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IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR 2306 O UNIVERSO DE CANUDOS NA ARTE DE JURACI DÓREA Maristela dos Santos Pinho 1 Selma Soares de Oliveira 2 RESUMO Este artigo tem como meta, analisar a questão da religiosidade dentro do movimento de Canudos – BA (1874-1897), liderado pelo beato Antônio Vicente Mendes Maciel, a partir de obras artísticas produzidas pelo artista plástico feirense Juraci Dórea. Neste sentido, estaremos avaliando o Desenho enquanto registro e memória visual e a obra de arte como documento histórico. PALAVRA-CHAVE: Canudos; arte visual; documento histórico; Juraci Dórea. ABSTRACT This article aims to analyze the question of religion in the movement of Tizi – BA (1874-1897) from the series “Outback Straws” woeks by the artist feirense Juraci Dórea. In this sense, I’II be evaluating the design and visual memory as a record and the extent to which can be seen as historical document. KEY-WORDS: Straws; art visual; historical document; Juraci Dórea INTRODUÇÃO Os movimentos que mais predominaram no século XIX no Nordeste foram os messiânicos, (Pe. Cícero (CE), Pau de Colher, Caldeirão, Canudos (BA), etc. Em 1950, os movimentos sociais de camponeses e de trabalhadores rurais surgirão na forma das Ligas Camponesas e dos Sindicatos Rurais. Esses movimentos é o registro das transformações que ocorreram na sociedade agrária brasileira a partir da abolição do trabalho escravo que levaram fazendeiros a se assegurar do monopólio sobre a terra. Já no fim do séc. XIX, o Estado passa a ter o controle das terras devolutas. 3 O contexto geral dos movimentos sociais no campo brasileiro neste século, portanto, tem como 1 Graduada em História, especialista em Desenho, Universidade Estadual de Feira de Santana\UEFS, Bahia. [email protected] 2 Professora Assistente do Deptº de Letras e Artes/Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, Mestre em História da Arte/UFBA. ([email protected] ) 3 A questão da terra foi gerada pelo monopólio da terra, desde os tempos do Brasil colônia, com a divisão do Brasil em Capitanias Hereditárias e a concessão das sesmarias, que por fim deu origem aos latifundiários atuais (Ligas Camponesas, Sindicatos Rurais, MST) que irá provocar o regime agropastoril primitivo e escravista e o abandono do sertão pelo governo, este último irá gerar as injustiças sociais que vão influenciar no surgimento do cangaço e do “fanatismo” religioso (Pe. Cícero, Canudos, Pau de Colher e outros). (NA)

Maristela dos Santos Pinho - Universidade Estadual de Londrina · O UNIVERSO DE CANUDOS NA ARTE DE JURACI DÓREA ... MST) que irá provocar o ... espessa camada de acontecimentos

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2306

O UNIVERSO DE CANUDOS NA ARTE DE JURACI DÓREA

Maristela dos Santos Pinho 1

Selma Soares de Oliveira2

RESUMO

Este artigo tem como meta, analisar a questão da religiosidade dentro do movimento de Canudos –

BA (1874-1897), liderado pelo beato Antônio Vicente Mendes Maciel, a partir de obras artísticas

produzidas pelo artista plástico feirense Juraci Dórea. Neste sentido, estaremos avaliando o Desenho

enquanto registro e memória visual e a obra de arte como documento histórico.

PALAVRA-CHAVE: Canudos; arte visual; documento histórico; Juraci Dórea.

ABSTRACT

This article aims to analyze the question of religion in the movement of Tizi – BA (1874-1897) from

the series “Outback Straws” woeks by the artist feirense Juraci Dórea. In this sense, I’II be

evaluating the design and visual memory as a record and the extent to which can be seen as

historical document.

KEY-WORDS: Straws; art visual; historical document; Juraci Dórea

INTRODUÇÃO

Os movimentos que mais predominaram no século XIX no Nordeste foram os messiânicos,

(Pe. Cícero (CE), Pau de Colher, Caldeirão, Canudos (BA), etc. Em 1950, os movimentos sociais de

camponeses e de trabalhadores rurais surgirão na forma das Ligas Camponesas e dos Sindicatos

Rurais. Esses movimentos é o registro das transformações que ocorreram na sociedade agrária

brasileira a partir da abolição do trabalho escravo que levaram fazendeiros a se assegurar do

monopólio sobre a terra. Já no fim do séc. XIX, o Estado passa a ter o controle das terras devolutas.3

“O contexto geral dos movimentos sociais no campo brasileiro neste século, portanto, tem como

1 Graduada em História, especialista em Desenho, Universidade Estadual de Feira de Santana\UEFS, Bahia. [email protected] 2 Professora Assistente do Deptº de Letras e Artes/Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, Mestre em História da Arte/UFBA. ([email protected]) 3 A questão da terra foi gerada pelo monopólio da terra, desde os tempos do Brasil colônia, com a divisão do Brasil em Capitanias Hereditárias e a concessão das sesmarias, que por fim deu origem aos latifundiários atuais (Ligas Camponesas, Sindicatos Rurais, MST) que irá provocar o regime agropastoril primitivo e escravista e o abandono do sertão pelo governo, este último irá gerar as injustiças sociais que vão influenciar no surgimento do cangaço e do “fanatismo” religioso (Pe. Cícero, Canudos, Pau de Colher e outros). (NA)

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pano de fundo a definição - e a monopolização - da propriedade da terra, a crise nos vínculos de

dependência pessoal e dos próprios campesinato” (VITA, 1989, p. 65).

O maior de todos os conflitos sociais existentes no sertão que mais violência causou foi o

messianismo, onde o sertanejo lutou por seus sonhos que se realizariam pela fé e por isso, fez com

que eles fossem vistos como fanáticos e ignorantes. Esse sofrimento do sertanejo é refletido na arte

de muitos artistas através de imagens que expressam essa religiosidade em uma identidade

incorporada no mundo do sofrimento do sertanejo; trabalhos claros nas figuras, traços e cores com

contrastes, ritmos, enfim, elementos de uma linguagem visual.

Buscamos neste trabalho, analisar como a influência religiosa do movimento de Canudos (BA,

1883–1897) liderada pelo beato Antônio Vicente Mendes Maciel (Antonio Conselheiro), é

vivenciada na arte do artista plástico feirense Juraci Dórea. Também, buscamos compreender os

significados atribuídos a essas manifestações artísticas. Essa compreensão é feita a partir de leituras

sobre o movimento de Canudos, intercalando com o Desenho. Não percebendo a obra de arte como

documento histórico, a História e a mitologia, sugerem temas de inspiração para artistas. “[...] os

artistas inspirados por eventos históricos, tanto de seu próprio tempo como do passado, e por

iniciativa própria, realizam pinturas com a finalidade de registrá-los ou documentá-los.”

(WOODFORD, 1983, p. 43). Neste sentido, estaremos avaliando o Desenho enquanto registro e

memória visual e a obra artística como documento histórico.

Levando em consideração os objetivos traçados neste estudo, fizemos, no primeiro momento,

a opção pela pesquisa bibliográfica e documental, tendo como principal meta fundamentar o

referencial teórico. Esse tipo de pesquisa possibilita referendar o objeto do estudo a partir de

material já produzido por estudiosos e especialistas da área. Em seguida, considerando as

especificidades do objeto de estudo (o acervo imagético com o tema "Sertão de Canudos" do artistas

plástico Juraci Dórea, entendido aqui como registro histórico), optamos pela análise formal e

iconográfica, interpretando neste momento o material explorado enquanto desenho e registro visual.

É importante ressaltar que segundo Minayo (1994, p.21) "a visão de mundo do pesquisador e dos

sujeitos sociais estão implicados em todo o processo de conhecimento, desde a concepção do objeto

até o resultado do trabalho".

1. O DESENHO COMO FONTE DE REGISTRO VISUAL

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Para muitos historiadores, a História é feita a partir de documentos (recentemente a

iconografia passou a ser considerada uma fonte historiográfica). Citando Martins (2001), em sua

pesquisa sobre a guerra de Canudos, utilizou-se da iconografia para falar do movimento.

Diante da vasta e riquíssima produção iconográfica, literária romântica e musical sobre a temática canudista, mundo difícil seria a decisão de descartar esses preciosos registros no estudo de qualquer ângulo do modelo de sociedade intentada pelo povo do Belo Monte [...] O esforço de decodificação dos registros históricos imanentes a todas as práticas e representações sociais é tão rico e, ao mesmo tempo, tão discutível quanto aquele orientado para a interpretação da produção documental escrita dos ‘atores oficiais’ da história. [...] são produtores de signos representativos de seu momento histórico [...] Assim, toda produção cultural é depositária de mensagens que, consciente ou inconscientemente (por parte de seus formuladores), definem o imaginário social e sua significação também numa perspectiva histórica. Se não, [...] como interpretar as dimensões proporcionalmente reduzidas do corpo de Jesus no colo de Maria que a eloqüência dramática do gênio de Michelangelo engendrou ao imortalizar a dor materna na sua Pietá? (MARTINS, 2001, p. 177-178).

Por muitos séculos a arte foi considerada apenas uma representação artística, hoje, percebe-se

a arte também como um relato de fatos históricos e culturais. Revendo as obras de Juraci Dórea, de

uma identidade própria e que sempre teve o sertão como tema, este, utilizando cores e traços fortes,

reflexos de dor, tema do cenário de Canudos, percebe-se, ao estudar este tema, como a historiografia

se mantém tão presente em nossa atualidade e quanto que a religião e a história do povo sertanejo

têm um papel representativo em nossa cultura. É o sofrimento refletido nos traços e cores marcantes

nos trabalhos de Dórea, que muito contribuí para manter viva a imagem do sertanejo. Nesse aspecto,

segundo Woodford (1983), a arte deixa de ter uma representação apenas artística e passa, através da

historiografia, a ser um registro de fatos históricos, sociais e culturais. O artista vivenciando ou não

a História passa a retratá-la em seus trabalhos e os mesmos passam a ter um caráter de registro, de

documento histórico.

Realizando uma breve leitura da arte e do Desenho na História como um documento histórico,

a partir de uma leitura crítica, além de tentar decodificar o sentido do artista, Osborne (1993) dirá

que nesse papel, a arte passa também a ser vista tanto como instrumento de educação, como um

instrumento de doutrinação religiosa ou moral, ou como instrumento da expressão ou da

comunicação da emoção, além de como instrumento da experiência, porém, considerando o ato de

desenhar como uma forma de expressão, de registro ou documento histórico que pode se perpetuar

pela História, como vemos na fala de Trinchão; Oliveira (1998, p. 156).

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[...] considerando que o ato de desenhar não é só uma forma de expressão, como também traz em si, a idéia de perpetuar como uma forma de registrar. [...] A História tal como o Desenho, é registro. E enquanto registro, carregam consigo uma espessa camada de acontecimentos que esperam do futuro uma releitura crítica. Portanto, carregam uma lógica em comum a de transmissão. É a partir deste entendimento que se concebe o Desenho contando a História das civilizações e a História sendo contada pelo Desenho [...] que através de releituras mais críticas, o Desenho pode revelar versões de interpretação da História pouco conhecidas.

A referência acima, nos faz pensar na relação da história de Canudos com a arte. A História e

o fato histórico que proporciona uma relação com o Desenho e o conhecimento, não apenas de

riscos e formas, mas, com uma percepção, construção de um discurso que pode ser descrito ou

desenvolvido a partir do que se desenha e do que se cria com o conhecimento, sendo o Desenho

essencial para a prática da construção do conhecimento e como concretizador das emoções e ideias;

uma das possibilidades de realização da comunicação humana, o Desenho também pode ser uma

habilidade que pode ser apreendida e ensinada por ser o mesmo uma fonte básica para a formação

do educado como aprendizagem (Edward, 1986).

A arte tem uma forma muito peculiar, diria poética ou bela de retratar a história, o passado.

Não apenas retratando ilustres, quando séculos passados à pintura tinha apenas a função de retratar,

às vezes enfeitada, personagens ilustres do passado histórico. As pinturas de Juraci Dórea que

retratam a guerra de Canudos, são originais por apresentarem a alma do movimento, revelando o

sofrimento vivenciado pelos seguidores de Antonio Conselheiro. Esses trabalhos, através de

imagens figurativas, abstratas ou não, expressam essa religiosidade incorporada no sofrimento do

sertanejo, a partir de trabalhos claros nas imagens, objetos e figuras; nas linhas, traços e cores, com

contrastes, ritmos, enfim, todos os elementos de uma linguagem visual.

2 A SAGA DE CANUDOS.

[...] Vêm das catingas do norte, dos campos devastados da guerra [..] são desarmados, mulheres e crianças; [...] estão dizendo: Falai por nós, voz da Bahia, voz da justiça, voz da verdade. Falai por nós, legisladores brasileiros, que falais por vossas almas, por vossos filhos. Temei a expiação, com que Deus pune o egoísmo insensível à causa dos mortos. [...] Somos as vítimas da boa-fé, a hecatombe da carniça (BARBOSA, 1897, p. 301).

O sonhado século XX pelos sertanejos, foi marcado por conflitos, violência, seca, mão-de-

obra barata, monopólio da terra no período colonial, divisão do Brasil em capitanias hereditárias,

concessão das sesmarias (MST), e que ao lado do imperialismo, um dos grandes problemas para a

nossa política, economia, sociedade e cultura; o abandono do sertão pelo governo, o regime

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agropastoril escravista e primitivo além das injustiças sociais que irá gerar dois tipos de movimentos

sociais: o cangaço e o messianismo.

A formação de grupos cangaceiros que lutam de armas nas mãos, assaltando fazendas, saqueando comboios e armazém de víveres nas próprias cidades e vilas; [...] a formação de seitas místicas – fanáticos – em torno de um beato ou conselheiro, para implorar dádivas aos céus e remir os pecados que seriam as causas de sua desgraça (FACÓ, 1991, p. 37).

Os problemas gerados pela seca, vão ser o fator principal para migração do sertanejo para

outras regiões do Brasil, fugindo da miséria e em busca de uma terra prometida, de uma nova

Jerusalém. É essa imagem de sofrimento, poeira e miséria, que fica registrado na mente do

brasileiro. Em seu trabalho Geografia da fome, Josué de Castro (1980, p. 25), dirá que “A fome no

Brasil, é consequência, antes de tudo, do seu passado histórico com os seus grupos humanos sempre

em luta [...]”, é um problema de teor econômico e social e isso não deixa de ser verdade se

pensarmos nos movimentos sociais que surgiram por consequência da seca.

Canudos surgiu em uma época de grandes conflitos na política baiana, onde os políticos locais,

provocaram intensas lutas, pensando-se na manipulação dos fiéis do arraial de Belo Monte, que já

chegava a 30000 habitantes, como eleitores. No primeiro momento, o movimento de Canudos é

visto como uma grande conspiração monarquista religiosa e social, pretexto para iniciar uma guerra.

A resistência se dá em várias batalhas, até se chegar a derrota de uma guerra onde “O sertanejo tem

sido vítima indefesa da natureza, do meio hostil e dos desmandos do governo, Cansados de

injustiças sociais, revoltou-se. E agora, querem fazer calar essa gente com tiros de fuzil e canhão”

(CUNHA, 1992, p. 75).

O massacre do poder sobre o sertanejo, tornou-se um retrato da violência, a força que se

impunha em nome da República, alegado de se tratar de um movimento monarquista. Para os

sertanejos, a Monarquia representava o reino de Deus, a vitória da Lei de Deus sobre a Lei do cão da

República. A República era um mal por não proceder de Deus. Canudos foi um movimento não

apenas de caráter religioso, mas também, sob a imagem mística de Antonio Conselheiro, tratou-se

de uma luta de classes contra o monopólio da terra, contra a miséria. Um arraial que para os fiéis era

a cidade santa. “Era o sonho dos miseráveis e famintos” (FACÓ, 1991, p. 96), que “lutavam por um

reino de paz, justiça e felicidade”. (VITA, 1979, p. 78), e acreditavam na profecia bíblica a cerca do

nascimento e império do messias:

O povo que andava nas trevas, viu uma grande luz; aos que habitavam na região da sombra da morte, nasceu-lhes o dia. [...] Porquanto um menino nasceu para nós, um

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filho nos foi dado e foi posto o principado sobre o seu ombro e será chamado Conselheiro, Deus forte, Pai do século futuro, Príncipe da paz. O seu império se estenderá cada vez mais e a paz não terá fim; sentar-se-á sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, para o firmar e fortalecer pelo direito e pela justiça, desde agora e para sempre; fará isto o zelo do Senhor dos exércitos. (Bíblia Sagrada, Isaias 9, 2; 6-7).

A profecia apresentava-se como sustento para se chegar a realização do sonho maior de se

chegar a terra prometida.

3. O RETRATO DA GUERRA DE CANUDO NA ARTE DE JURACI DÓREA

A arte de Juraci Dórea, “o poeta do cotidiano sertanejo” (OLIVIERI-GODETE; PEREIRA,

2003), sempre teve o sertão nordestino como tema, abordando as dores, alegrias e a vida do

sertanejo. Formado em Arquitetura pela Universidade Federal da Bahia, Juraci Dórea nasceu em 15

de outubro de 1944 em Feira de Santana, BA. Em 1962, realiza sua primeira exposição na cidade

natal. Em 1974, passou a utilizar-se do couro em seus trabalhos, divulgando a imagem do sertanejo,

cantadores, cangaceiros, dragões, etc. Em 1981, o trabalho com o couro ganhou estruturas de

madeira e se tornou tridimensional. Era o início do Projeto Terra, que ganhou notoriedade mundial

ao exibir esculturas e pinturas que “dialogam com a cultura nordestina” (Jornal UNESP, 2006).

Citando Seixas, (OLIVIERI-GODETE; PEREIRA, 2003) “O sertão é o ponto de partida e de

chegada da obra de Juraci Dórea, seu eixo temático. [...] constrói aos olhos dos personagens, das

criaturas, o lugar compartilhado de criadores primordiais que, de fato, são”. Suas esculturas de

pouca durabilidade em couro e madeira construída e instalada no sertão baiano, se perdem com a

ação do tempo, registradas apenas por fotografias. Dórea revela um profundo entendimento da vida

sertaneja.

A partir dessa projeção internacional, participou de diversa exposições como na VII Exposição

de Belas Artes no Japão (1985); XIX Bienal Internacional de São Paulo (1987); 43a Bienal de

Veneza (1988) e 3a Bienal de Havana (1989). Além de torna-se tema de mestrado apresentada no

Instituto de Artes\UNESP, São Paulo: “Diálogo poético de formas sertanejas: um estudo perceptual

da obra escultórica de Juraci Dórea no âmbito do Projeto Terra”, autoria de Kátia Bastos. Em

algumas das cidades que receberam esculturas do Projeto Terra estão: Feira de Santana, Monte Santo

e Raso da Catarina, local das aventuras de Lampião e seu bando. Sua alma é descrita por Brasileiro

(1987, p. 132), que diz:

Juraci Dórea procura fazer uma arte sem referências urbanas e mostrá-la no próprio ambiente que a inspirou, o sertão. Ou seja, ele pretende colocar-se a contra caminho

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da história da arte. [...] Ao expor seus quadros em feiras livres, alpendres, abrigando-os em varais à sombra de frondosos umbuzeiros, quais insólitos outdoors entre cabras, bois magros e xiquexiques, ou pintando seus murais em velhos muros de adobe ou taipa em algum rincão perdido do sertão, Juraci Dórea está realizando, à sua maneira, arte pública, levando à prática um velho sonho dos museólogos, o "museu ao ar livre”, [...] usa o mural para falar de coisas próximas ao real que cerca as populações locais, de suas tradições, hábitos, mitos e lendas.

Para a construção da série Canudos, Dórea utilizou-se do carvão, miolo de pão para as

correções e o verniz para fixação. As telas foram produzidas em 1990, na proporção 1,60 x 2,20,

fazem parte do acervo do Museu do Sertão – Monte Santo – BA.

Em todas as obras da série Canudos, o relato de sofrimento e guerra, estão presentes, como a

imagem da mãe aparando o filho (série 1). No fundo, o arraial representado pelas casas. Em todas as

telas a presença dos símbolos religiosos de fé na luz de um candeeiro sugestivo a santidade do local.

A cruz e a arma na mão do soldado, refletem fé, morte e violência. A guerra está representada no

desenho da arma, corpos em volta, nos olhares de terror e medo de uma dor seca, marcada por

traços fortes e escuros. Muitos são os elementos adicionais (lampião, cruzes, casas, mãos soltas,

etc.). No olhar está toda a expressividade do quadro junto com as cruzes (símbolo de fé) e o

candeeiro (símbolo da luz), apesar da obra refletir essa leitura, é de conhecimento de quem aprecia a

arte de Juraci Dórea, a presença constante desses signos, que fazem parte da identidade do artista.

Também se percebe uma organização visual do objeto em que o resultado é bem apresentado em

formas e traços absolutamente integrados, com harmonia nos riscos e na relação do objeto principal

com os adereços em volta da imagem de mulher.

Fig. 01, Série Canudos nº 1 . Fig. 02, Série Canudos nº 2 Fig. 03, Série Canudos nº 3.

Nas três figuras, os signos tem a representatividade de uma fé fervorosa, de indignação pelo

que está acontecendo e de confiança na vitória divina. A imagem do arraial é de um povo sofrido,

sonhador, cheio de esperanças. A expressividade do olhar também é muito forte. Diversas imagens

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de pessoas no fundo, seguidoras do Conselheiro com cruzes na mão, ora soldados sanguinários com

armas na mão, cabeças deitadas, mortas, mãos soltas ou em gesto de socorro. Um olhar de medo

sugere uma dor sem culpa, questionando talvez, o por que da morte. Um leve traço abaixo do olhar

do sertanejo sugere uma lágrima. O registro de dor e sofrimento se repete na obra.

Na Série 4, a imagem do pregador Antonio Conselheiro se destaca bem definida, apesar de

pequena entre tantos fiéis e soldados, tem um grande destaque. No centro do quadro, onde se vê o

pregador com pessoas em volta, ajoelhadas em sinal de adoração. O arraial é representado com

casas, igreja e muitas cruzes. A imagem da serpente também se repete, com uma expressão também

de enforcamento. A profusão dos quadros é rica, mais uma vez com excesso de sígnos repetidos. A

cor se mantém escura, dando mais ênfase a uma originalidade própria do autor. Os elementos

adicionais continuam presentes e os olhares expressivos de dor envolta dos símbolos de fé e luz

(cruz e candeeiro). A identificação da história de Canudos é muito forte, em todas as séries retratam

claramente a saga da guerra. É realizada em um estudo cordelista, uma característica própria do

artista, com figuras apresentadas em estilo de cordel, como o grande sertanejo, o boi, o lampião, etc.,

figuras típicas do cordel brasileiro, além dos símbolos, os traços dos personagens.

Fig. 04, Série Canudos nº 4. Fig. 05, Série Canudos nº 5. Fig. 06, Série Canudos nº 6.

O fim do arraial parece mais verdadeiro nas imagens das figuras 05 e 06. As armas de fogo

nas mãos dos soldados e homens mortos no chão, alguns ainda segurando a cruz, como uma arma de

defesa. A fé no salvador tem as consequências para se chegar ao paraíso e por fim, a salvação eterna.

Os símbolos mais uma vez, se repetem. A pobreza é registrada com homens com os pés nus. O peso

visual registra a morte, nas duas séries. A expressão dos traços se mantém forte e os elementos

visuais utilizados continuam bem definidos, apresentando equilíbrio nas formas. A serpente surge

em áreas diversificadas, sugerindo a imagem do mal, talvez pela morte presente em vários

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momentos, primeiro na área de entrada no alto do lado esquerdo. Em um outro momento, a serpente

está no meio do quadro lado direito e na área de ação e energia, final do lado direito do quadro. A

morte apresenta o fim. A presença materna e a criança, se repete, mais uma vez na série, como a

cruz na porta da casa.

Fig. 07, Série Canudos nº 7. Fig. 08, Série Canudos nº 8 Fig. 09, Série Canudos nº 9.

A representatividade do Messias na figura de Antonio Conselheiro na série 8, 9 e 11, apresenta

um semblante de fé e ao mesmo tempo de horror, resumindo a vida do sertanejo no branco e no

preto, sem colorido, alegria, festividade. A cor reflete toda a sua história, a partir da perseguição que

os fiéis sofreram quando lutaram e acreditaram na existência de uma terra santa. A sua arma é uma

cruz. Essa imagem representa tudo o que foi e o que lutou Antonio Conselheiro e seus seguidores.

A cruz reflete a fé na santidade do arraial, a fé sem culpa, a fé fervorosa de que Deus existe.

Nesta imagem, símbolos novos e anteriores se misturam. Dentro da construção do estereótipo de

sofrimento temos a cruz como símbolo do sofrimento, Cristo pregado vivo numa cruz e ressuscitado

no terceiro dia: a redenção.

A luz que emana do lampião, tem um destaque maior em direção a cruz que Antonio

Conselheiro segura. No alto, Dórea faz uma reverência a arte de Tacila Amaral, uma obra

modernista. Á imagem do cangaceiro e casais se apresentam dentro de corações; a garrafa se

mantém presente, peixe, estrelas, crianças em fuga assustada. A área de ação e energia apresenta

formas sugestivas da Catedral de Brasília, a cidade onde localiza-se o poder maior do país. A mulher

parece segurar o companheiro ferido agonizado pela morte (Fig. 7). É o fim.

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Fig. 10, Série Canudos nº 10. Fig. 11, Série Canudos nº 11.

Na fig 9, a face de Antonio Conselheiro é única, o horror e o medo são bem destacados nos

olhos que parecem dilatados, cabelos ao vento, mas a sua arma continua presente: a cruz atuante em

todas as telas da série, refletindo mais uma vez o que Antonio Conselheiro acreditou e pregou para

os seus seguidores, uma fé sem culpa, em um destaque maior para a luz que emana no alto, em

direção à cruz que ele segura. Nesta imagem, símbolos novos e anteriores se misturam. Já na Série

nº 10, Dórea faz uma referência ao grande artista Pablo Picasso quando reproduz com seus signos,

“Guernica”4. Nesta tela, Picasso retrata o terrível bombardeio da cidade de Guernica pelos fascistas.

Picasso não realiza uma pintura realista, mas, procura mostrar em seu trabalho, a dor e o sofrimento

causado pela guerra. Sua obra apresenta formas deformadas de figuras estranguladas pela dor, mãe

em prantos com o filho morto nos braços, cavalo com um terrível talho na ilarga, rostos distorcidos

de dor a mesma dor retratada por Juraci Dórea na série Canudos.

Enquanto a imagem da mãe é de sofrimento pela perda do filho e pela morte daqueles que

buscaram um lugar para viver em paz, sem miséria, um lugar abençoado, mostrado por Deus através

do messias enviado. No alto da tela, na área de entrada se vê em destaque um soldado em descanso

com a arma na mão, logo ao lado o lampião; em volta, cabeças de corpos adormecidos. Os signos de

trabalho do artista (lampião e serpente) continuam presentes. Os soldados são registros em ordem de

combate, atirando, matando. Corpos e cruzes ao chão, serpentes em volta. Mais uma vez a imagem

da mulher com a criança, é muito forte. A morte se faz presente na figura do menino pendurado nos

braços da mãe, exatamente na área base do peso visual. Os cabelos em desalinho ao vento também

refletem desespero e sofrimento. O olhar continua expressando dor e indignação. Nas séries

4 1937 3,50 x 7,80 cm, Prado, Madri

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Canudos, o fim do arraial é registrada por Dórea com muita expressividade e veracidade, fazendo-

nos despontar para o momento crucial da guerra.

Na série nº 11, os seguidores de Conselheiro, ouvindo sua pregação. Vemos diversos

símbolos em volta da imagem de Conselheiro e da mulher; o arraial a cima do quadro na área de

leveza, a luz de um candeeiro ao fundo da tela na área de ação e energia (junto com a mãe e o filho),

a cruz, o lampião e a serpente. A imagem de Antonio Conselheiro é bem definida, de braços abertos,

como nas telas anteriores, em sentido de pregação da palavra. Nesta obra, a cruz não está na mão do

pregador, mas nas casas, ao redor da imagem do Conselheiro. O quadro apresenta uma profusão tão

rica quanto todas as outras obras, nos traços, nas formas, nos símbolos de fé e ao mesmo tempo nos

elementos de marca do artista, em risco fortes de carvão. Os olhos não retratam a dor, mas a

esperança nas palavras proferidas por Conselheiro. No olhar está toda a expressividade do quadro

junto com seus símbolos de fé, uma fé sem culpa. A expressividade das mãos e dos olhos são

imensas, que se encontra com a luminosidade que sobressai a “imagem santa”. A figura religiosa é o

centro do quadro. As armas, os soldados, a morte, o medo, não estão presentes nesta tela, apenas se

percebe a esperança de um povo que acredita estar vivendo conforme as leis do Ser superior e

Criador de tudo e de todos: Deus.

CONCLUSÃO

Na medida em que concebemos o passado histórico como parte da estrutura, buscamos nele a

origem e constituição das forças sociais presentes nos movimentos sociais. Esses movimentos como

o Cangaço (1870-1940), Pe. Cícero (1889-1934), Canudos (1896-1897), Contestados (1912-1916),

Pau de Colher (1934-1938), Caldeirão (1936-1938), entre outros5, aparecem como a “constituição e

fermentação de um longo processo social” que surge da colonização e integração da sociedade

brasileira. O movimento religioso apresenta-se como uma força social viva, expressão da sociedade

brasileira mais simples, um universo simbólico ideologicamente constituído por mitos, crenças e

superstições.

Enquanto muitos buscavam em outras regiões melhores condições de vida, milhares de

nordestinos colocavam suas esperanças na pregação de Antonio Conselheiro, pastor de um grande

5 Movimento de rebelião de pobres do campo de norte a sul do país, ocorridos nos séculos XIX e XX. (NA).

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rebanho de sertanejos. Muitos depositavam sua fé no cristianismo como possibilidade de solução

para os seus problemas de miséria e de exclusão social.

Os trabalhos apresentados do artista Juraci Dórea, podemos ver como a influência religiosa de

Canudos é vivenciada na Série Canudos. Os significados que atribuíram a essas manifestações

artísticas, para aqueles que realizaram obras retratando a história de Canudos, apresentando o

Messias na figura de Antonio Conselheiro com uma expressividade de valores e tradições bem

representados na arte desse artista feirense. Toda a preocupação central desse estudo na

compreensão do fenômeno de religiosidade popular no sertão nordestino retratada na arte de Juraci

Dórea, elegeram conceitos amplos com destaque nas diferentes manifestações religiosas no

Nordeste como também, na representação do beato enquanto herói e esperança de um povo incapaz

de realizar suas aspirações, sem situar o sentido histórico deste sujeito na oralidade histórica.

Considerando o Desenho como um canal de comunicação e a História como vestígio de um

passado que não está intacto e contada a partir do Desenho (TRINCHÃO; OLIVEIRA, 1998), o

Desenho nas obras de Dórea também podem ter a representação de um texto ao ser decodificado,

poderá nos apresentar fatos através da arte, com uma historicidade, registrada por fontes de

documentos, escritos, iconográficos ou factuais e que, portanto, registrar-se-á como documento

histórico. São os caminhos permitidos pelo Desenho, no caso estudado, a história da saga de

Canudos e que a releitura de fatos históricos do passado junto com os registros gráficos e

iconográficos nos permitem a possibilidade da análise histórica em várias versões através das séries

Canudos do artista plástico Juraci Dórea, relatando acontecimentos da época, que, através da

sensibilidade do artista, a história é gestada e expressada em cada traço do desenho em uma

visualidade que se busca respostas que ainda não foram dadas, questionamentos que a própria

História não esclareceu.

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