Martinho_alves_da_costa_junior - Femme Em Cinema e Artes Plasticas

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    PARA UMA REVISO DAS IMAGENS ENTRE CINEMA E ARTESPLSTICAS

    Martinho Alves da Costa Junior UNICAMP

    Resumo

    H ainda por se fazer todo um caminho nas relaes entre as imagens do cinema edas artes plsticas. Certamente, muitos j trilharam caminhos das relaes e dascitaes existentes entre um e outro medium. Contudo, o que por ora atra a atenonesta comunicao uma linha que comea ao menos na segunda metade do sculoXIX e que ganha fora no incio do cinema. Tais relaes so inclusive decisivas emalguns gneros cinematogrficos contemporneos e procuraremos resgatar econtribuir para entender este dilogo quase intocvel.

    Palavras-chaves: Sculo XIX, Histria do cinema, Pintura, Histria da Cultura

    Sommaire

    Il y a encore un chemin dans les relations entre les images du cinma et des artsvisuels qui doit tre fait. Certes, beaucoup ont foul les chemins de relations et decitations entre un et un autre support. Toutefois, pour l'instant ce quattire l'attentiondans ce prsentation est une ligne qui commence au moins dans la seconde moiti duXIXe sicle et se renforce avec le dbut du cinma. Ces relations sont essentielles

    dans certains genres du cinma contemporain et on essayera aider comprendrece dialogue presque intouchables.

    Mots-cls: XIXemesicle, Histoire du cinma, Peinture, Histoire de la Culture

    Legado perdido

    As artes plsticas do sculo XIX, sobretudo da segunda metade para frente

    deixaram um legado cultural fortssimo e, paradoxalmente, desdenhadas por

    grande parte da criao moderna. A fora penetrante da cultura de vanguarda

    apagou com intensidade a arte que se fazia com extrema qualidade. Hoje

    ningum se espanta com o carter visionrio de mile Zola, quando este

    escrevia sobre os artistas contemporneos (renegados pela crtica), os

    verdadeiros artistas:

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    Ao vermos no Champ-de-Mars os quadros de Cabanel e Grme eao pensarmos que esses pintores barraram o caminho de Courbetdurante toda a sua vida, ficamos muito tristes. Mesmo afirmando queo sucesso da mediocridade efmero, que cedo ou tarde a verdadeacaba por triunfar, e que no futuro cada um ser colocado em seu

    verdadeiro lugar o pintor de talento criador no alto e os mestres deescola pacientes e habilidosos nos ps da escala , de qualquerforma lamentamos a cega parcialidade da multido, e comeamos aduvidar da prpria verdade, ao vermos seus entusiasmos estpidos,que explodem diante de reputaes usurpadas (ZOLA, 1989:246).

    Imediatamente, nesta citao de Zola, percebemos que ele estava

    parcialmente correto. De fato, os pintores que para ele eram medocres

    encontraram o ostracismo que perdurou quase um sculo e ainda hoje mantmsequelas, enquanto seus protegidos conseguiram impor-se como verdadeiros

    portadores da arte que se seguiu.

    Muitos aspectos histricos corroboravam para esta viso nas artes. Basta

    lembrarmo-nos de 1855 e a exposio de Courbet, 1863 e a exposio dos

    recusados e, sem dvidas, de 1874 e a primeira exposio do grupo que se

    tornaria imediatamente impressionista1. Cada vez mais, os artistas atrelados

    academia tornavam-se sinnimo de retrgados e covardes j que no tinham

    coragem suficiente para se lanarem na experimentao da arte de vanguarda.

    A caada s bruxas tem xito e o triunfo dos vanguardistas significava ao

    mesmo tempo o funeral destes artistas.

    1Em 1855, por conta prpria e como uma reao contra a Exposio Universal daquele ano, GustaveCourbet, que teve suas obras recusadas naquela Exposio, decide realizar uma exposio individualbatizada por ele de Pavillon du ralisme. Este fato, de certa maneira, abre as possibilidades das criaesparalelas quelas da academia. J em 1863, depois do jri da academia recusar mais de trs mil obras,os artistas se revoltam e prope que o julgamento de seus trabalhos deveria ser feito pelo pblico. Aquerela chega aos ouvidos de Napoleo III que cria paralelamente exposio oficial o Salo dosrecusados. Embora a visitao tenha recebido um nmero enorme de visitantes, sua maioria compareciapara escarnecer os recusados. O fato da exposio tambm paralela a oficial de 1874 dos artistasagrupados sob o nome de Socit anonyme des artistes peintres, sculpteurs et graveurs fato bemconhecido. Depois da crtica feroz de Louis Leroy no jornal Le Charivari indicar tais pintores comoimpressionistas j que no queriam nada seno criar impresses inacabadas como esboos das obras

    nunca feitas, o grupo assume o nome e da chacota passa, em poucas dcadas, a ser consideradoexatamente como os artistas oficiais.

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    Por motivos ainda obscuros foram classificados de Pompiers, artistas

    pompiers, arte pompier2.

    Poderamos nos alongar sobre a inconsistncia do termo e a ambiguidadenesta classificao, contudo fugiria de nosso objetivo principal. Entretanto,

    tratava-se de aglutinar sob a mesma rubrica uma arte que a rigor comearia

    por volta de 1840/1850 e se arrastaria at o incio do sculo XX. Artistas to

    ricos e to diferentes entre si como Gustave Moreau, Jules Adler e Carolus

    Durand eram postos na mesma classificao, sem qualquer rigor ou

    aproximao: de fato, no se olhava para essas obras.

    No Brasil, algo semelhante acontece com o despontar do modernismo. Para se

    imporem era preciso destronar a arte dita acadmica. E de fato o que

    acontece, foi preciso esperar boas dcadas para que a arte do sculo XIX

    brasileiro engatinhasse em direo a um estudo srio e bem feito.

    Apesar da retomada dos estudos das artes plsticas desse perodo acontecer

    desde a dcada de 70 do sculo passado (notoriamente na Europa), ainda

    remarcamos o tom de desculpas e de explicaes dos quais pesquisadores se

    apoiam em seus discursos. Em um catlogo de um artista inconteste como

    Henri Lehmann lemos essas linhas:

    Descobrir Henri Lehmann e lhe fazer justia tambm contribuir ao

    trabalho de explorao e de reabilitao do qual se faz atualmente o

    assunto e no podemos seno nos alegrar durante muito tempo

    desdenhado, seno ignorado, da arte francesa do sculo XIX(AUBRUN, 1983: 5).

    2 Cf. principalmente o trabalho pioneiro e de grande lucidez de Jacques Thuillier Peut-on parler dunepeinture pompier?. Publicado a partir de uma conferncia de 1980 no Collge de France, o texto de

    Thuillier est inserido no incio da retomada na valorizao dessas pinturas e bastante esclarecedorcomentando pontos instigantes com rigor e seriedade. (Thuillier, 1980).

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    Hoje, com estudos de alto nvel3, evidente o peso que tais artistas tiveram e

    mesmo seu impacto para as artes. Seguindo os passos de Jacques Thuillier,

    por exemplo, podemos notadamente ver como, no contedo, esses artistas

    foram at mais modernos do que os ditos modernos. Ora, um Picasso, criava,

    realizava suas obras representando, naturezas mortas, retratos etc. Contudo,

    por meio de um Jules Adler ou Jean Augustin Lhermite, que temos ideia dos

    problemas e da vida moderna que acontecia naqueles anos.

    A passagem da cultura fin-de-siclee o cinema

    Desta forma, podemos indicar como este perodo das artes plsticas colaborou

    tambm para a constituio do cinema.

    Primeiramente preciso enfatizar que no se trata daquilo que Jacques

    Aumont indicou como efeitos de pura superfcie, primordialmente a citao

    (Aumont, 2004:79). As ligaes que sero postas dizem respeito, sobretudo aum ambiente cultural que se desenvolve a partir do simbolismo e do

    decadentismo (Note que para a crtica que analisava tal perodo todos esses

    meandros da pintura se encontravam sob a classificao de pompier).

    Especialmente nas ltimas trs dcadas do sculo XIX, desenvolveu-se um

    gosto pela beleza horrvel, tenebrosa. Aquilo que Mario Praz chamou de

    Beleza Medusia4, algo que a priori estaria fora da prpria concepo de

    belo. Esta caracterstica esteve fortemente presente naquela cultura. neste

    perodo que a presena da femme fataleaparece mais agudamente.

    3 Cf., sobretudo o livro de Coli, 2010, O corpo da Liberdade e Luderin, 1997, Lart pompier: immagini,sifnificati, presenze dellaltro Ottocento francese.4O termo referido est no livro A carne, a morte e o diabo na literatura romntica. Embora de maneiraglobal o livro atenda as expectativas desta comunicao, remarca-se, sobretudo o captulo A Beleza

    Medusia, no qual o autor exemplifica esta ideia do belo horrvel, ligado a temas sombrios como a morte.Cf. Praz (1996; 43-68).

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    Os exemplos de femmes fatales na histria da arte desse perodo so

    inmeros, contudo, vejamos para que possamos entender esta sensibilidade,

    apenas alguns exemplos notveis.

    Salome, 1901 de Gustav Aldof Mossa traz elementos pertinentes e, sobretudo

    originais na iconografia da danarina. A perversidade da cena e a inverso do

    personagem incomodam: primeiramente trata-se de uma criana em seu bero,

    juntamente com seu pente e uma pequena boneca ela brinca com um enorme

    faco, do qual lambe o sangue. Logo atrs da criana mortal, rosas cada qual

    com uma cabea. Cabeas ptridas de homens, vtimas do ataque certeiro de

    Salom, aqui uma criana-mulher. A ambiguidade entre brincadeira inocente e

    perversidade, entre ingenuidade e malcia posto de forma acentuada. A

    prpria concepo da figura paradoxal, a criana, com seus brinquedos e a

    mulher feita com o seio mostra e os ornamentos usados em seu leito, lugar

    dos jogos infantis e dos rituais macabros.

    Gustav Adolf Mossa. Salom, 1901. Giuseppe Amisani. La Culla Tragica, 1910.

    Uma obra embebida desse ambiente est presente na Pinacoteca de So

    Paulo, trata-se de La Culla Tragica, 1910, do italiano Giuseppe Amisani.

    Podemos perceber na tela do artista a fora desse tipo de representao. Para

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    alm das fontes literrias nas quais Amisani teria se apoiado5, vemos esta

    apario, tal qual uma Vnus s avessas. Tudo na imagem turvo, o fundo

    embaralha-se com as figuras em primeiro plano, h certa dificuldade para

    compreender o que cada elemento significa. Aos ps da figura feminina, no

    sabemos direito se so traos herbreos os marcas do drapeado do vestido

    que escapa do corpo. Os cabelos quase cor de fogo da figura parece

    corroborar o toque na cabea do homem que pede clemncia. A mo que

    tambm remete para algo como galhos secos de uma rvore, sugere uma

    maldio ou um toque da morte. O duplo toque (da mo e da cabeleira) parece

    amaldioar a figura masculina que certamente cair como os outros ao seu

    lado.

    Uma mo surge atrs dessa apario, agarra feito garras ou galhos o seio

    direito da figura que continua impvida. No h certezas, no sabemos se

    trata-se do brao da prpria mulher, ou uma outra figura que surge: tudo

    sugestionado. H certamente uma juno que aparece ao menos desde 1827

    com a Morte de Sardanaplode Eugne Delacroix entre morte e prazer.

    Poderamos nos alongar, citar e analisar incontveis exemplos das artesplsticas, o mesmo com a literatura. Contos, como os de Flaubert, Bram Stoker

    entre muitos outros reforam esta sensibilidade latente no fim do sculo XIX6.

    Quando pensamos cinema no que se refere a femme fataleimediatamente nos

    vem a figura de Theda Bara. O filme A fool there was, de 1915 mostra com

    clareza essas passagens. O personagem Vamp, interpretado por Theda Bara

    uma sugadora de homens, de seus corpos, de suas fortunas e tambm de suas

    almas. A forte cena na qual um de seus amantes transloucado e certo de que

    mataria o estorvo de sua vida a alcana em um navio marcante. E quando

    armado e determinado aproxima-se de sua vtima, percebe que no ter foras

    5Cf. No artigo Pintores italianos em So Paulo: o caso da Culla Tragica de Giuseppe Amisani, FernandaPitta indica vagamente uma ligao com a obra de Gabrielle dAnnunzio Il Trionfo della morte (Pitta,2008). Em trabalho recente e em desenvolvimento, Letcia Badan Palhares Kanuer de Campos remarca aambiguidade no nome da obra. Para a autora, fundamentada em cartas e artigos de jornais, o nomecorreto da obra seria Alcova Tragica. O que de fato faria sentido com aquilo que representado.6

    Para tanto, h um artigo, no prelo, cujo nome Morte, Luxria e Prazerque analisa a passagem culturalentre a literatura, artes plsticas e cinema. Costa Junior, no prelo, http://www.unicamp.br/chaa/eha.

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    para realizar a ao comandada de certa forma pela razo. Os encantamentos,

    tais quais de uma bruxa so muito mais poderosos do que o parco sexo

    masculino deixa entrever e nada tem a fazer seno se matar. Ela, por sua vez,

    segurando uma rosa, com um pequeno terno gesto, faz com que a frgil

    criatura masculina perceba do quo intil sua empresa. Esta ideia de mulher

    fatal, impregnada no final do sculo XIX, de extrema fora e presena no

    cinema destes anos.

    Russ Meyer. Faster Pussycat! Kill! Kill!, 1965.

    Gustav Adolf Mossa. Mary Magdala, 1907.

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    Mais prximos a ns so os filmes de Russ Meyer. Seus thrillers erticos

    denunciam de certa forma uma continuidade do prazer da perverso. No

    clssico de 1965, Faster Pussycat! Kill! Kill! uma gangue de quatro garotas

    subjuga o tsico sexo masculino pela fora fsica e tambm pela seduo de

    seus corpos. A mulher em Russ Meyer aparece sempre com seios

    extremamente fortes, salientes e extravagantes, quadris largos. J o homem,

    motivo de chacota, frgil e debilitado ou, quando forte, marcadamente ingnuo

    e impotente.

    Duas imagens esclarecem este ponto. Em primeiro lugar, um frame do filme:

    duas mulheres so vistas de costas, a cmera posta na altura do quadril

    juntamente com as roupas apertadas que acentuam as curvas dos corpos

    suntuosos. A cmera posta nesta posio revela tambm o lugar do homem,

    raqutico, tnue, tsico frente fora das mulheres. Neste ponto o fato do velho

    estar na cadeira de rodas acentua ainda mais a diferena de foras entre os

    dois.

    Na outra imagem, Gustav Adolf Mossa apresenta uma Maria Madalena, ou

    melhor, Mary de Magdala, 1907 o que j uma retomada do tema , deforma inusitada. Ela escalou a cruz em que Cristo est crucificado e atenta

    sexualmente contra o salvador. preciso perceber o papel da figura feminina

    semelhante as do filme de Meyer. Em Mossa, os braos de Cristo so fracos e

    debilitantes, j a figura de Madalena se impe, com suas vestes

    contemporneas e com formas voluptuosas onde os elementos de desejo so

    bem delimitados: o cinto que aperta e mostra a cintura, a sexualidade da

    transparncia do vestido que deixa-nos flagrar suas ndegas. Insacivel, vaiprocur-lo mesmo quando no h mais possibilidade de resposta.

    Orientalismo e decadentismo

    A questo da femme fatale uma entre tantas outras na qual podemos

    facilmente indicar relaes da sobrevida da arte do sculo XIX no cinema. A

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    juno entre o orientalismo e o decadentismo tambm gerou frutos apreciveis

    para a histria do cinema. As criaes de Delacroix ou Moreau, sobretudo

    aquele de incio de carreira so peas fundamentais. Vejamos Le cantique des

    cantiques, 1853 de Gustave Moreau. A figura bblica retratada no momento

    em que os guardas que faziam a ronda de uma cidade a interpelam7. O

    movimento circular, brio do qual a taa de vinho que escapa de um dos

    soldados testemunha conferem uma instabilidade na obra, reiterada pelo

    cu com nuvens buliosas atrs. Contudo, preciso firmar a concentrao na

    ornamentao dessas figuras. As figuras masculinas com seus elmos,

    braceletes e pulseiras, brincos largos e suas vestes que se misturam com peles

    de animais.

    No h como no pensar em filmes como Salammbo, 1925 de Pierre Marodon.

    A figura masculina cujo ornamento tem duas funes, o embelezamento e a

    proteo, comporta-se como um guerreiro oriental. Entretanto, este oriental

    este ligado diretamente ao gosto deste tipo de figura. Um artista como Grme,

    por exemplo, que exaltava um realismo em suas obras, ou seja, procurava

    alm de uma preciso do pincel, fontes histricas para que suas obras fossem

    as mais prximas possveis da realidade. Evidente que transmite muito mais a

    ideia de seu tempo, de sua sensibilidade do que qualquer outra coisa. Porm,

    obras como Police Versode 1872 ou La prire au Cairede 1865, figuram um

    ideal parecido.

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    Para uma leitura mais aguda desta obra e suas relaes com a pintura de Thodore Chassriau. Cf.Costa Junior, 2010: 5-19.

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    Gustave Moreau. Le cantique des cantiques, 1853. Pierre Marodon. Salammb, 1925.

    O mesmo acontece com a Clepatra, em especial a de Cecil De Mille, 1934 e a

    de Joseph L. Mankiewicz de 1963. Mais uma vez a ornamentao tem um

    papel preponderante nestes filmes. O de Mankiewicz, por exemplo, traz um

    exagero nos itens decorativos beirando o torpor. O excesso de ouro, o tilintar

    das peas uma nas outras, nos deixam prximos mais uma vez de Gustave

    Moreau. O trabalho em diversas Salom regado por elementos do excesso

    do exagero. Em A apariode 1874-76, o vestido precioso de Salom carrega

    tantos elementos que quase podemos escutar os elementos uns nos outros.

    A cultura dos horror movies

    Quando falvamos em dor e prazer conjugados poderamos imediatamente

    evocar alguns filmes de terror que possuem tambm essas caractersticas.

    Lembremos apenas que no fim do sculo XIX, no bojo do que caracterizou odecadentismo e o simbolismo, havia uma moda nos prazeres dos pecados, do

    corrompido e do proibido. assim, por exemplo, que caminha o conto A

    selvagem, 1892 de Bram Stoker. O prazer em sentir a dor (evidentemente sem

    que os destrua) que as mquinas de tortura poderiam fazer, acabam por

    destruir o protagonista, em uma narrativa turva e sombria. Um tipo de doce

    tortura que encontramos em alguns desenhos de Flicien Rops ou no

    celebrrimo filme de Clive Baker, Hellraiser, 1987. Os cenobitas, criaturas do

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    inferno voltam a terra quando chamados para proporcionar um prazer eterno

    baseado na dor. Eles prprios foram humanos e catequisados nesta doutrina.

    No segundo filme da srie, Pinhead, maravilha-se e regozija-se de prazer ao

    receber os pregos em sua cabea.

    Na dcada de 70 do sculo passado, dois filmes so particularmente

    interessantes. Morgana e as ninfas, 1971 de Bruno Gantillon e A casa com

    janelas sorridentes, 1976 de Pupi Avati. No primeiro caso duas amigas so

    acometidas a viver em um lugar a princpio idlico e que se transforma numa

    espcie de priso. Todo o ambiente circundante das figuras femininas etreo,

    quase no corrompido pela presena masculina. Essa harmonia simtrica

    posta de forma clara, como no frame mostrado abaixo. O rigor geomtrico

    compensado pelos drapeados das vestimentas. No h como no inferir

    imediatamente ao mundo calmo, harmnico, mstico e ao mesmo tempo

    misterioso de Puvis de Chavannes ou Alphonse Osbert. Trata-se de uma

    concepo mstica daquela comunidade, seja em Gantillon ou em Osbert.

    Alphonse Osbert. Soir Antique, 1908.

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    Bruno Gantillon. Morgana e as ninfas, 1971.

    J no filme de Pupi Avati, nas primeiras cenas, um homem sendo flagelado

    impiedosamente perceptvel parcialmente. Amarrado com os braos para

    cima lembra um mrtir e no decorrer do filme saberemos que se trata de uma

    pintura na qual os sentimentos de dor, angstia etc. so sentidos pelo modelo

    antes de serem transportados para a tela. A imagem mais que turva est

    desmanchando, como se houvesse um vu entre a imagem filmada e a

    cmera. O procedimento anlogo ao empregado em artistas como Eugne

    Carrire ou mesmo o escultor Merdardo Rosso. Em ambos os artistas, assim

    como no filme, uma esttica na qual a matria das figuras est se dissipando

    empregada, no h certeza nos contornos nem nas cores. A viso opaca e

    embaada. Cristo na cruz de 1897 de Carrire, inclusive guarda relaes

    possveis e pertinentes com a imagem do flagelado em Avati. De fato, paracompor uma realidade doentia, misteriosa e pecaminosa a aproximao com

    tal imagem torna-se eficaz, ampliando um e outro. Avati e Carrire tornam-se

    mais complexos e as imbricaes entre eles mais slidas.

    Alguns casos notveis na contemporaneidade

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    Evidentemente que este estudo ainda profundamente lacunar, seria preciso

    um espao exorbitante para expor com mincia as relaes imbricadas nos

    aspectos indicados. Cabe-nos agora apenas marcar casos que

    contemporaneamente fazem um paralelo com que insistimos at aqui. O filme

    A mmiade 1999, de Stephen Sommers, um bom exemplo.

    Stephen Sommers. A mmia, 1999.

    Eugne Delacroix. Exercices militaires des marocains, 1832.

    A cena de batalha debitaria de imagens como Exercices militaires des

    marocains, 1832 de Eugne Delacroix ou Chefs de tribus arabes se dfiant au

    combat singulier, sous les remparts d'une ville de 1852 de Thodore

    Chassriau. A violncia nos movimentos e no caso de Delacroix a participao

    da cena do expectador beira a experincia cinematogrfica.

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    Claro que poderamos continuar indicando e analisando filmes, como Tria,

    Alexandre, Sr. dos Anis entre tantos outros, fazendo parte de uma corrente da

    qual especialmente o cinema nunca largou. O legado das imagens e da cultura

    do sculo XIX certamente so mais ricos e mais presentes em nosso cotidiano

    do que uma primeira e despretensiosa vista pode deixar transparecer. Nesta

    comunicao o objetivo central foi expor os modos dos quais esta presena

    pode ser percebida.

    Referncias

    AUBRUN, Marie-Madeleine. Henri Lehmann. Paris: Muse Carnavalet, 1983.

    AUMONT, Jacques. O olho interminvel: cinema e pintura.Trad. Port. Eloisa ArajoRibeiro. So Paulo: CosacNaify, 2004.

    COLI, Jorge. O corpo da Liberdade. So Paulo: CosacNaify, 2010.

    COSTA JR. Martinho Alves. A presena de Chassriau em Moreau. In Revista deHistria da Arte e Arqueologia. N. 14. Campinas: RHAA, 2010, pp. 5-19.

    LUDERIN, Pierpaolo. Lart Pompier: Immagini, significati, presenze dellaltre Ottocentofrancese. Castello: Olschki, 1997.

    PITTA, Fernanda. Pintores Italianos em So Paulo - O caso da Culla Tragica deGiuseppe Amisani. In: 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr. 2008.

    PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romntica. Trad port.Philadelpho Menezes. Campinas, Editora da Unicamp, 1996.

    THUILLIER, Jacques. Peut-on parler dune peinture pompier?, Paris: PUF, 1980.

    ZOLA, mile. A batalha do impressionismo. Trad port. Martha Gambini. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1989.

    Martinho Alves da Costa JuniorDoutorando em Histria da Arte pelo IFCH/UNICAMP com a tese A figura feminina naobra de Thodore Chassriausob a orientao de Jorge Coli. Pesquisador do Centrode Histria da Arte e Arqueologia CHAA. Autor do livro Identidades Cruzadas:CCBB, Claraluzde Regina Silveira e seus espectadores. Em 2009 foi coordenador dogrupo de estudos Questes sobre a imagem e a mdia em Hans Belting no CISC.