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DIOSMAR JOSÉ MEIRA DE ALMEIDA MARIO FILHO E O NEGRO NO FUTEBOL BRASILEIRO CURITIBA 2005

MARIO FILHO E O NEGRO NO FUTEBOL · PDF fileum dos principais autores a discutir a questão da ‘brasilidade’ do futebol. Em 1947, ele publica seu principal livro, O Negro no Futebol

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DIOSMAR JOSÉ MEIRA DE ALMEIDA

MARIO FILHO E O NEGRO NO FUTEBOL BRASILEIRO

CURITIBA 2005

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DIOSMAR JOSÉ MEIRA DE ALMEIDA

MARIO FILHO E O NEGRO NO FUTEBOL BRASILEIRO Monografia apresentada à disciplina Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Ribeiro

CURITIBA 2005

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Dedicado à Dona Oniva e Seu Diosmar.

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AGRADECIMENTOS A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a elaboração deste trabalho. Agradeço ao professor e orientador Luiz Carlo Ribeiro pelo acompanhamento, incentivo e críticas que propiciaram um maior aprofundamento nas questões polêmicas da pesquisa. Meu especial agradecimento a todos os professores do Departamento de História, e funcionários da UFPR. Minha gratidão a Diosmar Francisco e Leocádia Oniva, por apoiar e tornar possível meus estudos. As palavras de apoio e encorajamento dos amigos Hilton Costa, Jonas Pegoraro e Marcos Garcez. Rafael Galvão, por salvar as madrugadas.

Entre os muitos amigos não poderia deixar de mencionar, por razões diferentes e igualmente essenciais, Denise e Rodrigo Almeida, Gustavo Alonso, Márcio Gonçalves, César Santos, Helder de Souza, Milton Stanczyk, Lucia Moutinho, Fernando Kowalski, Cabecinha, Joey, Johnny, Dee Dee e Marky,. Todos que partilharam de diferentes formas a confecção deste trabalho suportando os momentos de inquietação e o mau humor durante a produção do trabalho

Ao Flamengo por me fornecer às primeiras alegrias e decepções em relação ao futebol.

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É falta na entrada da área Adivinha quem vai bater É o camisa 10 da Gávea

Ele tem uma dinâmica física, rica e rítmica Seus reflexos lúcidos

Lançamentos dribles desconcertantes Chutes maliciosos são como flashes eletrizantes

Estufando a rede num possível gol de placa

O galinho de Quintino chegou Com garra, fibra e amor

Pode não ser um jogador perfeito, mas sua malícia O faz com que seja lembrado

Pois mesmo quando não está inspirado Ele procura a inspiração

E cada gol, cada toque, cada jogada É um deleite para os apaixonados do esporte bretão

Camisa dez da Gávea – Jorge Ben, 1976 v

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SUMÁRIO RESUMO.......................................................................................................................... vii

1 INTRODUÇÃO............................................................................................................. 1

2 CAPÍTULO I - A Preleção........................................................................................... 5

3 CAPÍTULO II. - Mario Filho em campo...................................................................... 11

4 CAPÍTULO III - A construção de uma imagem de Brasil........................................... 19

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 31

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................. 34

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RESUMO

A partir da obra do cronista Mario Filho, O Negro no Futebol Brasileiro (1964), o trabalho monográfico desenvolvido apresentou uma discussão acerca da visão do autor sobre os jogadores negros no futebol brasileiro. Importante personagem na consolidação do futebol no Brasil durante as décadas de 1930 e 1940, Mario Filho nos forneceu um relato particular relacionando suas crenças e aspirações em relação ao futebol e ao próprio país. O Negro no Futebol Brasileiro busca construir uma explicação geral sobre o significado do futebol no país. Entretanto, a principal tese do livro é demonstrar como o futebol teve a capacidade de produzir um processo de democratização racial no país. Deste modo, e principalmente com esta obra, Mario Filho veio a se tornar referência base para uma quantidade considerável de estudos posteriores sobre o futebol. No livro, o autor descreve como o futebol nacional serviu de instrumento de ascensão social ao negro e ao mulato, contribuindo para sua integração à sociedade. Contudo, O Negro no Futebol Brasileiro funciona como uma história mítica, mais simbólica do que argumentativa sobre o processo de exclusão, popularização, democratização e construção do estilo brasileiro de futebol. Ao refletir, de certa forma, o clima de sua época, isto é, inclusos no contexto nacionalista das décadas de 1930 e 1940, Mario Filho com sua obra favoreceu a construção de uma mentalidade que valorizava a participação do elemento negro na formação da cultura brasileira. Nos permitindo assim ter acesso às formas pelas quais as pessoas representavam as relações raciais e as tensões que experimentavam dentro do universo do futebol. Mediante isso, lançou-se um olhar sobre como o autor construiu suas posições sobre os jogadores negros, bem como a diferente representação destes frente aos demais jogadores. A discussão que pretendemos conduzir neste trabalho tem como propósito analisar a abordagem de Mario Filho sobre o negro no futebol nacional. O interesse na discussão desta temática partiu em virtude do autor ter sido um dos primeiros autores a demonstrar a preocupação com a presença dos jogadores negros no futebol brasileiro. Palavras-chave: Mario Filho; futebol; negro.

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INRODUÇÃO

Reconhecido como uma manifestação cultural que apresenta ao mundo o nosso

estilo, hábitos ou alegria, o futebol é protagonista de um processo de identificação

construído por diferentes agentes sociais em interação. Como tudo que existe na sociedade

brasileira, o futebol também é uma das várias formas para a dramatização de problemas

importantes. Assim o futebol praticado, vivido e teorizado no Brasil seria um modo

específico pelo qual a sociedade fala, revela-se, deixando-se descobrir.

Ao tornar o futebol um tema de pesquisa histórico, nos juntamos a milhares de

aficionados pelo jogo, que das arquibancadas certamente tinham a noção de que no Brasil,

o futebol é uma coisa séria. Ao partilharmos este universo do futebol, entramos em contato

com uma dimensão da cultura brasileira. O interesse pelo futebol iniciado neste ambiente

de arquibancada e os conhecimentos adquiridos nos bancos da Universidade, nos levaram a

estudar o nome estampado na entrada de um dos maiores estádios do mundo. O majestoso

Maracanã, o Estádio Jornalista Mario Filho. Estádio assim batizado devido ao empenho

deste jornalista, que muito incentivou sua construção.

Mario Rodrigues Filho (1908 – 1966), jornalista, considerável cronista esportivo,

não apenas incentivou a construção do famoso estádio, como também foi importante

personagem na consolidação do futebol no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. Cronista

esportivo, Mario Filho destaca o lado humano e romântico do futebol em sua produção, que

se estende a partir do final dos anos 1920, até, o fim de sua vida. Autor de diversas obras

literárias, entre elas Histórias do Flamengo (1935) e Viagem em torno de Pelé (1964), foi

um dos principais autores a discutir a questão da ‘brasilidade’ do futebol.

Em 1947, ele publica seu principal livro, O Negro no Futebol Brasileiro (1964)1,

em que analisa a presença do negro no esporte. Mario Filho propõe uma discussão a

respeito do papel do negro no futebol nacional. Esta observação sobre o negro no futebol

1 FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S.A., 1964.

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feita pelo autor é localizada principalmente a partir da primeira metade do século vinte,

período em que o futebol foi, introduzido e popularizado no Brasil.

O livro de Mario Filho descreve como o futebol no Brasil serviu de instrumento de

ascensão social ao negro e ao mulato, contribuindo para sua integração à sociedade. Neste

sentido o futebol também favoreceu para formação de uma mentalidade que valorizava a

participação do elemento negro na formação da cultura brasileira. Em sua primeira edição

de 1947 (Irmãos Pongetti Editores), o livro trazia o título O Negro no Foot-Ball do Brasil,

que se alterna ao longo do livro entre O Negro no Foot-Ball do Brasil e O Negro no Foot-

Ball Brasileiro.

Mario publica em 1964 uma segunda edição do livro, com o título, O Negro no

Futebol Brasileiro (Editora Civilização Brasileira), e com acréscimos de dois novos

capítulos, que desdobra a análise até 1962. Nesta atualização de sua obra, o autor apresenta

as conseqüências do desfecho da Copa de 50, destacando um renascimento das teorias

sobre a inferioridade racial do Brasil. Para a elaboração deste trabalho utilizaremos a

segunda edição do livro.2

O livro busca construir uma explicação geral sobre o significado do futebol no país.

Entretanto, a tese central do livro é demonstrar como o esporte teve a capacidade de

produzir um processo de democratização racial no Brasil. Mario Filho e principalmente a

obra em questão tornaram-se uma espécie de referência base para uma quantidade

considerável de estudos posteriores sobre o futebol. Segundo Plínio de Campos Negreiros,

“essa obra tornou-se clássica, a ponto de continuar sendo a matriz da maioria das análises

acerca do futebol”.3

Sobre esta obra, Matthew Shirts chama atenção, “se, por um lado, este tema veio à

luz com O negro no futebol, por outro, deve-se lembrar que a brasilidade aparece nesta

obra, sobretudo nos últimos dois capítulos publicados na segunda edição de 1964”.4 Porém,

é conveniente lembrar que grosso modo, a literatura futebolística não é produzida por

2 A terceira edição deste livro foi em 1994 (Editora Firmo), com modificação do texto das orelhas do livro. Existe também uma quarta edição da obra, de 2003 (Mauad Editora), que resgata as notas ao leitor e textos de orelha das edições anteriores. Por questão de acesso, utilizamos a quarta edição da obra de 2003, que é a mesma de 1964, salvo os acréscimo de algumas notas ao leitor. 3 NEGREIROS, P. Futebol nos anos 1930 e 1940: construindo a identidade nacional. In: HISTÓRIA: questões & debates. Curitiba, PR : Ed. da UFPR, ano 20, n. 39, julho / dezembro. 2003. p. 126. 4 SHIRTS, M.G. Literatura futebolística: uma periodização. In: MEIHY, J.C.S., WITTER, J.S. (org.) Futebol e cultura: coletânea de estudos, São Paulo: Imprensa Oficial: Arquivo do Estado, 1982. p. 53-55.

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intelectuais ou pesquisadores, com a intenção de analisar criticar, muito menos transformar

a sociedade. É uma literatura produzida por jornalistas, ex-jogadores, técnicos, cronistas,

simplesmente narra os acontecimentos e suas histórias, sem articular o futebol com a

História.5

***

Mesmo com as mudanças ocorridas em quase meio século de intervalo existente

desde quando Mario Filho publicou sua principal obra, a discussão a respeito da

participação do negro no futebol nacional permanece. Mario Filho em O Negro no Futebol

Brasileiro constrói um panorama do futebol brasileiro repleto de sentimentos e

expectativas, e é nesse cenário que esse texto é baseado.

Neste sentido, nos interessa observar a representação do negro no futebol brasileiro

a partir do citado livro de Mario Filho. O que nos chamou a atenção foram suas posições a

respeito do papel do negro no futebol brasileiro. A discussão que pretendemos conduzir

neste trabalho tem como propósito analisar a abordagem do autor sobre o negro no futebol

nacional.

Deste modo, buscaremos entender como Mario Filho constrói suas posições a

respeito dos jogadores negros. Tentaremos analisar o porque da imagem, dos jogadores

negros é construída de maneira relativamente diferente, pelo autor, das imagens dos demais

jogadores brasileiros.

A opção por este autor não é arbitrária. Dá-se porque Mario Filho, que produz a

obra em questão no final da década de 1940, foi um dos primeiros autores a demonstrar

uma preocupação com o estudo do elemento negro no futebol. Importante personagem no

processo de consolidação do futebol no Brasil durante as décadas de 1930 e 1940, Mario

5 SHIRTS, M.G.. Futebol no Brasil ou football in Brazil? In: MEIHY, J.C.S., WITTER, J.S., op. cit., p. 93.

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nos forneceu um testemunho particular sobre futebol, relacionado com suas crenças e

aspirações em relação ao jogo e ao próprio país.6

Crônicas que enfocam os acontecimentos do cotidiano, mantendo assim uma relação

intima com o tempo vivido. A crônica esportiva, uma variação da notícia, trouxe a narração

aos jornais, que mesmo prezando pela objetividade dos fatos, é fácil notarmos ausência

com o comprometimento dos fatos. Com suas particularidades, a crônica, nos permite

atentar para os fatos do cotidiano, aparentemente sem importância. Segundo Ronaldo Helal

(2001), os acontecimentos descritos em O Negro no Futebol Brasileiro “expressam

justamente sua força histórica quando nos permitem o acesso às formas pelas quais as

pessoas representavam as relações raciais e as tensões que experimentavam dentro do

universo do futebol” 7. Ainda nas palavras de Helal, o livro de Mario Filho “continua a ter

validade histórica, uma vez que não foi urdida sobre o vácuo e sim sobre um contexto

social bem conhecido” 8.

O que nos chamou a atenção foram suas posições a respeito do papel do negro no

futebol brasileiro. Assim procuraremos localizar o período em que este autor produz seu

texto sobre o assunto mencionado. A partir desta localização buscaremos entender como ele

constrói suas posições a respeito dos jogadores negros. Buscando analisar o porque da

imagem, dos jogadores negros é construída de maneira relativamente diferente, pelo autor,

das imagens dos demais jogadores brasileiros.

6 PEREIRA, L. Footballmania : uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902-1938. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2000. p. 15. 7 HELAL, R. A invenção do país do futebol : mídia, raça e idolatria / Ronaldo Helal, Antonio Jorge Soares, Hugo Lovisolo. Rio de Janeiro : Mauad, 2001. p. 56. 8 Ibid., p. 56.

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CAPÍTULO I

A Preleção

Ao recorrermos à literatura, acadêmica ou não, sobre o passado do futebol

brasileiro, temos a impressão de ler sempre o mesmo texto. De modo geral, em quase todas

essas produções sobre o futebol no Brasil existem três momentos narrativos precisos, que

estão integrados ou unidos intimamente.

Começa com a chegada do futebol inglês e elitista ao país, que destaca a segregação

de negros e pobres na prática do esporte. O futebol aparece no final do século XIX, como

uma novidade moderna e elegante, introduzido no Brasil por imigrantes europeus e jovens

que traziam da Europa as novidades do novo esporte. Num segundo momento, que se

localiza no período de popularização do esporte, o amadorismo era o regime vigente no

futebol brasileiro, tornando evidente a participação de negros e operários, antes excluídos.

Não permitindo mais caracterizar o futebol como uma prática restrita somente a um grupo.

E um terceiro momento, iniciado na década de 1930, a literatura destaca a democratização

do esporte, a ascensão e afirmação do negro no futebol nacional. O processo de

popularização e maior participação dos excluídos no futebol teria como conseqüência um

maior entusiasmos pelos jogos dos selecionados nacionais, possibilitando a construção de

uma identidade geral entre os brasileiros.

O interesse pela história do futebol deve levar em consideração que o jogo, que para

além da permanência das mesmas regras e das mesmas questões, pode não ocupar o mesmo

lugar nem a mesma função a uma ou duas gerações de distância na configuração do lazer e

nas suas relações com a política, em particular com o Estado e com o mundo econômico.

Entretanto, torna-se impossível analisar o futebol dissociado das mudanças estruturais da

sociedade capitalista do final do século XIX e XX, como a expansão do mercado e da

cultura ocidental. Período de grandes mudanças na sociedade brasileira, caracterizado pela

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formação de mercado livre provocado pelo fim da escravidão, e as transformações causadas

pela proclamação da República.

Podemos acrescentar a essas mudanças, as novas formas de relações sociais

provocada por viver em cidades, mudança de comportamento causado pelo uso do bonde,

da iluminação publica e pelo intenso convívio social. Mudanças que se refletiam no plano

individual da sociedade como o desejo de individualização e interdependência entre as

pessoas.

Neste sentido, a discussão sobre uma bibliografia para a história do esporte ganha

importância, por considerarmos que de certa forma o tema ser obscuro no meio

historiográfico. De qualquer modo, é importante registrarmos a existências de algumas

obras recentes sobre o estudo do esporte e do futebol.

Como podemos notar na produção, A Invenção do País do Futebol (2001)9,

Ronaldo Helal, Antonio Jorge Soares e Hugo Lovisolo nos proporciona uma crítica sobre o

livro de Mario Filho. Os autores entendem que o livro de Mário se equivoca justamente no

enfoque sociológico, ao afirmar que o negro teria sido o criador do estilo brasileiro de se

jogar futebol. Assim, a utilização de O Negro no Futebol Brasileiro por sociólogos criou

uma espécie de interpretação única, muito ajustada com os ideais da construção de uma

nação brasileira com menos antagonismos entre as raças. Antonio Jorge Soares reconhece a

importância do livro de Mario Filho, mas diz que o livro foi utilizado de maneira

equivocada pelos cientistas sociais. Pois de modo geral, quando os estudiosos decidiram se

debruçar sobre a história social do futebol e discutir o seu papel na sociedade brasileira,

encontraram apenas a obra do jornalista.

Desta maneira, Mario e seu livro, O Negro no Futebol Brasileiro se tornaram de

certo modo referências incontestáveis de pesquisa da história do futebol brasileiro. Para os

autores, o equívoco não seria de Mário Filho, mas da forma com que especialistas acabaram

franqueando a tese do autor, como a construção do ídolo negro, que seria mais uma

narrativa romântica que perseverou.

Para estes autores, o racismo poderia ser preexistente na sociedade, mas o futebol

brasileiro se formou mais pela pressão do profissionalismo, pela criação das ligas, do que

9 HELAL, Ronaldo; LOVISOLO, Hugo; SOARES, Antonio Jorge. A invenção do país do futebol : mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro : Mauad, 2001.

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propriamente por racismo. Soares salienta que Mário Filho buscou constituir uma

identidade nacional, cujo enfoque tem influência do meio em que viveu.

Apesar do fato de ser resultado de uma época e de um lugar, O Negro no Futebol

Brasileiro não possui desmerecimento algum em ser questionável do ponto de vista

sociológico. Tal questionamento visa apenas que Mário Filho seja encarado como fonte,

mas não como matriz inconstetável.

Já, Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, que procura decifrar nas crônicas

sobre futebol de José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues uma reflexão sobre a

identidade cultural brasileira. Com o trabalho Com brasileiro não há quem possa (2004)10,

a autora nos fornece um panorama quanto à trajetória intelectual e profissional de Mario

Filho.

Mais um autor dedicado a estudar o futebol é Leonardo Affonso de Miranda Pereira,

apresenta um contexto do futebol brasileiro nos primeiro anos de século XX,

principalmente do Rio de Janeiro. Pereira nos mostra em Footballmania (2000)11, que

durante os anos de 1930 e 1940, Mário Filho seria grande incentivador do futebol. Porém a

maior contribuição dada por ele foi à criação de uma imagem nacional do futebol. Seguindo

a tese defendida pelo sociólogo Gilberto Freyre, que atribuía positividade à herança racial

brasileira, Mário Filho afirmava que o futebol brasileiro era especial porque mesclava a

disciplina e a rigidez européia à ginga e malandragem que via como inata aos negros e

mestiços. Em outras palavras, “essa percepção fazia com que finalmente jornalistas e

intelectuais reconhecessem uma presença negra nos gramados que já se fazia notar desde os

primeiros tempos do futebol”.12

Luiz Henrique Toledo, com No país do futebol (2000)13, nos expõe um breve

histórico do futebol brasileiro, privilegiando a análise das mudanças de regras e táticas do

jogo, assim como o papel do torcedor no sentido simbólico futebol e suas formas

particulares de torcer.

10 ANTUNES, Fátima. Com brasileiro, não há quem possa : futebol e identidade nacional em José Lins do Rego, Mario Filho e Nelson Rodrigues. São Paulo : Editora UNESP, 2004. 11 PEREIRA, Leonardo. Footballmania : uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902-1938. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2000. 12 PEREIRA, L. op. cit., p. 343. 13 TOLEDO, Luiz. No país do futebol. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2000.

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Entre os autores que compartilham do objetivo de analisar as ocupações e

preocupações que se formam em torno do futebol acrescentamos também Gisella de Araujo

Moura. Em O Rio corre para o Maracanã (1998)14, a autora examina o contexto da Copa

de 1950, relacionando o período ao projeto de difundir o futebol no Brasil, particularmente

no Rio de Janeiro, e de incorporá-lo como um dos traços mais característicos da cultura

brasileira.

Contamos também com Gilberto Agostino que em Vencer ou morrer (2002)15,

aborda o futebol ao longo de uma periodização que remete as relações entre Estado e

futebol, especialmente estados autoritários, as formas de apropriação do prestígio de um

esporte de massa e a tentativa de galvanizar em proveito próprio a fama de jogadores e

escretes. Assim como a relação entre a constituição de selecionados nacionais e a projeção

de um imaginário sobre a nação.

Considerando os motivo que ao longo das primeiras décadas do século XX, alguns

setores da sociedade apreendem as práticas esportivas e passam a cultuá-la no seu projeto

de sociedade. Ricardo de Figueiredo Lucena destaca em O Esporte na Cidade (2001)16 o

contexto em que o esporte como um componente de diferenciação manifestado na vida

cotidiana das cidades.

Discutindo a história e a sociologia das questões específicas do futebol, Richard

Giulianotti em Sociologia do Futebol (2002) examina o surgimento social do futebol e a

difusão do global do futebol.

Entre as mais recentes publicações sobre o estudo do futebol, encontramos História:

Questões & Debates (2003)17, especialmente dedicada ao tema esporte e sociedade. Que

nos põe diante, entre outros artigos sobre futebol, o texto de Plínio José Labriola de

Campos Negreiros, ‘Futebol nos anos 1930 e 1940’ em que discute o contexto

apresentando relações entre futebol e identidade nacional. Enfocando a Copa do Mundo de

1938 e a construção do estádio do Pacaembu, estabelecendo um diálogo com a política

autoritária vigente.

14 MOURA, Gisella. O Rio corre para o Maracanã. Rio de Janeiro : Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. 15 AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer : futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro : FAPERJ : Mauad, 2002. 16 LUCENA, Ricardo. O esporte na cidade : aspectos do esforço civilizador brasileiro. Campinas, SP : Autores Associados, chancela editorial CBCE, 2001. 17 HISTÓRIA: Questões & debates. Curitiba, PR : Ed. da UFPR, ano 20, n. 39, jul/dez,2003.

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No Rio de Janeiro o futebol apareceu nos primeiros anos do século XX, praticado

inicialmente por ingleses. O jogo é rapidamente assumido por grupos de estudantes que

voltavam da Europa, trazendo as novidades do esporte. Assim esses jovens de elite

procuravam mimetizar hábitos e costumes europeus, como práticas aristocráticas.

Preocupada na construção de uma identidade nacional, esta elite percebeu no novo jogo

uma forma de adquirir novos hábitos, que rompessem com os hábitos de um passado

colonial marcado pela escravidão. Destacamos aqui que o Brasil do final do século XIX e

início do XX era um país em busca de caminhos

Em linhas gerais, na América Latina, as relações comerciais com os ingleses

mostraram-se como principal canal para a difusão do futebol. Sendo vital para a difusão

internacional do futebol a influencia política e cultural inglesa.

È necessário registrar alguns pontos importantes para compreendermos à dinâmica

do futebol na Europa e, como decorrência, sua inserção na sociedade brasileira. Um ponto

de destaque é a fundação em 1863, em Londres da The Foot-ball Association, nome

mantido até hoje pela liga inglesa de futebol. Mais tarde a criação da International Board,

em 1891, envolveu a participação de diversos clubes europeus e de certa forma definiu a

estrutura moderna do esporte que conhecemos hoje18, ainda hoje as leis do futebol são

reguladas pela entidade. Porém não cabe aqui apresentarmos a tese sobre a formação e

desenvolvimento do futebol na Europa.

É significativo destacar que no Rio de Janeiro durante os primeiros anos do século

passado, misturavam-se negros e imigrantes de diversas nacionalidades. Com o ingresso no

Brasil de milhares de imigrantes europeus, seria inevitável que o futebol também viesse

para o país como parte da cultura desses povos. Afinal na Europa o futebol já era, de certa

forma difundido a partir da segunda metade do século XIX. Desta forma, de acordo com

Leonardo Pereira (2000), o futebol constituiu um “eficaz meio de comunicação entre esses

18 SALDANHA, J. O futebol. Rio de Janeiro: Bloch, 1971. p. 17-32.

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grupos,..., capaz de atribuir diferenças e identidades, assumindo papel central na vida do

carioca das primeiras décadas do século”.19

19 PEREIRA, L. op. cit., p. 16.

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CAPÍTULO II

Mario Filho em campo

O jornalismo marca a trajetória de vida de Mario Filho, nascido em 3 de junho de

1908 em Recife, Pernambuco, e falecido em setembro de 1966 no Rio de Janeiro. Seu pai,

Mario Rodrigues, advogado pernambucano entra para o jornalismo político em 1911 no

Recife. Devido a divergências provocadas pelo seu trabalho, transfere-se para o Rio de

Janeiro, então capital federal, em 1916, logo em seguida passa a exercer a função de editor

do Correio da Manhã. Em 1925 Mario Rodrigues funda A Manhã. Já em 1926, Mario

Rodrigues Filho, o terceiro, dentre os quatorze filhos, do jornalista pernambucano, começa

trabalhar de gerente no jornal, dirigindo a pagina literária. Assume em 1928 a página de

esportes, considerada a menos importante do jornal, porém Mario revolucionaria o

jornalismo esportivo, que na época se limitava apenas a informar resultados ou divulgar os

eventos. Geralmente chamava-se o jogo de prélio e o campo de aprazível field, referência

ilustrativa da pequena repercussão das coberturas esportivas em meio às camadas

populares.

A transformação, segundo Fátima Antunes, se iniciou com a entrevista feita com

Marcos Mendonça, na época goleiro do Fluminense. Mais que a notícia em si, o impacto foi

causado pela forma como Mario Filho escreve, sepultando qualquer tipo de formalismo de

expressão. O grande espaço dedicado para a entrevista, a ‘linguagem de arquibancada’,

Mario Filho transforma a notícia em fato esportivo, dramatizando, aproximando o torcedor

da vida do clube, favorecendo os processos de identificação. As inovações também seriam

adotadas por outros jornais, acompanhando o aumento da popularidade do futebol, o

crescimento do publico leitor e a mobilização favorável à oficialização do futebol

profissional.20

20 ANTUNES, F. op. cit., p. 125.

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Em 1928 Mario Rodrigues, endividado, lança Crítica, jornal com curto período de

existência, Mario Filho novamente fica à frente da página de esportes, e segue com suas

inovações. Mario Rodrigues morre em 1930, Mario Filho, então com 21 anos, e seus

irmãos assumem a direção de Crítica. Porém por pouco tempo, o jornal seria fechado pelas

tropas de Getúlio Vargas, pois apoiava o candidato Washigton Luís.

Convidado por Roberto Marinho, em 1931 Mario Filho passa a dirigir a página de

esportes de O Globo. Entusiasmado com a idéia de aproveitar o envolvimento de seus

irmãos Milton, Nelson e Jofre com o esporte, Mario Filho decide criar seu próprio jornal,

totalmente dedicado aos esportes. Lança em meados de 1931 o Mundo Esportivo, cuja

direção procurou conciliar com o trabalho em O Globo. Mundo Esportivo seria um jornal

de vida breve, pois foi lançado em meio às férias do futebol. Recorrendo a criatividade para

não fechar, promove o primeiro concurso de escolas de samba, que foi um sucesso.

Organizado novamente no ano seguinte, desta vez pelo O Globo, pois Mundo Esportivo não

existia mais.

Mario Filho fracassara com seu jornal exclusivamente esportivo de vida efêmera,

durara apenas oito meses. Contudo, continuara como diretor de O Globo, estabelecendo

assim contatos e relacionamentos com pessoas ligadas ao meio esportivo, especialmente o

futebol. Em 1932, consegue verba para o cafezinho dos entrevistados, entrevistas estas

geralmente realizadas no Café Nice, que desde então virou ponto de encontro e referência

para pessoas ligadas ao futebol, logo seguido também por sambistas.

Nesse período as discussões sobre adoção ou não do profissionalismo no futebol

eram tema recorrente, Mario Filho sai em defesa do profissionalismo. Acreditava que o

jogador deveria ser pago para jogar futebol, pois confiava que o jornalismo esportivo seria

beneficiado com o desenvolvimento do futebol profissional. Mesmo a imprensa já

contribuía para a popularização do futebol, na medida que dava mais atenção ao assunto.

As transmissões de rádio a partir do inicio dos anos 1930 também contribuíram para o

aumento da popularidade do futebol.

Em 1936, com o considerado prestígio nos meios esportivos e na imprensa compra

de Agemiro Bulção o jornal de páginas cor-de-rosa, o Jornal dos Sports, encorajado e

financiado por seus amigos. Com o jornal, Mario seguia com o seu desejo de possuir um

jornal dedicado exclusivamente a valorizar e divulgar os esportes. O Jornal dos Sports

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tornou-se um dos mais conceituados periódicos do país no gênero esportivo, sendo

publicado até os dias de hoje.

Através das páginas se seu jornal, Mario Filho seria um dos principais defensores da

construção de um novo estádio para a Copa do Mundo de 1950. Liderou através de crônicas

constantes a campanha pela construção de um estádio para a Copa do Mundo de 1950. De

acordo com Gisella de Araujo Moura “as primeiras palavras publicadas na imprensa sobre a

necessidade de construir um estádio moderno no Rio de Janeiro apareceram nas páginas do

Jornal dos Sports em maio de 1947”.21 Insistindo na importância de se construir um estádio

como prova da capacidade de realização do povo brasileiro.

Na época o então vereador da União Democrática Nacional (UDN) do Rio de

Janeiro, Carlos Lacerda defendia construção de um estádio com capacidade de público

menor numa outra região da cidade. Lacerda questionava a escolha da localização do futuro

estádio, insistindo que fosse construída uma vila olímpica em um outro ponto do Rio,

exigia também a realização de um novo concurso de projetos.

Criada esta disputa, estaria ao lado de Mario Filho, o presidente da Federação

Metropolitana de Futebol, Vargas Netto, e Ary Barroso, compositor, radialista e vereador

pela UND. “O Jornal dos Sports transporta os debates para suas páginas, identificando os

vereadores contrários ao estádio como contrários ao interesse do povo”.22 Ou seja, esta

discussão se resumia em dois pontos: a necessidade da construção de um novo estádio ou a

reforma do estádio Vasco da Gama, São Januário. Na possibilidade de construção do novo

estádio, a questão seria em que local da cidade e quem financiaria a obra. Ao final da

disputa, em junho de 1950 é inaugurado o Estádio Municipal, conhecido como Maracanã.

O conhecimento acumulado, ao longo da profissão, possibilitou que Mario Filho

também se destacasse como cronista, o que leva Fátima Antunes a chamar o autor, um

pretenso historiador do futebol. Desde 1942, Mario Filho publicava em O Globo a coluna

“Da Primeira Fila”, na qual apresentava ao público suas investigações sobre a história do

futebol do Rio de Janeiro, exibindo assim sua habilidade como pesquisador. Mais tarde,

esses escritos foram reunidos e publicados na forma de livro, sob o título de O Negro no

Foot-Ball do Brasil, em 1947.

21 MOURA, G. op. cit., p. 25. 22 Ibid., p. 30.

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***

O livro de Mario Filho descreve como o futebol no Brasil serviu de

instrumento de ascensão social ao negro e ao mulato, contribuindo para sua integração à

sociedade. Neste sentido o futebol também favoreceu para formação de uma mentalidade

que valorizava a participação do elemento negro na formação da cultura brasileira. O

futebol, nas primeiras décadas do século XX, forneceu uma linguagem de experiências

comuns para uma população ausente de símbolos nacionais. Do mesmo modo permitiu que

nos anos seguintes a tentativa de fazer do futebol uma imagem coesa e harmônica do

sentimento nacional.

A presença de negros na seleção era apresentada como símbolo da democracia

racial, idéia que ganhava projeção nos anos de 1930 a partir das teses de Gilberto Freyre.

Autor de uma série de trabalhos sobre identidade nacional e desporto, afirmava que um dos

trunfos da seleção brasileira era exatamente a mestiçagem, conferindo aos brasileiros um

estilo de jogo todo original.23 Importante ressaltar que o autoritarismo presente no Brasil

consolidado enquanto experiência de poder com o Estado Novo, não se manteria alheio ao

futebol.

A pedido de José Lins do Rego, Gilberto Freyre escreve o prefácio do livro de

Mario Filho. José Lins do Rego, escritor e romancista era também dirigente do Flamengo e

membro de entidades esportivas. Freyre saudou a obra como a primeira no país a estudar o

futebol “mais próximo do que nunca daquela sociologia dos esportes” 24, situando-a como a

história do futebol no Brasil dentro da “história da sociedade e da cultura brasileira na sua

23 AGOSTINO, G. op. cit., p. 143. 24 FREYRE, G. Prefácio à primeira edição. In: FILHO, MARIO. O negro no futebol brasileiro. 4ª edição – Rio de Janeiro : Mauad, 2003. p. 26.

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transição para a fase predominantemente urbana” 25. No prefácio avança também na

oposição entre “apolíneos” e “dionisíacos” rumo à herança atávica da autenticidade

brasileira, enxergando no futebol a sublimação de “vários daqueles elementos irracionais

de nossa formação social e de cultura” 26 - citando, novamente, a capoeiragem e o samba ao

lado da “molecagem baiana” e da “malandragem carioca”. Segundo Freyre,

Com esses resíduos é que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é. A dança dançada baianamente por um Leônidas; e por um Domingos, com uma impassibilidade que talvez acuse sugestões ou influências ameríndias sobre sua personalidade ou sua formação. Mas, de qualquer modo, dança.27

Mario Filho e José Lins do Rego eram amigos e tinham amizades em comuns,

freqüentavam as tribunas de estádios e os mesmos pontos de encontros de intelectuais. No

caso, freqüentadores da Livraria José Olympio, na época a terceira maior editora do país.

José Olympio era simpático ao getulismo, fato que certamente teria influenciado na escolha

do corpo de autores da sua editora.

Como outros intelectuais de sua época, Mario Filho, viveu no contexto do intenso

movimento de interesse renovado pelo Brasil. Afinados com o seu tempo, levaram algo das

concepções dos ‘estudos brasileiros’ que insistiam na definição do caráter nacional, às suas

reflexões cotidianas. O cronista também tentava explicar o Brasil e seu povo, porém

baseados nos fatos do futebol. De acordo com Fátima Antunes, “Gilberto Freyre era

considerado o grande mestre, cultuado e reverenciado” 28 nesta roda de intelectuais ligados

a Livraria José Olympio.

Para Daniel Pécaut, existe um enorme contato entre o campo intelectual e

político. Desta maneira, para os intelectuais que pretendiam falar em nome da nação, o

mais importante era convencer de que esta já existe. Tudo servia para prová-lo, como a

maneira de ser do brasileiro, a cultura, o povo.

Fundamental salientar esta relação de Mario Filho com Gilberto Freyre, não por

acaso que o sociólogo escreveu o prefácio da obra em questão. O Negro no Futebol

25 Ibid., p. 24. 26 Ibid., p. 24. 27 Ibid., p. 25. 28 ANTUNES, F.. op. cit., p. 37.

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Brasileiro marca uma mudança no discurso futebolístico nacional, o autor introduz a

“brasilidade” no futebol.

Evidente que o Mario Filho foi fortemente influenciado por Gilberto Freyre, e

transporta para o futebol suas teorias sobre a integração das raças no Brasil.29 A visão de

Mario Filho, como outros intelectuais, artistas escritores de sua época, tinham a crença em

um Brasil que em poucos anos teria passado da escravidão, para a integração racial, via

mestiçagem. Podemos dessa maneira pensar o Negro no Futebol Brasileiro como um texto

afinado com a construção do sentido de nacionalidade de sua época.30 Em linhas gerais a

posição de Mario Filho é simples, não havia negros no futebol antigamente, agora existe,

portanto o Brasil seria um país racialmente democrático.

De acordo com Soares geralmente não se considera que Mario Filho teve a

influência dos anos 1930 e 1940 marcados pela mentalidade nacionalista e esperança na

conciliação racial. Ou seja, o período turbulento dos anos 1930, que no Brasil se

autoproclamam um “reinício dos tempos”, necessitava de uma nova maneira para definir

sua experiência. Conforme Angela de Castro Gomes, neste caso dos anos de 1930, essa

nova definição nos levaria a duas palavras: democracia social.31

Por isso, devemos ressaltar a importância da construção deste projeto em uma de

suas dimensões centrais. Ela diz respeito à concepção verdadeiramente ‘revolucionária’ da

fórmula institucional adotada pelo novo regime que passou a se autodefinir como uma

democracia social.32

Este novo sentido do ideal democrático era sintetizar a essência do projeto do

Estado Novo, conduzindo suas formulações na dupla direção do passado e do futuro

revolucionário do país. Neste sentido, o regime concebeu a realidade que deixa ser

construída a partir de esquemas interpretativos, e diagnósticos afirmavam sua legitimidade

diante um passado tanto recente, quanto remoto. Projetar um novo Estado significava

buscar suas origens. E isto, significava reescrever a historia do país, debruçar-se sob o

passado naquele sentido mais profundo em que significa tradição.

29SHIRTS, M.. Literatura Futebolística: uma periodização In: MEIHY, J.C.S., WITTER, J.S. (org.) Futebol e cultura: coletânea de estudos, São Paulo: Imprensa Oficial: Arquivo do Estado, 1982. p. 53. 30SOARES, A.. op. cit., p. 16. 31GOMES, A.. A invenção do trabalhismo. São Paulo : Vértice, Editora Revista dos Tribunais ; Rio de Janeiro : Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1988. p. 215. 32Ibid., p. 206.

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Gilberto Agostino destaca que com a implantação do Estado Novo em 1937, a

relação de Getúlio Vargas com o futebol atinge sua dimensão mais expressiva com a

criação do Conselho Nacional de Desportos, vinculando a organização de atividades

esportivas ao Estado. Encarado como síntese da capacidade e originalidade pela

propaganda estadonovista, o futebol definitivamente transformara-se em brasileiro,

assumindo uma função crucial nos valores ideológicos governamentais.

A presença de negros na seleção era apresentada como símbolo da democracia

racial, idéia que ganhava projeção nos anos de 1930 a partir das teses de Gilberto Freyre.

Autor de uma série de trabalhos sobre identidade nacional e desporto, afirmava que um dos

trunfos da seleção brasileira era exatamente a mestiçagem, conferindo aos brasileiros um

estilo de jogo todo original.33 Dentre as obras de Freyre, é Casa-Grande & Senzala (1933)

que causa maior impacto à época. Ao retomar a temática racial sob a perspectiva teórica da

antropologia cultural norte-americana, Gilberto Freyre afirmava o papel positivo da

mestiçagem na formação da nacionalidade brasileira, invertendo o valor que até então lhe

era atribuído pelas teorias e análises sociais formuladas entre meados do século passado e o

início deste por autores como Nina Rodrigues e Oliveira Vianna.

Importante ressaltar que o autoritarismo presente no Brasil consolidado enquanto

experiência de poder com o Estado Novo, não se manteria alheio ao futebol. Durante o

Estado Novo marcado pela mentalidade nacionalista e a criação de uma democracia social,

a herança negra passou a ser vista não mais como um problema, mas como uma grande

vantagem. Que no caso do futebol, possibilitava aos times brasileiros a construção de outro

modelo de futebol, um futebol legitimamente brasileiro. Uma imagem da formação da

sociedade brasileira através de uma miscigenação harmoniosa, que tinha em Gilberto

Freyre um de seus artífices. Geralmente a postura dos preocupados em caracterizar uma

identidade nacional, utiliza-se do futebol a fim de apontar a democratização da vida.

Reunindo estereótipos difusos na tradição brasileira, Gilberto Freyre tende a um tipo

de análise que passa a explicar mobilidade social brasileira pelo jeito de ser. Com o tempo

suas teorias ganham forma e força, e em 1945 dizia: “o jogo brasileiro de foot ball é como

se fosse uma dança. Isto pela influencia, certamente, dos brasileiros de sangue africano, ou

que são marcadamente africanos na sua cultura: eles são os que tendem a reduzir tudo a

33 AGOSTINO, G. op. cit., p. 143.

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dança – trabalho ou jogo – tendência esta que parece se faz cada vez mais geral no Brasil,

em vez de ficar somente característica de um grupo étnico ou regional” 34. Os textos de

Freyre enaltecendo o futebol mulato de uma certa forma apresentavam-se como uma crítica

ao contexto da época.

34 Ver FREYRE, G Novo Mundo nos trópicos. Em MEIHY, J. Futebol e cultura: coletânea de estudos, São Paulo: Imprensa Oficial: Arquivo do Estado, 1982. p 15.

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CAPÍTULO III

A construção de uma imagem de Brasil.

Quando se começou a discutir a presença do futebol na sociedade brasileira a

principal referência que encontraram foi o livro do jornalista. Pois não existia um trabalho

de historiografia no futebol e todos se fundamentavam na síntese construída por Mário

Filho. Deste modo à carência de historiografia sobre o futebol converteu O Negro no

Futebol Brasileiro em um clássico, sem passar pelo rigor da crítica.

Assim novas narrativas alcançam legitimações acadêmicas sobre a obra do autor.

Parecendo que de fato, pouco se teria a acrescentar sobre o período coberto pela obra de

Mario Filho. Porém, a utilização do livro sem a confrontação de dados e interpretações faz

com que esses novos textos acabem incorporando o viés nacionalista que inspirou Mario

Filho.35

No livro, Mario Filho procura dar explicações sobre o sentido do futebol no Brasil,

descrevendo como o esporte serviu de meio de ascensão social ao negro e ao mulato,

contribuindo assim para a integração da sociedade. Certamente, O Negro no Futebol

Brasileiro e seu autor, foram marcados pela mentalidade nacionalista das décadas de 1930 e

1940, refletindo de certa forma o clima de sua época. Pois, como salientamos

anteriormente, é um texto ajustado com a construção da identidade nacional de sua época.

Formulações que vinha dando sustentação à política populista do Estado Novo.

Um dos principais argumentos de Antonio Soares em sua crítica sobre O Negro no

Futebol Brasileiro é de que Mario Filho, através de artifícios retóricos de legitimação,

disseminou a idéia de que a obra constituía uma descrição histórica objetiva das relações

raciais dentro do futebol. Encobrindo assim, um projeto de construção nacional baseada na

noção de harmonia e integração entre as raças formadoras da sociedade brasileira. Desta

35 SOARES, A. op. cit., p. 14.

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maneira, Mario Filho, superenfatizando a questão racial, buscava demonstrar como o

futebol teve uma participação decisiva na democratização racial. 36

Neste sentido, Soares aponta três momentos narrativos na obra de Mario Filho que

falam de segregação, resistência e integração nacional. Tentaremos aqui, utilizando estes

momentos narrativos apontados por Soares, observar como Mario Filho constrói sua

representação do negro no futebol.

Mario Filho certamente praticou sua criatividade de prosador para escrever crônicas

romanceadas sobre o futebol brasileiro, escolhendo e combinando as narrativas para

despertar o interesse e a curiosidade do leitor. Construindo assim, em O Negro no Futebol

Brasileiro, uma espécie de crônica romance que é um épico do negro no futebol brasileiro,

na qual os fatos são interpretados, remontados e reescritos como tramas raciais que

auxiliam a construção de uma identidade nacional. Ou seja, futebol, quando branco, era um

produto importado, quando preto e mestiço torna-se brasileiro.

***

No primeiro capítulo de O Negro no Futebol Brasileiro37, ‘Raízes do Saudosismo’,

o futebol seria um espaço reservado as elites. Representando que o futebol ainda era inglês,

e que muitos membros da colônia inglesa dividiam esse espaço com membros da elite

brasileira principalmente brasileiros que haviam estudado no exterior, onde aprenderam a

prática do futebol. De acordo com Soares a intenção era de armar uma trama para dizer que

o futebol do passado não tinha uma áurea poética. A idéia de um passado inglório para

explicar como uma história de glórias, via miscigenação e popularização, foi realizada no

futebol.

36 HELAL, R. op. cit., p. 53. 37 Por questão de acesso utilizamos aqui a quarta edição do livro

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Há quem ache que o futebol do passado é que era bom. [...] era uma época que se podia chamar de branca. Os jogadores claros, bem brancos, havia até louros nos times, ia-se ver: inglês ou alemão. Poucos morenos. Os mulatos e os pretos, uma raridade, um aqui, outro ali, perderam-se, nem chamavam atenção.38

Entretanto, notamos que Mario Filho faz uma diferenciação entre os clubes de

futebol, clubes grandes e pequenos, estes sendo definidos conforme sua localização na

cidade.

Assim se via melhor a diferença que havia, não entre brancos e pretos, entre clubes. Clubes de bairros, de subúrbios, da zona sul e da zona norte. Grandes e pequenos, cada um ficando no seu lugar, conservando as distancias.

Sem tentar nem se aproximar. Às vezes um ao lado do outro, o Fluminense e o Guanabara. O Guanabara do morro, da favela, o Fluminense cá de baixo, do bairro chique. Quem morava na casa de lata ia para o Guanabara, quem morava no palacete ia para o Fluminense.

O pessoal do morro podia no máximo torcer pelo o Fluminense. [...] Até como torcedor ele conhecia seu lugar. Na geral, olhando de longe a arquibancada, cheia de moças [...].39

Essa representação do saudosismo e as diferenças entre clubes pequenos e grandes

representariam preconceito no texto de Mario Filho, apesar do autor considerar que os

negros eram poucos nesse espaço social.

Um dos principais exemplos de Mario Filho no livro seria o caso do jogador mulato

Carlos Alberto, quando este se transferiu do América para o Fluminense.

Tudo como devia ser. Nada de mistura. Valia a pena ser Fluminense, Botafogo, Flamengo, clubes de brancos. Se aparecia um mulato, num deles, mesmo disfarçado, o branco pobre, o mulato, o preto da geral eram os primeiros a reparar. [...] Enquanto esteve no América, jogando no segundo time, quase ninguém reparou que era mulato. Também Carlos Alberto, no América não quis passar por branco. No Fluminense foi para o primeiro time, ficou logo em exposição. [...]

Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se para ele, por isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó-de-arroz, ficando quase cinzento. Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção. O cabelo de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto cinzento de tanto pó-de-arroz.40

38 FILHO, M. op. cit., p. 29. 39 Ibid., p. 41. 40 Ibid., p. 60.

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Entretanto, o capítulo termina com o conhecimento publico de Friedenreich, filho

reconhecido de pai alemão com mãe negra, que marcou o gol da vitória brasileira no

Campeonato Sul-Americano de 1919. Porém, isso seria um fato irrelevante, Mario Filho diz

que Friedenreich não se tornara herói por ter marcado o gol, mas especialmente por ser

mulato.

A popularidade de Friedenreich se devia, talvez, mais ao fato de ele ser mulato, embora não quisesse ser mulato, do que de ele ter marcado o gol da vitória dos brasileiros. O povo descobrindo, de repente, que o futebol devia ser de todas as cores, futebol sem classes, tudo bem misturado, bem brasileiro.

O chute de Friedenreich abriu caminho para a democratização do futebol brasileiro. Democratização que viria lentamente, mas que não pararia mais, a despeito de tudo. Da oposição do grande clube. O grande querendo ser mais branco que nunca.41

Deste modo, o autor anuncia Friedenreich como símbolo do inicio do processo de

democratização do futebol brasileiro. Porém notamos que Mario Filho, afirma ser mais

importante que a cor da pele do jogador, o meio social de origem destes jogadores.

Outros mulatos até tinham jogado futebol. Mulatos e pretos. Tinham jogado, jogavam mais que antes. Antes ninguém se preocupava com a cor. O que importava era o meio. Friedenreich não era do meio do Ipiranga? Carlos Alberto não era do meio do Fluminense? O Fluminense nem prestava atenção na cor do Carlos Alberto, moreno carregado, no cabelo escadinha que ele tinha Carlos Alberto, porém, entrando para o Fluminense, sentiu-se mais mulato. O único mulato num clube de brancos.42

Este primeiro capítulo do livro, em que Mario Filho prioriza a segregação no início

do futebol, nos possibilita observar que, através de suas generalizações o autor marca a

idéia de um futebol restrito as elites, portanto, não negro, e na seqüência apresenta uma

série de jogadores negros e mulatos que povoavam esses clubes. O autor também, em um

primeiro momento renuncia a condição desses jogadores se aceitarem como mulatos, para

depois exaltá-los como tal, privilegiando sua origem social.

41 Ibid., p. 69. 42 Ibid., p. 62

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No segundo capítulo, ‘O campo e a Pelada’, a intenção de Mario Filho é a de narrar

a forma pela qual camadas populares, em especial os negros, se socializaram com o futebol.

A separação entre brancos e negros, ricos e pobres continua sendo uma tônica neste

capitulo. Conforme Soares, “o negro encontrava-se afastado dos ‘grandes clubes’ e em

situação de dano”.43 Mas aos poucos, Mario Filho vai mostrando como os negros se

socializaram e ganharam visibilidade nesse espaço social. O autor ainda lembra que eles

eram alvos de preconceito. A popularização e a socialização do futebol são momentos

estratégicos na narrativa de Mario. Este capítulo estabelece inicialmente a separação entre

elites e populares. As elites possuíam o ‘ground’ ou ‘field’ para o aprendizado do futebol ao

melhor estilo inglês, e os populares possuíam apelada nos terrenos baldios.

Assim o preto, quando aprendia, era quase sozinho. As portas dos grandes clubes fechadas para ele. Das academias. A expressão academia, academia de futebol, significando o grande clube, onde se ensinava futebol de fato, nasceu na geral, não na arquibancada. O branco pobre, o mulato, o preto, estabelecendo a diferença entre o grande e o pequeno clube. A academia e a escola pública. [...] O branco dos field, dos grandes clubes, tendo ainda por cima um professor, o capitão do time gritando sem parar em inglês. O preto das peladas, das ruas, não tendo ninguém.44

Mario diz que o branco aprendia o futebol na academia, com professor e o preto e o

mulato aprendiam na escola pública, isto é na rua sem professor. Deste aprendizado na rua,

improvisado que nasceria a forma do negro aprender a jogar futebol à brasileira. Da

escassez e da intuição nasceria o estilo brasileiro de futebol. Segundo Soares, “é comum em

paises subdesenvolvidos a crença de que são mais criativos em função da escassez,

entretanto esses paises possuem um baixo registro de patentes se comparados com os paises

desenvolvidos” 45.

Depois de Mario marcar o papel marginal do negro, anuncia que a vantagem do

futebol branco estava com os dias contados. Utilizando como exemplo o clube da colônia

portuguesa, o do Vasco da Gama, segundo o autor, o clube teria aberto as portas para pretos

e mulatos seguindo a boa tradição portuguesa da mistura.

43 SOARES, A.. op. cit., p. 19. 44 FILHO, M.. op. cit., p. 73. 45 SOARES, A.. op. cit., p.20.

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Um clube da segunda divisão, porém, subiu para a primeira divisão. Chamava-se Clube de Regatas Vasco da Gama, e toruxe com eles, mulatos e pretos. Nelson Conceição, que tinha saído do Engenho de Dentro, mulato; Ceci, do Vila Iasabel, quase preto; Nicolino, do Andaraí, preto. Outros brancos, alguns mal sabendo assinar o nom. O Vasco, clube da colônia, seguia a boa tradição portuguesa da mistura.46

A reação dos grandes clubes a vitória do Vasco no campeonato de 1923, destacada

pelo autor, foi à criação de uma nova liga de futebol como protesto, a AMEA (Associação

Metropolitana de Esportes Atléticos). A vitória do Vasco reforçou a ideologia contraria a

ascensão de grupos dominados da população. Segundo Antonio Soares, esta seria a prova

de preconceito racial segundo a interpretação dominante.

...os clubes finos da sociedade, como se dizia, estavam diante um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times de brancos. Um time de brancos, mulatos e pretos era o campeão da cidade. Contra esse time, os times de brancos não tinham podido fazer nada. [...] Era uma verdadeira revolução que se operava no futebol brasileiro. Restava saber qual seria a reação dos grandes clubes.47

Depois de transparecer que a questão racial teria motivado a criação da AMEA e a

exclusão do Vasco, Mario Filho começa a apresentar detalhes ou dados que fragilizam a

interpretação racial que dá num primeiro momento. “A Revolta do Preto”, terceiro capítulo,

trata do continuo processo de apropriação do futebol por estratos inferiores da sociedade,

sem com isso deixar de relatar os avanços e retrocessos em direção à integração racial e à

democratização do futebol. Negros e mulatos revelam-se excelentes jogadores, e os clubes

já não poderiam deles prescindir. Sobre a criação da AMEA, Mario Filho nos diz:

O que acontecera em 23 precisava não se repetir mais. Era o que explicava a Amea. Em 24 nascia a Amea, uma liga de grandes clubes sem o Vasco. [...]

46 FILHO, M.. op. cit., p. 120. 47 Ibid., p. 126.

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Não era uma nova época que surgia, era a velha época que voltava, o bom tempo do branco superior ao preto. O bom tempo do amadorismo. O amadorismo, o esporte pelo esporte, era para quem estava de cima. Enquanto houvesse amadorismo os brancos seriam superiores aos pretos, os ricos aos pobres.48

Para Soares, neste momento, muda a correlação de forças segundo as conjecturas

realizadas por Mario Filho em dois pontos. Primeiro, o jogador passa a ser mais importante

que o clube, e segundo, o Vasco 1923 e o São Cristóvão 1926 representariam respostas para

aqueles que não acreditavam na mistura das raças e na competência do negro. Entretanto,

notamos no texto descrições que indicam que essas equipes sofreram um intensivo processo

de treinamento, idéia contraria a improvisação. Mario destaca até mesmo a utilização de

um ônibus nos treinamentos do São Cristóvão:

O ônibus dava uma certa importância ao clube, um clube com um ônibus não poderia ser um clube pequeno. E o ônibus não ia servir apenas para levar os campos uma vez por semana. Ia servir para levar os jogadores todos dias para a Praia de Copacabana. Luís Vinhaes guardara o segredo, não disse a ninguém que o individual do São Cristóvão seria na Praia de Copacabana, os jogadores de chuteiras, meias de lã, calções e tudo, como se fossem entrar em campo.49

A tônica do discurso é que essas vitórias significavam que o bom futebol não se

joga só à inglesa ou só com brancos, mas a brasileira com pretos e brancos, bem

misturados. O capítulo descreve a insubordinação, a exploração e a luta do jogador negro.

Porem o fundamental nesse capitulo é o fato de indicar que o caminho para a ascensão

social do negro via futebol estava aberto.

Último capítulo da primeira edição, ‘A Ascensão Social do Negro’, seria a

conclusão à qual Mario Filho chega em 1947. Embora o cronista afirme que o texto não foi

alterado:

Quando o Brasil levantou o campeonato mundial na Suécia, em 58, o brasileiro elegeu dois ídolos: o preto Pelé e o mulato Garrincha. O Negro no Futebol Brasileiro suportava a prova sem ter de mudar uma linha. [...]

48 Ibid., p. 129. 49 Ibid., p. 149.

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Há de parecer estranho que sem ter de modificar nada do que escrevi, conservando intactas as quatro partes da primeira edição de O Negro no Futebol Brasileiro, a segunda edição surja aumentada e tenha a pretensão de ser definitiva.50

Soares destaca que afirmações sobre o poder democrático do futebol e o fim do

racismo foram suprimidos na segunda edição. “Com a supressão dos trechos conclusivos,

Mario pôde acrescentar dois novos capítulos: ‘Aprovação do Preto’ e ‘A Vez do Preto’”.51

Essas supressões dos textos, que apontam a realização da democracia racial na primeira

edição, poderiam ser interpretadas como uma releitura de Mario Filho sobre o racismo.

Porém para Soares “os cortes realizados apenas servem para acrescentar dois novos

capítulos acrescidos na edição de 1964” 52.

Boa parte do capítulo narra a mobilidade social e a democratização do futebol,

apresentando alguns benefícios de seu profissionalismo. Uma resposta para a trama

montada: o negro excluído do futebol a inglesa, assistindo o jogo da geral, se tornaria nas

décadas de 1930 e 1940 a expressão do futebol brasileiro.

Eliminando certos trechos Mario Filho teve a possibilidade de acrescentar dois

capítulos novos ‘A Provação do Preto’ e ‘A Vez do Preto’, novamente os títulos dos

capítulos indicam situações de dano e superação pelas quais o herói da narrativa do autor

deverá passar ao longo dos acontecimentos.

Procurando demonstrar que o negro ainda estaria em desigualdade, o quinto capítulo

‘A Provação do Preto’ apresenta a volta de um preconceito racial ou dano imposto ao negro

em um outro nível. Os novos capítulos não omitem que negros haviam conquistado espaço

no futebol brasileiro e nem que os grandes clubes possuíam negros em suas equipes. Apesar

disso o autor crê que a preferência pelo jogador branco não havia se extinguido, pois em

condições de igualdade de condições o negro ainda seria preterido.

O negro estava novamente em provação, e segundo a análise de Soares, “o

recrudescimento do racismo, parece apenas representar uma estratégia para Mario Filho

anunciar dano perseguição, injustiça, separação e por fim anunciar a vitória dos injustiçados

50 Ibid., p. 16. 51 SOARES, A. op. cit., p.23. 52 Ibid., p.23.

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e o retorno da unidade nacional: a afirmação do Brasil multirracial e miscigenado”.53 Ainda

que as palavras do autor nos soem um tanto generalizante e ambíguas:

O campeonato do mundo de 50, em vez de glorificar um novo ídolo do futebol brasileiro, que segundo todas as probabilidades seria outro mulato ou preto, à imagem e semelhança de Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva, o que fez foi reavivar um racismo ainda não de todo extinto. O que disfarçava era o entusiasmo pelos heróis mulatos e pretos do futebol e de quem dependiam milhares de torcedores e milhões e milhões e milhões de brasileiros. Quem amava futebol sentia essa dependência. Daí a gratidão de tanto branco, por um mulato ou preto que ganhava um jogo ou um campeonato. O amor pelo clube transferia-se para os que o defendiam em campo, independentemente da cor.54

Descrevendo o clima de euforia que havia tomado a nação após o jogo da seleção

brasileira com Copa de 1950, o último capítulo do livro ‘A Vez do Preto’ Mario Filho nos

detalha o cenário de antes, durante e depois do fatídico jogo contra o Uruguai. Então o

autor nos apresenta os episódios e personagens responsáveis pela derrota. O incidente em

que o uruguaio Obdúlio Varela estimulou aos berros o companheiro de time Gigghia, e os

supostos safanões que teria dado no brasileiro Bigode. Assim, o uruguaio se empenharia

mais no jogo marcando o gol da vitória, e Bigode teria se intimidado, já que foi orientado a

não reagir às provocações.

Quando Bigode, duro, dando aqueles botes de cobra, começou a dominar Gigghia, Obdúlio Varela primeiro foi pra cima de Gigghia. Deu-lhe uns gritos, uns empurrões. Para Gigghia deixar de ser covarde. Depois, logo em seguida, Obdúlio Varela agarrou Bigode pelo pescoço. Não lhe meteu a mão na cara. Mas que o balançou em safanões, balançou. Bigode, que era uma fera, ficou quieto, sem nenhuma reação. Não houve ninguém no Maracanã que não compreendesse Bigode, a passividade de Bigode. Se Bigode reagisse seria expulso, o Brasil ficaria com dez. 55

Por esse episodio identifica-se o primeiro culpado, o negro Bigode. O segundo a ser

identificado como culpado, naturalmente, seria o goleiro, no caso, o negro Barbosa e o

terceiro Juvenal, outro negro apontado pelo técnico Flavio Costa. 53 Ibid., p. 25. 54 FILHO, M. op. cit., p. 280-281. 55 Ibid., p. 287.

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Poucos eram os que não choravam. Os que não choravam deixavam-se ficar numa cadeira numerada, num degrau da arquibancada, num canto da geral, a cabeça sobre o peito, largados. Ou então esbravejavam, batendo no peito, apontando para o campo. Uns acusavam Flávio Costa. Mas quase todos se viravam era contra os pretos do escrete. [...] Mas (Flavio Costa) não culpava Barbosa nem Bigode, culpava outro preto, Juvenal. Juvenal não cobrira Bigode e Flávio Costa se lembrou de todos os defeitos de Juvenal ‘Cachaceiro’.56

No entanto, conforme destaca Gisella Moura, as crônicas e reportagens do período,

o que mais se enfatizava nas explicações sobre a derrota brasileira não é a culpa desses

jogadores, não havendo também qualquer alusão às suas características raciais. Pelo

contrário, preocupava-se mais em exaltar as características de nosso futebol, em elogiar o

comportamento da torcida diante tal revés e recordar a grande conquista que havia

representado para o Brasil q construção do maior estádio do mundo. Porém a análise que

Mario Filho do faz episódio na segunda edição do livro apresenta outros elementos:

Basta lembrar que a derrota do Brasil em 50, no campeonato mundial de futebol, provocou um recrudescimento do racismo. Culpou-se o preto pelo desastre de 16 de julho. Assim, aparentemente, O Negro no Futebol Brasileiro, por uma análise superficial, teria aceito uma visão otimista a respeito de uma integração racial que não se realizara ainda no futebol, sem dúvida o campo mais vasto que se abriria para a ascenção social do preto. A prova estaria naqueles bodes expiatórios, escolhidos a dedo, e por coincidência todos pretos: Barbosa, Juvenal e Bigode. Os Brancos do escrete brasileiro não foram acusados de nada. É verdade que o brasileiro se chamou, macerando-se naquele momento, de sub-raça. Éramos uma raça de mestiços, uma sub-raça incapaz de agüentar o rojão.57

Desta maneira, os novos problemas enfrentados pelos negros na derrota de 1950

seriam superados definitivamente com a vitória na Copa de 1958. O mulato Garrincha e o

negro Pelé sairiam heróis nacionais nas copas de 1958 e 1962, mas é com a figura de Pelé

que Mario Filho vai demonstrar que o negro poderia ser negro e ter orgulho disso. Como se

percebe já na Nota à 2ª Edição:

56 Ibid., p. 290. 57 Ibid., p. 16.

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Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz a questão de ser preto. Não para afrontar ninguém, mas para exaltar a mãe, o pai, a avó, o tio, a família pobre de pretos que o preparou para a glória. Nenhum preto, no mundo, tem contribuído mais para varrer barreiras raciais que Pelé. Tornou-se o maior ídolo do esporte mais popular da Terra. Quem bate palmas para ele bate palmas pra um preto. Por isso Pelé não mandou esticar os cabelos: é preto como o pai, como a mãe, como a avó, como o tio, como os irmãos. Para exaltá-los, exalta o preto.58

A narrativa indica pele com mais atributos de nobreza que Friedenreich e Leônidas,

estes se diferenciam de pele por não terem o mesmo orgulho da cor ou raça. De certo

modo, vários negros haviam passado pelo futebol brasileiro e quando ascendiam

socialmente eram embranquecidos. A ideologia do branqueamento indica que a mobilidade

social corresponde a ‘mobilidade racial’.59 Mas pele teria ascendido socialmente sem

requerer o branqueamento, Mario para afirmar Pelé como o grande ídolo o compara a

Garrincha, demonstrando q o primeiro poderia ser o rei do futebol por ter uma estrutura

familiar segura, enquanto Garrincha tinha uma historia familiar desestruturada. Para Soares,

o ideal de família entendido por Mario Filho é aquele que se assemelha ao modelo nuclear

da família burguesa.

Não se explica Pelé sem esse amor pela família, pelo pai, pela mãe, pela avó, pelo tio que inteirava as despesas da casa, pelos irmãos. Não fumava e não bebia porque o pai lhe disse para não fumar e não beber. [...] Era uma família, a de Pelé, e de bons pretos, tementes a Deus. Pobres e agradecidos. O que tinham era Deus quem dava. Como não agradecer a Deus pelo pão de cada dia? Já Garrincha tinha tido um princípio diferente. O pai bebia de cair. Ele era um aleijado. Uma perna mais curta que a outra. Para andar teve eu entortar a perna mais comprida. 60

***

58 Ibid., p. 17. 59 SOARES, A. op cit., p.25. 60 FILHO, M. op. cit., p. 333.

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Como podemos observar, O Negro no Futebol Brasileiro funciona como uma

história mítica, mais simbólica que argumentativa do processo de exclusão, popularização,

democratização e construção do estilo brasileiro de futebol. Que vai sendo atualizada,

adequando-se às demandas de construção de identidade ou às denuncias anti-racistas,

independentemente do piso sociológico, histórico ou antropológico do qual os textos

afirmam partir.61

61 SOARES, A. op. cit., p. 14.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seria difícil, hoje, imaginarmos o Brasil sem o futebol, da mesma forma que é

difícil estabelecer uma única razão para enorme projeção conquistada por este esporte. A

discussão levantada em torno da abordagem de Mario Filho sobre o negro no futebol

mostrou-se instigante na medida em que tematizou um dos fenômenos com maior

visibilidade na sociedade brasileira e que se encontra pouco analisado.

As características apontadas por Mario Filho, permaneceriam como identificação do

estilo brasileiro de jogar bola. Isto estaria relacionada à mistura das raças ocorridas no país,

que produziu um futebol, artístico, repleto de dribles geniais. A valorização da mestiçagem

efetuada por Gilberto Freyre, identificando-a como garantia de brasilidade, se refletia de

certa maneira no futebol brasileiro do período, cujos principais astros eram negros e

mulatos.

A década de 1930 foi com muita intensidade marcada pelo grande interesse

despertado pelas “coisas” do Brasil, a descoberta do futebol seria mais um elemento a

reforçar a construção dessa identidade nacional. O livro, O Negro no Futebol Brasileiro,

apesar de ser fortemente influenciado por sua época, mas que de certa forma causou ruptura

com a reflexão corrente até então sobre a cultura brasileira.

Através do futebol, segundo Mario Filho os negros e mulatos puderam ocupar

espaços dignos dentro da sociedade brasileira. Da mesma forma que o futebol nacional só

havia atingido um alto nível de competência em grande quantidade por contas dos

jogadores negros. As questões levantadas Mario Filho nesta discussão sobre os jogadores

negros, nos ajudam a perceber o esforço de alguns para incorporar o futebol como

importante elemento da cultura brasileira Revelam também certas conotações com as idéias

de Gilberto Freyre, à medida que no livro de Mario Filho a exaltação do negro e do mestiço

seria um elemento fundamental na identificação do futebol brasileiro como esporte

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nacional. Dessa maneira o futebol é utilizado para expressar formas particulares de

identidade social e cultural.

Ao inverter o papel do mestiço e da mestiçagem na sociedade brasileira outrora

identificado como causas dos males do Brasil, para negros e mulatos serem apontados

como motivos de orgulho nacional, Gilberto Freyre inaugurou uma nova possibilidade de

construção de identidade nacional para o país. Deste modo, baseado no texto de Mario

Filho podemos estabelecer a existência da relação das idéias de Gilberto Freyre na

descrição do autor sobre o negro no futebol brasileiro. Contudo não podemos reconhecer

como autêntico tal descrição do cronista como um argumento que explique ou legitime o

sucesso do futebol brasileiro sendo resultado de integração racial, miscigenação ou tensões

raciais.

Ainda assim o conjunto organizado no livro de Mario Filho no permitem um acesso

à história Essas crônicas sobre o passado do futebol, aparentemente despretensiosas e

repletas de saudosismo, no entanto, compõe um conjunto coeso de concepções de Mario

Filho sobre a construção social que esse esporte adquiriu no país. Mesmo que o autor, não

tivesse por objetivo claro formular definições sobre o caráter nacional brasileiro, estava

sempre retornando a essa temática. Inspirado ou influenciados pelos ‘estudos’ dos anos

1930, que tratavam da formação da sociedade e da cultura brasileira. Mario também teceu

sua própria interpretação sobre o caráter nacional, com base nos acontecimentos do futebol,

considerado como símbolo máximo da brasilidade, não o fez conforma os parâmetros

formais da analise sociológica, mas segundo seus próprios moldes permitidos pela crônica

esportiva.

É a própria estrutura de O Negro No Futebol Brasileiro apresentada por Mario Filho

que nos permite semelhante organização de signos e não outra. Ou seja, ao superestimar e

generalizar a questão racial, o autor pretende demonstrar como o futebol teve uma grande

participação na democratização racial.

Tal interpretação da obra de Mario Filho, estrutura-se em função da convergência

dos temas narrativos para o qual estamos inclinados: segregação dos negros no futebol,

resistência, integração e êxito dos jogadores negros e mulatos. Tendo o fator econômico

como determinante para a prática do esporte, o autor constrói num primeiro momento um

ambiente do futebol, pouco favorável para negros, mulatos e pobres. Para depois, descrever

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como o futebol auxiliou a ascensão social do negro e mulato, contribuindo para a

integração da sociedade.

Como enfatizado anteriormente, este texto tentou abordar alguns pontos da imagem

que Mario Filho construiu a respeito dos negros do futebol brasileiro. Imagem esta criada

com muitas generalizações e louvores aos jogadores negros, encobrindo de certo modo um

plano geral de construção de identidade nacional fundamentado na noção de harmonia entre

as raças e integração das raças através do futebol.

Finalmente, esperamos que com este trabalho estejamos contribuindo para o debate sobre

este aspecto cultural tão importante que é o futebol.

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