho a realizar uma investigação a respeito de suas
práticas, suas trajetórias e suas relações com a sociedade brasileira, constituindo
documentos que confrontem o silenciamento e que promovam a visibilidade de suas
18
obras e histórias: “(...) o igualamento amnésico da história é, entre outras coisas,
uma afronta ao presente”2
Foi fundamental o estudo da coexistência de diferentes tendências no cenário
musical dos anos 60 e 70, bem como as relações com a Bossa Nova e com outros
estilos musicais brasileiros3, entendendo-os como expressões constituintes da
realidade e também constituídas por essa. Pretendo compreender o que se
denomina como “tendências” problematizando aspectos relevantes dos
posicionamentos, escolhas e implicações, no que diz respeito às formas musicais e
artísticas utilizadas. Analisarei os movimentos culturais que impulsionaram
transformações, concebendo-os como ações políticas permeadas por sentimentos,
desejos e projetos diversos, muitas vezes conflitantes e as correlações de forças
que os envolvem. Buscarei a compreensão a respeito da heterogeneidade das
expressões musicais, sua dinamicidade e articulações com as formas de sentir e
expressar as visões e concepções acerca do fazer artístico, significando-o como
prática social.
A partir da sondagem inicial das fontes, problematizo a existência de
discursos sobre uma “linha evolutiva da música popular brasileira”, no momento em
que as produções aqui estudadas ocorreram e na própria abordagem da
historiografia, da imprensa e da crítica musical. Faz-se necessário, portanto, um
estudo profundo a respeito das relações e discursos produzidos dentro do período
delimitado, assim como as articulações e implicações que envolvem a dinâmica das
produções musicais, suas projeções e recepções.
Levando-se em consideração que não há uma cisão entre o que se produz
artisticamente e os modos e jeitos de viver, bem como, as pressões, os conflitos e os
enfrentamentos, a análise da realidade vivenciada no campo da música precisa
considerar aspectos importantes da conjuntura do país e da conjuntura internacional,
havendo a necessidade de compreender e problematizar os conceitos de
“nacionalidade”, “cultura nacional”, “nacional popular”, bem como, suas utilizações e
2 SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias: Intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997.
P. 40.
3 Problematizarei expressões tais como a Tropicália, A Jovem Guarda, a música produzida nos Centros
Populares de Cultura da UNE, posteriormente os movimentos dos mineiros (Clube da esquina), do Pessoal do
Ceará, entre outros. É importante também aprofundar os estudos a respeito da conjuntura dos Festivais e sua
importância. Assim como também é relevante compreender as relações entre música, teatro e cinema dentro do
período abordado e as características dessas expressões, como por exemplo, o Cinema Novo.
19
significações dentro do período estudado. É importante investigar, em sua relação
com a produção musical, os projetos que anunciam os impulsos e incentivos acerca
das noções de “modernidade”, “desenvolvimento” e “evolução”, buscando
compreender de que forma esses discursos permearam o campo da cultura como
uma força que possivelmente buscou imprimir “novos modos de vida” e os impactos
disso sobre as visões e relações com a música. Pretendo estudar esses elementos e
compreendê-los numa dinâmica que aborda as produções musicais de Geraldo
Vandré, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Airto Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto
Pascoal e Theo de Barros em suas relações, posicionamentos e escolhas.
Os estudos preliminares evidenciam conflitos e oposições por parte desses
cantores, músicos e compositores a respeito das “tendências” que sinalizaram para
a necessidade de “novas roupagens” ou “modernização” da música popular
brasileira, bem como da lógica de mercado que impõe sérias implicações no que diz
respeito aos processos criativos e construções artísticas, havendo a possibilidade de
investigação a partir de depoimentos dos próprios cantores e músicos a respeito de
suas concepções sobre “música popular brasileira”4. Não busco com isso encontrar
apenas pontos de convergência entre eles, visto que cada um vivenciou e se
posicionou diante da realidade a sua maneira, e também das necessidades e
interesse materiais, aspectos que intenciono abordar por meio das análises das
particularidades de suas trajetórias, porém indico que esse é um aspecto importante
para compreendermos as implicações acerca da produção do esquecimento e da
minimização da importância desses artistas no cenário musical, assim como sobre a
memória produzida ou ocultada sobre eles.
Interessa-me investigar as trajetórias e os estilos musicais de cada um dos
compositores, músicos e cantores aqui apresentados, mas também e
principalmente, a forma pela qual se constituíram como elementos importantes no
campo de oposição aos discursos de necessidade de modernização da música
popular brasileira em detrimento de outros estilos, conceituados, por exemplo, pela
4 A este respeito os estudos de Raymond Williams apresentados no texto “Quando foi o Modernismo” (livro
Margem Esquerda: Ensaios Marxistas, Boi Tempo, 2005, que reúne artigos de diferentes pensadores) e seu livro
Drama em cena (COSACNAIFY, 2010), contribuem para a problematização iniciada, ao abordar a conceito do
termo “Moderno” e suas utilizações em diferentes épocas, assim como as transformações formais do teatro no
ocidente. Esses estudos me ajudam a pensar, também, as transformações no campo da música popular brasileira,
sem perder de vista as suas particularidades.
20
crítica musical, pela indústria cultural brasileira e pela imprensa, como
“ultrapassados”.
Essa abordagem me possibilita pensar também, de que forma as expressões
populares foram sendo constituídas durante a Ditadura Civil Militar como “folclore”
com uma perspectiva diferenciada das utilizações anteriores, com particularidades
que evidenciam uma construção ideológica de busca da “Identidade Nacional” e ao
mesmo tempo numa atitude de simplificação e minimização da sua importância,
problematizarei de que forma essa conceituação se relaciona com as disputas de
poder e de valores, investigando as relações dessas concepções com as práticas
musicais e com a própria lógica da construção do que se intitulou como MPB,
enquanto movimento, e a evidenciação dos então chamados “estilos regionais” ou
de setores tidos pelas elites brasileiras como “marginais”.
Há uma forma dicotômica e desqualificadora sobre o que foi enquadrado
como “regional”, como substrato utilizado pelos meios intelectualizados da música
brasileira, fontes “primárias” de inspiração, mas estereotipadas nas suas origens. A
musicalidade brasileira construída em diferentes locais do país, com feições,
características, contribuições e constituições diferenciadas não cabe numa
nomenclatura unificadora de expressões tão plurais e complexas.
Esses elementos da cultura popular podem ser observados nas obras aqui
analisadas. Cada artista e suas relações com as culturas de seus locais de origem
possibilitaram construções musicais nos meios urbanos que mantém um profundo
diálogo e interação com a cultura musical constituinte de nossa população, sem
perder de vista suas diversidades. Daí surge a genialidade das composições,
justamente da pluralidade e da junção de diferentes elementos, sem
hierarquizações, como é o caso de Disparada.
É inegável o posicionamento estabelecido por meio da escolha e proposta
dessa temática e das problematizações aqui apresentadas. A pertinência desse
trabalho reside não apenas na sua importância no campo da historiografia, mas na
necessidade, como ressaltada inicialmente, de atuação na luta pelo direito à
memória, e contra os processos autoritários de construção do esquecimento ou da
banalização das obras.
21
Capítulo 1. Conexões e relações com a arte: Nas ruas, cidades e sertões
Me pediram pra deixar de lado toda a tristeza, pra só trazer alegrias e não falar de pobreza. E mais, prometeram que se eu cantasse feliz, agradava com certeza. Eu que não posso enganar, misturo tudo o que vi. Canto sem competidor, partindo da natureza do lugar onde nasci. Faço versos com clareza, à rima, belo e tristeza. Não separo dor de amor. Deixo claro que a firmeza do meu canto vem da certeza que tenho, de que o poder que cresce sobre a pobreza e faz dos fracos riqueza, foi que me fez cantador.
5
Como se constrói um(a) artista? Aliás, como um(a) artista constrói a si
mesmo(a)? Não há possibilidade de farsas, um(a) cantador(a), um(a) tocador(a),
assim como demais artistas, se constroem a partir da relação que têm com a vida,
com a sua terra, consigo e com as pessoas. A música em seus desdobramentos
(melodia, ritmos, poesia e performance) é potencialmente reveladora de traços das
realidades, mesmo que se pretenda fictícia estará sempre atrelada às vivências e
experiências. Qualquer tipo de manipulação dos sentidos ou práticas meramente
comerciais transforma a arte em subproduto, destinada ao entorpecimento e não à
comunicação.
Neste capítulo abordarei de questões relacionadas às trajetórias de cada
artista aqui estudado, da forma como a música surgiu em suas vidas e os
significados atribuídos a essa. Por meio das entrevistas que realizei, das concedidas
a terceiros, produções e publicações a respeito dos artistas que pesquiso.
As reflexões iniciais foram desencadeadas durante o processo de construção
da pesquisa que desenvolvi no Mestrado, com o título “Para não esquecer Vandré:
Música, Política, Repressão e Resistência (1964-1978)” no Programa de Pós
Graduação em História da PUC/SP, com orientação da Professora Dra. Maria do
Rosário da Cunha Peixoto. Por meio das análises a respeito da memória e da
importância do cantor e compositor Geraldo Vandré no cenário cultural dos anos
1960 e 1970, com vistas a problematizar sua atuação no campo da resistência e as
formas de repressão empregadas contra ele, assim como suas implicações, deparei-
me com questões relevantes a respeito do processo de constituição da memória em
relação ao cantor. Nessa trajetória iniciei um aprofundamento sobre o conhecimento
5 Introdução da canção “Terra Plana” gravada no LP “Canto Geral” pela gravadora EMI ODEON em
1968.
22
das experiências de outros compositores, chegando dessa forma ao despertar do
interesse e da necessidade de pesquisar a constituição das memórias sobre Sergio
Ricardo e Sidney Miller, bem como buscar compreender suas práticas sociais
desempenhadas por meio da arte e as implicações em torno disso. Analisarei,
também, as experiências de Geraldo Vandré com aprofundamento de questões já
suscitadas na dissertação de mestrado.
A inserção dos músicos do Quarteto Novo, Airto Moreira, Hermeto Pascoal,
Heraldo do Monte e Theo de Barros, na temática central, se deu, sobretudo, pela
riqueza de seus relatos e pelas possibilidades de análises de suas experiências. Um
trabalho que atua na luta contra o esquecimento não seria tão contundente se não
levasse em conta a trajetória de músicos, que passam por pressões semelhantes as
dos intérpretes e compositores, mas que têm particularidades a serem evidenciadas,
visto que muitas vezes são colocados em segundo plano e seus nomes sequer são
citados durante as apresentações.
As principais fontes desse capítulo são provenientes da História Oral,
entrevistas realizadas com os principais sujeitos abordados. O conceito de
“memória” que atravessa toda essa proposta e a constitui, tem seus fundamentos
nos estudos realizados para desenvolvimento da Pesquisa de Mestrado na PUC/SP
e na minha participação como membro no Núcleo de Estudos Culturais: Histórias,
Memórias e Perspectivas do Presente. Num importante diálogo com autores, tais
como Walter Benjamin, Raymond Williams, Beatriz Sarlo, Déa Fenelon, Yara Aun
Khoury e Maria do Rosário da Cunha Peixoto, situo as utilizações em torno do
conceito de “memória” compreendendo-a como um campo de disputas, onde o
movimento de “lembrar e esquecer” é politicamente significado e traduz
intencionalidades.
Partindo do princípio, apontado por Walter Benjamin, de que “o passado
coexiste no presente” problematizo as relações das experiências relatadas. A
perspectiva do presente me possibilita pensar as relações de poder em torno do que
se constitui como memória atual sobre esses artistas, buscando dessa forma,
construir uma problemática possibilitadora de uma investigação que assuma um
caráter prospectivo, inserindo-se assim, num campo de resistência. Sem deixar de
lado o aspecto de que os relatos são produtos do presente e da forma como essas
pessoas constroem suas memórias a partir das abordagens.
23
É importante destacar que existem proximidades nas narrativas e que todas
possuem um eixo que nos ajuda a compreender a música como prática social
profundamente vinculada à existência dessas pessoas. Muitos tiveram seus
interesses pela arte despertados durante a infância, de forma intuitiva e criativa, mas
também pela sensibilidade das percepções de seu entorno. Isso nos ajuda a
compreender as escolhas e os caminhos percorridos por esses artistas, sobretudo
por nos dar a dimensão do significado da arte para eles.
O eixo a que me refiro somente foi identificado após a realização de todas as
entrevistas, há um brilho no olhar de cada um deles, um embargo na voz ao falar
das dificuldades, mas um sentimento profundo de satisfação pela convicção da
coerência mesmo em face de pequenas e grandes seduções ou decepções
desencadeadas pelas relações estabelecidas por parte da indústria cultural
brasileira. A isso podemos chamar de “amor à música”, “amor à arte”. Não num
sentido piegas e bastante clamado, mas no sentido de viver esse amor e de viver
por esse.
A arte como prática social coexiste com a mercantilização e com seus
subprotudos, jamais será superficial e com destino ao entretenimento enquanto
preservar a sua essência.
Viver da arte, sobreviver com os ganhos materiais da música tem sido
privilégios garantidos a poucos e isso nada tem a ver com a qualidade do que é
realizado e sim com os meios pelos quais ocorre a seletividade por parte dos meios
de produção e veiculação.
24
1.1 Terra, chão, gente e sensibilidades
“O artista precisa ter a vivência e a experiência. O profissional faz de sua arte uma expressão de vida e não uma imitação da vida. Se, para ser artista, fosse necessário e bastante viver, então arte seria imitação da vida. Arte é uma expressão livre da vida, que incorpora a emoção a partir da visão de mundo.” Geraldo Vandré
6
A relação com a “terra”, como lugar de origem ou como lugar de escolha é
contundente em todas as entrevistas realizadas. A música surge para essas
pessoas como um sopro de vida, a forma como falam e rememoram suas
experiências nos transporta para suas infâncias e famílias indubitavelmente.
“Chão”, diferente de “terra” diz respeito ao universo privado, que aqui não se
pretende tratar de forma biográfica e sim como análise de conjuntura, para que
possamos nos aproximar o máximo possível das realidades materiais que
possibilitaram as expressões estudadas.
A música surge para esses artistas como caminhos e possibilidades de
expressar suas experiências de uma forma, ou melhor, de formas semelhantes às
demais necessidades da vida. O fato é que suas produções trazem intrinsecamente
o olhar sobre a beleza e sobre a dor, marcas profundas do contato com suas
“gentes” e “sensibilidades”.
São oriundos de diferentes lugares do Brasil, Airto (Itaiópolis/SC) é
catarinense, Heraldo (Recife/PE), Hermeto (Lagoa da Canoa/AL) e Geraldo Vandré
(João Pessoa/PB) são nordestinos; Sérgio Ricardo é paulista (Marília/São Paulo),
Theo (Rio de Janeiro/RJ) e Sidney (Rio de Janeiro/RJ) são cariocas. Suas falas
remetem às profundas relações com os lugares de onde vieram e a valorização de
suas experiências de infância.
Sidney Miller morreu em 1980, cheguei a contatar seu filho e um amigo
próximo, mas não obtive êxito no retorno. Quem falou um pouco sobre ele foi a
Joyce Moreno, que gentilmente relatou suas memórias sobre o artista. Mesmo com a
escassez de fontes mantive os estudos a seu respeito, com intuito de registrar, da
forma como foi possível, a memória sobre sua trajetória e sobre suas práticas.
As temáticas relacionadas ao “povo” foram amplamente utilizadas pela MPB,
como movimento musical, nas décadas de 1960 e 70, os artistas aqui estudados
6 MELLO, Zuza Homem de, Música Popular Brasileira. São Paulo, Melhoramentos, 1976. P. 215
25
experimentaram não apenas a temática, mas as formas musicais populares. Acredito
que esse seja um diferencial que serviu para enriquecer suas músicas, mas
também, para dificultar o acesso às gravadoras e a difusão pelos meios de
comunicação.
Existe um pensamento reincidente por parte da Indústria Cultural Brasileira
que é o de colocar a música dentro de uma lógica evolutiva, ou seja, grande parte do
que esses artistas produziram foi colocado, de alguma forma, no passado e suas
permanências no presente são consideradas pelas forças hegemônicas como
retrogradas e atrasadas, restringindo dessa forma o acesso do “grande público” ao
que fizeram e/ou continuam produzindo. Além disso, ocorreu também o cerceamento
das obras durante a ditadura, como é o caso de Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo.
Considero que as escolhas de um(a) artista nem sempre são racionalizadas,
passam por questões emotivas, sensoriais, culturais e os posicionamentos, como
sugere a epígrafe, surgem da impossibilidade de seguir caminhos diferentes, muitas
vezes até mesmo dos que almejaram.
A trajetória de cada um deles nos possibilitará compreender melhor essas
questões. O contato com a terra natal rendeu a todos um misto de consciência das
origens e as necessidades de partir para o eixo Rio de Janeiro/São Paulo. As
relações com os centros urbanos também são temáticas abordadas e é interessante
observar que nas narrativas as perspectivas são endógenas, ou seja, as
personagens representantes das classes populares são também sujeitos de
transformações nas composições analisadas. Na música instrumental há muito
desses elementos, desde as melodias até os arranjos e execuções.
Cada pessoa que entrevistei, deu ênfase às suas experiências e relações
com as musicalidades durante a infância. Isso é bastante significativo, pois revela as
percepções das sonoridades e as culturas musicais nas quais estavam inseridos e
mais do que isso indica também a forma como essas experiências permanecem
vivas dentro de cada um e consequentemente presentes em suas obras.
Hermeto Pascoal, durante a entrevista que realizei, contou detalhadamente
sua relação com a música desde a infância. Ele é um desses seres que encantam
no primeiro contato. Sua casa de então, em Curitiba, revelou a criança que nunca
matou dentro de si. A recepção permeada por brincadeiras, as guloseimas e a prosa
descontraída e bem humorada, sua sala repleta de brinquedos dos quais tira e ouve
26
sons: Para mim a música não está separada de nada, a música está em todos os
contextos. Quem pensar que não está tem que viver mais pra ainda aprender.
(Hermeto/Curitiba, 2015)
Esse contato possibilitou-me conhecer melhor a sua obra. O “bruxo”, como é
chamado, o é assim porque nele está contida toda a energia de uma vida.
7
Este canto vem de longe A distância não sei dizer Salve, salve a toda gente que vive e deixa viver Aqui vai o nosso abraço Tirando de nossas mentes a palavra para dizer A música segura o mundo enquanto a gente viver É a maior fonte sem fim De alegria e prazer Toquem-se, amem-se, cantem, abracem-se Vivam felizes, minha gente, até o dia amanhecer8
Os versos entoados no inicio da entrevista revelam que a música é para
Hermeto fonte de vida e ao mesmo tempo um caminho para se manter integro e
7 Fotografia de Antônio Passaty, durante a entrevista realizada em Curitiba, 2015.
8 Versos entoados por Hermeto no início da entrevista (Curitiba, 2015)
27
atuante, interagindo de forma intensa com seu público o artista encontra motivação
para sua existência. Seus primeiros contatos com a música se deram de forma
intuitiva, ainda na infância, quando tirava sons de coisas inusitadas. No interior de
Alagoas, sem acesso ao rádio ou televisão sua criatividade viajava pelo seu mais
íntimo universo.
“No dia 22 de junho de 36, no dia em que eu nasci, já dá pra notar que são 78 anos, eu nasci com um dom musical e graças a Deus um dom muito amplo e com aquela vontade. Não me criei assim com meus pais dizendo faça isso, aprenda aquilo... Porque primeiro, eu não tinha luz lá, luz elétrica, foi muito bom que eu valorizei muito a luz da minha mente, muito mais do que poderia ser normal, além do normal eu desenvolvi a minha luz, a minha mente. E aí o que eu fazia né...” (Hermeto Pascoal, 2015)
Hermeto nasceu em Lagoa de Canoa, cidade pequena de Alagoas em 1936.
Lagoa de Canoa somente se tornou emancipada em agosto de 1962, antes era um
povoado em torno de uma pequena lagoa, que abrigava pessoas nas viagens pela
estrada que ligava Arapiraca a Traipu e Girau do Ponciano. Com características
rurais, a agricultura relacionada, sobretudo ao café propiciava empregos para os
moradores locais. De acordo com os relatos de Hermeto, seu pai era roceiro e essa
vivência lhe possibilitou um contato profundo com a natureza e com os modos de
vida desse lugar.
A ausência de energia elétrica é lembrada com satisfação, visto que isso lhe
permitiu o desenvolvimento de percepções e inteligências provenientes de seu
contato com aquele mundo. As brincadeiras de criança sempre estiveram
associadas à produção de sons e experimentações com que o que lhe era acessível.
Com os meus oito anos de idade, o meu pai tocava sanfoninha de oito baixos, que lá no Nordeste a gente chama, tem uns nomes bonitos que a gente dá né... É um nome assim né... chama-se fole o nome, mas é sanfona de oito baixos e pronto né... Daí meu pai ia pra roça e eu comecei a pegar na sanfoninha escondido, eu e meu irmão José Neto, já morreu, já se foi... E aí tocando a sanfona a mamãe escutou e disse pro meu pai vir almoçar em casa esse dia lá... Pra papai vir porque ele saia sempre às seis da manhã, papai não admitia sair de casa com o sol de fora (...)” (Hermeto Pascoal, 2015)
28
O “dom” da música, como ele diz, sempre esteve consigo, teve uma infância
libertária, juntamente com seu irmão vivenciava os sons que os cercavam. A
liberdade dada pelo pai e o incentivo da mãe foram preponderantes para que ainda
na infância explorasse seus instintos musicais. A intuição é um traço bastante
presente nas produções de Hermeto, que surpreende o público com seus improvisos
e produção de sons com os mais inusitados objetos. Na sua casa uma sanfona de
oito baixos, pertencente ao pai, possibilitou o contato com o primeiro instrumento
musical não confeccionado por ele mesmo:
“Aí eu peguei, tava tocando sanfona de oito baixos quando papai chega da roça e escuta, ai a surpresa foi impressionante né, a felicidade dele e a mamãe chorava a toa... A gente tocando e ele pensando se batia na porta ou não né... Ele bateu na porta, quando nós vimos ele né, aí ficamos com meio receio porque pegava escondido, a sanfoninha dele a gente pegava escondido né... Aí daqui a pouco ele viu tocando e disse: (...) Vocês não vão... Vocês... agora eu vou vender a vaca, o boi que eu tiver, o melhor que eu tiver, pelo preço que eu conseguir pra comprar uma sanfona, uma oito baixos, um fole bom pra vocês. Ele falou isso e nós ficamos contentes porque ele deu uma força (...)” (Hermeto Pascoal, 2015)
Na simplicidade de seu pai um gesto que lhe permitiria enveredar pelos
caminhos da música, inicialmente com seu irmão e depois desbravando outras
possibilidades. Relata que com cinco meses tocando a oito baixos que seu pai lhes
presenteara e com a “liberdade” dada, ele e seu irmão já estavam prontos para
substituir o pai nos bailes promovidos pela vizinhança.
Hermeto revezava com seu irmão, entre a “oito baixos” e o pandeiro.
Chamados de “galegos”, por serem albinos, seguiam pelos bailes da redondeza. Os
“Galegos do Pascoal” seguiram juntos por um tempo, mas tinham desejos e
expectativas diferentes: E ai pronto, aí fui né... tocando com meu mano (...), mas
sempre aquela história né, cada um tem a sua cabeça, o seu jeito (...) Ele não queria
sair de casa e eu ia pro mato.” (Hermeto Pascoal, 2015)
A relação de Hermeto com a natureza lhe proporcionou a interação que tem
até hoje, afinal ele é o músico que encanta sapos na lagoa, que se comunica com os
animais por meio dos sons. Sua intuição, vinda do mato, segundo ele, foi despertada
pela curiosidade e pelo olhar apurado sobre as coisas com as quais convivia. Por
29
ser albino seu pai o colocava debaixo de uma árvore enquanto trabalhava na roça e
em cima de um carro de boi observava os pássaros:
“(...) Aí poxa, eu criança eu via os pés de mamona, lá a gente chama pé de carrapateira, os pés de mamona e aí o que é que eu fazia? Pegava a faquinha de papai que ele tinha pra cortar fruta no mato e ia fazendo uma coisa (...) que de repente eu pegava assim e escutava e começava a tocar pra eles, pros passarinhos e o papai lá na roça longe né (...) Daqui a pouco eu tocava e vamos supor que tinha dez passarinhos na árvore, eu dava uma nota assim, duas ou três notas e os passarinhos iam embora correndo assustados né, e na minha cabeça, na minha intuição dizia assim: pode tocar que eles vão vim.” (Hermeto Pascoal, 2015)
Segundo Hermeto, os pássaros iam aos poucos que acomodando nas
árvores e quanto mais ele tocava, mais pássaros chegavam para ouvi-lo. A
integração com a natureza aguçou sua sensibilidade, em suas músicas há mistura
de sons e interações com os sons das matas, dos animais e das águas. A magia e a
intuição são constituintes da sua obra.
Essa é uma característica interessante entre os artistas pesquisados, é
comum o início da carreira em pequenos bailes promovidos pela vizinhança. Assim
como Hermeto e seu irmão José Neto, Airto Moreira no interior do estado do Paraná
(tendo se mudado para esse estado ainda quando criança), também iniciou suas
práticas artísticas ainda criança tocando nos bailes dos arredores.
A cultura popular com toda a sua dinamicidade é permeada por significados
atribuídos às vivências e pelos modos de vida que preservam de certa forma uma
interação com as realidades materiais, a essência das composições de Hermeto
Pascoal, por mais sofisticadas e elaboradas que sejam, partem de suas relações
com o mundo, transitando entre os mais íntimos estímulos e os mais vastos
conhecimentos construídos ao longo da vida. Nesse sentido, o popular não pode ser
simplificado ou estigmatizado, não se trata de algo menor ou inferior, mas aspectos
fortemente enraizados que quando expressados por meio dos sons, das melodias e
dos versos assumem uma energia poética extremamente potente.
Barbero traz importantes contribuições para essas reflexões:
“(...) E estamos descobrindo nesses últimos anos que o popular não fala unicamente a partir das culturas indígenas e camponesas, mas também a partir da trama espessa das
30
mestiçagens e das deformações do urbano, do massivo. Que, ao menos na América Latina, e contrariamente às profecias da implosão social, as massas ainda contém, no duplo sentido de controlar, mas também de trazer dentro, o povo. Não podemos então pensar o popular atuante à margem do processo histórico de constituição do massivo: o acesso das massas à sua visibilidade e presença social, e da massificação em que historicamente esse processo se materializa. Não podemos continuar construindo uma crítica que separa a massificação da cultura do fato político que gera a emergência histórica das massas e do contraditório movimento que ali produz a não exterioridade do massivo ao popular, seu constitui-se em um de seus modos de existência (...)” (BARBERO, 2013. P. 29).
O autor nos ajuda a pensar o sentido do “popular”, para além do que vem
sendo significado por alguns estudos, o “popular” não está atrelado a um modo de
vida específico, são relações plurais constituídas em diferentes espaços e por
diferentes grupos sociais. O conceito de “mestiçagem” ao qual prefiro tratar como
“entre lugares”, de acordo com o pensamento de Homi Bhabha, nos impulsiona a
pensar o popular dentro de uma perspectiva de contatos, confrontos, assimilações e,
porque não dizer, conflitos diante dos processos de deslocamentos e dos contatos
com realidades antes não vivenciadas. As experiências e vivências dos artistas aqui
estudados nos proporcionam a noção de que há permanências, há traços
construídos ao longo da vida que se transformam sem que sejam extintos.
Distinguir os processos de massificação daquilo que é produzido e apreciado
pelos grupos populares é bastante importante, visto que ocorre historicamente uma
desqualificação, sobretudo nos processos de construções hegemônicas, que com
diferentes interesses, têm construído discursos que diminuem ou estereotipam
culturas não compreendidas em sua profundidade, essas práticas estão
constantemente relacionadas à ideia de poder e à necessidades de “superioridades”
que de fato não existem. São modos de pensar e cosmovisões diferentes.
Obviamente a música instrumental brasileira está longe de ser pertencente a
uma cultura de massa, muito pelo contrário, permanece na maioria das vezes restrita
a pequenos nichos, não recebendo das mídias os espaços merecidos. No caso dos
músicos aqui estudados o elemento popular, fruto de suas vivências e não de suas
aspirações, constituem suas obras como energia propulsora de suas relações com a
arte e formas de comunicação.
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Airto Moreira fez um relato semelhante ao de Hermeto ao falar de sua infância
e seu primeiro contato com a música. Afirma que começou não necessariamente
tocando música, mas produzindo sons em Ponta Grossa, estado do Paraná:
“eu gostava muito de fazer sons, eu pegava coisas, é... tinha um aterro grande, perto da minha casa e então a gente descia lá no aterro e eu e meus amigos e cada um fazia o que queria. Eu sempre queria fazer instrumentos, fazer apitos e coisas pra chamar passarinho, essa coisa toda e eu fui enchendo, vamos dizer, eu enchia uma latinha de leite moça, alguma coisa assim, tampava bem, botava umas pedrinhas e eu fazia um chocoalho, que agora não é chocoalho é ganzá, mas naquela época era chocoalho. E eu continuei fazendo isso, e eu tocava e fazia som no quintal da minha casa e um dia o vizinho que morava do lado, eu senti que ele tava olhando pra mim, mas eu continuei, aí ele me chamou, eu fui né, na cerca né... e ele falou assim: poxa, você toca bem né, você é músico?” (Airto Moreira, 2015)
A musicalidade e o interesse por sons acompanharam toda existência de Airto
Moreira, além de cantar, coisa que sua mãe o incentivava desde criança, tinha
também a busca e produção de instrumentos, ainda na infância, que lhe
possibilitaram, assim como a Hermeto, a participação em apresentações nos bailes
de sua cidade. A memória que tem desses momentos é extremamente emotiva,
podendo ser perceptível em sua voz. Aos cinco anos de idade Airto Moreira já
tocava juntamente com seu vizinho, a quem chama de “grande acordeonista”. Seu
vizinho, cujo nome não recorda, iniciou Airto na música tocado no bailes de sua
cidade, eram bailes de batizado, casamento, aniversário: “a gente ia de cavalo e eu
levava um saquinho assim de lado, de pano e com alguns instrumentos que eu tinha
feito. Eu levava aquilo e ele botava o acordeom nas costas dele e eu me agarrava
nele e a gente ia, vamo lá, vamo lá...” (Airto Moreira, 2015).
Há felicidade ao relatar os desafios iniciais, de uma criança que teve suas
criações valorizadas. Dessa forma Airto seguiu seu rumo e experimentou nos bailes
seus primeiros palcos. Nota-se que os instrumentos criados e carregados nas costas
eram, na sua maioria, relacionados à percussão. Hoje Airto Moreira, que reside nos
Estados Unidos é considerado como um dos maiores percussionistas do mundo,
sendo responsável, ao lado de Naná Vasconcelos, entre outros, pela inserção da
percussão no Jazz.
32
Os bailes realizados nas pequenas cidades e vilarejos rurais, além de serem
palcos que possibilitavam uma insurgente profissionalização e aperfeiçoamento das
habilidades musicais, também eram meios de sobrevivência, visto que a “passagem
do chapéu” e a “paga” dos(as) donos(as) das festas rendiam, mesmo que pouco,
algum dinheiro aos artistas:
“(...) Depois da meia noite começava a passar o chapéu, a gente tocava duas músicas e aí começava a passar o chapéu, eu entrava ali no meio do pessoal que tava dançando, os casais com o chapeuzinho e eles me davam o dinheiro e aquela era nossa paga e claro que tinha uma paga do dono da casa... A gente tocava até cinco, cinco e meia da manhã, de quatro a cinco e meia... E aí a gente não ia voltar no mesmo dia claro... Eu dormia assim com várias crianças no chão, eles punham uma coisa assim no chão, uma colcha e todo mundo dormia ali, eu geralmente não dormia ali porque todo mundo se mexe muito e aí você não dorme direito (...)” (Airto Moreira, 2015)
Os bailes eram festas longas que duravam, muitas vezes, por dias. Nessas
ocasiões a música desempenhava um papel significativo, de embalar as noites, de
trazer alegria e dança. Airto, com apenas cinco anos, vivenciava essa experiência
com encanto e apesar do cansaço permanecia ativo até o encerramento do baile. Ao
término do serviço, que desempenhava com alegria, havia o pagamento e o
merecido descanso. No entanto, relata que não conseguia dormir junto às demais
crianças, seu espírito inquieto o levava para outros lugares onde pudesse sentir a
energia das noites tocando e contemplando a natureza:
“(...) Um dia, aliás esse dia foi muito bonito... Eu tava assim, não conseguia dormir ai eu desci a escada, abri a porta da frente e sai... E tinha uma carroça, sem cavalo sem nada, parada cheia de feno (...) Subi assim naquela carroça e deitei no feno e fiquei olhando pra cima e tava tão bonita a noite, muito bonita, uma coisa assim... E eu vi várias estrelas cadentes, parecia até pra mim... Sabe eu fiquei assim, não é possível... E ai tinha outra que passava e a minha mãe me ensinou a dizer ‘Deus te guie’ quando caí uma estrela assim... Deus te guie (...) Foi tão bonito que eu nunca mais esqueci, uma coisa muito simples... E esse aí foi meu primeiro trabalho e que me dava uma grana (...)”
A sensibilidade do artista, ainda na infância, proporcionava momentos únicos
imersos na simplicidade. Uma noite deitado sobre o feno, contemplando as estrelas
33
cadentes forja uma alma e a torna ainda mais criativa. Acendia também o desejo de
trilhar outros caminhos e de buscar a sobrevivência por meio daquilo que já amava
fazer: música. A memória é um campo vasto e a sua permanência no presente nos
dá elementos da grandiosidade de alguns momentos que são, sem dúvida,
constitutivos das práticas desempenhadas posteriormente. O lugar que a música
ocupa nas vidas dessas pessoas é muito maior que as relações comerciais em torno
da arte, daí a ideia de que a Indústria Cultural pode dificultar os meios de produção,
mas jamais poderá determinar os rumos da criação.
Em Curitiba teve participação no seu
primeiro programa de rádio, cantando e tocando
percussão, aos 13 anos já se tornara um músico
profissional remunerado.
Do campo para a cidade pôde
experimentar as relações de produção e
expressões que não o distanciava dos modos de
vida anteriores. Os modos de vida são
perceptíveis e representados na literatura e na
música de múltiplas formas e essas formas se
entrelaçam nas realidades vivenciadas. A
presença de diferentes estilos musicais não
aponta, de forma alguma, para a necessidade de
classificações, até porque a recepção também é múltipla, tendo em vista a
heterogeneidade das populações.
O problema central é a falta de liberdade, tanto na elaboração das obras,
quanto no acesso a essas. Os poderes e meios que interferem nessa dinâmica, seja
na produção de disparidades ou na crítica postulada das expressões artísticas e na
sua apreciação, revelam o caráter autoritário das definições externas. Ou seja, a
indústria cultural brasileira não determina tudo que é criado ou apreciado, mas
interfere de forma intensa nas relações, ao deter os meios de produção e buscar
direcionar as tendências, mas há também formas e necessidades de inserções
nesses meios para que as canções e as músicas sejam veiculadas por suportes com
a finalidade de chegar até o público.
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É interessante observarmos que ao contrário da lógica evolucionista da
música brasileira que ignora e rejeita os estilos musicais provenientes das classes
ou grupos populares, mesmo às assimilando e modificando com interesses
comerciais, os modos de vida relacionados ao campo têm por diversas vezes
desempenhado um papel importante na literatura e na música. Grande parte do que
chamamos de música popular brasileira tem a sua gênese em experiências que se
harmonizam com a natureza e com modos de vida associados à ideia de
simplicidade, que na verdade são complexos e fontes de riquezas não valorizadas
pela parcela da população que assume o papel avaliador. Nos relatos de Airto e
Hermeto essas correlações são explícitas, a importância desses contatos e vivências
é evidenciada ao buscarem a memória do início de suas trajetórias e um estudo
mais profundo de suas produções posteriores poderá nos dar indícios da relevância
desses modos de vida em suas práticas.
Não obstante podemos também pensar nos mecanismos de exclusão, em
momentos em que o discurso de modernidade coloca em primazia modos de vida
relacionados aos ambientes urbanos. Ocorre uma simplificação das análises e ao
mesmo tempo a criação de estereótipos ao julgar que tudo que vem das zonas
rurais se relaciona à tradição como algo imutável ou ao “folclórico”. A diversidade
está para a arte assim como está para a vida, pessoas que partiram em busca de
trabalho nos centros urbanos preservam seus costumes, criam e recriam outras
relações com os espaços, relações essas que não podem ser simplificadas ou
descartadas.
A literatura e a música exemplificam muito bem a complexidade dessas
relações ao mesmo tempo em que permitem a junção de diferentes fazeres
permeados por estruturas de sentimentos diversos. Ao lidar com as emoções
captam aquilo que existe de mais sublime nos campos afetivos e emocionais.
É interessante notarmos que esses artistas se constituíram ao longo da vida,
iniciando suas caminhadas ainda na infância e sendo provenientes de famílias
humildes receberam o incentivo que lhes foi necessário para enveredar num campo
de atuação que não lhes possibilitava nenhuma garantia. Na verdade, a
sensibilidade e a criatividade surgem a partir da forma como visualizam e se inserem
no mundo.
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Os processos de exclusão e de desqualificação são extremamente violentos,
pois não se trata apenas de banir o que não lhes é interessante do ponto de vista
comercial, mas de interferir drasticamente nas produções humanas e nas
elaborações artísticas. Ainda que não sejam determinantes, esses processos têm
nos roubado e interferido significativamente naquilo que poderia brotar de forma
espontânea. Obviamente existe resistência e as obras apresentadas por esses
artistas nos possibilita constatar o poder de resiliência e que a própria indústria
cultural brasileira passa a assimilar o que ganha notoriedade por meios diversos,
sobretudo, os emanados pela população.
As experiências vivenciadas nos centros urbanos são também elementos
constitutivos das obras aqui analisadas, como são os casos de Sérgio Ricardo e
Theo de Barros.
“(...)Eu nasci no Rio e lá em casa quando eu era criança sempre tinha reunião de músicos, fim de semana ia muita gente famosa inclusive, e eu sempre fui, foi aí que surgiu essa atração, o chamado pra música, quando eu mudei pra São Paulo, mudei pra cá aos onze anos de idade, então não tinha (...) não tinha turma, então o violão ficou sendo o meu melhor amigo, eu ficava o dia inteiro tocando violão eu ia pra escola e depois ficava, e ai eu fui desenvolvendo, desenvolvendo, até que eu comecei (...) então eu comecei a acompanhar artistas um amigo da família (...) ele compunha eu fiquei me questionando porque eu não posso compor também né, e comecei e experiência de fazer composição, cada vez que eu ia no Rio mostrava lá e os amigos gostavam, aquele negócio todo, ai começou assim de maneira bem, bem amadorista, não tinha a menor intenção de tornar profissional (...)” (Theo de Barros, 2015).
Theo nasceu numa família que já possuía experiências musicais, sua mãe
havia sido cantora num quarteto vocal nos anos 40, abandonando a carreira após o
casamento. Seu pai era diretor das Edições Associadas e também compositor e
músico. Com uma personalidade bastante introspectiva, Theo viu na música uma
forma de parceria, de companhia para as tardes solitárias ainda quando criança. Sua
observação das pessoas que frequentavam a sua casa despertou a percepção de
que também poderia compor, com acesso aos estudos e com o incentivo de seus
pais enveredou pelos caminhos das canções sem muitas expectativas de ser tornar
um profissional. O fato é que as conexões e a apreciação da arte forjaram suas
práticas e o potencial artístico logo foi verificado. A vida na cidade do Rio de Janeiro
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e a convivência com artistas consagrados lhe atraiu para a música e lhe possibilitou
uma dedicação quase que exclusiva, só vindo a fazer um curso de graduação na
área de comunicação aos quarenta anos.
Theo afirma que tornou-se músico de forma espontânea e quando percebeu
já estava enfronhado no meio musical, convivendo com artistas mais velhos
percebeu que aquele era seu meio e que de fato desejava dedicar sua vida à
música.
Assim o fez e se constituiu como um músico bastante disciplinado e dedicado,
suas composições são frutos de suas vivências, mas também de estudos realizados
sobre a cultura popular brasileira. A temática do povo, bastante em voga nos anos
60 o levou a compor canções como o Menino das Laranjas, mais tarde interpretada
por Geraldo Vandré e Elis Regina.
Na entrevista concedida no bairro de Pinheiros em São Paulo afirma que
Hermeto e Heraldo foram a alma do Quarteto Novo, mesmo tendo se constituído
como artista nos centros urbanos de São Paulo e Rio de Janeiro valoriza as culturas
provenientes do Nordeste e assume essa influência em sua obra.
Heraldo do Monte nasceu em Recife, capital de Pernambuco e teve uma
formação musical teórica ao participar da banda e orquestra de seu colégio.
Também iniciou seus estudos musicais ainda na infância:
“Foi na infância, com certeza foi na infância. Na Mustavinha, um bairro bem pobrezinho que eu morava, lá em Recife e uma gaita de boca que apareceu lá em casa, não sei se eu comprei ou alguma coisa e eu tocava (...) tinha poucas notas numa escala de dó, uma coisa assim e eu tocava Asa Branca e Oh Suzana, as únicas músicas que cabiam naquela gaita, que davam pra tocar e aí (...) e aquilo me provocava uma emoção, ai eu tava fazendo o segundo grau, é o ginásio na Escola Industrial na Agamenon Magalhães, lá em Recife também, em Cruz de Velho um bairro, vinha a pé da Mustavinha (...)” (Heraldo do Monte, 2015)
Proveniente de uma realidade de bairro pobre em Recife, Heraldo dedicou-se
aos estudos com afinco, com recursos escassos sua iniciação na música foi por
meio de uma gaita onde tocava o que cabia na escala de dó. Nordestino, não
obstante, dedicou-se a tocar Asa Branca de Luiz Gonzaga, até pelas possibilidades
melódicas de sua gaita. Num primeiro contato Heraldo parece ser bastante tímido,
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porém aos poucos vai se soltando e se entregando às brincadeiras e piadas, homem
forte ri dos desencontros da vida.
Ainda menino fez um teste juntamente com outros alunos em sua escola, um
teste de musicalidade em que precisava cantar a escala de dó. Foi um dos
selecionados dando início aos estudos na banda e na orquestra. Suas primeiras
execuções foram de músicas ditas eruditas e de dobrados, ao qual considera “uma
coisa militar”. O fato é que o estudo com o maestro lhe proporcionou conhecimento
sobre teoria musical, conhecimento esse que fora importante no início de sua
carreira profissional em Recife e depois em São Paulo.
Suas apresentações são repletas de expressões e demonstração emotiva, o
artista não concebe o fazer musical dissociado dos sentimentos que a música lhe
provoca. Os elementos populares estão presentes em sua obra e sua vivência num
bairro pobre de Recife também, suas músicas são extremamente elaboradas e seus
dedos deslizam pelas cordas do violão e da guitarra como quem brinca suavemente.
“(...) a gente saia e chagava nas casas dos outros e o bloco parava e um cara tinha que dar galinha guisada com cachaça (...) com bate-bate, sabe como é bate-bate? Bate-bate é uma batida de cachaça com sei lá, frutas, com esse tipo de coisa. Bate-bate de maracujá, esse tipo de coisa, era muito divertido, a gente ganhava bem pouquinho (risos) imagina com blocozinho de bairro, além da galinha guisada, eu sempre ganhava um dinheirinho (...).” (Heraldo do Monte, 2015).
A experiência vivida por Heraldo Monte, no final dos anos 40, lhe possibilitou
a percepção das múltiplas culturas de seu estado natal, o tocar em troca de galinha
guisada, bate-bate e alguns trocados deu início a sua precoce carreira e a noção de
que poderia viver da música. Aparentemente uma brincadeira de criança, mas aliada
aos seus estudos de teoria musical lhe forneceu as bases para o desenvolvimento
de sua carreira.
Na orquestra de sua escola teve contato com o segundo instrumento, o
clarinete que apesar de sua seriedade e empenho não lhe chamou muita atenção,
não tardaria para que tivesse o seu primeiro violão e que desse início a uma parceria
que lhe acompanhou por toda a vida. Por volta dos seus dezesseis anos a partir do
método de clarinete, começou a estudar as cordas do violão, aprendeu afinação e já
tinha percepção das notas e dos acordes musicais, a princípio estudou sozinho em
casa.
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Heraldo se tornou um dos mais conceituados violonistas do Brasil, com uma
infinidade de composições e também execuções de outros compositores. No bairro
onde morava conheceu um cantor de serestas, ele cantava a noite e o convidou pra
tocar num lugar chamado Cassino Flutuante, em Recife, era um barco grande que
ficava perto de uma ponte que dava acesso ao Recife Antigo. O local em que tocou
profissionalmente ainda na adolescência seria um dos muitos caminhos que seguira,
junto com o cantor de serestas Heraldo se aperfeiçoou na guitarra e realizou uma
série de apresentações.
“Tinha um pianista, era um negócio meio, é suspeito assim de frequência suspeita (...) aí tinha outras casas noturnas chamadas boates, que você, casa de classe média alta sabe e chegou um contrabaixista dessa e me escutou tocando e me chamou – Olha a boate tal, vamos tocar lá com Walter Wanderlei, um pianista muito bom que tinha na época, e aí comecei a entrar nessa coisa das boates de Recife, mas só se tocava Jazz ou Bossa Nova, já tinha aparecido esse disco do João (...)” (Heraldo do Monte, 2015)
No início da carreira nas boates de Recife não era possível ainda escolher
seu repertório, o gosto musical da clientela, a quem define como procedente de
“classe média alta” era o que demarcava as músicas que tocaria ao lado do pianista
Walter Wanderlei. Nas boates de Recife já se tocava Bossa Nova, estilo musical que
se tornaria amplamente popular no final da década de 1950. Mesmo tocando mais
9 Fotografia do acervo pessoal de Heraldo – Banda do colégio em 21 de abril de 1951.
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tarde nas boates de São Paulo não se distanciaria dos estilos musicais de sua terra,
suas composições, influenciadas pelo Jazz ainda traziam expressões marcantes da
música nordestina.
Sidney Miller, também iniciou suas investidas iniciais na escola, foi aluno do
Colégio Santo Inácio e desde cedo demonstrou suas habilidades para a escrita e
composição. Aos 12 anos escreveu um romance e fez a ilustração com recortes de
revista. Com uma personalidade bastante tímida se dedicou amplamente aos
estudos solitários de violão, com o qual fez as primeiras composições. Tinha uma
grande sensibilidade e tom melancólico em suas canções, além de uma facilidade
para acompanhar músicas ao violão sem ajuda de cifras ou partituras, captava as
melodias “de ouvido”. Já na escola apresentou seus primeiros textos que dariam
origem à publicação de versos numa revista do próprio colégio.
Aos 18 anos dedicou-se mais intensamente à música e mais tarde tornou
pública sua composição “Pede passagem”, gravada por Nara Leão. Um samba que
pede passagem para “arrastar a felicidade pela rua” e que trás a dureza da vida do
“povo” e sua alegria diante de tempos de carnaval na saída de uma escola de
samba.
Sidney enveredou por caminhos diferentes dentro da arte fez cinema, teatro,
intensas pesquisas sobre cantigas de roda e na música transitou por estilos como o
samba, a marcha e as composições que apresentou nos festivais. Foi o primeiro
parceiro do sambista do morro Zé Keti. Apesar de sua timidez, estabeleceu grandes
parcerias no teatro e na música.
Em 1968 publicou o livro “João e o pó”, que já vinha escrevendo há alguns
anos, sendo apresentado pelo editor José Álvaro:
“Sidney Álvaro Miller Filho, carioca de Santa Teresa, nascido em 1945, é um dos mais importantes compositores da nova geração. Poeta dos maiores, tem a sua carreira musical marcada de inúmeros sucessos – a pesquisa sobre as ‘cantigas de roda’ atesta a afirmação. Sem apelos aos clichês estandartizados vem construindo sua obra com fôlego e consciência (‘A ESTRADA E O VIOLEIRO’