Martins. a Velha Arte de Governar

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Premio Arquivo Nacional de Pesquisa 2005

PRESIONCIA DA REPOBLICA 44. 100 "_ ' 4!lai r171-T, irwoloa, 71". ,0 1

ARQUIVO NACIONAL COMISSAO JULGADORA

Claudia Beatriz Heynemann (presidente) Lticia Maria Lippi Oliveira Ismenia de Lima Martins Maria Fernanda Bicalho Maria Laura Cavalcanti

Maria Fernanda Vieira Martins A Velha Arte de GovernarUrn estudo sobre politica e elites a partir do Conselho de Estado(1842-1889) Martins, Maria Fernanda Vieira A velha arte de governar: urn estudo sobre politica e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889)/Maria Fernanda Vieira Martins. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007 440p.:il.; 22cm. (Premio Arquivo Nacional de Pesquisa, 22) "1 lugar no Premio Arquivo Nacional de Pesquisa 2005" ISBN: 978-85-60207-04-6 1. Brasil-Segundo reinado, 18401889. 2. Brasil. Conselho de Estado-Hist6ria, 1842-1889. 3. Elites-Brasil. 4. Brasil-Politica e Governo, 1840-1889. I. Tittulo. II: Serie CDD 981

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A Velha Arte de GovernarUrn estudo sobre politica e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889)

INTRODUCAO

A instituicdo era admiravel, e quando tudo (exceto a dinastia) se tinha vulgarizado, o Conselho de Estado, antes de vulgarizer-se, tambem, guardou por muito tempo o sabor, o prestigio de urn velho Conselho aulico ' conservado no meio da nova estrutura democratica, depositario dos antigos segredos de estado, da velha arte de govemar, preciosa heranca do regime colonial, que se devia gastar pouco a pouco.'

Corria o ano de 1841. Apds o fracasso do sistema de regencias que havia conduzido a proclamagn antecipada da maioridade de dom Pedro II pela Assembleia Gem! Legislativa, declarada em julho do ano anterior, era elaborado o projeto de crindo do Conselho de Estado, que reuniria politicos de varias tendncias e origens diversas, com o objetivo de apoiar e consolidar a unidade nacional e a prOpria monarquia.

Na Europa, as velhas dinastias dos Georges e Louises a todo custo procuravam manter suas coroas sobre as cabecas de seus eleitos, a despeito da intensidade dos ventos revolucionarios que as ameacavam. Mas, apOs os primeiros sucessos da politica liberal e as vitdrias sucessivas sobre os absolutistas, as monarquias constitucionais europeias enfrentavam duros reveses. Na Franca, o govemo iniciado corn a chegada ao poder de Louis Philipe enfrentava a oposicdo do bonapartismo e das revoltas populares, apesar dos esforcos de Guizot em mante-la no caminho liberal. Na Inglaterra, os whigs pressionavam a lideranca conservadora de Robert Peel, que enfrentava oponentes poderosos como Palmerston e Gladstone. Em toda parte o ideario liberal procurava garantir seu espaco no cenario politico e dominava os palanques e tribunas, locals assiduamente freqfientados por Pahnerstons, Russels, Gladstones, Thiers e Guizots de todas as nacionalidades, que discursavam palavras universals. De urn modo geral, a velha Europa que vinha enfrentando o caos, as crises e as guerras herdadas do period napoleonico agonizava corn as disputas politicas que marcaram a luta contra o absolutismo. Ao mesmo tempo, a experiencia politica da jovem nacdo norte-americana inspirava lideres e pensadores liberals europeus como Alexis de Tocqueville e Francois Guizot, na Franca, e John Stuart Mill, John Bright, William Gladstone e John Morely, na GraBretanha.2 Comecava-se a assistir aos avancos da economia liberal baseada na iniciativa privada e em urn desenvolvimento tecnolOgico e industrial crescente, cujos23

resultados ja se fariam sentir pela ampliacao do comercio internacional. 0 mundo buscava se adaptar a nova ordem instalada pela Revlucao Industrial inglesa e as transformacOes politicas iniciadas pela RevInca Francesa, que anunciavam o fim da era aristocratica e o inicio da sociedade burguesa, em seus valores, comportamentos e aches 3 Mas o progresso parecia ter trazido mais infortanios do que prometiam seus gloriosos ideOlogos e suas conseqiiencias eram ja visiveis sob diversas formas desde as primeiras decadas do seculo, quer pela evolucao dos quadros de miseria que os longos bravos da Revlucao Industrial alimentavam, quer pelo desenvolvimento de movimentos revolucionarios, que freqiientemente pareciam ameagar o carater exclusivamente liberal das reformas. Nesse contexto, a Revolucao de 1848, a primavera dos povos, embora tenha alcancado exit na derrubada das velhas monarquias absolutistas, nao Ode mudar o sentido dessas transformacCies. Ela foi a Ultima revolucdo politica europeia.4 Apesar dos tortuosos caminhos, no entanto, o modelo da monarquia constitucional de carater liberal tomava sua forma defmitiva a partir do amplo programa de reformas politicas e juridicas que atingia diversas areas da organizacao da sociedade civil, que vinham tendo lugar na Franca do pOs-1830, nos jovens Estados alemaes anteriormente ocupados pela Franca revolucionaria e, principalmente, na Inglaterra. 0 liberalism politico e os ideais democraticos de inspiracao francesa eram tambem representados pelo modelo norte-americano, embora em sua versa. republicana. Entretanto, longo seria o caminho das reformas que pretendiam excluir os resquicios do que entao se chamava Antigo Regime. As resistencias e pennanencias, particularmente no que se referia a estrutura social do regime, pareciam superar as rupturas revolucionarias, de modo que tanto a antiga aristocracia adaptava-se aos novos tempos, como a burguesia continuava buscando a nobilizaciio. Nesse sentido, a estrutura fundiaria mantinha-se como a fonte principal de riqueza dos grupos que chegavam ao poder.' As novas elites econOmicas continuavam muito mais prOximas da aristocracia e da Corte do que se esperaria apOs urn movimento como a Revlucao Francesa, o que reforcava a ideia de que, do ponto de vista politico, a grande obra do seculo teria sido a lenta superacao do modelo absolutista e a abertura da maquina administrativa do Estado aos novos setores emergentes e, a paste a veiha nobreza rural, a uma aristocracia que procurava qualificar-se para se manter no poder.6 Na Europa e na America, esses acontecimentos tiveram lugar quase simultaneamente, considerando-se a enorme distancia que separava os continentes, embora o processo de adaptacao a nova ordem internacional fosse mais longo na24

America, onde as colanias haviam sobrevivido ao jugo dos paises quando estes foram sacudidos pelos movimentos revolucionarios. No Brasil, apesar da ampla influencia dos movimentos liberais europeus e norte-americano, a porta de entrada do novo ideario ainda era a antiga metrOpole, na medida em que o berg da intelectualidade brasileira, ao menos ate o primeiro quartet do seculo XIX, era a Universidade de Coimbra, onde iam estudar os filhos das elites nacionais. Ali, esses jovens assistiram aos embates entre as novas ide'ias e a tradicao politica do Antigo Regime portugues, expressos nas tentativas de modernizacao do pals que vinham sendo perseguidas desde as reformas empreendidas pelo marques de Pombal. Mm o que representava, na pratica, a heranCa setecentista portuguesa e quais os obstaculos que colocava ao pleno desenvolvimento das modernas concepcCies de Estado e da prOpria politica no Brasil? 0 absolutismo portugues interferiu no pals nao apenas no que se refere ao conjunto das praticas de govern no period colonial, mas tambem no que concerne ao idedrio politico e a pr6pria histOria e, ainda, a forma como se davam as relacties entre as elites e as instituicOes governamentais. Esta pretende ser a hist6ria de urn grupo de personagens reunidos em torno de uma instituicao, o Conselho de Estado, Orgao que funcionou ao longo de todop Segundo Reinado, entre 1842 e 1889, como urn corpo de conseiheiros criado para apoiar a monarquia e auxiliar sua Ka governmental, ap ps a declaracao da maioridade do jovem imperador Pedro II. Nesse sentido, buscaram-se as origens das praticas institucionais que marcaram sua histOria, bem como seus esforcos em conciliar as herancas representadas pela estrutura de mando colonial e a influencia portuguesa de uma ja antiga concepcao da politica e da administracao com as novas demandas trazidas pelo ideario , liberal. Atraves dessa instituicao, portanto, procurou-se ainda analisar a participacao das elites brasileiras no Estado no seculo XIX, destacando-se sua atuacao diante de uma situacao especffica da histOria do pals, ou s ja, frente a necessidade de reconstruir a estrutura do poder, e o prOprio Estado, ap64 a abdicacdo do imperador, em 1831. 0 Conselho de Estado havia sido criado oficiahnente logo apOs a Independencia, em 1823, sendo sua manutencao confirmada corn a Carta constitucional de 1824. Seguia o modelo dos velhos conseihos aulicos europeus, com membros vitalicios, sofrendo a influencia de uma pratica politico-administrativa tradicionalmente associada ao regime monarquico europeu. 0 primeiro Conselho de Estado atuou junto ao imperador Pedro I desde 1823, sobrevivendo a sua abdicacao em 1831. Extinto no conjunto das medidas de carater liberal presentes na reforma constitucional de 1834, foi, entretanto, recriado em 1841 como express do dos esforcos de 25

reforma e pacificnao do pais e manutenao da ordem ptiblica apOs os violentos anos das regencias. Ao longo de todo o Segundo Reinado, o Conselho resistiu juntamente com o Senado como a mais estavel e sOlida das instituicOes monarquicas. Sua atunao politica sempre excedeu suas atribuicOes originais sem que, no entanto, isso servisse para sua dissolucao. Foi suprimido apenas com o desaparecimento da prOpria monarquia, cuja existencia sempre acompanhou e cuja n procurou regular e controlar. Partindo-se dessa constatnao, faz-se necessario analisar primeiramente como sua estabilidade pOde ser construida. Assim, pretende-se demonstrar os principios e razOes que nortearam sua nao politica, nao so por meio da analise de sua atunao, da investignao de seu real poder politico, do ponto de vista pratico e cotidiano, e de sua influencia no processo de tomada das decisOes, como tambem reconstituir o ideario e a aplicacao dos principios ali debatidos, que correspondiam ao conjunto de ideias e awes que the concederam forma e identidade especificas. Tal objetivo deve ainda ser buscado, no que se refere aos seus membros, por meio do estudo de suas origens, formacao socioeconOmica, trajetOria e relnOes corn a sociedade e com os grupos dominantes que nela atuaram. Fundamental ao entendimento desse processo a identificnao das redes de sociabilidade e parentesco que se pode observar a partir da elite reunida no Conselho de Estado e suas relnOes de continuidade no que se refere aos principais grupos econOmicos do pais os grandes negociantes e proprietarios de terms e escravos e as oligarquias regionais, as antigas familias que, desde o period colonial, controlavam os poderes locais e estendiam sua esfera de influencia nao so para alem dos pr6prios finites provirtciais, como em direcao ao poder central. 0 estudo de seus componentes, suas origens e identificnao como membros da elite, participnao ou ingerencia em Orgaos especfficos e da atunan em instancias diversas do Estado e da sociedade civil permite perceber quem eram e a quem representavam, verificando seus lnos e compromissos coin o objetivos e as propostas apresentados pelo governo imperial, a fun de delinear ou reconhecer suas diretrizes, awes, preocupnOes e prioridades. Nesse sentido, o estudo sobre o Conselho, como instancia de relacionamento entre o Estado e as elites, assume inegavel importincia, uma vez que o Orgao traduziu, por um lado, o pensamento do governo; e por outro, sua adequnao aos interesses dos grupos dirigentes e das elites ali presentes, permitindo observar como se davam as relnOes entre os grupos dominantes e compreender os espnos e os limites que se colocavam para a execnao de seus principios, projetos e propostas para o pais. 26

Essa atunao aparentemente nao se restringia apenas ao discurso, sintetizado na maxima "mudar para conservar"; buscava uma aplicnao pratica de principios que a politica do governo imperial vinha comprovar, fortemente conjugada a uma tentativa permanente de negocinao e de defesa de interesses especificos, sejam esses individuais ou de grupos.

Estado, elites e cultura politicaNesta abordagem considera-se o Estado como uma instancia do politico, por sua vez interpretado nao como um dominio isolado da realidade, mas como "o lugar onde se articula o social e sua representnao, a matriz simbOlica na qual a experiencia coletiva se enraiza e se reflete por sua vez". Assim, tambem o prOprio Estaflo toma-se urn espno onde se desenvolve uma dinamica prOpria, uma instancia em que se inserem as relnOes sociais e politicas presentes na sociedade, considerando-se o papel do individuo e sua capacidade de nao, ou, como diz Norbert Elias, segundo uma interpretnao que tern como elemento central os atores e suas redes de relacionamentos, e nao as noes despersonificadas.7 0 Estado, assim entendido, deixa de ser um representante das classes dominantes consideradas exclusivamente no sentido econOmico, ou mesmo urn instrumento das classes sociais ou arena de conflitos de classe, para revelar-se como resultado de uma internao permanente entre os agentes sociais e politicos que cortpOem a sociedade e que sobre ela atuam diretamente, a partir de sua insercao na estrutura de governo. Nesse sentido, ele surge e se transforma tomando por base a organiznao e mobiliznao desses grupos de agentes, organiznao esta que se toma possivel grnas nao apenas a uma identidade comum entre seus membros, mas tambem a partir das redes sociais e praticas de negocinao que os ligam uns aos outros e que competem com outros grupos pela capacidade de influenciar o Estado e dele obter beneficios.8 0 processo de formnao desse Estado no Brasil 6 aqui considerado corn base nas caracterfsticas que conformam o chamado modelo do Estado moderno, especialmente sua funao fundamental de normatiznao da ordem juridica considerando o processo de elabornao das leis e desenvolvimento de um aparato burocratico-administrativo para sua aplicnao, entendido como conjunto de normas e cargos, definicao de competencias, tramites e instancias de atunan da Justica , isto 6, a legaliznao do poder que permeia a prOpria constrnao da autoridade central. Nesse sentido, o dominio da lei e a sua manipulnao por instancias nao representativas, no sentido democratic do termo como foi o caso do Conselho de Estado no Brasil imperial , assumem um carater coercitivo que responde as demandas autoritarias que the sao inerentes na concretiznao de seus objetivos. Em outras27

palavras, se, teoricamente, a lei era o imperio da raid e, como tal, o locus da diluicao de conflitos, o monopOlio relativo a elaboracao e a inteligencia da lei, enquanto ele pode ser mantido, garantia a essas elites o poder de dar execucao a urn projeto de sociedade politica que se mantinha excludente e que, em geral, baseou-se na preservacao das hierarquias sociais entao existentes. 0 termo elite, aqui, esta sendo utilizado em seu sentido classic e mais amplo, de forma a abarcar aqueles individuos que se encontram no topo da hierarquia social. Segundo John Scott, ele surge como uma "vasta zona de investigacdo cientifica cobrindo profissionais da politica, empresarios, legisladores etc., e nao evoca nenhuma implicacao teOrica particular", 9 ou seja, A minoria dispondo, em uma sociedade determinada, em um dado momento, de privilegios decorrentes de qualidades naturais valorizadas socialmente (por exemplo, a raga, o sangue etc.) ou de qualidades adquiridas (cultura, mentos, aptidOes etc.). 0 termo pode designar tanto o conjunto, o meio onde se origina a elite (por exemplo, a elite operaria, a elite da nagdo) quanto os individuos que a compOem, ou ainda a area na qual ela manifesta sua preeminencia. No plural, a palavra "elites" qualifica aqueles que competem o grupo minoritario que ocupa a parte superiortda hierarquia social e que se arrogam, em virtude de sua Origem, de seus mentos, de sua cultura ou de sua riqueza, o direito de dirigir e negociar as questiks de interesse da coletividade. Tanto no singular quanto no plural, a palavra designa o contrario da massa, compreendida como multidAo de pessoas, como povo na sua integridade ou como maioria dos cidaddos pertencendo as camadas populares ou inferiores da hierarquia social.'

trava fortemente vinculada a relacOes familiares e a redes sociais as quais eles estavam associados, o que fazia corn que, freqiientemente, antes de serem homens ptiblicos, fossem representantes dos interesses e negOcios dos grupos e farm-has que os aproximaram do poder. Assim, o Conselho de Estado funcionava antes como urn espaco de debate, producao e troca. Ponto de convergencia de vidas e trajetOrias pessoais, o modo de funcionamento dessa organizacao revela a pratica relacional dessa elite, espelhando objetivos individuais precisos, sejam de ordem politica, ideolOgica, econemica ou moral, que os levaram a se encontrar e compartilhar urn espaco que se torna politico e social.12 Portanto, para que o Conselho de Estado seja aqui considerado como instrumento para a &rase da n e do comportamento da elite, trazendo urn novo entendimento sobre o seu papel na politica e na prOpria formagao do Estado brasileiro, d preciso ampliar a abordagem no sentido de entender essa elite nao como a representacao de um grupo isolado, a partir de suas caracteristicas internas de formacao e composicao, mas considerando ainda suas relacOes corn a sociedade, por meio das redes de aliancas e interesses que se constroem e se refazem permanentemente ao seu redor. Corn o objetivo de analisar a complexidade e diversidade que caracterizam essas relacees, toma-se fundamental o uso de alguns conceitos de origem antropolOgica, como as nocees de rede e troca, no sentido de transaciio, trazidas para a abordagem histOrica pela micro-hist6ria, em especial no que se refere a polftica e as relacees de poder que se formam em tomo da estrutura central do Estado, visando sua aplicacao a questa especifica do Conselho de Estado brasileiro no Segundo Reinado. A microanalise das redes de relacees sociais tornou-se urn terra caro micro-histOria italiana, destacando-se como objetos privilegiados os estudos biograficos e estudos de caso. Em diversos trabalhos, relacionados em geral a comunidades europeias no Antigo Regime, produzidos por autores como Edoardo Grendi e Giovanni Levi, as nocees de mediadores e redes sociais foram retomadas em associacao a aspectos tail como as relacees clientelares, mediacao entre centro e periferia, estrategias de aliancas, trajet6rias familiares e a capacidade de articulacao e adaptacao das comunidades diante do advento de novas conjunturas polfticas e econemicas externas, mas que atingiam diretamente uma regiao. Tal nocao de rede social entendida como a representacdo das interact-5es continuas das diferentes estrategias individuais:'3Relacties sociais formam redes, e nao apenas cadeias ou trilhas, precisamente porque cada pessoa e grupo constitui urn ponto de encontro, ou 29

A nocao de elite ressurgiu na historiografia corn o chamado renascimento da histOria politica e da renovacao de seus metodos e abordagens, como uma alternativa aos historiadores que questionavam os estudos tradicionais sobre o Oder centrado nas biografias dOs grandes personagens, e que, a partir do uso desse conceito, assumiam uma abordagem mais dinamica, que permitia considerar os grupos sociais, as trajeterias comuns e os elementos que conferiam identidade ao conjunto, bem como a diversidade de suas relacees corn a sociedade.11 0 uso mais generic dessa nocao torna-se particularmente titil para estudos de casos como o Brasil, diante da indefinicao de papeis sociais, nao no que se refere a hierarquia, mas quanto as suas funceies. Nesse caso, a vasta zona de investigaviio d ainda mais importante, pois permite a compreensao do grupo, tendo em vista seu carater mais peculiar, ou seja, a pluralidade de funcees e atividades a que se dedicam seus membros. De fato, os individuos que alcancavam os altos postos da administracao poderiam ser, e muitas vezes o eram, simultaneamente politicos, capitalistas, negociantes, proprietarios ou intelectuais. Por outro lado, deve-se considerar uma estrutura social na qual a pr6pria identidade individual ainda se encon28

no, de muitas relacCies. Assim, cada ator pode ser olhado como o centro de uma 'estrela de primeira ordem' [...] de relacionamentos. A complexidade de toda a rede dentro da qual um certo ntimero de estrelas se emaranha a enorme; mas a imagem nos pennite ao menos provisoriamente falar de sociedades como urn todo nestes termos."

za a sugerir a criacdo de normas que tomem previsivel o comportamento de cada um a todos os outros, 6 a pnipria dificuldade de previsdo que sugere que estas normas sejam elasticas, amblguas, de modo a consentir uma continua adaptacdo." Como afirma Charles Tilly, cabe destacar que esse tipo de abordagem permite, ainda, considerar a importancia que assume a politica longe dos grandes contros, possibilitando uma maior atencdo aos eventos locais e as suas articulacOes com os fenOmenos macroestruturais, que se evidenciam por mein das mUltiplas relay- es erredes sociais, cujas fronteiras so muitas vezes vagas e raramente coin6 cidentes.18

A nocao de rede, portanto, segundo M. Gribaudi, compreende a necessaria identificacdo dos grupos que atuam em urn determinado contexto, grupos e individuos que se cruzam e se sobrepOem, mas que nem por isso perdem suas identidades prOprias, suas histOrias e suas relacoes. Implica basicamente a defmkdo das reais ligacOes que mantem os grupos sociais "e quais so os contetidos profundos que neles so negociados".15 No centro das redes encontravam-se as familias, nao apenas a familia nuclear, mas uma teia que englobava as relacOes decorrentes de estrategias de alianca, principalmente atraves do casamento, lacos que se estreitavam diante das incertezas colocadas pelas mudancas e transformacties que enfrentavam essas sociedades em seu sentido amplo, quer de natureza econOmica, social, politica ou cultural. Diretamente relacionada a essa questAo, portanto, e a ela interligada, em geral, nos estudos acerca das relacOes de poder que se desenvolveram nas comunidades europ6ias no Antigo Regime, destaca-se o estudo do papel desempenhado pela fatntlia na base de uma estrutura de integracdo que se verifica em diversos niveis.'6 Nesse sentido, a pratica relacional extrapola seu sentido exclusivarnente econOmico, ligado a necessidade de estabelecer aliancas vantajosas do ponto de vista material ou de manutencdo dos bens e propriedades da famrtia, para assumir o sentido de busca de uma maior previsibilidade e mesmo interferencia no ritmo dos acontecimentos. E exatamente essa abordagem que abre espaco para a atuacdo direta e o estabelecimento de estrategias, sejam individuais ou de grupos. A necessidade da montagem dessas estrategias tornava-se mais pr6mente quanto mais se distanciava a esfera de decisdo, o que ocorria com a progressiva centralizacdo do poder dos Estados nacionais em formaydo. Essa situndo gerava maior inseguranca, pordm, por outro lado, provocava, no nivel local, a necessidade constante de adaptaydo dessas fanulias, de reorganizaydo de poder e criacdo de vim de acesso informayio.0 aprimoramento da previsibilidade para aumentar a seguranca foi um potente motor de inovagn tecnica, psicolOgica, social, e as estrategias nas relacties... foram parte das tecnicas de controle do ambiente. (...1 E neste quadro que as formas de associndo entre famflias so significativas, como um dos elementos estrategicos na criacdo de seguranca. As a relacOes s.7 o evidentemente sugeridas pela consangtiinidade e pela alianca; mas esta 6 apenas uma area privilegiada, que se pode ampliar e restringir, na qual se pode escolher e criar hierarquias. See exatamente a incerte30

Assim, a nocdo de rede complementa a compreenso do sentido que assume o termo elite, pela consideracdo de que formam grupos corn identidades construidas a partir de suas relacties, sem perder, no entanto, a nog-do de individuo, cuja importAlicia reside exatamente no fato de constituir o nticleo de uma estrela de primeira ordem, a integrar uma ampla cadeia de relacionamentos. Tais abordagens, tanto no que se refere a questo do Estado quanto a das 'elites e suas relayfies sociais,arfencas e praticas politicas, permitem recuperar o que Giovanni Levi considera urn larincipio fundamental, ou seja, a ideia da dinamica sempre presente nos processos histOricos.19 Por sua vez, tail praticas e crencas das elites governantes, cuja identificagdo torna-se fundamental para a compreensdo do desenvolvimento desse processo, correspondem a uma cultura politica, aqui entendida exclusivamente no sentido do conjunto de valores, comportamentos e formas de conceber a organizacdo politico-administrativa, resultado de um longo e dinAmico movimento de interacOes e acumulaydo de conhecimentos e praticas que se tomam predominantes em uma determinada sociedade e em urn dado tempo histOrico, no qual, entretanto, ela ndo 6 exclusiva ou, muito menos, definitiva. Nessa Otica, cultura politica se traduz como "o produto de um mecanismo de regulacao dos comportamentos politicos que inculca nos individuos atitudes fundamentais forjadas pela histOria e os conduz a compartilhar, apesar de suas diferencas de opinio politica, crencas comuns sobre a melhor forma de organizacdo".2 Malgrado a amplitude da definicdo, sua vantagem reside antes na concepcdo da cultura como um processo de continua interayAo, que no reflete apenas o actimulo das referencias e tradicOes que norteiam a atuacao dos diferentes grupos sociais e govemantes, mas que inclui tambem as transformacOes que estas vat) sofrendo pelo advento de novos comportamentos e ideias que surgem em funco de diferentes conjunturas, ou seja, uma din-Arnica permanente de rupturas e permanencias, de transformayies e continuidades que dAo forma a Kdo politica em um dado contexto.31

Entendido nesse sentido, o conceito de cultura politica tornou-se a solucao encontrada por alguns dos historiadores envolvidos no debate acerca da renovacao da histOria politica como Rene Remond, Christophe Charle, Michel Winock, Pierre Rosanvallon e Serge Berstein, entre outros para o etemo problema da curta durnao que costumava ser seu objeto, ao transformar a estatica em movimento, ampliando a analise do politico de forma a incorporar a diversidade e amplitude das relacOes sociais 21 Quanto ao Brasil, portanto, torna-se fundamental analisar as incertezas e instabilidades as quais estiveram sujeitas as awes desses grupos, bem como suas estrat6gias de adaptnao as diferentes conjunturas, particularmente aquelas relacionadas diretamente ao processo de centralizacao do Estado imperial, que implicou, por sua vez, uma reorganiznao das estruturas de mando no nivel local. Tais estrategias se referiam tambem a necessidade de conciliar as novas tendencias corn a herana deixada pela administracao luso-brasileira colonial, suas praticas e seus principios. 0 ideario liberal introduzia no Brasil o debate acerca do modelo politico a ser implementado, bem como questOes como representacao e partidos politicos, relativas as necessidades de reorganizar o govern e o prOprio pais ap6s a Independencia e, mais tarde, perante a abdicacao do imperador. A consideracao desse conjunto de elementos as trajetOrias, carreiras, a composicao e o comportamento politico-econOmico dos membros do Conselho de Estado, sua cultura politica, seu perfil coletivo, bem como suas redes dit relacionamentos e os interesses diversos nelas contidos tern por objetivo extrapolar seu prOprio discurso, evitando-se as armadilhas que, em geral, se colocam pela retOrica e que normalmente obscurecem a analise da acao politica. Por fim, cabe ainda ressaltar que, salvo situnOes especificas, aqui freqiientemente sao utilizados termos como governante, imperador e monarca, que devem ser entendidos como a representacao de "urn conjunto complexo e contingente de relacOes sociais que resume a tomada conjunta de decisao". Da mesma forma, expressOes como monarquia e Estado imperial em geral referem-se as instituicOes que congregam essas relnOes, o locus onde se encontiam os funcionArios mais poderosos, os grupos aliados ao governante e que controlam o processo politico, assumindo muitas vezes o papel de mediadores. Poder local ou poder regional sao utilizados como representacao das redes regionais de controle politico tanto quanto de producao e comercio. Finalmente, estrutura politico-administrativa denota todo o aparato de dominnao e controle oficial e direto do Estado, basicamente a estrutura fiscal, administrativa e judiciaria.22 Quanto a presena do tema na historiografia brasileira, diversos trabalhos \tem tratando direta ou indiretamente dessa questao. Em geral, pode-se identificar32

aqueles que seguem uma abordagem em que o Estado 6 visto como um representante dos interesses de classe a exemplo de Paula Beiguelman, Emilia Viotti da Costa, Nelson Werneck Sodre, KAtia Mattoso e Ilmar R. de Mattos e aqueles que seguem uma orientnao weberiana, baseada na iddia de Estado patrimonial, na qual se destacam autores como Raymundo Faoro, Simon Schwartzman e Fernando Uricoechea. Entretanto, tal divisao generica, pois os alinhamentos devem ser refeitos quando se consideram temas mais especificos, como a questa dos partidos politicos, do papel do imperador na politica nacional ou da base de poder do Estado." As interpretnOes mais recentes que consideram as relacOes entre a Coroa e as elites ao Iongo do period imperial, embora apresentem varinOes importantes a diferencia-las, tern seguido duas vertentes basicas: a primeira corresponde a tese de Ilmar R Mattos, ha qual o Estado 6 visto como resultado da hegemonia de uma classe, a partir da identificacao necessaria da elite que chega ao poder corn uma classe senhorial, fundamentalmente o grupo de fazendeiros da regiao do Vale do Paraiba fluminense, reunidos em tomo dos dirigentes saquaremas; a segunda baseada na interpretacao de Jose Murilo de Carvalho e identifica a constituicao de urn grupo de estadistas, uma especie de,alta burocracia relativamente independente, corn uma formacao comum e homognea, que se apossa do Estado e se coloca a servico de urn projeto maior de unificacao e centraliznao do poder. Ambos os autores tornaram-se, nos ditimos anos, as principais referencias para aqueles trabalhos que se dedicam a analise da polftica no Segundo Reinado.24 0 que parece ser o vac mais comum a todas essas abordagens 6 a bipolaridade das relnaes que apresentam, opondo sempre dois aspectos antagOnicos: para alguns se trata da oposicao entre conservadores e liberais; para outros, entre burocratas e classe senhorial, ou entre autoridade central e provincial, ou ainda entre Estado e poderes locais. Nesse sentido, nao se considera devidamente a complexidade dessas relnOes ou o carater multifacetado que cada uma dessas categorias pode apresentar. Os prOprios estudos acerca da composicao dos partidos no Imperio tern demonstrado a dificuldade de se identificarem tanto projetos homogeneos quanto pap6is sociais ou mesmo relnOes geopoliticas predeterminadas, o que acaba por desmistificar as abordagens mais tradicionais que relacionam automaticamente, de urn lado, conservadores/saquaremas a alta burocracia estatal, ou a Corte e a provincia do Rio de Janeiro, e, de outro, os liberais aos proprietarios rurais e as forcas reunidas nas provincias em tomo dos poderes locais, sempre favoraveis descentralizacao e etemamente em oposicao ao poder central. Da mesma forma, a abordagem cuja analise da politica imperial baseia-se na identificnao de uma oposicao entre burocratas e proprietarios rurais parte de uma33

diferencinao "funcional", relativa a ocupacao socioprofissional desses agentes, que nao dd conta do carater maltiplo dos interesses que os envolviam como grupo ou como individuos. Mesmo admitindo-se a hipOtese (Li formacao de urn micleo de burocratas altamente especializados para ocupar os postos centrais da administragao uma elite politica treinada para o exercicio do poder preciso considerar como se dava seu acesso ao aparelho de Estado, bem como sua legitimidade para par em pratica um projeto especffico de pats. A analise desse processo deve ter em vista nao apenas as caracteristicas intrinsecas do grupo, ligadas a homogeneidade da formacao educacional e ocupnao funcional, fundamentals para entender sua coesao interna, mas tambem sua vinculnao a um projeto nacional estatal, de carater pablico, em detriment dos interesses das diferentes fanOes da elite, as quais, de uma forma ou de outra, os membros da burocracia e os politicos pertenciam originalmente. Portanto, para compreender a relnao do Estado imperial brasileiro corn suas elites 6 necessario ampliar a abordagem para alem das relnOes bipolares, considerando as maltiplas direcOes que apresenta. Ao contrario do que caracteriza essas interpretnOes historiograficas, que em geral analisam a formacao das elites situando-a nos anos de 1830-1840, torna-se fundamental buscar sua histOria antes do seculo XIX, considerando as relnOes de continuidade e as imbricnOes permanentes entre Estado e sociedade, entre o pablico e o privado, entre o central e o regional, entre a pratica politica e os interesses econOmicos individuals ou coletivos. Essas elites devem ser vistas como portadoras de uma cultura politica que transcende as fronteiras do seculo e mesmo da prOpria ColOnia, como produto de transformacOes constantes, de uma dinamica interna de composicao, manutenao e recomposicao de alianas no interior das grandes oligarquias, familias e redes de parentesco que ja dominavam a politica, a administracao e a economic desde os tempos coloniais. *** Este trabalho procura acompanhar a atunao do segundo Conselho de Estado, entre 1842 e 1889, corn enfase no seu period aureo, desde sua crinao ate meados da decada de 1870, quando sua nao comeca a declinar devido a crises e desgastes enfrentados pelo regime monarquico. Situando-o na estrutura politicoadministrativa do governo imperial e analisando seu papel como agente do Poder Moderador, pretende-se demonstrar sua n como intermediario nas permanentes estrategias de negocinao corn diferentes setores e interesses, visando a construcao e consolidnao de uma autoridade central. A parte a preocupacao em acompanhar o desenvolvimento da politica na ex-colOnia portuguesa em seu aspecto mais amplo corn a finalidade de criar o pano de fundo necessario para a compreensao das razOes e da conjuntura que permitiram34

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a crinan do Conselho nesta investignao elegeu-se a provincia do Rio de Janeiro como a base para a reconstitunao dos laws que uniam os membros do Conselho de Estado aos poderes locals e as grandes oligarquias. A escolha ancora-se, em primeiro Lugar, na predominanCia da representnao que teve a regido na instituicao, uma vez que cerca de 38% dos conselheiros eram provenientes ou se estabeleceram no Rio de Janeiro Por outro lado, a prOpria presenca da Corte e o fato de sediar os principail Organs politico-administrativos imperiais funcionava como ponto de convergencia de trajetOrias e redes de relacionamento, assim como o surto da producao cafeeira no Vale do Paraiba fluminense atrairia diversas familias corn origens em diferentes provincias do Imperio. A concentrnao da pesquisa na provincia fluminense tamb6m devera permitir analisar essa dinamica pelo processo inverso, ou seja, o estabelecimento de novas redes fora da provincia por parte de politicos fluminenses, em funao de suas trajetOrias profissionais, quando assumiam cargos em outras regiOes, sobretudo a presidencia de outras provincias. Da mesma forma, possibilita ainda acompanhar as carreirai dos conselheiros no que se refere a ocupacao de cargos na estrutura administrativa municipal e provincial, corn o intuit de mapear as relnOes que se desenvolviam no ambito regional. Assim, alem de considerar todo o period do Segundo Reinado, suas crises na area econOmica e fmanceira, e no campo politico, torna-se possivel nao so investigar as origens da classe politica imperial brasileira, sua nao, dilemas e contradicees, mas tambem perceber as mudancas e transformacOes sofridas por essas elites, refletidas nas fases, atunao e composicao da instituicao ao longo dos anos. A abordagem deve permitir, ainda, acompanhar a trajetOria de algumas antigas familias, corn o fim de analisar a sobrevivencia e manutencao das estrategias de aliancas herdadas da ColOnia, particularmente no que se refere as relnOes interprovinciais. Tendo em vista os objetivos expostos, procurou-se uma estrutura para o trabalho que permitisse o relacionamento entre a conjuntura da epoca, a elite representada no Conselho de Estado e a pratica institucional. Nesse sentido, o trabalho encontra-se dividido em tres panes. A primeira, intitulada Estado, monarquia e elites no Segundo Reinado, 6 composta de apenas urn capitulo, Monarquia e liberdade: o cenario politico apOs a Independencia e as bases do Estado imperial brasileiro no seculo XIX. 0 objetivo do capftulo 6 a abordagem do contexto histOrico no qual se verificou a crinao do segundo Conselho de Estado, em uma conjuntura que contemplou a crise do Primeiro Reinado e as agitacties liberals das regencias, o debate em tomo da centralizacao e o papel desempenhado pelas elites imperiais nesse processo. Analisa ainda como se deu a opcao pratica pelo modelo monarquicoconstitucional, as origens, os mecanismos, estrategias e projetos que basearam a formacao do Estado no Segundo Reinado.35

ai

A segunda parte, intitulada TrajetOrias e redes, compae-se de dois capitulos que se complementam, fornecendo urn panorama mais amplo das trajetOrias e carreiras individuais e sua identidade como grupos a partir do estudo de suas redes. No capitulo dois, Um pouco de homens, outro pouco de instituicao: o perfil da elite imperial a partir dos membros do Conselho de Estado, o objetivo analisar o grupo formado pelos membros do Conselho de Estado enquanto uma amostra da elite imperial, considerando-se a instituicao como um espaco de negociacao e interlocucao de urn grupo que se dedicou ao debate e a busca de solucties para as questOes que afligiam o pais, embora, naturalmente, partissem de ideais e praticas predeterminadas pela sua prOpria condicao de elite, corn fortes tacos que os uniam as elites financeiras e aos representantes de antigas, porem =antes estruturas do poder local e supra-regionais. Nesse sentido, busca-se empreender a elaboracao de urn perfil coletivo dos membros da instituicao, de forma a posi oiona-los em relacao aos diversos setores da elite, as ideias e principios que entao circulavam. Tal perfil compreende a reconstituicao de suas trajetOrias e origem social, considerando a formacao educacional, posicao socioocupacional, status politico,, niveis de fortuna, ocupacao de cargos na administracao ptiblica e atuacao em empresas privadas, bem como a participacao nas diversas organizacties e associacties econOmicas, polfticas, cientificas e culturais. Busca-se, entao, revelar suas caracteristicas comuns (permanentes ou transitOrias), dando destaque aos mecanismos coletivos de reproducao social que caracterizam as estrategias individu is. Visando esses objetivos, trabalhou-se em geral corn Pontes que permitiram a reconstituicao de suas carreiras profissionais e o fomecimento de dados sobre sua situacao socioeconOmica e interesses financeiros. Nesse sentido, foram utilizadas as listas de qualificacao de votantes para o ano de 1872, arquivos pessoais e colecOes de titulares, o Almanaque Laemmert, relatOrios ministeriais, pareceres do Conselho, inventanos, testamentos e verbas testamentarias, alem de estudos biograficos. Ainda na segunda parte, consta o terceiro capitulo, intitulado A grande familia e a dinamica das redes: as relacOes de sociabilidade e parentescd. 0 capitulo procura demonstrar que, ao longo do processo de consolidacdo do Estado, a pratica relacional no interior da elite imperial tornou-se um mecanismo fundamental, basicamente no que se referiu a politica de aliancas entre as fanulias, e nao apenas uma estrategia de manutencao do patrim6nio, mas ainda de reproducao econOmica e coesao politica e social. Assim, a analise da agar) e do papel representado pelo Orgao e pelos membros que o compunham tambem considerou as relacOes internas das elites, destacando-se as ligagOes entre esse grupo de politicos e os representantes dos poderes locais e suas relacOes corn as principals instituicOes financeiras e econOmicas do Imperio.36

As linhas que unem esses elementos formam uma rede de relacionamentos cuja analise ajuda a compreender como se constituiu seu poder de Kan na organizacao e na conducao da politica priblica, e ate onde ele pOde se estender sobre os diferentes aspectos da vida politica, econemnica e social do pals, aliancas essas que procuraram reconstruir ou manter ao longo do periodo, em funcao das mudancas conjunturais que se colocavam ao pals. Alem da documentacao ja referida quanto ao capitulo anterior, aqui foi exaustivamente utilizado o Almanaque Laemmert, visando averiguar a atuagao conjunta de conselheiros corn os demais setores da elite nas direcOes das companhias comerciais, instituicOes financeiras, associacOes cientificas etc. Os inventarios e verbas testamentarias foram fundamentais para o fomecimento de informacdo quanto as origens faipiliares e 14os de sociabilidade. Os relatOrios ministeriais, em especial aqueles relativos a pasta da Justica, foram amplamente utilizados no sentido de localizar os cargos e funcOes exercidas pelos membros das familias estudadas. As atas e pareceres do Conselho de Estado e de suas secOes foram analisados de forma a localizar praticas de beneficiamento de familiares e de individuos ligados as redes das quais faziam parte os conselheiros. Essas informacOes foram complementadas por livros e artigos genealOgicos. A terceira parte , intitulada A pratica institucional, tambem d composta de dois capitulos, que procuram dar conta da atuacao da instituicao bem como de seu papel na politica imperial. 0 quarto capitulo, denominado 0 depositario das tradicOes e a unifonnidade da marcha administrativa: a agao politico-administrativa do Conselho de Estado, aborda a hist6ria da instituicao no pals, suas origens e antecedentes e os debates que prenunciaram sua recriagao em 1841, ap6s a extincao do primeiro Conselho de Estado. Partindo-se das atas das reuniOes do Conselho Pleno e das consultas e pareceres emitidos por suas secOes, buscou-se reconstituir sua pratica e funcionamento cotidiano, seus mecanismos de atuacao, analisando-se tambem o conterido dos debates, o teor, a extensao e a direcao de sua atuacao. Alem da documentacao produzida pela prOpria instituicao, foi amplamente consultada e utilizada a Colecao de leis do Impe'rio. 0 ultimo capitulo, intitulado 0 oraculo e o "imperio das necessidades": a agao reguladora do Conselho de Estado, tern por objetivo analisar mais diretamente os limites da acao do Conselho e como a instituicao enfrentou a progressiva crise da monarquia, ao questionar seu pr6prio papel e atuacao, extrapolando a analise da Ka geral do Conselho no sentido do seu posicionamento em relacao as grandes questOes que ocupavam a agenda das discussOes politicas no period, corn especial enfase no problema da escravidao, considerando exclusivamente os aspectos relativos a questa juridica, hem como a forma como o tema se apresentou na instituicao.37

Nesse sentido, busca situar a acao do Conselho de Estado na estrutura politico-administrativa do govemo Imperial, identificando suas relagOes corn os poderes Executivo, Legislativo e indiciado, seu papel como agente do Poder Moderador, assim como sua acao efetiva na conducao da reforma juridico-administrativa do Estado, e, ainda, sua acao formativa das instituicOes ptiblicas e normativa da administracao e da Justica. A partir da analise dos debates que se travaram em seu interior, pretende-se nao apenas demonstrar a extensao que alcancou o poder (ins elites nele representadas, mas reconstituir as diretrizes que assumiu o projeto politico posto em pratica pela elite imperial, e o modelo de Estado que entao se construiu no pals.

Fredrik Barth, Scale and network in urban western society, in Scale and social organization, citado por Henrique Espada Lima, Micro-histOria: escalas, indicios a singularidades, p. 259. Maugicio Gribaudi, Introduzione, in Relazioni sociali e strategie individuali in ambiente urbano, citado por Henrique Espada Lima, op. cit., p. 21. Segundo o pr6prio Grendi, "aquilo que normalmente se objeta a microanalise histOrica 6 que nao se pode explicar o comportamento do grupo isolando-o. Recordo que a instancia da microanalise parte exatamente da tendencia triunfante de explicar o comportamento dos grupos sociais, ignorando-os. A hipOtese alternativa a aquela de uma reconstrucao das configuracdes da sociedade como um todo a partir do grupo-comunidade, isto 6, a partir da reconstrucao analftica de experiencias coletivas: os prOprios mediadores se configuram como grupo social e, sob o perfil politolOgico, a classe dirigente se apresenta como composicao e decomposicao dos grupos". E. Grendi, Paradossi della storia contemporanea, in Aa. Vv. Dieci interventi sulla storia sociale, citado por Henrique Espada Lima, op. cit., p. 207. Giolanni Levi, op. cit., p. 104-105. Karl Monsma, Apresentayao, in Charles Tilly, Coercilo, capital e estados europeus, op. cit., p. 18. Giovanni Levi, op. cit., cap. VI, A definicao do poder: as estrategias locais. Jacques Lagroye, Sociologie politique, p. 369. Entre os diversos autores que procuraram definir o conceito, ver especialmente Serge Bernstein, L'historien at la culture politique; A cultura politica; e Pierre Rosanvallon a Patrick Viverett, Pour une nouvelle culture politique. Nesse sentido, ver Marieta de Moraes Ferreira, op. cit., p. 265-271. Ver ainda Serge Berstein, L'historien et la cultura politique, p. 67; Antoine Prost, As palavras, in Rend Remond (org.), Por uma nova histOria politica, p. 295-296. A precaucao 6 livre e reconhecidamente inspirada em Charles Tilly, que faz de infcio tais esclarecimentos, no sentido de que o use destas expressdes nao implica imprecisao terminolOgica ou reducionismo, mas apenas busca simplificar a compreensao dos termos empregados ao longo do texto. Trata-se, portanto, de destacar que as awes desses grupos e indivIcluos sao consideradas a partir de sua insercao em uma ampla dinamica, que nao necessariamente dispOem de tuna unidade de sentido ou um fundamento lOgico pre-determinado. Ver C. Tilly, Coercclo, capital e estados europeus, op. cit., p. 85-86. A esse respeito ver Richard Graham, Constructing a Nation in nineteenth-century Brazil: old and new views on class, culture, and the State; e Michael L. Coniff & Frank D. McCann (orgs.), Modern Brazil: elites and the masses in historical perspective. 24. As obras referidas Sao: Ilmar R. de Mattos, Tempo Saquarema: a formacao do Estado imperial; Jose Murilo de Carvalho, A construciio da ordem: a elite politica imperial; e, do mesmo autor, Teatro de sombras: a politica imperial. Cabe lenabrar que, cam relacao a esses trabalhos, aqui sera() consideradas basicamente suas interpretayfres no que se refere as relay-5es entre as elites e a polftica imperial atraves do Estado. Para uma analise mais ampla dessa historiografia ver, entre outros, Richard Graham, op. cit.; Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho Souza, Pdtria coroada: o Brasil como corpo politico autOnomo (1780-1931); Michael L. Coniff & Frank D. McCann (orgs.), op. cit.

NOTAS

Joaquim Nabuco, Um estadista no Imperio, p. 685. As informacfies gerais sobre a politica europeia no perfodo foram retiradas de Duncan Towson, Dictionary of modern history, 1789-1945, e de David Robertson, Dictionary ofpolitics.

Eric J. Hobsbawn, A era do capital, 1848-1875, introduyao. Idem.

Arno J. Mayer, A forca da tradiciio: a persistncia do Antigo Regime (1848-1914), p. 89. Ibidem, introducao e p. 87-88. Ver Marieta de Moraes Ferreira, A nova "velha histOria": o retorno da histOria politica, Estudos HistOricos, p. 265-271. Ver taint:6:n Pierre Rosanvallon, Pour une histoire conceptuelle du politique, Revue de Syntese, p. 93-104; e Norbert Elias, Processes of State formation and Nation building, p. 274-284. Charles Tilly, Coercclo, capital e estados europeus, 1990-1992, p. 32. John Scott, Les elites dans la sociologic anglo-saxonne, in Ezra Suleiman e Henri Mendras,Le recrutement des elites en Europe, p. 9, citado por Flivio M. Heinz, ConsideracOes acerca

de uma histOria das elites. Para um histOrico da teoria das elites ver, entre outros, Mario Grynszpan, Crincia, politica e trajetOrias sociais: urns sociologia histdrica da teoria das elites, cap. 1 e parte I; e Alan Zuckerman, Elite politica: licOes de Mosca e Pareto. Giovanni Busino, Elites et elitisme, citado por Flavio M. Heinz, op. cit., p. 41-52. Ver, especialmente, Guy Chaussinand-Nogaret, Elites, in Andre Burguiere (org.), Dicioncirio das ciencias histOricas, p. 283. Ver Michel Trebitsch, Avant-propos: la chapelle, le clan et le rnicrocosme, p. 11-21. 13. Giovanni Levi, A heranca imaterial: trajetdria de um extrcista no Piemonte do s6culo XVII. 38

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PART'E I

Estado, Monarquia . e Elites no Segundo Reinado

CAPfTULO 1

Mvarquia e liberdade: o cendirio politico apa a Indepencldncia e as bases do Estado imperial brasileiro no seculo XIX

Devemos reconhecer que os princfpios dominantes no pats, desde que comecou a nossa revolucao, sdo doffs: monarquia e liberdade. Monarquia sem liberdade a escravidao para nOs, n. se pode merecer os respeitos e simpatias da nacao. A nacao tem ligado estas duas ideias; 6 o que ela deseja; por isso que se tern sacrificado ha tantos anos; 6 pelo predomfnio destas duas entidades. E, pois, nosso dever trabalhar pelo triunfo destas duas ideias.'

Indiscutivelmente, os principios norteadores do Estado imperial brasileiro eram, na feliz expressao de Paula Sousa, monarquia e liberdade. Este era o caminho da civilizacdo. Se monarquia sem liberdade era escravidao, o caminho da liberdade para a monarquia em um pats escravista era a lei. Impregnados do sentimento de repulsa ao modelo das monarquias absolutistas europias que se generalizara entre letrados ap6s as revoltas liberais no volho continente e que parecia ameacar tambem o trono brasileiro na figura de dom Pedro I, a elite politica e intelectual no pais abracou, avidamente, a causa da monarquia constitucional. Entretanto, certo, tambem, que, no Brasil, adotou-se urn ideario europeu pOs-revolucionario que havia se esmerado em marcar a ruptura corn o Antigo Regime, identificando o absolutismo ao despotismo e negan-

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do qualquer relagao de continuidade entre estes e o novo modelo politicoadministrativo que entao se instalava. Mas nem a monarquia absolutista europeia foi necessariamente despOtica, nem a monarquia constitucional reviveria no seculo XIX totalmente livre dos resquicios do Antigo Regime. A experiencia politica brasileira demonstraria a forga dessa tradigao ao seguir, em grande medida, a forma como se organizou e consolidou a monarquia portuguesa e seu modelo de administracao. Tanto a transferencia da Corte portuguesa quanto o processo de independencia de 1822, este acompanhado pela opcao ao constitucionalismo, que refletia as aspiracOes liberais expressas na Carta de 1824, representaram marcos irrefutaveis no que se refere a hist6ria politica brasileira, no sentido de que, naquele momento, iniciava-se a construcao formal das instituicOes que integraram a monarquia brasileira, a qual, entre avancos e recuos, seguiria o jai consolidado padrao europeu do Estado-nacao. Mas nao se tratava da simples importacao de urn modelo. A compreensao dessa histOria nao deve excluir toda a dinamica da vida politicoadministrativa colonial, suas relagOes corn a metrOpole portuguesa, bem como as praticas e ideais das elites que aqui vivenciaram e deram forma a esse processo. Assim, a formacao do Estado e a adocao do modelo monarquicoconstitucional, pelas caracteristicas especificas do pais especialmente sua condicao de ColOnia do outrora poderoso Imperio portugues e, mais adiante, de centro administrativo desse mesmo Imperio, apOs a vinda da Corte portuguesa em 1808 , nao prescinde de um exame mais criterioso acerca da cultura politica que o orientou, em especial da analise daquelas que devem ser consideradas caracteristicas inerentes a formagao dos Estados nacionais. Nesse sentido, observa-se que as razes do modelo brasileirp nao podem ser buscadas apenas no processo que conduziu a Indepenancia em 1822, nos turbulentos anos das regencias, ou no movimento regressista que levou a declaracao da maioridade do imperador Pedro II em 1840. Suas origens devem ser investigadas no longo processo de constituicao e desenvolvimento das elites brasileiras ainda no period colonial e nas praticas politicas e administrativas do Antigo Regime e sua influencia na Co18nia, em suas rein 6es corn o modelo da monarquia absolutista europeia e, mais tarde, em seus embates corn o ideario iluminista/liberal de fins do seculo XVIII.1

Portanto, para compreender a formacao do Estado nacional nesse period e as caracteristicas que apresentou no Brasil, d necessario recuperar a ideia de processo, considerando inclusive as continuidades e permanencias de uma cultura politica, entendida como pensamento e pratica, que se encontrava na base da formagao intelectual dos politicos imperiais e nos principios norteadores das instituicOes que direta ou indiretamente construiram.2 Tendo como ponto central a questao das relacties entre Estado e elites, cabe observar a forma como se organizou, no Brasil, uma autoridade central capaz de levar adiante o processo de construgao de uma estrutura politico-administrativa que sustentaria o Imperio ate o fim da monarquia. Trata-se, portanto, de analisar a gestacao do Estado imperial brasileiro e das instituigOes que the deram forma e identidade, em uma investignao que deve considerar tits aspectos diretamente relacionados as herancas que essas elites precisaram conciliar: a tradicao politico-administrativa portuguesa, o idedrio liberal europeu e as praticas politicas coloniais.

0 papel das elites no processo de formaco dos Estados nacionais0 que se verificou no Brasil apOs a Independencia foi o inicio de urn processo de formacao do Estado no sentido classic, compreendendo alguns aspectos basicos inerentes a constituicao e ao desenvolvimento dos estados nacionais: a centralizacao do poder, que engloba a unificacao e consolidacao das fronteiras territoriais; a superacao de conflitos via controle de poderes paralelos e manutengao de hierarquias sociais preestabelecidas; a constituicao de urn aparato juridic visando normatizacao de sua agao legal; a formacao de uma estrutura burocratica para garantir a administracao; e a transferencia dos servigos basicos do poder privado para o poder pdblico, aspectos que, em conjunto, possibilitam a construcao de uma autoridade central.' 0 meio para o desenvolvimento dessas awes basicamente a concilinao, que marca os limites da representagao, da legitimidade do poder, e o conseqiiente papel das instituigOes governamentais na mediagao de interesses. Nesse sentido, estruturantes da autoridade central eram as praticas de negocinao e as redes de relacionamentos: A transicao para urn governo direto deu aos governantes livreacesso aos cidaddos e aos recursos que eles controlavam, atraves

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de tributacOes de familia, conscricao de massa, censos, sistema de policia, e muitas outras invasiies da vida social em pequena escala. Mas isso foi feito a custa de uma resistencia multiplicada, de extensa negociacAo e da criaco de direitos e compensaVies para os cidadAos. Tanto a penetraco quanto a negociacdo criaram novas estruturas de Estado, inchando os orcamentos do govern, o quadro de pessoal e os diagramas organizacionais.4 Havia, entretanto, urn long() caminho a percorrer ate a constituicdo de urn governo direto. Embora muito se houvesse avancado desde a constituicdo dos Estados nacionais europeus, d preciso reconhecer, con-

ativi4ades inerentes ao novo Estado centralizado, de forma que "longe de ser idtposto de fora, o poder estatal era inseparavel da ordem social em qualquer nivel e estava imbricado em uma complexa rede de valores e relacOes sociais. Era o produto de um processo em duas direcoes".6 As estruturas de mando que caracterizaram o period, em especial os conselhos consultivos e as chamadas assembleias estamentais, nao deixaram de se constituir em instancias de representacao de setores e grupos de interesse, mesmo considerando-se que o tipo de representacao estivesse distante e efetivamente estava das formas de representacao politica tal como hoje funcionam. Nesse sentido, importa mais a possibilidade de sua existencia, sua atuacao efetiva, sua constituicao como espaco de relacionamento politico e de praticas tradicionais de consulta e consenso entre os diversos atores envolvidos, fossem estes governantes ou governados, e os limites que impuseram a autoridade central, do que a efetividade de sua atuacao de representacao no sentido classic ideal. Ao longo do tempo, seu desenvolvimento deu-se n apenas no que se referia as instituicifies e a estrutura do poder, porem muito mais no surgimento de novos padrOes de organizacao de redes de clientela e patronagem. Isso seria particularmente verdade em relagao as assembleias e as Cortes portuguesas, que funcionavam como um locus para o consenso, usado tanto pela Coroa quanto pelas elites.' Assim, quanto ao processo de centralizacao, este nao se deu necessariamente como uma N consciente de acao da monarquia. Partindo-se do pressuposto de que urn Estado nao se constrOi independentemente da sociedade, sem expressar os interesses e retratar os conflitos que nela se apresentam, d preciso considerar que o sentido da centralizacao n partia Unica e exclusivamente da Coroa, mas foi ainda desejado e buscado por ases grupos sociais, ate porque poucas ameacas sat) mais senddas pelas elites do que aquelas dirigidas a hierarquia social e a ordem estabelecida, mais temidas em momentos de convulsOes sociais de qualquer natureza. Sao essas relaciies que seguiam construindo paulatinamente a autoridade central e orientando o prOprio sentido que assumia o processo de formacao dos Estados nacionais.8E cOmodo demais estudar a formacAo dos Estados como se fosse uma especie de engenharia, onde os reis e seus ministros seriam os engenheiros projetistas. Quatro fatos comprometem a imagem do atrevido projeto: I. Raramente principes europeus tiveram em mente urn modelo do tipo de estado que estavam produ-

siderando o desenvolvimento especifico desse processo em 'Portugal, a continuidade e sobrevivencia de certas praticas ctilturais que resistiam ainda bravamente aos chamados tempos modernos e que iluminam a compreensao do modelo que se construiu no pais. Sob tal perspectiva, uma primeira questa a destacar acerca do modelo monarquico do Antigo Regime gira em torno da iddia de sua necessaria identificacao como governo despetico e arbitrario, que se constrei de forma a impedir limites a autoridade real. Entretanto, estudos recentes diversos tem procurado demonstrar que o processo de centralizacao e a propria formacao e manutencao desses Estados se deram antes pela busca do consentimento politico e pelo desenvolvimento de relacOes permanentes corn as elites locais/regionais, do que pela coercao militar ou mesmo por inovacOes burocratico-institucionais, ou seja, pela acao de uma burocracia formada e vinculada exclusivamente aos interesses do Estado.5 Em diversos sentidos, o sucesso da politica real para a formacao dos Estados europeus dependeu grandemente da capacidade dessa monarquia em lidar com as elites tanto quanto, em urn processo de dupla direcao, dos interesses e estrategias desses grupos para se manterem preximos ao Estado em formacao. Assim, "a influentia local seguia sendo crucial para as ambiciies da elite, mas a habilidade em mante-la, reforca-la e expandi-la dependia de uma influencia paralela na Corte". Essa relacao com as elites se dava de diversas maneiras e, pode-se dizer, variou ao longo dos seculos, assumindo formas mais ou menos sofisticadas conforme o period. Em geral, no entanto, incluiam a distribuicao de titulos e honrarias, a concessao de privilegios, a representacao nos conselhos e Orgaos da administracao central e, principalmente no inicio, a transferencia dos mecanismos fiscais para particulares, ou seja, uma certa privatizacao de servicos na ausencia de urn aparelho burocratico capaz de dar conta das

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zindo, e mesmo raramente ainda agiram corn eficacia para produzir esse modelo de estado; 2. Nenhum deles projetou os principais componentes dos estados nacionais tesouros, tribunais, administracOes centrais etc. Habitualmente foram constituldos mais ou menos como produtos secundarios involuntarios dos esforcos para cumprir as tarefas mais imediatas, especialmente a criacdo e manutenco das forcas armadas; 3. Outros estados e eventualmente todo o sistema de estado influenciaram intensamente a trajet6ria de mudanca seguida por algum estado em particular; 4. A luta e a negociacdo corn classes diferentes da populava moldou de forma significativa os estados que emergiram da Europa.'

fato de os governantes estarem tentando criar estados ao inves de apenas reagir a necessidades prementes, criou uma diferenca quanto aquilo que os dirigentes fizeram e ao modo como o justificaram para aqueles que forneceram os meios para a criacio do estado. Depois de constitufdo o sistema europeu de estado, o ambiente intemacional que moldava os estados americanos emergentes tambem era diferente do que havia sido na epoca initial em que ost estados europeus se estavam formando. Simplesmente para obter reconhecimento diplomatico dentro do sistema internacional estabelecido, os dirigentes dos estados emergentes tiveram de adotar formas organizacionais identificaveis a estados nacionais.'2 Entretanto, havia espago para lidar corn especificidades locais, da mesma forma que havia tanto tradicOes quanto conjunturas que impunham solucOes novas e que ndo permitiam a importacdo e a colocaedo em pratica de um modelo fechado. Essas caracteristicas especificas possibilitariam, por exemplo, a pea brasileira pela monarquia em uma America progressivamente republicana, a elaboracdo de uma Constituicdo que, em linhas gerais, seguia pressupostos liberais sob os quais deveriam conviver o modelo dos tits poderes e a adocdo inedita do Poder Moderador, o sistema representativo e o voto excludente, o liberalismo e a escraviddo , bem como o desenvolvimento de praticas e estrategias politicas para manter essa mesma monarquia irremediavelmente submetida a Carta eonstitucional."

No que se refere ao processo de burocratizagdo da monarquia, cabe ressaltar que tambem apresentava um duplo carater, no sentido de que a constituiedo dessa organizacdo administrativa, baseada na proliferacdo de cargos no aparelho estatal, ndo servia unicamente a Coroa, nem representou uma forca autOnoma, desvinculada das elites tradicionais. Ao contrado, os cargos encontravam-se mais fortemente vinculados as elites locais e regionais, em urn longo processo de integracdo territorial que se ampliou durante o seculo XVIII. Esse aspecto ganha ainda maior relevdncia quando se considera que se tratava de uma sociedade que ainda valorizava e mesmo se estruturava corn base nas relagOes pessoais, o que trazia grandes obstdculos para a constituiedo de uma burocracia profissional independente, identificada corn as instituiclies governamentais.' Assim, quando se observa o surgimento de uma nobreza de servico, cabe destacar que esses cargos ndo passaram necessariamente a serem exercidos por novos setores que se enobreciam; eram antes posicOes que a antiga nobreza procurou ocupar, dentro ou fora do Estado, tambem sob a forma de concessdo de privilegios para execuedo de servigos e funcOes pdblicas. Essas concessOes funcionaram como as assembleias, no sentido de que abriram caminho para urn exercicio do poder real para o qual o Estado nem sempre dispunha de uma estrutura burocratica para executar." Quanto aos novos Estados americanos, que so comecariam a se formar no inicio do seculo XIX, naturalmente e preciso considerar o fato fundamental de que as elites nessas regiOes ja contavam corn models de Estados nacionais plenamente constituidos, e dispunham de amplo coithecimento de sua histOria e funcionamento. Tais elites, portanto,Tentaram conscientemente criar estados nacionais. N que os resultados se assemelhassem necessariamente aos planos, mas o

Assim, para a andlise dense processo no Brasil seria mais importante considerar aquele. que parecem ser elementos inerentes-d constituicdo dos Estados nacionais centralizacdo, burocratizacdo, incorporacdo dos servigos pela estrutura pdblica, construcdo da autoridade central via coergdo tanto quanto negociacdo ndo por sua existencia em si mesma, mas pela forma corn que esses aspectos se desenvolveram. Ild que se ressaltar que, as vesperas da Independencia, o pats ainda se constituia como o centro do antigo Imperio luso, abrigando a prOpria Corte portuguesa. Assim, a guerra e a coeredo, considerando sua importdricia para o processo de formacdo do territ6rio, ndo desempenharam o mesmo papel. Se esses aspectos haviam sido fundamentais na formacdo do Estado portugu8s, no Brasil, n obstante as revoltas provinciais entre a Independencia e o period() regencial boa parte das quais corn forte teor separatista , a questao do territdrio era antes urn dado preestabelecido do que uma demanda necessaria a construcdo da autoridade central; foi preci-

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so, naturalmente, mante-lo e consolida-lo, e embora este tenha sido urn fator importante no processo de fortalecimento do poder central, nao teve o mesmo carater fundador da autoridade, como ocorrera antes na formacao dos Estados europeus. Por outro lado, entre o que se poderia considerar inerente a questao da centralizacao no processo histOrico de formica dos Estados nacionais, mais importante do que a questao territorial no Brasil foi a construea da autoridade central, ameacada primeiro pela presenca portuguesa nos quadros estatais e, mais tarde, pelas tendencias separatistas evidenciadas no contexto da Independencia e ainda no period regencial. Da mesma forma, embora aqui a monarquia nao tivesse que enfrentar a autonomia de cidades-estado constituidas, ela precisou, entretanto, lidar corn os grandes potentados locais, normalmente apoiados em antigas e poderosas redes de relacionamentos comerciais e politicos. 0 acesso a essas redes, pela amplitude e extensao dos grupos, negOcios e interesses nelas envolvidos, significava, assim, uma forma de controle para aldm da questao local e de uma elite unicamente proprietaria." Esse relacionamento, tal como nos Estados europeus, deu-se por meio da negociaeao, no amplo jogo de troca de favores, representacao de interesses, apoio politico e concessao de cargos e privilegios que ja se verificava no caso das autoridades portuguesas ainda no period colonial, assumindo formas mais sofisticadas na medida em que se tornava mais complexa a prOpria organizacao politico-administrativa brasileira ao longo do s6culo XIX, particularmente ape's o Regressq. Nesse sentido, novas conjunturas que se relacionavam diretamente a politica local, como as alteracOes constitucionais implantadas pela Carta de 1824 que criara a Presidencia e os conselhos gerais de provincia o ato adicional de 1834 que implantara as assembleias provinciais, promovendo um deslocamento do controle da regiao do nivel municipal para o provincial , e a lei de 1841 de reforma do COdigo do Processo Criminal, que transformava uma serie de cargos locais eletivos em cargos nomeados pelo poder central exigiram novas estratdgias de ambos os lados para acomodacao dos interesses. Por outro lado, a pratica da negociacao nao necessariamente excluiu a coercao que, segundo Charles Tilly, significava desarmar as populacties civis e garantir progressivamente ao Estado o monopOlio da forca militar e policial. No Brasil, essa questao tambdm esta presente nao apenas no que se refere as revoltas regenciais, mas ainda nas reformas administrativas, em especial a reforma do COdigo Criminal, que procurou concentrar

progressivamente no poder central as decisties da Justica e as awes policiais. Tambem esta presente no relacionamento da autoridade central com a Guarda Nacional, que se busca manter sob controle ape's 1842. Nesse sentido, o Estado deveria suprir a seguranca e controlar a for-ea militar, inclusive para evitaro perigo de rebeliOes armadas.15 Um outro aspecto fundamental na formacao dos Estados, e relacionado diretamente a questao da centralizacao e controle dos poderes locais, diz respeito exatamente ao desenvolvimento da administracao, uma vez que d ela a peca fundamental para a consolidacao da n . do governo central. Tambdm no Brasil, parcela consideravel dos servicos de carater pdblico, tanto no period() colonial como ainda no sdculo XIX, encontravase em maos de particulares, sob a forma de concessao de privildgios para exploracao de recursos de naturezas variadas, especialmente a tributacao. Na pratica, embora nao encontrassem cidades rigidamente constituidas e autOnomas, precisavam estabelecer pontes permanentes para controle e incorporacao dos capitais que as redes comerciais detinham no nivel local ou mesmo da ColOnia como um todo. Tratava-se do processo de formacao da burocracia e do aparato administrativo que se consolidava no oitocentos e que progressivamente possibilitaria a instituicao do governo direto do Estado.'6 No Brasil, esse processo tambem se constituiu como um caminho de ma dupla, no sentido de que tanto ao Estado interessava a ampliacao do governo1 direto, seja por demandas de cunho politico ou econ8mico para dispor de mediadores na negociacao e implantacao de awes ptlblicas, para ampliacao de aliancas eleitorais e para o controle das redes comerciquanto aos poderes locais e as elites a eles relacionadas, sendo ais importante a aproximacao direta ou indireta ao Estado, especialmente quando se considera o efeito multiplicador de determinados cargos, que implicava o aumento de poder de troca no interior das redes. Assim, um e outro fizeram dos cargos burocraticos uma estratdgia politica, urn meio para ampliacao de seu poder de influencia e controle. As elites nacionais ou lusobrasileiras encontravam-se efetivamente preparadas para essa tarefa, nao so porque ja cultivavam o habito de se educarem nas melhores universidades europeias desde meados do seculo XVIII, mas ainda porque ha muito acumulavam as fungi:5es de controle politico e administrativo no nivel local, as quais procuraram manter ou ampliar ao longo do period imperial." Assim como na Europa, no Brasil em fungal:, das resistencias que ofereciam as estruturas tradicionais de mando local esse tambem foi um

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longo processo, no qual se verifica a concentracdo de funcees e poderes que so Ientamente se distribuiram em novas instancias de controle no interior do Estado, seja na copula ou na base da administracao. Tanto quanto a estrutura ministerial na qual uma Unica pasta, a do Imperio, deveria encarregar-se de temas tat) &spares como elei0es e agricultura, educacao e obras pdblicas o prOprio Conselho de Estado espelharia essa situacao, constatada pela multiplicidade de fun0es a que estava destinado, sena pelo seu prOprio regimento, ao menos por sua pratica cotidiana, acumulando uma atuacao legislativa, judiciaria e administrativa.

A ruptura dessa regra, a invasao dos direitos privados, era inclusive condenada por pensadores classicos absolutistas como Jean Bodin e Jacques Bossuet, que reafirmavam que a forca era ilegitima, reprovando as atitudes arbitrarias como anticonstitucionais. Teoricamente, a lei era a garantia de uma monarquia justa e a diferenciava dos regimes despOticos. Do ponto de vista da cultura politica em seu sentido mais amplo, pode-se observar que o paradigma jusnaturalista, ou a escola do direito natural, dominou o pensamento politico-filosOfico europeu durante os sdculos XVI a XVIII, uma tradicao que persistiu no seculo XIX, sendo ainda a principal base filosOfica das elites presentes no Conselho de Estado. 0 jusnaturalismo baseava-se na possibilidade de uma ciencia da moral que englobava tanto A direito privado quanto o direito pdblico e, sobretudo, a politica. Tratava-se de urn amplo paradigma no interior do qual se desenvolveram diversas correntes, de Hobbes a Locke, de Montesquieu a Rousseau, de Pufendorf a Kant, que freqiientemente divergiam quanto as suas interpreta0es da sociedade e suas relacOes corn a politica, mas que partiam de uma base comum, ou seja, o direito natural, e cuja homogeneidade se dava atraves da utilizacao do metodo racional. Na pratica, permitia a compreensao ou a reducao do direito, da moral e da prOpria politica, a uma ciencia demonstrativa, uma etica racional que firmemente se distanciava da teologia.2 No que se refere as relacOes entre sociedade e Estado, um dos aspectos mais importantes das interpretacties jusnaturalistas consistia na iddia do contrato social, basicamente apOs Thomas Hobbes (1588-1679) publicar sua obra mais importante, 0 Leviatd, em 1651: Foi exatamente no pensamento de Hobbes que a teoria politica no direito natural, ou urn tratamento racional do problema do Estado, primeiro aparece corn maior clareza, ou seja, uma concemao da evolucao das sociedades humanas em que se detecta a passagem do estado natural para o que enact Hobbes denominava de estado civil, na qual a sociedade era regulada em termos de funcOes e deveres. Nessa no0o, o principio da legitimacao da sociedade politica d o consenso, que concebe a possibilidade da atuacao da vontade. Na sociedade natural, ao contrario, o homem podia viver independentemente de sua vontade." A partir de entao as divergencias quanto as modalidades e conteddo do contrato social se verificavam pelo modo como entendiam o Estado e seu exercicio de poder: ou seja, corn a discussao quanto ao poder absoluto ou poder limitado do Estado a submissao as leis naturais e a razao, o

A lei e o direito na organizaso do Estado moderno: o paradigma jusnaturalista e o liberalismo politico no seculo XIXUrn fundamental aspecto a ser ainda considerado diz respeito ao papel do direito e da lei na formagdo e consolidacao dos Estados modernos, particularmente importante uma vez que d esse papel que, do ponto de vista da justificacao teOrica, concede legitimidade ao poder central, sejam quais forem as bases em que este se assenta. A lei e a aceitacdo da Justica por parte dos sdditos eram ao mesmo tempo o fundamento e os limites do poder real. Era necessario que as diversas forcas sociais atuantes naquelas sociedades estivessem convencidas nao so das vantagens da Justica, mas ainda da legitimidade da monarquia em exerce-la, o que tambem alimenta o jogo de consultas, negocia0es e media0es. Os conselhos e, especificamente, o modelo organizacional da administracao portuguesa, por exemplo, eram 'essenciais para tal fim. Essa necessidade de convencer os stiditos e faze-los aceitar a lei d ainda mais crucial em periodos de mudancas e de conflitos." Assim, tambem no campo do direito, a monarquia encontrava limites no exercicio de sua autoridade:O modelo de absolutismo tradicional acusou sempre a monarquia dos seculos XVII e XVIII de que se havia podido liberar da atadura ao direito, como implica a formula "priceps legibus solutus" [...]. Cada vez corn mais freqiiencia se chama a atencao para o fato de que tambem os denominados monarcas absolutos faziam use de seu poder dentro dos limites do sistema de direito estabelecido.'9

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decisivos (1750-1836), p. 281. Malgrado o prestfgio que atingiu ao longo de sua vida, o dicionario da nobreza brasileira, elaborado pelo barao Smith de Vasconcelos, silenciou quanto as suas origens familiares, nao fornecendo qualquer informacao sobre seus pais. Ver Hen Vianna, op. cit., p. 278 e Joaquim Nabuco, op. cit., p. 200 e nota 2, e p. 444. Jose Joaquim Correia de Almeida, Satiras, epigramas e outras poesias, 1876, citado por Betio Vianna, op. cit., p. 278. Segundo M. Fleiuss, "laureado mestre em boas letras, apurado em gosto e privilegiado em criterio, era um espirito atico e familiarizado coin a lingua, literatura e antigiiidades greco-latinas". Max Fleiuss, op. cit., p. 31. Academia Brasileira de Letras. 80.Almanaque Laemmert, 1856, p. 322. 81. Tavares de Lyra, op. cit., p. 326. A amizade de Couto Ferraz corn o imperador era notOria e com ele parecia compartilhar o interesse pela modernizaco e pelos debates cientificos: "companheiro predileto de infancia e durante toda a elstencia [...] o visconde de Born Retiro foi, talvez, o tinico intimo do impe ador, tratando-se mesmo quando a s6s pelos nomes de batismo". Max Fleiuss, op. cit., p. 51-52. 82.Almanaque Laemmert, 1869, p. 329.

CAPITULO 3

A grande familia e a dindmica das redes: as relacties de sociabilidade e parentesco

tempo de se deterem os escritores de hist6ria diante desses clas, em cuja cadeia racica como que se percebe melhor a coesac) das eras, a unidade consangtiinea do Brasil que ajudaram a formar, construindo sua casa patriarcal, devassando-lhe os sertoes, alargando as suas fronteiras ou disciplinando a sua vida coletiva.'E

A ',atria 6 urn complexo de familias enlagadas entre si pelas recordacaes, pelas crencas e, ate, pelo sangue. Tomai, de feito, as duas delas que vos parecerem mais estranhas, colocadas nas provincias mais opostas de urn pais; examinai as relacOes de parentesco de uma corn outra familia, mais as desta corn uma terceira e assim por diante. Dessa primeira, que tao estranha vos pareceu, a flltima, achareis urn fio, emendado sim, talvez inextrincivel, mas sem solucao de continuidade. Uma nacao nao 6 s6 metaforicamente uma grande familia: 6-o tambem no rigor da palavra.2 Conta-se que em um dos afamados bailes que tinham lugar na mansac) do visconde de Abrantes pelos idos de 1852, enquanto dancava com a anfitria, o jovem politico paulista Martim Francisco Ribeiro de Andrada, cujo nome de familia por si so abriria as portas de qualquer sail da Corte imperial, queixava-se de ter conseguido apenas uma vaga como suplente para a Camara de Deputados. Penalizada corn a situacao de seu par, a viscondessa de Abrantes o conduziu imediatamente a presenca do entao

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visconde de Parana, que ali tambem se encontrava, perguntando-lhe publicamente: "Entdo, sr. visconde, ainda teremos outra Camara sem urn Andrada?".3 Era certamente a descontracao do ambiente e a familiaridade da ocasiao que permitira a anfitrid interpelar o severo e circunspeto Parana corn tal naturalidade. Em tais ocasieles a vida social misturava-se a politica, permitindo o acesso as mais destacadas personalidades da Corte. Mas o amplo con vivio em sociedade era apenas urn aspecto entre tantos outros que uniam as elites imperiais. Ao longo do processo de construed, consoEdna e manutencao da unidade nacional, reforcava-se a hegemonia politica e administrativa de urn grupo relativamente pequeno de homens corn passado, formaedo e experi'encias semelhantes. Integrando urn grupo bastante restrito dos cerca de 272 mil habitantes da cidade do Rio de Janeiro em 1872, identifica-se apenas, aproximadamente, mil familias da elite , o circulo de relacities mostrava-se reduzido o suficiente para que a rede se estruturasse de forma bastante natura1.4 As instituicOes formais e informais da elite brasileira no Rio de Janeiro configuravam-se como espartos privilegiados de debate e produea intelectual, a reunir determinados homens em torno de suas crencas, objetivos e valores comuns. A convivencia nos salOes da moda, nos grandes eventos sociais, nas reuniOes de familia e ate mesmo nos bancos escolares e universitarios aproximava o grupo. Tal processo de integracdo social, para os mais jovens, iniciava-se no Colegio Pedro II e tinha continuidade nas faculdades de direito de Coimbra, Sao Paulo ou Olinda. Essa formacdo academica comum proporcionou as elites imperiais brasileiras uma identidade intelectual e cultural que complementou as relacities provenientes de uma origem ou de um convivio cada vez mais estreito, criando e intensificando os lacos de amizade e parentesco que se desenvolveriam na vida profissional.5 Portanto, a convivencia social torna-se o ponto de partida para a analise dos diferentes lacos que uniam as elites. De fato, ao se considerar os membros do Conselho de Estado verifica-se que integravam diferentes redes de relacionamentos que se perpetuavam e se reconstrulam no pais desde o seculo XVIII, tendo como base de referencia antigas familias e suas aliancas clientelares. Evidencia-se, ainda, a extensdo do controle exercido por suas familias por meio do aparato politico-administrativo colonial, que incluia cargos "militares-administrativos" tanto quanto cargos juridicos, cuja posse ja era urn indicativo da importancia de seus detentores.6

Essa cultura, que se encontrava na base do comportamento politico, econOmico e social das elites coloniais, perpetuou-se no period imperial, corn a reconstrucao, manutencao e reorientacao das estrategias de aliancas, conforme as diferentes conjunturas. As estreitas relacOes sdo ainda reveladas nos lacos matrimoniais e nas relacOes de parentesco e compadrio, que unem o grupo a diversos setores dominantes, seja no nivel local ou em uma rede mais ampla.7 As praticas clientelares funcionavam como elemento fundamental na manutenedo e ampliacao das redes, solidificando, fortalecendo e reproduzindo ligaceies sociais e econOrnicas. Tratava-se, indubitavelmente, de uma heranca do Antigo Regime portugues, e, corn freqtiencia, formou a base das relaeOes politicas, sobretudo naquelas sociedades em que o Estado comecava ainda a se organizar e onde a prepria estrutura de representacao, via processos eleitorais, era incipiente ou ate inexistente. Nesse contexto, o capital e o poder politico de urn individuo correspondiam nao apenas ao seu status, mas, ainda, relacionavam-se sua capacidade de oferecer e retribuir beneficios, em urn amplo esquema de trocas cuja fungdo estruturante, no entanto, verificava-se em urn nivel mais basic e cotidiano das relacOes de poder. Na pratica, consistiam em aspecto4 informais a conviver corn as estruturas formais de ordenacdo politica e social, como as instituieOes ou a prOpria Justica, transformando-se, progressivamente, em praticas marginais a proporcao que se complexificava o aparelho de controle e administracdo do Estado.Estas ordens normativas eram estruturantes dos modos de ver, pensar e agir, e nenhuma delas se superiorizava. Ao inves, constitufam o universo mental que condicionava as representaciies e praticas sociais. Razdo pela qual relacOes de natureza meramente institutional ou juridica tinham tendencia para se misturarem e coexistirem corn outras relaciles paralelas (que no nosso imagindrio ganhariam inevitavelmente um torn espitrio e ilegftimo), que se assumiam como tao ou mais importantes do que as primeiras, e se baseavam em crit6rios de amizade, parentesco, fidelidade, honra, servico. De fato, relacties que obedeciam a uma lOgica clientelar, como a obrigatoriedade de conceder coerces aos mais amigos, eram situacties sociais cotidianas e corporizavam a natureza mesma das estruturas sociais, sendo, portanto, vistas como a norma. A verdade 6 que estas atitudes foram sendo pro. gressivamente marginalizadas (no sentido inverso ao do progresso do aparelho de Estado), ate adquirirem o epiteto de corrup-

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tas, e so atualmente conotadas corn situaciies de anormalidade constitucional.8

Dessa forma, as prdticas clientelares, e as redes que estas alimentaram, exerceram papel fundamental no pr6prio processo de centralizacao. Como poderes paralelos, poderiam funcionar como obstdculos expansao do poder real, mas, paradoxalmente, uma vez controlados abriam caminho para um maior dominio da politica e para o prOprio reforco da unidade central. Em Portugal, as redes familiares e institucionais comecaram a perder sua forca a partir da legislacao pombalina em fins do seculo XVIII, basicamente ao transformar-se o carater patrimonial das merces em simples grata honorifica. Entretanto, embora deixassem de ser a norma, tanto em Portugal quanto no Brasil tais praticas nao desapareceram instantaneamente, mas adaptaram-se as novas estruturas da politica e do prOprio Estado considerando-se o aprimoramento dos processos eleitorais, a especializnao institucional, a proliferacao de cargos etc. , mantendo-se ainda por tempo consideravel no universo cultural da politica luso-brasileira.9 Tratava-se de uma persistente cultura politica que seguia ignorando as fronteiras regionais e reforcava uma pratica de governo e dominnao que resistia a propaganda e ao idedrio liberal. Entre as elites brasileiras oitocentistas, malgrado o apelo que representava o desejo de moderntzaclio polftica e administrativa, as praticas clientelares persistiam, embora seja possivel perceber o estreitamento do circulo de nao desses grupos. A partir de meados do seculo essas redes ja nao mais se estenderiam de forma tao evidente por diferentes regiOes do pats, concentrando-se progressivamente em uma estrutura mais direta de representnao provincial que culminaria e se concretizaria nas politicas clientelistas tipicas das primeiras decadas da Repdblica, corn a consolidnao de oligarquias estreitamente vinculadas a politica estadual. Do ponto de vista metodolOgico, a combinnao de uma pratida de reconstituicao das redes clientelares e de parentesco corn a analise da trajetOria individual permite perceber que, no que se refere aos membros do Conselho de Estado, de um modo geral, suas trajetOrias profissionais as suas provincias de origem e as relnOes politicas, sopareciam ciais e econOmicas estabelecidas por suas familias, como ja foi observado. Mas essas redes, por definicao, apresentavam-se multifacetadas e multidirecionadas, integrando individuos e representnOes de interesses diversos ao longo do Segundo Reinado, espelhando diferentes e mutaveis estrategias de negocindo para perpetunao do poder e manutencao do status.

Nesse sentido, partindo-se do grupo dos conselheiros de Estado, pretende-se enunciar a importancia das redes corn base em duas estrategias. Primeiramente, demonstrando os tacos que historicamente os uniam ao poder econ8mico e politico fossem os representantes das altas financas e do grande comercio, os ricos negociantes coloniais e seus herdeiros no seculo XIX, incluindo os novos empresarios e empreendedores, ou suas rein 6es corn os poderes locais e os grandes proprietarios rurais destacando-se aqueles ligados diretamente a economia cafeeira. Em seguida, investigando a prOpria dinamica de funcionamento dessas redes, tomando por base uma personagern especifica e suas relnOes no interior de uma grande rede de negocinao e aliancas.

A rede vista por fora I: a Corte, os conselheiros eas altas financasA Corte sediada no Rio de Janeiro era o espno privilegiado para o convivio e a reuniao das elites de todo o pals. Nela encontravam-se os principais Orgaos da administrnao pdblica, as principais instituicOes financeiras, o Senado, o Conselho de Estado, a Assembleia Geral e o Paco Imperial. Dessa forma, a Corte torna-se o ponto de partida para a andlise de alguns aspectos dessa integrnao a partir do comportamento social e econOmico dos individuos envolvidos, suas carreiras, trajetdrias e redes de sociabilidade e parentesco. Quanto as instituicOes informais, na cidade encontravam-se os salOes, espnos dos grandes debates intelectuais e politicos, mantidos e freqiientados pelas principais personagens da polftica imperial, os ricos negociantes e a elite provincial. Tratava-se de "locais pilblicos de convivio em urn universo restrito de pessoas, um aspecto importante informal do sistema na estrutura socioeconOmica da epoca, dado principalmente o reduzido ntimero de individuos que a compunham".") A esse respeito, dizia Joaquim Nabuco acerca de seu pai, o conselheiro Nabuco de Aratijo:Algum tempo, era em sua casa e na do marques de Abrantes que mais se reunia a sociedade mundana, amiga de festas, do Rio de Janeiro. A liberdade era menor na suntuosa residencia do marques pelo tom formalista e europeu do anfitrido e pela maior freqiiencia da meta diplomatica; mas a companhia era a mesma, e a convivencia de Abrantes e de Nabuco foi diaria, durante muitos

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anos. Formavam o centro dessa agraddvel sociedade, comum as duas casas, diem dos chamados lefies do Norte, Monte Alegre, Pedro Chaves (Quaraim), Dantas, Pinto Lima, Sinimbu, e outros amigos Intimos de Nabuco, como Madureira, Pedro Muniz, Jose Caetano de Andrade Pinto, o dr. Aradjo, atual barao do Catete, corn quem casard depois a marquesa de Abrantes." 0 mesmo se dizia acerca do saldo do conselheiro marques de Abrantes: Urn dos parentes de Abrantes, ao referir-se aos convidados habituais do marques, cita uma lista de nomes igualmente reveladora: Olinda, Itanhaem, Sapucaf, Abaete, Caxias, Tamandare, Silva Paranhos, Zacarias, Cotegipe, Ferraz, Junqueira, Saraiva, Maciel Monteiro, Boa Vista, Joaquim Manoel de Macedo, Jose de Alencar, Meneses e Sousa, Torres Homem, Justiniano Jose da Rocha e Maud.'2 Quern tivesse a oportunidade de