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martinho, Imortal

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martinho, Imortal das letras Cariocas

Martinho da Vila, saudado aqui em Carioquice como na capa número 1, há exa-tos 10 anos, acaba de adentrar a Academia Carioca de Letras, a Casa que sempre abrigou intelectuais cariocas de proa. Desse modo, o feito de Martinho representa dado significativo e relevante para quem observa, como eu, as fontes e a evolução da cultura do Rio. O nosso da Vila, ícone da leveza da carioquice com seu sábio perfil devagar, devagarinho, configura muitas titulações de referências obrigatórias. Inclusive o legado negro que lhe caiu às mãos com naturalidade e elegância, mas também com registro de antecedentes cruéis e injustificáveis.

Nunca me conformei, ao contrário, sempre me indignei, com as histórias seculares dos preconceitos contra músicos e poetas do povo.

Ficou conhecida a afirmação dos meganhas ao início do século passado: abraçar um violão nas esquinas cariocas era coisa de capadócio, de meliantes. Pioneiros do samba como João da Bahiana, Donga (autor do primicial Pelo Telefone, de 1917), ou mesmo Pixinguinha e Heitor dos Prazeres, me testemunharam no Museu da Imagem e do Som que sofreram na carne e no espírito destemperadas humilhações por serem músicos e portarem violões, além de terem pele negra e habitarem casas modestas.

Ou seja, histórias cavilosas como essas foram recolhidas por mim no Museu, e não uma ou duas vezes, mas dezenas.

Martinho da Vila acaba foi empossado ao comecinho de dezembro de 2014 em academia quase centenária, que cuida das letras cariocas. Mas, perguntaria um de-savisado; que conexão tem um sambista e poeta popular com as lides acadêmicas? Tem tudo a ver, porque ele não é apenas o gênio da paixão do povo, o samba, mas também escritor de méritos literários, com treze livros publicados.

O ato solene de posse do escritor Martinho José Ferreira na Academia Carioca de Letras foi comovedor para mim, eu que lhe acompanho a carreira por quarenta anos.

Ao testemunhar o colar acadêmico lhe ser imposto pela mulher-musa Cleo, ao me encantar com o discurso de posse dele, cheio de referências à negritude e ao orgulho da raça, ao ouvir a fala de recepção proferida pelo acadêmico Paulo Roberto Pereira (que produziu minucioso estudo sobre um a um de seus livros), ao ver a platéia repleta de autoridades e de artistas do Rio levantar-se em peso para lhe saudar a entrada triunfal no recinto, tive então a certeza de que não era apenas o escritor que a academia aclamava. Era também a consagração da alma carioca. Concentrada nele desde sempre, caudatária das lágrimas, suor e sofrimentos de heroicos tempos, idos e vividos por séculos.

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sumáriocarioquice

Nº 43 OuTuBRO/NOVEMBRO/DEzEMBRO DE 2014ISS 1981-6049

ExpeDiente

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Carioquice é uma publicação do Instituto Cultural Cravo Albin (ICCA)

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Afonso Arinos de Mello Franco Alfredo Marques Viana Ancelmo Gois Amaro Enes Viana Ana Arruda Callado Anna Letycia Bernardo Cabral Boni Celina Borges Torrealba Carpi Chico Caruso Cícero Sandroni Claudia Fialho Darc Costa Daniel De Plá Eva Mariani Francis Hime Francisco Horta Henrique Luz Humberto Eustaquio Mota Jaguar Jerônimo Moscardo Jerson Lima João Maurício de Araújo Pinho Joaquim Ferreira dos Santos Joel Nascimento (do bandolim) Jomar Pereira da SIlva José Louzeiro José Viegas Filho Júlio Bueno Júlio Lopes Lan Leonel Kaz Lilibeth Monteiro de Carvalho Lucy Barreto Luís Fernandes Luiz Alfredo Salomão Luiz Antonio Viana

Luiz Antonio Guaraná Luiz Carlos Barreto Luiz Carlos Lacerda (Bigode) Luiz Cesar Faro Lula Vieira Malvina Tuttman Marcelo Carnaval Marco Antonio Bologna Marcílio Marques Moreira Marco Polo Moreira Leite Marcos Faver Maria Beltrão Mário Priolli Martinho da Vila Nélida Piñon Neville d’Almeida Noca da Portela Octávio Melo AlvarengaV Olívia Hime Oscar NiemeyerV Paulinho da Viola Paulo Fernando Marcondes Ferraz Paulo Roberto Pereira Paulo Roberto Menezes Direito Philip Carruthers Raphael de Almeida MagalhãesV Rosiska Darcy de Oliveira Ruy Castro Ruy Garcia Marques Tito Ryff Verônica Dantas Vitor Lemos Vivi Nabuco Wagner Victer Wanderley Guilherme dos Santos Zelito Viana Ziraldo

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DIRETORRicardo Cravo Albin

DIRETORA-ASSISTENTEMaria Eugênia Stein

EDITOR RESPONSÁVELLuiz Cesar Faro

EDITORA EXECUTIVAMônica Sinelli

REPÓRTERESJoão Penido

Kelly Nascimento

DESIGNERSMarcelo Pires Santana

Paula Barrenne de Artagão

FOTOGRAFIAAdriana Lorete & Marcelo Carnaval

PRODUÇÃO GRÁFICARuy Saraiva

CONSULTORIA DIGITALCamila Brandão

REVISÃODenise Scofano Moura

Geraldo Rodrigues Pereira

CAPAAdriana Lorete

IMPRESSÃOWalprint

É som, é sal, é mar

4 A tua presença

12 Só quem viu pode contar

18 As molduras das canções

Do bem comer e melhor beber

22 Alimento da alma

Cidade Maravilhosa

26 Um cais para as estrelas

32 O caldeirão do bruxo genial

Magia do olhar

36 A favela nas cores de Almodóvar

Causos e letras

44 Olha aí, é o meu guri!

50 Datemi un martello!

Embaixador do Rio

56 Uma cidade que se reinventa Por Antonio Oliveira Santos

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Carioquice4

rosa dos ventos

a tua presença

A cantora baiana, em pleno jubileu de uma majestosa carreira, reporta, em

entrevista exclusiva à Carioquice, suas memórias afetivas associadas ao Rio

de Janeiro. Aqui ela chegou, em 1965, para estrelar o espetáculo “Opinião”, no

antigo Teatro de Arena, em Copacabana, e escrever uma trajetória brilhante,

personalíssima. Nós, cariocas, nem temos como agradecer a soberana escolha

por estar até hoje iluminando a Cidade Maravilhosa. Bethânia é verbete de

honra do Dicionário Cravo Albin. Bethânia é nossa!

p o r mônica Sinelli

Corre o ano de 1963. A filha de dona Canô e seu José, funcionário do Depar tamento de Correios e Telégrafos, nascida em Santo Amaro da Purificação, ensaia os primeiros passos no meio artístico. Ao lado do irmão Caetano (que sugeriu seu nome de batismo inspirado no título de uma valsa do compositor Capiba), Gil, Gal, Tom zé, Djalma Correa, Pitti, Perna Froes e Alcyvando Luz, encena “Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova”, em Salvador. E quem surge na plateia? Nara Leão, a musa do movimento musical intimista que vinha embalando o Brasil desde fins da década de 1950.

Levada pelo iluminador do espetáculo, Ro-berto Santana, que também está trabalhando com ela em sua temporada na Bahia, Nara não esquecerá o que viu no Teatro dos Novos. Tan-

to que, dois anos depois, convidará a menina magrinha e de voz impactante para substituí-la no show “Opinião”, dirigido por Augusto Boal no Teatro de Arena, ao lado de zé Keti e João do Vale. Mas só por quatro noites, até que se recupere de uma gripe. Autorizada pelos pais, Maria Bethânia, aos 17 anos, desembarca na Cidade Maravilhosa em companhia de Caetano.

“Foi muito violenta a chegada, para variar. Minhas coisas são assim. Ligamos do aeropor-to para o Vianninha (Oduvaldo Vianna Filho), responsável por toda a negociação. Já eram dez horas da manhã, e ele dormia. Para nós, aquilo pareceu esquisitíssimo. Falei: ‘Caetano, é tudo mentira, vamos voltar.’ Ele me acalmou. Pegamos um táxi até o teatro, que, claro, estava fechado. Me apavorei: ‘Que lugar é esse em que

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rosa dos ventos

me convidam e não me recebem?’ Enquanto caminhávamos por Copacabana, me lembro perfeitamente do primeiro perfume que senti – e que, para mim, é o retrato do bairro pelo qual sou apaixonada: a mistura de maresia, gasolina e batata frita. Amo esse cheiro maravilhoso até hoje, porque representou um acolhimento. Nunca vou me esquecer: em meio àquele im-pressionante turbilhão de gente, estourou uma tempestade, dessas em que o Rio vira noite. uma hora de trovão, raio, chuva; alagou tudo. Às três da tarde, resolvemos ir para a casa de nossos primos, no Méier. Acontece que me perdi de Caetano. Entrei no ônibus, e ele não conse-guiu subir. E gritava: Eu lhe pego no próximo ponto!” – ri Bethânia.

Às nove da noite, os dois irmãos estão de volta ao teatro de Arena. “Tereza Aragão, uma das proprietárias e esposa de Ferreira Gullar, um dos autores do espetáculo, me recebeu e con-versou atenciosamente comigo. Aí, eu respirei. Mas, na reunião de produção, dei um ataque. Queriam, lógico, me colocar num hotel, e eu nunca tinha me hospedado em nenhum. Reagi: ‘Não aceito, sou virgem! Hotel não é lugar para

Rodeada pela mãe, dona Canô, e Caetano Veloso Com o pai, seu José Bethânia e o irmão Caetano

mim.’ Foi horrível. A mulher de Glauber Rocha, Rosinha, então presente, me chamou para ficar no apartamento dela, ao pé do Santa Marta. Era só atravessar o túnel, andando, e eu chegava ao teatro.”

Várias mães e um pai

Bethânia já se prepara para retomar a vida de estudante em sua terra (“estava em segunda época em matemática, para variar”), quando lhe avisam que a permanência não seria apenas por quatro noites – mas definitiva. “Regressei a Santo Amaro e pedi o consentimento de meus pais. Na volta ao Rio, fui morar na casa da professora Geni Marcondes, diretora musical do Opinião, no intuito de que me ensinasse o show. Ela tinha um apar tamento lindo em Ipanema, com uma água fur tada e vista para o Cristo Redentor. Eu acordava e havia um prato de uva para mim. Ganhei mães aqui de imediato. Foi maravilhoso. Mas a professora, tão delicada, era também rigorosíssima. Os ensaios duravam 12 horas por dia. Num deles, aparece Vinicius de Moraes. Tereza me disse, toda séria: ‘vou lhe apresentar o grande poeta’. Olhei para a cara

Fotos: Arquivo Pessoal

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dele e morremos de rir, nos beijamos, ficamos de mãos dadas e viramos amigos. Além de uma porção de mães, ganhei outro pai. Na estreia, Nara me perguntou: ‘Está nervosa?’ Respondi que não. E não estava mesmo. Aos 17 anos, ninguém tem medo de nada. Hoje, sim, tenho medo – de tiro, violência, desgoverno. E tremo antes de entrar em cena.”

Em 1965, grava seu disco de estreia, um compacto simples com a interpretação ar-rebatadora de Carcará (de João do Vale) e É de manhã, primeiro registro de uma canção de Caetano. E lança o LP inaugural, “Maria Bethânia”. A nova estrela da música brasileira vê então pela primeira vez a passagem de uma escola de samba – a Império Serrano, saindo do Forte de Copacabana. “Fiquei louca, emocio-nada, chorava muito. Jamais vou esquecer: Ao erguer a minha taça com euforia... – cantarola. Tereza era carioquérrima, da Tijuca, conhecia profundamente a grande música do Rio, de dentro dos morros. E me levava a todos os lugares, zicartola, Estudantina. Porém, a sen-sação maior foi quando me chamou para assistir ao desfile da Mangueira, no Centro da cidade.

O dia estava nascendo, e comecei a ver a escola entrando, a ouvir o som daquela bateria linda, uma batida completamente diferente de todas que eu conhecia. Quase morri de emoção. E Tereza, salgueirense aguerrida, indignou-se: ‘só faltava você ser mangueirense!’ Respondi: ‘Mas eu me tornei, e você que me trouxe!’” – diverte--se a cantora, que, junto com Gal, Caetano e Gil, saiu em 1994 pela agremiação na Marquês de Sapucaí, sob o enredo em homenagem aos Doces Bárbaros. “Foi deslumbrante, inesquecí-vel, uma honra. Mas prefiro assistir a desfilar. Alcione brinca, dizendo que para eu desfilar é preciso que me coloquem na Apoteose, porque sambo de costas. Aí, eu viria de lá até encontrar os integrantes da escola.”

O rio era meu

É contratada pela Odeon, em 1968, lançando os LPs “Recital na boite Barroco”, “Maria Be-thânia” e “Maria Bethânia ao vivo”. Em 1970, estrela “Brasileiro, profissão esperança”, de Paulo Pontes, com direção de Bibi Ferreira, no Teatro Casa Grande. No ano seguinte, grava o disco “A tua presença”. No início da década,

“Vim para passar quatro

noites e estou aqui há 50

anos. O Rio é a cidade mais

linda do mundo. Ela e Santo

Amaro da Purificação”

Ao lado de Claudete Soares e Elizeth Cardoso, no programa “Essa noite se improvisa”

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vai morar em Ipanema. “Na rua Nascimento Silva, quase esquina do restaurante Pizzaiollo, onde havia na calçada placas em cimento com as mãos dos artistas. Nessa época, o Rio era meu, vivia a cidade intensamente. Saíamos em grupo (Tereza, Araci de Almeida, Ítalo Rossi, Leina Krespi e Gracindo Junior) toda noite, após o Opinião. Fazíamos a ronda das boates. Cantei em várias – Cangaceiro, Barroco, Arpège, Ruibarbossa, Sucata. Eu tinha moto, andava na praia de madrugada, era bonito demais, não existia pânico. Ia dormir às 11 da manhã. A gente se divertia muito.”

Em 1972, decide comprar uma casa. “Fui criada assim, com quintal, não gosto de apar-tamento, me mantenho interiorana. Além das mansões da zona Sul – que não era o que eu queria, nem podia financeiramente –, come-çavam a surgir casas na Barra da Tijuca. Mas não gostei da região. O corretor me informou que em São Conrado, então uma área de mato, deserta, havia uma casa linda, mas que custava o dobro do valor de que eu dispunha. Pedi para vê-la, só para ficar alegre, porque nada do que

me mostrou tinha me agradado. Ao chegar lá, falei: ‘essa é minha!’ Ele respondeu: ‘Infelizmen-te, você não possui o dinheiro.’ Dias depois, o casal proprietário me telefonou: ‘Bethânia, nós adoramos você, soubemos que gostou da nossa casa e queremos que fique com ela, mesmo pela metade do preço, pois vamos morar numa fazenda.’”

E este constitui um capítulo à parte. A casa, que tanto a encanta, espelha a nova dona: exibe um estilo único. Sob influência da arquitetura japonesa – piso de seixos, teto de palha –, incrusta-se num paraíso de árvores seculares. “É difícil fazer reforma, por causa das carac-terísticas específicas, como os pagodes com madeira, as telhas de cimento e malacacheta. Tudo brilha quando acende a lua. Nunca mais saí de lá, nem quero. Mas São Conrado mudou demais, derrubaram a mata ao pé do anfiteatro formado pela Pedra da Gávea, Pedra do Índio e Pedra Bonita. Quando Brizola, como governador, liberou o gabarito – numa área em que, segundo o projeto de Oscar Niemeyer, só se previam no máximo cinco andares –, subiram os espigões

Com Jards Macalé

“Lembro-me perfeitamente

do primeiro perfume que

senti – e que, para mim, é o

retrato de Copacabana, bairro

pelo qual sou apaixonada: a

mistura de maresia, gasolina

e batata frita”

Arquivo Pessoal

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rosa dos ventos

que tiraram a ventilação marinha. Fazia bastante frio ali. Até hoje se mantém um microclima.”

Ela prossegue: “Recentemente, derrubaram muita mata para erguer edificações. Antes, eu via a praia inteira de São Conrado, agora só vejo o mar entre um prédio e outro. O que me preocupa e entristece é que eles jogam holofotes na flo-resta, sem contar o som pesadão, e os animais gritam e fogem à noite. Minha casa vive cheia de bichos – macaco, porco-espinho, tucano –, que fazem uma farra ao redor das jaqueiras, pitan-gueiras e goiabeiras. Então, aquele núcleo de bairro, quietinho, pequeno, com a estradinha de barro, desapareceu. Mas gosto de ir à igrejinha, tem padres bons, inteligentes”, revela Bethânia, que este ano gravou o hino Pequena canção para São Conrado, como presente em homenagem ao centenário da capela.

memória linda

Os anos 1970 são o período das grandes temporadas em três casas emblemáticas do

Rio: “Rosa dos ventos” (1971), “Drama, luz da noite” (1973) e “Pássaro da manhã” (1977), no Teatro da Praia; “A cena muda” (1974), no Teatro Casa Grande; e “Chico e Bethânia”, no Canecão. “Guardo uma memória linda dessa época, com os shows em seis dias da semana – duas sessões quinta, sábado e domingo, du-rante oito meses, tudo esgotado, sempre. uma beleza!” É a década ainda do show ao lado do irmão, “Maria Bethânia e Caetano Veloso”, e da gravação do LP “Álibi” (1978), que vende mais de um milhão de cópias. A fase seguinte se des-taca pelos espetáculos “Mel” (1980), “Estranha forma de vida” (1981), “Nossos momentos” (1982) – quando grava o disco “Ciclo” – e “A hora da estrela” (1984). Em 1993, faz um CD só com músicas de Roberto e Erasmo Carlos, seguido por “Âmbar” (1996) e “A força que nunca seca” (1999).

Em 2001, lança o CD “Maricotinha” e, na sequência, já pelo seu próprio selo Quitanda, “Brasileirinho” (2003), “Que falta você me

“Fazíamos a ronda das

boates. Cantei em várias.

Eu tinha moto, andava

na praia de madrugada,

era bonito demais, não

existia pânico. Ia dormir

às 11 horas da manhã”

Mônica Sinelli

Bethânia e Caetano, no show Doces Bárbaros

“Os Doces Bárbaros”: Gil, Bethânia, Caetano e Gal

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faz” (2005), “Dentro do mar tem rio” (2006), “Tua” e “Encanteria” (2009). Recebe a medalha da Ordem do Desasossego, criada pela Casa Fernando Pessoa para condecorar divulgado-res da obra do poeta, e estreia o show “Amor, Festa e Devoção” (2010). Seus trabalhos mais recentes são o CD “Oásis de Bethânia” (2012), o DVD “Carta de amor” (2013) e o CD “Meus quintais” (2014).

“O Rio me comove, amo olhar a pedra de São Conrado, que tem uma força mágica, e vir de carro pela avenida Niemeyer. Saio bem pouco, mas gosto de me informar sobre os aconteci-

mentos da cidade. Não vou a restaurantes. Fui criada comendo à mesa com a família inteira e, neles, não conheço as pessoas ao lado, e isso me angustia. Gosto de cozinhar para mim no dia a dia. Sou bicho do mato, interioraníssima. Porém, combino com o Rio de Janeiro, que re-presenta a moldura perfeita para o que sinto. Vim para passar quatro noites e estou aqui há 50 anos. É a cidade mais linda do mundo. Ela e Santo Amaro”, declara docemente Bethânia, enquanto cumpre a agenda de ensaios para a turnê de shows comemorativos do jubileu, que estreiam em janeiro. Onde? No Rio, claro.

“Combino com o Rio de

Janeiro, que representa a

moldura perfeita para o

que sinto”

Mônica Sinelli

[email protected]

Bethânia e Caetano, no show Doces Bárbaros

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andança

só quem viu pode contar

Autor de mais de 200 músicas gravadas, entre as quais retumbantes sucessos,

como Sá Marina, Juliana, Teletema e BR-3, feitas com o parceiro Antônio

Adolfo na época dos efervescentes Festivais Internacionais da Canção, Tibério

Gaspar está de volta aos palcos. Agora, para o lançamento de seu segundo

álbum autoral, “Caminhada”. Que, no caso dele, está povoado tanto de belas

criações líricas quanto libertárias.

p o r rubeny Goulart

O público presente ao Teatro Rival no último dia 1º de dezembro pode não ter entendido, de pronto, a sequência de BR-3, cantada em forma de rap por Tibério. Mas, aos poucos, tudo se clareou. O inusitado adendo na canção original, assinada por ele e o pianista Antônio Adolfo, demonstrou que havia, sim, uma estrada onde se morria em função de perseguição política. A música não era referên-cia, como se tentou fazer acreditar à época, a uma viagem lisérgica: constituía a metáfora política de uma viagem que, naqueles tempos bicudos, para muitos não tinha volta.

Sucesso instantâneo na voz e nos requebros robotizados de Tony Tornado (“a gente corre na BR-3 / e a gente morre na BR-3”), a vencedora da etapa brasileira do Festival Internacional da Canção (FIC) de 1970 no Maracanãzinho, porém, não dá o tom do repertório escolhido por Tibério Gaspar para o CD e o show de lançamento de seu segundo álbum autoral, “Caminhada”. O título re-

monta à primeira parceria do letrista com Antônio Adolfo, um baião que seria também a sua primeira composição gravada, em 1967. A essa fase, caracterizada, segundo Tibério, pelo movimento Toada Moderna, que se amparava em canções mais poéticas que carbonárias, pertence a maior parte do roteiro. “Era uma síntese da Bossa Nova com a Jovem Guarda”, teoriza o letrista. Abafada pelo Tropicalismo, desdenhada pelos críticos, reunia obras que se tornariam clássicas, como Sá Marina (sucesso nacional da dupla TG&AA), Viola enluarada (Marcos e Paulo Sergio Valle), Travessia (Milton Nascimento e Fernando Brant) e Andança (Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós).

O período do efervescente FIC, entre 1968 e 1972, corresponde à produção de libelos musi-cais contra o sistema. Hoje, aos 71 anos, mais de 200 músicas gravadas e cabelos brancos es-correndo nas bochechas, o ex-incendiário Tibério

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andança

tem discurso ambientalista e é devoto de Jesus Cristo. Bom de papo, fala mansa, Tibério está bem mais para o autor de Melhor amigo e Vitória do bem, além das eternas Teletema (“rumo, estrada turva, sou despedida / por entre lenços brancos de partida / em cada curva sem ter você vou mais só”) – sucesso retumbante na voz de Regininha e trilha sonora da novela Véu de noiva, da TV Globo –, e Sá Marina. Essa personagem, que esbanja frescor e sensualidade (“descendo a rua da Ladeira / só quem viu que pode contar”), nunca existiu com esse nome. Na vida real, que muitas vezes precisa se submeter à poesia, era Brasilina, “uma moça de saia branca costumeira, que vivia no distrito de Anta, no município de Sapucaia do Sul, onde morei até a adolescência”, conta Tibério. “Anos depois, fui procurado por Antônio Adolfo para colocar letra numa música. Ouvi a melodia e, na hora, me veio à lembrança a imagem de Brasilina.”

A musa, na leitura do poeta, virou um sucesso estrondoso na voz de Wilson Simonal. E ganhou o mundo, depois que Sérgio Mendes e até Sua Majestade do pop, Stevie Wonder, a gravaram. Anos após a explosão de Sá Marina, a produção de “um Instante, Maestro”, programa apresen-tado por Flávio Cavalcanti, foi atrás de Brasilina para integrar o quadro “Os compositores e suas musas”. Mas ela se recusou a colaborar. “Não deu entrevista e nem sequer se deixou fotogra-far. Disse que gostaria que ficasse na memória das pessoas aquela imagem cantada em verso e música”, revela o criador de Juliana (segunda colocada no FIC de 1969), outra canção que enaltecia a sensualidade e a beleza da mulher e trazia resquícios do ambiente interiorano.

Influências interioranas

As lembranças de Anta, no sudeste fluminense, banhada pelo rio Paraíba do Sul, representam as

Tibério com Stevie Wonder, a cantora Cristina Conrado (sua companheira falecida em 2011) e o filho do casal, Victor Marú

Compenetrado, durante a cerimônia de Primeira Comunhão

Fotos: Arquivo pessoal

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primeiras influências na história musical de Tibério Gaspar. Na década de 1960, já vivendo no Rio, ele abandonou o curso de engenharia para aventurar-se na carreira de compositor e passou a frequentar as rodas de nomes nascentes da Bossa Nova, como Paulinho Tapajós, Eduardo Conde e Marcos Valle. Do grupo, que se reunia na casa de Beth Carvalho, também participava Antônio Adolfo, um talentoso pianista da turnê europeia de Elis Regina. Juntos, os dois fizeram Caminhada, que concorreu no Festival Internacional da Canção de 1967 e, àquela altura, já incorporava elementos da nova vida na Cidade Mara-vilhosa (“mesmo sofrendo na caminhada / eu sigo na madrugada / choro e vou correndo pra te abraçar / no vento da noite fria / na calmaria do mar”).

No emblemático ano de 1968, a dupla cria Visão, uma veia mais aguerrida na poética tiberia-na. A letra demonstrava como os ânimos no país estavam exaltados (“explode o céu/ derrete o sol/ desmancha em luz/ tanques e canhões/ falece o amor/ um grito em vão/ espalha a multidão/ a terra é mar/ de sangue e dor/ são mais de mil corpos pelo chão/ o homem trai/ o mundo e a paz/ e mata seus irmãos”). A ditadura não gostou. Começaram os telefonemas anônimos, a presença de estranhos nas proximidades da residência, ameaças e a cen-sura, que enfim proibiu suas músicas de tocar no

rádio. Com o cerco se fechando, congelado pelas gravadoras, Tibério decidiu sair do Rio. Em 1970, escondido no porta-malas de um carro, desceu na Rodoviária e embarcou num ônibus para Goiás, onde ficou por dois anos.

Lá, em parceria com Naire Siqueira, escreveu Companheiro, gravada pela cantora goianense Ma-ria Eugênia. A letra inspirava ideias libertárias (“vai amigo / não há perigo que hoje possa assustar / não se iluda / que nada muda se você não mudar”). A poesia de Tibério sempre transitava em antípo-das. Na mesma época, compôs com Luciano Bahia a música Cariocando, em que prevalece o olhar do carioca típico, do malandro hedonista. A letra abusa das gírias e maneirismos e exalta a alegria de viver (“sexta tá na Lapa / esquentando a chapa / todo mundo chama xará / vem cá / vambora lá / porque cariocando a vida é bem melhor”).

Apesar da voz de barítono, ele não cantava. Pura timidez. Nessa condição, era desfavorecido pelo departamento de marketing, e muitas de suas músicas não aceitas pelas companhias de discos ficavam na gaveta – se quisesse gravar, teria que cantar. um dia, acompanhando o impre-visível amigo Tim Maia num show no Circo Voador, foi chamado pelo “síndico” para subir ao palco. “Fui todo borrado, mas no fim estava interpre-

Fotomontagem: Tibério, Toni Tornado e Antônio Adolfo Tibério e o compositor Nonato Buzar

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andança

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tando várias canções”, recorda. E se desinibiu a ponto de nunca mais parar de cantar.

Em 2005, Tibério aceitou a indicação de Arthur da Távola para comandar um quadro musical na Rádio Roquete Pinto. No intervalo de um dos programas, recebeu um telefonema. “Era de um sobrevivente da Guerrilha do Araguaia, que me ligou emocionado. Contou que os guerrilheiros, nos acampamentos, em volta de uma fogueira, ouviam e cantavam juntos Companheiro, que dava a todos muito ânimo para o combate.” A vocação de compositor de letras de protesto somou-se a uma inclinação à atividade política. Ele chegou a se candidatar a vereador no Rio de Janeiro pelo PC do B, mas não se elegeu. Recentemente, sob a administração do prefeito Eduardo Paes, foi nomeado gestor cultural da Ilha de Paquetá, onde travou contato com os problemas ambientais da baía de Guanabara. “São 80 toneladas de dejetos despejados diariamente ali. A solução seria uma ação conjunta nas esferas municipal, estadual e federal. Infelizmente, não há vontade política no sentido de uma iniciativa desse porte”, lamenta. Já deixou a função, mas continua morando em Paquetá, em um hotel. Lá, passa os dias trabalhando, andando nas ruas sem carros, relaxando o espírito. Para que venham mais belas criações.

Ao lado do parceiro Antônio Adolfo Com o maestro Severino Filho, do conjunto Os Cariocas

Capa do CD “Tibério canta Gaspar”, de 2005

Fotos: Arquivo pessoal

Rogério Reis

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kid vinil

A histórica coleção de Long Plays (LPs) de seu patrono a um clique de

distância. Com essa surpresa, o Instituto Cultural Cravo Albin (ICCA) brinda os

amantes e estudiosos da MPB no fim deste ano. No primeiro momento, serão

disponibilizadas numa galeria digital de mais de mil capas de discos. Entre elas,

preciosidades, como o conjunto integral da cantora Ângela Maria e exemplares

raros de 10 polegadas.

p o r Kelly nascimento

O trabalho começou a ser organizado pelo presidente do ICCA, Ricardo Cravo Albin, aos 15 anos de idade. “A coleção de LPs tem origem nos formatos 10 polegadas do início da década de 1950. A par de preciosidades como o primeiro disco de Ângela, há exemplares contendo um mix de músicas de sucesso à época (1951/52) – extraídas de 78 rotações por minuto (rpm) –, vendidos em todo o Brasil. Ou seja, o 78 foi substituído pela versão 10 polegadas, e só assu-miu a condição de LP com gravações exclusivas a partir do 12 polegadas, base da coleção do ICCA”, explica Ricardo.

Outro destaque está no universo de Inezita Barroso, uma das artistas brasileiras mais pre-miadas. Conhecida como “A Rainha do Folclore”, é identificada com o que muitos definem como a “genuína música sertaneja”. “Eu a considero uma

das cinco maiores cantoras do Brasil de todos os tempos, às vezes esnobada pela impenetra-bilidade da classe média urbana do eixo Rio-São Paulo. Inezita nunca abriu mão de suas autênticas fontes de inspiração”, pontua.

Os fãs de Maysa também têm motivo para comemorar: a integralidade das capas dos LPs 10 polegadas da cantora de marcantes olhos azuis está, igualmente, digitalizada. “Reunimos capas históricas de outras estrelas daquele período, como Aracy de Almeida, Noel Rosa, Orlando Silva, Marlene e Emilinha Borba”, lista Ricardo.

Doações

Os LPs formam hoje a maior coleção do ICCA. Grande parte do acervo se constitui por doa-ções. Entre as mais preciosas, figura a de Nélida Piñon, que cedeu em torno de mil exemplares.

as molduras das canções

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19Out/nov/Dez 2014

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Carioquice20

kid vinil

“Os discos estão todos magnificamente bem conservados, muitos dos quais autografados por grandes personagens da MPB, antecedidos por carinhosas dedicatórias”, conta o fundador do Instituto.

Outro doador é o embaixador René Hague-nauer, com sua coleção de MBP e música clássica. “Temia que esse arquivo se perdesse ao longo dos anos. Então, eu e um amigo perguntamos ao Ricardo se ele tinha interesse em recebê-lo. É um enorme prazer que discos tão importantes em nossas vidas possam ser bem guardados e acessíveis a outras pessoas. Somos imensamente gratos por Ricardo ter criado um instituto dessa relevância para a música brasileira. Deveria haver outros Ricardos por aí”, comenta o embaixador.

O ritmo das doações ao ICCA continua frené-tico. “De personalidades famosas às mais diver-sas figuras desconhecidas, amantes da cultura nacional são tão frequentes que não passam 15 dias sem uma nova leva cedida. A par dos beneméritos, fico emocionado e agradecido a pessoas que, sabendo dos esforços e das lutas para levar o trabalho à frente, tentam abrir ca-minhos e veredas”, afirma Ricardo.

Tantas são as ofertas que o grande problema hoje do ICCA se traduz pela angústia de espaço. “Mas tenho por hábito não recusar nenhuma doa-ção – o que, às vezes, reconheço, pode sufocar

a mim, aos colaboradores e ao próprio Instituto”, admite o patrono da instituição.

arte das capas

Em tempos digitais, qual a função dos saudo-sos LPs? A eles, cabem a missão de preservar parte considerável da memória da música. O vinil torna-se protagonista do cenário fonográfico nacional a partir do começo dos 1950. Antes, tínhamos os discos feitos de goma-laca, com 78 rpm, contra 33 do vinil. Pesquisas indicam que somente em 1950 surgiram as primeiras capas de álbuns de 78 rpm – a exemplo de “Mário Reis apresenta músicas de Sinhô”, com uma ilustração

“É um enorme prazer que

discos tão importantes em

nossas vidas possam ser bem

guardados e acessíveis a outras

pessoas. Somos imensamente

gratos por Ricardo ter criado um

instituto dessa relevância para a

música brasileira”

René Haguenauer

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de instrumentos e notas. Outra moldura da época é um desenho de Di Cavalcanti, escolhido para o disco em que Aracy de Almeida interpreta canções de Noel Rosa.

O LP de 10 polegadas chega ao Brasil em 1951. Com ele, abre-se definitivamente um mercado para as artes gráficas no país. Nesse primeiro momento, ilustrações eram preferen-cialmente escolhidas para estampar as capas, em vez de fotografias. Nesse ramo de design,

o Brasil é pioneiro, ao lado de Estados unidos, Inglaterra e França. Se a imagem inaugural do LP é produzida em 1948, por Alex Steinweiss, na Columbia Records, em 1951, Paulo Brèves desenha a primeira capa no Brasil para a Sinter (distribuidora da Capitol). No período, além de Brèves, outros ilustradores se destacaram: Jose-lito, na gravadora Musidisc; e o argentino Páez Torres, na Continental.

Em 1958, o formato 12 polegadas surge absoluto no mercado fonográfico, trazendo alte-rações também no design de capas. O principal nome dessa fase, marcada por inovação e criati-vidade, é Cesar G. Villela, que fez escola na gra-vadora Elenco e influenciou diversas gerações. Suas soluções minimalistas representaram os álbuns de grandes nomes da Bossa Nova, como Tom Jobim, Nara Leão, Maysa e Baden Powell.

Confira a galeria em www.institutocravoalbin.com.br.

“A par dos

beneméritos, fico

emocionado e

agradecido a pessoas

que, sabendo dos

esforços e das lutas

para levar o trabalho

à frente, tentam abrir

caminhos e veredas”

Ricardo Cravo Albin

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Carioquice22

A poção mágica responsável pelo fortalecimento e restauração do ânimo das

crianças de outrora ainda sobrevive ao tempo – para gáudio dos amantes

de doces nostálgicos – em raríssimas casas, como a Leiteria Mineira, no

Centro do Rio. Além da receita tradicional, a chef Roberta Ciasca criou,

especialmente para a Carioquice, uma versão contemporânea desse poderoso

e revigorante pitéu: a velha e boa gemada.

Dona Benta

alimento da alma

p o r rubeny Goulart

Há um prato vazio na mesa dos saudosistas. Onde saborear um mingau, arroz-doce, leite queimado, gemada e outras comidinhas que evocam sabores da infância? Que fim levaram aquelas iguarias preparadas com o carinho da mãe ou o paparico da vovó, que ficarão para todo o sempre em nossa memória gustativa? Felizmente, essas receitas, que vêm do coração, podem, com alguma sorte, ainda ser degustadas nas boas casas do ramo da gastronomia cario-ca. A Leiteria Mineira, no Centro do Rio, reduto nostálgico da comidinha caseira, ainda oferece a seus clientes a tradicional gemada, servida há pelo menos 50 anos. “É uma das tradições da casa”, diz o sócio João Alberto Lima da Costa, o Beto, que a herdou do pai. “Temos alguns poucos fregueses que procuram a bebida para café ou lanche da tarde.”

Bebida? Há controvérsias. Outras referências na cidade dão conta de uma gemada doméstica

mais cremosa e adensada por colheradas de açúcar, que se misturam a uma ou duas gemas de ovo dentro da xícara. Elaborada no aconchego dos lares, muitas vezes pelas próprias crianças, o preparado vai ganhando consistência diante de repetitivas e ritmadas batidas com garfo. A partir dessa base, as improvisações não encontram limi-tes. Líquidas ou cremosas, existem gemadas para todos os gostos. Na da vovó, a básica, o principal ingrediente está no carinho com que é feita. A molecada lambe os beiços. Na versão gourmet, leva vinho do porto. Como bebida medicinal, para curar gripe ou tosse, inclui mel ou própolis. Nas receitas mais excêntricas, agrega cerveja ou co-nhaque. Há, inclusive, a gemada que, juram seus adeptos, tem poderes afrodisíacos – e leva, isso mesmo, caracu.

Na Leiteria Mineira, a bebida aquece as ma-nhãs e tardes frias dos clientes mais tradicionais da casa e, na maioria dos casos, vem acompanha-

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Gemada da Leiteria Mineira

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Carioquice24

Dona Benta

da de torradas. São os mesmos fregueses que, de vez em quando, pedem mingau ou coalhada e, no almoço, comem dobradinha. “É um item do cardápio que resistiu aos novos tempos”, explica o copeiro Gabriel de Oliveira, 75 anos, ele próprio um resistente, contabilizando cinco décadas de casa. É Oliveira quem prepara a iguaria, ao gosto do freguês, com ou sem canela. “Quando querem

RECEITAS DE GEMADA

Leiteria Mineira

Bater duas gemas e leite quente. Açúcar ou adoçante, a gosto do freguês. Pode-se acrescentar mel ou canela.

É bom para beber acompanhada de torradas Petrópolis.

Para tosse

Bater uma gema de ovo com duas colheres de sopa de açúcar, até ganhar uma consistência cremosa e homogênea,

preparando-se, a seguir, uma infusão com algumas flores de marcela em uma xícara de água fervente. Junte a

marcela à gemada, e tome, de preferência, antes de dormir.

Roberta Ciasca (chef do Miam Miam)

GEMADA COM GELEIA DE AMEIXA,

PORTO E FAROFA CROCANTE DE CASTANHA

Para a farofa, misturar a mesma quantidade (50g ou 100g) de castanha de

caju picada, açúcar e farinha. Juntar a manteiga (50g) em cubos gelados e,

com as mãos, incorporá-la na mistura seca até parecer areia grossa. Levar ao

forno baixo (160°) e mexer sempre, para que doure por igual. Retirar do forno

ainda molhada e deixar esfriar, para ficar crocante.

Pode-se usar geleia comprada pronta e adicionar uma colher de chá de vinho

do Porto para cada ¼ xícara, ou se aventurar a fazer uma preparação caseira,

como a de ameixas frescas. Para a gemada, bater bem as gemas com açúcar,

até atingir a consistência desejada. Em um copo ou pote de vidro, colocar uma

camada de farofa, uma de geleia e, por cima, a gemada, que deve ser batida

na hora de servir, polvilhada com canela em pó.

a gemada mais encorpada, coloco um pouco mais de açúcar e mexo em banho-maria.”

Satisfazer seus exigentes clientes é o que a Leiteria Mineira faz há mais de um século, desde a fundação, numa data que, por sinal, ninguém sabe ao certo. Os atuais sócios acreditam que remonte a 1909, apesar de no documento mais antigo, um cadastro de funcionário, constar o ano

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25Out/nov/Dez 2014

de 1916. O estabelecimento ganhou o nome de batismo porque, naqueles tempos, comercializava leite e derivados fornecidos pela fazenda do pri-meiro proprietário, em Minas Gerais. Isso numa época em que as propriedades alimentícias e até medicinais do precioso líquido eram exaltadas pelo seu valor nutricional, e não tinham, ainda, sido atacadas pelas patrulhas da dieta. Depois de trocar três vezes de dono, a Leiteria foi ajustan-do o seu cardápio e hoje serve café da manhã, lanche e almoço. Mantém pratos tradicionais, como dobradinha, picadinho com quiabo e arroz, frango grelhado com creme de milho, rabada com polenta e agrião e a indefectível canja de galinha.

A gemada induz a experiências pouco tradi-cionais no cardápio da alta gastronomia. É um ingrediente mágico que dá o viés contemporâneo à gemada que a chef Roberta Ciasca – expoente do conceito de confort food – criou especialmente para Carioquice. um respingo de vinho do porto faz a diferença numa mistura que inclui, ainda, farofinha de castanha e geleia de ameixa. Nesse coquetel de gulodices, a gemada representa a pincelada final da obra de arte gastronômica concebida pela laureada chef dos restaurantes Miam Miam, Oui Oui e Mira. Antes de elaborar a

nova formulação, ela pediu ajuda à cozinheira que, para sua surpresa, preparou a gemada bebível. E se surpreendeu. “Não é, definitivamente, a gemada que eu comia quando criança, uma receita da minha vó”, afirma, reforçando o choque entre o sólido e o líquido. Logo, quem quiser copiar o modo de fazer poderá adquirir a geleia e a farofa diretamente da fonte. Roberta está prestes a lançar “Coisas para Comer”, um sistema de entrega que disponibilizará os ingredientes que proporcionam o tempero único dos pratos nos restaurantes da rede.

Não se sabe ao certo quem inventou a gema-da, um preparado que, em sua forma rudimentar, é o gustativo básico do sabor adocicado. A com-binação de ovo, leite e açúcar configura a mistura predominante em boa parte da doceria carioca, de raízes portuguesas. O ovo, pelo alto valor nu-tricional, é recomendado para crianças em idade escolar. Quem nunca o comeu cozido na própria casca corre o risco de não ter tido infância. O leite, embora demonizado pela dietética mais radical, vem sendo utilizado na alimentação como fonte de proteína, gordura, energia e outros constituintes essenciais desde os primórdios da civilização. E, por fim, o açúcar, ingrediente de primeira hora de dez entre dez guloseimas.

A combinação de

ovo, leite e açúcar

configura a mistura

predominante em

boa parte da doceria

carioca, de raízes

portuguesasGemada com geleia de ameixa, porto e farofa crocante de castanha, da chef Roberta Ciasca, do restaurante Miam Miam

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Carioquice26

um cais para as estrelas

O primeiro armazém da região portuária do Rio, de 1871, foi cedido, então

em ruínas, pelo governo federal ao movimento Ação da Cidadania, no ano

2000. Após uma grande reforma, tornou-se uma belíssima edificação de

tijolos aparentes. Ali, no coração do Porto Maravilha, funciona o embrionário

centro cultural da entidade, em fase de captação de recursos para concluir

a implantação de seus diversos núcleos, e se tornar um dos mais bem

equipados da cidade. É um dos lugares mais surpreendentes de um Rio que

precisa se conhecer melhor.

p o r João Penido0

salve Betinho!

A história remonta a 1811, quando executa-do o Cais do Valongo, porto escravagista pelo qual ingressaram no país, em 20 anos, meio milhão de africanos. Antes, eles desembarcavam na praia do Peixe, atual Praça XV, e eram nego-ciados na rua Direita, hoje Primeiro de Março. Com a chegada da Família Real, em 1808, o tráfico de escravos quase dobra, acompanhan-do o crescimento urbano, que passa de 15 mil para 30 mil habitantes. A ordem de construção partiu do segundo Marquês de Lavradio, vice--rei do Brasil, alarmado com “o terrível costume de os negros entrarem na cidade através das principais vias públicas, não apenas carregados de inúmeras doenças, mas nus”.

Em 1831, ante a proibição do tráfico tran-

satlântico por pressão da Inglaterra, o Cais do Valongo fechou. No entanto, a proibição foi sole-nemente ignorada, daí surgindo a expressão “lei para inglês ver”. Começou-se a lançar mão de portos clandestinos para trazer os escravos. O Valongo, porém, passou por uma remodelagem requintada em 1843, para receber a Princesa das Duas Sicílias, Teresa Cristina Maria de Bourbon, noiva do futuro imperador D. Pedro II, e ganhou a designação de Cais da Imperatriz (aterrado em 1911, foi redescoberto durante as recentes escavações efetuadas na região do Porto Maravilha). Em frente a ele, na atual rua Barão de Tefé, o engenheiro negro André Rebouças, um dos expoentes da campanha pela abolição da escravatura, construiu, entre

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27Out/nov/Dez 2014

Em frente ao Cais do

Valongo, o engenheiro

André Rebouças,

um dos expoentes

da campanha pela

abolição da escravatura,

construiu, entre 1871 e

1876, o armazém Docas

Dom Pedro II

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Carioquice28

salve Betinho!

1871 e 1876, o armazém Docas Dom Pedro II, o primeiro do porto, destinado a guardar grãos vindos nos navios que atracavam no Rio, já com cerca de 275 mil moradores.

Projeto ambicioso

Esse foi o galpão, então em escombros, ce-dido pelo governo federal, no ano 2000, à Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida, fundada por Herbert de Souza, o Betinho, em 1993, para sediar a entidade e seu centro cultural. Em 2002, iniciou-se a reforma arqui-tetônica do imponente prédio de 14 mil metros quadrados de área construída em dois pisos, assinada por Hélio Pellegrino, conhecido pelo

emprego de materiais reciclados e de demolição. A primeira etapa, feita com R$ 4,2 milhões da Petrobras, via Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, incluiu a restauração do interior e das partes elétrica e hidráulica.

Segundo a coordenadora Ruth Almeida, como o combate à fome e à miséria foi assumido por diversas políticas governamentais, a entidade, voltada à distribuição de alimentos, se dedica, agora, à inclusão social, por meio da oferta de cursos de capacitação, a exemplo dos de ges-tão e produção cultural, fotografia e circo. No momento, a Ação da Cidadania busca recursos junto a empresas socialmente responsáveis para implantar diversas atividades de exposições,

Ruth Almeida: “Transformar sonhos em realidade era a marca do Betinho”

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29Out/nov/Dez 2014

Programações de teatro, música e dança

música, teatro e gastronomia, além de um polo de cinema e vídeo.

Trata-se de um projeto global ambicioso, que poderá ser executado por módulos, a um custo entre R$ 35 milhões e R$ 40 milhões. O Espaço Renato Russo de Música e Cidadania, com 12 metros de boca de cena, oito camarins e os mais modernos equipamentos de iluminação e som, terá capacidade para 1,5 mil pessoas sentadas e 3 mil em pé. Já o Espaço Domingos Oliveira, pro-jetado pelo cenógrafo Marcos Flaksman, de 300 lugares, oferecerá uma programação destinada a teatro, música e dança. Por sua vez, o Polo de Cinema e Vídeo reunirá duas salas de 150 lugares cada, um estúdio para aulas práticas e ilha de edição. O Espaço de Exposições abriga-rá mostras de pintura, escultura, fotografia e gravura, além de feiras, congressos e desfiles.

Ruth Almeida não se assusta com a magnitude da empreitada. “Afinal, transformar sonhos em realidade foi uma das características marcantes de Betinho. Além disso, o Centro Cultural Ação da Cidadania já conseguiu promover diversas atividades culturais significativas”, afirma. Já em 2002 foi encenado “O menino no meio da rua”, musical com 50 atores e cenário e figurinos de

Este ano, realizou-se o projeto “Docas Dom Pedro II”, incluindo show da OSB

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Carioquice30

salve Betinho!

Rosa Magalhães. Este ano, de 26 de setembro a 3 de outubro, desenvolveu-se o grande projeto “Docas Dom Pedro II, um patrimônio da região por tuária a revelar”, abarcando concer to da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), shows de chorinho e roda de samba, apresentação da Cia Aérea de Dança, mostra sobre a evolução do por-to do Rio, a peça “O cheiro da feijoada” e exibição dos documentários Cais do Valongo, Sangra da Terra e um filme de dança. Houve palestras do cantor Nei Lopes (“Os negros da Saúde, religião e samba”) e de Carlos Eugênio Líbano (“Do Cais do Valongo às Docas Dom Pedro II”), Edmilson Martins Rodrigues (“Reformas urbanas no Rio e a zona Portuária”) e José Miguel da Trindade

(“André Rebouças, uma pesquisa teatral”). Sobre este, estreou, em novembro passado, “André Rebouças, o engenheiro negro da liberdade”, peça envolvendo a campanha abolicionista, os bailes da Corte, a Guerra do Paraguai e a Proclamação da República. Ainda em 2014, foi realizado o “Cais do Porto Musical”, módulos de oficinas gratuitas, concertos e palestras acerca das influências africanas, indígenas e europeias na nossa música. O módulo “Gafieiras cariocas, música e dança” teve palestra de Ricardo Cravo Albin. Ele abordou a dança brasileira derivada da popularidade do lundu, o nascimento do maxixe, os lendários cabarés da Lapa, a era do rádio e o surgimento do samba de gafieira.

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31Out/nov/Dez 2014

André Rebouças

O engenheiro negro André Pinto Rebouças nasceu em

Cachoeira, na Bahia, em 13 de janeiro de 1838. Seu

pai, filho de uma escrava alforriada e de um alfaiate

português, foi advogado autodidata, deputado pelo

estado no Parlamento Imperial e conselheiro de

Dom Pedro II. André e seu inseparável irmão Antônio

cursaram engenharia na Escola Militar e viajaram com

bolsa de estudos para especialização em Londres

e Nova York – o túnel Rebouças, no Rio de Janeiro,

recebeu este nome em homenagem aos dois.

Ele ganhou fama na então capital do Império ao construir uma rede de abastecimento de

água, trazendo-a de mananciais localizados fora da cidade. E tornou-se um dos baluartes

da campanha antiescravocrata, ao lado de Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. “Não basta

abolir a escravidão, é preciso abolir a miséria”, dizia. Proclamada a República, em 1889,

André embarcou para o exílio na Europa, em companhia da Família Real. Por dois anos,

permaneceu em Lisboa como correspondente do “The Times”, de Londres. Em 1892, com

problemas financeiros, aceitou um emprego em Luanda por 15 meses. Deprimido, fixou-se

em Funchal, na Ilha da Madeira, onde viria a se suicidar cinco anos depois. Seu corpo foi

resgatado na base de um penhasco, próximo ao hotel em que morava.

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Carioquice32

o caldeirão do bruxo genial

Com sede em Santa Teresa, a Fundação Darcy Ribeiro tem por missão

preservar o ideário do grande professor e buscar a continuidade de seus

projetos educacionais, oferecendo cursos para atualização de professores.

A instituição disponibiliza o acesso ao precioso acervo documental de

Darcy, incluindo arquivos pessoais, como cartas e fotografias. A biblioteca

reúne 22 mil títulos, com destaque para as áreas de antropologia, etnologia

indígena, educação, meio ambiente e literatura.

p o r Kelly nascimento

eros e tânatos

O espírito do santo padroeiro das causas possíveis e impossíveis resiste nas colinas de Santa Teresa. Na Fundação Darcy Ribeiro (Fun-Dar), o pensamento do intelectual, defensor de tantas delas, reverbera. A instituição cultural, de pesquisa e desenvolvimento científico, criada em 11 de janeiro de 1996 pelo então senador Darcy Ribeiro, visa manter vivos seus projetos. “Temos a função de propagar as ideias associadas a educação de qualidade, cultura brasileira e meio ambiente. Ele doou todo o acervo para a FunDar”, explica o presidente Paulo Ribeiro, sobrinho de Darcy. uma das joias da coroa é o patrimônio for-mado pelos arquivos pessoais do mestre e de sua ex-mulher, a antropóloga Berta Gleizer Ribeiro. Ainda em fase de tratamento, o conjunto – textos, fotografias e outros documentos – representa valiosa fonte documental para pesquisadores interessados nos mais diversos temas.

A instituição encerra 2014 comemorando um importante feito: a retomada da Biblioteca Básica Brasileira, a BBB. “Trata-se de um projeto con-cebido em 1962, quando Darcy exercia o cargo de primeiro reitor da universidade de Brasília, com a proposta de reunir e editar 100 títulos se-

Fund

ação

Dar

cy R

ibei

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O professor Darcy Ribeiro

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33Out/nov/Dez 2014

Memorial Darcy Ribeiro, em Brasília

Fundação Darcy Ribeiro, em Santa Teresa

Para a Fundação Darcy

Ribeiro, a figura do

professor representa o

centro de um ensino

de qualidade

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Carioquice34

eros e tânatos

minais, que poderiam proporcionar ao povo uma compreensão mais profunda de sua trajetória histórica, social, política, econômica e cultural. A BBB já nasceu grande, dividida em dez coleções, de uma dezena de livros cada, fundamentais para se conhecer o país. Em 1963, então ministro da Educação, Darcy realizou a etapa inicial de seu sonho, ao publicar as dez primeiras edições. Mas o regime militar inviabilizou a continuidade do projeto. Agora, vamos lançar mais 50 obras, que serão distribuídas a 50 mil escolas públicas de ensino médio”, afirma Paulo.

Programas educacionais

Dentro do projeto “Formação continuada em educação”, a FunDar oferece cursos presenciais para atualização de professores de escolas públicas e privadas, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei Darcy Ribeiro – e com os Parâmetros Curriculares

Nacionais (PCN). uma experiência pioneira foi desenvolvida no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Trata-se do “Projeto curricular: escola de horário integral” – modelo que se caracteriza por um tempo maior de permanência dos alunos (de seis a oito horas por dia) – e oferta de um leque de atividades educativas que favorecem o melhor desempenho acadêmico dos estudantes, contribuindo para o seu desenvolvimento integral. “Implementamos a iniciativa em quatro escolas da Maré, em parceria com a prefeitura do Rio. Ao co-meçarmos, em 2012, encontramos um cenário de grande dificuldade, com pessoas vivenciando uma verdadeira guerra civil, devido aos constantes confrontos entre os traficantes. Antes de sair de casa, os professores ligavam para a escola para saber se poderiam ir trabalhar”, recorda Paulo.

Para a Fundação Darcy Ribeiro, a figura do docente representa o centro de um ensino de qualidade. “Por isso, o primeiro passo desse projeto foi justamente a formação de professores voltada à educação integral. Outro ponto relevan-te é a participação das famílias, trazendo-se a comunidade para a escola. Também trabalhamos fortemente a mobilização cultural.” Tanto esforço valeu a pena: “O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) das quatro escolas be-neficiadas melhorou sensivelmente”, comemora.

Segundo Paulo, um dos trabalhos de destaque se relacionou ao Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), instituído em 2005. Du-rante oito anos, a Fundação se manteve como principal parceira da Secretaria Nacional da Juventude, vinculada à Secretaria Geral da Presi-dência da República, na implantação do Projovem urbano, projeto do governo federal executado por estados e municípios. Nessa parceria, uma de suas incumbências consistiu em assegurar – por meio da formação profissional em serviço – a uni-dade dos pressupostos teóricos e operacionais

Paulo Ribeiro, presidente da Fundação e sobrinho de Darcy Ribeiro

Ricardo Brasil

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35Out/nov/Dez 2014

do programa, junto aos entes executores que o desenvolviam no território nacional. Ao todo, capacitaram-se 375 mil pessoas em sete anos.

No âmbito estadual, a Fundar operou com a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, entre 1999 e 2005, prestando consultorias para reorganização da rede de ensino e dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), idealizados por Darcy e implantados durante a administração de Leonel Brizola. “Nossa meta foi atingir uma nova concepção de espaço e de tempo na gestão da escola, resgatar a matriz curricular da educação básica e de uma educação integral”, lista Paulo.

Em 1984, Darcy, então vice-governador do Rio de Janeiro, convidou o arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, para trabalhar em obras públicas.

Carta de Lelé a Darcy

Como um dos desdobramentos da parceria, Lelé projetou o prédio para abrigar a Fundação Darcy Ribeiro dentro da universidade de Brasília, acolhendo seu acervo de livros, obras de arte e mobiliário. O espaço foi apelidado por ele – que não viu a construção pronta, em 2010 – como “Beijódromo”. Na visão do presidente da FunDar, o mestre está mais vivo do que nunca. É com esse espírito que a instituição apresentará ao prefeito do Rio, Eduardo Paes, propostas de presentes originais à cidade, em comemoração ao aniversário de 450 anos. “Temos três suges-tões, resgatadas de Darcy: retirar a estátua de D. Pedro I da Praça Tiradentes; iluminar as orlas de Grumari e da Prainha; e acender os painéis do projeto Arte no Muro, entre eles o da Sala Cecília Meirelles.” Será que o prefeito topa?

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Carioquice36

a favela nas cores de almodóvar

tem alvorada, tem passarada

Carioquice36

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37Out/nov/Dez 2014

e n s a i o f o t o g r á f i c o d e

adriana lorete

37out/nov/dez 2014

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tem alvorada, tem passarada

Carioquice38

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39Out/nov/Dez 2014 39out/nov/dez 2014

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tem alvorada, tem passarada

Carioquice40

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41Out/nov/Dez 2014 41out/nov/dez 2014

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tem alvorada, tem passarada

Carioquice42

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43Out/nov/Dez 2014 43out/nov/dez 2014

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Carioquice44

olha aí, é o meu guri!

Ela poderia estar flanando em shoppings, tomando chá em hotéis cinco

estrelas ao cair da tarde, levando, enfim, uma doce vida de socialite. Mas está

trabalhando. Como sempre, e intensamente. A carioca, doutora em linguística

e filologia, que estudou na Sorbonne, cumpre uma trajetória singular. Da alta

sociedade às calçadas da chacina de meninos de rua na Candelária, Yvonne

Bezerra de Mello se notabilizou pela devoção ao aprendizado de crianças em

situação de abandono.

p o r mônica Sinelli

meninos do rio

O projeto uerê, escola que implantou na co-munidade da Maré, é referência em pedagogia para jovens com bloqueios cognitivos derivados da exposição à violência doméstica ou das zonas conflagradas que habitam. A luta pela preserva-ção ambiental do Aterro do Flamengo, no bairro onde mora, também se conver teu, este ano, em nova pauta na sua movimentada agenda de ativista. E que lhe tem rendido uma prestigiosa galeria de condecorações, destacando-se, em se-tembro, a Légion d’honneur, a mais alta distinção outorgada pelo governo francês.

“Fundei o grupo Aterro Vivo – onde sábado e domingo caminho ao lado de uma engenheira florestal, anotando as irregularidades – a duras penas, e vamos conseguir revitalizar a área. O parque é leiloado entre políticos, não tem gestão, conselho consultor. Seis mil mudas desaparece-

ram. Burle Marx plantava árvores em núcleos geométricos, e existem hoje enormes vazios devido ao que retiraram e não repuseram, além de podas erradas. Estou me inteirando do geren-ciamento do Central Park, em Nova York, que não só apresenta um conselho paritário como também uma equipe que capta recursos na iniciativa privada – não é o governo que banca. Reúno quatro mil fotos catalogadas e pretendo fazer uma exposição a respeito. No uerê, incluímos a cultura do meio ambiente no currículo. Ser carioca é cuidar da sua cidade”, enfatiza.

Yvonne nasceu no hospital da Polícia Civil, na praça Mauá, indo residir na avenida Presidente Antônio Carlos, em frente à Maison de France, perto do trabalho de sua mãe, no Ministério da Fazenda. D. Lúcia, hoje com 100 anos, criou-a sozinha, ao lado de outro filho, Victor. Ensinava

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meninos do rio

aos filhos que, se o Brasil era um país injusto, eles precisavam conhecer os dois lados da vida social. E costumava levá-los em suas visitas à Fundação Romão Duarte, que abriga menores. No apartamento de dois quartos do Leme, para onde se mudou depois, frequentemente havia uma criança da instituição para passar o fim de semana com a família.

“Aos quatro anos, desci para brincar na pra-cinha em frente ao edifício e tirei os sapatinhos cor-de-rosa que tinha acabado de ganhar. Pas-sou um garoto e os roubou. Chorei muito. Foi a primeira vez que um menino de rua apareceu na minha vida. Freud explica”, ela brinca. No Leme, pedalava, patinava e nadava, sempre estudando em bons colégios, como Santa Marcelina, Stella Maris e Anglo Americano. Ao mesmo tempo, convivia com as crianças pobres do bairro. “Mamãe brigou comigo quando descobriu que eu montava uma banquinha na rua com elas – ‘todas molambentas’ –, para vender os gibis que já havia lido. Argumentei que era instruída dentro de casa a conhecer a visão do Brasil 2,

No Uerê, premiado internacionalmente como escola-modelo

Ao lado dos netos Alexander, Ingrid e Theo

“Sou teimosa, não

desisto. É isso que

resolvi fazer, e farei

enquanto puder”

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no intuito de que, futuramente, talvez pudesse realizar alguma coisa pelo país.”

Contrastes do rio

No dia de seu 13º aniversário, Yvonne recebe de presente da mãe a inscrição para ler para os cegos do Instituto Benjamin Constant. “Achei óti-mo, não reclamei. Lia para adolescentes mais ve-lhos. Fiquei tão avançada nas matérias – história, geografia, filosofia – que entrei na faculdade aos 17 anos. Em paralelo, patinando no fim do Leme, vi que ali funcionava um Instituto Pestalozzi. Muito enxerida, quis participar do atendimento àquelas crianças especiais, o que fazia aos sábados. E todo mundo me perguntava se eu não queria passear. Meu dia a dia girava em torno de estudo, trabalho voluntário e prática de esportes no Copa Leme e no Fluminense – natação, balé aquático, salto ornamental. Não me sobrava tempo para outras atividades, tanto que só comecei a namo-rar mais tarde.”

Ao ingressar na faculdade, integra o Projeto Rondon no Ceará. “Impactada pela miséria abso-luta do interior, diferente da pobreza daqui, tomei a decisão de destinar uma parte da minha vida ao

que faço hoje. Vi um bebê ofegante no chão de uma casa de taipa e a mãe me falando: ́ Só tenho uma vela. Se você me disser que ele vai morrer, eu acendo, senão, não acendo´. Aquilo me tocou muito. E ali prometi me dedicar a crianças em zonas de risco. O Rio apresenta esses contras-tes – os prédios de luxo na avenida Atlântica e, simultaneamente, o morro do Pavão-Pavãozinho atrás. No Leme, onde já existia a comunidade do Chapéu Mangueira, havia o cinema Danúbio, em que o pessoal da favela nunca podia entrar. uma vez, pedi dinheiro a minha mãe para convidar um amigo de lá, mas ele foi barrado na porta. Criei uma fuzarca. Quando a gente é criança, não entende bem a discriminação, já que estávamos pagando. Se formos atentos ao funcionamento da cidade, constataremos que continua igual, ou pior, sob esse aspecto. A população se multiplicou e as estruturas não acompanharam o crescimento”, afirma.

D. Lúcia – uma pioneira, que fez faculdade numa época em que poucas mulheres chegavam ao ensino superior – repete diariamente o mantra de que a única forma de sobreviver e competir no mercado de trabalho no Brasil era por meio

Cavalgar, paixão da vida inteira Com a mãe, Lúcia, e o irmão Victor

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da educação. “Botei na cabeça que iria estudar fora. Fiz exame para a Sorbonne e passei. Mo-rando numa república e sem muito dinheiro em Paris, comecei a me virar; levava cachorros para passear. Cursei filologia e linguística, justamente o campo que analiso até hoje. A linguagem constitui o maior fator de desenvolvimento, e as crianças que não a detêm não conseguem aprender – caso de, em razão do bloqueio emocional, todas as que habitam regiões em guerra ou áreas de conflitos. Patrocinada por uma organização estrangeira, fui à África, para realizar pesquisas em escolas no Sudão, Etiópia, Quênia, Angola e Moçambique, a fim de entender por que a educação nesses países não evoluía.”

Escola a céu aberto

Yvonne conhece seu primeiro marido, um di-plomata sueco, com quem tem três filhos, Andrea, Gunnar e Isabel. No retorno ao Brasil, separada,

Cercada dos filhos Andrea, Isabel e Gunnar

em 1980, já traz um estudo formatado acerca do que poderia ser feito junto a crianças em zonas de risco para estimular o aprendizado. Trabalha num banco e, à noite, ensina grupos de rua – uma escola sem portas nem janelas. Primeiro em Copacabana. Depois, na Candelária. É lá que, na noite de 23 de julho de 1993, ocorrerá a tragédia brutal: o assassinato, por agentes policiais, de oito das dezenas de jovens a quem ensinava. Casada então com o empresário Álvaro Bezerra de Mello, um dos donos da rede de hotéis Othon, é acordada pelo telefonema de um deles, clamando por socorro.

O acolhimento aos meninos abandonados lhe custa virulentas críticas dentro de seu próprio ambiente social. uma parcela do high-society, execrando-a sob a acusação de protetora de criminosos, deixa de receber o casal. O suporte do marido (falecido em 2010) e dos filhos é de-terminante para permitir-lhe enfrentar uma espécie

meninos do rio

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de exclusão invertida. “Faremos novos amigos”, apoia Álvaro. Sua reação à chacina da Candelária se volta a transmutar as mortes sangrentas em um comprometimento mais efetivo e organizado de preservação da vida. Em 1993, ela funda a primeira sala de aula do então futuro Projeto uerê, construída à base de tapumes embaixo de um viaduto no canal do Mangue. “Após quatro anos, com 200 crianças, o programa Morar sem Risco, do então prefeito Luiz Paulo Conde, remove a favelinha instalada no local para o Complexo da Maré. Foi assim que cheguei lá, onde estamos até agora.” A ONG, consolidada a partir de 1998, utiliza uma metodologia desenvolvida por Yvonne, destinada a desbloquear traumas e preparar o cérebro das crianças para que recuperem a memória e criem capacidade de concentração e armazenamento de informações. Premiado internacionalmente como uma escola-modelo, o uerê se sustenta por intermédio de doações de pessoas físicas e entidades privadas. Contabiliza cerca de sete mil jovens já atendidos – atualmente na faixa de 430 –, mais as 130 mil beneficiadas pela introdu-ção da metodologia em escolas municipais.

Apesar dos excelentes resultados, agres-sões, xingamentos e até ameaças de morte não

só perduram, como também avolumaram-se na esteira das redes sociais. “Os cidadãos estão saturados de serviços que não funcionam, de violência, assalto, e precisam de um bode expiatório. Nunca são culpados de nada, mas sim os pobres e quem trabalha com eles. Não reclamam ao governador, nem ao secretário de Segurança. Então, na cabeça de muitos, ainda persiste a mentalidade de que educo pivetes e bandidos.” Vida que segue. Yvonne pega o carro toda manhã e dirige cerca de 20 km, de seu apartamento com vista panorâmica da baía de Guanabara, até as salas de aula situadas no maior conjunto de favelas da cidade. Sem segu-rança, nem carro blindado. Garante não ter medo de nada. As tensões são diluídas na ginástica e nas caminhadas diárias pelo Aterro. À noite, a avó coruja de quatro netos (Alexander, Ingrid, Victor e Theo) pode escolher assistir a um show no Teatro Rival, bater papo num barzinho da Lapa ou dançar no Trapiche da Gamboa, na praça Mauá – “onde você entra na pista sozinha, rodopia e ninguém está nem aí”. No dia seguinte, está firme e forte para recomeçar a corajosa jornada. “Sou teimosa, não desisto. É isso que resolvi fazer, e farei enquanto puder.”

“Fundei o grupo Aterro Vivo

a duras penas. O Parque do

Flamengo não tem gestão,

conselho consultor. Vamos

conseguir revitalizar a área”

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Datemi un martello!

A leiloeira mais famosa do Rio revela os bastidores da atividade e conta casos

curiosos, envolvendo joias patrimoniais que foram a pregão, pertencentes a

famílias tradicionais da sociedade, como os acervos de Lily Marinho, recordista

absoluto de vendas, Bethy Lagardère, família Peixoto de Castro Palhares, Jorge

Amado e do mobiliário do Hotel Copacabana Palace.

p o r João Penido

radical chic

Os leilões de arte das coleções mais valiosas da cidade, a exemplo da de Lily Marinho, passam frequentemente pelas mãos de Soraia Cals, a arquiteta que os organiza, e do escultor Evan-dro Carneiro. Em 12 anos de atividade, Soraia contabiliza a realização de 50 eventos, nos quais foram vendidas cerca de 20 mil peças. Às vezes, incluindo itens inusitados, como o Rolls Royce de 1954 da família Peixoto de Castro Palhares e os vestidos e sapatos de grife da ex-modelo e socialite Bethy Lagardère.

Por apreciar desde cedo decoração e arte, Soraia optou por estudar arquitetura. Na univer-sidade Santa Úrsula, conheceu e veio a casar-se, aos 20 anos, com Fernando Cals, diretor do curso, adotando o seu sobrenome. Entre os seus professores, figuravam Lygia Pape e Nel-son Felix, dois artistas contemporâneos. “Saí da

faculdade já gostando de organizar exposições, o que, na verdade, configura quase um projeto de arquitetura: há a concepção, a formalização, a montagem, a conceituação”, explica.

Logo, um vizinho, o jornalista Nélson Priori, que apresentava, na TV Record carioca, poste-riormente TV Corcovado, o programa “Informe Econômico”, convidou-a a apresentar um quadro chamado “Arte é investimento”. Durante 1987 e 1988, Soraia fez 200 entrevistas com artistas, marchands e empresários do setor. O próprio Evandro Carneiro esteve entre os convidados, protagonizando, por meio de suas esculturas, a primeira exposição individual organizada por Soraia, em 1994, no MAM.

Outro entrevistado, com quem Soraia veio a trabalhar de 1989 a 1994, foi o paisagista Rober-to Burle Marx, que se definia como essencialmen-

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te pintor. “Ele dizia que toda obra de arquitetura que elaborou ligada a paisagismo começava na pintura, depois é que vinham os outros elemen-tos. Eu gostava muito de seus quadros e passei a vendê-los”, conta. Nesse período, produziu o documentário Eu, Roberto Burle Marx, narrado na primeira pessoa, no qual o personagem, que tinha voz de barítono e admirava os românticos alemães, chegava a cantar. Exibido inicialmente num especial de Natal na TV Manchete, o vídeo ganhou o mundo, sendo apresentado no Museu de Ar te Moderna de Nova York e em países europeus. Após esse período, Soraia começou a organizar exposições, a exemplo de uma sobre arte popular, no MAM, intitulada “Viva o Povo Brasileiro”, dentro da Rio-92. “Trouxemos artesanato de 23 estados brasileiros. Barbara Bush, então primeira-dama dos Estados unidos,

compareceu à mostra e afirmou que nunca vira coisa tão emocionante”, recorda.

Soraia é também produtora de catálogos. Em 1998, a Bolsa de Arte a chamou para executar o documento de uma importante coleção de pinturas, ocupando dois andares do Copacabana Palace. Foi o primeiro a conter a integralidade das obras reproduzidas, fato relevante quanto à verificação da autenticidade de um quadro. A partir desse enorme sucesso, Soraia passou a confeccionar todos os catálogos da Bolsa de Arte, onde permaneceu até 2002 – há gente que comparece às hastas só para pegar esses luxuosos e cobiçados livros.

Evento recorde

No ano seguinte, começou a organizar leilões. De início, contratava profissionais, mas, em 2006, juntou-se a Evandro, que anteriormente fazia seus próprios leilões. O principal, ao longo desse tempo, na carteira da dupla foi o da coleção Lily Marinho. Quando resolveu leiloar seu acervo, a Miss França de 1938, que fora casada com

Dona Lily Marinho

Nivouliès de Pierrefort, Marie (1879-1968)Paisagem de Paquetá (óleo s/tela, 73 x 92 cm

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Horácio de Carvalho e Roberto Marinho, estava com 86 anos. Como achava que ia viver somente mais três, o que de fato aconteceu, queria deixar os bens organizados, de modo a evitar disputas entre os herdeiros – um filho e os quatro netos de suas quatro ex-noras. Aos amigos, dona Lily lembrava as brigas ocorridas entre os herdeiros da família de Antônio Carlos Magalhães.

Soraia nota com pesar que, naquela idade avançada, dona Lily, que tinha “milhões” de móveis, vivia sozinha, sem nenhum parente por perto. “Ela teve dois filhos – Horacinho, que morreu em acidente de carro aos 26 anos, e João Batista, adotado, e que apresentava problemas psíquicos. A relação com Roberto Marinho era

Há gente que comparece

aos leilões só para pegar

os luxuosos e cobiçados

catálogos produzidos por

Soraia Cals

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totalmente independente no sentido econômico. Não havia transmissão. Ao casarem, ela já pos-suía uma fortuna avaliada em uS$ 150 milhões, herdada do primeiro marido. Organizamos seu acervo, cujo mobiliário, proveniente da venda de muitas fazendas, concentrava-se em duas delas. Catalogamos tudo – louça, prataria, pinturas, esculturas. Trouxemos 23 caminhões para o Rio apenas com móveis”, relembra.

O leilão (que não incluiu joias), realizou-se em março de 2008, envolvendo quase mil peças, e movimentou R$ 16 milhões. “Acho que nunca ninguém promoveu um evento que vendesse tan-to. Em geral, atinge-se no máximo R$ 5 milhões. um quadro do pintor cearense Antônio Bandeira, que viveu no Rio e morreu em Paris, foi bastante

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disputado. Com lance mínimo de R$ 800 mil, alcançou RS 1,5 milhão. Esse leilão representou também o de maior custo operacional. Normal-mente, gastamos em torno de R$ 500 mil, contra os R$ 2,5 milhões registrados no de dona Lily.”

amado Jorge

O segundo leilão de que Soraia mais gostou de organizar se relacionou à coleção Jorge Amado, com 578 peças, em novembro de 2008. Orçado em R$ 9 milhões, o acervo acumulado ao longo de 88 anos de vida do escritor reunia objetos pessoais, cerâmicas, mobiliário, conjuntos de cristal (comprados quando ele e zélia Gatai es-tavam exilados na Tchecoslováquia), desenhos, esculturas e quadros assinados por Anita Malfatti, Burle Marx, Carybé, Carlos Scliar, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Oscar Niemeyer, Alfredo Volpi e até

Fazenda Veneza, Vale do Paraíba Canecas do século XVIII

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Picasso. “Jorge tinha uma penetração inacredi-tável. Ganhava peças de presente de artistas do mundo inteiro. Ligado ao Partido Comunista, quando foi à China recebeu gravuras de pintores locais que, na época, não valiam nada, mas, de-pois, alcançaram preço extraordinário no leilão. O óleo Olympia do Agreste, de Cícero Dias, de 1935, teve lance inicial de R$ 150 mil e chegou a mais de R$ 300 mil. O primeiro estudo para a capa do livro Gabriela, feito por Di Cavalcanti em 1959, saiu a R$ 48 mil. E uma pintura da série Dona Flor, de Floriano Teixeira, de 1967, foi arrematada por R$ 10 mil”, cita.

Primeiro rolls royce

Outra coleção, leiloada em abril de 2013, per-tencia à Maria Cândida Peixoto Palhares. Falecida três anos antes, era herdeira da tradicional família Peixoto de Castro, dona de um império industrial e financeiro que incluía a Refinaria de Manguinhos. O evento englobava um Rolls Royce modelo Silver Wraith, o primeiro produzido pela fábrica britânica após a Segunda Guerra Mundial e do qual não restam mais de 20 espalhados pelo mundo. O exemplar é gêmeo do usado na posse da presi-dente Dilma. “Na época, vieram três carros iguais para o Brasil: o da Presidência, esse da família Peixoto de Castro e um terceiro, que ninguém sabe onde está. O que leiloamos permaneceu exposto em frente ao local onde são realizados os eventos, na esquina das avenidas Atlântica e Princesa Isabel, despertando enorme fascínio nos que ali passavam. Avaliado em R$ 200 mil, foi adquirido a R$ 500 mil, por um mineiro, cole-cionador de automóveis antigos.”

O leilão de vestidos e sapatos de grife da ex-modelo brasileira e socialite Bethy Lagardère (Elizabeth Pimenta Lucas), viúva do megaempre-sário francês Jean-Luc Lagardère – fundador do Grupo Lagardère, um dos maiores conglomera-

dos da França, e dono da Airbus e da Editora Hachette –, exibiu também artigos inusitados. “Foram oferecidos 56 pares de sapatinhos Ma-nolo, Louboutin, zanotti e Choo. Eram peças bem baratas, entre R$ 200 e R$ 400, mas desper-taram uma intensa paixão. As mulheres ficavam loucas por eles. E desesperadas, porque a Bethy calçava 41 europeu e 39 brasileiro, ou seja, os sapatos cabiam em poucas.”

Soraia realizou, ainda, em julho de 2012, o leilão do mobiliário do Copacabana Palace, adquirido da família Guinle em 1989 pelo gru-po Orient-Express Hotels, hoje Belmond. “A cada cinco ou dez anos, o hotel modifica seus quar tos. Quando os ingleses o reformaram após comprá-lo, venderam parte do mobiliário do anexo. E não tinham restaurado o mobiliário do prédio central. Nós organizamos o leilão por quartos. Tento pegar sempre alguma coisa para tornar o objeto mais atrativo. uma cama é igual a qualquer outra, porém, pertencendo ao quarto 104 do Copacabana Palace, torna-se um móvel especial. O pulo do gato de um leiloeiro está em encontrar um mote certo para comercializar o conjunto. Não se vende uma peça. Vende-se o leilão”, ensina.

um fato interessante se associa aos motivos que levam à aquisição de um artigo. “Houve um quadro de Di Cavalcanti, datado de 27/7/1967, que valia R$ 15 mil, mas saiu a R$ 60 mil, após acirrada disputa por dois interessados. Per-guntamos depois a razão de tanto interesse. O comprador respondeu que a data correspondia à de seu casamento, e queria dar o quadro de presente para a esposa. Já o perdedor do lance disse que era a do nascimento do filho. um leilão exerce enorme fascínio nas pessoas. Ou você compra aquilo naquela hora ou não compra nunca mais. Há esse poder de conquista, competição, jogo, até a posse do objeto”, conclui.

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No ramo empresarial também sempre foi muito importante ter uma boa base no Rio de Janeiro. E até mesmo as empresas, como organismos vivos e dinâmicos que são, manifestam em sua cultura os traços de uma cidade ímpar, que tem no bom humor um dos melhores resultados dos dias luminosos que acalentam a cidade durante quase todo o ano. uma forma leve de encarar a vida, mesmo diante das adversidades.

Embora dividindo o protagonismo com uma São Paulo que cresceu no ritmo irrefreável que a tornou conhecida como a “locomotiva do Brasil”, e mesmo tendo perdido o status de capital da República, em 1960, o Rio de Janeiro continuou a ser referencial para setores como a cultura e o turismo.

Após um longo período de esvaziamento eco-nômico, a cidade vem, nos últimos anos, redes-cobrindo sua vocação industrial, principalmente nas atividades ligadas a petróleo e gás e ao setor automobilístico. Vemos um renascimento da indús-tria naval, que volta a dar empregos a um número expressivo de trabalhadores, promovendo mais dinamismo para a economia.

O comércio de bens, serviços e turismo, que sempre foi forte na cidade, mostra sinais consis-tentes de que seguirá como um dos pilares da sua economia, beneficiando-se do crescimento, mas também contribuindo fortemente para ele, com o atendimento de uma demanda crescente e com a oferta de empregos.

Há um clima de retomada da vocação do Rio para ser um lugar onde todos querem estar. A cida-de está passando por um de seus mais importantes momentos de redefinição urbana, reflexo, em boa parte, dos compromissos assumidos para a reali-zação da Copa do Mundo 2014 e, principalmente, dos Jogos Olímpicos 2016. Os canteiros de obras estão por todos os lados. E se os transtornos são inevitáveis, está mais ou menos pacificado para o carioca que vai valer a pena enfrentar as dificuldades para, no futuro próximo, desfrutar ainda mais de uma cidade revitalizada em sua mobilidade urbana.

EmBaIXadOr do rio

Durante muito tempo, os brasileiros se acos-tumaram a ver o Rio de Janeiro como um destino obrigatório para os que almejavam alcançar de-terminados níveis de sucesso em suas atividades e carreiras profissionais.

A longa tradição estabelecida desde que a cidade assumiu o papel de centro da órbita da vida nacional, como capital do Brasil, tornou o Rio um lugar acostumado a acolher pessoas das mais diversas procedências. E em uma troca muito positiva no nível da formação do espírito da cidade, a diversidade humana moldou o conhecido jeito carioca de ser – a carioquice, cantada em prosa e verso, que distingue não apenas aqueles que aqui nascem, mas também os que optam por aqui viver.

Antonio Oliveira SantosPresidente da Confederação Nacional do

Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC)

Uma cidade que se reinventa

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