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08(História da Vida vada no Brasil) H673 V.3 - 9Ijllllllll!ljlll~ COMPANHIA DAS LETRAS' ----

MARINS, Paulo César Garcez - habitação e vizinhança

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08(História da Vida vada no Brasil)H673V.3

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Copyright \l:I 1998 by Os Autores

Projeto gráfico e capa:Hélio de Almeida

sobre foto dePropaganda de rádio em Seleções,

tomo I. n: 2. março de 1942

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SUMÁRIO

Guardas:Foto de Augusto Malta. Igreja de Santa Luzia e o Craf Zeppelin ".

R' de lanei 1930' cervo do Museu da Imagem e do Som. Rio de Ianeiro10 e aneLro) ) rv

Editoração eletrônica:AeqUll Estúdio Gráfico

Secretaria editorial:Fernanda Carvalho

Pesquisa iconográfica:Yura Schreiber

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Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso- Nicolau Sevccnko, 7

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índice remissivo:Maria Cláudia Carvalho Mattos

Preparação:Márcia Capola

Revisão:Rearriz Moreira

Ana Maria BarbosaCláudia Canrarin

1. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível - MariaCristina Cortez Wissenbach, 49

-I2. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimentu das metrópoles

brasileiras - Paulo César Carcez Marins, 131

Hisnu .a doi. \id" ?!I\'.nid no Brasil I coordenador ~.:r,,! d.•01.~dl) F('r'~":ld, -\ Nevar- org .•.rnzador do vclu-nc , ",,1• ...1

)evlelli....'. - SdO Pado' Companhia das ~a.ls, 19'i':. -

I!blMlol da vrd.• prwada M Brasil ; J)

3. Imigrantes: a vida privada dos pobres do campo _ Zuleika Alvirn, 215

-:I:. A dimensão cômica da vida privada na República - Elias Thorne Saliba, 289

\" ,j~IO" ••utoresBlbilo~r ••fi4!*.'" fi) 7104-0)1-1 (cbra cornpletal

Li" 85·7164 i41-X

2.,. Recônditos do mundo feminino - Marina Maluf e Maria Lúcia MOl1, 367

I. Br..sd (.I\,ilz.l'r~O] 6cOI'\l1 - Htstqria - RCTihhl,.dIda<; . 3 bf.)U- L.",,)~e costumes I. ~1\"alS, F-em.md(· A. I"'~\

u. Scvcenko, NiI,;01.oIU_I' Serie

. 6. Cartões-postais, álbuns de família e ícones da intimidade -- Nelson Schapo-chnik,423

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In<h ....e pu .• caulogo sistemático:I br"'ll: VIO.:!. privada : Crvihzaçêo . Hisrória get

j 7. A capllal irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio - Nicolau Sevcenko, 513

1998 Notas, 621

Todos os direitos desta edição reservados àl:DITOKA ~HW,A.RCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista, 702. cj. n045.1)-002 - São Paulo - sp

Telefone: (011) 866·0801Fax: (O 11) 866-0814

[email protected]

Ohras citadas, 655

Créditos das ilustrações, fontes e bibliografia da iconografia, 679

índice remissivo, 707

130 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

49. Na venda de vassourasdc piaçava e espanadores de penas,os trabalhos feitos junto às ruasdemandavam proteção adicional,que o ambulante garantia COrll seuspatuás e amuletos conieccionadospossivelmente de dentesde porco-do-mato. (Vincenzo Pastare;sem título, 1908-14)

I ,

Na vida em senzala, nos ajuntamentos de negros escra-vos e forros nas cidades, nas formações sociais de homenslivres que foram se avolumando ao longo dos séculos deli-neou-se uma outra noção de privacidade, identificada menosà domesticidade e mais à sobrevivência, ampliada da intimi-dade às formas de associação e de convívio social, celebradaem expressões de identidade social, religiosa e cultural. No-ção que muitas vezes levava a ser recomposto no espaço pú-blico o que havia sido desarticulado com o domínio escravis-ta, reequacionando o que era tradicionalmente colocado noslimites de quatro paredes. Contraditoriamente ou não, a priva-cidade popular se orientava em direção ao mundo das ruas.

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HABITAÇÃO E VIZINHANÇA:LIMITES DA PRIVACIDADE NO

SURGIMENTO DAS METRÓPOLESBRASILEIRAS

Paulo César Garcez Marins

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132 • HISTÓRIA DA ViDA PRIVADA ~IO ô~ASil 3HABITAÇÃO E Vlll:-.lHAr ÇA • 133

-bFim da escravidão. Migrações e imigração. A aurora do. regime republicano dava-se em meio a transformações

demográficas e sociais, que liberavam populações, efranqueava novos destinos geográficos às esperanças de sobre-vivência de muitos dos velhos e novos brasileiros. Mutaçõesdifíceis, todavia. As grandes cidades surgiam no horizontecomo o espaço das novas possibilidades de vida, do esqueci-mento das mazelas do campo, da memória do cativeiro.

Novos habitantes, vindos das antigas senzalas e casebresdo interior do pais ou dos portos estrangeiros, somavam-seaos antigos escravos, forros e brancos pobres que já inchavamas cidades imperiais, e junto a eles aprenderiam a sobreviverna instabilidade que marcaria suas vidas também em seunovo habitat. Movimentar-se-iam, todos eles, pelas ruas alvo-roçadas em busca de empregos e de tetos baratos para abri-gar-se, num deslocamento contínuo que fundia vivências,experiências, tensões - e espaços.

Tumulto e desordem foram palavras fácil e comumenteaplicadas à dinâmica das capitais já republicanas, à ocupaçãode suas ruas e casas, e a seus habitantes, cada vez mais nurne-rosos e movediços. As elites emergentes imputavam-se o de-ver de livrar o pais do que consideravam "atraso", atribuídoao pdssado colonial e imperial do pais, e visível na aparenteconfusão dos espaços urbanos, povoados de ruas populosas e

barulhentas, de habitações superlotadas, d~ epidemias que sealastravam com rapidez pelos bairros, assolando continua-mente as grandes capitais litorâneas.

Acreditar na adjetivação que as intenções normativas daselites atribuíam à aparência das ruas e casas das antigas cida-des, herdadas da Colônia e do Império, inviabiliza, entretan-to, a possibilidade de compreender essas cidades e as expe-riências humanas, ali vividas em seus múltiplos espaços, emuma de suas maiores características: a instabilidade. "Desor-dem" e "tumulto" eram justamente as dimensões, muito efi-cientes, que grande parte das populações urbanas brasileirasencontravam para sua sobrevivência, para seu agir social.

Casas e ruas fundiam-se numa dinâmica plasmada e di-fusa, em que os limites espaciais constituíam-se historica-mente ao sabor da ambição fundiária dos proprietários e dacomplacência sonsa das autoridades. O "desleixo", descritoem um estudo notável,' parecia comandar a prática de justa-por casas e alinhar ruas - quadro em que as autoridades sesituaram, num equilíbrio sutil. Nesse "aparente" desleixo es-gueiravam-se as "aparentes" desordens funcionais, num tor-velinho de diluições e mimetismos em que escravos, forros eseus descendentes, miseráveis e remediados, logravam obtermais facilmente as condições de sua sobrevivência, e de seuspróprios padrões culturais e de sociabilidade.' Seria essa di-nâmica aquela a receber os forasteiros da República, vindosdas fazendas ou das aldeias européias oitocentistas.

O quadro difuso e instável das cidades brasileiras, já na-turalmente hipertensionado pela escravidão e seus processosde exclusão social, tendeu a se agravar com a Abolição e coma instauração de princípios democráticos. Surgia então a fi-gura aterradora da massa de "cidadãos" pobre e perigosa, vi-ciosa, a qual emergia da multidão de casas térreas, de estala-gens e cortiços, de casas de cômodos, de palafitas e mocambosque eram a vastidão da paisagem das cidades herdadas do Irn-pério.' Acusadas de atrasadas, inferiores e pestilentas, essas po-pulações seriam perseguidas na ocupação que faziam das ruas,mas sobretudo seriam fusrigadas em suas habitações...;o Elos do país com o exterior, Rio de Janeiro, Salvador,Recife, Porto Alegre e o binômio Santos-São Paulo espanta-vam investimentos e imigrantes ansiados pelas elites alicerça-das na economia das fazendas e usinas. Urgia "civilizar" oLL _

134 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

1. Cortiço no Bexiga. Na ironiado endereço, as dificuldadesdaqueles que lutavam por SIW

sobrevivência, destituído; dosprivilégios da privacidade oudomesttcidade no novo contextorepublicano. (Rua da Abolição124, São Paulo, s. d.)

~ país, modernizá-Ia, espelhar as potências industriais e demo-cratizadas e inseri-lo, compulsória e firmemente, no trânsitode capitais, produtos e populações liberados pelo hemisférionorte.' As grandes capitais da jovem República constituíam ohorror a qualquer um que estivesse habituado aos padrõesarquitetõnicos e sanitários de grandes capitais européias,como Paris, Londres, Viena e São Petcrsburgo, a Nova Yorke Washington, ou mesmo às cidades secundárias dos países

- centrais.As grandes cidades do hemisfério norte, local privilegiado

de concentração demográfica, industrial e simbólica, erguidaspelas fortunas burguesas, haviam sido alvo de vastos progra-mas de reformas urbanas durante grande parte do Oitocen-tos. Pressionadas pelas crescentes migrações rurais, por con-vívios sociais tensionados pela miséria promovida por baixossalários e más condições higiênicas, desestabilizadas pelosdistúrbios populares que marcaram as revoluções liberais queculminaram na década de 1R40, as grandes capitaís européiasseguiriam, cada uma a sua escala, o grande modelo de cirurgiamaterial e social constituído pela capital de Napoleão m, emque se destacou a figura tirânica de Haussrnann, o gestor daParis burguesa e monumental surgida entre 1853 e 1870.

í As necessidades de aeracão. circulação, lazer, de monu-\ mentalidade e de controle sócio-político determinadas pelos/ discursos técnicos e pelas ansiedades das elites emergentes do

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HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 135

Segundo Império francês foram satisfeitas a golpes violentoscontra as antigas tradições de convívio social e de proprieda-de fundiária que mantinham os parisienses aquartelados emsuas casas, ruelas e bairros - dimensões espaciais que sesucediam, num emaranhado suscetível a barricadas que aqualquer momento poderiam obstruir o controle da cidadepelas autoridades .

..; Rasgando o tecido contínuo da cidade, que ainda lem-brava aquela do Antigo Regime, os grandes bulevares deHaussmann articulavam Paris mediante um sistema viárioque cobria toda a cidade, gerindo a localização e funcionali-dade de espaços públicos e controlando os grandes bairrosonde habitavam os parisienses pobres ou miseráveis queameaçavam a segurança e o esplendor das burguesias, asquais resplandeciam nos lucros e no luxo faustoso do Se-gundo Império.'

Mais do que qualquer outro tipo de construção funcio-nal, foram as casas e os edifícios residenciais aqueles maisintensamente atingidos pelas cirurgias capitaneadas porHaussmann. As moradias foram alvo da enxurrada de discur-sos e práticas normativas que procurava chegar ao cidadãoem seu espaço mais difuso, mais suspeito - e menos alcan-çado pelos tentáculos do Estado. A privacidade das popula-ções parisienses deveria sujeitar-se ao interesse "público",apanágio definido por outras intenções "privadas" alojadasno aparelho instituciorlal.

Milhares de unidades habitacionais foram destruídas em \,Paris à custa de desapropriações, e as muitas remanescentes Iforam fustigadas pelas posturas cada vez mais ousadas. Asnovas construções foram submetidas à aprovação governa-mental, o que restringia intensamente a possibilidade de seConstruir como se quisesse. A especulação estabelecia umalógica paralela de exclusão espacial, em que as imediações dasgrandes artérias foram lentamente impossibilitando o habi-tar pouco custoso.

Alusões à matriz parisiense foram se espalhando pelasantigas capitais européias, que sofriam intervenções de gran-de escala, como Viena, Florença ou Bruxelas, atingindo aindacidades sul-americanas como Buenos Aires." Em todas elas asnovas disciplinas impostas alcançavam em cheio os limitestradicionalmente vastos das concepções do que vinha a ser a

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propriedade ou a habitação. As casas e os espaços domésticosforam então o mais possível submetidos a uma ordem está-vel, necessária às novas funções urbanas promovidas pelo ca-pitalismo industrial. O privado passava a ser, portanto, con-trolado não apenas pelos desígnios do indivíduo, mas pela' ,ordem imposta pelo Estado. Esse modelo de convívio urbano, r

trespassado pelos procedimentos de especialização espacial esegregação social, esteve pulsando no cerne dos procedimentosde controle da habitação e vizinhanças implementados nas ca-pitais brasileiras a partir do advento da República.

Marcadas pelas distantes referências dos países setentrio-nais, às elites republicanas urgia constituir uma estreita dife-renciação espacial em cidades e populações completamenteavessas aos modelos europeus. Percorreremos algumas dasmuitas tentativas de implernentação das referências euro-péias no Rio de Janeiro e nas principais capitais do país, emque o Estado buscou, por todas as frentes, estabelecer a ca-racterização dos espaços de abrangência pública, reservada àcirculação e lazer controlado, e daqueles privados, reservadosà prática da intimidade institucionalizada pelos códigos decomportamento específicos e rígidos, a serem mantidos epromovidos preferencialmente pela família nuclear. A uma

.':, ordem estipulada pelos gestores do Estado para as ruas -públicas - devia corresponder outra destinada às casas -privadas.

A diferenciação entre ruas e casas, entre espaços "públi~cos" e "privados", devia ainda ser necessariamente acornpa-',nhada pela geografia de exclusão e segregação social, que aca- !basse separando em bairros distintos os diversos segmentos ída sociedade. Privacidade, portanto, não poderia mais con-fundir-se com domesticidade, com os simples limites da casa,mas escapava para uma dimensão que abarcava os convívios,os vizinhos - todos sujeitos a uma mesma gramática decomportamento. Harmonizando-se as vizinhanças facilitava-se o conhecimento da fisiologia urbana - e das múltiplas"disfunções" geradas nas clivagens sociais altamente tensio-nadas nas capitais brasileiras, sobretudo após a concentraçãode grandes massas populacionais nas cidades já na primeira ~década republicana.

As estratégias de institucionalização encadeada de casas,ruas, bairros e, por fim, da própria cidade, sofridas pelas ca- 1

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136 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3 HAIiITAÇ~,O E VIZINHANÇA • 137

pitais brasileiras, deparavam-se não apenas com a tradiçãodo "tumulto" e do "desleixo': mas com a dificuldade da orga-nização republicana em gerar suas células constitutivas - oscidadãos -, de quem se poderiam exigir deveres quantomais se oferecessem direitos, viabilizadores da estabilidadeproposta para os espaços.

Se a formação das grandes periferias sem infra-estrutura- e os múltiplos processos de exclusão que as alimentaram- será a característica da expansão das grandes metrópolesbrasileiras contemporâneas, as ilusões de controle total dasconvivências sociais - e da dinâmica social enredada entreespaços públicos e privados - teriam que enfrentar as açõese persistências dos brasileiros que praticaram suas própriasnoções de identidade, intimidade, habitação e vizinhança. Desuas ações privadas, múltiplas e confrontantes já na BelleÉpoque, surgiria o perfil contraditório e tenso da construçãoda própria coisa pública - Res publica.

LIMITES PRIVADOS EM CONFRONTO NA BELLE ÉPOQUE:CORTIÇOS, FAVELAS,PALACETES E VfLl\S

-> Primeira cidade brasileira a sofrer um amplo projeto dereformas após o advento republicano, referenciado no exem-plo "civilizador" da Paris haussmanniana, o Rio de Janeiro,capital da nação até 1960, seria alvo das mais variadas tenta-tivas de controle das moradias, no sentido.de.hajmonizar asv..!zinhança.L~estendeLLdim..e.!ls.ã..Q~9I~Ii~,!>-p-ública, os pa-drões de prjyací.d.a.decontrolada e estável. A_fOl!flli:~riv;Te-gjada da cidade, sede de~~~~ _~~RO~tlRúblico, nãofQ.!,.Ql tretan to,Ja toL.SUliçiente"'p-ªg.~ ~ .~el1~~~as resultas-~-12'andes sucessos. À ineficiência dos procedimentosfiscalizadores, somava-se a limitada dimensão das interven-ções oficiais, incapaz de dialogar com o fluxo contínuo denovos habitantes que acorriam à capital da República.

As iniciativas.reforrnadoras tomadas pelas autoridades\J~úºlicas, sobretudo após a posse de Rod~ Alves em \19Qwsbarravam tambérn.na.mescla de atividades e [unções~ue...j.ustapun.ham_em. quase.tndas.as.ruas da cidade, eme.~p~aLnos..distrito.s.cen.tr.ais. Casas de comércio dividiamparedes com habitações luxuosas ou remediadas, e não rarocom cortiços, estalagens ou casas de cômodos. Tudo alinhado

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138 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

2. O luxo exacerbado dos salõesde visitas dos palacetes da BelleÉpoque acolhia toda umaparafernália de objetos decorativosproduzidos pelas indústriaseuropéias. (Augusto Malta, lnteriorde residência, Rio de Janeiro,c. 1905)

diretamente sobre as ruas, mediado pelas numerosas janelase portas, e pelos muros dos quintais.

Já se disse, com certo exagero, que sobrados e ruas eraminimigos na generalidadLd...ª_Lc.idades· brasileiras.' Muitasmoradias estavam, certamente, marcadas pelos antigos hábi-tos de reclusão formal, herdados das tradições islámicas e docerimonial aristocrático lusitano - matriz dos antagonismosespaciais cultivados pelas e~. Mas da maior par-te das construções assobradadas e da imensidão de casas tér-reas das cidades, o que se deve lembrar mais vivamente é ointenso entra-e-sai nas portas, uma diluição contínua de es-paços - algo mais necessário à dura sobrevivência improvi-sada dia a dia pelos muitos pobres e miseráveis que povoa-vam as cidades brasileiras do que as ilusões de reclusão ediscrição propaladas pelas elites."

O Rio republicano recebera - e manteria - uma largafaixa de vidas baseadas em um cotidiano difícil, muito dis-tante das diferenciações e regramentos promovidos pela mo-ral burguesa ou pelo capitalismo industrial, tanto quanto já oera para as tradições que exigiam reclusão. Mesmo o impres-cindível controle de epidemias tropicais, que devastavam po-pulações cariocas, sobretudo após 1850, era incipiente, e qua-

se impossível em uma cidade na qual mal se divisavam os mo-radores das freguesias, que mudavam de domicilio com a mes-ma freqüência com que trocavam de emprego.

A casa, o espaço doméstico, era urna referência basica-mente móvel para essas populações, como o era a sua própriasobrevivência" As construções disponíveis para a moradiapopular restringiam-se a obedecer às poucas exigências pos-síveis diante da pobrefa c da própria mobilidade, restando àsautoridades apenas multar aqui ou ali os proprietários oulocadores mais desobedientes - uma debilidade que se repe-tia no controle dos logradouros públicos.

As posturas das vereanças, as concessões de serviços parainfra-estrutura urbana e o pequeno exército de médicos sani-taristas pouco tinham podido fazer pelo controle efetivo dadinâmica da cidade, e de suas habitações populares superpo-voadas e materialmente precárias, muitas delas levantadassob o impulso da liberação de capitais do tráfico e do au-mento das atividades portuárias e industriais da corte." O Riode Janeiro ingressava no rol das capitais republicanas do Oci-dente, sob o escárnio e o horror de viajantes estrangeiros,negociantes e imigrantes.

O quadro precário das habitações das maiores faixas daspopulações urbanas cariocas se repetia nas demais capitais

HABlfAÇÃO E VIZINHANÇA • 139

3. Concentrando populações tãonumerosas quanto desprovidas,as casas erguidos ainda na Colôniaou no Império espalhavam-se pelasáreas centrais das maiores cidadesdo país, forçando convíviose confrontos sociais. (Castelo (altodo morro), Rio de Janeiro, c. 1920)

140 • HISiORIA DA VIDA PRIVADA NO B~ASIl 3

4. Nos cortiços e estalagens cariocasas expectativas de privacidadediluíam-se, compartilhadasnos varais, tanques e portas abertas.(Augusto Malta, sem título, Riode Janeiro, s. d.)

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provinciais, o que se tornava evidente nas altas taxas demortalidade que acometiam os domicílios populares, provo-cadas pelas sucessão de surtos de cólera-morbo, febre amarela,varíola, malária e em particular de tuberculose, além da pestebubônica, que passaria a fazer muitas vítimas em fins do sécu-

110 XlX, Doenças todas que grassavam em razão das péssimascondições de salubridade oferecidas pelas ruas imundas, massobretudo pelas casas lotadas e sem infra-estrutura de esgotamento e abastecimento de água, insuficientes e ineficientesmesmo na corte. Os efeitos das epidemias e endernias erammultiplicados por causa dos ainda incipientes resultados profi-láticos da medicina científica, às vésperas do salto microbioló-gico, e das práticas curativas vindas das tradições africanas ehipocráticas, muito disseminadas na capital. JO

Urgia aos dirigentes do regime que se instalava, inspira-do nas idéias tecnocráticas de governo, arrancar o Rio deJaneiro da letargia e inoperância que atribuíam ao execradoregime imperial, julgado incapaz de livrar a cidade de COI1\'I-

vios considerados promíscuos e desestabilizadores da saúdepúblical,Fazia-se mister generalizar os procedimentos disci-plinares para os espaços públicos e privados, diferenciando-os mediante a oposição à dinâmica difusa que os mesclava, eque favorecia a convivência entre segmentos e interesses so-ciais muito distintos mesmo nas áreas mais centrais da capi-tal. Compreende-se, pois, a prioridade concedida ao combate

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 1 A 1..

in~tit~ci?nal às habi~a5ões populares,. cons~deradas ~omo OS) /prmCIpals focos de dispersão das epidemias pela CIdade, ehavia muito tempo condenadas à extirpação pelos médicoshigienistas, ansiosos por curar as cidades de suas "patologias"sanitárias, sociais e espaciais.

AJlmbição de arrancar do seio da capital as habitações emoradores indesejados pelas elittuilligentes começou a sefQ?terializar com as medidas visando a demolição~QLIlume-rosos cortiços e estalagens, espalhados por todas as freguesiascentrais do Rio de Janeiro, o que se processou sob.a.legitima-ção conferida pelo sanitarismo." A inauguração das medidasde exclusão habitacional e social na ªpital da República per-mire entrever, no entanto, as muitas dificuldades na implan-t~ªo das referências urbanizadoras estrangeiras que se repe-tirj~.!!LJ).aLdéçadªi! seg!!i!L~~~qu0E~m naufragar osanseies de hom<:&~_~~ar_~'izinb:~ça~e_p.QUtizar os âmbitosprivados à J.ev~~..s!au:n<gclª-s....s..oÚais..

As primeiras atitudes objetivando a eliminação dos cor-tiços cariocas mostravam-se tão tímidas quanto incapazes dereorientar para longe a moradia das populações expulsas.Pode-se supor com certa segurança que já na demolição docélebre Çabeça de Porco - situado nas faldas do morro daProvidência e posto abaixo pelo prefeito Barata Ribeiro em1893 - começaram a surgir os irônicos resultados iniciaiscolhidos pelo atropelo das intervenções republicanas.

A miséria e os miseráveis que haviam perdido suas habi-tações na derrubada violenta do cortiço tinham à disposiçãoo morro contíguo - e as madeiras da demolição que a pró-pria prefeitura lhes permitira recolher. Barracos de madeiraja estavam disseminados no morro de Santo Antônio, pontoprivilegiado da cidade, e logo estariam presentes no da Provi-dência, nos anos que se seguiram às picaretas de Barata Ribei-ro. Na vizinhança do Cabeça de Porco, surgia a "Favela", apeli-do que seria dado ao morro da Providência pela tropas vindasde Canudos em 1897, as quais estacionaram ali e acabaramdenominando o local desse nome por associação a plantascom favas, comuns tanto no morro carioca quanto nas cerca-nias do arraial de Antônio Conselheiro, o Belo Monte."

As favelas, surgidas no Rio de Janeiro quase contempo-ranearnente à República, inauguravam de modo exemplar orol de frustrações das elites em eliminar as convivências de

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142 . HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3 HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 143

5. Na guerra entre o prefeito cariocaBarata Ribeiro e o Cabeça de Porco,o poder público vet!ce a primeirabatalha, devorando o oponente em1893. Alias depois, ltaS vizinhançasdo 1ucal do corriço derrubado,prosperava a Favela, conjurltode barracos que apelidaria 05 demaisagrupamentos populares dos morroscariocas. (Cabeça de Porco, }893)

ANNO 18

ção dos espaços públicos e privados das áreas mais centraisda capitals Tinham esperança de garantir a transformaçãosocial e cultural da cidade, e obter um cenário decente eatraente aos fluxos do capitalismo internacional, tão refrea-dos pelas precárias condições da capital quanto ambiciona-dos pelas elites atreladas aos grandes interesses exportadoresinstalados no governo da União."

Agindo tanto no controle dos espaços privados como nodos logradouros públicos, as reformas urbanas cariocas ex-pulsariam grande parte da pobreza e da miséria, das mani-festações populares e das atividades tradicionais visíveis nasruas e nas casas modestas da cidade. As práticas sanitárias con-sagrariam os ditames da medicina científica contra o curan-deirismo. A obrigatoriedade oficial de vacinação contra a va-ríola geraria em 1904 o mais intenso levante popular havidono Rio de Janeiro, a Revolta da Vacina, que transformaria ocentro da cidade num caos de quebra-quebras e barricadas.Instalou-se um clima de ansiedade e desconfiança entre osintegrantes das elites locais, incluindo-se aqueles membrosque em princípio somaram suas vozes à aversão dos popula-res pela vacina ou contra o rol interminável de demoliçõesque se haviam in iciado na capital.

Os pudores das casas e famílias, as sacrossantas idéias depropriedade privada, as tradições religiosas de culto a Orno-

habitações e populações diversas no seio da maior e maisimportante cidade brasileira de então, fornecendo um para-digma do que se processaria ao longo do século xx em quasetodas as medidas que visavam a exclusão social mediante acondenação e eliminação de habitações inconvenientes._ As vastas reformas urbanas empreendidas a partir de

1903 no Rio de Janeiro pelas ações combinadas dos governosfederal e municipal miravam em cheio a liberdade de ocupa-

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6. O morro de Santo Antônio foi,provavelmente, o primeiro a abrigarbarracos no Rio de [aneiro

republicano. Ironicamente, muitasdas paredes e telhados foramlevantados com despojosdas demolições efetuadas na áreacentral. (Augusto Malta, Morrode Santo Antóruo, s. d.)

144 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

7. Na inútil tentativa de submetera Favela, os sanitaristas poucopuderam fazer além da polícia- as moradias do morrodtl Providência consolidaram-sec chegaram até fins do século XX.(Uma limpeza indispensável, s. d.)

IIj

lu, O orixá ligado à varíola, tudo era exíguo diante das serin-gas de vacinas, ou dos inspetores sanitários que violavam aintimidade de lares de todos os segmentos sociaiss' Devassa-varn-se corpos, casas e quintais, em razão da imperiosa im-posição oficial de eliminar a varíola, a febre amarela e a peste.A privacidade devia ser estimulada, desde que se adequasse aosinteresses da esfera pública, trespassada por interesses parti-culares dos que ditavam as regras políticas e sanitárias -'0

que naturalmente atingia muito mais as habitações coletivas eos bairros em que se concentravam, foco do levante de 1904,do que os palacetes e casas médias, na maioria obedientes aosdispositivos legais para construção e saneamento básico._ A "profilaxia" dos espaços públicos e dos corpos deveria

ser, portanto, acompanhada daquela dos lares e, por extensão,dos bairros e do centro, livrando a capital das convivênciastachadas de insalubres e perigosas, sanitária e socialmente.Caso fosse necessário, punham-se as habitações condenadasabaixo, garantindo ao menos a eliminação das moradias inde-sejadas por suas permeabilidades, consideradas promíscuas.

Os ecos da Revolta da Vacina calaram a maioria das pos-síveis dissensões entre as elites locais. Os divergentes rapida-mente se acomodaram às somas pagas pelas desapropriaçõesde seus imóveis, pelas compensações em títulos públicos,substitutos das rendas de aluguéis, ou pela possibilidade de

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 145

I

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reconstruções lucrativas, estimuladas pela; reformas coman-dadas por Rodrigues Alves. Tudo embalado pelo triunfo daspráticas sanitarizadoras implementadas por Oswaldo Cruz eamplificadas pelas demolições dos projetos haussmannianosdo prefeito Pereira Passos e de Paulo de Frontin.

Ainda que as reformas de Pereira Passos não tenhamtido o grau de complexidade sistêmica daquelas realizadas naParis oitocentista, que ele mesmo vivenciara em seu períodode estudos na França," o Rio de Janeiro foi palco de umafirme tentativa de reformar os costumes, aliando o controle eo redesenho dos espaços públicos ao ataque violentíssimoaos espaços privados e às propriedades edificadas.

A apropriação parcial do programa parisiense, adequadoa ~a cidade industrializada e com forte demanda de serviços,vena seus resultados chocarem-se com uma sociedade, e comuma economia nacional, que não podia acolhê-Ia satisfatoria-mente nem mesmo em sua escala reduzida, tampouco fazê-Iafrutificar segundo as ambições dos dirigentes brasileiros.

Instalou-se um "bota-abaixo" de cortiços, estalagens, so-brados e casas térreas classificadas como insalubres e indig-nas, sob a aparência das melhores intenções sociais." Paraaqueles que compartilhavam das idéias intolerantes dos diri-gentes das reformas, as rnelhorias nas canalizações e infra-estrutura não eliminavam a chaga social das habitações po-pulares miscigenadas às casas comerciais do centro ou àsmoradias destinadas aos setores sociais mais estáveis estabe-lecidos nos arrabaldes.

"Certamente não basta obtermos água em abundância eesgoto: regulares para gozarmos de uma perfeita higiene ur-bana. E necessário melhorar a higiene domiciliária, transfor-mar a nossa edificação, fomentar a construção de prédiosmodernos e este desideratum somente pode ser alcançadorasgando-se na cidade algumas avenidas, marcadas de formaa satisfazer as necessidades do tráfego urbano e a determinara demolição da edificação atual onde ela mais atrasada e re-pugnante se apresenta?" Era a justificação para o vasto pro-grama de alargamento de ruas e traçado de novas avenidassob o antigo tecido dos quarteirões das freguesias centrais eda linha portuária, articulando-os com os arrabaldes em quese multiplicavam os interesses especulativos desde a instala-

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ção das companhias de bondes e estações de trem ao sul e aonorte da cidade.

O acesso da área central aos subúrbios populares aonorte da cidade, além de São Cristóvão, foi facilitado peloprolongamento da avenida do Mangue, na Cidade Nova, epelos aterros na Prainha, Valongo, Gamboa e na praiã For-mosa, onde se assentou o novo cais portuário e a longa ave-nida Rodrigues Alves .•No vetor sul da cidade, os aterros entrea Misericórdia e a praia da Saudade deram abrigo à avenidaBeira-Mar, que articulava o centro aos bairros em que desdeos tempos de d. João VI vicejavam as chácaras de estrangeirose aristocratas. Agora, o acesso à Glória, Catete, Laranjeiras,Cosme Velho, Flamengo e Botafogo era rápido e elegante,tendo sido a Guanabara flanqueada com jardins e esculturasinspirados em Paris. O arejamento atlântico de Copacabana,ligada ao Rio por bondes quando era pouco mais que. umimenso areal, estava ainda mais acessível às novas moradias eà especulação, sobretudo após a inauguração do túnel doLeme, em 1906.18

A legislação implementada pela tirania de Pereira Passosem 1903, imposta à cidade em meio ao fechamento da Câ-mara - suscetível às pressões dos que viviam de aluguéis emconstruções precárias e baratas -, proibia a construção deestalagens e cortiços na cidade, e de casas térreas num amploperímetro que englobava o centro e os bairros ao sul, além deregular enfaticamente as novas edificações:

A parte referente às condições do terreno estabelecianormas quanto ao aterro dos pântanos ou alagadiços;proibia que em ruas novas ou pouco edificadas se cons-truísse em terrenos com menos de 6 m de largura (vi-sando a limitar o parcelamento especulativo indiscrimi-nado dos lotes urbanos, e, quem sabe, inviabilizar aspequenas moradias em áreas que tendiam a ser rapida-mente ocupadas); eJÇj&LCJ-ueJQQo_olerr~no_ construL~ofosse fechado por um muro ou gradil.

Tratando das condições que deviam satisfazer os prédiosa construir ou reconstruir, regulamentava as fachadas, asparedes divisórias de prédios contíguos, os alicerces, osmateriais de construção empregados, o arejamento e aventilação, a altura máxima dos prédios em relação à

HABITAÇÃO E ViZINHANÇA • 147

largura das ruas, 'a colocação de reservatórios de água,encanamentos de esgotos, latrinas etc."

Submetia-se a possibilidade de novas construções aos de-sígnius impostos pelo poder público, na esperança de regular aintimidade e a privacidade das residências mediante os pa-drões sanitários de infra-estrutura, o que encarecia os custos,limitando o rol de proprietários capazes de construir. O âmbi-to privado devia ser explicitamente diferido do público, pormeio da exigência de gradis e muros, ao mesmo tempo que secontinham vizinhanças populares ampliando as dimensõesmínimas do lote, o que se aliava à interdição das casas térreasno centro e na Zona Sul.

O desejo de espargir as habitações "civilizadas" pela cida-de chegava à quintessência nos arrabaldes liwráneos, onde sematerializavam as características do habitar aerado e higiêni-

8. Loca! de prornenades c corsoselegantes, 05 [ardins da enseadado Botafogo eram espaço: publicascujas normas de uso P COr/duraacabaram por restringir 05 usuáriosa um grupo seleto, "aviuzudo".As praias cariocas -- públicas porexigência legal-o {-asSUrturn grandeparte do século XX ccrcad.is pur umgradil iguaímeme SUTil e invisivel(Avenida Beira-M,», enseadado Botafogo, Rio do: laneiro, s. d.)

1.18 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO iASll 3

;.;cJSeguindo tradições que já vinham do reino e do Império,solares e palacetes eram erguidos em meio a jardins, muitosdeles isolados em seus lotes e protegidos por extensos gradisde ferro que afastavam seus frontispícios faustosos e a intimi-dade dos moradores do movimento das ruas.20 Como quasetodos os vizinhos edificavam - e comportavam-se - de ma-neira semelhante, chegava-se à possibilidade de habitar entreiguais, numa generalização de alcance "público" advindo dospadrões domésticos e privados homogêneos.

_ A migração das elites para os bairros ao sul da cidadeassegurava-lhes distância da "promiscuidade" das áreas cen-trais e das adjacências do palácio imperial de São Cristóvão,onde muitas residências outrora distintas haviam sido trans-formadas em casas de cômodos, ou avizinharam-se às indús-trias que se instalavam na região. Mesmo a moradia dos mor-tos elegantes debandava dos antigos cemitérios terceiros doCaju e Catumbi, inseridos em bairros claramente populares,para o Cemitério São João Batista, no Botafogo," com suavizinhança sofisticada.

A ânsia de assegurar vizinhanças homogêneas atingiu aprópria sede do governo nacional, que já havia se deslocadodesde 1897 do Palácio do Itamaraty para o Palácio do Catete,antiga residência dos barões de Nova FriburgoY Situado narua larga de São Joaquim, o palacete adquirido à marquesa deItamaraty em 1889 localizava-se em meio ao oceano de habita-ções coletivas que povoava as freguesias imediatas de SantaRita e Santana, a metros do próprio Cabeça de Porco, vizi-nhança por demais incômoda que incluía, naturalmente, oMinistério da Guerra, excessivamente próximo.

As amenidades do vetar sul da cidade foram considera-das mais decentes aos despachos presidenciais d~ República,ironicamente realizados sob os tetos erguidos com a fortunade um dos maiores proprietários de escravos do Império. Asede do Executivo nacional abandonava o equilíbrio neoclás-sico do solar dos Itamaraty para alojar-se no luxo ostentadopelo neomaneirismo veneziana do palácio dos Friburgo -uma curiosa República que se abrigava em símbolos da titu-lada elite imperial e que não se dignaria jamais erguer para sium palácio enquanto permaneceu sediada no Rio de Janeiro.As boas "casas" do regime antigo puderam ser - às escânca-ras - as residências dos republicanos atavistas, que seguiam

'f

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • lA9

os passos das elites escravocráticas em direção aos palacetes evil/as da Zona Sul.

E não eram apenas essas as reminiscências trazidas doImpério a alimentar as pretensões das elites reformadoras eexclusivas. Petrópolis permanecia como referência de bemviver, uma pequena Europa serra acima, ornada de elabora-das moradias neoclássicas e ecléticas, e isolada dos calores eepidemias tropicais do Rio."

Mais do que uma refinada fantasia européia, Petrópolisera ainda uma cidade de pobreza quase invisível, eclipsada nasdependências domésticas dos palacetes ou no comércio restri-to. Ideal, paradigmática para as mentes que, desterradas nostrópicos, imaginavam poder "civilizar" as capitais das antigasprovíncias e a própria sede nacional segundo os ditames dasonhada Europa, Petrópolis transformou-se em espaço.míticode um presente republicano livre dos incômodos herdados dopassado escravista que embalava o Rio de Janeiro, e que expu-nha as mazelas e vizinhanças da pobreza em todos os pontoscentrais da cidade. Saneada dos convívios bárbaros e aviltantesàs ambições dos dirigentes republicanos que veraneavam noalto da serra da Estrela, Petrópolis transitou do Império à Re-pública como lembrança preciosa dos "bons tempos" dos Bra-gança, em que cada um dos viventes sabia seu "lugar" - mes-mo que tal lugar fosse bastante fluido em cada uma dasmovimentadas ruas da antiga corte, atacadas a partir de 1904pejas demolições e remoções de Pereira Passos.

Os sonhos de civilização emergiam, serra abaixo, na con-solidação dos bairros refinados da Zona Sul carioca, refúgiocada vez mais acentuado de espaços privados semelhantes noaburguesamento, avizinhados na mesma harmonia mítica dePetrópolis. A intenção de assegurar a implantação de áreasresidenciais homogêneas articulava-se ainda com as grandesobras públicas da área central. Inúmeras propriedades priva-das, incluindo residências de todos os segmentos sociais, fo-ram submetidas à intenção de definir logradouros específicospara a circulação, em que a ocupação de ruas e avenidas de-via expulsar as antigas práticas de permanência dos que sealojavam ou trabalhavam nos espaços públicos.

A avenida Central. depois renorneada Rio Branco emhomenagem ao barão que definira os também confusos limi-tes geográficos do Império e da República, aparecia como a

150 • HISTÓRIA DA VIDA PRIV,\DA NO BRASil 3

9. Contemplando O valedas Laranjeiras, o palaceteda "eminência parda" do poderpresidencial, assentava-se ondejá moravam ricos ClIriocas desde05 tempos de d. João VI. (PalacetePinheiro Machado (morroda Graça), Rio de lanciro, s. d)

mais emblemática das novas artérias surgidas do bota-abai-xo, inspirada nos bulevares parisienses e na avenida de Mayo,que presidia desde 1894 o centro aburguesaclo da rival Bue-nos Aires, capital que nos primeiros anos do século xx ultra-passara o Rio de Janeiro como principal centro portuáriosul-americano."-.yA nova avenida coroava as intenções de rcdefinição da

antiga relação entre espaços públicos e privados na capital daRepública.D fausto das construções institucionais e particu-lares consagrava-lhe novos ritmos espaciais, tudo patrocina-do diretamente pela UniãQ)que encetava no centro da capitalo símbolo do controle dos espaços públicos, abertos às custada violenta submissão das propriedades privadas aos proce-dimentos desapropriadorest.Os antigos ocupantes das ruasapertadas e barulhentas da área central, os mesmos que sebeneficiavam do "tumulto" e da "desordem", deviam ser ex-cluídos dos novos logradouros "públicos". Reservados paraaqueles que soubessem se comportar dentro de padrões de"civilidade", as novas artérias expulsavam - em tese - osmiseráveis do Rio, "privatizando" para as elites e setores mé-dios um espaço, em princípio, comum, "público'~

A concentração do suntuoso conjunto formato pelo Se-nado Federal (Palácio Monroe), pela Biblioteca [acional,Museu Nacional de Belas-Artes e pelo Teatro Municipal na

extremidade sul da nova avenida indicava o também novocoração da cidade. O centro agora voltava-se para os bairrosresidenciais nos lados da enseada de Botafogo e do Atlântico,criando-se o eixo que enlaçava as regiões enfim subordinadasà nova gramática entre os espaços públicos e os privadosambicionada pelas elites reformistas."

Davam-se as costas para o campo de Santana, São Cris-tóvão e os bairros em volta do Engenho Velho, lembrançamonárquica cheia de solares decadentes. O Norte da cidadeera deixado aos médios, aos miseráveis que eram expulsosdas residências coletivas demolidas na área central, e às levasde cariocas e imigrantes que podiam instalar-se nas casasmodestas da zona suburbana, crescente ao longo das estradasde ferro Central, Leopoldina, Rio d'Ouro e Melhoramentosdo Brasil." Com as verbas govemamentais canalizadas paraas reformas portuárias e para o Iausto dos alargamentos eaterros ajardinados no centro e nos bairros sulinos, restariaaos subúrbios iniciar décadas de reivindicações para a infra-estrutura de casas e ruas, e soluções para o transporte entreos empregos, nas áreas centrais, e as distantes moradias queseguiam a sacrificante geografia da lógica especulativa: "Emruas da cidade e ruas de seus subúrbios mais próximos, aosquais o município já deu todas as vantagens que podia dar,encontram-se a cada passo terrenos desabitados. Em com-

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10. Ela: "Vocé me disse que isto aquiera uma terra civilizada ... Muitobonita civilização. Antes o meuarraial do sertão! Querem arrasaro morro? Pois arrasem, rtI!15 se nãohá casas, façam barracões paraa gente pobre! Isto assim é umapouca vergonha de desajoro, que,se eu fosse homem, havia de pintaro diabo I"Ele: "Cala-te, mulher!Cala-te e vai puxando com (/ trouxa!Isto aqui é como em toda a parte: .tratam-se os ricos nas palminhase 05 pobres aos pontapés! Mas o diada nossa vingança há de chegar. Olá,se há de!... " Aqueles desalojados pelasreformas cariocas que não tomaramo rumo dos subúrbios, estabeleceramsua presença renegada nas favelas,que se espalharam rapidamentepelos morros I/Q Zona Sul cariocajá na década de 10. (Descendoo Castelo, 1905)

152 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

pensação, nos bairros mais remotos, a construção é inces-sante","

Quanto mais longe ficassem as populações - e suashabitações - expulsas pelas reformas e seus agentes, tantomelhor seria. As planícies que se estendiam para além domorros do Telégrafo, do Pedregulho e de São [anuário, e daserra do Engenho Novo, passaram a acolher parte das levasde moradores que eram expelidos das áreas mais centraispelas demolições ou pela valorização dos terrenos e pela es-peculação que estocava as áreas mais próximas do centro.Engenho Novo e de Dentro, Méier, Cascadura, Irajá, Pavuna,Bonsucesso, Ramos e dezenas de outros bairros foram aco-lhendo os vastos segmentos médios e empobrecidos, enquantoaqueles que nem nos subúrbios ferroviários podiam habitarpassavam a vagar pelas construções que restavam deterioradasno centro, em ruas imediatas às áreas do programa de reedifi-cações: "A população que se deslocava não tinha onde morar,alojava-se aqui para amanhã de novo, com armas e bagagens,se remover para um outro ponto. Foi se afastando do centro .quando os meios de fortuna o permitiam; foi se aglomerandono centro tornando mais perigosa sua estadia, quando os re-cursos ordinários eram parcos'."

- A prioridade no embelezamento das ruas e artérias cen-trais e dos bairros ao sul principiava a mostrar a real dimensãoda capacidade do poder público em readequar os padrões ha-bitacionais, e a própria ambição de sanear e zonear socialmen-te a nova capital redesenhada. Os temores do fracasso das me-didas sanitárias, infundados porque de fato elas lograriameliminar a maioria das doenças epidêmicas e endêmicas do'.Rio, prenunciavam a continuação e a dispersão não das pato-logias biológicas, mas daquelas temidas, as sociais e habitacio-nais: 'l..]são exatamente estes acúmulos insalubres de mora-dores pobres que tornam impossível a sanificação completa dacidade. Eles já são atualmente focos epidêmicos. Até hoje, po-rém, estavam concentrados em um ponto. Agora vão irradiar?"

A dispersão das populações pobres deu-se realmente, eem grande parte, pelos subúrbios ao norte da cidade, masnão foi esse o único rumo daqueles que estavam sendo ex-pulsos pelo bota-abaixo e pelas normas que perseguiam as"promíscuas" habitações populares. As atitudes governamen-tais de edificação de moradias populares eram tímidas -

..J~Q.-~ HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 153

delas são testemunhos os conjuntos ainda existentes ao longoda avenida Salvador de Sá -, levando os despejados a seacomodar onde pudessem. Como a construcão de novos cor-tiços e estalagens estava proibida desde 1903, as casas de cô-modos, que foram descritas com O verbo assustador de Joãodo Rio, tendiam a espalhar-se ainda mais pelas edificaçõesvizinhas ao novo centro do comércio e do lazer da Belle Épo-que carioca, abrigando boa parcela dos desabrigados e enfu-recendo os anseias civilizadores:

São as ruas da Cidade Nova, da Gamboa, de Frei Caneca,que sempre foram a habitual residência de gente pobreas que hoje continuam a ser procuradas e por isso seenchem ainda mais os cômodos que os minguados ven-cimentos dos operários permitem pagar.

E, assim reunida, aglomerada, essa gente - trabalha-dores, carroceiros, homens ao ganho, catraieiros, caixei-ros de bodegas, lavadeiras, costureiras de baixa freguesia,mulheres de vida reles entopem as casas de cômodos,velhos casarões de muitos andares, divididos e subdividi-dos por um sem-número de tapumes de madeira, aténos vãos de telhados entre a cobertura carcomida e oforro carunchoso. Às vezes, nem as di~isões de madeira:nada mais que sacos de aniagem estendidos verticalmen-te em septos, permitindo quase a vida em comum, numapromiscuidade de horrorizar. A existência é ali, como sepode imaginar, detestável."

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11. Policial: "Que é isto' No meioda rua!" Homem: "Que é queo senhor quer: não há mais casas."Público ou privado' A chargede 1904 já apontava o improvisodo "saneamento" social das áreascentrais do Rio de Janeiro durantea presidência de Rodrigues Alves.(Por causa das Avenidas, 1904)

154 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

Para os cariocas que nem mesmo podiam pernoitar noscasarões havia a possibilidade de ainda fazer bom uso inter-pretativo de um dos artigos do código de posturas de 1903.Os primeiros barracos de madeira, que desde a década de1890 acumulavam-se no morro da Providência, a "Favela", eno de Santo Antônio (onde ocorreriam várias tentativas deerradicação das habitações entre 190J e 1916), começariam ase espalhar nos incontáveis morros cariocas, disponíveis emtodas as zonas da cidade, favorecidos pela flacidez do própriodizer legal: "Os barracões toscos não serão permitidos, sejaqual for o pretexto de que se lance mão para obtenção delicença, salvo nos morros que ainda não tiverem habitações emediante licença"?

Os morros estavam por todo o Rio, e quase todos eramdesabitados; quanto às licenças ... essas puderam ser facilmen-te esquecidas, ou mesmo contornadas. Quando ~orar n~shabitações coletivas superlotadas alcançava um custo impos-sível, ou as condições de moradia ficavam insuportáveis,umas poucas madeiras e a complacência das autoridadesabriam novas - e panorâmicas - perspectivas de habitação:

Para ali vão os mais pobres, os mais necessitados, aquelesque, pagando duramente alguns palmos de terreno, ad-quirem o direito de escavar as encostas do morro e fincarcom quatro moitões os quatro pilares de seu palacete ...

Ali não moram apenas os desordeiros, os facínorascomo a legenda (que já tem a Favela) espalhou; ali mo-ram também operários laboriosos que a falta ou a cares-tia dos Cômodos atira para esses lugares altos."

Numa singular sirnbiose com as reformas da cidade, osmoradores expulsos pelas demolições alimentavam-se dosdestroços, extraindo dali os materiais de construção-queacabariam perpetuando as vizinhanças que as obras públi-cas pretendiam extirpar: "O desenvolvimento das constru-ções no morro de Santo Antônio acentuou-se no governopassado, durante as demolições para a abertura da avenidaCentral. À noite, desciam as íngremes veredas, para a cidade,bandos de homens, crianças e mulheres, insinuando-se pelosescombros, pelas minas das velhas ruas que desabavam paranascer a avenida, c ali, com cautela desentranhavam paus,vigores, tábuas, velhas folhas de zinco, tudo quanto mais a

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mão demorava, para voltar, a horas mortas, organizando atriste caravana da miséria. No dia imediato, ao romper do

_ sol, já mourejavam no desbastamento do terreno, para assen-f.1ar os alicerces de uma nova habitação".34

c. c' ~ Apesar de as habitações coletivas tradicionais serem con-tinuamente perseguidas, sobretudo na área central, nos bair-ros da Zona Sul e na distante Copacabana - onde aliás exis-tiam alguns cortiços já antes de 1905 -, as favelas acabariamsendo toleradas. Com uma rapidez impressionante, os barra-cos foram erguidos por todas as regiões mais urbanizadas doRio de Janeiro, inclusive naquelas escolhidas pelas elites paramorar em "boa vizinhança': solapando os sonhos da gestãoRodrigues Alves.

Os 219 barracos da Favela da Providência e os 450 domorro de Santo Antônio estavam, já em 19l3, ao alcance doolhar de qualquer um que estivesse nas esquinas ou janelasdas novas ruas e avenidas afrancesadas abertas na década de1900: aqueles a metros da nova avenida Marechal Floriano,principal artéria transversal à avenida Central, e estes coroan-do ?s céus do largo da Carioca, um dos pontos de circulaçãomais elegante da capital."

Vozes na imprensa encarregavam-se de renovar os pre-conceitos contra a ameaça que vinha das novas formas dehabitação dos miseráveis cariocas. Controladas as epidemiasna década de 10, os apelos do sanitarismo já não eram cabí-veis pa:a as vontades que queriam expulsar as populaçõespobres Junto com as habitações infectas. Mas, afinal, o que sepodia fazer? Se a Favela era descrita como "uma vergonhapara uma capital civilizada" e "antro de facínoras': era tam-bém impossível ignorar que a República dos fazendeiros es-quecia-se de promover as reformas sociais que suportassemas exigências feitas pelo Estado aos novos cidadãos. Na au-~ência desse cuidado, a existência de miseráveis - maciça eIDcontornável- possibilitava que eles agissem como pudes-sem, ou quisessem, lutando pela sobrevivência nos empregose funções instáveis disponíveis por toda a cidade." Perto de-les exibiam a morada de suas misérias aos olhos ansiosos pela"civilização", numa vizinhança que as autoridades foram ins-tadas a aceitar: "Tanto na Favela como no morro de SantoAntônio moram centenas de trabalhadores, gente honesta,digna de consideração dos poderes públicos, e que só se foi

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meter nos tão malsinados casebres porque não encontrou ou-tras habitações [...] Cuidado, Calma, Prudência são de bomconselho nessas conjunturas apertadas, em que o pobre tem odireito de exigir que se lhe respeite a própria miséria, causadaprincipalmente pela incúria dos poderosos'."

Num tempo em que apenas trens e bondes precáriosserviam as periferias longínquas - ao que se somava a quaseintransponível topografia carioca - como esperar horas ehoras por empregados? Os morros e brejos do centro e daZona Sul acabaram sendo a resposta cômoda para as eliteshabituadas a agudas explorações sociais. Afinal, a convivênciapróxima entre senzalas, colônias e salões senhoriais estava namemória de muitos. A pobreza acabou por avizinhar-se aoluxo das residências aburguesadas: a metros dos quintais ejardins franceses da rua de São Clemente, no Botafogo, subi-riam anos depois os barracos do morro Dona Marta.

Mal acabavam as grandes demolições e expulsões da ges-tão Rodrigues Alves, já começava a surgir a maior parte dasfavelas do centro e da Zona Sul do Rio de Janeiro. Em 1907,encontram-se referências a barracos no morro da Babilônia,seguindo-se o aparecimento das favelas do Salgueiro (1909),na Tijuca, e da Mangueira (1909), no morro do Telégra-fo, localizado atrás da Quinta da Boa Vista. Já em 1912 esta-vam em morros do Andaraí, em Copacabana e no Leme, etambém no morro de São Carlos, no Estácio. O morro dosCabritos, entre Copacabana e a lagoa Rodrigo de Freiras, jáabrigava barracos em 1915, e em 1916 havia favelados tam-bém no morro do Pasmado, coroando a paisagem do Botafo-go, e nos subúrbios ao norte da cidade."

A expansão das populações faveladas avançara no seiodos bairros de palacetes, marcando a paisagem e arruinandoas ambições de afastar as vizinhanças empobrecidas. O fra-casso em forjar vizinhanças homogêneas no Rio de Janeiropassava a consolidar-se no mesmo momento em que fortu-nas de recursos públicos eram destinadas especificamente àexpulsão das habitações populares das áreas centrais da cida-de. A intenção de "civilizar» os convívios, e discipliná-Ias pormeio do controle da habitação e das vizinhanças, não logravaresultados eficientes nem na capital do país.

Os resultados satisfatórios para as ambições "saneado-ras» das elites foram fragmentados, assim como o foram as

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HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • J 57

J 2. Em J 907, policiae sanitaristas já ttl5uiavam umaunião - inútil - sub 41 bflll.lrü

de Pereira Passos e Üswaldo Cruzcontra os casebres dos murros e sua"malta de desceu psdos "(Saneamento dos morros, J 904)

158 HISTORIA DA VIDA P~IVADA NO BRASI, 3 Ii!

tornara o apelido da forma nova de habitar dos miseráveisnos espaços privilegiados da cidade:

Eu lembro este alvitre a menos que não queira o Gover-no ser obrigado a jugular uma rebelião francamente po-pular, causada pela carência e carestia das casas. O me-nos prestigioso dos agitadores políticos levantará, no diaem que quiser, toda a população dos bairros miseráveisda cidade, homens, mulheres e crianças, se desfraldaresta bandeira.

Se os senhores representantes da nação pensarem uminstante nos efeitos dessa formidável sublevação, de quenão tem notícia nem conhecimento o Rio de Janeiro,não hesitarão em votar uma lei que dê cabal solução aesta crise que atravessa a população pobre.

E para pensarem nisto, basta que percorram, um diaapenas. estas zonas da suburra carioca, para perceberem,como já tenho eu percebido, os primeiros rugidos datempestade próxima."

- As palavras enfáticas do engenheiro Everardo Backheu-ser. secretário de uma comissão de inquérito convocada em1905 pelo ministro do Interior e Justiça, J. J. Seabra, a fimde propor soluções para a crise habitacional, foram publi-cadas meses depois do estouro da Revolta da Vacina. emnovembro de 1904, e lembravam enfaticamente a perigo-sa lacuna das obras reformadoras da gestão de RodriguesAlves." Se a maior parte dos cariocas acabaria sendo em-purrada para os subúrbios setentrionais da cidade, não se-ria po sível, afinal, descartar uma vasta população residual,que se acumularia nos cortiços e morros, pressionada pela es-peculação, pela ausência de infra-estrutura de locomoção epela própria incapacidade das elites dirigentes em promo-ver uma política habitacional direta que garantisse sua am-bição saneadora. A lei que solucionasse a pressão popularpor moradias, que desse "cabal solução a esta crise" - ja-mais viria a existir. A iniciativa de construção, por parte doEstado, de conjuntos de moradias durante as reformas cario-cas foi exígua, acumulando uma demanda que voltaria a seratendida anos depois, no Rio e nas diversa capitais do paísque sofriam processos de exclusão hal itacional referencia-dos na experiência carioca.

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13. ''A 100 metros dll avmid<1 I<wRrUl1col" o, l,arraco1 e tiS IIálJllOs"bárbaros" dt' seus Htorad(lreS Ullll

se lilllitavom apenas ao "cscà/ldalo"do morro de SunlO AIlfÓlllO - j.i ,<IIvi:mhavmll aos jardins do Ro/(/.r,,~"e à ave/lida Atlântica. (.'\, nodoa.do Rio - hairros para"tJrlu\dos morros, 1916)

atitudes e idéias apropriadas das sociedades e ,os modelos deadequacão urbana tomados dos paises hegemontcOs. ~ r,eno-va ão do país esbarrava nas características de convlvenc!a

heÇrdadas de seu passado colonial e imperial. de s~a inserçao, . 's nternaClo-

secundária nos sistemas pohtlcos e economlCO I '1 . .nais bem como nas estratégias a que rnuitos brasi erro l l-

nharn se acostumado para enfrentar os agudos regimes deexclusão social, econômica e política. .

Ainda que a Revolta da Vacina tenha SIdo totalment~debelada os projetos de exclusão social e espaCIal empreen~1dos na c~pital da jovem República foram, com certeza, abada-dos pelo grito de alerta das populaç~es que eram .~ a_Ivo a~eformas da Belle Époque carioca. As co-depenoenLla~ 50

~iais que já forçavam vizinhanças heterogêneas n~ proP:laZon~ Sul somava-se a força do pânico gerado pela ll1Sur?ell-cia que tinha devastado a área central e os bairr~s portuanosvizinhos ao morro da Providência - berço da Favela, que se

\I__..l-

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 159

I. Barra da Tijuca2. Floresta da Tijuea3. Pico da Tijuca4. Pedra do Andaraí5. Favela do Borel6. Favela da Mangueira7. Maracanã8. São Cristóvão9. T únel Rebouças

10. Tunel Santa Bárbara11. Av. Preso vargas12. Central do Brasil13. Morro da Providência14. Saúde e Gamboa15. Cabeça de Porco (demolido)16. Cais do Porto17. Av. Rio Branco

18. Aeroporto SantosDurnont

14 Flarnengo20. Botafogo21. Pão de Açucar22. Leme

23. Favela Chapéu Mangueira!Morro da Babilônia

24. Copacabana25. Favela Santa Iarta26. Corcovado27. Favela; do Cantagalo,

Pavao/Pavãozinho28. Favela da Catacumba (demolida)29. Ipanema30. Favela da Praia do Pinto (demolida)31. Leblon3:'. Favela do Vtdigal33. Favela da Rocinha34. São Conrado35. Pedra da Gávea

36. Morro Dois lnnãos37 Favela do Pasmado (demolida)38. Laranjeiras3q. Favela do Catumbi40. Tliuca4 í • Favela do Satgucirc4l Qumta da Boa Vista

4J. Meier

14. Primeira capital da /{epúblic"e cidade-estadu, o RIO de Janeiro [Dialvo, durante grandr parte do secul,lXX, de numerosas reform,,-, c plLlTlosurbanísticos, que ""a "um estabelecerlima geografia urbana e socialexcludente, alicerçada na dls!ribuiçliudos espaços e propriedades privada.,de srus diversos segmenws SOCIUI;em bairros diferences e disia-ues.As favelas, surgidas jána primeira década da Repúbuca,multiplicaram-se no Centro e r1~SZOllLlSNorte e Sul da cidade -- umavi:!.~hança forçadu que dnblouas autoridades e reproduzIu em cadaum do; bairros cariocas ummicrcco-mo da SOCIedade brasileira.(Vista em vôo de pássaro -Rio de Janeiro, 1997)

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162 . HISTÓRIA DA ViDA PRIVADA NO BRASil 3

15, 16. As primeiras propostas cprojetos de cortStruçao nW5sijicadade moradias populares alcançavae regulava os moradores no interiorde seus lares, mediante a definiçaode cada um dos cômodosresidenciais. (15. Sr. Schroeder, Casadas Operárias, Rio de Janeiro,s. d.; 16. J. C. S. Barcelos, Plantade habitação popular, s. d.)

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f!.IO~JANEIRO.,ACOSTO tgo.~.

_,,>Asdificuldades geradas pela experiência fragmentária eirresoluta das reformas urbanas do Rio de Janeiro repercuti-riam nas maiores cidades da República, que tentavam repro-duzir nos estados os modelos europeus ou cariocas de reade-quação espacial. E se já havia sido trabalhosa a obtenção dosimensos financiamentos que pagariam as reformas cariocas,no Recife, em Salvador e Porto Alegre as dificuldades foramainda maiores - tanto para implementar intervenções quelivrassem as cidades das epidemias e da "promiscuidade" en-tre espaços públicos e privados, quanto para homogeneizarvizinhanças ou assegurar a exclusão das moradias popularesdo centro.

Os jornais da capital gaúcha deixam, por exemplo, entre-ver uma cidade tomada pelas sobreposições de convívios so-ciais semelhantes àqueles que estavam sendo combatidos noRio de Janeiro. Uma notícia de 1898 é clara no ataque àantiga justaposição social, a qual permitia que habitaçõescompletamente díspares se alinhassem em ruas ou quartei-

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 163

HABITAÇÕES POPULARES SALUBRES, ECONOMICASSfRIES EM 'PERFIS DE IIITfADOS

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-•.._._ .............•....•.. __ ._------- .•._-rões próximos, arranjo que era o mesmo em todas as cidadesbrasileiras de então: .

A moradia em porões é de necessidade urgente proibir,mas de modo terminante, sem transigências. Os pseudo-filantropos, proprietários de porões e cortiços, pergunta-riam logo: mas onde irá morar essa gente pobre?

É fácil a resposta. Há 4 anos dificilmente encontrar-se-ia casa grande ou pequena mesmo em arrabalde; ago-ra não existem menos de 400 em disponibilidade. Osarrabaldes estão aí, e devem ser habitados pelos proletá-rios. Na cidade propriamente dita, só devem residir 05 quepodem sujeitar-se às regras e preceitos da higiene.

Ora, num porão ou cortiço, não pode haver asseio e,conseqüentemente, a higiene desaparece.

O que resulta desta aglomeração de indivíduos sujos,sem escrúpulos de ordem alguma, é a infecção atingir os

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164 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA Nú BRASil 3

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asseados, porque de nada servirá que o morador do pavi-mento superior pratique tudo a bem da saúde, se ele tiverno inferior ou mesmo do lado um vizinho imundo.

Condenar os porões in totum, proibindo a moradianos piores, e elevando a décima nos melhores, será umpasso enorme no sentido do saneamento da cidade."

A voz do jornal podia ser o libelo de qualquer um dosprogramas de reformas urbanas do início da República. Odiscurso sanitário, higiênico, endossa a intenção de livrar acidade dos seus convívios "patológicos", numa medicina ur-bana que expulsasse aqueles que não podiam se enquadrarnos preceitos apropriados dos modelos burgueses da Europae dos Estados Unidos. Repetiam-se no Rio Grande do Sul asmesmas intenções praticadas no Rio de Janeiro, visando en-quadrar a capital gaúcha no padrão de controle necessário àscidades portuárias integradas nas redes capitalistas, aptaspara receber os fluxos internacionais, tornando-a digna daprojeção econômica de celeiro e centro do charqueado brasi-leiros.

Grandes edifícios públicos passaram a pontuar a paisa-gem de Porto Alegre nos primeiros vinte anos do século, semque houvesse fôlego para uma intervenção drástica no tecidourbano e na geografia das habitações e setores sociais. Edifí-cios administrativos acabaram sendo, durante a Belle Épo-que, os grandes marcos da intervenção oficial na cidade, queviu a maior parte de seu Plano Geral de Melhoramentos,criado em J914 pelo engenheiro João Moreira Maciel, ficarapenas na planta."

O vasto plano de ajardinamento, reti6J;açãO de ruas eabertura de..avenidas"citação evidente das reformas de.Paris.ed.Q..Rio de Janeiro, seria implem~~tado apenas aQ_lO..Qgº-~década de 20, e ainda assim parcialmente. A abertura da ave-nida Júlio de Castilhos foi a maior obra realizada, correndoparalela à linha central de retificação do cais do Guaíba. Asse-gurou-se a ligação do centro com os bairros ribeirinhos asudeste do núcleo da capital, os quais concentrariam mais emais a população operária que começava a se avolumar nacidade. As parcelas privilegiadas da população local se estabe-leceriam ao longo do espigão da cidade, nos novos lotearnen-tos que tinham a avenida da Independência como eixo de

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA 165

expansão e circulação. Propiciava-se, assim, a diferenciaçãode vizinhanças necessárias às idéias do habitar civilizado, oque as habitações e confrontações heterogêneas da área cen-tral não permitiriam concretizar."

Nas grandes capitais nordestinas, Salvador e Recife - ter-ceira e quarta cidades mais populosas do país em J 900 _,44

as pressões demográficas ocasionadas pelas migrações doAgreste e do sertão, assolados pelas secas, tendiam a multipli-car as vizinhanças heterogêneas, comuns nas habitações justa-postas de suas áreas centraisl As elites dirigentes que se alteQ2..a-vam no poder proÇ!!faram, ao longo das primeiras décad~do.séG@, aparelhar as cidades segundo os ms>d®llUIOpeus ecariocas, lutillao Ilara..evitar_a_p_érdada pmje_çã..Q.na_ciollal_queatingia havia décadas a Bahia e Pernarnbuco. Era irnnrescindi-vel q uÚell vrassern.as.cap itai.s._çl~s"precá ri~~ cO!ldi0~i""higiêni-cas ~g!l_e_estavarn..submetidas,-pois estas e~pantavam as possi-bilid9-des de.incrementcnas ativic!aç!~$jnd-~tri~~,~-ªTeJandotambém o Qa~l desem~nh~ldº-p_or..saly-ªd.uu_B.~ctf~de inter-m~iadores..2ortuários~uas respectiv~_~reas de abra~gêl!-cia.no.Nordeste.

Com bairros extensos e populosos construidos desde osséculos xvru e XIX, as capitais acabavam apresentando a~ mes-mas precariedades sanitárias do Rio de Ianeiro, As condições

17. Leões de chácara vizmhos à Vila

Doia. em Porto Alegre, lembrama necessidade de serem be!1z ..vindos05 visitantes. (c. 19()f,')

166 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

18. Do Campo Grande à Vitória,o renque de palacetes da avenidaSete de Setembro garantiaa homogeneidade de vizinhanças,impossível nos distritos centraisda capital baiana. (Avenida Setede Setembro (Salvador), Bahia,c. 190Ó)

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de habitação eram especialmente indesejáveis, pois os altossobrados das ruas mais centrais tinham elevado índice deocupantes e domicílios, versões locais das casas de cômodosdo Rio de Janeiro. Alvo privilegiado das reformas urbanasefetuadas na República Velha, os bairros centrais de Salvadore Recife sofriam as costumeiras acusações de concentrar po-pulações contagiosas, que seriam capazes de ameaçar a pros-peridade das capitais em razão das rníseras e promíscuascondições habitacionais em que viviam, de onde espalhariamsuas mazelas pelo restante das cidades. As demolições foramnovamente a solu ão fT!.aisado!.~d--ª-.2e!.9_apareihõestatal p;rraÚvrar .as capitais dQHO.llvívjosg~e_m~~lavaJ~ !.~a~~9sas-e setores sociais - e que faziam das cidades, ainda no séculoxx, o aspecto vívido do passado urbano colonial e imperialque os dirigentes republicanos queriam a todo custo abolir."

As primeiras reformas em Salvador acumularam-se emJ 906 e 1910, priorizando a Cidade Baixa. A intervençõesconcentraram-se sobretudo na ampliação do cais e na aber-tura da avenida [equitaia, para facilitar o acesso a Penha eMares. Houve também várias demolições de casaria nos dis-tritos do Pilar e Conceição da Praia, visando ao combate dasepidemias que se dispersavam pela cidade a partir da áreaportuária, pontuada de habitações populares."

Áreas tradicionalmente habitadas pelas elites durante operíodo colonial, os distritos centrais da Cidade Alta vinhamjá fazia algumas décadas perdendo os moradores de maior

poder aquisinvo, migrados para os bairros em direção daventilada barra da baía de Todos os Santos, ocupados pelaschácaras de ingleses desde os princípios do século XIX: Seme-lhante aos arrabaldes cariocas de Laranjeiras, Cosme Velho eBotafogo, a área compreendida pelo Campo Grande, Vitóriae Graça, e ainda Garcia, Canela e Barra, acabou por atrairprogressivamente os moradores abastados de Salvador, quepassaram a se instalar em casas e palacetes cercados por jar-dins, recuos e gradis que os afastavam do convívio diretocom o movimento das ruas. Abandonavam as casas da Sé edo Passo, cada vez mais assoladas pelas vizinhanças incômo-das. atraídas pela transformação das antigas residências se-nhoriais em casas de cômodos. Como nos porões de PortoAlegre, os subterrâneos e as "lojas" dos sobrados abrigavampopulações que se comprimiam em espaços sem ventilaçãoou insolação, O que se repetia nos cômodos dos compridosandares superiores, fundos e mal iluminados - condiçõessemelhantes àquelas dos altos sobrados dos distritos centraisda capital pernambucana, sobretudo em Santo Antônio e nobairro do Recife."

Entre J 912 e 1916 a migração das elites para os bairrosdo distrito da Vitória foi consagrada por um amplo progra-ma de alargamentos viários comandados por J. J. Seabra, mi-nistro do Interior e justiça lia gestão Rodrigues Alves - omesmo que convocara a comissão secretariada por EverardoBackheuser em J 905. As obras de Seabra culminavam com a

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 167

19. Urna pequena Europa instaladalIa perieita distinção dos jardmse palacetes do largo da Graça -o chalé dos Carvalho finge aguardaras nevascas, sob o sol escaldantede Salvador. (Jardim da Graça,Bahia, c. 190Ó)

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168 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

abertura da avenida Sete de Setembro, novo bulevar que asse-gurava o rápido deslocamento dos bairros residenciais daselites para o centro.t'tl'oi também o momento de moderniza-ção arquitetônica das novas vias públicas de Salvador, pro-movendo-se a demolição total ou parcial de igrejas coloniaiscomo a Ajuda, São Pedro, Rosário e Mercês, reconstruídastodas na linguagem dos movimentos historicistas europeus.O mesmo ocorria na restauração do palácio do governo esta-dual, bombardeado durante a intervenção de 1912, na refor-ma da Câmara e nos novos edifícios da rua Chile, sede docomércio refinado da cidade e via de recepção do tráfego daavenida Sete. Os novos palacetes da Vitória, também histori-cistas, encontravam sua identidade comum às obras que re-definiam os espaços públicos da velha capital baiana."

Para as largas faixas de soteropolitanos que estavam pri-vados dos requintes das moradias da Vitória, aqueles quenem mesmo suportavam pagar os aluguéis dos sobrados cen-trais insalubres - mas caros e disputados em virtude daproximidade dos locais em que conseguiam ou agenciavamtrabalho - acabavam por demandar os arrabaldes, fomen-tando o crescimento periférico atabalhoado. Santo AntônioAlém do Carmo e Brotas, distritos urbanos de Salvador comabundantes terrenos baldios, passaram a acolher novos mo-radores e suas habitações precárias, ampliando as primeirasaglomerações suburbanas que formariam grandes bairrospopulares e negros - como aquele sugestivamente denomi-nado Liberdade.

Alguns vales próximos ao distrito da Vitória passariamtambém a abrigar aqueles que não podiam construir suas mo-radias nos caros terrenos dos cumes dos bairros litorâneos,reservados às residências dos setores mais abastados. Inverter-se-ia em Salvador a geografia do habitar carioca: os ricos emédios nos morros, e a pobreza no fundo dos vales - reela-botando-se as vizinhanças que tinham motivado as elites adebandar dos distritos centrais de Salvador."

A mesma dificuldade em assegurar vizinhanças homogê-neas ocorria no Recife, que crescia tentacularmente ao longoda malha aquática em que se assentava. Nos alagados e nasplanícies extensas, a capital pernambucana se expandia pormeio de uma multidão de casebres, construidos inicialmenteem taipa de mão, palmáceas e capim - os notórios mocarn-

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HABITAÇÃO E V:ZINHANÇA • 169

20. Relevos irregulares e terrenosbaldios asseguraram a Brotas umperfil social heterogêneo. (A!meida& Irmão, Estrada de Brotas, Bani •.•,c. 1906)

bos. O setor de chácaras abastadas que se desenvolvera nodecorrer do século XIX nas cercanias do Capibaribe, na Mada-lena, em Apipucos e Torre, seria aos poucos circundado pelosaglomerados de mocarnbos, que se estenderiam ainda porAfogados, nas vizinhanças da praia da Boa Viagem. Envolve-riam as áreas centrais num cinturão de moradias que seriama máxima contradição ao padrão de adequação habitacionalpara uma cidade cujas elites queriam êrnula ele Paris ou doRio ele Janeiro.

6.J2recariedade sanitária que grassava na cidade levaria asautoridades ª-Jie.sill.ç;uul..e~el..(Q S'ãtUrrfiDQ_de J?rifo para ac~.p~.fHam-bllGa~!h_4.fR.oiLdcseu sucesso~as(~sãO- e--higienização_efetua.~!:Isep1_~a.-!.1ios,portopaulista do café. O plano de saneamento de 1909-10 associou-se ao programa de demolições do bairro do Recife.o mais anti-go da capital, já em andamento desde as desapropriações inicia-das em 1909. Avenidas foram surgindo à custa das costumeirascondenações e demolições de estabelecimentos comerciais e ha-bitações enquadrados nos conceitos de insalubridade."

A demolição de moradias reduziu em cerca de 50% onúmero de habitantes do bairro entre 1910 e 1913, gerandouma carestia habitacional que só viria a agravar as condiçõesatropeladas em que se constituíam as cada vez mais numero-sas periferias da cidade. No mesmo ano de 1913 os arrabaldesjá abrigavam cerca de 37735 mocambos - 43,3% do total dehabitações do Recife."

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170 . HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

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21. No rígido alinhamento de ruase lotes retiiineos de Belo iiorizonte,a primeira das nova; capitaisrepuhucanas, residia a intençãode diferenciar os espaços públicuse privados. (j. Monteiro, Vistaparcial da rua Scrgipe entreAimorés e Gonçalves Dias, 1930)

As intervenções havidas no Recife entre 1910 e 1913, ex-cessivamente fragmentadas e concentradas nas áreas centrais,acabaram alimentando a expansão desenfreada dos arrabaldesperiféricos, assim como ocorria em Salvador, no Rio de Janeiroe mesmo na nova capital mineira. Em Belo Horizonte, inaugu-rada em 1897 sob forte referenciamento das idéias zoneadorasfrancesas, o rígido controle: proposto para a área central, fixadonum sistema de lotes, avenidas e ruas dispostos numa malhaquadrangular circundada por uma avenida de mediação peri-férica, mostrar-se-ia igualmente incapaz de regrar a rápida ex-pansão das habitações nos arrabaldes."

BAIRROS COMO ESPAÇOS PfnVADOS:SINGULARIDADES DA lJRBANIZAÇAO PAlJUSTANA

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Pode-se dizer que, coincidindo com o nascimento deBelo Horizonte, a capital paulista também ressurgia. A cidade

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 171

de São Paulo chegava à República recuperando-se do maras-mo que estendera o aspecto setecentista até meados da déca-da de 1870. Sofreria experiências de segregação social, pro-movidas ou protegidas pelo aparelho estatal, bem maisconsistentes e eficientes do que as ocorridas nas outras gran-des capitais brasileiras republicanas."_ Anteriores às intervenções nordestinas e gaúchas, e con-

temporâneas àquelas realizadas na cidade do Rio de Janeirodurante a presidência de Rodrigues Alves, as primeiras atitu-des governamentais para a redefinição dos espaços públicos eprivados de São Paulo afinavam-se com os mesmos princí-pios que norteariam as reformas e os processos de exclusãohabitacional das grandes cidades brasileiras já mencionadas.A pequena área urbanizada e a própria escala populacionalda capital paulista, de porte bastante reduzido até 1890, anoem que tinha cerca da metade da população do Recife, foramfatores muito favoráveis às intervenções e à abertura de novasáreas urbanizadas afeitas a princípios de zoneamento social edisciplinamento do construir e do habitar, Permitiu-se, as-sim, o surgimento de uma fisionomia e uma fisiologia aogosto do excludente sanitarismo social em voga nas mentesdas elites republicanas, que buscava livrar as cidades de suas"patologias" coloniais e imperiais.

As primeiras intervenções de aformoseamento de espa-ços públicos já vinham acontecendo desde a década de 1870,quando a capital paulista passou a centralizar definitivamen-te a economia da província. Entroncando as linhas férreas quelevavam à corte e ao Vale do Paraíba, ao próspero Oeste e aSantos, porto escoador da produção cafeeira, São Paulo conso-lidou-se como centro político e financeiro paulista. Passou aatrair levas cumulativas de fazendeiros que migravam sobretu-do das fazendas e cidades do Oeste, e que se fixavam na capitalbuscando ascensão definitiva aos negócios da província, mar-cada pelo movimento republicano que representava os interes-ses da nova área cafeeira.

A região da Luz, ao norte da cidade, abrigou ainda noImpério os primeiros fazendeiros instalados em palacetes, se-melhantes àqueles neoclássicos que povoavam as estradas doBotafogo e Flamengo, Vitória ou a várzea do Capibaribe. Afas-tados do alinhamento das ruas, e mobiliados e decorados deacordo com o gosto suntuoso do Segundo Império francês,

172 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

diferiam já radicalmente da austeridade dos sobrados de taipaapiloada, cheios de escravos a servir, que pontuavam as ruasmais nobres do núcleo da cidade, como a Direita e São Bento."

Os integrantes antigos das elites locais, ou migradas, queainda residiam nas ruas centrais foram progressivamenteabandonando os sobradões e a vizinhança social heterogêneade ruas quase todas povoadas de casas térreas, intimamenteassociadas à população negra da cidade, que sobrevivia de'agências improvisadas, num cotidiano urbano alheio aosproventos do café, cultivado em distantes áreas do interior daprovíncia= Uma cidade cujas taipas dissolviam-se por causadas chuvas, em que a dificuldade de acompanhar a irnponên-cia das cidades imperiais do litoral pode ser sentida na singu-lar coleção de fotografias realizadas por Militão Augusto deAzevedo ao longo das três últimas décadas do Império, cheiasde casas sem i-arruinadas em todas as ruas centrais.

•.• Todo esse aspecto, em que se entreviam os tempos rudesda antiga capitania de sertanistas e tropeiros, era o horror dostriunfantes cafeicultores e empresários paulistas republicanos.Após a morte de Floriano Peixoto, a proeminência econômicadas elites pau listas as levaria a ascender incontestavelmentecomo grupo político dominante na República, fazendo trêspresidentes consecutivos e regendo com os mineiros o con-certo dos partidos republicanos da República Velha. Eraminadmissíveis aos interesses dos cafeicultores, e do florescenteparque industrial, as condições de insalubridade das habita-ções paulistanas, que não diferiam muito das que havia nasdemais capitais brasileiras - por pouco a febre amarela nãoproduzia na cidade de São Paulo os mesmos estragos quefazia nos demais estados da República, e no próprio litoral einterior paulistas.

A profunda alteração da demografia paulistana, ocorridana década de 1890, sincronizou-se e se ampliou em relação àsmudanças drásticas ocorridas na sociedade do país entre1888-9 e 1900. A imigração estrangeira demandada pela ca-feicultura, sobretudo de italianos, sofreu alterações de gestãoque permitiram uma migração gigantesca de populaçõespara a antiga capital, a qual quadruplicou sua população du-rante a década de 1890.57

As condições precárias das habitações populares genera-lizavam-se tanto nas antigas construções de taipa c tijolos da

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HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 173

,área central, quanto nas casinhas que pipocavam nos bairrose arrabaldes localizados ao longo das linhas férreas da Cen-tral do Brasil, Sorocabana e São Paulo Railway (Santos=-Iun-diaí), e também das terras alagadiças que cercavam a áreaurbanizada da cidade a leste, ao norte e a sudeste. O abruptoinchaço habitacional agudizava o perigo das epidemias, quejá assolavam o Rio de Janeiro, as capitais nordestinas e ti-nham sido com muito custo combatidas em Santos.

A instabilidade dos empregos nas manufaturas ou asagências improvisadas acaba sendo o destino amplo das espe-ranças dos estrangeiros que, como os ex-escravos e seus des-cendentes, passaram todos a. inchar as ruas, casas e cômodosdo Brás, Mooca, Cambuci, Bom Retiro, Barra Funda, Pari eBexiga, ou ainda das áreas ao longo das estações férreas dofuturo Alie - Santo André, São Bernardo e São Caetano - jáintegradas no' processo de industrialização e urbanização dacidade desde fins do Oitocentos."

Alinhadas diretamente com as calçadas, as habitações po-pulares formaram a paisagem marcante dos bairros de imi-grantes, em cujas janelas debruçadas sobre as ruas rompia-se adesejada diferenciação espacial das elites empenhadas em dis-cernir fronteiras entre espaços públicos e privados. De espaçoprevisto para a circulação viária, os logradouros, com escassomovimento automotivo, transformavam-se em extensão daspequenas salas de estar, e rodas de cadeiras espalhavam-se pe-las calçadas, metarnorfoseando a sociabilidade dos vilarejosrurais europeus. As músicas, o vozerio alto e acalorado rom-piam os tênues limites de paredes e vidraças, fundindo expe-riências - e fomentando solidariedades."

As precárias condições sanitárias presentes nas casas dosbairros de imigrantes, juntamente com as encontradas noscortiços espalhados por quase toda a cidade, justificaram aexpansão do aparelho oficial de fiscalização higiênica, cujosresultados antecederam os que seriam alcançados no Rio deJaneiro na primeira década do século xx - não por acasopelas mesmas elites paulistas. A remodelação do Serviço Sa-nitário deu-se ainda em 1892, seguida pela edição do CódigoSanitário de 1894 - que proibiu novos cortiços - e as nor-mas de 1896 e 1906, culminando o reaparelhamento dos dis-positivos de fiscalização com a reforma do próprio Códigoem 1911, que definiu como sendo dos municípios a compe-

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I174 • hiSTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

22. "Cada porta 30$" - no preçobaixo a certeza de comparrilhara infra-estrutura doméstica pormeio de espaços comu"s a todos05 moradores. (Cortiço dosr. Joaquim Antunes, Mooca,São Paulo, 5. d.)

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tência de adequação sanitária das habitações, As intençõesnormativas do poder público surpreenderam a cidade de SãoPaulo no início de sua expansão geográfica, o que possibili-tou uma paulatina padronização dos espaços domésticos,disciplinando-os mediante o apanágio da "saúde pública":

Quer no ponto de vista social, quer sanitário, a higienedomiciliar merece detido exame dos poderes públicos [",]

São as casas imundas o berço do vício e do crime,Os indivíduos que vivem na miséria e abrigados aos

pares, em cubículos escuros e respirando gases mefíticos,que exalam de seus próprios corpos não asseados, perdemde uma vez os princípios da moral e atiram-se cegos aocrime e ao roubo de forma a perderem sua liberdade ou aganharem por essa forma meios de se alimentarem oudormirem melhor."

--.; Uma solução para as coabitações e indefinições de espa-ços domésticos familiares das moradias coletivas tradicionaisfoi a das vilas operárias ou de casas populares, já presentes noRiu de Janeiro desde os fins do Império, Ambas se expandi-ram em São Paulo mediante o cumprimento das normasmínimas exigidas legalmente, espalhando-se pelos bairrosdas zonas leste e oeste da cidade, servidos pelos trens e bon-des." Otimizando o controle sanitário sobre as casas cons-truídas individualmente, as vilas ainda submeteram seusocupantes às primeiras experiências de massificação da mo-radia, seja pela disposição rígida das plantas arquitetônicas

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em cada unidade privada seja pela própria uniformidade ex-terna dos blocos de habitações.

A incipiência da urbanização paulistana por ocasião daRepública acabou por viabilizar não só um controle maiseficiente dos bairros e habitações populares, mas o própriozoneamento dessas áreas, em locais efetivamente distintosdaqueles em que depressa se concentraram as moradias obe-dientes à clivagem entre espaços privados e públicos almeja-da pelas elites republicanas. O inchaço abrupto e insalubresofrido por São Paulo não obstou que os setores sociais maisabastados e médios fossem agregando-se, já a partir da déca-da de 1880, em novos e amplos bairros, próximos entre si,que acabaram por garantir as vizinhanças homogêneas quese desmanchavam no Rio de Janeiro e nas outras grandescapitais estaduais." A ausência de morros ou vales nas proxi-midades dos bairros planificados e providos de rnelhoriaseximiu os palacetes e casas médias de vizinhos destoantes,como favelas ou mocambos.

Campos Elísios, porções de Santa Ifigênia e da Liberda-de, e sobretudo o emblemático bairro arruado em [893, Hi-gienópolis, passaram a abrigar as famílias abastadas ligadasaos negócios da cafeicultura. Em 1891 foi inaugurada a ave-nida Paulista, a qual, a partir da década seguinte, tambémpassaria a acolher imigrantes enriquecidos ou famílias liga-das a atividades financeiras e imobiliárias que construiriamamplas residências para rivalizar com os suntuosos palacetesdas famílias dos "barões do café" - ou de suas poderosas

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HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 175

23. A poucos metros da avenidaPaulista, a permanência dasmoradias populares na Bela Vista.As águas usadas por lavadeirase as águas servidas de latrinasescorriam para o centro europeizadode São Paulo. (Latrina abrindo-sesobre um rego-d'água - SaracuraGrande, São Paulo, s. d.)

176 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

24. Na imponênaa do portão,o evidente e solene limite entreo palacete e a avenida, entre casae rua. (Portão principalda residência de LupércioCamargo, situada na avo Angélica,São Paulo, s. d.)

25. Na diversidade de andares~ mirantes, extemav,j-se o luxoL: privacidade gozada pelosimigrantes Qscellde1ltes, instaladoslU; aI'enida Paulista. (Fachada daVila Fortunata. São Paulo, 1970)

viúvas ou filhas - instalados solidamente em Higienópolis enos bairros mais centrais."

Se os porões altos encarregavam-se de distanciar os cô-modos das casas médias da circulação das ruas, jardins fron-tais e laterais asseguravam a intimidade dos palacetes. Gradisde ferro completavam a separação entre o espaço da privaci-dade e o domínio público, assegurada pelos portões ostensi-vos, de grandes dimensões e lavar carregado. Os palacetes

H~BITAÇÃO E VIZINHANÇA • 177

filiados aos padrões franceses - c1assicistas ou art nouveau- fixaram-se como paradigma nos projetos dos engenhei-ros-arquitetos, disputando as preferências das elites com asresidências impregnadas das formas do neornaneirismo, dis-ponívei desde o último quartel do século XiX em razão dapresença dos mestres-de-obras e artesãos italianos."

.• A diferenciação espacial entre as ruas e os lutes das resi-dências abastadas prosseguia nos ambientes internos. Asplantas arquitetõnicas e as residências que restaram do perío-do evidenciam uma intensa especialização dos cômodos, es-tabelecendo uma gramática rígida para as atitudes privadasdas famílias - o que dificilmente ocorria nos cômodos su-perlotados das habitações populares. As áreas sociais são re-partidas em salões numerosos, com funções específicas: hall,recepção formal, estar (living), jogos, [umoir, música, escritó-rio, gabinete ele. Cada aspecto da vida privada das famíliasdevia se processar em seu espaço correto, característica quedistinguia também os cômodos para homens, mulheres e

26. Bulcvar de l'aluCCICSe chácaras traçado em m~'J ao muto,a avenida Paulista tornou-se UII!

do, primeiros refugIo; p~r" aque/,'sque queriam escaparà promiscuidade soaal e espaci,ddas ruas central; de São Paulo.(Guilherme Caem!)'. São Paul»,c. 19(0)

178 • HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASil 3

27. Cada cômodo com sua função.Na "sala dourada" da residênciade d. OUvia Guedes Penteado,promotora dos modernistaspaulistanos, música e cerimôniase submetiam à etiqueta prevista.(Salão Dourado, São Palllo, 5. d.)

II

I

I1.:,

crianças: Nos cômodos Íntimos as separações prosseguiammediante saletas Íntimas (boudoirs), quartos para vestir e ouso do maior número possível de dormitórios, assegurando aintimidade dos membros da família. Os cômodos de serviçopermaneciam segregados na parte posterior das construções,assim como as acomodações de empregados domésticos."

A marcante diferenciação dos espaços privados praticadapelas elites em suas próprias residências pode representar umprotótipo das distinções espaciais, da "ordem" que desejavamdisseminar por toda a cidade. Sua escala progressiva pode sertraçada dos diferentes cômodos entre si ao contraste da habi-tacão com o terreno ajardinado, passando pelos recuos comos' vizinhos do bairro, chegando até o zoneamento social dospróprios bairros da capital. A normatização do privado aca-bava, pois, entrelaçando-se com a própria configuração dosespaços "públicos".

A construção dos novos bairros residenciais elegantes,adequados aos preceitos sanitários, plásticos e comporta-mentais gerados no cotidiano burguês das cidades européias,conseguiu forjar em São Paulo uma mancha contínua de vi-zinhanças homogênas. Excluiu-se a proximidade dos menosfavorecidos, desestimulando-se seu trânsito público nas ruasdos bairros de elite. Uma ampla faixa que cercou o centropaulistano de oeste a sudoeste livrou-se da interseção de bair-ros ou habitações populares.

- A área central, considerada não "civilizada': também foiatingida pelas demolições excludentes, da mesma forma queno Rio de Janeiro. As reformas implcmentadas ao longo daprimeira década do século xx nas gestões consecutivas do con-selheiro Antônio da Silva Prado, integrante da mais influentefamília paulistana de então, promoveram a construcão degrandes edifícios oficiais, consolidando-se a pontuação dosespaços públicos por edifícios monumentais iniciada já naprimeira década republicana."

Um extenso programa de retificações e alargamento dasruas centrais permitiu melhor definição dos espaços de circu-lação pública, garantindo fluidez viária e angulação aos novosedifícios erguidos. Logrou-se também a expulsão de muitasresidências populares que se mantinham no centro, alheias ànecessidade de instituir uma área de negócios livre de habita-ções ou, pior, de atividades obscuras como a prostituição."Visavam-se sobretudo as construções que desafiavam os sécu-los com seus beirais de telhas coloniais e fachadas "caiadas" debarro esbranquiçado - a tabatinga -, que eram numerosasainda na década de 10 em toda a área central.

Os resultados das reformas de Antônio Prado acabaramassemelhando-se aos obtidos na mesma década no Rio deJaneiro. Os moradores expulsos pelas obras migraram para asconstruções que ainda restavam nas proximidades, acentuan-d0 o contraste entre os quarteirões novos e aqueles antigos

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 179

28. As reformas de Antônio Pradoe Duprat garantiram um processode valorização das áreas centraisde São Paulo, viabilizandoa expulsão das nluitas moradiaspopulares que restavam 1I0S casarõesde taipa da outrora cidade coloniale imperial. (Travessa Santo Amam,atual rua do Ouvidor, c. 1910)

180 • HISTÓRIA DA 'IDA PRIVADA NO BRASil 3

29. Algo francesa, algo italiana,a elegante privacidade das elitesdo café resguardavam-se atrásde gradis - que exibiama pujallça de seus proprietáriosaos transeuntes da avenidaHigietzól'olis. (Residência do casalMartinho da Silva Prado c StelaPenteado, São Paulo, s. d.)

que escaparam às demolições, também povoados de casastérreas e sobrados envelhecidos. A gestão do prefeito segum-te, o barão de Duprat, prosseguiu no intuito de prover acidade de espaços públicos bem definidos, que correspondes-sem ao que se conseguia nos bairros residenciais. As novasáreas de lazer da região central- o Parque do Anhangabaú eo D. Pedro 11 - contaram com o saneamento das várzeas quea cercavam e com a valorização dos terrenos imediatos, ar- •rasando-se novamente muitos casebres e casinhas que per-maneciam nas bordas das ruas europeizadas."

Ao mesmo tempo que as autoridades públicas lutavampara discernir os espaços e as funções da área centra.l, .surgiaum impulso definitivo para a homogeneização de vizinhan-ças habitacionais. A separação social processada mediante adistinção das áreas habitacionais, já parcialmente e~pertmen-tadas nos bairros abertos nos fins do século XJX, fOI radicali-zada pela experiência dos bairros-jardins. O novo tipo deloteamento para moradias acentuou a exclusão SOCialno queconcerne aos espaços domésticos e à homogeneização de vi-zinhanças, gerando uma paisagem que caracteriza São Paulo,diferenciando-a das demais capitais brasileiras.

Por sugestão de Bouvard, o eminente arquitet~ francêscontratado para grandes remodelações em Buenos Aires - eque prestava assessoria a Duprat nas reformas de São Paulo -,principiou-se a formação de uma empresa imobiliária querelacionou capitais franceses e ingleses a interesses de empre-

sários paulistasj A partir de 1911, a City of São Paulo Impro-vements and Freehold Co. - a Companhia City - iniciou acompra de enormes extensões de terras na cidade, visandoexecutar loteamentos. Já em 1913 começava a surgir o Jar-dim América, primeiro bairro da Companhia, localizadona área suburbana a sudoeste da cidade, no início da pla-nície situada abaixo do espigão da avenida Paulista. O bair-ro foi projetado pelos consagrados arquitetos ingleses BarryParker e Raymond Unwin, responsáveis pejo projeto deHampstead, nos arredores de Londres. Os arquitetos eramos sucessores de Ebenezer Howard, o criador das gardenscity, as "cidades-jardins", uma proposta de habitação subur-bana para classes médias e pobres, idealizada para atenuaras precárias condições de moradia das grandes metrópolesindustriais inglesas.'

Com as mesmas soluções de ruas sinuosas, muitas áreasverdes, arborização e casas situadas em meio a jardins, preco-nizadas por Howard e presentes nas gardens city inglesas, fo-ram postos à venda os lotes do Jardim América, cujo projetoinicial seria alterado numa visita do próprio Parker a SãoPaulo entre 1917 e 1919. Mas, ao contrário do que ocorriacom as cidades-jardins britânicas, o primeiro bairro da Citynão foi destinado a segmentos menos favorecidos.70

A Companhia direcionou seu primeiro loteamento aossegmentos mais abastados, abandonando as idéias iniciais

HABITAÇÃO E VIZINHANÇA • 181

30. Jardins asseguravam ao ricopalacete afrancesado de Higienópolisuma distância convenientedo burburinho das ruas.(Residência do casal JoaquimMendonça Filho e Cor.na Prado,São Paulo, s. d.)

182 • H,STÓRIA DA VIDA PRIVADA r<ü BRAS'l 3

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V,dól de campo lfanqudla 8 I$<Idl. em ~.nil C"PlIAI ti com

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JARDIM AMERICA I- InCOnrl,;ndl~<1!1~INO mod~o, verdadeiro

ta~Cllm de ,eSldenCI,IS. Il~._-.....__..~..:...;~:~~:.c-_......-~~...._. ~.....

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3l. "Construções regI/lamentadas,1510é, garanrta de boa vónhal1ça':prometia o anlÍncio publicitáriodo [ardim América, primeirobairro-jardim de São Paulo<' do Brasil. () controle da cOlbtruçãodos espaços do-nésucos foi asseguradopela legislação pública, garantindo-seinlrtwcicJ/lalmente " perfil exclusivodo bairro paulutano. (Sem título,1929)

das gardens city, e em alguns anos o bairro se tornaria símbolodo viver distinto das elites paulistanas, Dispositivos propostospor Parker regularam minuciosamente a proporção e localiza-ção das construções dentro dos lotes - detalhavam-se inclusi-ve as cercas entre os terrenos particulares -, controlando-sede maneira indireta o perfil dos proprietários e costumes dese-jados pela Companhia. Além de assegurar vizinhanças homo-gêneas, Parker impôs ainda um outro dispositivo, incorporado •na legislação municipal anos depois: definiu o bairro para usoexclusivamente residencial, aspecto explorado com ênfase emanúncios da Companhia, em que se destacavam as dez razõesque distinguiam o bairro: "Por que se deve comprar e cons-truir neste bairro: [...] Porque jardim América é em São Pauloo único bairro reservado exclusivamente para residências. [...]Porque todo o proprietário tem a vizinhança garantida me-diante servidões mútuas"."

Garantiu-se, portanto, a manutenção dos proprietários ede seus espaços privados, erguidos sob fiscalização rigorosa,que era prevista nos contratos de servidão exigidos por oca-sião da venda de lotes, visando "construções regulamentadas,isto é, garantia de boa vizinhança"." As característica de pri-vacidade, impostas aos moradores, acabariam ainda por es-tender-se aos próprios espaços públicos do bairro, mediantea configuração das ruas ou do destino dado às áreas verdes deuso comum.

O arruamento do bairro foi realizado num esquema geo-métrico quase fechado. Sendo as ruas públicas, não se podiaimpedir o acesso de estranhos ao bairro, mas a privacidade doslares estava razoavelmente garantida pela sinuosidade viária,confusa para o transeunte ou para os que quisessem usar asruas como passagem de tráfego. Ainda assim, o fluxo de foras-teiros era raro, pois pouco se teria a fazer no bairro senãovisitas, já que comercio e serviços estavam proibidos de se ins-talar nos IOles.73

Os inusitados jardins projetados no interior das quadrasresidenciais, franqueados ao público nas alterações propostaspor Parker, foram gradualmente extintos mediante a incor-poração dos espaços pelos lotes lindeiros." O máximo deáreas públicas rnantida- ao longo da implantação do bairroforam prJças requena~, de escala pouco convidativa a foras-teiros.

HABITACÃO E ViZINHANÇA • 183

~ O padrão exclusivo do Jardim América foi expandido pelapropna Companhia City para muitas das gIebas que adquiriraa partir de J 91 J, surgindo nos anos e décadas seguintes, e como mesmo tratamento paisagístico do Jardim América, os bair-ros do Anhangabaú, City Butantã, Alto da Lapa, Bela Alianca,Pacaembu, Alto de Pinheiros, Jardim Guedala, Boaçava e Ca-xmgui. Muitos dos bairros foram destinados também aos seto-res médios da população, embora o comportamento excluden-te dos dispositivos de construção, a plasticidade e o acentuadoconforto ambienta! fossem e1itizando sua ocupação paulati-namente.. O modelo da Companhia City foi seguido por outrosincorporadores em São Paulo, e logo surgiram novos bairros-

32. Privacidade num bairro de viaspúblicas: nas ruas curvas ou semsaída do Jardim América,combinavam-se uma perspecuvafechada, mais íntima, e umacirculação emaranhada, quedificultava a passagem de estranhos.(Companhia City, 1946)

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I. Serra da Cantareira2. Parque Anhembi3. Vale do Anhangabaú4. Parque Dom PedroS. MASP6. Av. Paulista7. Av. do Estado8. Parque da Aclimação9. Parque da Independência

10. Av. Domingos de Moraes11. Jardim Lusitânia12. Parque lbirapueraIJ Jardim Paulista14. Iardirn América15. jardim Europa16. Jardim Paulistano17. jóquei18. Cidade jardim19. Rio Pinheiros20. Morumbi21. Estádio do Morumbi22. Vila América23. Jardim Guedala24 Butantâ25. Av. Francisco Morato20. Brás27. Cidade Universitária28. Moóca29. Bela Aliança30. Alto da Lapa31. Boaçava32. Alto de Pinheiros3}. Jardim das Bandeiras34. Surnaré35. Pacaembu36. Higienópolis37. Santa Cecilia38. Campos Elisios3Y. RlO Tieté40. PICO do Iaraguã

33. Na vizinhançade iguais, a busca do viver"civilizado": a manchade bairros-jardinsconcentrada a sudoesteda capital paulistapossibilitou a criaçãode um grande espaçohabitaaonal e socialhonwgéneo, em quea privacidade dilatava-separa as ruas e para osbairros freqüentados pormoradores semelhantes -um prenú"cio sutildos bairros e condomíniosfechados erguidos nasultimas décadas do séculoXX. (Vista em vôode pássaro - SãoPaulo, 1997)

186 . HISTÓRIA DA VIDA PRiVADA NO aRAS'l 3 .(,,'

(Jjardins, igualmente zoneados funcional e socialrnenteí lardimEuropa, Jardim Paulistano, a Cidade Jardim, Suma ré, Jar-dim das Bandeiras e, anos mais tarde, largas porções nos altosdo Morumbi, foram formando uma mancha mais ou menoscontínua de bairros semelhantes concentrados na região su-doeste da capital paulista, todos abertos já em meados doséculo xx, em franco contraste com aqueles de ruas retilíneasque se espalhavam velozmente por toda a periferia da cidade"

Nos vazios entre os bairros de ruas sinuosas, outros em-preendimentos de traçado quadrangular foram adotando al-gumas características habitacionais ou paisagísticas dos vizi-nhos que se consagravam. Jardim Paulista, Jardim Lusitânia,Vila Paulista, Vila Primavera ou, em menor escala, Perdizes,Água Branca, Paraíso, Vila América e partes da Consolaçãogarantiram a padronização visual e social das áreas entre osbairros-jardins stricto sensu, forjando uma experiência habi-tacional singular da capital paulista que seria referência paraincontáveis incorporadores em cidades por todo o Brasil."

Era possível, e ainda é, andar quilômetros dentro da ci-dade de São Paulo vendo-se pouquíssimas casas e ruas forado padrão que distinguia os bairros-jardins, o quais se tor-naram pouco a pouco o refúgio preferido dos paulistanosansiosos por privar-se da convivência íntima com as mazelase misérias que se avolurnavarn na cidade industrial, o princi-pal parque do país já a partir da década de 20,í6

A expansão formidável dos bairros-jardins era alimenta-da pela própria desestabilização dos bairros mais antigos, emque antes se concentravam as elites paulistas instaladas nacapital. A partilha de heranças, as flutuações financeiras e opaulatino abandono dos modelos de família extensa, de mui-tos filhos e amplas parentelas, [oram modificando as formasde sociabilidade que ergueram as residências elegantes daBelle Époque.

A manutenção de muitos dos grandes palacetes e sobra-dos, obsoletos, ou por demais custosos, inviabilizou a perma-nência das elites em Campos Elísios, Luz, Higienópolis, Con-solação, Liberdade, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, eposteriormente na própria avenida Paulista, A ausência deuma legislação rígida de controle do uso e ocupação das casase terrenos nos bairros mais antigos, como havia nos bairros-jardins, a maior proximidade de áreas de grande circulação ou

hABIT ACÃO E V:ZINH';NÇA • 187

de bairros populares, as migrações vindas do com balido inte-rior cafeeiro e a própria alta na demanda por aluguéis foramesvaziando os grandes palacetes e os bairros mais antigos da-queles setores sociais que os haviam erguido, Já na década de 30vários palacetes de Higienópolis tinham se convertido em pen-sões para setores médios, cujas famílias residiam, individual-mente, nos numerosos e amplos cômodos das residências."

A modificação do perfil social das moradias, ocorridanos antigos bairros elegantes de São Paulo, não foi suficiente-mente significativa no que se referia aos limites da clivagemsociaJ que se desenhara nos bairros de função residencial dacidade. Tanto a capital paulista como o Rio de Janeiro, aofinal da República Velha, seriam objeto de propostas de ade-quação urbana visando garantir a rápida expansão dos bair-ros residenciais populares e distritos industriais, asseguran-do-se um alívio às pressões que se abatiam sobre a geografiaexcludente dos espaços privados, A difusão de um novo mo-delo de habitação e vizinhança - os apartamentos - iriarelacionar-se intensamente com as tensões sociais acumula-das na escalada de urbanização das populações brasileirasdurante a Belle Époque,

OS APARTAME TOS E A MASSIFICAÇÃO DA MORADIA:[)OS CONDOMINIOS AOS CONJUl\'TOS HABITACIO AIS,PASSANDO PELAS REMOÇOES

A resistência à moradia coletiva, discriminada pelos dis-cursos oficiais como sinônimo de todas as desgraças sanitá-rias presentes nas capitais brasileiras desde o Império, foi aospoucos arrefecendo diante da novidade constituída pelosapartamentos, inicialmente dirigidos aos segmentos maisabastados das grandes cidades, O receio de decair socialmen-te, advindo do desprezo para com as coabitações, foi vencidocom a adoção de acabamentos custosos utilizados nos revés-timentos externos e nas áreas internas de circulação dos edi-fícios, Justificava-se, assim, o apelo da denominação dos pri-meiros edifícios, "palacetes': palavra consagrada, capaz deatenuar hesitações ou preconceitos."

Em São Paulo, os edifícios de apartamentos foramocupando muitos dos bairros que eram abandonado, pelaselites, aproveitando os grandes lotes, a arborização das ruas

-.----------- __ r.lllÍ;CliÔlla... ._

188 • HISTÓRIA DA VIDA PRivADA NO B~AS l 3

34. Algumas residências apalacetadasde Higienopolis, outrora destinadasa moradia ou a aluguel unijamiuar,acabaram por ser transformadasem pensões para famílias, depoisda mudança ou decadência de seusantigos proprietários. Foi o queocorreu com casas deste quarteirãoda rua DOlla Veridiana, duranteas décadas de 40 e 50.(Rua Marquês de [tu, esquinacom Dona Veridiana Prado, SãoPau/o, /900)

ou O prestígio, empanado, dos antigos bairros elegantes. Os"palacetes" foram erguidos diretamente nas calçadas, comonas capitais européias oitocentistas, padrão que entraria peladécada de 30. Os bairros de Santa lfigênia, mas sobretudoVila Buarque e Santa Cecília, são regiões que testemunham oprimeiro modelo de verticalização, o qual guarda na ausênciade recuos, nas portarias com acabamentos luxuosos e noproprio gabarito de sete ou oito andares a referência direta àsexperiências de edificação das cidades européias.

Mas as característica de privacidade e isolamento expe-rimentadas nos bairros de palacetes e nos "jardins", acabariamse repetindo na verticalização da moradia. Dispositivos dalegislação paulistana exigiram, já em 1937, que os edifícioerguidos nos bairros residenciais privilegiado guardassemrecuos laterais e frontais." Isso assegurou a insolação e venti-lação aos apartamentos, e ao interior dos quarteirões, aomesmo tempo que se repetia o afastamento entre os espaçospúblico e privado, inseridos naqueles bairros quando abriga-vam os palacetes. Higienópolis é o exemplo mais consistentede substituição das casas por edifícios de apartamentos den-tro das exigências de 1937, num paradigma do modelo que sereproduziria em quase todos os bairros que não encontravamlimites ao adensamento, como aqueles da Companhia City.

HABI' AÇÃO E Vlll HA ç" . 189

As pressões por moradia, que permaneciam nas bordasda mancha dos bairros de elite, deveriam ser afastadas oquanto possível das áreas centrais, a fim de evitar o encorti-çamento dos antigos sobrados e palacetes - e a desvaloriza-ção definitiva dos bairros já "decadentes". O Plano de Ave-nidas, sugerido para São Paulo pelo engenheiro e depoisprefeito Prestes Maia, e que foi implementado ao longo dasdécadas seguintes, coincidiu com a necessidade de preservaras vizinhanças dos bairros privilegiados, mediante o redire-cionamento do crescimento daqueles populares.

Prestes Maia preconizou a abertura de grandes artériasradiais que partiam para os bairros, enfeixadas em torno deuma avenida perimetral à área central. A execução de seuprojeto, iniciada a partir de 1938, quando ele já era prefeitode São Paulo, garantiu acesso rápido aos arrabaldes, viabiii-zando o crescimento atabalhoado e especulativo gerado pelavenda de lotes populares, destinados a aluguel ou autocons-trução." A verticalização foi também facilitada, seja por meioda ampliação da altura total dos edifícios, seja por meio dasnovas vias públicas implantadas pelo projeto de Prestes Maia,que deveriam receber o incremento do fluxo gerado nos bair-ros adensados horizontal ou verticalmente.

O Rio de Janeiro veio a conhecer um processo de verti-calização igualmente acentuado, em que a relação entre aocupação dos lotes e as.ruas manteve-se por muito tempo fielaos padrões oitocentistas das capitais européias - e à pró-pria tradição urbana da cidade. A exigüidade de terrenos nasregiões central e sul cariocas favoreceu uma ocupação intensados lotes disponíveis nos bairros espremidos entre os maci-ços rochosos que pontuam a faixa litorânea da cidade. As di-ficuldades em controlar as justaposições sociais na Zona Sul,já sensíveis desde a expansão das favelas ao longo da décadade 10, iriam novamente se evidenciar, acentuando o contrasteentre as formas de habitação e vizinhança nas duas maiorescidades do país.

A construção de unidades habitacionais verticais come-çara no Rio de Janeiro desde fins da década de 10, em voltada praça Floriano Peixoto, e se intensificaria na década de 20,com uma crescente participação dos bairros da Zona Sul naproporção dos prédios levantados. I

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190 . HISTÓRIA DA V,OA P1;VADA NO BRASil 3

35, 36. Nos cômodos apertadosdos edifícios paulista nosespremiam-se móveis e {unçõescopiados dos amplos cimlOdo,das wsas aburguesat1l1s. (35. Leal!Li/Jermal!, Edifício Amália -sala de estar, São Paul«; 1q~();

36. Um apartamento - salade almoço c cozinha, SilO Puuio,

1940)

A fase inicial de construção de habitações verticais foimarcada pela edificação de: prédios de altíssimo luxo, comelaboradas facbadas de inspiracâo no classicisrno francês.Pontuando a praça Floriano Pei.x.otoe a avenida Beira-Mar,os primeiros edifícios repetiram o papel de seus congêl~erespaulistanos - muito mais modesto, - no papel de arrefeceros preconceitos relativos à habitação coletiva. .

Principiava a competição dos incorporadores pela mora-dia dos setores mais abastados do Rio de Janeiro, o segmentosocial a que se direciuDou inicialmente o nova gênero habita-cional. As orlas da Glória, flamengo e Botafogo foram esco-lhidas para situar os primeiros prédios de apartamentos daZona Sul, em que a fusão dos custosos elementos decorativos ,de referência francesa juntava-se às escalas vindas das Cidadesnorte-americanas.

Os novos arranha-céus da Zona Sul enfrentavam a duraconcorrência das suntuosas residênciJs erguida, em Santa

HABITAÇÃO E VIZlNHANÇ.o. • 19i

Teresa, e nas ruas São Clemente, das Laranjeiras, SenadorVergueiro, Marquês de Abrantes e suas imediações, espaçospreferidos das elites residentes no Rio durante as décadas de1900 a 1920. Pontificaram nesse período os palacetes da fa-mília GuinJe, erguidos por Armando Carlos da Silva Telles,que suplantavam de longe seus congêneres paulistanos. Se-melhantes às maiores residências de Buenos Aires, muitos tra-çados em Paris por René Sergent," os palacetes dos GuinJe,erguidos na capital federal e no estado do Rio de Janeiro, sãonotáveis pelo emprego de caríssimos acabamentos e obras dearte importados da Europa. Paradigma de luxo durante aRepública Velha, lembram ainda o notável conjunto de resi-dências dos Vanderbilt, ergui das na Nova Inglaterra e exem-plo maior da vocação suntuosa das moradias das elites emer-gentes norte-americanas.

Era imperioso conferir exclusividade e luxo àqueles quese dispusessem a migrar dos palacetes para os apartamentos,já que eram incontornavelmente um gênero de moradia cole-uva, aspecto nauseante para as elites, que condenavam oscortiços, estalagens e casas de cômodos.

O regime de serviços comuns, presente em muitos dosprimeiros apartamentos - as chamadas "casas de aparta-mento", um gênero de flat -, foi rapidamente substituídopela segmentação total das unidades, que passaram a incluir

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192 . HISTÓRIA DA VIDA P<Iv'ADA NO 6 ASI' 3

37. A oputéncia dos Guinlt,",agllatas da República Velha,expressava-se em suas sunruosasresidêllcras, espalhadas nOS ba,rrosda ZOlla Sul do Rio de Janeiro,},mto i1 baía de Guanabaraou 'w, scrnl5 [unntnenses.

(l'ôlacClf IlJ rua ~ão (Jernen«.Botafogo. 1Y97)

dependências completas de serviço. Foram condenados aodesaparecimento os andares reservados à habitação comumdos empregados domésticos, cujos espaços nos apartamentospassariam a ser demarcados com rigidez. gerando um zonea-mento interno que já foi assinalado como uma característicamarcantemente nacional] A diferenciação rígida entre áreasíntimas e de serviço - e entre seus respectivos ocupantes -foi um anseio que escapou largamente aos apartamentos deluxo. A permanência e a circulação mereceram a criação decaminhos e espaços diferenciados. sedimentando para os se-tores médios uma distinção em que se sente o bafejar dostempos da escravidão.

A aprovação da Lei de Condomínios em 1928 consoli-dou em definitivo a possibilidade jurídica de individuaçãocompleta de cada unidade habitacional, restringindo a áreacomum apenas aos espaços de circulação e recepção. custosa-mente decorados. Procurava-se afastar de uma vez por todaso espectro que condenava os prédios de apartamentos aosestigmas relacionados às habitações coletivas. vindos desde oImpério. e que por muitos anos ainda gerou um sugestivoapelido aos condomínios residenciais verticais: "cortiços deluxou

.8}

Copacabana constituiu o exemplo mais notável de verti-calização habitacionaJ do Riu de Janeiro, tendo sido ali as

casas leves. praianas, rapidamente substituídas pelos prédiosde apartamentos. erguidos de início na região em torno dapraça Bernardelli - o Lido -. coração elegante do bairrolitorâneo." A sofisticação que cercou o bairro. local do hotelCopacabana Palace, não foi. entretanto, forte o bastante paralogo ameaçar a primazia das antigas regiões residenciais aolongo da baía de Guanabara, que disputaram por décadascom os bairros atlânticos as parcelas mais abastadas da popu-lação carioca. Botafogo, Laranjeira, mas sobretudo a linhalitorânea do Flamengo e do morro da Viúva permanecerampor muitos anos como reduto dos apartamentos essencial-mente urbanos e elegantes, deixando a Copacabana a aura domorar balneário.

A pressão dos incorporadores imobiliários junto à admi-nistração pública possibilitou a concentração paulatina denovos prédios de apartamentos, esparramados pelas avenidaslitorâneas ao longo das décadas de 30 e 40. O gabarito - aalt.u.ratotal dos edifícios - foi continuamente ampliado. per-:nltmdo a exploração intensa dos lotes. fator que aos poucosimpediu a própria visualização das montanhas cariocas, além

______________________~a. _

HAalTACAO E Vil'N 'ANCA - 193

38. Localizados entre os palacetesalinhados na praia do Flamengo,os Apartamentos Guinle [oram

do> primeiros a ser construidosnas antigas áreas ll'SldellClal:i

da Zona 5,,1 canom. As áreaspara empregados doméstico, erammantidas rrQ mallSardLl, foradas unidades dos proprietário».(Apartamentos Guinle, Flarnengo.1997)

rf194 • HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 1

I• I

de comprometer a salubridade tão almejada pelas elites queconduziram a reforma da antiga capital imperial, fato que jánão escapava aos visionários de então: "[ ...] dia virá em que,fatalmente, os grandes edifícios de apartamentos, por falta deáreas disponíveis para sua ventilação e insolação, formarãoum aglomerado asfixiante de moradias insalubres e impró-prias à vida humana'i"_ Copacabana conheceu em poucos anos uma massa com-

pacta de prédios sem recuos frontais ou laterais - diferindode modo radical do que se processava nos bairros equivalen-tes de São Paulo -, o que praticamente privou os habitantesdo interior do bairro da sensação de estar a metros da praia edos ventos marítimos. A prernonição do artigo de 1928 chega aser irônica, se se considerar que o morro do Castelo, berço dacidade, fora arrasado anos antes justamente sob a alegação debloquear a brisa saneadora. O Bairro Peixoto, porção mais in-terna de Copacabana, é exemplo da luta dos habitantes locaispara conter a voracidade de agentes ligados à especulaçãoimobiliária, ansiosos por liberar o gabarito local, que oscilouprecariamente entre três e quatro pavimentos residenciais aolongo das décadas do século XX86

As alterações nas condições de inquilinato e as facilida-des de crédito foram responsáveis pela proliferação de apar-tamentos minúsculos, muitos comprados pelos próprios mo-radores, espalhando-se pelo bairro, durante as décadas de 40e 50, os edifícios de kitchenettes e conjugados, habitaçõescompactadas sem luz ou aeração condizentes com o climacarioca. Os apartamentos modestos aos poucos alteraram operfil dos bairros da Zona Sul, em especial Copacabana eIpanerna, modificando a destinação elitista prevista desde oPlano Agache, primeira tentativa sistemática de zonear so-cialmente os bairros do Rio de Janeiro, realizado durante agestão presidencial de Washington Luís e, portanto, contem-porâneo ao Plano de Avenidas de Prestes Maia."

""' Reservados por Agache para o habitar dos setores mé-dios e altos da população carioca, os bairros da Zona Sul nãoforam alvo, entretanto, de uma experiência ocupacional res-tritiva semelhante à ocorrida nos bairros-jardins de São Pau-lo, cujas disposições de exclusividade funcional, incorporadase expandidas pelos dispositivos legais, propiciaram à capitalpaulista áreas extensas de hornogeneidade social, em que os

I i, I, I

I

'--

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39, 40. Em menos de cinqüenta anos,Copacabana passou de um imensoareal, assinalado por uma fileirade elegantes palacetes praianos,a uma miscelânea de edifíciosde todos 05 padrões sociaisjustapostos a grandes favelas.(Copacabana de ontem e de hoje,c. 1890ec. 1938)

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espaços privados estendiam, indiretamente, sua característicaexcludente às ruas e aos bairros - aos espaços públicos.

.... A verticalização de alguns bairros paulistanos de ocupa-ção não exclusiva, como Higienópolis, Perdizes e Vila Améri-ca, preservou de modo razoável a vizinhança dos bairros res-tritivos, sendo os apartamentos habitados basicamente porsetores de elite ou da chamada classe média alta. No Rio deJaneiro, o Grajaú, na Zona Norte, a Urca, alguns loteamen~osem Laranjeiras e no Jardim Botânico, ou o Bairro Peixoto, naZona Sul, foram experiências tímidas de especialização socialde moradias. Mantida precariamente, a ocupação desses bair-ros não chegou a abrigar os rígidos padrões de ocupaçãoexclusiva dos bairros-jardins paulistanos, nem a se generali-zar nos bairros da Zona Sul do Rio, tarnpouco nas demaisregiões da cidade."

__As pressões do capital imobiliário, extremamente com-petitivo nu contexto de desaceleração da indústria carioca,foram aos poucos reproduzindo, em toda a Zona Sul, a expe-riência de convívios sociais e comportamentais justapostos,que se quisera extinguir na capital nacional desde os anos emque e materializavam as idéias reformadoras e tragmentadasda Bclle Ép.ique. A justaposição sufocante de prédios deapartamentos, muito díspares entre si, fui ainda assediadapelos barracos dos morros da Zona Sul carioca, que se ex-pandiam incoIltrolavelmente.

As favelas, que já eram detectáveis nos bairros litorâneosdesde a década de l.O,prosperaram diante da precariedade dopoder público em erradicar até as concentrações de moradiaspopulares mais centrais, próximas aos símbolos do Rio "civi-lizado" Se 0<; numerosos cortiços e casas de cômodos dobairro da Misericórdia e do morro do Castelo furam elimina-dos do centro do Rio de Janeiro apenas entre 1920 e 1922,pelos esforços combinados de Epitácio Pessoa e do prefeitoCarlos Sarnpaio, o que se poderia esperar do combate aosbarracos? Multiplicavam-se as favelas, como se multiplica-vam as reproduções do modelo insuficiente de reforma urba-na experimentado desde a eliminação do Cabeça de Porco-os moradores e as moradias indesejáveis, expulsos, agrega-vam-se nas proximidades, e suas mazelas cobriam novosmorros, emoldurando a ilusão das planícies arenosas, cobrin-do a face Jo Rio de "chagas" tão indesejáveis quanto inevitá-

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veis: tConstruídas contra todos os preceitos da higiene, semcanalizações d'água, sem esgotos, sem serviço de limpeza pú-blica, sem ordem, com material heteróclito, as favelas consti-tuem um perigo permanente de incêndio e infecções epidê-micas para todos os bairros através dos quais se infiltram. Asua lepra suja a vizinhança das praias e os bairros mais gra-ciosamente dotados pela natureza"."

As palavras de Agache previam a confrontação social nofuturo que seria gerada pela convivência heterogênea de ha-bitações e dos segmentos sociais nelas residentes, acusandoas favelas de corromper o Rio de Janeiro "não só sob o pontode vista da ordem social e da segurança, como sob o ponto devista da higiene geral da cidade, sem falar da estética'." S·f oapelo tradicional aos pavores epidêmicos já não era suficien,tepara justificar remoções, e sendo o fator plástico consideradoquase desprezível, recorria-se então, sem pudores, às discre-pâncias sócio-econômicas para alimentar o anseio de nova-mente impulsionar a remoção das populações, que ousavam

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41. Logo atrás da BibliotecaNacional e do MUSel/ Nacionalde Belas-Artes - e a metrosdo Senado Federal e da CâmaraMUrlicipal -, os gigantescos cortiço.'da rua da Ajuda exibiam suasmazelas a exatamente um quarteirãodo centro da nova capital de PereiraPassos, a praça Floriano Peixoto.Permaneceram ali até cerca de J 922.qualldo foram arrasadas juntamentecom o morro do Castelo, redutode moradias populares. (AugustoMalta, Morro do Castelo, Riode Janeiro, /921)

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agregar-se aos bairros elitizados: "Pouco a pouco surgem ca-sinhas pertencentes a uma população pobre e heterogênea,nasce um princípio de organização social, assiste-se ao co-meço do sentimento da propriedade territorial. Famílias in-teiras vivem ao lado uma da outra, criam-se laços de vizi-nhança, estabelecem-se costumes, desenvolvem-se pequenoscomércios","

Uma eficiéncia social ocorrendo nos interstícios do bemviver, escancarados aos olhos que se voltassem para a exube-rância da topografia carioca, não mais apenas no centro,como ocorria nos anos que cercaram as reformas de PereiraPassos, mas galopantemente pelas zonas sul, norte e suburba-na. Uma vizinhança que, além de enlaçada nos empregos ofe-recidos nos apartamentos e casas, tinha seu poder de barga-nha para diluir as tentativas de remoção de favelas.

Entre 1917 e 1926, houve registros de remoções de bar-racos e populações faveladas nos morros da Babilônia e DoisIrmãos, e no do Telégrafo, este já nas portas da área suburba-na ao norte da cidade. Ao mesmo tempo, acusava-se a exis-tência de favelas no Catumbi, e também na Lagoa, lpanerna,Leblon e Gávea, sendo ainda esse o período em que urgiramduas das maiores favelas cariocas - a Rocinha e a da praiado Pinto."

O advento de Vargas traria, contudo, uma reviravoltanos planos excludentes de Agache e das elites que o contrata-ram, suavizando o combate às favelas e às suas populações, oque se estenderia pelos quinze anos que se seguiram ao tér-mino do Estado Novo. As migrações do campo para a cidadese intensificavam, estimuladas pelos surtos de industrializa-ção observados entre 1930 e 1960, e cada vez mais as massasurbanas destacavam-se nas práticas de cooptação política, deque se serviu largamente tanto o Estado Novo quanto o regi-me populista que o sucedeu até 1964.

Ainda que houvesse umas poucas remoções no períodode Vargas, vitimando "centenas e centenas de criaturas, cujoúnico mal é serem pobres na cidade mais linda do mundo'; asfavelas prosperaram enormemente. Se a década de 40 temsido considerada aquela do boom dos apartamentos na ZonaSul, foi também a de uma verdadeira ex-plosão de: barracosnos morros de toda a cidade, bem como nos bairros subur-banos, em franca expansão ao longo das linhas férreas e CO[1-

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centrações industriais, sob os olhos complacentes das autori-dades públicas."

O centralismo da administração do Estado Novo fizeravista grossa ao cumprimento do Código de Obras carioca,criado ainda em 1936 e que proibia ampliação ou melhoriasnas áreas faveladas da capital. As grandes atuações da admi-nistração pública, especialmente na gestão municipal deDodsworth (1937-45), concentraram-se na abertura das ave-nidas Presidente Vargas e Brasil, facilitando a articulação docentro da cidade com os subúrbios, estradas interestaduais eos municípios da Baixada Fluminense, que já principiavama assumir características de cidade-dormitório. Ignorou-se ocombate às vizinhanças díspares nas zonas Sul e Norte, oumesmo a necessidade de saneamento básico nas favelas."

Embora a maior parte das favelas e populações faveladas,segundo o censo de favelas realizado no Rio de Janeiro entre1947 e 1948, estivesse nas zonas suburbanas (44% e 43%), eno binôrnio centro-Zona Norte (22% e 30%), era na ZonaSul, com 24% e 21 % respectivamente, que as concentraçõesde barracos causavam maior escândalo e constituíam umatentado à construção de uma imagem adequada a uma capi-tal nacional bem como aos interesses da especulação imobi-liária, ávida por valorizar os terrenos litorâneos."

A letargia no controle do zoneamento social durante oEstado Novo geraria atitudes rompantes, como a criação deuma Comissão para Bx:tinção de Favelas, em 1947. A Comis-são retomou, sem grandes efeitos práticos, algumas poucasatitudes - tímidas - do Estado Novo, como a construçãodos chamados Parques Proletários Provisórios, entre 1941 e1944, no Caju, na Gávea e na praia do Pinto, as duas últimasnas imediações da lagoa Rodrigo de Freitas. Nos parques fo-ram alojados os moradores de barracos removidos dos mor-ros do Livramento e do Pinto, e de bordas da Lagoa; mas asubstituição das casas transitórias pelas definitivas jamaisocorreria.

A elaboração e aplicação do programa dos Parques Prole-tários contou com a participação-chave do médico pernambu-cano Vítor Tavares de Moura, veterano na luta travada entre aselites de Pernambuco e o gigantesco número de mocambosque já cercavam o Recife ao findar da República Velha, e queconstituiria a mais ernblemática luta pela extinção de habita-

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ellcosws do morro Duis irmãos -lima delas, a Rocinha, tornou-sea //Jalor Ia ,'ela carioca, wroalldoo reduto residencial mais soji;ticadodo Rio de Janeiro. a praiada Gávea. (Favela da praiado Pinto, 1941)

ções populares ditas insalubres no Nordeste, a ponto de servircomo referência para as experiências do Rio de Ianeiro."

O fracassado programa carioca de erradicação de barra-cos não se defrontara certamente com uma escala de faveliza-ção comparável àquela observada no avanço dos mocarnbossobre as área mais urbanizadas do Recife, Se em 1913 oscasebres já constituíam 43,2% do total de imóveis na capitalpernambucana, chegariam à cifra formidável de 63,7% em1940, ano em que o censo nacional acusava a volta do Recifeà condição de terceiro município mais populoso do Brasil e oprimeiro do Nordeste, posto este que viria a perder para Sal-vador apenas no censo de 1980. As migraçõe vindas do inte-rior, cada vez mais acentuadas, inchavam o Recife: seus novosmoradores espalhavam-se pelos terrenos alagados que com-punham o sistema fluviomarítimo da planície em que se as-sentava a cidade."

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A pressão das habitações e do habitar popular sobre asáreas urbanizadas segundo os princípios normativos das eli-tes era tamanha, que surgiria, ainda na República Velha, em1924, a Fundação A Casa Operária, com a intenção de fo-mentar o controle das moradias e das populações no Recife."A pressão dos locadores agravava ainda mais as difíceis con-dições de obter habitação na capital, aspecto que não escapa-va à imprensa alarmista, que já em 1921 procurava conscien-tizar os que se mantinham alheios ao precário equilíbrio dotenso arranjo social em que eram mantidos os habitantes dacidade: "Não tardará o dia em que esses desesperos [de entre-gar todos os proventos como aluguel] se conjuguem e saiampara as ruas a procurar domicílio, não armados de Cartas deFiança e de garantias de toda ordem, mas de bem municiadosrifles e bombas de dinamite'."

Os resultados obtidos pela Fundação foram pequenosdiante da intensa pressão demográfica sofrida pelo Recife,que se agravaria em razão do imobilismo do aparelho estatalem lidar com a cri e habitacional - ou com o próprio des-dém dos mocambeiros. Em princípios da década de 20, oprefeito Lima Castro constrói as 150 casas da «vila operária",experiência pioneira de massificação habitacional em Per-nambuco, como forma de realocar e "civilizar" os moradoresde mocambos. Ninguém as quis. As casas populares nãoeram caras, mas eram completamente exóticas para os costu-mes populares: «As Casas populares ficavam vazias porquenão davam caranguejos como os mocambos', lembrou umopo itor político.!"

Os mocambos iniciais de taipa de mão ou palha, perfei-tamente adaptados às condições climáticas recorrentes emtodo o litoral, foram se concentrando nas áreas imediatas aosbairros centrais e residenciais. Ladeados pelas versões de ca-sebres que incorporavam materiais adquiríveis no meio ur-bano - como telhas e folhas de zinco, que acabaram porsuplantar rapidamente os materiais rurais -, sua transfor-mação acabou por inviabilizar os discursos que viam na tipo-logia original uma expressão adequada do saber construirpopular, passível de proteção e estímulo.'?'

A regulamentação para as moradias erguidas pela Fun-dação A Casa Operária chocara-se ainda uma vez com oscostumes dos mocambeiros, que deviam se submeter a exi-

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43. Utilizando materiais disponíveisna natureza e perfeitamenteadaptados ao clima, os mocambostradicionais foram louvados comouma solução nacional parahabüaçõo por pensadores comoGilherto Fteyre e, entretanto,intensamente combatidos pelasautoridades sanitárias, uma vezq!le "irlchavam" o Recife. Ao longodo rempo passaram a incorporarmateriais industrializados.(Mocambos de palhade coqueiro e de massa pé cobertode capim-açú, s. d.)

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gências extremas: "O indivíduo pobre não se pode dar aoluxo de ter papagaios, uma série de passarinhos, galos de bri-ga e, por isso, possuir estes animais, caros muitas vezes demanter, foi proibido" Excessos que nem ao menos corres-pondiam a uma produção de moradias compatível com ocrescimento do número de pobres e miseráveis. 102

v O alarme dos movimentos de esquerda que se expan-diam em Pernambuco, como na própria capital nacional,acelerou a constituição da Campanha contra o Mocambo, em1938, q ue procuraria não repetir os fracassos das casas popu-lares de Lima Castro. Seus efeitos já seriam sentidos no anoseguinte, com a criação da Liga Social contra o Mocambo.

Entidade privada, mantida mediante a mnbilização fi-nanceira de setores abastados ou conservadores da sociedadepernarnbucana, a Liga objetivava a extinção sistemática dosrnocarnbos, que abrigavam cerca de 47% da população domunicípio (164837 habitantes) em torno de 1940WJ Visava-

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se também a alocação dos moradores em casas padronizadas,situadas em locais convenientes ao disciplinamento dos con-vívios sociais da capital, concretizando o anseio daqueles queclamavam contra as vizinhanças miseráveis: "Combate eficazaos monslrengos de palha e zinco que, dia a dia, mais seespalham pelo Recife, acocorando-se, em paralelo, às aveni-das asfaltadas e em torno às boas casas de alvenaria, quedificilmente lhes vão conquistando terreno"!"

A atividade da Liga - que entre 1940 e 1945 promoveua demolição de cerca de cem mocambos por semana! - con-soava com as obras que a administração interventora do Es-tado sustentava no bairro de Santo Antônio, o segundo maisantigo do Recife, e que articulava toda a área central.!" Os"pardieiros" foram postos abaixo, expulsando moradores eextinguindo serviços que ainda se mantinham no centro da

44. Na distinção clam entre espaçospúblicos e privados existentesnas vila; erguidas pela Liga Socialcontra O Mocambo, a;)scnravt/-sea possibilidade de controle do modode vida das práticas cotidiana.de suas populações. (Vila NovaesFilho, Recife, c. 1940)

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cidade, instalados nas edificações coloniais e imperiais, muitoparceladas e associadas à permanência e ao trânsito nas ruas.As palavras proferidas na entrega do projeto de reforma eadequação de Santo Antônio prenunciavam as atividades daLiga, e explicitam a orquestração das atividades de disciplina-mento do habitar e das habitações: "Urbanizar é higienizar,facilitar, disciplinar, ernbelezar, dar, enfim ao homem, os ele-mentos de uma vida que o afaste, cada vez mais, das formasiniciais dos estádios inferiores da comunidade humana [...] Aremodelação de uma parte central do Recife [...] trará, é cla-ro, saúde, imponência e beleza à cidade [...] a urbanização dacidade é que fornecerá à Edilidade elementos para que ela pos-sa elevar o standard de vida do povo, construindo casas popu-lares e libertando Pernambuco do ultraje dos rnocarnbos'U"

A solução habitacional ao "ultraje" ficou, entretanto,longe de conseguir acompanhar a rapidez das demolições oua continuidade da construção de novos mocambos, cujosproprietários e moradores ignoravam largamente as disposi-ções oficiais de interdição, como faziam os favelados no Riode Janeiro. Mesmo mediante a articulação com associações,indústrias e os ricos institutos previdenciários nacionais oulocais, não se pôde dar conta da expansão da demanda habi-lacional e tampouco refrear a expansão dos mocarnbos, En-tre 1939 e 1944 foi construída pelos diversos agentes uma so-ma de 75R2 novas habitações padronizadas; entre [945 (anoem que a Liga foi absorvida pelo Estado e transformada emautarquia) e 1961, outras 10389 unidades-númerosinsufi-cientes para absorver as demandas e extinguir a paisagem dechoupanas que ruralizavam a capital e que pareciam repro-duzir-se espontaneamente nas periferias.'?'

As defasagens da política habitacional oficial ocorridasno- Recite acabavam se repetindo em todas as grandes cidadesdo país, incluindo-se as experiências de caráter nacionaL AFundação da Casa Popular, instituída após a queda do Estado

ovo, jamais contou com amparo político para viabilizar osrecursos necessários à construção de unidades habitacionaisque suportassem as demandas populares, o que naturalmentese agravaria com o incremento das migrações inter-regionaisexperimentadas na década de 50.

Os I" óprios Institutos de Aposentadoria e Previdência- Ú~ L\i's -- acabaram transferindo parte substancial de seus

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recursos previstos para habitações populares ao financia-mento direto de habitações particulares erguidas no boomdas décadas de 40 e 50, o que acabaria por enfraquecer o pro-grama de construção de unidades populares e médias desti-nadas a seus próprios associados. Suportava-se ainda todotipo de interferências obscuras nos processos de seleção decredores ou inquilinos, o que também afetava intensamenteas atividades da Fundação da Casa Popular. 108

HABITAÇOES "CIVILlZADORAS": A UTOPIA NA AURORADA EXPLOSÃO DAS METROPOLES

A atividade construtora dos IAPs - o mais amplo pro-grama de massificação de moradias implementado na pri-meira metade do século xx - sucedera e ampliara aquela jápermitida às antigas Caixas de Aposentadoria, algumas aindana República Velha. A partir de 1933, as Caixas passaram a sertransformadas em institutos, e seus presidentes eram indica-dos diretamente pelo Ministério do Trabalho, Indústria eComércio, o que assegurava a ascendência do governo nasextensas atividades habitacionais dos IAPs, sobretudo naquelesvinculados aos industriários (IAPI), comerciários (IAPC), ban-cários (IAPB), marítimos (IAPM), servidores do Estado (IAPSE) caos empregados em transportes e cargas (IAPETEC).

O saldo de novas edificações erguidas diretamente pelosIAOS entre 1937 e 1964 totalizou 76236 unidades, levando osprogramas habitacionais a transformar os institutos no maiorgrupo construtor de moradias populares e médias do Brasilvinculado ao Estado, participando inclusive da construção deunidades para suprir a extinção dos mocambos, deflagradano Recife. Em fins da década de 40, o IAPI já tinha erguido umtotal de 31587 unidades habitacionais, espalhadas em con-juntos residenciais presentes em dezenove das maiores cida-des industriais brasileiras, como o Rio de Janeiro (12238),São Paulo (4835), Porto Alegre (2496), Recife (1450), BeloHorizonte (928), Salvador (696), Osasco (4 mil) e Santo An-dré (3 mil). O volume de unidades do IAPI era, contudo, irri-sório diante da demanda habitacional da categoria trabalhis-ta densamente presente nas grandes cidades, defasagem quese acentuaria nos programas habitacionais dos demais insti-tutos."?

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Tanto na fase inicial dos programas, com grande quanti-dade de casas, quanto no período em que a construção deblocos de apartamentos foi largamente predominante, a pa-dronização das unidades consistiu numa saída para barateara produção e o financiamento, ampliando-se a oferta. As vas-tas séries de edifícios iguais que compunham os conjuntoslevantados em todas as grandes cidades do país, multiplica-vam a experiência pioneira presente nas vilas populares, vilasoperárias e avenidas erguidas desde o Império nas maiorescapitais brasileiras, perseguindo-se a homogeneização dospadrões arquitetônicos e habitacionais dos moradores. Mas aescala das formas iniciais de massificação mostrar-se-ia insig-nificante diante da iniciativa construtora dos IAPs, cujos pro-jetos levantavam as numerosas fachadas quase idênticas emtodo o país.

Em casos extremos, a intenção disciplinadora alcançavaminúcias do próprio interior das residências construídas pe-los institutos. Alguns conjuntos, erguidos durante o Estado

ovo ou nas gestões que o seguiram imediatamente, eramentregues aos moradores com inúmeros itens de mobiliáriocomprados pelos institutos, sob a justificativa de baratea-mento de custos e servindo ainda à precaução contra even-tuais transferências de hábitos não higiênicos trazidos de cor-tiços ou gêneros semelhantes de moradia que contaminassemas vizinhanças."! Assegurava-se dessa forma a padronizaçãosanitária e de "conforto" já estabelecida nas sugestões técnicasdo Ministério do Trabalho aos IAPs, que deviam nortear oconvívio nas novas moradias: "Além de assistência social, quedeveria acompanhá-Ios por muitos anos [ ] Razões econô-micas, razões de higiene [... ] levam-nos [ ] a pleitear que sedê a casa e, com ela, os móveis e os utensílios, de um modogeral. Baterias de alumínio, aparelhos de boa louça, talheresde bom metal, toalhas e lençóis de bom pano, tudo será aces-sível, se comprado em grande quantidade, será higiênico, sefácil de lavar, será humano se der ao pobre a alegria de vivernum ambiente são e confortável"!"

Essas palavras, proferidas em 1938, anunciam o pico dacapacidade disciplinadora das intenções alojadas no aparelhodo Estado - e prenunciam seu declínio, diante da massifica-ção que: seria induzida aos espaços privados pela sutil socie-dade de consumo do pós-guerra. Ao aparelho estatal restaria

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tarefa mais árdua e despida de preceitos pedagógicos ... as re-moções, em tese soluções mais rápidas, chegariam no limitede retirar-se a própria residência do Estado da capital nacio-nal, seio da República.

Contra ponto absoluto da liberdade em que se consti-tuíam as moradias das favelas - que já abrigavam 7,12% doshabitantes da capital da República, segundo o censo nacionalde 1950 -, a rnassificação divulgada pelos lAPs, dirigida in-clusive a setores médios, foi ainda referência para os empreen-dimentos oficiais destinados a populações de menor renda,justamente os mais difíceis de enquadrar nos conceitos deprivacidade e vizinhança politizados.

Os conjuntos projetados pelo arquiteto Affonso Reidvpara o Departamento de Habitação Popular da prefeitura ce-rioca, entre 1947 e 1952, refinaram as soluções rnassificado-ras utilizadas nos conjuntos dos institutos, estendendo o con-trole homogeneizador dos módulos habitacionais para asáreas de convívio comum, experiência já adotada em algunsconjuntos de IAPs. Se por um lado tinha-se o cuidado de flexi-bilizar ligeiramente as fachadas, evitando insurgências contraa monotonia das soluções dos IAPs, previa-se a justaposiçãoaos conjuntos de apartamentos de edifícios auxiliares queabrigassem escola, lavanderias mecânicas, mercado e centrode saúde, disseminando pelos espaços públicos os preceitos"pedagógicos" estabelecidos em âmbito privado nos blocoshabitacionais.!" •

Os resultados obtidos no conjunto denominado Pedregu-lho, para funcionários municipais de baixa renda, e que torna-ram a proposta mundialmente conhecida pela qualidade doprojeto, a qual abarcava os acabamentos e jardins, ficaram,entretanto, como lembrança do desinteresse em estender ini-ciativas de tal envergadura às vastas populações miseráveis dacapital. Destinado à população favelada removida das imedia-ções da lagoa Rodrigo de Freitas, o conjunto previsto parasubstituir o Parque Proletário Provisório da Gávea em 1952 foidrasticamente reduzido e adulterado, terminando ali a buscapor soluções habitacionais que visassem prover os antigos fa-v~lados de recursos essenciais, como ambulatórios, escola, jar-dms-de-infância, campo de jogos e playground.'"

Soluções complexas como as propostas por Reidy ti-nham decerto o custo elevado necessário a ambições mais

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II45. Na foto aérea do LcbluII,a Imagelll do; edi(icio< padronizada,do COl/junto dos ballainose c/a Crl/zada São Sebasnão, I/asrroxilllidades das favela, c/ti Ia!:""Rodrigo de Freitas c da lpanenui"bossa nava" - a ZOl1a SI/I carioc::sempre esteve 10llge de ser 11m redu:aexclusivo de elites 011 setores médIOsascendentes. (Edifícios da CruzadaSão Sebastião, Rio de Janeiro,década de 50)

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ousadas e abrangentes do que as praticadas pelos 1APsl Ambasforam, contudo, paulatinamente esvaziadas de recursos e sus-tentabilidade financeira em virtude dos processos inflacioná-rios ou de congelamentos de aluguéis promovidos pelaUnião. Momento crítico para as cidades, a gestão de JuscelinoKubitschek seria pautada por seu notório Plano de Metas,zerador de substancial aumento no fluxo migratório dirigidoo c .às maiores cidades brasileiras e que ironicamente não razianenhuma menção a soluções para a crise habitacional, a qualse acentuaria no Rio de Janeiro e em São Paulo.!"

As discrepâncias sociais, a miséria dos exércitos de reser-va mantidos nas capitais, o desnível entre periferias e áreasnobres, entre favelas e edifícios, entre conjugados e cobertu-ras, todo o quadro de tensão das grandes metrópoles incha-das restava miragem nos amplos horizontes do Planalto Cen-

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tral brasileiro. A decisão de construir a nova capital do Brasilveio acompanhada de um projeto urbanístico completamen-te diferente da tradição das cidades brasileiras. O plano pilo-to de Brasília, projetado pelo vencedor do concurso seletivo,o arquiteto Lúcio Costa, tornava-se a materialização - total-mente redimensionada - de décadas de anseio de controleespacial e social havido nas diversas administrações públicasespalhadas pelo país, e que encontravam na nova cidade-capital a possibilidade de concretizar as idealizações de umavida urbana nova, alheia às agruras históricas da sociedadebrasileira.

A previsão de áreas específicas para os setores funcionaispossibilitava uma compartimentação de atividades e conví-vios, que girariam em torno do eixo administrativo, funçãoessencial da cidade. Muito embora o memorial de Costa pre-visse a coexistência de setores sociais no plano piloto, e aobrigatoriedade de se "prover dentro do esquema propostoacomodações decentes e econômicas para a totalidade da po-pulação", a realização da capital não efetivou vizinhanças dís-pares, nem promoveu a construção de moradias popularesnecessárias. I 15

A disposição dos conjuntos de apartamentos nas supcr-quadras, situadas nos setores habitacionais da nova capital,rompeu com o tradicional alinhamento entre lotes e ruas pre-sentes nas cidades brasileiras, eliminando esquinas nos cruza-mentos e forçando a reversão dos convívios públicos ao inte-rior das superquadras, que deveriam ser auto-suficientes. Ocomércio e serviços foram restritos a setores e ruas específicase.exclusivas, lindeiras com os conjuntos de apartamentos.

Traçados e concebidos como transformadores da convi-vência social, os arranjos das superquadras e de seus blocoshabitacionais metamorfoseavam localmente o pensamentoreformador dos Congressos Internacionais de ArquiteturaModerna - os ClAMs - e atinham-se à pedagogia plástica eespacial de Le Corbusier, a referência constante nas carreirasde Costa e Niemeyer, os quais supunham ser a arquitetura e ourbanismo modernos vetores capazes de transformação so-cial e cultural.!" As superquadras espalhavam pela nova capi-tal as pulsações já pressentidas em experiências do próprioCosta, nos grandes conjuntos dos IAPS e sobretudo nos deAffonso Reidy.

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46. Sílltese de um pensamentoque diluía 05 rígidos limitesde convívio e exclusão praticadospelas elites brasileiras nas antigascapitais, as superquadrasenfrentaram a dura transformaçãodo pensamento que as originou,derivando lIuma prática elitistae segregarionista - urna 1I(>\·aPetrópolis, metamorioseada110 cerrtldo. (MareeI Gautherot,Superquadra, Brasília, LJF. 1966)

A disposição de Brasília, e de sua gramática para espaçospúblicos e privados, fazia convergir duas utopias distintaspara o Planalto Cent raI. Aquela propalada por seus autores,que viam na cidade moderna. liberta das tradições mesqui-Ilhas, a pos~ibilida(k de forjar uma sociedade livre e capaz deprover seus cidadãos de dignidade, e nutra - vitoriosa -minada pelo pensamento excludente que vicejava entre aselites brasileiras, as quais encontrariam no projeto da novacapital um habitar livre dos setores que perturbavam a har-monia tão perseguida nas reformas urbanas que se acumula-ram desde a proclamação da República e que fracassavamfragorosarnente no Rio de Janeiro e nas demais grandes cida-des brasileiras. 11;

A implantação do projeto urhanistico do plano pilotode Brasília desconheceu mesmo aqueles numerosos operáriosque a construíram. Petrópolis que ressurgia no cerrado, acidade não concretizou seu plano inicial de abrigar residentespobres - a harmonia que se concretizava esquecia-se dosdesejos de seus autores e fixava-se na ausência de superqua-dras e conjuntos resideneiais à disposição dos segmentosmais modestos da sociedade da capital. Massificada entreiguais, Brasilia podia assim prosseguir como uma transfor-mação viável e irônica da sociedade brasileira. Calçadas sem

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movimento, sem botequin , prédios suspensos - isolados-em pilotis, amplos gramados, massas arbóreas que intimiza-vam as superquadras de moradores semelhantes, sem misé-ria, sem casas velhas, sem morros, sem várzeas, sem mangues.As cidades-satélites, que envolveriam a nova capital nas déca-das seguintes, permaneceram, todavia, como lembrança deque nem a ilusão de remover as elites, em lugar de favelas emocambos, poderia forjar uma separação de espaços que apa-gasse a realidade brasileira.

A Vila Sara Kubitschek (1958) foi a primeira das agrega-ções inesperadas à capital, batizada no ardil dos faveladospara proteger-se nas mercês do manto da primeira-dama.Erguida antes mesmo da inauguração de Brasília, a Vila Sararevelou as possibilidades de reprodução na nova capital dasocupações efetuadas pelos miseráveis nas antigas capitais li-torâneas, que ignoravam interdições e lutavam por perma-nências.!" Suas condições de habitação eram em Brasíliaigualmente nauseantes para os setores privilegiados da popu-lação local, e nacional, que veriam ao longo das décadas se-guintes o aborto das ilusões de isolar a capital das discrepân-cias sociais do Brasil, e de livrá-Ia dos convívios e relaçõesespaciais que inviabilizavarn a ambição de viver segundo ospreceitos "civilizatórios', passaporte para a inserção numaordem econômica, social, política que desejavam em seu des-terro imaginário sul-americano.

. fundação e concepção de Brasília é o ponto culminan-te de décadas de tentativas de implantação no meio urbanodas cidades brasileiras das características de exclusão e mar-ginalização apropriadas fragmentariamente das cidades gera-das pelo capitalismo industrial europeu e norte-americano,ou adequadas a ele e à gramática sacia i calcada em padrõesburgueses de diferenciação e controle sistêmico para as dife-rentes dinâmicas das diferentes sociedades urbanas.

Únicos aspectos mais viáveis na irnplementação dosmodelos estrangeiros, os movimentos segregacionais per-seguidos pelas elites instaladas nos aparelhos estatais dis-persos pelo país sofreram historicamente a ação da maiorparte dos brasileiros e estrangeiros que residiam ou queacorreram às capitais que se industrializavam ampliando aspossibilidades de emprego no setor terciário. Mas os novosarranjos sócio-econômicos dificilmente os arrancariam das

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atividades e circunstâncias instáveis e flutuantes, a que seapegava, aliás, boa parcela dos habitantes das grandes cida-des brasileiras já de maneira pronunciada desde o Setecen-tos."? A fluidez dos arranjos espaciais em que se enlaçavamas características instáveis da sociedade brasileira foi, por-tanto, foco privilegiado da ação reguladora, disciplinadoradas elites instaladas no Estado.

O processo intenso de metropolização sofrido no Brasila partir da instalação dos parques industriais e os surtos mi-gratórios a eles associados inviabilizariam qualquer projetode perpethar o controle das formas de moradia e vizinhançanas grandes capitais. Espaços públicos e privados passaram ase fundir a contragosto das intenções norrnativas, não apenasnas ruas e na configuração heterogênea dos bairros, mas noavanço sobre mananciais - fonte para todas as pias, chuvei-ros e vasos sanitários das cidades - ou na própria violênciaque passaria a assaltar ruas e casas.

Empurrando a maior parte dos brasileiros para condi-ções de sobrevivência permeadas pela violência e pelo sofri-mento, mas também pela gama de ações e reações com que sedebatem no ganho cotidiano, e no diálogo tenso com os se-tores sociais e espaços privilegiados, redimensionaram-se oschoques entre as sucessivas intenções sistematizadoras expe-rimentadas desde a colonização, irremediavelmente atadas aviolentos processos de exclusão social, e as contínuas possibi-lidades de se criarem estratégias de transformação e desvio,fertilizadas pela própria instabilidade oriunda dos procedi-mentos excludentes, e que diluem muito da intenção de mar-ginalizar populações que estão, enfim, intensamente articula-das ao tecido social.

A pirotecnia que cercou as últimas grandes remoções defavelados da Zona Sul do Rio de Janeiro, já no limiar doregime militar, não podia esconder a impossibilidade de ex-cluir os favelados diante da dependência da mão-de-obra dis-ponível nos barracos, dos acordos eleitorais, da incapacidadede promover a construção de habitações populares nas peri-ferias e, sobretudo, de assegurar transporte rápido e baratoque suportasse as deslocações dos moradores para áreas dis-tantes de seus antigos locais de trabalho, consumo, lazer esociabilidade. As ameaças serneadas pelos discursos da BelleÉpoque arrastavam-se à era das metrópoles gigantescas, ape-

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gando-se inutilmente aos preconceitos que olvidavam oquanto já era impossível prescindir das vizinhanças ernpobre-cidas ou resistir a elas.

A marginalidade ainda propalada por grande parte dosagentes constituintes da opinião pública esbarrava, e esbarra,na imensa quantidade de empregados domésticos e conde-rniniais, comerciários, atendentes, toda sorte de trabalhado-res estáveis ou ambulantes de que se servem os moradores,consumidores, comerciantes e prestadores de servicos estabe-lecidos nos bairros privilegiados, que usufruem da própriaproximidade das favelas, mocambos ou cortiços.'?" A vizi-nhança, tão renegada, tornara-se cumulativa, tão necessáriaquanto incontornável, próxima mas arredia, quadro ernble-mático carioca que se repete e se reapresenta em Salvador,Porto Alegre, Recife, Belém, Fortaleza, Brasília, na orgulhosacapital paulista, em todas as grandes cidades brasileiras.

Ao longo das décadas seguintes ao fim do Estado Novo,as cidades brasileiras veriam a consolidação da proeminênciaquantitativa das populações urbanas sobre as rurais. A vio-lência em que se assentava o arranjo social brasileiro foi re-velando seus frutos nas grandes capitais, diluindo a margi-nalização espacial das habitações - e limite dos espaçosprivados. Fronteiras que se amenizam, seja por meio da cri-minalidade e da gigantesca escalada de homicídios, seja nocrescimento intenso das atividades econômicas informais _cuja ponta mais visível 'é a multidão de ambulantes nas ruas _,seja na própria impossibilidade de manter a qualidade arn-biental dos espaços públicos e das moradias. Cercados de gra-des, alarmes, cães, os espaços privados defendem-se com todaa parafernália que prolongue a idéia de que é possível manteros frutos da violência e da exclusão do lado de fora das por-tas que velam pelas habitações.

Vizinha de uma das maiores favelas cariocas, a do morroDona Marta, Laura Rodrigo Octávio, sobrinha de um ativoempreendedor imobiliário paulistano, viveu cem longos anosa parur de 1894, suficientes para conviver com todas astransformações sofridas por São Paulo e Rio de Janeiro após " /o advento republicano. Testemunha de um dos maiores sur-tos de urbanização havidos no mundo durante o século xx ede suas mazelas sociais, resignou-se com a violência que as-sola o cotidiano dos favelados, seus vizinhos, impotentes

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47. Os barracos do morro DonaMarta coroam a paisagemdo Botafogo, bairro que aindaguarda muitos dos mais suntuosospalacetes da Belle Époque carioca.Uma convivência forçada quese espalhou por todos os bairrosda Zona Sul do Rio de Janeirono decorrer do século XX. (Car/osChicarino, Favela Dona Marta,1987)

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IMIGRANTES: A VIDA PRIVADADOS POBRES DO CAMPO

Zuleika Alvim

como ela. Ao ser indagada sobre como conviver com os tiro-teios _121 em que as metralhadoras desconhecem qualquerlimite entre espaços públicos e privados -, respondeu lacô-nica, numa metáfora da vida das centenas de favelados, tãovulneráveis em seus pobres barracos como a senhora em seucasarão: "Se estiver com meu aparelho de surdez, tiro fora. Émuito desagradável ouvir as balas".

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