Marx e o Bonapartismo

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    1/353

    VNIA NOELI FERREIRA DE ASSUNO

    PANDEMNIO DE INFMIAS: CLASSESSOCIAIS, ESTADO E POLTICA NOS

    ESTUDOS DE MARX SOBRE OBONAPARTISMO

    PUC So Paulo

    2005

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    2/353

    ii

    VNIA NOELI FERREIRA DE ASSUNO

    PANDEMNIO DE INFMIAS: CLASSESSOCIAIS, ESTADO E POLTICA NOS

    ESTUDOS DE MARX SOBRE OBONAPARTISMO

    Tese apresentada ao Programa de Estudos

    Ps-Graduados em Cincias da Pontifcia

    Universidade Catlica PUC-SP, como

    exigncia parcial para a obteno do ttulo

    de DOUTOR em Cincias Sociais, sob a

    orientao do Prof. Dr. Luiz Eduardo

    Wanderley.

    PUC So Paulo

    2005

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    3/353

    iii

    _______________________________________________

    _______________________________________________

    _______________________________________________

    _______________________________________________

    _______________________________________________

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    4/353

    iv

    Pra Maria Lusa, com os sete mil amores que eu guardei somente pra lhe dar.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    5/353

    v

    AGRADECIMENTOS

    uma alegria olhar para trs, depois de alguns anos, e averiguar quantas

    contribuies tive para realizar esta pesquisa. Emoo, sensao de aconchego e

    gratido, respeito e um qu de desculpas porque o trabalho no saiu exatamentecomo gostaria so sentimentos que afloram e que determinam meus agradecimentos:

    Ao Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais, por ter acolhido

    e possibilitado a realizao deste trabalho. Bem assim, ao Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pois sem seu financiamento esta

    pesquisa no teria sido possvel.

    Ao Prof. Dr. Luiz Eduardo Wanderley, meu orientador, que tornou o

    comumente traumtico relacionamento entre orientando e orientador num

    verdadeiro cu de brigadeiro. Com um grande respeito por minha trajetria

    intelectual, personalidade forte e autonomia, conduziu as orientaes com

    tranqilidade, moderao e sagacidade. O Prof. Wanderley foge dos habituais jogos

    de vaidade deste tipo de relao e no teme apostar na possibilidade de convvio com

    a diferena; por tudo isso, eu lhe devo agradecimentos sinceros.

    Ao Prof. Dr. Celso Frederico, pelas muito pertinentes observaes feitas

    quando da Qualificao, pela indicao de bibliografia e pela participao na Banca

    de Defesa. Um dos grandes marxistas brasileiros e um dos mais honestos abrilhanta esta defesa.

    Profa. Dra. Ester Vaisman, por ter aceitado participar da Banca, o que muito

    me honra. parte suas capacidades intelectuais, suas qualidades humanas a tornam

    uma figura das mais gabaritadas e preocupadas com a coerncia entre

    posicionamento terico e prtica cotidiana. Ressalte-se, tambm, sua mpar

    capacidade de ser dura e doce a um s tempo, dizendo tudo que necessrio sem

    gerar idiossincrasias.

    Ao Prof. Dr. Antonio Rago Filho, por aceitar, mais uma vez, participar de uma

    Banca de Defesa de um trabalho meu. Tambm neste caso seu porte intelectual, sua

    sensibilidade, sua rica teia de relaes humanas e sua preocupao com a

    autoconstruo me fazem ter orgulho pelo convvio de que desfruto e aumentam a

    responsabilidade que me pesa nas costas.

    Aos antigos companheiros da Ensaio e da Ad Hominem, pela rica convivncia

    e pelo aprendizado proporcionado em anos de militncia terica e prtica.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    6/353

    vi

    Aos membros do Grupo de Pesquisa Marxologia, Filosofia e Estudos

    Confluentes da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, em

    especial a Mnica, Milney, Zaira, Leonardo, Antonio e Sabina, pelas pesquisas, que

    foram to importantes para este trabalho.

    Aos participantes do Ncleo de Estudos de Histria: Trabalho, Ideologia e

    Poder, coordenado pelos Profs. Drs. Vera Lucia Vieira e Antonio Rago Filho, lcus

    onde pudemos discutir coletivamente temas importantes e aprender mais de Marx.

    Aos colegas da PUC Celso, Cida, Ivan, Joaquim, Marcelo, Mrcio, Regina

    Helena, Regina, Rogrio e Sebastio, que contriburam com observaes,

    comentrios e crticas no Seminrio de Pesquisa. Edivaldo merece uma meno

    especial no s pela ateno com que leu o texto, mas tambm por sua predisposio

    em ajudar todos os colegas nas respectivas pesquisas, por sua gentileza, pelo livrocom que me presenteou. Profa. Lcia Bgus, pelas sugestes.

    A Alcione Sanna, que ajudou, pacientemente, a melhorar o meu francs. Ao

    Prof. Luiz Carlos Ribeiro, editor, pela gentil cesso de um exemplar da Revista da

    Associao Paranaense de Histria. s secretrias do Programa: Cristiane Samria,

    Emilene Lubianco de S e Viviane Menegazzi, sempre muito solcitas, prestativas e

    eficientes deveriam servir de modelo aos funcionrios de outros programas e

    rgos internos. A Marcos, pelos livros que pegou emmprestado na biblioteca paramim. A Juliana, Reinilza, Eleonsio, Alnio, Fernando, Vanessa e Emmanuela, que

    me auxiliaram com servios de digitao. A Maria e Marcos Flix e a Nega, pelo

    suporte que deram e do no lar.

    A meus alunos e ex-alunos dos cursos de terceira idade, da graduao e ps-

    graduao, muitos dos quais me proporcionaram aprimorar meus conhecimentos;

    em especial, aos ex-alunos e sempre amigos Izilda, Margareth, Elysabete, Wagner,

    Valdir, Francisco, Luciano, Leandro de Itaquera, Mariana e Regis.

    A meus clientes, que me incumbiram de corrigir pesquisas a que quase todos

    se dedicaram com afinco por anos a fio, agradeo pela confiana e pelo aprendizado

    que me possibilitaram com seus erros e acertos. So pessoas vrias das quais no

    conheo pessoalmente com quem convivi em momentos difceis de sua vida e com

    algumas delas foram criados laos para alm dos profissionais, eivados de amizade e

    mtua admirao. o caso de Aparecida de ngelo Teixeira, Fernanda Pereira da

    Cunha e Rosngela Barbosa.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    7/353

    vii

    Aos amigos cujo convvio torna as horas mais tranqilas nesses tempos

    difceis: Cida Rago, Verinha, Zimermann, Manfred, Baslio, Cris, Joana, Bauer,

    Luque, Tedia, Esteban, Alnio, Henri, Tnia, Antonio, Agenor, Clarissa, Juliana,

    Ana, Wanderson, Fabiana, Alex, Andr, Sofia, Vera, Kelly, Valdeci, Mariane,

    Nemsio, Cassimiro, Raimundo Brasileiro, o virtual Ray, Joo Batista Dentinho,

    Emerson, Cris, Ronaldo, a madrinha Vania Cintra e Oliveiros, o padrinho Manoel,

    D. Diva (in memoriam), Oto. Muito especialmente e com muito carinho a Ftima,

    Lvia, Gorete, Keka, Maria de Annunciao, Meire, Sandro, Carlos.

    A Silmara e Lus, que to gentilmente emprestaram sua aconchegante casa de

    praia para eu me refugiar quando precisei fugir do turbilho cotidiano. Igualmente, a

    Olga e D. Maria Marques Charro que, num momento to difcil da sua vida, quando

    deveriam estar recolhidas sua dor, dedicaram seu tempo me emprestando oapartamento e se preocupando com minha acolhida e bem-estar. A Olga, amiga

    dedicada, tambm agradeo pela traduo do resumo, trabalho sempre brilhante.

    A D. Aparecida, seu Z Nunes, Nsio, Simone, Alexandre e Drio, pelas vidas

    que compartilhamos juntos (embora distantes) h algum tempo, pelo carinho, pelos

    mimos que volta e meia chegam pelo correio.

    A Lcia, altrusta e dedicada, que sempre se ps disposio para o que eu

    precisasse, leu e comentou partes do texto, providenciou xerox de um livro de difcilacesso, vrias vezes me incentivou com palavras doces. Sua preocupao em se

    melhorar permanentemente acaba contribuindo para o crescimento coletivo.

    A Lo, doce e querido amigo, que leu uma parte do trabalho e fez excelentes

    comentrios e que me ofertou graciosamente a publicao com sua traduo da

    Crtica de Marx. Mas, acima de tudo, pela doura, carinho, otimismo, confiana e

    mansido que sempre transmite. Sua preocupao com a autoconstruo

    inspiradora e me faz ter orgulho de ser sua amiga.

    Que dizer de ngela? Figura mpar, leal, de um altrusmo e desprendimento

    sem tamanho, de uma disciplina espartana, amplamente comprometida com a

    pesquisa cientfica, dedicada exemplarmente aos amigos, esteve sempre a meu lado,

    nos momentos bons e ruins dos ltimos anos. Como se fora pouco, leu todo o

    trabalho, comentou, botou a mo na massa na digitao, fez as vezes de office girle

    secretria, auxiliou nos problemas materiais e, como boa amiga que , sempre elogiou

    muito. Tambm fao questo de mencionar aqui a pessoa doce, fraterna e amiga que

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    8/353

    viii

    sua me, D. Carmelita, que to carinhosamente nos acolhe sempre que a

    importunamos.

    A minha me, Hilda, e a minha av, D. Via, que, alm de tudo que j fizeram

    por mim a vida inteira, tomaram conta de minha filha por muitas horas do dia, desde

    que ela nasceu, para que eu pudesse trabalhar mais tranqila e sossegadamente.

    Tambm a meus irmos Vilma e Valter, que muito me tm auxiliado no decorrer da

    vida e ainda mais nos ltimos anos.

    A Zilmar, companheiro de muitas jornadas, que tambm aturou poucas e boas

    para que este trabalho ficasse pronto. Sua presena pode ser visualizada em todos os

    momentos: na leitura rigorosa dos textos, nos comentrios ricos, na formatao,

    limpeza e padronizao, na divergncia decidida mas respeitosa de posicionamento

    intelectual, nas provocaes instigantes. Foi fundamental, para que este fim dejornada fosse to tranqilo no ambiente domstico, que exercesse sua plasticidade

    invejvel diante das mudanas necessrias e uma tolerncia que, certamente, ele no

    conhecia, principalmente diante da turra em pessoa. Para alm de tudo, a

    autotransformao que forjou a declarao de amor mais sincera que j recebi.

    Devo-lhe, to-somente, desculpas por nem sempre corresponder s suas expectativas.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    9/353

    ix

    De te fabula narratur.

    ( a ti que esta histria se refere.)

    Horcio.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    10/353

    x

    RESUMO

    Pesquisamos a poltica, o estado e as classes sociais nas obras de Karl Marx

    (1818-83) sobre o bonapartismo, tema que abordou quando tratou da histria

    francesa de meados do sculo XIX e que se manteve presente em suas reflexes por

    mais de duas dcadas. Centramo-nos na anlise imanente das obras do pensador

    alemo atinentes ao tema As lutas de classes na Frana, O 18 Brumrio de Lus

    Bonaparte e Guerra civil na Frana, artigos e correspondncia , reproduzindo-as

    analiticamente, o que foi possvel graas a uma pesquisa bibliogrfica histrica e

    temtica. No mister de compreender a universalidade e a especificidade do

    bonapartismo, percorremos um caminho que comea com a exposio das principais

    anotaes marxianas sobre a histria da Frana e da Alemanha, beros do fenmeno,e passa pela exposio da ontonegatividade da poltica, que Marx j explicitara em

    suas primeiras obras marxistas (1843-44). So questes que esto subjacentes s suas

    avaliaes das Revolues de 1848 na Frana, que acompanhamos em detalhe, bem

    como, agora mais explicitamente, na discusso que faz sobre o coup de tte de Lus

    Bonaparte e o governo bonapartista. Aquelas questes assomam explcita, profunda e

    rigorosamente na sua abordagem da Comuna de Paris, que aponta como a anttese

    direta do bonapartismo e a respeito da qual faz das mais detalhadas discusses acerca

    do estado burgus e da necessidade de sua derrocada, da ontonegatividade da poltica

    e da auto-emancipao insurrecional da classe operria. Para dar conta da riqueza da

    anlise marxiana, vimo-nos obrigados a abordar a particular estrutura de classes

    francesa, as divises no interior das classes dominantes, o fortalecimento do poder

    executivo em detrimento do legislativo, dos clubes e associaes, a splica burguesa

    por um governo forte e a atuao essencial do bonapartismo, em diversas frentes, no

    sentido de, por uma poltica externa agressiva e outras medidas, atenuar as lutas de

    classes, assegurar tranqilidade ao burgus agora contra-revolucionrio e promover odesenvolvimento capitalista. Exploramos as principais categorias descobertas na

    apreciao do iderio marxiano, tendo por centro o bonapartismo, mostrando sua

    importncia singular e sua amarrao. Discorremos, por fim, sobre a forma como o

    marxismo, depois de Marx, apreendeu, modificou, complementou ou rejeitou as

    observaes marxianas a respeito do bonapartismo. Tambm nos detemos sobre a

    forma como a questo aparece terica e praticamente na realidade brasileira.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    11/353

    xi

    ABSTRACT

    Our study discusses politics, state and social class in the works of Karl Marx

    (1818-83) about bonapartism, a subject he approached when investigated the history

    of France in the middle of 19th century; Marx had been concerned with bonapartism

    for over two decades. We focus our study on the immanent analysis of Marxs texts

    on the subject The Class Struggle in France, The Eighteenth Brumaire of Louis

    Bonaparte and The Civil War in France, besides articles and letters -, which were

    analytically reproduced as a result of a bibliographic research both historical and

    thematic. Attempting to understand the universality and the specificity of

    bonapartism, we followed a path beginning with an explanation of the main marxian

    notes on the history of France and Germany, where the phenomenon emerged, andgoing through the explanation about the ontological negativity of politics which Marx

    had already elucidated in his early marxist works (1844). These issues are subjacent

    to his evaluations of 1848 Revolutions in France which we follow in detail, as well as,

    his discussion about Louis Bonapartes coup de tte and the bonapartist government.

    Those issues emerge clear, deep and rigorously in his investigation on The Paris

    Commune. Marx indicated this event as the direct antithesis of bonapartism and

    investigating the Paris Commune, he elaborated detailed analysis on the bourgeoisstate, the nature of politics and the insurrectional self-emancipation from the

    workers perspective. In order to grasp the richness of the marxian analysis, we had

    to consider the specific class structure in France, the division inside the ruling class,

    the strengthening of the executive power in detriment of the legislative power, the

    clubs and associations, the bourgeois supplication towards a strong government and

    the essential performance of bonapartism which due to an aggressive foreign policy

    reduced class struggle, assured serenity to the bourgeois, now counter-revolutionary,

    and promoted the capitalist development. We investigated the main categories we

    have found in the analysis of the marxian ideas while focussing on bonapartism,

    showing its peculiar importance and its ties. Finally, we discussed the way marxism,

    after Marx, has understood, modified and complemented or rejected the marxian

    remarks about bonapartism. As about this rejection, we were also concerned with the

    way this subject takes place - theoretically and practically- in Brazilian reality.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    12/353

    xii

    SUMRIO

    LISTA DE IMAGENS ............................................................................... 13

    INTRODUO ........................................................................................ 14I AS REVOLUES DE 1848 NA FRANA............................................47

    1.1 CANTO DO GALO GAULS CONCLAMA PRIMAVERA DOS POVOS............49

    1.1.1 O Governo do Improviso ......................................................................................57

    1.1.2 O Monstro Republicano e o Espectro Vermelho ..............................................66

    1.1.3 A Autocracia Legislativa .......................................................................................88

    1.2 MARX E AS CLASSES SOCIAIS NA FRANA BONAPARTISTA......................108

    1.3 EPILOGANDO AS ANLISES DE MARX..............................................................124

    II A PARDIA DE RESTAURAO DO IMPRIO............................... 137

    2.1 BONAPARTE, BONAPARTISTAS, BONAPARTISMO (1830-71).......................138

    2.2 O COUP DE TTE DE LUS BONAPARTE ...........................................................153

    2.3 O COMPLEXO CATEGORIAL DO BONAPARTISMO ........................................187

    III A GLORIOSA REVOLUO DE MARO, ANTTESE DOBONAPARTISMO................................................................................. 202

    3.1 EM AMBAS AS MARGENS DO RENO: BONAPARTISMOS EM GUERRA.....203

    3.2 A LOUCURA HERICA DO TRABALHO .............................................................219

    3.3 EPTOME ...................................................................................................................238

    IV DEPOIS DE MARX: O BONAPARTISMO POR UMA PLIADEMARXISTA ...........................................................................................246

    4.1 A RELIGIO DA BURGUESIA: APORTES ENGELSIANOS TEORIA DOBONAPARTISMO ............................................................................................................248

    4.2 EQUILBRIO CATASTRFICO E CESARISMO EM GRAMSCI .......................268

    4.3 TROTSKY, O BONAPARTISMO E O BONAPARTISMO OPERRIO ...........276

    4.2 O MESMO TEMA, OUTROS AUTORES MARXISTAS .......................................294

    4.5 AUTOCRACIA E POLITICISMO: O BONAPARTISMO NO CASO BRASILEIRO............................................................................................................................................ 310

    CONSIDERAES FINAIS: RETROVERTENDO A MARX .....................334

    BIBLIOGRAFIA.....................................................................................345

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    13/353

    13

    LLIISSTTAADDEE IIMMAAGGEENNSS

    Capa:A Constituio de 1848, litografia annima in OEHLER, Ralf. O velho mundo

    desce aos infernos. So Paulo, Cia. das Letras, 1999, p. 109.

    Introduo: Marx. Disponvel em: http://www.katardat.org/.../ commune28-

    600.jpg>.

    Captulo I: Revolues de Junho de 1848 emParis in Manifesto Comunista. So

    Paulo, Cortez, 1998 Iconografia

    Captulo II: Napoleo III rapina a Frana. Disponvel em:

    .

    Captulo III: Proclamao da Comuna de Paris in Grande Enciclopdia Larousse

    Cultural, Nova Cultural, 1988. p. 1.534.

    Captulo IV: Pliade marxista, montagem sobre imagem disponvel em:

    http://www.marxists.org/portugues/index.htm>.

    Consideraes Finais: Marx. Disponvel em:

    http://www.sosialismi.net/kuvat/kuvia/Marx-9.jpg>.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    14/353

    14

    INTRODUO

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    15/353

    15

    Este trabalho versa acerca da poltica, do estado e das classes sociais nas obras

    de Karl Marx (1818-83) que discutem o bonapartismo, tema que abordou quando

    tratou da histria francesa de meados do sculo XIX e que se manteve presente em

    suas reflexes nas duas dcadas posteriores.

    Marx um clssico indiscutvel das cincias humanas. E, como todo clssico,

    seu pensamento e suas obras nunca se tornam antiquados. Pelo contrrio: os

    clssicos permanecem sempre novos (como ele prprio dizia a respeito dos filsofos

    antigos). Algum que revolucionou as cincias sociais, como ele, tem de ser

    continuamente referncia terica. Sobre os ombros de pensadores assim se pode

    divisar mais longe, o que facilita em muito a nada simples tarefa de compreender e

    transformar o mundo contemporneo.Em se tratando de Marx (outra vez, como quase todo clssico), contudo,

    difcil fugir de uma frase que j se tornou lugar-comum. O filsofo alemo inclui-se e

    sobressai entre aqueles que, embora muito citados, sopouco lidos. Mesmo os seus

    autodenominados partidrios ou justamente eles muito tm contribudo para os

    problemas que se manifestaram, por exemplo, nas releituras de sua obra, sujeita a

    deturpaes, imputaes esprias, incompreenses. Objeto de intensas disputas e

    divergentes interpretaes, suas idias originais precisam, urgente epermanentemente, ser retomadas em sua prpria fonte.

    Muito longe de um suposto cachorro morto, como querem seus adversrios,

    trata-se de um pensador em cujas formulaes podem-se encontrar indicaes de

    respostas para questes gravosas e mesmo vitais nas quais se debate, terica e

    praticamente, a humanidade desorientada. Tendo o entulho pseudo-socialista do

    leste europeu se desbaratado, poderia se repor, em outro nvel, a questo da

    emancipao humana bem ao contrrio do que propagandeiam os inmeros

    apologetas do domnio do capital. Desta forma, retornar a Marx pressupe a firme

    convico na possibilidade de alternativas ordem do capital, ainda que no estejam

    momentaneamente no horizonte; abeberar-se em suas consideraes para

    compreender problemas atuais prticos, tericos, filosficos , na tentativa de

    solucion-los coletivamente.

    Em face destas questes, contudo (e pedimos licena para a parfrase), os

    marxlogos das linhas dominantes no sculo XX transformam em mistrios

    banalidades reais e sua arte consiste no em desvendar o que est oculto, mas em

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    16/353

    16

    ocultar o que j est revelado (SF, p. 82)1. Ainda mais: as tentativas de superar o

    pensamento de Marx conduzem apenas regresso a nveis inferiores do

    pensamento, no alm mas aqum de Marx (Lwy, 2002, p. 18).

    Nosso interesse inicial nesta pesquisa, bem como nossa militncia em

    movimentos como a Editora Ensaio e a Ad Hominem, vo tambm nesta direo, de

    acordo com o que manifestava J. Chasin: manter a lucidez , talvez, a tarefa mais

    revolucionria possvel nos atuais dias obscuros. Eis que revelamos desde j nossas

    motivaes como toda a obra de Marx comprova abundantemente, a pesquisa

    interessada no desqualifica seus resultados.

    Queremos, pois, retornar a Marx. O assunto que pesquisamos de importncia

    mpar para a apreenso de seu iderio, de forma muito especial no que tange s suas

    concepes polticas mbito extremamente relevante para ele, que semprepretendeu ter uma influncia prtica, transformadora, na realidade. Este

    revolucionamento inclui necessariamente uma especfica atuao poltica, embora de

    maneira nenhuma se resuma a ela. Por seu tratamento privilegiado e por sua anlise

    ampla, o bonapartismo permite (e exige, em certos casos) a discusso de uma pletora

    de temas afins, todos de importncia cabal para bem compreender o pensamento de

    Marx. A partir das discusses sobre esta temtica, podemos levantar problemas

    referentes sua concepo de poltica (em geral e, em particular, a questo do estadoe dos partidos, da democracia, do sistema parlamentar representativo, do sufrgio

    universal), da ideologia, da luta de classes, da formao especfica das formaes

    nacionais, da revoluo proletria e de suas diferenas quanto s revolues

    burguesas, entre outros. Pela prpria forma como Marx realizava suas anlises, fica

    patente a amplido de assuntos que podem ser tratados no interior de uma discusso

    que aborde o bonapartismo.

    Note-se: Da prtica possvel a Marx, no quadro alemo de 1848/9, nada pde

    resultar na imediaticidade dos acontecimentos; contudo, deve-se ressaltar com

    nfase que de seu empenho intelectual redundou a formao da pea mais extensa e

    diversificada do acervo de sua reflexo poltica (Chasin, 1993, pp. 33-4). Apenas isto

    j justificaria a importncia de resgatar as concepes histricas de Marx no perodo

    que vai de 1848 a 1871. Por outro lado, apenas por meio dos textos elaborados a

    propsito de acontecimentos especficos podemos ter acesso reflexo de Marx

    1 As siglas utilizadas como referncia s obras de Marx, bem como os demais dados bibliogrficos,constam da Lista de Siglas, no incio da Bibliografia.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    17/353

    17

    sobre a poltica, j que nunca escreveu nada especificamente a respeito (Chasin, 1993,

    pp. 20-1). O estudo do bonapartismo, em particular, permite-nos estas incurses.

    A questo poltica est, desta forma, intrinsecamente ligada aos textos de Marx

    que discutimos, bem como s suas preocupaes no perodo analisado. H, contudo,

    no nosso entender, uma sria incompreenso sobre a forma como ele entendia a

    poltica e enxergava suas determinaes e limitaes. Incompreenso que vai para

    alm da capacidade e da dedicao pessoal dos estudiosos, j que historicamente

    determinada, relacionada usina de malversaes ideolgicas e prticas em que se

    tornou o capitalismo.

    Em face destes problemas, acreditamos ser bastante til expor os lineamentos

    mais importantes do pensamento elaborado por Marx acerca da poltica at 1848, j

    que nosso recorte toma seus textos do perodo imediatamente posterior. Queremosretratar, de forma sumria, suas principais descobertas neste sentido, a fim de que

    possamos compar-las s suas manifestaes sobre o tema nas obras que estudamos

    e averiguar transformaes, aprofundamentos e eventuais rupturas.

    __________________________________________________________

    Marx e a Poltica (1843-48)__________________________________________________________

    Sem nenhuma inteno de compendiar as obras de Marx, seno de reproduzir

    determinados aspectos que consideramos primaciais para o entendimento mais

    amplo do seu pensamento no perodo estudado, procederemos a uma explanao

    que, alm de bastante resumida, privilegiar a faceta poltica das conquistas tericas

    marxianas2, permitindo situar a avaliao que fez do bonapartismo e da Comuna no

    interior do todo de seu pensamento e explicitando algumas concluses que esto

    subentendidas nos textos que analisamos.

    No consideramos possvel, no interior de um trabalho como este, retomar

    todas as suas obras que tratam da poltica, dado o seu volume, densidade e variedade,

    alm dos limites intrnsecos aos trabalhos acadmicos. Ademais, um perodo

    bastante estudado, de forma que podemos nos apropriar criticamente de toda uma

    srie de pesquisas consistentes j realizadas, em especial as ligados ao Grupo de

    Pesquisa Marxologia, Filosofia e Estudos Confluentes da Faculdade de Filosofia da

    2 Empregamos o texto marxiano como referncia exclusiva produo terica da prpria pena deMarx, reservando o termo marxista para as diversas correntes de seus seguidores, inclusive Engels.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    18/353

    18

    Universidade Federal de Minas Gerais, fundado por. J. Chasin. Tais trabalhos, nos

    quais nos baseamos amplamente, remontam formao acadmica de Marx (1836-

    41), a sua tese doutoral (1841) e ao perodo em que atuou, como correspondente e

    redator, na Gazeta Renana (1842-3), rgo da burguesia liberal da Rennia3.

    No mbito social, acreditava Marx ento, a realizao da liberdade humana

    coincide com a instaurao de instituies polticas e, neste contexto, superar a

    fragmentao e a ciso tpicas do velho mundo passa pela conquista do estado

    poltico moderno, erigido sobre leis racionais e fundado no direito universal. De

    maneira que: pela construo do estado poltico moderno que o homem se realiza

    como membro de uma totalidade (Eidt, 1998, p. 171). O estado verdadeiro, onde

    reinam os direitos universais do homem, uma comunidade de homens ticos e

    racionais, os quais entrelaam seus fins particulares aos interesses gerais, superandoas particularidades. Pela sua existncia racional, o estado realiza o homem como ser

    humano, permite a realizao humana do indivduo; desta forma, no se trata de um

    instrumento a servio de uma classe social, mas, pelo contrrio, o lugar em que se

    supera a oposio entre o indivduo e a totalidade, onde se realiza o esprito livre e

    racional do homem (Eidt, 1998, p. 175). Neste sentido, a obedincia ao estado

    racional representa to-somente o respeito prpria racionalidade , portanto,

    auto-obedincia.Por toda esta poca, portanto, Marx via no estado uma entidade autocentrada

    e o mais alto representante da razo e da universalidade humanas. Tinha a

    politicidade como uma qualidade humana fundamental, um predicado intrnseco ao

    ser social; era um adepto vibrante da linha de pensamento clssica e de origem

    to remota quanto a prpria filosofia que identifica na poltica e no estado a prpria

    realizao do ser humano e de sua racionalidade (Chasin, 2000, p. 132). Em outros

    termos, Marx estava vinculado determinao ontopositiva da politicidade, uma das

    principais caractersticas dos neohegelianos. Neste quadro, estado e liberdade ou

    universalidade, civilizao ou hominizao se manifestam em determinaes

    recprocas (Chasin, 2000, p. 132), considerando-se o plano da poltica resolutivo

    com relao aos problemas sociais. Trata-se, portanto, de uma forma de pensamento

    que confere poltica capacidade de engendrar a sociabilidade, de dar-lhe o norte e

    empux-la dos problemas em que se enreda.

    3 Vale mencionar, em especial: Teixeira, 1999; Enderle, 2000; Albinati, 2001; Eidt, 2001; Costa, 1999;M. Chasin, 2001; De Deus, 2001.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    19/353

    19

    Esta orientao encontraria seu fim em 1843. Neste ano, depois que a

    recrudescncia da represso acabara com a Gazeta Renana, Marx, exilado da

    Alemanha, estudou, mais uma vez, os tericos clssicos da poltica, da estrutura e da

    natureza do poder (Maquiavel, Hobbes, Rousseau), alm de histria antiga e da

    Revoluo Francesa. Seu alvo principal, ainda neste momento, era o hegelianismo, na

    medida em que constitua uma cobertura ideolgica e uma legitimao muito mais

    profunda e hbil verdadeiramente genial do statu quo alemo do que vrias

    outras existentes, como a escola histrica do direito (Chtelet, 1971, pp. 15; 27).

    Dedicou, por isso, especial ateno Filosofia do direito, obra que Hegel publicara

    em 1821, que Marx considerava a mais refinada expresso do estado moderno e,

    portanto, para o jovem publicista, criticar a obra equivalia a criticar a prpria

    realidade que lhe servia de referncia (Frederico, 1995, p. 52).Desse processo, chegaram-nos alguns manuscritos: os Cadernos de Kreuznach

    compilaes das leituras diversificadas que fez poca e que, afora comentrios

    globais, permanecem inditos; e o manuscrito Contribuio crtica da Filosofia do

    direito de Hegel, um divisor de guas na sua formao terica neste volumoso

    manuscrito que Marx rompe definitivamente com a idia de estado como instituio

    racional (Rubel, 1991, p. 25). Mesmo na sua maturidade Marx no descartou o

    manuscrito4

    , germe de uma novapostura ontolgica em relao ao itinerrio anterior, pautadapelo descarte da especulao e pela simultnea afirmao doente real, sensvel e objetivo, como ponto de partida e comoparmetro na reflexo, o que conduz a tematizao sobre apoliticidade compreenso da sociedade civil como momentopreponderante em sua relao com o estado (De Deus, 2001, p.17).

    De par com a radical, repetida e apaixonada crtica do pensamento

    especulativo, Marx chegava, ento, compreenso da propriedade especfica da

    politicidade moderna: a realizao da poltica se d por abstrao e negao da

    existncia real da sociedade civil, a qual s atua politicamente ao negar o seu

    prprio ser, adquirindo uma natureza que lhe estanha (De Deus, 2001, p. 61). J

    aqui aparece, portanto, a dualidade do indivduo na sociedade moderna ou, como

    Marx dir depois, o dilaceramento do homem , isolado enquanto indivduo em

    relao sua vida social.

    4 Efetivamente, no Posfcio segunda edio alem do primeiro tomo de O capital (de janeiro de

    1873), o prprio Marx ressaltava: Critiquei o aspecto mistificador da dialtica hegeliana h cerca 30anos, quando ainda se achava em moda (P1873, p. 15).

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    20/353

    20

    Para o Marx da Crtica de 1843, o moderno estado era a instncia prpria de

    realizao do homem como ser social, o que implicaria, contudo, a negao da sua

    vida material, real: para adquirir significado poltico a sociedade civil deve negar sua

    prpria existncia, tornando-a inessencial (De Deus, 2001, p. 121). Para Marx, neste

    sentido, o soberano da poltica a prpria negao da vida genrica, o interesse

    universal apenas um predicado da propriedade privada, o que o faz defender a

    verdadeira democracia como supressora do carter abstrato do estado. Na

    verdadeira democracia, a vontade genrica do povo exercida de forma imediata,

    sem a mediao do estado, tornando-se a prpria comunidade dos indivduos reais a

    nica universalidade, existente em razo daquilo que cada um e faz e no em razo

    de uma representao formal e abstrata (De Deus, 2001, p. 122). Esta

    autodeterminao da sociedade civil s pode se efetivar, entretanto, ao perpassartodos os momentos da vida genrica.

    Desta forma, Marx apontava como soluo para a abstratividade do estado a

    autodeterminao da sociedade civil, a verdadeira democracia, pela qual os interesses

    de todo o povo se tornariam o princpio real do estado poltico e do estado material

    da vida integral da nova sociedade. A democracia direta significaria a gesto dos

    assuntos pblicos pelos homens comuns, significaria o fim da existncia autnoma do

    estado, ou seja, a sociedade civil se poria imediatamente em sua forma poltica,confundir-se-ia com ela, reapropriar-se-ia de seu contedo poltico; por outro lado, o

    estado poltico se relacionaria com a sociedade civil como com seu contedo, que o

    determinaria, j que no tem substncia prpria, constituindo-se na smula das lutas

    prticas da humanidade. Ter-se-ia, assim, a reunificao entre forma e contedo.

    Por meio da ampliao mxima do sufrgio e da participao da sociedade civil

    no poder legislativo, a poltica, alienada e etrea, seria absorvida pela existncia

    social, toda funo social se tornaria poltica e o estado democrtico seria a mais

    suprema realizao poltica do homem. A democracia promoveria a verdadeira

    unidade do universal com o particular, de forma que no mais existiriam de forma

    concomitante, distinta e antagnica os plos antinmicos homem poltico e homem

    no-poltico, estado e sociedade civil, contedo e forma, universal e particular. No

    reino da verdadeira democracia, a sociedade civil, e no o estado poltico, seria o

    sujeito; sua mais ldima caracterstica seria a supresso do carter abstrato da

    democracia poltica, propondo solues que operassem no estado real, determinante.

    Em outros termos, seria a reunificao entre lei e existncia social, entre estado

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    21/353

    21

    poltico e estado real. Na Crtica de 43, portanto, Marx, que na Gazeta Renana

    defendera o estado democrtico e racional, propunha a autodeterminao da

    sociedade civil e discutia a prpria politicidade, a necessidade de reapropriao pela

    sociedade civil de foras sociais alienadas na poltica.

    Que isso no oblitere, contudo, os limites da Crtica, especialmente no que

    tange dimenso poltica (superados nos meses seguintes), que a caracterizam como

    um texto importante, mas no resolutivo neste aspecto. Dado o desconhecimento que

    o jovem Marx apresentava dos princpios da sociedade contempornea, da

    importncia das relaes de produo e do desenvolvimento das foras produtivas,

    no pde clarificar como se dava a vinculao da alienao poltica com a sociedade

    civil. Ainda preso a um humanismo abstrato, via o homem no seu sentido geral,

    partcipe do gnero humano, no como membro de uma classe. Desta forma, mesmopercebendo a sociedade civil como sujeito da poltica, determinava-a como uma

    qualidade humana, uma funo social a ser apropriada pelo homem. Faltou, assim,

    evidenciar a gnese da prpria sociedade civil, da existncia humana real que exige o

    estado poltico abstrato, ou, dito de outro modo, a gnese das condies especficas

    que tornam a politicidade abstrata necessria. Marx no alcanou a gnese da

    abstrao poltica que detectou, nem seus intrnsecos vnculos com a sociedade de

    classes e a propriedade privada. Esta s lhe interessava pelo seu carter e funopolticos, manifestao que era do interesse privado (contraposto essncia social do

    indivduo), e no como expresso das relaes de produo. Da que a verdadeira

    democracia, para ele, no fosse a superao da sociedade burguesa, mas to-

    somente a superao da soberania poltica da propriedade privada e, principalmente,

    da alienao poltica (De Deus, 2001, p. 125). Nesse sentido, neste texto Marx ainda

    estava em busca da perfectibilizao da poltica posio que ser abandonada nos

    textos subseqentes. De fato, em suas investigaes posteriores, Marx conseguiria

    perceber o cimento social que une os indivduos atomizados, e ento, aos poucos, se

    livrar do empirismo na filosofia e seu correlato na poltica a democracia

    (Frederico, 1990, pp. 88-9).

    Em sntese, no processo de anlise da Filosofia do direito de Hegel Marx

    iniciava um trnsito do poltico ao social que no foi levado s ltimas conseqncias

    naquele momento, mas que o individualizava entre todos os seus contemporneos.

    Em suas irresolues e avanos, a concepo radical de poltica alcanada por Marx

    em Kreuznach era decorrente de sua transio, ainda no interior do idealismo ativo,

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    22/353

    22

    da democracia radical para a democracia revolucionria. O rompimento com a

    especulao j estava posto e seria sobre os pilares da afirmao da ontologia,

    princpio de sua crtica ao pensamento idealista (Cf. M. Chasin, 1999,passim), que se

    ergueria, j nos meses seguintes, a construo ideria prpria de Marx. Nesse

    caminho, as crticas efetuadas por ele ao idealismo, politicidade e economia

    poltica sero fundamentais para sua censura ao comunismo vulgar, bem como

    sua adeso definitiva, posteriormente, perspectiva do trabalho.

    Poucos meses depois de escrever a Crtica, Marx apreender a verdadeira

    democracia no como uma forma de estado racional, mas como o fim deste, e que a

    soluo dos problemas identificados apontava no para a perfectibilizao da poltica,

    mas para sua superao em prol da emancipao humana. Neste sentido, caberia,

    fundamentalmente, encontrar a esfera determinante do ser social, que no est nombito da poltica, mas na sociabilidade, busca a que se dedicaria desde ento. O

    voltar-se para a anatomia da sociedade civil no significaria um desprezo pela

    poltica, mas a descoberta da determinao ontolgica negativa da politicidade,

    advinda das debilidades sociais que suscitaram a mediao poltica para (ir)resoluo

    dos problemas humanos. Vejamos como ele prprio ps a questo.

    Em texto do outono europeu de 1843, censurando Bruno Bauer acerca dA

    questo judaica, que este escrevera, Marx afirmava que o neohegeliano havia postomal a questo da emancipao no discutira inicialmente de que tipo de

    emancipao se tratava, equvoco derivado do fato de que criticava apenas o estado

    cristo, no o estado enquanto tal. Da que no tenha conseguido captar o novo

    patamar da relao entre a emancipao poltica e a religio, que passara a ser o

    problema da relao entre a emancipao poltica e emancipao humana. Para ele

    prprio, a questo era entender como a emancipao poltica j alcanada se

    relacionava com a religio no o fundamento, mas a manifestao de uma limitao

    secular. A, contrapondo-se ao simplismo da soluo baueriana abolir a religio

    para alcanar a emancipao poltica, identificada pelo telogo emancipao

    humana, Marx criticaria a prpria emancipao poltica, num complexo analtico

    em que pela primeira vez determina a natureza da politicidade de acordo com seus

    novos e originais lineamentos tericos (Chasin, 2000, p. 142).

    Acompanhando a crtica a Bauer com a explicao de sua prpria posio,

    Marx salientava que a emancipao poltica em face da religio nunca poderia ser a

    libertao das contradies intrnsecas prpria religio, dado que a emancipao

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    23/353

    23

    poltica no o modo total e isento de contradies da emancipao humana (QJ,

    p. 468). O quanto estreita a emancipao poltica ficar clarificado no fato de o

    estado poder se livrar de peias sem que o homem se liberte realmente, seja

    efetivamente um homem livre. Neste sentido, o homem se liberta atravs do estado,

    liberta-sepoliticamente, de uma trava ao entrar em contradio consigo mesmo, ao

    sobrepor-se a esta trava de um modo abstrato e limitado, de um modo parcial (QJ,

    p. 468). A emancipao poltica mostrada, desta forma, como um rodeio suprfluo

    libertao do homem (o estado intermedeia sua relao com a sua prpria liberdade),

    e este, mesmo sendo um proclamado ateu pela mediao do estado no religioso,

    continua preso s mesmas estruturas religiosas. o mesmo processo pelo qual se

    abole politicamente a propriedade privada ao eliminar o critrio censitrio como base

    do direito de sufrgio. Desprezar politicamente origem, nvel social, cultura eocupao do homem, proclamar todo o povo como igual partcipe da soberania

    popular no significava, entretanto, que a propriedade privada, a cultura, a origem

    no mantivessem sua atuao e sua essncia. Em outros termos, bem longe de

    acabar com estas diferenas de fato, o estado descansa sobre estas premissas, s se

    sente como estado poltico e s faz valer sua generalidade em contraposio a estes

    elementos que formam parte dele (QJ, p. 469).

    Para Marx, em sua plenitude e por natureza, o estado poltico a vidagenrica do homem por oposio sua vida material, cujos pressupostos egostas

    continuam existindo na sociedade civil como suas qualidades, fora do estado. No

    estado o homem um ser genrico, membro imaginrio de uma imaginria

    soberania, despojado do contedo real de sua vida individual e parte de uma falsa

    generalidade.

    Ali onde o estado poltico alcanou seu verdadeirodesenvolvimento, o homem leva, no s o pensamento, na

    conscincia, mas na realidade, na vida mesma, uma vida dupla,uma celestial e outra terrena: a vida da comunidade poltica, naqual se considera ser coletivo e a vida da sociedade civil, na qualopera como particular, v nos outros e se converte em joguetede poderes estranhos. (QJ, p. 470)

    Marx mostrava, assim, que o conflito do homem religioso com sua cidadania e

    com os demais membros da comunidade reduzia-se ao abismo irreligioso entre o

    estado poltico e a sociedade civil, era a mesma contradio entre cidado, de um

    lado, e o comerciante, o jornaleiro, o latifundirio, o bourgeois, o indivduo vivo e

    atuante, de outro era umaparte da contradio social geral. Havia, pois, uma peleja

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    24/353

    24

    que contrapunha o interesse geral ao privado, o estado poltico sociedade burguesa,

    e a crtica de Bauer expresso religiosa desta deixava intocadas as contradies

    seculares.

    Marx no desprezava a emancipao poltica, pelo contrrio, considerava-a

    indubitavelmente um grande progresso era a forma mais alta da emancipao

    humana dentro da ordem do mundo atual, mas no era a forma mais alta da

    emancipao humana em geral (QJ, p. 471). Assim, com a emancipao poltica, o

    estado prescindiu da religio como esfera na qual restritamente o homem se

    comportava como ser genrico, relegando-a ao mbito do egosmo, da separao

    entre o homem e sua comunidade. Este deslocamento, longe de ser uma fase, um

    ardil ou um escape da cidadania o auge da emancipao poltica nem se cogita da

    superao da religiosidade e das contradies sociais reais. Se em alguns momentos avida poltica contraditava a sociedade burguesa que a embasava, Marx ressaltava,

    tudo terminava com o restabelecimento das premissas anteriores trata-se de uma

    subordinao degenerativa da poltica s particularidades da sociedade civil (Chasin,

    2000, p. 146).

    No que toca democracia poltica, que na Crtica era tida como resolutiva,

    dizia que nela todo homem soberano, mas o homem corrompido por toda a

    organizao de nossa sociedade, perdido de si mesmo, alienado, entregue ao impriode relaes e poderes inumanos; em uma palavra, o homem que ainda no chegou a

    ser uma criatura genrica real (QJ, p. 475).

    Salientava Marx que os direitos do homem no eram ddivas naturais, mas

    resultado de uma luta contra o acaso do nascimento e os privilgios transmitidos pela

    genealogia. Tais direitos eram direitos polticos que s poderiam ser desfrutados em

    comunidade com outros homens seu contedo era, portanto, a participao na

    comunidade e, concretamente, na comunidade poltica, no estado (QJ, p. 477). Os

    direitos humanos se diferenciam dos direitos do cidado, os direitos cvicos havia,

    pois, a distino entre o homem e o membro da sociedade burguesa, civil, sendo

    os direitos do homem egosta, do homem que vive margem do homem e da

    comunidade (QJ, p. 478). Dentre estes direitos, a liberdade era tida como direito de

    fazer tudo aquilo que no prejudicasse os demais, ou seja, a lei determina os marcos

    nos quais os homens podem atuar sem dano a outros. Trata-se da liberdade do

    homem considerado como uma mnada, isolado, voltado sobre si mesmo (QJ, p.

    478). Assim, o direito humano liberdade, em vez de pressupor a unio do homem

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    25/353

    25

    com o homem, est baseado na separao entre os homens e sua mais clara

    elucidao o direito humano da propriedade privada, o direito de desfrutar de seu

    patrimnio livre e voluntariamente, despreocupando-se com os demais homens, de

    forma independente da sociedade. A liberdade individual a que se refere o primeiro

    direito e sua aplicao, a propriedade privada, fundamentam a sociedade burguesa,

    Sociedade que faz que todo homem encontre nos demais no a realizao, mas, pelo

    contrrio, a limitao de sua liberdade (QJ, p. 479). Nesta sociedade, os direitos

    humanos garantidos no vo nunca alm do homem egosta, do burgus,

    desconsiderando seu carter genrico para fazer da sociedade uma limitao imposta

    a sua pretensa liberdade originria. Os emancipadores polticos rebaixam a

    comunidade poltica (a cidadania) ao papel de meio para a realizao dos interesses

    do homem egosta, isolado, parcial, e o homem tido como autntico e verdadeiro ohomem enquanto burgus, no o homem enquanto cidado.

    O pensador alemo mostrava, desta forma, como a prtica revolucionria

    contraditava a teoria: o direito humano da liberdade perdia sua substancialidade na

    coliso com a vida poltica a qual, teoricamente, tem por objetivo mais sublime a

    garantia dos direitos humanos. Sinteticamente: o que meio apresenta-se como fim e

    vice-versa. De sorte que, por sua prpria efetivao, a emancipao poltica entra em

    contradio e fere seu mais caro galardo de honra, sua petio de princpiouniversalista, sua pretenso universalidade racional e tica. (Chasin, 2000, p. 146)

    Marx dizia que a emancipao poltica representava o fim da velha sociedade, a

    qual tinha um carter poltico imediato, pois nela os elementos da vida civil eram-no

    tambm da vida estatal (como propriedade territorial, estamento ou corporao). Tal

    situao foi destruda por uma revoluo poltica que tornou os assuntos do estado de

    interesse do povo e fez do estado poltico algo geral, que inclua todos os estamentos,

    corporaes, grmios e privilgios, que eram outras tantas expresses do divrcio

    entre o povo e sua comunidade (QJ, p. 482). Por outro lado, aquela revoluo

    simplificou a vida civil, eliminou o carter poltico da sociedade civil, instituiu-o como

    a esfera da comunidade, teoricamente independente dos antigos elementos

    particulares da vida civil. Tipos determinados de atividade e situao social passaram

    ao plano da significao individual, deixaram de representar a relao geral entre o

    indivduo e o conjunto do estado (QJ, p. 482). Ao desvencilhar-se do jugo poltico,

    continuava Marx, davam-se rdeas soltas ao esprito egosta da sociedade civil, que se

    libertava at mesmo da aparncia de generalidade. O indivduo egosta foi a

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    26/353

    26

    resultante passiva da dissoluo daquela antiga sociedade. De forma que a liberdade

    do homem egosta e o seu reconhecimento no so outra coisa que o movimento

    incontrolado do contedo de sua vida, sob a forma de seus elementos espirituais e

    materiais. A revoluo poltica fragmenta nas suas diversas partes a vida burguesa,

    mas no as revoluciona nem as critica, antes ao contrrio, toma-as por sua base

    natural. Fica evidente j ento a natureza limitada da revoluo poltica: meio de

    dominaes especficas que, enquanto tais, contradizem o princpio da comunidade

    poltica o estado como realizao racional da universalidade humana (Chasin,

    2000, p. 147).

    Da que o homem, na sua faceta integrante da sociedade burguesa (ou seja, na

    sua existncia imediata e individual), tomado como o homem verdadeiro,

    diferentemente do cidado, homem poltico abstrato, artificial, alegrico. A revoluopoltica reduz o homem, por um lado, ao membro egosta da sociedade burguesa, e

    por outro ao cidado de estado, ao homem moral. A ambos o egosmo, enquanto

    denominador comum, inerentemente dissocia e contrape. Numa s frase, o cidado

    sem corpo e o homem sem gnero so ambos, efetivamente, contornos atrficos,

    resultantes de predicaes usurpadas (Chasin, 2001, p. 149). So personagens

    desfiguradas pelas suas prprias foras que se aglutinaram e se voltaram contra eles:

    a comunidade poltica usurpa o gnero dos homens reais e a pletora dos homensisolados, degradando e retendo para si toda a efetividade possvel, privam a poltica

    do corpo (Chasin, 2001, p. 149), de forma que o homem real despojado de sua

    cidadania e o cidado defraudado de suas foras sociais. Sendo a poltica energias

    sociais desapossadas e desfiguradas, Marx conclui:

    S quando o indivduo real recobra dentro de si o cidadoabstrato e se converte, como homem individual, em sergenrico, em seu trabalho individual e em suas relaesindividuais: s quando o homem tenha sabido reconhecer e

    organizar suas forces propres como foras sociais e quando,portanto, no aparta j de si mesmo a fora social sob a formade fora poltica, podemos dizer que se leva a cabo aemancipao humana. (QJ, p. 484)

    Explicita-se de forma cabal a noo a que Marx chegara a respeito da poltica.

    Fica evidenciado o carter parcial e limitado da poltica e da emancipao poltica

    que liberta o homem egosta, fragmentado, impotente, base do estado em face da

    emancipao humana, que nada menos que a reapropriao das suas foras sociais

    pela prpria sociedade, o fim da politicidade. Em vez de uma relao alternativa entre

    estado e sociedade civil, aqui j se criticam os prprios fundamentos do estado e da

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    27/353

    27

    poltica. A tambm Marx abandona o conceito poltico abstrato de povo e comea a

    trabalhar com a sociedade civil burguesa concreta. Da mesma forma, a verdadeira

    democracia substituda pela emancipao humana, universal: a reapropriao

    daquelas foras usurpadas e degeneradas pelos prprios homens, em seu processo de

    autoconstituio.

    Esta verdadeira revoluo copernicana em relao a suas antigas concepes e

    a todo o pensamento poltico anterior se explicitaria ainda em outro texto, de fins de

    1843 e incio do ano seguinte, a Introduo Crtica filosofia do direito de Hegel,

    em deixava evidenciado o programa revolucionrio que defendia, e seu agente, o

    representante da lgica onmoda do trabalho (ento, o proletariado). Neste texto, ao

    falar da forma (abstrata em relao ao homem real) como o estado moderno era visto

    na Alemanha, Marx mostrava que estava relacionada ao fato de que o prprio estadomoderno fez abstrao do homem realou satisfaz o homem totalde modo puramente

    imaginrio (ICFDH, p. 7). Os alemes representavam, assim, a conscincia terica,

    em termos polticos, dos povos que conquistaram praticamente a modernidade (o que

    demonstra a inexistncia de qualquer mecanicismo na avaliao que Marx fazia das

    produes ideais em relao a sua realidade imediata). Apontava, nesse momento, a

    inferioridade das discusses relativas poltica ao nvel oficial da modernidade

    em comparao com as questes humanas, muito mais elevadas.Referindo-se Alemanha, Marx demonstrava que o pas no cumprira o

    mesmo trajeto dos povos modernos no que toca gradual emancipao poltica,

    estando aqum, em termos prticos, das fases que j havia superado teoricamente o

    que a fez partilhar das conseqncias negativas do desenvolvimento dos povos

    modernos sem desfrutar de seus benefcios e tornou a vida no pas um hibridismo dos

    defeitos do mundo moderno com os do ancien rgime. De fato, o pas combinava os

    problemas de todas as formas de estado, de maneira que aquela realidade anacrnica

    impunha, para ser superada, a derrubada dos caracteres polticos de seu tempo.

    Neste sentido, o pas no poderia se deter numa revoluo meramente poltica, a

    revoluo que deixa em p os pilares do edifcio, que uma revoluo parcial de uma

    classe que se emancipa e instaura seu domnio sobre a sociedade como um todo

    esta, livre das antigas amarras, mas j aprisionada em outras. Tratava-se de efetivar

    uma revoluo radical, de realizar a emancipao humana geral (ICFDH, p. 10).

    Fica, assim bastante evidente que a revoluo poltica restrita e imperfeita e que

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    28/353

    28

    deveria haver uma revoluo que buscasse no mais a emancipao de uma classe,

    mas a emancipao humana.

    De acordo com ele, a emancipao geral efetivada por uma classe implica que

    esta represente os interesses da sociedade como um todo, j que Somente em nome

    dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a

    dominao geral. Para que coincidam a revoluo de um povo e a emancipao de

    uma classe especialda sociedade civil, preciso que todas as falhas da sociedade se

    concentrem numa outra classe, receptculo do repdio geral e soma de todas as

    limitaes, de forma que a libertao desta esfera aparea como a autolibertao

    geral (ICFDH, p. 11). Marx anotava, todavia, que na Alemanha no havia nenhuma

    classe suficientemente arrojada e intransigente para se transformar no representante

    negativo da sociedade, bem como nenhum grupo social com que se identificasse aalma do povo e provido de intrepidez revolucionria.

    A idia de que uma classe social se conforma no confronto com as demais

    esteve sempre presente nas obras posteriores de Marx. Aqui, era um dos

    fundamentos de sua crtica s classes alems, porque cada uma delas comea a ter

    conscincia de si fazendo chegar s outras suas pretenses, no quando oprimida,

    mas quando as circunstncias do momento, sem sua interveno, criam uma base

    social sobre a qual ela, por sua vez, possa exercer presso (ICFDH, p. 11). Emcompensao, todas conhecem a derrota antes mesmo de haver comemorado a

    vitria e criam seus prprios limites sem nem mesmo ter ultrapassado aqueles com

    que se batem, concluindo que cada classe, to logo comea a lutar contra a classe que

    est por cima dela, se v emaranhada na luta com aquela que est por baixo (ICFDH,

    p. 12). Eram as bases para que afirmasse: Na Alemanha, a emancipao universal a

    conditio sine qua non de toda emancipao parcial (ICFDH, p. 12). A possibilidade

    positiva da emancipao alem estava na formao de uma classe radicalmente

    agrilhoada,

    de uma esfera que possui um carter universal por seussofrimentos universais e que no reclama para si nenhuma

    justia especial, porque no se comete contra ela nenhumainjustia especial, mas a injustia pura e simples; que no podereclamar um ttulo histrico, mas simplesmente o ttulohumano; que no se encontra em oposio unilateral sconseqncias, mas numa oposio omnilateral aospressupostos do estado alemo; de uma esfera, enfim, que nopode emancipar-se sem emancipar-se de todas as outras esferas

    da sociedade e, ao mesmo tempo, emancipar todas elas; que ,numa palavra, aperda totaldo homem e que, portanto, s pode

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    29/353

    29

    se recuperar a si mesma atravs da recuperao total dohomem (ICFDH, p. 13).

    Tem-se no texto, claramente, pois, a caracterizao do mundo poltico como

    imperfeito, parcial, etapa inferior do desenvolvimento histrico ao qual se

    contrapunha a superior estatura humana a ser proximamente atingida pelos povosmodernos. Ficava patenteada a necessidade da destruio desta mesma modernidade

    poltica posta por uma revoluo apontada como parcial, desfrute limitado da

    liberdade, estgio transitrio que deveria ceder passo emancipao universal,

    humana, advinda da revoluo radical, que teria ento como agente o proletariado,

    classe cujos grilhes eram profundos e generalizados, que significava a perda do

    homem para si mesmo e que s se poderia recuperar com a recuperao total do

    homem. Patenteia-se, desta maneira, que a revoluo poltica, por ter carter apenas

    mediador, pode ser substituda, enquanto que a revoluo radical a emancipao

    humana geral guarda sempre a condio invarivel de grande e verdadeiro

    objetivo (Chasin, 2001, p. 142). Em sociedades atrasadas (como era o caso da

    Alemanha), inclusive, representava tanto o alvo quanto o meio para a emancipao

    parcial. No poderia ser mais clara a explicitao do tlos a perseguir: nunca um

    estado ou uma constituio poltica neste ou naquele sentido, mas a emancipao

    global, humana, referida livre construo do humano.

    Continuando o acompanhamento do itinerrio marxiano, destaque-se que, em

    1844, ele se dedicou ao estudo da economia poltica, preenchendo inmeros cadernos

    de leitura e iniciando a redao de um trabalho sobre o assunto. At meados do ano j

    havia, tambm, entrado em contato com a Liga dos Justos, sociedade comunista

    secreta fundada oito anos antes, e freqentado reunies operrias. Em julho, a

    propsito de uma discusso com Arnold Ruge acerca do significado da revolta dos

    teceles da Silsia (evento marcante para a biografia e para a teoria marxianas), Marx

    proferiu vrias consideraes a respeito das relaes gerais entre a poltica e os malessociais, ou melhor, acerca da prpria natureza da poltica e da essncia do

    pauperismo dado que Ruge pressupunha que a penria dos operrios relacionava-

    se s caractersticas de um pas apoltico, como seria a Alemanha, propondo como

    soluo uma revoluo social com alma poltica. Marx o criticava por no ser capaz de

    perceber que nem uma s das revoltas operrias da Frana e Inglaterra nunca teve

    um carter to terico e to consciente como a dos teceles silesianos. Ia ainda mais

    longe, ao afirmar que A insurreio silesiana comea precisamente por onde haviam

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    30/353

    30

    terminado as revoltas operrias da Frana e Inglaterra, pela conscincia da essncia

    mesma do proletrio (GC, p. 516).

    Ao contrrio do que dizia Ruge em sua argumentao, dizia Marx, no a

    penria que cria o entendimento poltico; a verdadeira origem deste est no prprio

    bem-estar social. A nao onde este entendimento mais desenvolvido e generalizado

    justamente onde o proletariado (de incio, pelo menos) despende mais energias em

    inadmissveis revoltas, reprimidas duramente e, ademais, estreis. Como pensa sob

    a forma poltica, v o fundamento de todos os males na vontade e os meios para

    remedi-los nafora e na derrubada de uma determinada forma de governo. (GC, p.

    518) Desta forma, a viso poltica desnorteava seu instinto social.

    Marx iniciava seu texto falando justamente do pas mais desenvolvido, poca:

    precisamente a burguesia inglesa atribua poltica a responsabilidade pela misria,enquanto os vrios partidos se esquivavam e acusavam mutuamente como

    causadores do problema; assim, os whigs apontavam o monoplio da grande

    propriedade territorial e as leis de restrio importao do trigo, enquanto os tories

    a questo estava no liberalismo, na competio, no desenvolvimento industrial. E

    conclua, criticamente: Nenhum dos dois partidos encontra a razo na situao

    poltica em geral, mas somente na poltica do partido contrrio (GC, p. 508).

    Estavam, por isso, impedidos at de cogitar reformas sociais. Para minorar oproblema da miserabilidade, apelaram-se inicialmente para medidas administrativas

    na Inglaterra. Persistindo o fenmeno, passara-se a atribu-lo no ao

    desenvolvimento industrial, mas legislao, ou seja, via-se como causadora da

    penria universal uma situao particular (o excesso de caridade consubstanciado na

    taxa dos pobres). Segundo Marx, a atuao inglesa em nada se diferenciava da de

    todos os estados que tenham voltado sua ateno para a misria: a tomada de

    medidas administrativas e filantrpicas ou outras ainda mais incuas. Nada mais

    lgico: o estado jamais encontrar em si mesmo e na sociedade civil as razes dos

    males sociais, pois

    Onde quer que existam partidos polticos, cada um delesencontra a razo de todo mal no fato de que no seja ele, masseu concorrente, quem empunha o timo do estado. At ospolticos radicais e revolucionrios buscam a razo do mal nona essncia do estado, mas em uma determinada forma degoverno, que tratam de substituir por outra. (GC, pp. 512-3)

    Desta forma, enquanto forma de organizao da sociedade, o estado, quando

    se defronta com anomalias sociais, desde logo as atribui a leis naturais, portanto

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    31/353

    31

    inatingveis pelo poder humano, ou vida privada, indene sua ingerncia, ou ainda

    a alguma transgresso administrativa: todos os estados buscam nos defeitos casuais

    ou intencionais da administrao a causa de seus males e recorrem, portanto, a

    medidas administrativas para remedi-los (GC, p. 513). O estado obrigado a faz-lo

    porque sua atividade organizativa justamente a administrao ao lanar-se neste

    mister, v-se sempre no torvelinho da disposio administrativa para realizar algo, de

    um lado, e de outro os meios e a capacidade de faz-lo sem destruir-se a si mesmo,

    uma vez que estabelecido sobre tal contradio. O estado descansa na contradio

    entre a vida pblica e a vida privada, na contradio entre os interesses gerais e os

    interesses particulares. Da que a administrao deva limitar-se a uma atividade

    formal e negativa, pois sua ao termina ali onde comea a vida civil e seu labor

    (GC, pp. 513-4). Por isso, conclua Marx, a impotncia a face mais ntima daadministrao, j que do carter anti-social, da escravido da sociedade civil que

    este tira a seiva de que sobrevive, donde: A

    existncia do estado e a existncia da escravido so inseparveis. O estado moderno

    s poderia superar sua impotncia administrativa se pudesse transfigurar

    radicalmente a atual vida privada, o que implicaria abolir-se, j que s existe em

    oposio a ela. Como o suicdio no tendncia natural, o estado est at impedido

    de ver a impotncia como sua marca distintiva, limitando-se a reconhecer e buscarcorrigir imperfeies meramente formais e fortuitas. No , desta forma, nenhum

    defeito incidental ou de somenos importncia, mas uma determinao ontolgica.

    Quanto mais poderoso seja o estado e mais poltico seja,portanto, o pas, menos se inclinar a buscar no princpio doestado, e, portanto, na atual organizao da sociedade, cujaexpresso ativa, consciente de si mesma e oficial o estado, ofundamento dos males sociais e a compreender seu princpiogeral. O entendimentopoltico o , precisamente, porque pensadentro dos limites da poltica. /.../ O princpio da poltica a

    vontade. Quanto mais unilateral e, portanto, mais perfeito sejao entendimento poltico, tanto mais crer na onipotncia davontade, tanto mais resistir a ver as barreiras naturais eespirituais que se levantam diante dela, mais incapaz ser, porconseguinte, de descobrir a fonte dos males sociais. (GC, p. 514)

    Marx comentava o isolamento e a dissociao do operrio em relao

    verdadeira comunidade dos homens, a essncia humana, ou seja, sua prpria vida

    fsica e espiritual, afirmando que este isolamento muito mais brutal, insuportvel e

    contraditrio que o isolamento com respeito comunidade poltica, j que

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    32/353

    32

    o homem mais infinito que o cidado e a vida humana maisinfinita que a vida poltica. Assim, pois, por parcial que sejauma insurreio industrial, encerrar sempre uma almauniversal, e por universal que seja uma insurreio polticaabrigar sempre, sob a mais colossal das formas, um espritoestreito. (GC, p. 519)

    A revoluo parcial, meramente poltica, diferencia-se profundamente da

    revoluo radical, que agora aparece claramente como revoluo social. Tambm

    retorna discusso sobre a parcialidade da revoluo poltica, que reinstaura o

    domnio de classe: enquanto uma revoluo social tem uma preocupao global, total

    ( um protesto contra a separao do indivduo de sua verdadeira comunidade, da

    natureza humana), a alma poltica de uma revoluo a labuta das classes alijadas

    do poder poltico para conquist-lo, superando seu isolamento do estado. Assim,

    parte-se do estado como um todo abstrato, cujo divrcio em relao vida real ogarante de sua existncia. Para Marx, Toda revoluo dissolve a velha sociedade, e

    assim considerada, uma revoluo social. Toda revoluo derruba o velho poder, e

    neste sentido uma revoluopoltica (GC, p. 520). Assim, as revolues derrubam

    o antigo poder e as velhas relaes sociais, o que um ato poltico, e sem o qual no

    se pode atingir o socialismo, porque para conquist-lo necessrio destruir e

    dissolver o antigo statu quo. Mas ali onde comea sua atividade organizadora, ali

    onde se manifesta seu fim em si, sua alma, o socialismo se despoja de sua envolturapoltica. (GC, p. 520)

    No poderia estar dito de forma mais clara. O fim ltimo do socialismo, reitera

    o pensador alemo, no a constituio de um novo estado nem o domnio de uma

    nova classe sobre as demais, mas a reconciliao do trabalhador com os outros

    homens, com sua prpria essncia, a emancipao universal, humana. Mostrava os

    limites estreitos do pensamento poltico, que jamais consegue ir raiz dos

    problemas e que chega, inclusive, a ludibriar as inclinaes sociais corretas dos

    movimentos operrios. Assentado na contradio entre a vida pblica e a vida

    privada, o estado s pode manter diante dela uma posio administrativa; jamais

    poderia atentar contra este que o ventre que o trouxe luz e sua lei a impotncia.

    Tambm clarificava que revoluo poltica compete destruir a antiga forma poltica,

    mas a destruio da sociedade antiga, que justamente suscitou a mediao da poltica

    em funo dos prprios defeitos e debilidades, depende de uma revoluo social.

    Esta densa tematizao sobre a politicidade que aparece nos primeiros textos

    marxianos sintetiza sua viso madura da matria, que o acompanharia por toda a

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    33/353

    33

    vida. Em alguns momentos, pde, diante de determinados fenmenos histricos,

    como a Comuna de Paris, retornar explicitamente ao tema no especfico caso em

    tela, aprofundando-o. Mesmo quando no abordada diretamente, entretanto, tal

    apreenso da politicidade estava implcita em suas anlises, pelo que nos obrigamos a

    sua exposio, possibilitando ao leitor perceber, pela prpria reproduo analtica

    dos textos (que se far no decorrer deste trabalho) sua recorrncia e pertinncia.

    Apenas no intuito de demonstrar que so afirmaes que voltaro em

    inmeras obras, categoricamente ou em subjacncia, pinaremos, a seguir, algumas

    citaes de algumas das obras seguintes de Marx, at o perodo recortado neste

    trabalho. Assim, nA sagrada famlia, de 1845, a propsito de criticar mais uma vez o

    pensamento especulativo dos neohegelianos, caricatura vazia do iderio de Hegel,

    Marx disse que a propriedade privada capitalista engendra necessariamente seuoponente, o proletariado, e que este seria forado a abolir a si prprio e

    propriedade, que dele dependia e que lhe dava suas caractersticas bsicas. O

    proletariado desenvolvido condensava e consumava a abstrao, as condies de vida

    desumanas de toda a humanidade tal como se punham naqueles dias, mas tambm

    representava sua conscincia terica. A pauperizao inelutvel o levava a revoltar-se

    e a se libertar, para o que seria necessrio que eliminasse suas prprias condies de

    vida as quais, por sua vez, s poderia abolir com todas as condies inumanas devida.

    Sobre a oposio entre as classes, Marx destacava:

    A classe possuidora e a classe proletria representam a mesmaalienao humana. Mas a primeira sente-se vontade nestaalienao; encontra nela uma confirmao, reconhece nestaalienao de si o seu prprio poder e possui nela a aparncia deuma existncia humana; a segunda sente-se aniquilada nestaalienao, v nela a sua impotncia e a realidade de umaexistncia inumana. (SF, p. 53)

    Levado revolta contra a situao de vida a que era submetida, a classe que

    ento encarnava a perspectiva do trabalho, o proletariado, construiria sua auto-

    emancipao. O que no significa que se erigiria em nova classe dominante, de vez

    que sua vitria s seria alcanada quando eliminasse a si prprio e a seu contrrio.

    No se tratava, de acordo com Marx, de uma atuao dos operrios para satisfazer

    suas necessidades enquanto operrios, mas enquanto homens.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    34/353

    34

    Marx criticava os irmos Bauer5 e companheiros por confundir estado com

    humanidade, os direitos do homem com o homem, a emancipao poltica como a

    emancipao humana, o que os levava a um estado engendrado por um ideal

    filosfico (SF, p. 132). A partir desta confuso, Bruno Bauer no podia deixar, se

    queria manter-se conseqente consigo mesmo, de confundir os meios polticos com

    os meios humanos dessa emancipao (SF, p. 143). Contra a viso neohegeliana que

    atribua aos judeus a responsabilidade por sua excluso do estado moderno, Marx

    redargia: a sociedade e o estado modernos so exclusivistas; nenhum dos dois

    aparta quem lhes satisfaa as exigncias de desenvolvimento e obedea s suas

    determinaes. Na suaperfeio, chega mesmo a fechar os olhos declarando que as

    oposies reais so oposies que no tm nada depoltica e no o incomodam (SF,

    p. 145).Os filsofos da especulao deixavam de apreender, continuava Marx, a

    essncia unilateral do direito e que este tem por base a distino entre o que de seu

    domnio e o que o ultrapassa o pinculo da evoluo jurdica. Desta maneira, relegava

    vida privada inmeros caracteres humanos. De tal forma que, asseverava Marx, nos

    estados polticos acabados, judeus, cristos e outros j tinham alcanado a

    emancipao no plano poltico, mas esto muito longe de estarem emancipados no

    plano humano (SF, p. 166), donde se depreende necessariamente a dessemelhanaentre os dois nveis de liberdade, questes que, como acabamos de ver, j

    desenvolvera nos textos anteriores. Caberia estudar o estado moderno, lcus da

    emancipao poltica e, em contraponto, mostrar que os estados que no permitem a

    participao poltica dos judeus so subdesenvolvidos. Do que tambm se infere que

    os que j deram espao para a emancipao poltica de judeus e outros povos eram

    estados plenamente constitudos e, portanto, que j era de posse da sociedade o

    mximo de liberdade possvel no interior de sua lgica.

    Ainda a este propsito, Marx se reportava a seus textos dos Anais Franco-

    Alemes (QJ e ICFDH), mostrando a impropriedade de os judeus alemes

    reivindicarem participao na comunidade poltica e direitos polticos num pas onde

    estes inexistiam. Reiterava que ver o estado germano-cristo como estado cristo

    absoluto era um despautrio, j que o estado moderno, que no faz conta de

    privilgios religiosos, o estado cristo acabado, livre da religio ao emancipar-se da

    5 Egbert e Edgar Bauer integravam o movimento neohegeliano e Bruno Bauer (1809-82) era um deseus expoentes.

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    35/353

    35

    religio de estado. Ainda mais: naqueles textos demonstrou-se ao senhor Bauer

    como a decomposio do homem em cidado no religioso e pessoa particular

    religiosa no est de modo algum em contradio com a emancipao poltica e que

    o indivduo se emancipapoliticamente da religio do momento em que tomada por

    questo privada (SF, p. 168). Por fim, a reivindicao dos judeus por ser homens

    livres j teve seu reconhecimento clssico nos direitos universais do homem e do

    cidado e o prprio Marx j havia demonstrado que a reivindicao do carter de

    homem livre e seu reconhecimento eram a proclamao da sacralidade do indivduo

    egosta, burgus, e da sociedade gestada a sua face. Tinha deixado claro que os

    direitos do homem no visam a libertar o homem da religio, mas to-somente

    garantir-lhe liberdade de religio e de escolha na forma de ganhar sua vida. E voltava

    questo do reconhecimento da escravido moderna:

    A base naturaldo estado antigo era a escravido; a do estadomoderno a sociedade burguesa, o homem da sociedade

    burguesa, isto , o homem independente, s ligado outrem pelolao do interesse privado e da necessidade natural, de que notem conscincia, a escravido do trabalho interessado, da suaprpria necessidade egosta e da necessidade egosta de outrem(SF, p. 170).

    Os direitos do homem so fruto da prpria atividade da sociedade burguesa, a

    qual se viu constrangida a superar antigas barreiras polticas, e sua proclamao era

    um reconhecimento de sua origem e fundamento. Marx advertia, ainda, para a

    essncia comercial judaica da livre sociedade burguesa, o que dava aos judeus

    todo o direito de reivindicar sua emancipao poltica e que lhe fossem concedidos os

    direitos do homem (SF, pp. 170-1). Em sua censura ao constitucionalismo, mostrava

    que a existncia do estado moderno corresponde a sua essncia, noo a partir da

    qual se podem avaliar seus defeitos absolutos e relativos mas nada disto era

    considerado pela especulao, ainda obrigada a encontrar no regime poltico a

    soluo das suas prprias contradies e [que] continua como no passado a no ter a

    mnima idia doprincpio do estado moderno (SF, p. 173).

    Em que consistiria tal essncia? Marx a qualificava como escravido moderna:

    No mundo moderno, todo o indivduo ao mesmo tempo escravo e membro da

    comunidade. Mas a escravido da sociedade burguesa constitui, em aparncia, a

    maior liberdade, justamente porque, fenomenicamente, era o complemento da

    independncia individual; um processo em que o homem toma como sua prpria

    liberdade a movimentao (que ele prprio no controla e que independe dele) de

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    36/353

    36

    certos elementos que lhe foram usurpados e se tornaram estanhos (propriedade,

    indstria, religio) (SF, p. 175). O estado lhes certificou o nascimento oficial

    relegando-os ao nvel da vida privada e negando sua existncia poltica mas esta

    declarao da sua morte cvica leva exploso da sua vida (SF, p. 176). Desta forma,

    continuava Marx, eram os prprios caracteres essenciais do homem, a necessidade

    natural e o interesse, que os conservava unidos na sociedade burguesa, ou seja, seu

    elo, sua coeso situa-se na vida civil, e no no estado ou vidapoltica (SF, pp. 180-2).

    Donde podia inferir que o direito nada concede, limitando-se a sancionar o que j

    existe (SF, p. 291).

    EmA ideologia alem, escrito em colaborao com Engels entre setembro de

    1845 e maio de 1846, Marx refez o histrico da gnese do estado, evidenciando seu

    vnculo com a propriedade privada imobiliria e a diviso do trabalho. Relacionava,desta forma, a organizao social e o estado com a produo material da vida pelos

    indivduos. Assim explicitada sua ligao, estaria tambm trazida luz a

    possibilidade e at o imperativo de foras produtivas, estado e conscincia entrarem

    em contradio, dado que o avano da diviso do trabalho atribui seus diferentes

    momentos a indivduos diferentes.

    Referindo-se alienao e ao estranhamento, coagulao de foras pessoais

    num poder material que se apresenta fora do controle de seu produtor, Marxassegurava que precisamente por virtude desta contradio entre o interesse

    particular e o interesse comum cobra o interesse comum, enquanto estado, uma

    forma prpria e independente, separada dos reais interesses particulares e coletivos

    e, ao mesmo tempo, como uma comunidade ilusria, mas sempre sobre a base real

    dos vnculos existentes (IA, p. 35).

    Novamente, para Marx, todas as lutas travadas no interior do estado no so

    seno formas ilusrias das lutas reais entre as diversas classes sociais e toda classe

    social que desejasse implantar sua dominao deveria comear pela conquista do

    poder poltico, de forma que possa apresentar seu interesse como o interesse geral:

    Precisamente porque os indivduos s buscam seu interesseparticular, que para eles no coincide com seu interesse comum,e porque o geral sempre a forma ilusria da comunidade, faz-se valer isto diante de sua representao como algo alheio aeles e independente deles, como um interesse geral de umas vez especial e peculiar, ou eles mesmo tm de enfrentar-senesta ciso, como na democracia. (IA, p. 35)

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    37/353

    37

    O prprio enfrentamento efetivo, prtico, destes interesses particulares obriga,

    pela interposio entre aquelas volies privadas, a seu refreamento pelo interesse

    ilusrio representado no estado, no entender de Marx. Com o que o poder social, a

    soma das foras produtivas multiplicadas pelo poder da cooperao, aparece aos

    indivduos como um poder alheio, que deles independe, de que desconhecem a

    procedncia e o destino e que j se situa fora de seu controle antes, caminha por

    etapas peculiares de desenvolvimento e que no s no dependem como at dirigem

    vontade e atos dos homens.

    Este poder s pode ser derrocado se engendrar uma massa da humanidade

    como absolutamente despossuda e, de par com isso, em contradio com um

    mundo existente de riquezas e de cultura, o que pressupe, em ambos os casos, um

    grande incremento da fora produtiva (IA, p. 36). Este alto grau de desenvolvimentodas foras produtivas pressuposto, sem o qual s se generalizaria a escassez e,

    portanto, com a pobreza, comearia de novo, juntamente com a luta pelo

    indispensvel, e se recairia necessariamente em toda a imundcia anterior (IA, p.

    36). Por outro lado, apenas este desenvolvimento proporciona um intercmbio

    universal dos homens, a concorrncia reproduz a criao da massa despossuda em

    todos os povos, colocando-os em relao de dependncia mtua e criando indivduos

    histrico-universais, empiricamente mundiais, em vez de indivduos locais (IA, pp.36-7). Se no fora assim, o comunismo teria apenas carter localizado, as potncias

    do intercmbio no poderiam se desenvolver universalmente e tornar-se

    insuportveis e toda ampliao deste intercmbio interferiria mortalmente no

    comunismo local. O verdadeiro comunismo s poderia ser, portanto, resultante de

    uma ao simultnea dos povos dominantes; a regulao comunista da produo

    significaria o fim da propriedade privada e da atitude dos homens de comportar-se

    diante de seus produtos como de algo estranho, voltem a ser donos do intercmbio,

    da produo e das formas de relacionar-se com ambos.

    Marx enfatizava que a revoluo seria fruto de uma associao universal do

    proletariado que acabaria com o antigo modo de produo e de intercmbio e a

    organizao social correspondente e desenvolveria o carter universal e a energia do

    proletariado, que naquele momento era o agente do trabalho estranhado (IA, p. 80).

    Este, posto em nvel mundial e, portanto, histrico-universal poderia fazer uma

    revoluo que imporia a liberao de cada indivduo das travas nacionais e locais

    dado que a riqueza espiritual do indivduo depende totalmente da riqueza de suas

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    38/353

    38

    relaes reais. A dependncia total, forma natural da cooperao histrico-

    universaldos indivduos, converte-se, graas revoluo comunista, no controle e

    dominao consciente sobre estes poderes que, nascidos da ao de uns homens

    sobre outros, at agora tm se imposto sobre eles (IA, p. 39).

    Marx afirmava que o moderno estado corresponde propriedade privada

    moderna, tendo sido entregue completamente nas mos dos proprietrios privados

    pelo sistema da dvida pblica e cuja existncia depende do crdito fornecido por

    estes. Emancipada a propriedade privada, o estado adquire existncia especial,

    margem da sociedade civil, mas no tampouco mais que a forma de organizao

    que se do necessariamente os burgueses, tanto no interior como no exterior, para a

    mtua garantia de sua propriedade e de seus interesses (IA, p. 72). No mister de

    fazer valer os interesses comuns dos indivduos de uma classe dominante, condensaas relaes sociais de uma dada poca e atua como intermedirio entre muitas

    instituies comuns, que atravs dele adquirem uma forma poltica. Da a iluso de

    que a lei se baseia na vontade e, ademais, na vontade desgarrada de sua base real, na

    vontade livre. (IA, p. 72).

    Marx voltava ao carter limitado das revolues anteriores, polticas, as quais

    deixaram intacto o modo de atividade e s tratavam de lograr outra distribuio

    desta atividade, uma nova distribuio do trabalho entre outras pessoas.Contrapunha-lhes a revoluo comunista que, dirigida contra o modo anterior de

    atividade, elimina o trabalho e suprime a dominao das classes ao acabar com as

    classes mesmas (IA, p. 81).

    Reafirmava que os proletrios, para se fazer valer pessoalmente, necessitam

    acabar com sua prpria condio de existncia anterior, que ao mesmo tempo a de

    toda a anterior sociedade, com o trabalho, motivo pelo qual estavam em

    contraposio com e necessitam destruir o estado para impor sua personalidade

    (IA, p. 90). Se j no vamos nos textos marxianos quaisquer laivos de estatismo, aqui

    estes ficam liminarmente afastados. Da mesma forma, o indivduo, que se diz no ter

    sido objeto para Marx, mostra-se como sua preocupao bsica o comunismo deve

    permitir o desenvolvimento dapersonalidade humana, no de suas foras j potentes

    e que se voltam contra ele pelo estado e pela poltica.

    Por fim, para encerrar este seguimento anual da questo da poltica em Marx,

    a partir de algumas das suas principais obras, tomemos o Manifesto comunista

    (tambm escrito em colaborao com Engels), que enveredou pelo mesmo caminho

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    39/353

    39

    das obras anteriores, mantendo e ampliando certas injunes que havia feito em

    outros momentos. Neste texto, Marx fez um histrico do desenvolvimento da classe

    burguesa, de suas lutas e das revolues que foi obrigada a levar a cabo, em cada

    etapa galgando uma ascenso poltica correspondente. Destacava o papel

    eminentemente revolucionrio desempenhado pela burguesia na histria: A

    burguesia s pode existir com a condio de revolucionar incessantemente os

    instrumentos de produo, por conseguinte, as relaes de produo e, com isso,

    todas as relaes sociais (MC, p. 24). Nesta labuta, tudo que era slido e estvel se

    esfuma, tudo o quer era sagrado profanado, e os homens so obrigados finalmente a

    encarar com serenidade suas condies de existncia e suas relaes recprocas. A

    burguesia procedeu supresso das antigas relaes feudais e simplificao e

    clarificao das relaes que os homens mantm entre si, evidenciando que os atamos interesse, no supostas determinaes extra-humanas ou meramente polticas ou

    morais. Tomou o poder e instituiu uma dominao poltica a sua forma, um poder

    estatal que no seno um comit para gerir os negcios comuns de toda a classe

    burguesa (MC, p. 23).

    Neste processo, tal classe acabou constituindo aquele que, de acordo com a

    apreenso de Marx, seria o seu coveiro, o proletariado, inicialmente uma massa

    disseminada por todo o pas e dispersa pela concorrncia que no enfrentava aindaseus prprios inimigos, mas inimigos de seus inimigos (MC, p. 28). Com o

    desenvolvimento da indstria, o proletariado aumentou em nmero e recresceu em

    fora e conscincia; pelejando ao lado da burguesia, acabou ganhando experincia e

    capacidade de mobilizao poltica. Esta classe , de todas as que tm interesses

    diferenciados ou antagnicos em relao burguesia, a nica verdadeiramente

    revolucionria, j que produto mais autntico da sociedade burguesa. Diferentemente

    de todas as outras classes que conquistaram o poder poltico e submeteram a

    sociedade as suas prprias condies de apropriao, os proletrios no podem

    apoderar-se das foras produtivas sociais seno abolindo o modo de apropriao que

    era prprio a estas e, por conseguinte, todo modo de apropriao em vigor at hoje

    (MC, p. 30).

    No Manifesto comunista, Marx dizia que, uma vez chegado ao poder, o

    proletariado se valeria da supremacia poltica conquistada para tomar

    paulatinamente o capital da burguesia, tornar o estado controlador dos instrumentos

    de produo e aumentar o total das foras produtivas. Isto naturalmente s poder

  • 7/30/2019 Marx e o Bonapartismo

    40/353

    40

    realizar-se, a princpio, por uma violao desptica do direito de propriedade e das

    relaes de produo burguesas por medidas cujo desenvolvimento as ultrapassar e

    que sero indispensveis para transformar radicalmente todo o modo de produo

    (MC, p. 37). H que atender, no obstante, para o fato de que este programa proposto

    no Manifesto foi ultrapassado diante dos desenvolvimentos apresentados pela

    prpria realidade, em especial a Comuna de Paris. Como Marx teve o cuidado de

    anotar no prefcio edio alem de 1872, no se deve atribuir importncia

    demasiada s medidas revolucionrias enumeradas, j que em vrios pontos

    estavam envelhecidas; Marx se preocupou em citar nominalmente a Comuna de

    Paris, mostrando que sua prpria existncia havia destrudo a idia de que a classe

    operria pudesse se apoderar do aparato estatal e utiliz-lo para os seus prprios fins

    (MC, p. 14).No texto tambm ficam claros o drama e a tragdia da sociedade burguesa, que

    a tornaram limitada e contraditria bem como o contraponto comunista. Assim,

    Na sociedade burguesa, o passado domina o presen